Livro Digital - História de 50 metros e outras histórias crônicas
História Do Cárcere e Histórias de Cárcere
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MIGUEL TADEU VICENTIM
HISTRIA DO CRCERE E HISTRIAS DE CRCERE
MONOGRAFIA DE BACHARELADO
DEPARTAMENTO DE HISTRIAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
Mariana, 2003.
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MIGUEL TADEU VICENTIM
HISTRIA DO CRCERE E HISTRIAS DE CRCERE
Monografia apresentada ao Curso de Histria da Universidade Federal de Ouro Preto como parte dos requisitos para a obteno do grau de Bacharel em Histria.Orientador: Prof. Adriano Srgio Lopes da Gama Cerqueira
DEPARTAMENTO DE HISTRIAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
Mariana, 2003.
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A Deus e minha me.
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Agradeo orientao do Professor Adriano Srgio Lopes da Gama Cerqueira, por sua pacincia e por permitir o desenvolvimento de meu trabalho.
Agradeo minha me, minha irm e ao meu cunhado pelo carinho e apoio constantes.
Agradeo aos professores amigos, e amigos professores: Andra Lisly, Fbio Faversani, Fernando Marcelo Seabra, Helena Mollo, Jos Arnaldo Coelho, Lgia Garcia Diniz, Myriam Bahia.
Agradeo ao NEASPOC por disponibilizar toda sua estrutura para a realizao de meu trabalho e pela realizao da pesquisa que ajudou a dar maior consistncia minha narrativa.
Agradeo a Rosimeire da Fonseca e a Marli Elias Veisac pela pacincia e ajuda nas questes mais difceis (burocrticas).
Agradeo a todos os amigos do NEASPOC e ICHS.Agradeo ao amigos sempre presentes: Nuno, Detinha,
Michele, Lus, Nina e Aninha.
O inferno dos vivos algo que ser; se existe, aquele que j est aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos
estando juntos. Existem duas maneiras de no sofrer. A primeira fcil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste at o ponto de deixar de perceb-lo. A segunda arriscada e exige ateno e aprendizagem contnuas: tentar saber reconhecer
quem e o que, no meio do inferno, no inferno, e preserv-lo, e abrir espao.
Calvino, talo. As Cidades Invisveis.
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RESUMO
Monografia de Bacharelado em Histria Social do Brasil que analisa aspectos do Sistema Penitencirio no final do sculo XX a partir de narrativas escritas por detentos que foram publicadas na forma de livros. A partir destas narrativas so feitas comparaes entre a vida descrita por estes autores dentro do crcere com as idias defendidas por intelectuais da rea de Histria e Sociologia sobre o tema.
ABSTRACT
This Paper in Brazilian Social History analyses aspects of the Penitentiary System in the end of century XX. The documental corpus is composed by narratives written by prisoners which were published as books. The study made comparisons between the life inside the jail described by these authors with ideas defended by historians and sociologists on the subject.
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SUMRIO
Lista de Tabelas............................................................................... VII
Introduo Uma Histria do Sentimento........................................ 8
Aspectos terico-metodolgicos Que caminho seguir?................ 22
Conceitos Quem? O qu?
O Criminoso.............................................................................. 26
O Crcere................................................................................. 34
Luiz Alberto Mendes O Mdico e o Monstro................................. 42
Consenso Com senso................................................................... 54
Concluso......................................................................................... 64
Anexo I: Pronunciamento do Sr. Deputado Coronel Ubiratan.......... 67
Bibliografia........................................................................................ 75
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LISTA DE TABELAS
Conhece algum que j foi preso..................................................... 60
A pessoa que conhece .................................................................. 60
Influncia da cadeia no comportamento do detento......................... 62
O que leva uma pessoa a cometer um crime................................... 62
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INTRODUO Uma Histria do Sentimento1
Como so perversas essas pessoas honestas!Emile Zola, ltima frase de seu livro O Ventre de Paris
Existe em Ouro Preto, prximo Praa Tiradentes, no centro da
cidade, um morro chamado Morro da Forca. Os habitantes da cidade
dizem que o morro leva este nome por ter sido o local em que eram
realizados os enforcamentos: uma pena muito comum at 1830 no
Brasil, quando vigoravam as Ordenaes Filipinas2. A prescrio de
morte natural pela forca era apenas uma das penas aplicadas e, em
muitos casos, at mesmo insuficiente: casos havia em que se fazia
necessrio algo mais, como expor a cabea do enforcado para
apreciao da populao. por esta razo que existe, tambm em
Ouro Preto, um bairro chamado de Cabeas, logo na entrada da
cidade, para os viajantes que chegam de Belo Horizonte, onde as tais
cabeas ficavam expostas.
Pois foi no Morro da Forca que, alguns dias atrs, em uma tarde
quente de vero: final de fevereiro de 2003, por volta das 15h; onde
pude presenciar um delito que muito contribui para dar incio a esta
1 Ttulo baseado em discusso sobre a tese de mestrado do Prof. Fernando Marcelo Seabra, na qual analisada a obra de Mme de Stal, datada de 1800, que inclui uma das primeiras tentativas de reunir as noes de leitura e sociedade em estudo sistemtico, assim definido pela autora: eu me proponho a examinar qual a influncia da religio, dos costumes e das leis sobre a literatura, e qual a influncia da literatura sobre a religio, os costumes e as leis (apud ESCARPIT, 1958, p8).2 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenaes Filipinas Livro V. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. 512pp.
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narrativa: neste ambiente j contendo uma grande dose de histria
sobre delitos e penas, ocorreu um assalto mo-armada.
Eu estava escrevendo uma carta no alto do morro, aproveitando
a pitoresca paisagem que se avista do local como inspirao. Juntou-
se a mim um casal de turistas, que tambm queriam apreciar a vista
no alto do morro. Tudo estava imerso na mais profunda tranqilidade
quando um garoto se aproximou do casal; um garoto que no
aparentava mais que 18 anos, talvez 17. Pois o tal garoto foi logo
mostrando uma arma: preta, enorme, segundo informaes que recebi
devia ser uma 45 (calibre 45 mm). Era um assalto. Ordenou que
todos fossem para traz de uma base de concreto existente no local.
Como eu estava prximo, fui convidado a acompanhar o casal.
Um detalhe muito curioso neste fato foi a gentileza com a qual
fui tratado: o garoto sempre repetia para que eu ficasse tranqilo pois
nada me aconteceria. Ele vasculhou as carteiras e bolsas do casal
(segundo a vtima eles possuam aproximadamente US$ 200) e depois
de se dar por satisfeito com sua colheita, mandou que
aguardssemos uns 30 minutos no local. Ao se retirar eu ainda recebi
um tapinha nas costas... Me senti seu amigo!
Com esta despedida fiquei um pouco embaraado: como
explicar ao casal que eu no conhecia o garoto e nem era cmplice de
seu crime? Mas o casal tambm no me questionou sobre isto. Finda
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a aventura, apenas aconselhei-os a, chegando no albergue onde
estavam hospedados, comunicarem o ocorrido polcia, ressaltando o
fato de que o assaltante possua uma arma.
Talvez seja curioso um fato destes ocorrer logo comigo, que
inicio meus estudos sobre delitos, penas, sistema penitencirio, seus
agentes e personagens, suas caractersticas e antagonismos. Ou
ento, nos dias de hoje, um fato destes seja simplesmente
corriqueiro.
Mas o importante para meu trabalho so as reflexes que tal
fato provoca: em primeiro lugar, tendo conscincia da falncia do
sistema penitencirio ora implantado em nossa sociedade; fato
evidenciado todos os dias atravs da mdia impressa e televiso; eu
nunca seria capaz de denunciar o garoto ou tomar qualquer atitude
que promovesse seu encarceramento os efeitos de qualquer pena,
nas circunstncias atuais, apenas promoveriam sentimentos de revolta
e dio neste criminoso jovem, aprofundando ainda mais sua excluso
social (marginalidade).
Em segundo lugar, sua gentileza para comigo denota um pacto
silencioso: por eu ser um morador da cidade, por no possuir algo que
lhe interesse (dlares), ele no me agride, esperando que eu, se
encontr-lo pelas ruas da cidades em outro momento qualquer, no o
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prejudique atravs de uma denncia uma regra bsica de
sobrevivncia (?).
Em terceiro e ltimo lugar no que a ordem da narrativa
imponha algum grau de importncia nestas reflexes , o qu fazer em
uma situao como esta? (se que existe algo que possa ser feito
nestas condies).
Acredito que, como historiador, existe algo que eu posso fazer:
descrever e interpretar este fenmeno, no com um olhar pessoal,
mas com um olhar composto por outros olhares que se aglutinam no
acmulo de saberes inerentes prtica acadmica; enfim, documentar
e, se possvel, estender este olhar/conhecimento para a busca de
alternativas que, se no eliminem, ao menos minimizem as injustias
sociais e violncias presentes na estrutura social que as promove.
...
O primeiro pensamento que ocupou minha mente nos primeiros
meses, enquanto analisava a possibilidade de realizar a tarefa a que
me proponho neste trabalho, foi perceber a dificuldade em discorrer
sobre um tema to distante de minha realidade. Existe o alto risco de
incorrer em anacronismos e conceitos pr-concebidos, de desenhar
um contexto deturpado e desprovido de veracidade, mas afinal, todo
historiador passa por este perigo, seja analisando uma Histria
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ocorrida em um tempo j findo o passado , seja analisando uma
Histria no tempo em que estamos inseridos o presente3.
Um procedimento indicado nesta situao seria estabelecer
algum contato com o objeto em estudo, ou seja, visitar algum crcere
e dialogar com pessoas que ali vivem. Outra alternativa possvel seria
ter acesso a alguma documentao que discorra sobre o assunto, ou
ainda, entrar em contato com pessoas que tivessem adquirido alguma
experincia sobre o tema.
Estabelecer algum contato com o objeto em estudo exigiria mais
tempo. Tempo para aprender como se estabelece uma relao
humana numa situao semelhante; tempo para conhecer e me
aproximar de pessoas que j tenham vivido esta experincia. Enfim,
uma experincia que exigiria um mnimo de preparo para no dificultar
e deturpar uma relao humana que j , em sua prpria essncia,
difcil e disforme.
