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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1) 1 Angelo Agostini na história das ideias e dos intelectuais no Brasil Maria da Conceição Francisca Pires * A proposta desse artigo é analisar a historiografia acerca da produção humorística do intelectual caricaturista Ângelo Agostini (1843-1910). No ano do centenário de morte de um dos mais importantes intelectuais humoristas da imprensa ilustrada do século XIX, mostra-se pertinente fomentar a discussão e a reflexão sobre a importância de sua obra para a difusão de uma cultura política republicana e liberal na sociedade fluminense do período e, ao mesmo tempo, examinar as diferentes abordagens acadêmicas sobre questões relacionadas à imprensa humorística e sua participação na construção de representações sobre temas relacionados à política, cotidiano, cultura, dentre outros. Ângelo Agostini se tornou referência na imprensa satírica brasileira da segunda metade do século XIX pela forma como utilizou seu oficio na defesa da causa abolicionista, na exposição dos conflitos sociais existentes e na crítica a determinados vícios e práticas políticas. Após uma significativa atuação na imprensa ilustrada paulista, especificamente nas revistas Diabo Coxo (1864-1865) e no Cabrião (1866- 1867), Agostini se instalou na capital do império no momento de expressiva transformação e amadurecimento da imprensa, se integrando prontamente à tendência liberal que se avolumava naquele momento e ao confronto estabelecido entre esta corrente e as revistas e jornais conservadores e defensores da monarquia. A partir de 1868, sua participação na imprensa caricata fluminense, que priorizava por colocar a política como tema central de sua produção, 1 foi fundamental para determinar os rumos dos debates que se desenvolviam em seu interior. * Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa. Esse trabalho faz parte da pesquisa “Centenário do Traço: o humor político de Ângelo Agostini na Revista Illustrada (1876-1888)”, desenvolvida na Fundação Biblioteca Nacional. 1 Entre 1870 e 1890 destacaram-se ora pela forma, ora pelo seu conteúdo e/ou por sua duração as revistas: Semana Ilustrada (1860-1876), Ba-ta-clan (1867-1871), Vida Fluminense (1868-1875), A Comédia Social (1870-1871), O Mosquito (1869-1877), Mefistófeles (1874-1875), Mequetrefe (1875-1893), Revista Illustrada (1876-1898), O Fígaro (1876-1878), Psit (1877), O Besouro (1878-1879), A Lanterna (1878), Dom Quixote (1895-1903).

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  • Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais

    do 4. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: tempo presente & usos do

    passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1)

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    Angelo Agostini na histria das ideias e dos intelectuais no Brasil Maria da Conceio Francisca Pires*

    A proposta desse artigo analisar a historiografia acerca da produo humorstica

    do intelectual caricaturista ngelo Agostini (1843-1910). No ano do centenrio de

    morte de um dos mais importantes intelectuais humoristas da imprensa ilustrada do

    sculo XIX, mostra-se pertinente fomentar a discusso e a reflexo sobre a importncia

    de sua obra para a difuso de uma cultura poltica republicana e liberal na sociedade

    fluminense do perodo e, ao mesmo tempo, examinar as diferentes abordagens

    acadmicas sobre questes relacionadas imprensa humorstica e sua participao na

    construo de representaes sobre temas relacionados poltica, cotidiano, cultura,

    dentre outros.

    ngelo Agostini se tornou referncia na imprensa satrica brasileira da segunda

    metade do sculo XIX pela forma como utilizou seu oficio na defesa da causa

    abolicionista, na exposio dos conflitos sociais existentes e na crtica a determinados

    vcios e prticas polticas. Aps uma significativa atuao na imprensa ilustrada

    paulista, especificamente nas revistas Diabo Coxo (1864-1865) e no Cabrio (1866-

    1867), Agostini se instalou na capital do imprio no momento de expressiva

    transformao e amadurecimento da imprensa, se integrando prontamente tendncia

    liberal que se avolumava naquele momento e ao confronto estabelecido entre esta

    corrente e as revistas e jornais conservadores e defensores da monarquia.

