214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 ·...

9
214 215

Transcript of 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 ·...

Page 1: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

214 215214 215

Page 2: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

216 217

Lucio Costa, Guará

Page 3: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

218 219Pequena comunidade: o jardim de infância acolhe

126 crianças entre quatro e cinco anos de idade

Page 4: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

220 221

o livro em que conta as histórias de seu povo – cerca de sete mil índios que vivem em terras banhadas pelo belíssimo rio Tapajós e seus afluentes, no Pará – Daniel Munduruku lembra que todas elas foram pas-sadas aos mais jovens pelos sábios das aldeias. Não havia relatos escritos. Mas, estimulados pela curiosidade das crianças, os registros que povoavam a memória dos mais velhos sobre a origem, as realizações e os heróis de seu povo foram passando de geração a geração e jamais se perderam.

Os mitos, como esses registros orais ficaram conhecidos, falam sobre a criação do mundo, como surgiram os animais, as pessoas, o fogo e tudo mais, e revelam as tradições em torno de questões que afligem a humanidade, como doenças e morte. Eles revelam o passado dos índios que ganharam a

Biblioteca Mundo da Imaginação (2)Jardim de Infância Lucio Costa, Guará

[ ]Fazia pouco tempo que o mundo era mundo e que as garras da onça

ainda não haviam crescido e já reinava a insatisfação. E isto porque a noite nunca chegava – ela, que iria permitir que pessoas e animais

repousassem um pouco. O sol brilhava sem parar nos céus e nenhum daqueles infelizes conseguia sequer tirar uma pequena soneca!

(As serpentes que roubaram a noite e outros mitos, Daniel Munduruku)

As rotinas de leitura representam um mundo que se abre para as crianças, além de contribuir

para que os alunos especiais superem barreiras de forma integrada na escola e na família

Novos

N

horizontes

Primeiros passos: mesmo sem conhecer as letras, os pequenos já aprendem a viajar com as histórias

Page 5: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

222 223

fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo, meu marido, lemos para ele, vamos mostrando as ilustrações. Depois, ele desenha o que entendeu”, conta Lanuce. O estímulo é reforçado pela irmã, Sofia, de oito anos, que estuda em uma escola classe do Guará e também já é amiguinha da leitura.

Os resultados animam Lanuce. “Ele se interessa, faz perguntas. Tem sido muito bom. Sabemos que é complicado ter crianças diferentes e o livro ajuda na interação, na união, a partir do momento em que atrai a criança.” Formada em administração, ela parou tudo, por conta das peculiaridades do filho, para estudar pedagogia. Quer se aprofundar na questão e trabalhar com crianças especiais. “Em outros países é mais fácil, mas aqui no Brasil ainda é difícil o atendimento na rede pública”, compara.

Quando o pequeno devolve o livro com o desenho, o processo se repete na sala de aula. A professora faz perguntas e depois relata o desempenho e as reações dele aos pais, para que acompanhem cada passo da evolução. “Estou muito satisfeita com o trabalho”, revela Lanuce. “É difícil achar pessoas que consigam lidar bem com a síndrome.”

A biblioteca chegou como um mundo especial que se abre para a criança, um complemento de informações novas e importantes para os professores enriquecerem o aprendizado. Para a professora Maria do Socorro Medeiros, diante de “tantas dificuldades” encontradas no decorrer do desempenho da profissão, a palavra chave é dedicação. “Quando vim, em 2011, havia um acervo pequeno e somente em 2013 ganhamos a biblioteca.”

Com o espaço organizado, os professores começaram a dividir os livros por autores e a trabalhar a leitura com as crianças, contando as histórias para estimular o aprendizado e a criatividade e desenvolver valores como respeito, solidariedade, igualdade. “Quando fazemos a pergunta ‘Como vocês terminam essa história?’ eles se empolgam, relatam, até criam outras histórias para os colegas, e pedem para fazer desenhos, abrem a imaginação.” Na avaliação de Maria do Socorro, a biblioteca como espaço físico faz muita diferença para o desenvolvimento da criança. “Foi um ganho maravilhoso.”

fama de guerreiros poderosos “que faziam tremer os inimigos” e lhes rendeu o apelido de “formigas gigantes”, significado da palavra munduruku.