Optei, ento, por comear a me aproximar do tema deste
trabalho lendo e admirando as obras de Jean Genet. Junto a ele
conheci tambm William Borroughs e outros artistas denominados
marginais, como Baudelaire, Artaud, Plnio Marcos, enfim, muitos
que, em algum momento, se posicionaram contra uma estrutura social
3 HOBSBAWN, Eric. O presente como histria. In: _____. Sobre Histria ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp 243-255.
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que apenas aparenta ser passvel de compreenso e controle, e a
descreveram.
Jean Genet um caso muito especial: francs, ladro,
homossexual, andarilho; foi preso inmeras vezes e, tambm, um
maravilhoso escritor. Escrevia sobre suas experincias e sensaes
na vida, no crcere. Hoje seu nome consta entre os grandes mestres
da dramaturgia, destacando-se, entre outras obras: O Balco e As
Criadas.
Na trajetria de sua vida o destino lhe sorriu, levando seus
trabalhos a serem analisados por Jean Paul Sartre que divulgou seu
nome e sua obra, alm de lutar pelo seu direito liberdade.
Entre seus livros esto Nossa Senhora das Flores, escrito no
crcere (Fresnes, 1942), antes de sua libertao e Dirio de um
ladro, uma biografia, escrita em liberdade, aps seu reconhecimento
pblico. Ambos narram sua experincia/vida em crceres.
Tendo nascido e sido criado nas ruas, a marginalidade e o
crcere lhe so lugares comuns. Para ele, qualquer ato praticado,
inclusive o assassinato (caso o houvesse cometido), no seria uma
transgresso, mas apenas um ato comum a seu ambiente; e o tempo
que passou no crcere, apenas mais uma fase em sua vida, como na
de outros semelhantes e ele.
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Tomando-o como modelo, vemos que a sociedade no o priva
da liberdade de uma vida em comum, pois esta vida em comum
nunca existiu ele sempre esteve excludo desta convivncia, em
outro universo:
(...) Parecia realizar o que cada ladro deseja: aquela organizao, aquela sociedade livre, poderosa, que s era ideal na priso, onde cada ladro e mesmo cada assassino seriam apreciados abertamente e por nenhuma outra razo alm de seu valor como ladres ou assassinos. A polcia torna impossvel as associaes de malfeitores, e logo os grandes bandos so destrudos, quando no se limitam apenas imaginao de jornalistas ou de policiais. O ladro e o assassino s conhecem a camaradagem no fundo das prises, onde seu valor, enfim, reconhecido, aceito, recompensado, honrado. J no existe essa "mfia", salvo a dos cafetes que so dedos-duros. O assaltante e o matador esto sozinhos, s vezes com alguns amigos. Se eles se freqentam como colegas, convm sempre ficar de olho, responder de maneira vaga s perguntas: "Oh! eu me viro", s dar publicidade aos fatos no dia em que se apanhado. Mas a grande felicidade de ver seu nome sob uma foto, pensar que os colegas esto com inveja dessa glria, paga-se com a liberdade e muitas vezes com a vida, de maneira que cada servio, assalto ou assassinato ser uma maravilha de arte, pois daquele, do ltimo que seja, viro a morte e a glria. (...)4
Outro detalhe interessante em Jean Genet o fato de ele
conseguir transcender sua realidade atravs da literatura. Jean Genet
passa seu tempo no crcere descrevendo suas histrias. Sartre
registra que, para Genet, escrever um meio ertico em sua
apresentao de Nossa Senhora das Flores na Edio da Nova
Fronteira, 1983.
4 GENET, Jean. Pompas Fnebres. Traduo de Ronaldo Lima Lins e Irne M. Cubric. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p 258.
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Lendo outras obras como Junky - drogado, de William S.
Burroughs ocorre uma aproximao ainda maior da idia de que um
presidirio , antes de tudo, um ser humano, desprovido pelo Estado
de elementos que lhe so essenciais: humanidade e liberdade.
E, com tudo isso, pode-se perceber, em nosso dia-a-dia, que o
crcere torna-se um espelho da sociedade que o gera: ns, cidados
honestos estamos presos, com grades nas janelas de nossas
casas, morando em condomnios que funcionam como fortalezas
medievais, com um medo sempre crescente de andar sozinho pela
cidade nosso direito de ir-e-vir tambm est comprometido!
Mas no vou me deixar levar por esta face da anlise. O
pargrafo anterior cabe aqui apenas como mais um elemento que no
se pode ignorar no decorrer deste trabalho.
Cabe ainda citar Caio Prado Jnior, quando critica as
sociedades que promovem e utilizam a escravido, decretando seu
prprio castigo, pois fala de situaes que deveriam ter sido melhor
avaliadas por seus autores:
(...) E por isto, para objetivo to unilateral, puseram os povos da Europa a sua civilizao e cultura. O que isto representou para eles, no correr do tempo, de degradao e dissoluo, com repercusses que se vo afinal manifestar no prprio terreno do progresso e da prosperidade material, no foi ainda bem apreciado e avaliado, nem cabe aqui abordar o assunto. Mas ter sido este um dos fatores, e dos de primeiro plano, do naufrgio da civilizao ibrica, tanto de uma como de outra de suas duas naes. Foram elas
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que mais se engajaram naquele caminho; sero elas tambm suas principais vtimas.5
Talvez seja forar a barra, ou impor uma interpretao muito
pessoal neste trabalho, mas minha inteno realar a necessidade
de analisarmos este momento onde irrupes de violncia, de
pequenas revoltas, de evidentes injustias sociais, se fazem notar
em nosso cotidiano de forma cada vez mais contundente e; onde a
sociedade civil se posiciona de forma alheia e at mesmo com idias
deturpadas sobre um problema que existe e se faz notar: a violncia
sempre crescente por parte de grupos historicamente excludos.
Outra face importante sobre o tema que acho necessrio citar
neste momento que este ato de excluso, o encarceramento, o ato
mais cruel que a sociedade pode realizar: ele mata a todos,
independente de seus crimes, e os mantm vivos para presenciarem
sua prpria putrefao. Esta afirmao pode soar um tanto forte e
sem um respaldo cientfico, mas ao seguirmos adiante na anlise dos
textos que tive acesso, esta afirmao se tornar, em cada pargrafo,
mais evidente.
...
Seguindo as possibilidades de objetos de anlise para a
composio desta monografia, surgiu tambm a possibilidade de me
aproximar de agentes que atuam prximos a encarcerados, como a
5 PRADO Jnior, Caio. Formao do Brasil Contemporneo colnia. So Paulo: Brasiliense, 1983. 18 edio. 1 edio em 1942. p271.
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Pastoral do Crcere, em Mariana, que desenvolve algum trabalho
junto aos presidirios mantidos na Delegacia do municpio. Porm o
trabalho deste grupo , em essncia, assistencial, e minha presena
poderia gerar expectativas que eu no estaria em condies de
satisfazer.
Para minha sorte, tomei conhecimento do lanamento do livro
Estao Carandiru escrito por Dr. Druzio Varella, mdico
cancerologista que, em 1989 iniciou, na Casa de Deteno do
Carandiru o maior presdio que havia no pas, na cidade de So
Paulo um trabalho voluntrio de preveno Aids. Este livro narra as
experincias e histrias que Druzio Varella encontrou enquanto
freqentou esta priso. Um dos leitores de seu livro comenta:
Seu relato neste livro tem as tonalidades da experincia pessoal - resulta dos relacionamentos que a profisso de mdico permitiu manter com presos e funcionrios; no busca denunciar um sistema prisional antiquado e desumano; expressa uma disposio para tratar com as pessoas caso a caso, mesmo em condies nada propcias manifestao das individualidades. 'Estao Carandiru' fala das pessoas que Drauzio Varella conheceu. So crnicas sobre formas de viver e morrer.6
A partir da leitura deste livro, vislumbrei a possibilidade de estar
trabalhando com textos escritos por encarcerados, ou sobre
encarcerados. Novamente as circunstncias me foram favorveis pois,
logo depois foram publicados 7 (sete) livros, talvez mais, escritos por
encarcerados. Tive acesso a 4 (quatro) destes livros, todos publicados 6 Comentrio de um leitor, retirado da pgina da Livraria Cultura na Internet: http://www.livrariacultura.com.br.
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nos ltimos 3 (trs) anos, cujos autores so, ou foram presidirios, e
que escreveram sobre sua experincia dentro do crcere. Existem
mais 2 (dois) livros que foram escritos por agentes penitencirios,
discorrendo tambm sobre suas experincias no cotidiano dos
crceres onde trabalharam.
Os livros so:
Letras da Liberdade: um livro de contos escritos por
presidirios. Estes contos foram selecionados atravs de um concurso
promovido entre os chamados re-educandos do Complexo do
Carandiru. Foram apresentados 345 textos e apenas 15 compuseram
o livro. Sua riqueza est em sua diversidade: mltiplas origens,
mltiplos conflitos, mltiplos contextos sociais um mesmo destino: o
crcere.
Sobrevivente Andr Du Rap do massacre do Carandiru: um
livro escrito por um encarcerado, neste caso, um cantor de rap,
conhecido e respeitado no crcere por suas idias e postura.
Vivenciou e descreveu inmeras situaes desumanas que so tidas
como naturais e at mesmo necessrias para a manuteno de uma
chamada ordem dentro de um presdio.
Memrias de um sobrevivente: este o livro que vou destacar
neste trabalho, tambm escrito por um encarcerado: Luiz Alberto
Mendes. Este ser foi escolhido por se tratar da histria de um
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indivduo que viveu quase sua vida toda na priso. Menor, ficou preso
no antigo Recolhimento Provisrio de Menores (RPM) e enviado para
o Instituto de Menores de Mogi-Mirim at completar 18 anos. Lgo
depois, aos 19 anos, foi preso novamente, passa por inmeras
detenes e momentos de liberdade at ser condenado a 70 anos de
priso por inmeros assaltos e um assassinato. Com 49 anos,
momento de sua vida em que publicou o livro, ainda continuava na
priso.
Dirio de um detento: mais um livro escrito por um detento,
Jocenir Prado, com um requinte a mais: Jocenir tambm poeta, e
uma poesia sua virou letra de msica que ficou conhecida na voz de
Mano Brown do grupo de rap Racionais MCs. Uma diferena
importante que Jocenir no um criminoso, ele se declara inocente
das acusaes que lhe foram imputadas, pai de famlia, comerciante;
diferente de Luiz Alberto Mendes, que assume, desde a adolescncia,
sua postura de criminoso, e se dedica inteiramente ao crime.