    A partir de 1868, sua participao na imprensa caricata fluminense, que

    priorizava por colocar a poltica como tema central de sua produo,1 foi fundamental

    para determinar os rumos dos debates que se desenvolviam em seu interior.

    * Professora Adjunta do Departamento de Histria da Universidade Federal de Viosa. Esse trabalho faz parte da pesquisa Centenrio do Trao: o humor poltico de ngelo Agostini na Revista Illustrada (1876-1888), desenvolvida na Fundao Biblioteca Nacional.

    1 Entre 1870 e 1890 destacaram-se ora pela forma, ora pelo seu contedo e/ou por sua durao as revistas: Semana Ilustrada (1860-1876), Ba-ta-clan (1867-1871), Vida Fluminense (1868-1875), A Comdia Social (1870-1871), O Mosquito (1869-1877), Mefistfeles (1874-1875), Mequetrefe (1875-1893), Revista Illustrada (1876-1898), O Fgaro (1876-1878), Psit (1877), O Besouro (1878-1879), A Lanterna (1878), Dom Quixote (1895-1903).

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    Destacaram-se sua colaborao nas revistas: A Vida Fluminense (1868-1875), O

    Mosquito (1869-1877) e A Revista Illustrada (1876-1898), respectivamente. Em

    comum, alem das contribuies artsticas (em diferentes momentos) de Agostini, essas

    revistas apresentaram trs aspectos importantes: 1) o explcito posicionamento crtico

    com relao s aes do Estado e de seus representantes no parlamento; 2) o tempo de

    circulao, quando comparado s demais; e 3) a sua repercusso dentre as outras

    publicaes ilustradas.

    Antes de colaborar nA Vida Fluminense Agostini demarcou seu espao na

    imprensa carioca atravs da participao nO Arlequim. Sucedneo do Bazar Volante

    (1863-1867), O Arlequim absorveu daquele peridico o empenho em colocar em

    discusso, atravs do humor, os problemas sociais e polticos vividos no pas. Quando

    ingressou nO Arlequim, em 30 de outubro de 1867, a revista j chamava a ateno por

    dedicar um nmero significativo dos desenhos humorsticos dos artistas V. Mola e

    Flumen Junius para discutir a manuteno da escravido no Brasil e as contradies

    inerentes a mesma. Desse modo, sua participao na revista, trazendo a experincia

    vivida em So Paulo, contribuiu para: tonificar as posies mais liberais (...) a

    respeito da questo do elemento servil (RIBEIRO, 1988:155).

    Em novembro de 1867, semanas antes da extino daquele peridico, Agostini

    abandonou O Arlequim e seguiu para A Vida Fluminense, assumindo ali a dupla

    condio de scio e redator artstico. Na verdade no se tratou de uma troca radical na

    medida em que, como indicado em seu primeiro editorial, A Vida Fluminense surgiu

    em substituio ao Arlequim.

    Tambm nessa revista Agostini d incio, de modo, mais sistemtico, a produo

    de histrias em quadrinhos, gnero narrativo praticamente indito poca (RIBEIRO,

    1988:155), atravs das Aventuras de Nh Quim ou impresses de uma Viagem

    Corte. Assim como na srie veiculada em 1870 Cenas das Ruas do Rio de Janeiro,

    essas histrias abordavam, atravs de um tipo de produto humorstico um pouco menos

    politizado, o cotidiano da cidade e os problemas do homem comum.

    Mesmo com a incorporao desse novo gnero, Agostini, em parceria com os

    caricaturistas Joo Pinheiro Guimares e V. Mola, permaneceu concentrando seu trao

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    na abordagem do problema servil e incorporando essa questo na cobertura dos eventos

    da guerra do Paraguai.

