2212-6072-1-SM

download 2212-6072-1-SM

of 10

Transcript of 2212-6072-1-SM

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    1/10

    47Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3,p. 47-56,jul./dez. 2009

    As dificuldades da tarefa educativa na civilizao, segundo Rousseau

    Lidiane Brito Freitas

    Resumo:

    O objetivo deste artigo analisar como Rousseau estabelece um nexo entre natureza e civilizao, no queconcerne ao papel da educao como possibilidade de orientar o homem no curso de suas aes. Ao formularuma educao natural, Rousseau no descarta a necessidade de uma formao que engloba aspectos oriundosdo processo civilizatrio. Essa educao tem a funo de equilibrar as diferenas entre a natureza e a socieda-de, permitindo que o homem entre no mundo da cultura, sendo guiado pelos princpios da natureza. Fazeruma incurso pelos clssicos da filosofia rousseauniana Discursos,Contrato Social, Emlio ou da EducaoeJlia ou a Nova Helsa possibilitar uma reflexo rigorosa sobre conceitos necessrios construo deum entendimento acerca da possibilidade de superao do impasse estabelecido entre natureza e civilizao.Palavras-chave : Natureza; Civilizao e Educao.

    The difficulties of educational task in civilization, according to Rousseau

    Abstract:

    The aim of this paper is to analyze how Rousseau establishes a link between nature and civilization, in whatconcerns the role of education as a possibility of guiding men in the course of their actions. When creating anatural education, Rousseau does not forget the need of an education that encloses aspects from the civilizingprocess. That education has the task of balancing the differences between nature and society, allowing man toget into the world of culture, being guided by the principles of nature. Studying the classics of Rousseausphilosophy -Discursos,Contrato Social, Emlio ou da EducaoeJlia ou a Nova Helsa is going to allowa rigorous reflection upon necessary concepts to the construction of an understanding about the possibility ofovercoming the established problem between nature and civilization.Key-words: Nature; Civilization and Education.

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    2/10

    4848

    Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

    Lidiane Brito Freitas

    Os representantes do sculo das Luzes identifi-cam a educao como um instrumento de melhoriadas condies de vida dos homens. A preocupao coma formao do homem burgus encontra, nesse scu-

    lo, um ambiente propcio para as novas diretrizes quesero traadas, a fim de promover a sua efetiva par-ticipao nos direcionamentos da sociedade.1

    Ao formular um processo educativo capaz de ga-rantir ao homem o pleno desenvolvimento de todasas suas potencialidades, Rousseau teoriza uma situ-ao em que o homem vive de acordo com os preceitosda natureza por no contrair os vcios oriundos davida civilizada. Diante da concepo pedaggica, quevaloriza e resgata os princpios da natureza, pode-secompreender o lugar de destaque, que tem Rousseau,

    no contexto do movimento iluminista.Ao construir, logicamente, um estado que no exis-te, que nunca existiu e que talvez jamais existir,Rousseau no vislumbra, em nenhum momento, avolta ao estado natural (mesmo que fosse possvel),como alguns pensadores interpretaram, muitas ve-zes, ironicamente2. Teorizar um estado em que acorrupo no faz parte das relaes entre os seme-lhantes permite construir um argumento sobre oselementos originrios da natureza, sem a influnciados aspectos corruptores da vida social. A simplicida-de dos costumes denunciava como era radicalmentediferente o homem natural que, bastando-se a si pr-prio, no necessitava utilizar-se das mais diversasestratgias para conviver com os seus semelhantes.

    No se pode refletir sobre os costumes semse comprazer com a lembrana da ima-gem da simplicidade dos primeiros tem-pos. uma bela praia, ornada unicamen-te pelas mos da natureza, para a qual in-cessantemente se voltam aos olhos e da

    qual com tristeza se sente afastar-se. Quan-do os homens inocentes e virtuosos ama-vam ter os deuses como testemunhas desuas aes, moravam juntos na mesma

    cabana, mas, assim que se tornam maus,cansaram-se com esses espetculos inc-modos e os isolaram em templos magnfi-cos (ROUSSEAU, 1978a, p. 346).