Cdigo de cela: foi escrito por um agente penitencirio. um
livreto tratando o tema de forma bastante superficial, mais preocupado
em destacar grias, tatuagens e desenhos, e informar seus
significados.
Portal do Inferno... mas h esperana: seu autor, Luizo
Luiz Camargo Wolfmann ingressou no Sistema Penitencirio em
19
-
1955. Foi Diretor da Casa de Deteno de So Paulo, assessor
tcnico do gabinete do secretrio de Segurana Pblica e de Justia
de So Paulo, entre outros cargos afins. Seu trajetria rica sobre o
tema e sua narrativa denota seriedade, mas tambm antagonismos.
Este livro um dos mais importantes, junto com Memrias de
um Sobrevivente de Luiz Alberto Mendes, pois juntos descrevem a
vida dentro do crcere, porm, com olhares diferentes.
Assim, tomando como plos principais os livros de Luiz Alberto
Mendes e Luizo Wolfmann, aproximando-os de textos clssicos sobre
crimes, penas e sistema carcerrio, me mantendo atento a inmeros
textos que tive a oportunidade de ter acesso; pretendo construir uma
narrativa onde procuro traar uma silhueta do sistema penitencirio em
nosso pas e em seu sujeito principal: o detento. O foco estar, pelas
fontes escolhidas, prximo maior cidade de nosso pas: So Paulo,
no final do sculo XX. No entanto, o alvo que pretendo atingir est na
mentalidade que se faz perceber por trs da violncia, dos cdigos de
honra e das verdades parciais que se estabelecem no cotidiano de
vidas distorcidas pela negao de um elemento essencial para
qualquer ser humano: a LIBERDADE.
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ASPECTOS TERICO-METODOLGICOS Que caminho seguir?
Desde o primeiro momento em que me propus elaborar esta
monografia, a questo acadmica principal que todos os meus colegas
e professores me apresentaram era quanto ao objeto e recorte de
minha pesquisa.
Assim, Histria do Crcere: onde e quando? Crcere: edifcio?;
aparelho social?; crime?; criminoso?; leis?; violncia?; agente
penitencirio?; policial?; penas?; So Paulo?; Carandiru?; FEBEM?;
Rio de Janeiro?; Cidade de Deus?; Mariana?; Ouro Preto?; 2003?;
sculo XIX?; outubro de 1992?; 1992-2003?; Luiz Alberto Mendes?;
Histria Oral?; Histria das Mentalidades?; Histria Quantitativa?;
Histria Documental?; Histria Social? Histria Sociolgica? Histria
Cultural? Fontes?; Conceitos?; etc.
Tantas escolhas, tantas histrias diversas.
E a condenao era irrevogvel: deveria, por exemplo,
descrever a Atuao da Pastoral Carcerria de Mariana na Cadeia
Local entre os anos 2000 a 2003; utilizando a metodologia da Histria
Oral, aplicando entrevistas a membros da Pastoral Carcerria neste
perodo. Nada mais objetivo e recortado, que diria muito pouco sobre
quase nada, mas obedeceria a todas as normas acadmicas.
Parti, assim, em busca de meu objeto e tempo perdidos. Para
minha comodidade, o mercado editorial me supriu com excelentes
21
-
fontes: so lanados inmeros livros escritos por detentos ou sobre
detentos no vcuo da publicao da obra Estao Carandiru, escrito
por Druzio Varella, na qual o autor relata sua experincia como
mdico na Casa de Deteno; mais conhecida como Carandiru
(nome do bairro em que o presdio estava situado); e onde iniciou um
trabalho voluntrio de preveno AIDS em 1989.
Junto a estas fontes, j citadas e descritas na Introduo,
procurei ler alguns autores clssicos sobre o tema, passando pelas
Ordenaes Filipinas7, pelo Panptico8, e por Dos Delitos e das
Penas9. Obviamente, no me esqueci de cones como Michel Foucalt
e Michelle Perrot. E, para compreender melhor o valor do sujeito que
procurei abordar, dediquei bastante tempo a leituras sobre aspectos
antropolgicos e sociolgicos, em especial Alba Zaluar na antropologia
e Gramsci, Georg Simmel e Luiz Eduardo Soares na sociologia.
Enquanto realizava estas leituras e discutia sobre minha
pesquisa, a todo momento era alertado por colegas, professores e
meu orientador sobre o perigo de estar ampliando em demasia meu
campo de leitura mas este foi um risco assumido, principalmente por
ser esta monografia um trabalho de graduao que, a meu ver, no
7 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenaes Filipinas Livro V. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. 512pp.8 BENTHAM, Jeremy. O Panptico. Belo Horizonte: Autntica, 2000. 180pp.9 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Traduo de J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 2 edio revista. 152 pp.
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apenas permite, como o momento mais propcio para leituras mais
abrangentes, com um carter mais de formao que de resultados.
Assim, realizei leituras e atividades com Histria Oral
pensando na possibilidade de realizar algumas entrevistas com
detentos ou agentes sociais que atuassem junto a detentos ; Histria
Quantitativa e Pesquisas de Survey acessando tabelas de dados
sobre a populao carcerria no Brasil e pesquisas realizadas pelo
NEASPOC junto populao de Mariana e Ouro Preto sobre violncia
e sobre o Sistema Penitencirio . Fiz ainda leituras sobre Histria
Cultural, Histria Social, Histria Sociolgica, Histria do Presente e
Histria das Mentalidades.
Enfim, no quis deixar nenhuma possibilidade passar sem que
eu houvesse feito uma anlise mnima sobre seus aspectos e
contribuies.
...
No momento em que este trabalho se encaminhou para uma
reta final, as opes passaram a assumir seu lugar e importncia e
as fontes passaram a oferecer mltiplos objetos e temas com
possibilidades para o desenvolvimento de um bom trabalho
acadmico.
Aps esta efmera saga, optei por tentar desenvolver uma
anlise de Histria Social, me aproximando do sujeito criminoso, no
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-
questionando modelos penitencirios, embora no ignore a influncia
dos mesmos sobre o sujeito enfatizado.
No utilizei a metodologia da Histria Oral e da Histria
Quantitativa, embora em alguns momentos eu utilize seus elementos
para ilustrar e at mesmo legitimar minha narrativa.
Por pretenso, procurei desenvolver uma anlise comparativa;
no comparando tempos e espaos especficos, mas comparando
discursos afins: o discurso do criminoso; o discurso acadmico sobre o
tema e o discurso do agente penitencirio este ltimo, como
elemento executivo do sistema ideal acadmico, cujos efeitos atuam
de forma perversa e distorcida sobre o primeiro o criminoso.
Gostaria tambm de ter inserido uma anlise sobre o discurso
dos profissionais do Judicirio mas, infelizmente, a incluso deste
elemento ficar aguardando um desenvolvimento posterior.
Seguindo adiante, este trabalho exige a definio de alguns
conceitos e objetos que estaro sendo apresentados, e este ser o
prximo passo/captulo desta narrativa.
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CONCEITOS Quem? O qu?
- O CRIMINOSO
Escolhi para personagem principal deste trabalho, o criminoso!
Segundo o Dicionrio Aurlio10, criminoso aquele em que h,
ou que constitui ou importa crime; aquele que cometeu crime; ou
aquele que praticou crime; ru. J o crime exige conceitos formais,
substanciais e analticos para ser definido, podendo conter dolo, culpa
ou ofensa, suscitando uma reao organizada na sociedade,
repreenso ou castigo.
Mas, na realidade, existem vrios tipos de crime: ns temos o
crime contra a pessoa; o crime contra o patrimnio; o crime contra
os costumes; e um caso a parte, entorpecentes. No entanto, todos
estes atos, tem por autor, nosso objeto social: o criminoso!
No caso dos entorpecentes, temos o criminoso traficante, que
participa de um grupo com alguma organizao, organizao esta
exigida pelo prprio comrcio do produto que lhe d origem: as drogas
ilcitas. Assim, temos um criminoso campons, que cultiva a maconha,
a coca, a papoula; temos tambm um criminoso trabalhador, que
transporta a droga dos locais e pases produtores at cidades
brasileiras ou ainda o criminoso exportador, que leva a droga para
centros consumidores na Europa e Estados Unidos (principalmente); e
10 Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
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no podemos nos esquecer do criminoso pequeno comerciante,
pequeno e fraco, que promove a venda das drogas para o usurio
final.
Mas esta classe de criminoso exige um trabalho especfico, que
se disponha a analisar melhor sua estrutura, presena e interao com
a sociedade.
Neste trabalho, o criminoso que pretendo enfatizar o que
chamarei de criminoso assumido, onde Luiz Alberto Mendes um
exemplo tpico. Ainda adolescente, Luiz declara em seu livro:
Uma revolta densa ia tomando conta de meu ser. Queria agora era ser bandido mesmo. Viver armado para nunca mais me sentir fraco e indefeso. Queria matar policiais, assaltar qualquer um, sem d ou piedade. Abrir cabeas a coronhadas, dando tiros, cortando em tiras as vtimas. Todos tinham culpa do que eu passara. Todas as pessoas l fora eram culpadas, e eu ia cobrar caro, ah, se ia! No tinha duvidas, eu trucidaria! Mataria a cada um que apenas pensasse em se colocar em meu caminho. Espumava pelos cantos da boca de rancor e dio ao expor meus ideais. Sentia-me com o poder de ser cruel ao mximo. Odiava policiais. Jamais tivera qualquer preconceito, mas isso acho que valia como preconceito. Polcia para mim no era gente, e todos mereciam ser mortos da forma mais brbara possvel. Os outros pensavam como eu. Os policiais seriam nossos inimigos vitais, para sempre.11
E este sentimento amadurece com ele, reforado por suas
passagens por delegacias e prises e tambm pela vida de crimes que
passa a constituir seu cotidiano. Aos dezoito anos sua opo estava
ainda mais clara: 11 MENDES, Luiz Alberto. Memrias de um Sobrevivente. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p154.
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Nos ltimos tempos, minha cabea mudara muito. Tinha a ver com tudo o que vivera nas prises. Estava mais calculista, mais violento, prepotente, mais duro e at cruel. J pouca coisa me importava. J no me preocupava se tivesse que atirar em algum. Atiraria agora, sem vacilar. Achava que personificava o crime.