    Um olhar mais apurado sobre a leitura que o caricaturista fez da guerra e

    identifica-se, de forma subjacente, o desenvolvimento de um debate em que se

    entrecruzam referncias mais complexas envolvendo o Estado imperial e a sociedade,

    representando um expressivo contraponto ao discurso nacionalista oficial. Basicamente

    foi colocado em debate o desempenho do Estado durante a guerra, dando indcios de

    um progressivo descrdito do artista com o governo imperial e com suas prticas

    polticas. Paralelamente, soube valorizar todas as possibilidades para expressar sua

    crtica aos jornais situacionistas locais e seu apoio s idias e personagens liberais.

    Sua contribuio na Vida Fluminense se encerrou em novembro de 1871, quando

    seus desenhos foram substitudos pelos de Cndido Aragons de Faria e Antonio Alves

    do Vale.

    Em janeiro do ano seguinte, Agostini assumiu a direo dO Mosquito, um

    semanrio fundado pelo seu sucessor nA Vida Fluminense, Cndido de Faria, e que

    havia se fortalecido aps ter se unido ao Lobisomem e A Comdia Social.

    Diferentemente dA Vida Fluminense, O Mosquito se apresentava como um jornal

    caricato e crtico, sinalizando para a adoo de uma postura contestatria.

    O grande tema do qual se acercou O Mosquito durante a estada de Agostini foi a

    questo religiosa. O problema central da polmica tinha um cunho jurdico e poltico

    que colocava em relevo a necessidade de se pontuar os limites da unio entre igreja e

    Estado. O debate girava em torno da necessidade de se garantir a hierarquia dessa

    relao, mantendo a autoridade do Estado acima da igreja, e, ao mesmo tempo, rever

    alguns pressupostos defendidos pela igreja, abrindo espao para a insero de

    transformaes profundas como o casamento civil, o registro civil, a secularizao dos

    cemitrios, dentre outras.

    Trazer tona o debate sobre a relao entre Estado e igreja no Brasil foi um modo

    no s de problematizar a influncia da igreja catlica na poltica imperial, mas,

    sobretudo, de pressionar por mudanas amplas no Estado brasileiro que favorecessem a

    superao de instituies consideradas pelo artista to obsoletas quanto a escravido.

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    A postura de Agostini expressa na revista buscava assinalar aspectos referentes

    intolerncia religiosa do ultramontanismo, a necessidade de se definir e firmar a

    autonomia do Estado frente igreja, a urgncia de se discutir a questo da

    secularizao da sociedade brasileira, e, finalmente, a incompatibilidade entre o que

    estava previsto no artigo 5o da Constituio brasileira e a realidade vivida na relao

    entre Estado e igreja catlica.

    NO Mosquito Agostini conseguiu consolidar seu espao na imprensa caricata do

    sculo XIX. Em setembro de 1875 ele ps termo a sua participao naquele peridico e

    partiu para a criao de um projeto editorial com um carter marcadamente autoral e

    com um cunho empresarial mais sofisticado. Esse projeto se expressou na criao da

    Revista Illustrada, em janeiro de 1876.

    A Revista Illustrada foi um peridico de circulao semanal, com cerca de oito

    paginas. Em seu interior as imagens humorsticas ocupavam o mesmo numero de

    paginas dos textos (quatro para textos e quatro para desenhos). Alm de Agostini,

    colaboraram na Revista os caricaturistas Antonio Bernardes Pereira Neto, Bento

    Barbosa e Hilario Teixeira. Entretanto, at o ano de 1888, a maior parte dos desenhos

    publicados foi de autoria de Agostini, que, aos 32 anos de idade, na condio de

    proprietrio assumiu a responsabilidade tambm pela editoria, e pelas partes comercial e

    empresarial.

    Dentre os peridicos do final do sculo XIX, foi o que teve o maior tempo de

    circulao, de 1876 a 1898, com uma breve interrupo entre outubro de 1893 e

    novembro de 1894, totalizando 739 edies (OLIVEIRA, 2006: 104). Uma trajetria

    marcada de significativas oscilaes que contriburam tanto para o xito como para os

    insucessos da Revista.

