2015jun17 - Lança-perfume Deixou de Ser Crime Temporariamente

3
LANÇA-PERFUME DEIXOU DE SER CRIME TEMPORARIAMENTE Um homem foi preso em flagrante pela Polícia Rodoviária Federal com seis mil frascos de “lança-perfume”, no dia 12 de novembro de 2000, e condenado a três anos e nove meses de prisão pelo crime de tráfico de entorpecentes. Em 7 de dezembro de 2000 a Anvisa (órgão do Ministério da Saúde) editou a Resolução 104/2000, que excluiu o cloreto de etila (o lança-perfume) da relação constante na lista de substâncias psicotrópicas de uso proibido no Brasil (Portaria SVS/MS 334/98). Em 15 de dezembro do mesmo ano, a substância foi reincluída na lista por uma nova portaria. A Resolução 104 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a pretexto de autorizar o emprego do cloreto de etila pelas indústrias químicas, retirou-o da Lista F2 (que relaciona as substâncias entorpecentes ou psicotrópicas) e o colocou na Lista D2 (que enumera os insumos químicos precursores, que não são proibidos, senão apenas controlados pelo Ministério da Justiça). Teria havido um “erro”? Ninguém sabe. Por oito dias o cloreto de etila deixou de fazer parte da lista de substâncias entorpecentes. Em suma, o lança-perfume deixou de ser crime nesse período. Sempre que a Anvisa exclui das suas listas um entorpecente, ele deixa de ser crime. Por quê? Porque a exclusão do entorpecente da lista configura o que em direito penal chamamos de “abolitio criminis” (ainda que temporária). Tudo isso foi reconhecido pelo ministro Celso de Mello (em 1/6/15) no Habeas Corpus 120.026. Seguiu-se o precedente firmado no HC 94.397. A condenação decretada pela primeira instância e mantida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) não observou os critérios firmados pela jurisprudência do STF. Não atenderam o “gabarito” firmado pela Colenda Corte (com base em praticamente toda doutrina nacional). O direito não é matemática, mas a estruturação da tipicidade penal se aproxima disso. As decisões dos juízes e tribunais que fogem do “gabarito” da tipicidade não valem. Em dezembro de 2000 publicamos artigo no Conjur, nesse sentido. O ministro Celso de Mello invalidou a condenação criminal do réu acima citado, que efetivamente transportava milhares de frascos de lança-

description

ABOLITIO CRIMINIS

Transcript of 2015jun17 - Lança-perfume Deixou de Ser Crime Temporariamente

  • LANA-PERFUME DEIXOU DE SER CRIME TEMPORARIAMENTE

    Um homem foi preso em flagrante pela Polcia Rodoviria Federal com

    seis mil frascos de lana-perfume, no dia 12 de novembro de 2000,

    e condenado a trs anos e nove meses de priso pelo crime de trfico

    de entorpecentes. Em 7 de dezembro de 2000 a Anvisa (rgo do

    Ministrio da Sade) editou a Resoluo 104/2000, que excluiu o

    cloreto de etila (o lana-perfume) da relao constante na lista de

    substncias psicotrpicas de uso proibido no Brasil (Portaria SVS/MS

    334/98).

    Em 15 de dezembro do mesmo ano, a substncia foi reincluda na

    lista por uma nova portaria. A Resoluo 104 da Anvisa (Agncia

    Nacional de Vigilncia Sanitria), a pretexto de autorizar o emprego

    do cloreto de etila pelas indstrias qumicas, retirou-o da Lista F2

    (que relaciona as substncias entorpecentes ou psicotrpicas) e o

    colocou na Lista D2 (que enumera os insumos qumicos precursores,

    que no so proibidos, seno apenas controlados pelo Ministrio da

    Justia).