Havia optado definitivamente. Conseguira me transformar em um bandido, colocava-me na postura de um assaltante perigoso e procurava divulgar essa imagem.
Vestia-me, caminhava e falava como um homem com poder de vida e morte. As armas eram quase extenso de meus braos, at ao banheiro ia armado. Adorava armas, vivia desmontando-as, limpando, azeitando, treinando tiro ao alvo com elas e, infantilmente, girando-as nos dedos, tipo bangue-bangue. No ligava para a vida de quem no estivesse ao meu lado, e j no estava apaixonado por ningum.12
Em seu livro, Luiz, aplaudido pela crtica13, soberbo escritor, se
aproxima dos textos de Jean Genet quando faz sua apologia ao crime:
Sermos bandidos era a glria. O nosso poder parecia infinito dentro do carro, com as armas. Tudo era nosso. Era s descer e tomar. Se tudo o que tinha significado estava nas mos dos outros, nada mais justo que fssemos tomar nossa parte. Por que tudo para eles e nada para ns? Cabia-nos buscar nossa parte da maneira como aprendramos a busc-la.
Todos eram iguais a ns. Estvamos justificados se matssemos, roubssemos. Quem se interpusesse no caminho que seguamos em busca de nossos objetivos, merecia morrer. Nada mais correto. Tudo o mais parecia irrelevante.14
Os demais livros analisados perdem um pouco sua fora
conceitual por apresentarem impresses de criminosos ocasionais,
isto , que no assumem seu carter criminoso. O crime apenas um
12 Idem. p 313-314.13 CULT REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA. ano VI. no 59. Julho de 2002. So Paulo: Editora 17.14 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 371-372.
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ato inconseqente, independente de sua vontade, uma fatalidade. Os
autores dos demais livros narram suas impresses e experincias na
priso, criticam o sistema penitencirio, mas no se apresentam como
atores sociais marginais, opostos e em guerra contra a sociedade.
Luizo Wolfmann tambm reconhece este aspecto em seu livro
Portal do Inferno e faz uma diferenciao entre criminosos:
H de se fazer uma distino entre bandido e criminoso: ambos so tratados como se pertencessem mesma categoria, at e lamentavelmente por aqueles que por dever de ofcio deveriam distingui-los. Todo bandido criminoso, porm nem todo criminoso bandido.
Segundo o conceito moral, substancial e analtico, a violao da lei penal constitui crime. Portanto, este, sendo um cidado honesto, poder, eventualmente, por acidente de percurso, quando fatores imprevisveis se faam presentes, ser conduzido desdita miservel de ser condenado, cujas circunstncias no podero leva-lo a ser visto e tratado como se bandido fosse.
Aquele, entretanto, alm de se enquadrar em todos os conceitos jurdicos reais e imaginveis que o caracterizam como criminoso, faz do crime profisso, tornando-se criminoso costumaz (bandido).15
Existe ainda o criminoso patolgico que, como o traficante,
exigiria uma outra anlise, um outro contexto, outras leituras e olhares.
...
Luiz Alberto Mendes optou pelo crime. No quero dizer com isto
que ele seja um homem mau. Luiz uma pessoa que teve uma
postura muito clara, que reconhece seus atos: no foge, no se
esconde, no se envergonha de seus atos. Assim como Jean Genet,
15 WOLFMANN, Luiz Camargo. Portal do Inferno... Mas h esperana. So Paulo: WVC, 2000. p25.
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Luiz Alberto Mendes lida com seu comportamento sem pudores ou
moralismos:
Todos os meus parmetros eram de priso. Em tudo eu pensava apenas como um preso. Estava condicionado a me defender sempre, em qualquer tempo. Sentia que o mundo e as pessoas s me prejudicaram e fizeram sofrer. No era bem assim, mas era assim que eu via, destacava apenas o que me ferira, valorizara apenas o meu sofrimento, que se fodesse os dos outros. Imaginava no conhecer bondade nem amor. Amor para mim era sexo. Estava preparado apenas para defender e resistir. Se me desse uma chance, revidar com extrema violncia, para matar, se facilitassem. Procedia e pensava como um sobrevivente de alguma guerra. Era aquela educao de que as instituies do governo me dotaram. Era um produto, a ponta do iceberg.16
Luiz era, sem dvida, uma pessoa boa. Sua histria deixa esta
impresso de forma inquestionvel. Temos uma passagem que
exemplifica seu carter:
Jamais consegui ver pessoas sofrendo, sem me comover. Meu prprio pai sempre dissera que eu no era mau, que possua um bom corao. Mas sabia que aquilo era paradoxal, pois meu corao estava cheio de revolta e desespero. O sofrimento tinha duas conseqncias. Ao mesmo tempo que me revoltava e embrutecia, tornava-me profundamente sensvel dor alheia. Isso me confundia bastante, pois ainda no sabia refletir ordenadamente sobre fatos. No possua mtodo. Tudo embolava na emoo, e precisava de ao para me aliviar daquele tumulto. Meu Deus! Que reviravolta de emoes! Aquilo me desequilibrava.17
Em outra passagem Luiz at assume uma postura de heri:
Os atacantes juntaram-se em cima do rapaz. Percebi que, naquela chuva de pontaps, poderiam matar a vtima. Instintivamente, sem pensar, interferi. Entrei no meio da
16 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 189-190.17 Idem. p 194.
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rapaziada decidido, empurrando e afastando, vigorosamente, todos de cima do sujeito. No sei onde encontrei foras e coragem, mas consegui separa-los. Isso deu ensejo a que o jovem agredido tomasse flego e sasse, em desabalada carreira, rua abaixo. Os agressores me olharam rancorosos e partiram em seu encalo18.
Em uma abordagem mais tcnica sobre o assunto, podemos
citar novamente Luizo Wolfmann apresentando vrias teorias
criminolgicas sobre a origem do crime e, conseqentemente, do
criminoso:
So vrias as teorias criminolgicas que procuram explicar a gnese do delito, entre elas, trs so reconhecidas como as principais, conforme assinala Walter Reckles, professor de Sociologia da Ohio State University: 1) Teoria biolgica e constitucional, tambm chamada do desvio de escola de biologia criminal segundo a qual os mveis principais do desvio de conduta se encontram na estrutura hereditria fsica e mental do indivduo; 2) teoria psicogentica, segundo a qual a formao do carter anti-social depende dos defeituosos relacionamentos familiares nos primeiros anos de vida; 3) teoria sociolgica, entendendo que presses e as influncias do ambiente social geram o comportamento delinqente.19
Esta ltima leitura apresenta o aspecto acadmico no qual
muitos intelectuais enquadram o sujeito social que estamos
analisando. Ou, melhor dizendo, esconde o sujeito social e histrico,
elimina do criminoso seu desejo, seu sentimento e sua prpria
existncia.
Temos, por exemplo, Michel Foucault, um estruturalista, que
trata sobre o tema dando pouca ou nenhuma importncia ao indivduo,
18 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 213-214.19 WOLFMANN, Luiz Camargo. Op cit. p23.
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discorrendo apenas sobre a estrutura penitenciria e seus significados.
Este aspecto ser analisado mais detalhadamente no prximo tpico.
Michel Foucault publicou um livro chamado Eu, Pierre Rivire,
que degolei minha me, minha irm e meu irmo20. Este livro nos
apresenta um texto escrito pelo prprio assassino onde ele narra sua
histria, desde sua infncia, passando pelo crime e descrevendo ainda
seus conflitos mentais. Foucault tambm apresenta textos jurdicos e
mdicos escritos por profissionais contemporneos ao fato e que
atuaram no processo. Mas, em nenhum momento, analisa ou comenta
os escritos ou as atitudes de seus autores. Fica ao leitor a tarefa de
interpretar o conjunto de textos desta obra ou, como o prprio Foucault
comenta em outro texto de sua autoria:
(...) No quisemos de maneira nenhuma fazer neste livro uma anlise psicolgica, psicanaltica ou lingstica de Pierre Rivire, mas sim fazer aparecer a maquinaria mdica e judiciria que cercou a estria. (...) O que espantoso que este texto, que lhes havia deixado sem voz na poca, deixou-os no mesmo mutismo hoje.21
Infelizmente, falta neste trabalho um estudo sobre psicologia;
como surgiriam os sentimentos e como se desenvolve o
comportamento do nosso criminoso Luiz. Apenas encontrei uma
referncia em um artigo sobre o filme Carandiru, que diz:
Todos sabemos (ou devamos saber) que os seres humanos, ao nascer, trazem consigo apenas dois instintos: o
20 FOUCALT, Michel. Eu, Pierre Rivire, que degolei minha me, minha irm e meu irmo. Traduo de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 3 edio, 1984. 296pp21 FOUCAULT, Michel. Sobre a priso. In: Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 6 edio. p 139-140.
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de conservao da prpria vida (da amanhecerem na silva todos os dias em busca de suas presas) e o instinto de reproduo (por isso mesmo, enchem as ruas de pessoas que jamais vero a face de seus pais ou ouviro uma palavra de amor).22
Tentei encontrar alguma referncia mais consistente para esta
afirmao, ou pelo menos o intelectual gerador desta idia, mas no
obtive sucesso (suspeitei de Freud, mas tambm no consegui uma
confirmao). Nem mesmo o prprio autor do texto soube me dizer a
origem de sua afirmao, apenas, como em seu prprio texto,
apresenta a afirmao como senso comum (?).
Voltando ao nosso sujeito, o criminoso Luiz Alberto Mendes,
encontramos no final do livro, sua converso para o bem, atravs da
literatura:
O crime, a malandragem, a idia que perseguira desde a infncia, de ser bandido, malandro, foram se afastando do meu foco de viso. Agora aquilo era muito pouco para mim, diante dos horizontes que divizava. A cultura, o aprendizado, levavam-me a fazer uma releitura do mundo. Havia um lado melhor, e eu queria pertencer a ele. Claro, a cultura do crime que assimilara desde a adolescncia ainda era, de certa forma, dominante em mim, mesmo que no conseguisse perceber. Estava no meu sangue, nos meus ossos, demoraria a vida toda para conseguir um certo equilbrio com a cultura social.23
Na realidade, podemos ver, alm de um criminoso, marginal,
excludo pelas normas de conduta social, um cidado/indivduo que
luta por seu lugar na sociedade, por seu bem estar, por sua
22 RODRIGES, Ricardo Madureira. Os monstros do Carandiru. Jornal: O Estado de Minas, 03/06/2003.23 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 468.