    No estado pr-civil, o homem no tinha porque seservir de todas as potencialidades que o capacitariama garantir melhores condies de vida, uma vez que oseu nico objetivo era lutar pela sobrevivncia. Ali-s, nesse estado, ele no possua a moralidade quefaria dele um ser com conscincia e razo. Pela ne-

    cessidade de aprimorar capacidades adormecidas noestado de natureza, torna-se imprescindvel que ohomem, imerso na sociedade, utilize essas capacida-des para agir e melhor conduzir as suas aes.

    Embora nesse estado se prive de muitasvantagens que frui da natureza, ganhaoutras de igual monta: suas faculdadesse exercem e se desenvolvem, suas idiasse alargam, seus sentimentos se enobre-cem, toda a sua alma se eleva a tal ponto,que, se os abusos dessa nova condio noo degradassem freqentemente a uma con-dio inferior quela donde saiu, deveriasem cessar bendizer o instante feliz quedela o arrancou para sempre e fez, de umanimal estpido e limitado, um ser inte-ligente e um homem (ROUSSEAU, 1978b,p. 36).

    Na sociedade, as disposies originrias da natu-reza perdem fortemente a influncia no modo de vi-

    1O sculo das Luzes pode, tambm, ser considerado o Sculo da Pedagogia pelas importantes e decisivas discussestravadas pelos seus representantes no que tange ao papel da educao. Os iluministas atribuem educao umvalor imprescindvel por acreditarem que, a partir de um ensino voltado para as reais necessidades do educando,poder-se-ia preparar a humanidade para uma era de desenvolvimento em todas as dimenses inerentes constituiodo ser humano.

    2 Este o caso de Voltaire. Cf. VOLTAIRE. Carta de Voltaire a Rousseau. Revista Arca. Edio organizada porDorothe de Bruchard. Porto Alegre: Paraula, 1994, p. 55.

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    3/10

    49As dificuldades da tarefa educativa na civilizao, segundo Rousseau

    Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

    ver do homem. Ele passa a valorizar mais as necessi-dades surgidas com o convvio do que aquelas que lheproporcionavam um estilo simples de vida, como ocaso da luta pela conservao. Portanto, abre-se o

    caminho para a corrupo dos costumes: o homempassa a desejar coisas que vo alm da satisfao dassuas necessidades bsicas.

    Desperta necessidades e paixes que o ho-mem natural jamais conheceu e coloca-lhenas mos os recursos sempre novos parasaci-las sem freios. A sede de dar o quefalar de si, a nsia de se distinguir dosoutros: tudo isso nos torna incessante-mente estranhos a ns mesmos, tudo isso

    nos transporta, de certo modo, para forade ns mesmos (CASSIRER, 1992, p. 217).

    Por produzir um cenrio, no qual os homens sedistinguem radicalmente dos seus semelhantes, afas-tando-os da condio natural, a sociedade recebe umasevera crtica pelo fato de ser, para Rousseau, a res-ponsvel por muitos males que assolam o gnero hu-mano. Contudo, ele ressalta a importncia de seaprender a conviver em sociedade, j que a passagempara esse estado um acontecimento inevitvel.

    A partir das consideraes acerca da maneira pelaqual o homem atua em sociedade, importante des-tacar a forma artificial encontrada pelos homens paraconseguirem conviver com todos os elementos consti-tuintes do estado social, tendo em vista o desenvolvi-mento de novas disposies e sentimentos prpriosda convivncia. Acerca do modo artificial de se viverno ambiente social, possvel assinalar:

    As falsas luzes da civilizao, longe deiluminar o mundo humano, velam a trans-parncia natural, separam os homens uns

    dos outros, particularizam os interesses,destroem toda possibilidade de confianarecproca e substituem a comunicao es-sencial das almas por um comrcio factcioe desprovido de sinceridade; assim se cons-titui uma sociedade em que cada um seisola em seu amor-prprio e se protege

    atrs de uma aparncia mentirosa(STAROBINSKI, 1996, p. 35).