    A sua principal marca, e a que Agostini se dedicou de forma mais enftica, foi o

    carter independente e critico assumido desde o seu primeiro editorial. Agostini

    valorizou o vnculo estabelecido com seus leitores e assinantes como o aspecto que o

    distinguiria dos demais peridicos. A propalada independncia da Revista causou forte

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    impacto entre outros peridicos e jornais, gerando um amplo debate sobre os limites a

    serem impostos s stiras presentes em determinadas revistas ilustradas.2

    A frente da Revista apresentava-se o personagem Don Beltrano, tentando

    representar a neutralidade do artista perante a cobertura dos fatos, compondo uma

    revista cuja postura e atividade a transformou numa empresa jornalstica que

    transcenderia o mero entretenimento.

    Considerando as profundas transformaes polticas e sociais vividas no Brasil no

    perodo em que o artista esteve frente da Revista, entre 1876 e 1888, perfazendo um

    total de doze anos de dedicao integral, e, considerando, ainda, a sua preocupao em

    produzir um humor com carter marcadamente poltico, pode-se inferir a importncia

    dos temas contemplados em seu interior. Priorizando um texto e um desenho livre de

    amarras editoriais, Agostini discutiu questes polticas e sociais variados que tinham

    como pano de fundo uma reflexo sobre as lideranas e prticas polticas locais e o

    prprio regime de poder institudo.

    Dessa forma, foram abordados na Revista os problemas cotidianos que afligiam a

    cidade (doenas, insalubridade), a expanso do movimento abolicionista, questes

    referentes s disputas polticas, o alheamento do governo com relao s demandas

    populares e sua incapacidade para organizar a populao brasileira para o exerccio

    pleno da cidadania. Objetivamente no possvel afirmar o carter republicano de suas

    observaes, mas inegvel que muitas vezes essas se fundaram em vrios elementos

    da propaganda republicana, assim como serviram de questionamento da organizao

    poltica do pas cujo sentido arcaico impedia seu pleno desenvolvimento( (OLIVEIRA,

    2006: 104).

    Essa breve introduo tem o intuito de colocar o leitor a par da trajetria e dos

    temas que concentraram as atenes do trao de ngelo Agostini. Levando em conta a

    importncia da sua narrativa humorstica para a imprensa ilustrada do sculo XIX e no

    interior do debate poltico do perodo, alguns pesquisadores se dedicaram a explorar

    2 A esse respeito ver o debate estabelecido entre o e a Revista Illustrada, nas edies dos dias 30/01/1876, 06/02/1876, 13/02/1876 e, na Revista Illustrada, entre os nmeros 06 e 08, de fevereiro de 1876.

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    especificamente a Revista Illustrada e a trajetria intelectual do caricaturista, colocando

    em relevo aspectos distintos.

    Interessa-nos examinar de que forma tais trabalhos relacionaram a produo

    humorstica de Agostini com as idias intelectuais que se propagavam no perodo. Em

    nossa perspectiva, esse aspecto, da participao da produo humorstica no conjunto

    das reflexes intelectuais, no foi devidamente contemplado, persistindo uma

    perspectiva histrica que perde de vista a forma como tal produo humorstica

    colaborou e foi partcipe importante na propagao de um conjunto de idias liberais e

    republicanas prprias do fim do sculo XIX.

    Marcus Tadeu Ribeiro parece ter inaugurado esse conjunto de estudos com a

    dissertao de mestrado Revista Illustrada (1876-1898), sntese de uma poca. Sua

    pesquisa se mostra de grande valia para os estudos sobre a imprensa ilustrada no sculo

    XIX, especialmente a humorstica, por realizar um excelente panorama sobre o perfil

    das revistas e jornais daquele perodo, delineando as transformaes substanciais pelas

    quais passaram.

    Ribeiro discorre sobre duas fases vividas pela Revista Illustrada: a primeira

    (1876-1888), em que se identifica um carter marcadamente autoral e independente; a

    segunda (1888-1898), em franco declnio, em que esta se caracteriza pelo

    comprometimento que estabelece com as idias e propostas governamentais. Na anlise

    dessas fases, o autor discutiu a importncia da Revista entre a imprensa alegre

    oitocentista, especialmente para a divulgao das artes visuais, os diferentes gneros

    artsticos identificveis em seu interior e o posicionamento partidrio adotado durante

    os seus 22 anos de existncia. Para Ribeiro, Agostini assumiu para si uma identidade

    poltica nica, ou seja, o liberalismo, e, por isso, utilizou a Revista Illustrada

    especificamente para a difuso da propaganda liberal.