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felicidade. E sua vitria no tem preo! Mas ocorre uma mudana,
uma transformao, e esta mudana, esta transformao, esta
revoluo, ser um dos tpicos que pretendo identificar.
- O CRCERE
Para comear a dissertar sobre crcere, acho interessante
descrever uma pequena histria da mudana que ocorreu no sistema
penitencirio no final do sculo XVIII, e que se sustenta at os dias de
hoje. Para isto, vamos caminhar at as Ordenaes Filipinas e Cesare
Beccaria.
Nas Ordenaes Filipinas vamos encontrar os primrdios das
penas, onde o suplcio o mecanismo oficial. Silvia Hunold Lara nos
faz uma excelente apresentao das Ordenaes Filipinas na edio
produzida pela Companhia das Letras:
Para ser eficaz, portanto, a punio devia ser afirmativa e exemplar: como exerccio de poder, ela devia explicitar a norma, fazer-se inexorvel e suscitar temor. No por outra razo que as punies no Antigo Regime transformavam-se em espetculo, em pedagogia capaz de atingir o corpo do criminoso e, principalmente, impressionar os sentidos dos demais sditos e vassalos. O lugar onde era construdo o patbulo, a escolha do dia da execuo e do roteiro por onde passaria o cortejo penal, a distribuio dos lugares a serem ocupados pelos membros da nobreza, milcias etc. tudo fazia do ritual punitivo uma cerimnia poltica, de reativao do poder e da lei do monarca. O suplcio penal fazia-se proporcional ofensa cometida contra o soberano e sua lei; ao efetivar-se sobre o corpo do condenado (marcando-o, quebrando-o e subjugando-o fisicamente), explicitava o triunfo e a glria reais.
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somente nesse contexto que o significado das chamadas mil mortes se desvenda. No se trata de simplesmente matar o criminoso, mas de relacionar a gravidade de sua falta ao rigor da punio, fazer com que o sofrimento do condenado inspire temor e sirva de exemplo, expiando suas culpas e restaurando o poder real violado pelo crime em toda a sua fora e plenitude. Uma s morte no bastava: criou-se um repertrio de mortes, uma tecnologia para fazer morrer, de vrios modos e em tempos diversos. 24
Quando tomamos conhecimento que esta prtica ainda estava
plenamente em vigor no Brasil at 1830, podemos perceber que no
se trata de um momento to distante. Para a histria da humanidade,
estas prticas ainda so extremamente recentes e, se fizermos uma
anlise da presena da tortura (que gritante nos textos usados neste
trabalho), tanto durante a ditadura militar, quanto nas descries dos
autores-detentos, veremos que, se o suplcio no uma prtica oficial,
ainda no deixou de estar presente no cotidiano de nosso sistema
penitencirio contemporneo.
Cesare Beccaria, aps conhecer as agruras do crcere, para
onde foi enviado por interferncia de seu prprio pai, publica em 1764
um tratado chamado Dos Delitos e das Penas25, onde discorre sobre
os diversos problemas relacionados com a priso, as torturas e a
desproporo entre o delito e a pena. Este livro vem a ser a primeira
apresentao sucinta e sistemtica dos princpios que governam a
24 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenaes Filipinas Livro V. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. p 21-22. Promulgada em 1603 por Filipe I, Rei de Portugal.25 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Traduo de Torrieri Guimares. So Paulo: Hemus, 1983. 120 pp.
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punio criminal onde se condena prticas brbaras: o uso comum da
tortura e da instruo processual secreta, o capricho e a corrupo dos
juizes, as punies brutais e degradantes. Ele defende que a eficcia
da justia criminal depende principalmente da certeza da punio,
mais que de sua severidade, e que as penas devem ser proporcionais
importncia da ofensa.
Muitas mudanas ocorrem neste momento por toda a Europa.
Seguindo a histria do sistema penitencirio, vamos encontrar uma
grande discusso acadmica ainda no final do sculo XVIII, onde um
dos intelectuais que deixa um trabalho significativo e que caracteriza
esta poca Jeremy Bentham com seu projeto de uma priso ideal.
Michelle Perrot escreveu um artigo sobre esta priso arquitetada
por Jeremy Bentham, chamada de Panptico, onde nos apresenta o
contexto do tema neste perodo:
A lei penitenciria de 1779 expressa a opo por um outro caminho. Mas sua eficcia fraca. As reformas tentadas enfatizam o trabalho em detrimento de todo o resto; chega-se, inclusive, a permitir a reduo da pena para os detentos mais aplicados. (...) Os abusos do velho sistema persistem; segue-se amontoando nas prises arcaicas, infectadas e imorais, e nas barcaas, ainda que desacreditadas, a multido de delinqentes que contribuem para aumentar uma turbulncia crescente. (...) Tambm voltam a ser muitos os partidrios da deportao. A imensido desrtica da Austrlia est disposio.(...) Botany Bay, na Austrlia, chegaria a ser o smbolo do fracasso de uma sociedade obrigada expulso de seus dejetos.
E o que acontece com o encarceramento em tudo isso? Nessa poca, Bentham v, sobretudo, seus efeitos
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negativos. Eficaz unicamente com relao eliminao do poder de prejudicar, ele nulo do ponto de vista do benefcio, posto que aniquila uma fora de trabalho no apenas no presente, mas tambm no futuro, pelo hbito (criado ou mantido) da ociosidade. (...) Solido, escurido e dieta parecem-lhe sensatas punies. Cuidado, contudo, com a abstinncia que pode aumentar o prazer de comer. ... Com relao solido, h que us-la, mas moderadamente: Quando a faculdade sensitiva est em movimento, a imaginao trabalha e chega at a produzir fantasmas. (...) A solido pode conduzir loucura.26
Neste momento histrico, as discusses ocorrem tanto em
relao forma de punir, quanto prpria arquitetura das prises. A
influncia do iluminismo, com a preponderncia do racionalismo
coordenando todas as aes humanas na poca fica evidente.
Continuando com o mesmo artigo de Michelle Perrot, encontramos um
comentrio de Louis-Pierre Baltard, contido em sua obra
Architectonographie ds prisons (Baltard, 1829), que ilustra o
desenvolvimento de uma reflexo espacial sobre o sistema
penitencirio e reflete as idias que imperavam neste perodo:
Poder-se-ia dizer que os ingleses infundem em todas as suas obras o gnio da mecnica, que se aperfeioou entre eles. Eles gostariam que suas construes funcionassem como uma mquina submetida ao de um nico motor.27
Michelle Perrot tambm nos d uma excelente descrio do
Panptico, a priso ideal de Jeremy Bentham:
O projeto primitivo de Bentham sustenta-se no domnio absoluto da torre central, tabernculo do olhar, ao qual se
26 PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. Traduo de Guacira Lopes Louro. pp 121-122. In: BENTHAM, Jeremy. O Panptico. Belo Horizonte: Autntica, 2000. 180pp.27 Idem. p132.
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atribui onipotncia quase divina. Dois anis concntricos: na periferia, quatro ou seis andares de celas; no centro, a torre do governador. Os apartamentos so construdos, nessa torre, de forma alternada, sendo seu nmero, portanto, menor do que o de celas do anel perifrico. Ela arrematada pela capela. Essa torre est completamente isolada por meio de um fosso (dead part), e as comunicaes encontram-se asseguradas pelo olho (da a extrema importncia da iluminao, das persianas e dos postigos) e pela voz da autoridade, que desce at os presos por tubos metlicos construdos para essa finalidade.28
O Panptico ilustra muito bem as questes em voga naquele
momento: Qual a melhor maneira de punir? Qual a melhor priso?
Michelle Perrot apresenta o Panptico como uma das expresses
mais perfeitas para o novo modelo da priso29 que est sendo
elaborado entre 1780 e 1820 e, sobre as idias de Jeremy Bentham
ela afirma:
Bentham opta resolutamente pelo encerramento; ... escolhe as vantagens do trabalho em comum; e, acima de tudo, pe sua confiana na fora de um controle em todos os instantes, controle do corpo que se insinua nos movimentos de uma psicologia que no tem como escapar influncia de um ambiente completamente condicionado. Projeto pedaggico, ele rene o grande esforo de escolarizao e de moralizao das classes populares britnicas (...)30
Mas este sistema j comea apresentando defeitos e a prpria
Michelle Perrot vai fazer a denncia da priso como um fator de
excluso social:
28 PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. Traduo de Guacira Lopes Louro. pp 121-122. In: BENTHAM, Jeremy. O Panptico. Belo Horizonte: Autntica, 2000. p 134.29 PERROT, Michelle. Delinqncia e sistema penitencirio na Frana do sculo XIX. In: ___. Os Excludos da Histria. Traduo de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p 262.30 PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. Traduo de Guacira Lopes Louro. pp 121-122. In: BENTHAM, Jeremy. O Panptico. Belo Horizonte: Autntica, 2000. p 136.
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O sistema penitencirio parece ento ter se desviado profundamente de suas intenes iniciais. Longe de reintegrar, ele expulsa, evacua, suprime os irrecuperveis. Mas ao mesmo tempo revela talvez sua finalidade oculta e verdadeira: defender a sociedade industrial burguesa fundada sobre a propriedade e o trabalho. A priso a ilusria vlvula de segurana dessa sociedade.
O sculo XIX criou o frio penitencirio. Pouco a pouco, ele edifica a priso de hoje.
No interior da priso, o sistema visa a destruir qualquer comunidade, a impedir qualquer forma de sociabilidade, a fim de submeter o recluso s influncias exclusivas do alto e impedir o contgio do vcio, essa clera.31
Vemos ento uma gnese que visava o bem estar e a
integrao do criminoso, com o abandono de prticas brbaras e a
preocupao com a integrao do indivduo sociedade. Porm tal
fato no ocorre e as deformaes aparecem e permanecem.