“São essas histórias que ajudam a comunidade a se manter unida e forte contra as pessoas que querem as riquezas dos índios”, diz Daniel, no boni-to livro da Coleção Memórias Ancestrais: Povo Munduruku, ilustrado por crianças da aldeia Katõ. “Elas são sempre recontadas de forma a despertar no povo um amor pela própria história.”

Bem distante das extensões de terras paraenses protegidas pelos índios, lá numa bem cuidada escolinha batizada com o nome do urbanista que criou o revolucionário traçado da capital da República – o Jardim de In-fância Lucio Costa –, os pequenos ainda não conhecem o significado das letras, mas já estão aprendendo a se tornar fortes como os índios e a viajar em histórias que os ajudam a “compreender a própria existência”, como resume Daniel ao mostrar o valor dos mitos. Tudo por conta dos livros que a Biblioteca Mundo da Imaginação lhes oferece desde que começou a funcionar, em maio de 2013, depois de uma alegre cerimônia preparada pelas equipes parceiras da escola e do projeto Bibliotecas do Saber.

Para Davi Gonçalves de Lima, de cinco anos, a inauguração daquele novo espaço teve um significado bastante especial. Com traços de espec-tro autista, mas ainda sem um diagnóstico fechado pelos especialistas que o avaliam, o menino já se permite sair do isolamento que costuma caracterizar a síndrome para passear pelas histórias dos títulos coloridos que chamam a atenção nas estantes. “Tudo é mais difícil para ele, mas com a ajuda da escola, dos professores e dos livros ele está conseguindo”, anima-se a mãe, Lanuce Gonçalves de Lima. “A biblioteca tem sido uma forma dele se comunicar, de interagir.”

Como acontece entre as crianças munduruku e milhões de outras que habitam o planeta, Davi gosta de livros ilustrados que falam dos animais e mostram meninos como ele. “A gente percebe como desperta o interes-se”, diz a mãe. Afinal, como lembra o autor da história da serpente que roubou a noite, “toda criança, de qualquer parte do mundo, é curiosa. Está sempre querendo saber das coisas”. E Davi, que não tem nenhum problema cognitivo e “aprende igual” aos coleguinhas, quer mesmo é saber das histórias dos bichos que povoam o imaginário da humanidade desde os tempos muito remotos, e que o ajudam a vencer as dificuldades de interagir socialmente.

Com a rotina das atividades na biblioteca, as barreiras de Davi são tra-balhadas de forma integrada na escola e na família. Toda quinta-feira as crianças pegam um livro na biblioteca e levam para casa. O menino gosta de

Eu ainda estou lembradoque meus bisavós contavammuitas histórias passadas

de quando os bichos falavamcomo bem fosse a da festa

quando os cachorros casavam

(A festa dos cachorros, José Pachêco)

Davi gosta de livros ilustrados que falam dos animais e mos-tram meninos como ele. Afinal, ‘toda criança, de qualquer parte do mundo, é curiosa. Está sempre querendo saber das coisas’”

Page 6: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

224 225

O primeiro passo para essa conquista foi dado pela diretora Nadja Andra-de de Oliveira. A notícia de que o projeto Bibliotecas do Saber já havia en-tregue mais de cem unidades em escolas urbanas e rurais, presídios e outras instituições pelo Distrito Federal afora chegou aos ouvidos da educadora. “A gente tinha um pequeno acervo, mas nem tinha onde guardar. Quando vi o projeto, pensei: por que não tentar? Mandamos um email cheio de espe-rança e pouco tempo depois recebemos aqui a dona Carmen e a dona Iza” [responsáveis pelo projeto]. A primeira visita já era para avaliar se o Jardim de Infância teria condições de abrigar e manter o espaço dentro dos padrões técnicos. Isso porque, segundo a bibliotecária Iza Antunes, coordenadora técnica do projeto, “não se deve inaugurar apenas por inaugurar”. Cansada de ver espaços maltratados por aí, ela diz que é preciso “ter certeza de que haverá o compromisso de cuidar.”