    Esse estudo realizou um exame amplo da Revista Illustrada e de seus

    colaboradores, sem, contudo, priorizar as singularidades da produo humorstica de

    Agostini. Embora o autor faa incisiva referencia ao vigor da crtica poltica realizada

    pelos seus desenhos e a importncia dessa crtica no interior do cenrio artstico e

    cultural dos anos finais do sculo XIX, colocou de lado as diversas formaes

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    ideolgicas e discursivas, prprias daquele contexto poltico, presentes em sua narrativa

    humorstica.

    Um segundo trabalho importante sobre ngelo Agostini a tese de doutorado

    ngelo Agostini ou impresses de uma viagem da Corte Capital Federal (1864-

    1910), redigida com carter jornalstico por Gilberto Maringoni de Oliveira

    (OLIVEIRA, 2006). O autor teve o cuidado de apresentar ao leitor, ao lado da trajetria

    profissional de Agostini, o conjunto de mudanas empresariais e tcnicas que ocorreram

    nas artes grficas e como essas interferiram no trabalho do caricaturista.

    evidente o carter especificamente biogrfico do seu estudo, o que o tornou um

    minucioso trabalho de onde possvel extrair informaes importantes (trajetria de

    vida, relacionamentos familiares, profissionais e amorosos) para que se possa

    compreender os espaos de afetividade e as redes de sociabilidade em que o artista

    esteve envolvido, sem, contudo, que tenha sido priorizada uma reflexo sobre como o

    emprego dos elementos visuais e discursivos do humor foi fundamental para o processo

    de reapresentao das discusses politicas desenvolvidas, tornando-as acessveis ao

    publico leitor mais amplo.

    A anlise biogrfica est presente tambm na pesquisa Poeta do Lpis: a

    trajetria de ngelo Agostini no Brasil Imperial So Paulo e Rio de Janeiro 1864-

    1888, desenvolvida por Marcelo Balaban. No seu trabalho, o autor props Investigar

    a relao entre stira e poltica no Brasil (...) desvendar alguns significados da vida e

    obra de ngelo Agostini a partir das incertezas e conflitos que cercavam o ofcio

    exercido com sucesso por este peculiar personagem (BALABAN, 2005: 03).

    Balaban verificou as condies histricas em que o trabalho de Agostini foi

    gerado para, a partir da, analisar os contedos plurais presentes nas suas estampas, bem

    como a interlocuo da linguagem humorstica com outras formas de discurso. Sem

    desconsiderar o primor dos demais trabalhos apresentados, e tendo em conta as

    abordagens diferenciadas, acreditamos que esse estudo tenha levado frente um

    procedimento analtico mais aprimorado sobre as peculiaridades da produo

    humorstica de Agostini, colocando em relevo suas virtudes e limitaes e os nexos

    estabelecidos com outras redes culturais e polticas. nesse ponto, da analise sobre

    como o texto humorstico contribuiu para o desenvolvimento de um debate em que se

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    entrecruzaram referncias mais complexas envolvendo o Estado imperial e os poderes

    locais, que sua pesquisa se alinha s preocupaes prprias de uma histria das idias.

    No conjunto dos trabalhos mencionados verifica-se a ausncia de uma

    investigao acerca dos elementos do repertrio poltico-intelectual empregado na

    produo humorstica de Agostini para sistematizar suas crticas elite poltica imperial.