    Teria havido um erro? Ningum sabe. Por oito dias o cloreto de etila

    deixou de fazer parte da lista de substncias entorpecentes. Em

    suma, o lana-perfume deixou de ser crime nesse perodo. Sempre

    que a Anvisa exclui das suas listas um entorpecente, ele deixa de ser

    crime.

    Por qu? Porque a excluso do entorpecente da lista configura o que

    em direito penal chamamos de abolitio criminis (ainda que

    temporria). Tudo isso foi reconhecido pelo ministro Celso de Mello

    (em 1/6/15) no Habeas Corpus 120.026. Seguiu-se o precedente

    firmado no HC 94.397. A condenao decretada pela primeira

    instncia e mantida pelo Superior Tribunal de Justia (STJ) no

    observou os critrios firmados pela jurisprudncia do STF. No

    atenderam o gabarito firmado pela Colenda Corte (com base em

    praticamente toda doutrina nacional). O direito no matemtica,

    mas a estruturao da tipicidade penal se aproxima disso. As

    decises dos juzes e tribunais que fogem do gabarito da tipicidade

    no valem.

    Em dezembro de 2000 publicamos artigo no Conjur, nesse sentido. O

    ministro Celso de Mello invalidou a condenao criminal do ru acima

    citado, que efetivamente transportava milhares de frascos de lana-

  • perfume. Referida excluso, embora por um brevssimo perodo,

    descaracteriza a prpria tipicidade penal da conduta do agente (ou

    seja, o crime).

    De outro lado, trata-se de alterao normativa benfica ao ru. Logo,

    retroativa. Todos os rus condenados por trfico de lana-perfume

    ocorrido at 14/12/2000 devem ser beneficiados. Se j cumpriu sua

    pena, no pode pedir de indenizao. Mas essas condenaes antigas

    no possuem nenhum valor para o efeito da reincidncia. A lio

    importante que fica de tudo isso a seguinte: a Anvisa deve estar

    atenta s suas extensas listas que descrevem as substncias

    entorpecentes. Se uma delas sai da lista, desaparece o crime (quanto

    a essa substncia).

    Por qu? Porque os crimes relacionados com a lei de drogas retratam

    hipteses de leis penais ou normas penais em branco prpria (ou

    heterognea), ou seja, leis dependem de um complemento para a

    configurao do crime. O crime, nesse caso, passa a ter duas partes:

    uma est na lei e outra no complemento normativo, que no emana

    do legislador, sim, de autoridades administrativas (no caso, a

    Anvisa).

    A modificao do complemento da norma penal em branco pode

    gerar a abolitio criminis quando afeta a prpria essncia do delito,

    isto , a antijuridicidade do fato, a estrutura normativo-tpica do fato.

    O cloreto de etila era ilcito e, por oito dias, deixou de s-lo. O fato

    (trfico de lana-perfume) deixou de ser um ilcito penal (ainda que

    temporariamente). Depois voltou para a lista e partir da nunca mais

    deixou de ser crime no Brasil (que diferente da Argentina, onde o

    cloreto de etila no delito).

    diferente o caso da violao do tabelamento de preos (j tivemos

    isso no Brasil); a modificao do complemento da norma penal

    (modificao da tabela de preos), nesse caso, no gera a abolitio

    criminis porque o fato continua sendo proibido (violao da tabela de

    preos). Aqui a alterao da tabela no tem efeito retroativo.

    Exemplo: no dia do crime o produto estava tabelado a R$ 100,00. O

    comerciante o vendeu por R$ 150,00. Violou a referida tabela

    (cometeu crime). Quando o juiz vai sentenciar, o preo do mesmo

    produto j de R$ 200,00. Houve mudana da tabela. Essa

  • modificao, alm de transitria, no elimina o crime. Nem retroage,

    porque se trata de complemento transitrio.

    A lei penal e seu complemento, nesse caso, se tornam temporrios. A

    lei temporria (CP, art. 3) rege todos os crimes ocorridos durante

    sua vigncia, ainda que modificada ou extinta.