    Quando Rousseau pensa uma educao da na-

    tureza, ele quer assinalar a necessidade de que oprocesso formativo desenvolva, desde a infncia, asdisposies originais, no intuito de que o homemno se corrompa pelos diversos elementos existen-tes na vida civil. O pensamento pedaggicorousseauniano aponta para uma valorizao do serinfantil em toda sua espontaneidade, delineandouma nova maneira de conceber uma educao apro-priada s crianas.

    Compreender a infncia como uma fasedeterminante na vida do ser humano possibilita uma

    posio contrria ao discurso pedaggico da poca, oqual identificava a criana como um adulto em mini-atura, sem necessidade, portanto, de um tratamentodiferente do que fora estabelecido pelos mtodos deensino vigentes. Proclamar a especificidade infantilsignifica, para Rousseau, respeitar a ordem da natu-reza no que concerne ao ritmo de desenvolvimento dacriana.

    A natureza [...] quer que as crianas se-jam crianas antes de serem homens. Sequisermos alterar essa ordem, produzi-remos frutos precoces que no tero nemmaturidade nem sabor e no tardaro acorromper-se; teremos jovens doutores evelhas crianas. A infncia tem manei-ras prprias de ver, de pensar, de sentir,que lhe so prprias. Nada menos sen-sato do que a elas querer substituir asnossas e preferiria exigir que uma crian-a tivesse cinco ps de altura a exigir quetivesse julgamento aos dez anos(ROUSSEAU, 1994, p. 486).

    A formulao clssica sobre o estado de naturezapermite estabelecer uma comparao com a fase an-terior ao pleno desenvolvimento fsico, intelectual emoral, que se constitui no ponto de partida de todoprocesso formativo do indivduo. Por conseguinte, iden-tificar a imaturidade infantil no como uma defor-

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    4/10

    5050

    Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

    Lidiane Brito Freitas

    mao, mas como um estgio a ser desenvolvido gra-dualmente, empreende uma revoluo nos princpiosque nortearo a educao das crianas.

    Ao propor no apenas que a infncia umafase autnoma e diferente da vida adulta,com caractersticas prprias que devem serrespeitadas, que o menino no um adul-to defeituoso e sim um microcosmo au-tnomo; mas muito mais que isso, que acriana superior ao adulto porque ela,com sua inocncia natural, tem em si oestado de natureza que, para Rousseau, a condio original de existncia: a in-fncia inocente como o estado de natu-

    reza (HILSDORF, 1998, p. 77).

    A preocupao de que o uso das faculdades noseja antecipado constitui-se numa das principais re-comendaes feitas por Rousseau no Emlio. Ele com-preende que as faculdades so despertadas e estimu-ladas no momento certo, momento este que prescri-to pela natureza. Todavia, a atitude de apressar asatividades do intelecto conduz a uma distoro noprocesso de constituio do ser infantil. A crianapossui um ritmo de desenvolvimento prprio que nopode ser contrariado, a menos que se queira formarum indivduo incapaz fsica, mental e moralmente de encarar as adversidades prprias da vida.

    Tratai-a pois conforme sua idade, apesardas aparncias, e evitai esgotar suas for-as exercitando-as demais. Se aquele jo-vem crebro se esquenta, se virdes que estcomeando a ferver, deixai-o primeiro fer-mentar em liberdade, mas no oprovoqueis jamais, para que nem tudo seexale; e, quando os primeiros espritos se

    evaporarem, retende, comprimi os outros,at que com os anos tudo se transformeem calor vivificante e em verdadeira for-a. Caso contrrio, perdereis vosso tempoe vosso trabalho, destruireis vossa prpriaobra e, depois de vos terdes indiscretamen-te embriagado com todos esses vapores in-

    flamveis, s vos restar um resduo semvigor (ROUSSEAU, 1999, p. 111).

    Admitir que antes da razo outras faculdades de-

    vem ser plenamente aprimoradas, tornar-se-ia a prer-rogativa daqueles que desempenham a importantetarefa de educar o homem. Em vista disso, os profes-sores devem ser pacientes no que se refere ao uso darazo, pelo fato de ser uma faculdade que necessitade um tempo maior para se desenvolver completa-mente.