Na Histria de Crcere de Luiz Alberto Mendes, no final do
sculo XX, est exposta a perpetuao da barbrie humana dentro
das prises:
A sociedade da poca, enganada, julgava que estvamos sendo reeducados. Mas estvamos era desenvolvendo, ampliando e trocando nossos conhecimentos relacionados com o crime. Tenho certeza de que aqueles que executavam aquele trabalho de nos manter presos, como o juiz de menores, guardas e funcionrios pblicos, sabiam que no estavam nos reeducando. Isso fica claro pelo fato de que a maioria de ns estava condenada a ali permanecer at completar a maioridade. Alguns, os tidos e havidos como mais perigosos, aps completar os dezoito anos, ainda eram enviados Casa de Custdia de Taubat, onde permaneciam presos, nas mos de psiquiatras (esses
31 PERROT, Michelle. Delinqncia e sistema penitencirio na Frana do sculo XIX. In: ___. Os Excludos da Histria. Traduo de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p 265-266.
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loucos), at completar vinte e um anos. Se acreditassem que nos reeducavam, nos soltariam antes, reeducados.32
No momento descrito acima, Luiz Alberto Mendes ainda era
adolescente, e estava sendo mantido no Instituto de Menores de Mogi-
Mirim, local e momento onde os princpios nobres que norteavam a
origem do encarceramento poderia obter algum resultado,
promovendo a integrao social daqueles menores infratores. Mas tal
no ocorre e o nico resultado o aprofundamento da revolta e do
carter criminoso nos indivduos submetidos a este sistema, como
vemos nas palavras de Luiz Aberto Mendes quando este j estava
condenado a pelo menos 70 anos de deteno, aos 19 anos de idade:
"Estvamos cientes de que aqueles que nos barbarizaram o fizeram em nome de uma sociedade. Uma sociedade que nos repelia, brutalizava, segregava, e que quase nos destrua. E o pior: uma sociedade que precisava dessas monstruosidades para se manter. A tortura era uma instituio social.33
Havia um pensamento inscrito na entrada, segundo o qual o trabalho e a disciplina reabilitariam o homem para o convvio social. Era a maior demagogia, pensvamos. Havia muito que no acreditava em instituio alguma. Tudo me cheirava a hipocrisia e mscara para enganar o povo.34
Jamais houvera qualquer preocupao em nos reeducar. Tudo era vingana social e conteno.35
assim que funciona o sistema carcerrio no Brasil no final do
sculo XX, e agora, iniciando o sculo XXI no temos sequer alguma
32 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 180.33 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 399-400.34 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 423.35 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 451.
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perspectiva de mudana, apesar das barbries que ocorrem fora e
dentro da priso.
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LUIZ ALBERTO MENDES O Mdico e o Monstro
Chegamos ento personagem principal deste trabalho, Luiz
Alberto Mendes, criminoso.
Como j foi apresentado na introduo deste trabalho, a escolha
por esta personagem est vinculada sua postura assumida de
criminoso. Luiz opta pelo crime. Luiz narra sua histria descrevendo
seu comportamento sem pudores, assim como descreve tambm
todos os ambientes em que viveu e suas relaes pessoais:
Dona Eida, minha me, dizia que at os seis anos eu era um santo. Meu pai, seu Luiz, dizia que eu era dbil mental. (...)36
Sua infncia semelhante de muitos outros:
Na poca, Vila Maria, meu bairro, na periferia da cidade de So Paulo, era um barro s. ramos, ento, uma turma de garotos e tnhamos nosso esconderijo no campinho, um terreno baldio enorme. (...)
Era nossa sede. Ficvamos nos masturbando em grupo, bebendo, fumando, escondidos ali. Foi para comer a garotada ali, comprar cigarro, doce, linha, folha de seda, pio, bolinha, figurinha, essas necessidades de todo garoto naquela poca, que comecei a roubar. (...)37
Uma caracterstica que distingue este personagem que Luiz
Alberto Mendes sempre foi bem sucedido na escola, ele apenas tinha
um comportamento mais rebelde:
Sempre passei de ano, jamais repeti. Freqentava escola na marra, no gostava nem um pouco. Era inteligente, aprendia tudo muito fcil. O problema era que
36 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 13.37 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 22.
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meu comportamento era o pior da classe. No conseguia parar quieto. Estava sempre causando problemas.38
No conseguia reverter esse processo. Parecia compulsrio. Tinha de fazer baguna na classe, chamar ateno sobre mim. Ento, com algodo embebido em cndida, apagava a nota da professora e, em cima, botava nota razovel. At ser descoberto e o espancamento redobrado. Nos bilhetes das professoras comunicando meu comportamento lastimvel, falsificava a assinatura de meu pai. Mil e uma maneiras de enganar a tantos quantos pudesse.
Aos dez anos consegui o diploma do curso primrio. (...)39
Luiz comea a trabalhar cedo, e no trabalho no deixa de
demonstrar sua propenso ao crime, roubando cigarros. Jovem e
inteligente, Luiz comea a arquitetar seus planos para se dar bem na
vida, adulterando recibos de vale de seus colegas:
Seu Jlio estava ganhando tanto em cima do salrio miservel que nos pagava, que nem se preocupava quando o balancete no fechava certinho. Sei l por qu, julgava justo o que fazia: os torneiros estavam levando quase um tero a mais de seus salrios para suas famlias. Eu ganhava mais de cinco vezes o meu salrio. Julgava que tanto eu como eles precisvamos, logo, era certo pegar. No havia uma idia de roubo em mim, era mais como uma peraltice, um brinquedo. Eu pegava, no roubava.40
Luiz havia terminado seu curso primrio e tinha um grande
potencial para continuar seus estudos mas ele comea a trabalhar...
Sua atividade fraudulenta no primeiro emprego descoberta.
Luiz ganha uma surra enorme de seu pai, mas logo em seguida
38 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 26.39 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 27.40 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 43.
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consegue um novo emprego, tambm de office-boy, onde efetua um
assalto e parte definitivamente para a vida do crime:
Sempre levava muito dinheiro ao banco, mas certo dia o auxiliar de escritrio exagerou. Deu-me tanta grana que encheu minha pasta, e ainda embrulhou um tijolo de dinheiro em jornal, alm de muitos cheques ao portador. No momento em que sa, j estava decidido. Era mesmo impossvel resistir mais. Estava fugindo com o dinheiro da empresa. (...)41
A partir deste momento, Luiz comea a viver na rua, descobre
amigos e comea a desenvolver sua personalidade de criminoso:
Naquele bar da Galeria Metrpole, passei de menino a adolescente. E com muitas responsabilidades. Adotei toda aquela gente diferente como minha famlia. Amava-os profundamente, conheci a histria de cada um. Durante todo o tempo que durou meu dinheiro, sustentei, com prazer, muitos deles, principalmente as garotas. Sentia-me querido, necessrio, importante e plenamente aceito. Seus motivos eram bem parecidos com os meus. Filhos de pais repressores, famlias conservadoras e reacionrias ante a revoluo que acontecia no mundo todo.
A juventude se levantava contra o conservadorismo e as instituies sociais, inconscientemente. A busca era ser livre a todo custo. Alguns vendiam o corpo, outros roubavam. Havia, claro, os parasitas, os sanguessugas. Mas esses tambm eram absorvidos pelo grupo, pois tinham motivos parecidos com os nossos.42
Luiz passa a ser punguista (batedor de carteiras) no centro de
So Paulo, faz amigos, transa pela primeira vez. Reconhece nas ruas
e no crime um ambiente onde se sente aceito e reconhecido.
Mas esta liberdade dura pouco. Luiz preso pela primeira vez,
espancado pela polcia que, como seu pai, acreditava na surra como
41 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 46.42 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 52.
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processo pedaggico. Depois de passar por uma situao bem difcil,
levado de volta para casa.
Logo em seguida consegue um novo emprego, mas sua
liberdade-honesta no dura muito tempo:
Numa sexta em que vi o cofre abarrotado de dinheiro ao passar pela sala dela, quando todos saram para almoar, me escondi dentro de um armrio. Vera, to esperta, no havia trocado a combinao do cofre. Foi fcil abri-lo. Joguei numa pasta os maos de dinheiro, com a cinta do banco ainda, e fiquei esperando abrir o escritrio. Quando o pessoal entrou, sa, sem que percebessem que havia ficado ali durante o almoo.
Para mim, estava certssimo. Os chineses haviam me afastado da criatura que eu mais amava. Apenas cobrava deles, em dinheiro, a imensa infelicidade que me causaram. Era justo, fora por dinheiro, por no querer pagar um pouquinho mais para quem trabalhava havia tantos anos para eles, portanto, nada mais justo que tivessem aquele prejuzo. A nica tristeza era minha me. Doa minha conscincia, mas era mais forte que eu. Precisava viver minha liberdade.43
necessrio estar descrevendo sinteticamente toda a trajetria
da vida de Luiz para que possamos compreender melhor suas
divagaes.
Assim, depois deste novo assalto, Luiz volta para as ruas e d
continuidade a sua carreira criminosa mas, como esperam todos os
cidados honestos, a polcia consegue prend-lo novamente e desta
vez nosso criminoso encaminhado para o Recolhimento Provisrio
de Menores (RPM), instituio que mais tarde se transformaria na
FEBEM.
43 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 93.
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Desta vez o processo no vai se resumir a uma surra seguida da
soltura, de uma nova chance se que um processo como este
pode representar alguma chance na vida de algum. Luiz passa a
conviver no ambiente de crcere e fica sujeito a toda sua influncia.
interessante destacar a anlise social que ele faz sobre este
momento:
As pessoas simples do povo, como minha me, acreditavam nas instituies do Estado. Acreditavam na oniscincia e onipotncia do governo. (...)
Na poca j se comeava a sentir as garras do autoritarismo que caracterizaria a tomada do poder no golpe militar de 1964. Mas, para o povo, pouca coisa parecia haver mudado. O militar era acreditado, digno de crdito, era bom que o militar colocasse ordem na casa. Comunismo era palavro. Comunista era algum a ser combatido, visto pelo povo como uma espcie de monstro. Julgava-se que o militar no fosse corrupto, como era o poltico. No se falava em golpe, e sim em revoluo gloriosa. Para o povo, era algo bom. Nem se imaginava o que se fazia ou se maquinava por trs das portas fechadas.
Aquele ambiente limpo, cheio de doutores e gente bem-vestida, no hospital onde falava com o assistente social, a impressionava favoravelmente. No conseguia acreditar, ou no queria, que naquela instituio seu filho era tratado como um co selvagem. Com violncia extrema, num ambiente totalmente pernicioso, onde no havia a menor preocupao de recuper-lo socialmente.