Daquele dia até a data da inauguração o tempo passou leve e certeiro. “Valeu a pena correr atrás do sonho”, diz Nadja. A 113ª unidade do Biblio-tecas do Saber chegou fazendo jus ao nome escolhido. “A imaginação da criança floresce quando entra aqui, os pais também curtem, sentam com eles e leem”, comemora a educadora. A parceria garantiu a reforma do es-paço físico para adequá-lo às necessidades de funcionamento da biblioteca, além do mobiliário colorido e livros. Para escolher o nome, democracia: todos, na escola, votaram para eleger Mundo da Imaginação como o que mais traduzia aquela conquista.

Depois que as portas se abriram, os pequenos entraram na rotina de ouvir histórias animadas com fantoches e dos empréstimos de livros. “Vou levar este aqui para casa”, decidiu Vitória Silva, cinco anos, ao pegar o livro da Branca de Neve, depois de mostrar outro preferido, cheio de bichinhos do mar que se destacavam nas páginas. A alegria da pequena moradora do Guará I ao “ler”em voz alta a saga da menina tão branca como a neve e os sete anões enquanto folheava o livro, sentada no tapete da biblioteca, os olhinhos brilhando, mostra os motivos da escola para festejar. O mundo da imaginação, cheio de surpresas, transborda em forma de prosa ou poesia.

“Escuto o meu rio:/é uma cobra/de água andando/por dentro de meu olho”, revela o poema De meninos e de pássaros, no livro Manoel de Barros Poesia Completa, uma obra tão mágica que o editor Pascoal Soto recomenda ser lida “como quem abre uma caixinha de música ou um pacotinho de sus-piros, aquele doce que as mães antigas faziam para o deleite dos meninos”.

Na introdução (que chama de “entrada”, bem ao seu estilo), o autor pantaneiro dá pistas do mundo de encantamentos prometido pelo editor, colorido pelos mesmos bichos que povoam o imaginário indígena e de todos os povos. Elas ajudam a compreender por que os desenhos feitos por crianças como Davi e os coleguinhas nas atividades da biblioteca são tão significativos e importantes. “Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. (...) Acho-os como os ‘impossíveis verossímeis’ de nosso mestre Aristóteles”, diz o genial autor de Retrato: “Quando menino encompridava rios/Andava devagar e escuro – meio formado em silêncio./Queria ser a voz em que uma pedra fale.”

Com 126 crianças de quatro a cinco anos de idade prontas para criar vozes e asas, a pequena escola de 344 metros quadrados fica num canto bucólico das Quadras Econômicas Lucio Costa (QELC), do Guará, na parte da cidade que cresceu ao lado direito da Estrada Parque que liga o Plano Piloto a Taguatinga, formando a Região Administrativa X (RA X) de Brasília. Batizada em homenagem ao lobo-guará, espécie que habitava o cerrado e figura na lista dos animais ameaçados de extinção, a cidade de classe média foi criada em 1967 para abrigar funcionários da Companhia de Urbanização da Nova Capital (Novacap).

Cinco anos depois, a RA começou a crescer em direção às divisas com o Núcleo Bandeirante e a Candangolândia. As novas quadras, apelidadas de Guará II, surgiam para oferecer casa própria a servidores públicos. Em 2015, a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) da Compa-nhia de Desenvolvimento do Planalto Central (Codeplan) registrou 132.685 moradores na região, com renda média de 9,28 salários mínimos por mês. Desse total, 45,42% nasceram no Distrito Federal, 18,47% não completaram o ensino fundamental e 21,9% não acessam a internet.