    Por conseguinte, a razo uma faculdade que fazdo homem um ser singular pelo fato de proporcionar-lhe a capacidade de orientar as suas aes, haja vistaque, aliada liberdade, ela promove a formao de

    um ser autnomo. Apesar de ser a responsvel poralguns males, com o desenvolvimento da razo queo homem consegue aprimorar-se moralmente.

    S a razo nos ensina a conhecer o bem eo mal. A conscincia que nos faz amar aum e odiar o outro, embora independenteda razo, no pode, pois, desenvolver-sesem ela. Antes da idade da razo, faze-mos o bem e o mal sem sab-lo, e no hmoralidade em nossas aes, embora svezes ela exista no sentimento das aesde outrem que se relacionam conosco(ROUSSEAU, 1999, p. 53).

    Entendendo a razo como uma faculdade impor-tante para a constituio de um ser bem formado, oque distingue Rousseau dos demais iluministas? In-vertendo o plo norteador do movimento a plenaconfiana nos poderes da razo , ele identifica o sen-timento como o verdadeiro princpio do conhecimen-to. O aspecto especfico e peculiarmente novo queRousseau proporcionou a sua poca parece residir no

    fato de libert-la do domnio do intelectualismo. sforas do entendimento reflexivo nas quais se baseiaa cultura do sculo XVIII, ele ope a fora do senti-mento (CASSIRER, 1999, p. 81).

    Ao receber o prmio da Academia de Dijon, res-pondendo negativamente questo proposta: Orestabelecimento das Cincias e das Artes ter con-

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    5/10

    51As dificuldades da tarefa educativa na civilizao, segundo Rousseau

    Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

    tribudo para aprimorar os costumes?, Rousseaucritica o princpio, dominante na poca, de ser a ra-zo o instrumento que conduziria a humanidade aodesenvolvimento filosfico, intelectual, cultural e po-

    ltico. E o desenvolvimento moral?A tese de que o progresso cientfico e intelec-

    tual no levou os homens a um aperfeioamento mo-ral permite compreender o lugar ocupado por Rousseauao questionar o curso do processo civilizatrio. A ati-tude de criticar as bases tericas do Iluminismo, de-nunciando o mal desencadeado pelas cincias e pelasartes, evidencia a repercusso que a sua primeiragrande obra filosfica teve no crculo dos ilustrados ea importncia das suas reflexes no conjunto de idi-as do sculo das Luzes. ODiscurso sobre as cincias

    e as artes, que marca a estria de Rousseau na car-reira literria, a acusao do mal do veneno queatinge as sociedades civilizadas medida que progri-dem as funestas luzes, as vs cincias(STAROBINSKI, 2001, p. 163-164).

    No menos surpreendente que o fato de algumque fizera parte do grupo dos iluministas tenha ata-cado ferozmente o princpio organizador do movimento a deciso da Academia de Dijon instituio querepresenta a Repblica de Letrados de dar o prmioa um pensador que se insurgiu contra ela. Dessemodo, poder-se-ia identificar o estabelecimento demais um dos paradoxos recorrentes na trajetria in-telectual de Rousseau?

    Como ousar censurar as cincias peranteuma das mais sbias companhias da Eu-ropa, louvar a ignorncia numa Academiaclebre e conciliar o desprezo pelo estudocom o respeito pelos verdadeiros sbios?Reconheci estes obstculos e eles de modoalgum me demoveram. No em absolu-to a cincia que maltrato, disse a mim mes-

    mo, a virtude que defendo perante ho-mens virtuosos. mais cara a probidades pessoas de bem do que a erudio aosdoutos (ROUSSEAU, 1978a, p. 333).

    No obstante a vida e a obra do filsofo se mescla-rem, importante atentar para o fato de que a argu-mentao rousseauniana, acerca da civilizao, pos-sui a consistncia necessria para se proceder res-posta de to importante questo. A fim de identificara relao entre a vida e a obra do filsofo, pode-seencontrar, nas Confisses,a passagem na qual elenarra o momento de iluminao que culminou nonascimento da sua primeira obra filosfica: oDiscur-so sobre as Cincias e as Artes.