Disse que fora chamada pelo assistente social, e que este lhe dissera que o psiclogo me classificara de perigoso. Como fosse possvel descobrir isso em uma entrevista de menos de dez minutos. E eu fora to sincero... Se houvesse mentido, com certeza seria aprovado, era s omitir a vida nas ruas, e pronto. Tudo o que ele queria era uma histria para colocar em seu relatrio. Da para a frente odiei os psiclogos que pude.
Seria removido para o Instituto de Menores de Mogi-Mirim, logo que houvesse vagas. J ouvira falar sobre o Instituto. Sabia que ali era o ninho de cobras do juizado de
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menores. Eles s mandavam para l menores considerados de mxima periculosidade. Convenhamos, eu no era isso, nem por sombra.44
Luiz se sente, mais uma vez, injustiado. Obrigado a viver em
um ambiente pernicioso, adquire todas as caractersticas necessrias
para que pudesse sobreviver:
(...) O pior de estar preso era ter que conviver com presos. A pessoa presa torna o mais difcil possvel a convivncia. Sempre os mais fortes querendo abusar dos mais fracos e os mais espertos querendo usar os mais acanhados e por a afora. (...)45
Enfim, no lhe resta muita opo. Estava condenado a ficar
encarcerado at os dezoito anos, condenado a sobreviver em um
ambiente doentio, onde as regras impostas para o convvio se
aproximam dos cdigos de comunidades primitivas.
Com dezoito anos e livre, Luiz at tenta viver honestamente,
mas sua ndole j estava marcada pelas vantagens e riscos
instigantes prprios da criminalidade:
Era s dar um pulo at a cidade, e j voltava para casa com dinheiro que no ganharia nem com um ms de trabalho. (...)46
interessante destacar as apologias que Luiz faz sobre a
liberdade. Ele preso vrias vezes, passa por torturas, ameaas e
chantagens, mas solto depois de alguns dias ou meses. Em todas
44 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 133.45 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 167.46 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 221.
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estas ocasies Luiz faz questo de expressar a inebriante alegria que
acompanha sua soltura:
Que alegria respirar o ar da liberdade! A nica coisa boa de ser preso ser libertado. Que sensao maravilhosa quando se pe o p na rua e se d a primeira respirada! Inenarrvel. (...)47
A noite era de lua cheia, o cu estava pontilhado de estrelas que brilhavam, brilhavam... Eu bebia aquilo a longos sorvos. Quase no dava para acreditar. Fui andando, pisando no alto, sentindo-me o ser mais feliz do mundo. Liberdade no era uma condio abstrata, mas algo concreto, substancial. Uma condio a ser desfrutada fisicamente, de sabor agridoce, como uma fruta sumarenta. A existncia prisional era um deserto, sem rvores ou osis. Liberdade significava ausncia da ameaa constante de apenas uma fasca gerar uma exploso, como a priso.48
Outro destaque importante na narrativa de Luiz so os
momentos de tortura, ameaa e eliminao de toda expectativa de
uma vida mais digna, contrariando todos os princpios sobre os quais o
encarceramento foi criado e defendido:
(...) Eram todos jovens como eu e j estavam enterrados vivos. Pensava comigo: ficaria apenas uns dias e j estava desesperado para sair, imagine eles, como se sentiriam sabendo que teriam de ficar anos?49
Fomos posicionados em um tablado de madeira. Mandaram-nos tirar as roupas, revistaram tudo minuciosamente, rosnando e xingando, procurando um motivo mnimo que fosse para nos espancar. Abre as pernas! Abaixa! Sempre a mesma ladainha para humilhar o preso, esse desgraado social que veste um uniforme e aceita todas as pechas e ofensas. Pior que, fora dali, aqueles homens so honrados chefes de famlia, vo missa e se dizem cristos. como se tivessem dupla
47 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 221.48 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 344.49 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 267-268.
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personalidade. Alis, at hoje acho questionvel o fato de se dar uma arma e autoridade a um homem, para que ele exera essa autoridade sobre os outros. Pelo que conheo dos homens, isso fica mais questionvel. verdade que somente em tese, pois, na prtica, a nossa civilizao est to viciada em ser comandada fora que, se de repente no existir tal coero e ameaa, acabar tudo em caos e destruio.50
A tortura era monstruosa. Cada um relatava novidades sobre isso. Um fora torturado com um pneu no pescoo, outro mostrava marcas de charuto apagados em seu corpo, dedos quebrados, unhas arrancadas, cortes, olho furado etc. Espremiam o sujeito de todas as maneiras. E o faziam porque sabiam que a vtima era um ladro. Eles vo do criminoso ao crime e no do crime ao criminoso, como seria a lgica. A tortura era uma das poucas instituies da polcia brasileira que davam certo, pelo menos com aqueles infelizes presos pelo resto da vida.51
Vrias vezes preso, vrias vezes solto. Passagens repletas de
atos brbaros, desrespeito, dio, injustia.
Como ele prprio narra em seu livro, em nenhum momento
houve qualquer tentativa oficial de recuperao, de aconselhamento,
de conscientizao, de ajuda, de compreenso.
Vrias vezes preso, vrias vezes solto. E a cada contato com a
polcia sua revolta aumenta, seu carter criminoso se fortalece, sua
crueldade e insensibilidade criam uma armadura que o protege e o
distancia da sociedade.
Chega ento seu momento maior um assassinato:
Mas, como sempre, havia uma falha. E ela era oriunda da nossa autoconfiana: no contvamos com a loucura ou coragem extrema do guarda. Enquadrado por quatro
50 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 271-272.51 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 274-275.
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armas, o guarda meteu a mo em seu revlver. Quando percebi, j estava atirando no homem, e ele j arrancando a arma do coldre. Disparei com o mximo de velocidade que os revlveres permitiam, o Bala tambm disparou em cima do homem. Mas o guarda era de fato corajoso, porque ainda conseguiu sacar e efetuar um disparo em minha direo escutei a bala zunindo prxima minha cabea, a distncia era de cinco passos. Descarreguei as armas em cima do infeliz. Quando ele caiu e parou de se mexer, fui at ele, olhei, estava com os olhos virados, achei que estava morto. Apanhei instintivamente sua arma do cho e entrei no carro, ainda em choque.
(...) Estava em choque profundo. Matara um homem. Fora to fcil... Aquilo me deixava perplexo. Sempre pensara que seria difcil matar e em questo de segundos, apenas apertando o gatilho, havia tirado uma vida humana. No conseguia pensar acerca, parecia que no havia sido eu. (...)52
Nosso criminoso chega ento ao seu ponto mximo. Graduado
no crime com louvor! Remorso? No! No mximo alguma
perplexidade... e indiferena.
O que iramos fazer, perguntavam. Afirmei que deveramos curtir a vida, pois ela nos era breve. Viver grande, com toda a fora de nossa juventude. Sorrimos todos. Queramos era isso mesmo. Fui, de txi, buscar ampolas de Pervitin. Ficamos o dia todo tomando picadas, bebendo e perturbando o pessoal do hotel.
Para ns, a vida s tinha sentido se estivssemos vivendo o que julgvamos que havia de melhor para ser vivido. No achvamos que ningum tinha mais direito que ns de ser feliz. A felicidade para ns eram armas, carros velozes, mulheres fceis, droga, bebidas e curtio. Significava liberdade para fazermos o que aprendramos no juizado e nas ruas, como o mais significativo para uma vida.53
Mas ento, por mais deficiente que sejam nossas polcias, elas
atuam, de qualquer forma. Poucos dias depois do assassinato Luiz e 52 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 360-361.53 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 371.
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seus companheiros so presos. Esta ser a deteno definitiva para
nosso criminoso:
Era terrvel, mas eu estava contente com isso, por mais incrvel que possa parecer. Queria era sair daquele inferno. Cadeia no me fazia medo. Agora eu j pensava em no sair mais. Ficaria preso pelo resto de minha vida. Faria da priso meu mundo. Que ningum se atrevesse a atravessar meu caminho que eu trucidaria. Nada mais importava. E eu s tinha dezenove anos.54
A histria de Luiz poderia acabar aqui, mas existe ainda muito
mais! Luiz utiliza pginas e mais pginas de seu livro para descrever
as torturas e humilhaes pelas quais passou. a vingana social
institucionalizada.
Ao passar por todas estas descries, somadas s descries
de tortura de outros autores-detentos todos possuem alguma histria
de tortura e humilhao podemos questionar se o suplcio realmente
deixou de existir, ou se apenas houve um aprimoramento em sua
forma. As mil mortes permanecem, a cada novo dia dentro da priso,
uma nova morte.
No final de 1972, alguns presos, condenados a uma infinidade de anos de cadeia, comearam a desesperar-se. Estava includo nesse meio, minhas penas somavam mais de setenta anos. Estavam ainda sumariando inquritos que, na certa, resultariam em mais condenaes.
O desespero de no ter perspectivas de liberdade criava um espao vazio, um buraco negro na mente da gente. Nesse espao ecoava um grito de pavor que ficava sem resposta.55
54 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 395.55 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 411.
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Talvez a sociedade ainda no tenha se atentado para o fato de
que o criminoso tambm pensa. O encarceramento no retira do ser
humano sua capacidade de raciocnio. Jeremy Bentham j nos
alertava sobre este perigo.
assim que mantemos verdadeiros viveiros de monstros.
Mas nosso criminoso um ser humano mpar. Ele passa por
momentos que, para a maioria de ns seria insuportvel, mas ele
resiste. Ele resiste e analisa:
A corrupo nos meios jurdicos era profunda. Estvamos convictos de que s estvamos presos porque no tnhamos capital. E no tnhamos capital porque no roubvamos pelo dinheiro somente. O dinheiro era apenas o veculo de nossa liberdade. Liberdade para vivermos o que estava incutido em ns, desde que nascramos, como condio para sermos livres. Queramos as emoes fortes que nossa juventude nos exigia. E a maioria de ns provinha de institutos de menores de idade, e carregava os valores ali adquiridos.56
Existe o ditado popular: Antes tarde do que nunca assim
tambm foi com Luiz Alberto Mendes. No pior momento de sua vida,
ainda jovem, surge para nosso criminoso uma possibilidade de vida:
O novo amigo falava em livros, contava-me romances que lera, falava em poesia, filosofia, um monte de coisas novas para mim. Foi a primeira pessoa no mundo, fora minha me, em quem depositei minha confiana total e irrestrita.