As crianças do Jardim de Infância Lucio Costa fazem parte do percentual de 14% da população na faixa de zero a catorze anos da cidade. A tendência é que o acesso à primeira etapa formal da educação lhes assegure o estímu-lo para seguir o destino dos 30% de moradores que informaram ter curso superior completo. Os pequenos alunos são filhos de moradores do próprio bairro ou do início do Guará I, do setor de chácaras da região e do Setor de Inflamáveis, que apesar de não ser área residencial abriga moradores muito carentes.

Quando fazemos a pergunta ‘Co-mo vocês termi-nam essa histó-ria?’ eles se em-polgam, relatam, até criam outras histórias para os colegas, e pe-dem para fazer desenhos, abrem a imaginação”

Visão é recurso da imaginação para dar às palavras novas liberdades?

(Caderno de aprendiz, Manoel de Barros)

Vozes e asas

Page 7: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

226 227

A proximidade facilita a participação dos pais nas reuniões de avaliação da escola e em atividades como as festas juninas e as mostras culturais. Com a biblioteca a pleno vapor, a diretora pretende investir em projetos para estender o hábito da leitura aos familiares dos alunos. As professoras perceberam que muitos pequenos costumam retornar na segunda-feira com o livro que levaram na quinta, para ler com os pais, intacto. Na cobrança da tarefa, revelam que os pais não leram para eles.

“É uma dificuldade, porque as pessoas andam muito apressadas e tudo é facilitado pela internet. Os livros muitas vezes acabam parecendo uma coisa obsoleta, por isso a gente precisa incentivar para que se volte a pra-ticar a leitura.” A importância desse hábito, na avaliação de Nadja, precisa ser resgatada na comunidade, com a ajuda da escola. “Para isso temos tanta coisa boa nas prateleiras da biblioteca.”

A experiência bem-sucedida de leitura nas comemorações do Dia da Fa-mília mostra que o resgate é possível. “Trabalhamos com eles, para motivar, e percebemos que é possível trazer a família para esse mundo da imagina-ção”, conta a diretora. Ela e a equipe sabem que os resultados dessa façanha vão repercutir principalmente no desempenho dos alunos portadores de necessidades especiais que a escola passou a receber desde 1995, sete anos depois de começar a funcionar.

A política de inclusão, que levou a escola a acolher crianças com difi-culdades decorrentes de síndromes de Down, autismo e paralisia, parte do princípio de que a vivência delas com os outros alunos estimula o desenvol-vimento e a aprendizagem. O convívio, de acordo com o projeto pedagógico da escola, “favorece a formação de vínculos estimuladores, o confronto com a diferença e o trabalho com a própria dificuldade”.

E uma das ferramentas mais poderosas na construção dessa delicada teia são os livros, reconhece Lanuce, a mãe do pequeno Davi. “A biblioteca estimula, aumenta o conhecimento. É difícil sintetizar a importância que ela tem para nós em uma palavra. Mas no nosso caso acho que posso dizer que é união, é universalização para unir crianças de várias imaginações. Estou feliz.”

Ao escrever “Uma palavrinha aos pequenos leitores” no livro As serpentes que roubaram a noite e outros mitos, Daniel Munduruku deixa dicas para essa união: “É preciso ler e ouvir os mitos não com os ouvidos que ficam na cabeça, pois eles costumam nos enganar, mas com os ouvidos que existem lá no fundo do coração – o ouvido da memória. (...) A gente nunca mais esquece o que ouve com o coração.”

Davi e sua mãe Lanuce: livros ajudam a re-forçar vínculos e estimulam o aprendizado

Vitória com o livro favorito: “A bibliote-ca é muito legal”

Page 8: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

228 229

Inaugurada em 2013, a biblioteca “chegou como

um mundo especial que se abre para a criança”

Page 9: 214214 215215 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap9.pdf · 2019-01-28 · 222 223 fazer a tarefa com os pais e de desenhar o que viu e sentiu. “Eu e o Ricardo,

230 231

Imaginação: é preciso ouvir as histórias com

“os ouvidos que existem no fundo do coração”