    Naquela ocasio lembro-me perfeitamen-te de que, ao chegar em Vincennes, estavanuma aflio que raiava o delrio. Diderotpercebeu-a; expliquei-lhe a causa e li paraele a prosopopia de Fabricius, escrita alpis debaixo dum carvalho. Aconselhou-me a dar largas s minhas idias e a con-correr ao prmio. Assim o fiz e desde en-to fiquei perdido. O resto todo de minhavida e minhas infelicidades foram o inevi-tvel efeito daquele momento de desvario(ROUSSEAU, s/d, p. 375).

    Nesse sentido, torna-se relevante indagar: qual opapel da educao? Como possvel o ato de educar oindivduo para que este participe efetivamente da so-ciedade? Em suma, qual o papel da educao na crti-ca civilizao empreendida por Rousseau?

    Ao desferir um golpe contra as cincias, ou me-lhor, ao uso que delas fazem os responsveis pela edu-cao dos homens, Rousseau empreende um srioquestionamento funo da educao3numa socie-

    3 Semelhante crtica da educao civilizada empreendida noPrimeiro Discurso, Rousseau faz um severo julgamentoacerca da educao da sua poca no Emlio: No posso encarar como instituio pblica esses ridculosestabelecimentos chamados colgios. Tampouco considero a educao da sociedade, pois, tendendo essa educao adois fins contrrios, no atinge nenhum dos dois; s serve para criar homens de duas faces, que sempre parecematribuir tudo aos outros, e nunca atribuem nada seno a si mesmos (ROUSSEAU, 1999, p. 12-13).

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    6/10

    5252

    Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

    Lidiane Brito Freitas

    dade civilizada. Quando promove uma crtica soci-edade iluminada, o filsofo tambm se posicionacontra a educao do seu tempo. Por conseguinte, jnoPrimeiro Discurso evidenciado o prejuzo que

    uma educao m orientada pode causar no processode formao do indivduo.

    Se a cultura das cincias prejudicial squalidades guerreiras, ainda o mais squalidades morais. J desde os primeirosanos, uma educao insensata orna nossoesprito e corrompe nosso julgamento. Vejoem todos os lugares estabelecimentos imen-sos onde a alto preo se educa a juventudepara aprender todas as coisas, exceto seus

    deveres (ROUSSEAU, 1978a, p. 347).

    Segundo Rousseau, uma verdadeira educao temcomo finalidade formar o homem para a vida. Nessesentido, a relao estabelecida entre a educao danatureza, das coisas e a dos homens tornar-se- fun-damental para um entendimento sobre um processoformativo que contempla todas as dimenses da exis-tncia humana, produzindo um sujeito autnomo econsciente do seu papel na sociedade da qual ele parte integrante.

    A educao da natureza apresenta-se como o pro-cesso em que a criana precisa fortalecer a sua cons-tituio fsica, demandando, para tanto, uma ativi-dade educativa que estimule tal fortalecimento. Eladeve ser estimulada, desde a mais tenra idade, a tra-balhar todas as suas potencialidades, no sentido deformar um organismo so, forte e preparado para asdiversas adversidades.

    Em relao educao das coisas, Rousseau com-preende a aprendizagem atravs dos princpios peda-ggicos da observao, associao e expresso; logo, apartir desses trs princpios, funda-se um conheci-

    mento, a partir do concreto para o abstrato. Ele ain-da salienta a importncia de que, nessa fase prepara-tria, a criana se depare com as prprias coisas an-tes de elaborar um juzo mais slido acerca delas.

    Os processos de aprendizagem se desen-volvem ento em trs momentos funda-

    mentais: a observao, que o ponto departida de todo conhecimento, que deveser colocada no centro da atividade esco-lar, cujo lema deve ser poucas palavras,

    muitos fatos, usando-se um material bas-tante variado que deve ser manipulado eobservado diretamente pela criana; a as-sociao, que organiza, embora de formaelementar, o ambiente que a criana ob-servou na direo do espao e do tempo,dando lugar aos conhecimentos fundamen-tais da geografia e da histria; a expres-so que pode ser concreta ou abstrata: aprimeira refere-se aos trabalhos manuais, modelagem e ao desenho: a segunda,

    linguagem, ou seja, leitura e escrita(CAMBI, 1999, p. 528).