As histrias dos livros que contava, eram extremamente fascinantes e belas. Ensinou-me a valorizar livros, a querer conhece-los todos. Agora ansiava sair do castigo para comear a ler aquelas histrias de que ele falava. Era poeta, e eu tambm quis ser poeta. Prometeu ensinar-me.
56 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 412.
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Passamos quase trs meses no mesmo encanamento de privada, conversvamos todo o tempo que nos era possvel. Havia tanto assunto... conversei mais nesses trs meses do que em quase toda a minha vida. Seus conceitos de nobreza de propsitos, sua viso moral diversa daquela que aprendera no meio criminal, me falavam ao corao.57
Dentro da priso Luiz Alberto Mendes volta a estudar. No a
priso que oferece a Luiz uma alternativa outro detento que o faz.
No quero com esta narrativa lanar uma bandeira da leitura e
estudo como salvao para o criminoso apenas registrei aqui um
caso onde a leitura oferece uma vida melhor, mesmo para uma pessoa
condenada a permanecer sua vida toda dentro de uma priso.
A Histria de Luiz Alberto Mendes retrata inmeras deficincias
existentes dentro de nossa sociedade no final do sculo XX, e que se
perpetuar se no nos conscientizarmos das distores que insistimos
em manter, mesmo para garantir apenas uma sensao ilusria de
segurana.
Qual a resposta para nossa divagao? No existe uma
resposta, mas existem respostas.
57 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 438.
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CONSENSO COM SENSO
Muito se tem dito e escrito sobre a violncia e a injustia que o
ser humano capaz de produzir. Mas o que me assusta nesta virada
de sculo: XX XXI, a perpetuao de comportamentos e
procedimentos institucionais que no contribuem em nada para
qualquer mudana positiva, isto , para melhor, em direo a um
convvio social com mais harmonia, com menos misria e injustias.
Alba Zaluar, inicia seu livro Da Revolta ao Crime S.A.
contextualizando a violncia atravs da antropologia:
(...) A violncia no surge na histria. Sempre esteve dentro dos homens. Em todas as sociedades, em todas as pocas, em todos os recantos do mundo, existem manifestaes da agressividade potencial dos homens contra seus semelhantes.58
Os estudos antropolgicos contribuem bastante para nossa
compreenso do comportamento humano. Somos racionais a muito
pouco tempo. Ainda hoje encontramos tribos e comunidades onde a
convivncia social regida por princpios que a sociedade ocidental
racionalista, sob a tutela de alguns pases da Europa e os Estados
Unidos da Amrica, consideram brbaras ou inadequadas.
A barbaridade e a inadequao no estariam se contrapondo
apenas a um estado capitalista, onde so necessrias regras de
58 ZALUAR, Alba. Da revolta ao crime S. A. So Paulo: Moderna, 2002. p9.
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controle e de diferenciao que garantam a existncia de um
mercado?
Thomas Hobbes (1588-1679), filsofo, nos apresenta a idia de
que antes do contrato social, os homens viviam, conforme j observara
o romano Plauto, em contnua e mortfera luta entre si (homo homini
lupus), fazendo, portanto, preceder o estado poltico, isto , a vida
em sociedade, por um estado natural, que considerava cada homem
em luta contnua com os semelhantes. Hobbes concebeu o contrato
social como a evoluo da sociedade do estado da natureza, do homo
homini lupus (o homem um lobo para o homem) para o estado
poltico, do homo homini deus (o homem deus para o homem).
Podemos considerar esta proposio de Hobbes uma evoluo?
Talvez sim. Naturalmente, no. A natureza humana contradiz esta
proposio ideal.
Vejamos outras citaes de Alba Zaluar, apoiando seu discurso
na antropologia:
Outros antroplogos afirmam que as sociedades tribais eram e ainda hoje so constitudas de grupos locais para os quais o controle do territrio de importncia fundamental na construo da identidade cultural e na vida social da tribo. Esta seria regida pelos princpios da autarcia e da autonomia. Autarcia quer dizer auto-suficincia econmica que procura no depender das outras tribos para conseguir os bens necessrios sobrevivncia. Autonomia o princpio que nos mantm politicamente independentes dos outros, portanto, livres da dominao (Sahlins, 1970; Clastres,1982). (...)59
59 ZALUAR, Alba. Op. cit. p 11-12.
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Diz-se que os homens so os nicos animais que matam seus semelhantes por prazer ou orgulho. Mas tambm so os nicos animais que se autodomesticam e inventam meios de criar a paz entre eles. (Lvi-Strauss, 1949). (...)60
(...) A justia, em muitas sociedades pr-letradas, pr-industriais e pr-estatais, est baseada na retribuio ou na reparao do dano. (...) P isso mesmo, as instituies jurdicas primitivas baseiam-se na negociao, nos acordos e nos compromissos feitos oralmente entre as partes litigantes, em obedincia a preceitos e valores da vida cotidiana de todos. A ordem social e a ordem legal so uma coisa s.61
Alba Zaluar faz referncia a estas caractersticas nos grupos
criminosos organizados e favelas do Rio de Janeiro e Luiz Alberto
Mendes, assim como outros autores-detentos, indicam a presena do
controle de territrio, a autodomesticao e os compromissos
feitos oralmente dentro das prises62:
Ali havia, j de modo dominante, o famoso proceder. Conjunto de normas que eram mais fortes que as leis oficiais do Instituto e que nos governavam, implacavelmente. Um sujeito sem proceder era cagete, veadinho, desprezado, sem direito a tomar atitude de homem com quem mexesse com ele. E uma das regras do proceder era que cada um arcasse com as conseqncias de seus atos. Seria extrema falta de proceder, e portanto colocar-se execrao pblica, deixar que outros apanhassem por culpa nossa.
O agredido devia se cuidar, seus aliados deviam chegar junto. Ento, quando j estivesse so, deveria tomar atitude, para no ser desprestigiado. Da mesma forma, j esperando, superatento, a reao idntica do inimigo. Houve guerras que duraram anos ali. Tudo era resolvido de
60 ZALUAR, Alba. Op. cit. p 14.61 ZALUAR, Alba. Op. cit. p 15.62 Refiro-me aqui a crime organizado no sentido de grupos que possuem uma estrutura mnima de organizao para a execuo do crime (basicamente o trfico de drogas), e no o crime organizado com influncia dentro do Estado (embora sua existncia no Brasil seja negada, muitas evidncias e atitudes de polticos comprovam que ele existe, tambm no Brasil).
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maneira que a polcia no soubesse de nada. Mesmo que o ferimento fosse srio e at houvesse risco de vida, a vtima devia morrer mas jamais se apresentar para a polcia. (p160) Essa era a norma, e o descumprimento redundaria em desprestgio, ostracismo.63
Luiz chega at a comparar a sociedade presidiria com a
estrutura feudal:
(...) Na Deteno havia uma estratificao social, um sistema mais ou menos parecido com o feudal. Com condes, bares, duques, mas sem reis. Os plebeus eram massa amorfa, uma maioria sem peso em termos de deciso. Cada xadrez tinha seu conde ou baro, e esses nobres detinham as rdeas do esquema mais ou menos mercantilista da economia dominante. A maconha era o peso ouro, o cigarro a moeda dos plebeus, e o dinheiro, a moeda dos notveis, embora proibido pela administrao.64
Talvez possamos realizar dentro de uma priso uma verdadeira
pesquisa arqueolgica da sociedade...
Ns encontramos no pronunciamento do Sr. Deputado Coronel
Ubiratan, na 13 Sesso Ordinria da Assemblia Legislativa do
Estado de So Paulo, em 02/04/2003 a seguinte afirmao: Bandido
s respeita uma coisa: fora maior do que a dele. (veja o
pronunciamento completo no anexo deste trabalho)
O Sr. Deputado Coronel Ubiratan foi o comandante que ordenou
o conhecido Massacre do Carandiru, onde foi registrada a morte de
111 detentos.
com este tipo de mentalidade e proceder que ambicionamos
alcanar as estrelas. Ou ser que so a misria e a injustia social que 63 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 159-160.64 MENDES, Luiz Alberto. Op. cit. p 404.
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garantem a realizao de tantas proezas tecnolgicas que o homem
tanto se orgulha de realizar?
Vou encerrar ento este captulo com Michel Foucault. A ltima
pgina de seu livro Vigiar e Punir apresenta uma sntese notvel para
esta Histria do Crcere:
(...) Estamos agora muito longe do pas dos suplcios, das rodas, dos patbulos, das forcas, dos pelourinhos; estamos muito longe tambm daquele sonho que, cinqenta anos antes, alimentavam os reformadores: a cidade das punies, onde mil pequenos teatros levariam cena constantemente a representao multicor da justia e onde os castigos cuidadosamente encenados sobre cadafalsos decorativos constituiriam a quermesse permanente do Cdigo. A cidade carcerria, com sua geopoltica imaginria, obedece a princpios totalmente diferentes. (...) muros, espao, instituio, regras, discursos; que o modelo da cidade carcerria no ento o corpo do rei, com os poderes que dele emanam, nem tampouco a reunio contratual das vontades de onde nasceria um corpo ao mesmo tempo individual e coletivo, mas uma repartio estratgica de elementos de diferentes naturezas e nveis. Que a priso no a filha das leis nem dos cdigos, nem do aparelho judicirio; que no est subordinada ao tribunal como instrumento dcil e inadequado das sentenas que aquele exara e dos efeitos que queria obter; que o tribunal que, em relao a ela, externo e subordinado. Que, na posio central que ocupa, ela no est sozinha, mas ligada a toda uma srie de outros dispositivos carcerrios, aparentemente bem diversos pois se destinam a aliviar, a curar, a socorrer mas que tendem todos como ela a exercer um poder de normalizao. Que aquilo sobre o qual se aplicam esses dispositivos no so as transgresses em relao a uma lei central, mas em torno do aparelho de produo o comrcio e a indstria , toda uma multiplicidade de ilegalidades, com sua diversidade de natureza e de origem, seu papel especfico no lucro, e o destino diferente que lhes dado pelos mecanismos punitivos. E que finalmente o que preside a todos esses mecanismos no o funcionamento unitrio de um aparelho
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ou de uma instituio, mas a necessidade de um combate e as regras de uma estratgia. Que, conseqentemente, as noes de instituio de represso, de eliminao,