    Depois da educao sensitiva, tem-se a educaointelectual, que comea com a constituio de umarazo slida. Pode-se perceber que, antes dessa fase,Rousseau no fala de educao positiva, uma vez queantes dos quinze anos a razo do homem ainda seencontra em estgio de amadurecimento. Antes des-sa idade, Rousseau condena uma educao puramen-te livresca e erudita, tecendo uma crtica severa aoslivros que, neste momento, no permitem s crian-as apreender as informaes contidas neles, masapenas exercitam a memorizao.

    Odeio os livros; eles s ensinam a falar doque no se sabe. Dizem que Hermes gra-vou em colunas os elementos das cinci-as, para pr suas descobertas ao abrigode um dilvio. Se as tivesse bem gravadona cabea dos homens, ter-se-iam conser-vado por tradio. Crebros bem prepara-dos so os monumentos onde com segu-

    rana se gravam os conhecimentos huma-nos (ROUSSEAU, 1999, p. 232).

    A partir dos quinze anos, comea a educao doshomens, na qual as noes morais e sociais j podemser trabalhadas, posto que, a essa altura, o alunotem condies de estabelecer um juzo sobre os ho-

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    7/10

    53As dificuldades da tarefa educativa na civilizao, segundo Rousseau

    Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

    mens e suas relaes em sociedade. Atravs de al-guns ensinamentos, Emlio adquire preceitos impor-tantes para a sua insero na vida coletiva como, porexemplo, o respeito ao bem alheio.

    Qual o objetivo da educao na apreciao, a res-peito dos progressos da civilizao? O que a educaopode fazer no sentido de proporcionar o aprimoramentodo indivduo em todos os aspectos, sobretudo o mo-ral? Se Rousseau entende que o desenvolvimento dascincias relegou a uma posio subalterna o progres-so moral, como o processo educativo pode promoveruma melhoria da humanidade? Eis estabelecido oparadoxo da civilizao: chegou-se a um alto nvel deaperfeioamento tcnico, intelectual, e cultural; con-tudo, a dimenso que seria primordial para se consi-

    derar uma poca iluminada foi seriamente sacrificadaem prol de uma confiana ilimitada na razo: a di-menso moral.

    Quando Rousseau promove uma investida contraa razo, interessante ressaltar que esse ataque empreendido no faculdade em si mesma, mas aomau uso que dela fizeram os responsveis pela orga-nizao da sociedade. Por conseguinte, Rousseau d razo o lugar que melhor convm sua condio;isto no quer dizer que o seu papel seja minimizado;mas, antes, ordenado de acordo com os preceitos danatureza humana.

    Um erro comum a todos os pais que cr-em ter luzes o de supor que desde o nas-cimento seus filhos sejam capazes de raci-ocinar, e de falar-lhes como homens antesmesmo que saibam falar. A razo o ins-trumento que se pensa usar para instru-los enquanto os outros instrumentos de-vem servir para form-la e enquanto, detodas as instrues prprias do homem,aquela que ele adquire mais tarde e com

    mais dificuldade a prpria razo(ROUSSEAU, 1994. p. 486).

    Analisar a filosofia da educao de Rousseau buscar a compreenso sobre um processo de forma-o do indivduo capaz de proporcionar-lhe as condi-es viveis, ou melhor, primordiais para uma efeti-

    va participao na sociedade. Repensar a educaopermite a Rousseau estabelecer um novo parmetropara o entendimento acerca das especificidadesconcernentes infncia e ao ato de educar.

    A infncia natural por definio prin-cipia desde cedo a ser degenerada pelandoa de uma sociedade de mscaras econstries. A espontaneidade seria veda-da em um modelo de educao pautadopela vigilncia do social sobre o natural.O custo disso seria, sem dvida, a felici-dade. Para Rousseau, pelo contrrio, ha-via que se buscar no homem o homem ena criana a criana. Com maneiras pr-

    prias de olhar e de sentir, a infncia seria,ainda, objeto a ser descortinado. Substi-tuir o olhar infantil pela razo adulta se-ria perturbar a maturao natural exigidapela ordem do tempo (BOTO, 1996, p. 28).

    Como formar o homem para o convvio? Como con-ciliar a natureza e os acrscimos da civilizao? Comoencontrar um ponto de equilbrio entre dois conceitosinconciliveis? Uma educao deve equilibrar a ten-so entre a natureza e a sociedade, uma vez queRousseau formula uma educao que insere o homemno mundo da cultura, permitindo que o mesmo sejaorientado mediante os preceitos da natureza.

    Investigar como se d a educao em Rousseau travar uma forte discusso sobre o papel de uma for-mao que busca preparar o homem atravs do de-senvolvimento de todas as potencialidades inerentes sua natureza. Nesse sentido, oDiscurso sobre asCincias e as Artesapresenta-se como uma dura cr-tica civilizao e educao de seu tempo pelo fatode Rousseau entender que os iluministas privilegia-ram o aspecto intelectual, na formao do indivduo,

    em detrimento do aspecto moral, identificado, por ele,como o verdadeiro responsvel pela melhoria dos ho-mens.

    Diante dessa constatao, Rousseau formula umaeducao que possibilite o contato do homem com a na-tureza. Essa educao tem como finalidade proporcio-nar as condies para que ele possa viver em sociedade

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    8/10

    5454

    Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

    Lidiane Brito Freitas

    sendo afetado, o mnimo possvel, pelos elementos quepromovem a degenerao dos princpios originais. Ele-mentos como a desigualdade e o amor-prprio so consi-derados como responsveis pelo progressivo

    distanciamento do homem da natureza. Por essa ra-

    zo, Rousseau assinala a necessidade imperiosa de li-dar com o impasse estabelecido entre natureza e civili-zao a partir de um entendimento sobre a importnciade uma educao que reaproxime o homem de sua na-

    tureza, reorientando elementos prprios da vida civil.

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    9/10

    55As dificuldades da tarefa educativa na civilizao, segundo Rousseau

    Revista Tempos e Espaos em Educao, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

    BOTO, Carlota. A escola do homem novo:entre oIluminismo e a Revoluo Francesa. So Paulo:UNESP, 1996.

    CAMBI, Franco. Histria da Pedagogia. Trad. lva-ro Lorencini. So Paulo: Unesp, 1999.

    CASSIRER, Ernst. A ques to Jean-JacquesRousseau. Trad. Erlon Jos Paschoal. So Paulo:Unesp, 1999.

    ______. A filosofia do Iluminismo. Trad. lvaroCabral. Campinas: Unicamp, 1992.

    HILSDORF, Maria Lcia Spedo.Pensando a Edu-cao nos Tempos Modernos. So Paulo: Edusp,1998.

    ROUSSEAU, Jean-Jacques.As confisses. Trad.Wilson Lousada. Rio de Janeiro: Jos Olympio,s.d.

    ______.Discurso sobre as cincias e as artes. Trad.Lourdes Santos Machado. So Paulo: Abril Cultural,1978a. (Col. Os Pensadores).

    ______.Do contrato social.Trad. Lourdes SantosMachado. So Paulo: Abril Cultural, 1978b. (Col. OsPensadores).

    ______. Emlio ou da educao.Trad. Roberto LealFerreira. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    ______. Jlia ou a nova Helosa.Trad. Flvia Ma-ria Luza Moretto. So Paulo-Campinas: Hucitec/Unicamp, 1994.

    STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: atransparncia e o obstculo. Trad. Maria Lcia Ma-chado. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.

    ______.As mscaras da civilizao.Trad. Maria L-cia Machado. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    Referncias

    Sobre a autora:

    Lidiane Brito Freitas licenciada em Filosofia e mestre em Educao pela Universidade Federal de Sergipe.Atualmente doutoranda em Educao pela mesma universidade. professora da Faculdade Amadeus. Mem-bro do Grupo de Trabalho Filosofia da Educao (NPGED/UFS) e do Grupo de Estudos de Histria da FilosofiaModerna/NEPHEM.E-mail: [email protected]

  • 7/26/2019 2212-6072-1-SM

    10/10