    Esse elemento analtico mostra-se fundamental para conferir uma dimenso

    diferenciada ao estudo acerca das representaes humorsticas sobre as transformaes e

    experincias sociais, culturais e polticas do final do sculo XIX.3

    Para alem da importncia, incontestvel, da obra de Agostini, esse tipo de analise

    mostra-se fundamental por favorecer a compreenso e a visualizao das idias e

    valores que nortearam alguns grupos, a poca considerados marginais, e dos

    procedimentos estticos, discursivos e polticos eleitos para conferir legitimidade aos

    seus projetos e sua produo humorstica. A esse aspecto soma-se a relevncia do

    exame critico dos estratagemas discursivos e visuais empregados na imprensa

    humorstica tornando-a, assim como as associaes, as sociedades e os meetings, um

    local ecltico de produo de cultura e um espao pblico alternativo utilizado por

    grupos marginalizados politicamente para encenao de prticas polticas e culturais

    novas e diversificadas no sculo XIX.

    Partilhamos da premissa de que a ao poltica coletiva alm de criar e/ou

    fortalecer laos comunitrios, engendra tambm novas formas culturais (ALMEIDA,

    2008). No caso em questo, estamos diante de uma forma de ao poltica que enredava

    multiplas leituras do passado, denotando uma conscincia histrica no discurso

    humorstico.

    3 Dentre vrios podemos citar:Ver Carvalho, J. M. A Formao das Almas. SP, Cia das Letras, 1990; CARVALHO, J.M, Os Bestializados e a Republica que no foi. SP, Cia das Letras, 1987; CHAVES, M.T. A repblica consentida: cultura democrtica e cientfica do final do Imprio, RJ, Ed. FGV, 2007; Alencastro, L.F. (org.) Historia da Vida Privada no Brasil, SP, Cia das Letras, 1997, vol. 2; DUTRA, Eliane F. (org). Poltica, Nao e Edio: o lugar dos impressos na construo da vida poltica. SP, AnnaBlume, 2006; SALIBA, Elias T. Razes do Riso: a representao humorstica na historia brasileira da Belle epoque aos primeiros tempos do Radio. SP, Cia das Letras, 2002; JANOVITCH, Paula E. Preso por Trocadilho: a imprensa narrativa irreverente paulistana 1900-1911, SP, Alameda, 2006.

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    O principal mrito dessa proposta analitica est em assinalar, atravs da

    problematizao das formas de ao poltica, intelectual e social via humor, a

    compreenso que os intelectuais humoristas tinham de seu papel poltico.

    Finalmente, cabe destacar que essa proposta analtica refora a tendncia de

    valorizao do recurso a fontes visuais incorporando uma forma de abordagem ainda

    pouco contemplada no mbito da histria poltica do Brasil: a produo humorstica

    como recurso de luta e resistncia poltica. Ou seja, o estudo das imagens humorsticas

    produzidas por atores polticos contrrios ou situados margem do sistema, mas cuja

    produo tem como finalidade promover uma postura independente e inconformada

    perante as prticas e valores disseminados pela ordem vigente.

    Tal proposio coloca em relevo formas diversificadas e menores de disputa e

    mobilizao poltica entre grupos/classes, geradas por vezes em espaos no

    institucionais de debate poltico, como no interior da imprensa humorstica. Nesse

    sentido o humor privilegiado como um dos vestgios (GINZBURG, 1989) que nos

    possibilita identificar formas de organizao e manifestao poltica desenvolvida por

    uma produo cultural considerada, no mento de sua produo, marginal.

    As charges e caricaturas analisadas servem como uma espcie de espelho

    deformado das pelejas polticas existentes num determinado momento histrico,

    sobretudo porque foram produzidas paralelamente ao desenrolar dos acontecimentos,

    cotidianamente, expressando reaes momentneas s discusses que lhes cercavam.

    Esses desenhos expressaram formas de articulaes com diversos campos da vida

    social, expuseram o grau de frustrao do homem comum e orientaram o entendimento

    dos leitores para as formas de encaminhamento dos processos sociais e polticos.

    Uma vez que tais desenhos so reconhecidos como fenmenos culturais e sociais

    (LE GOFF, 1997) que expressam, atravs de suportes formais, representaes sobre

    uma dada realidade social, mostra-se pertinente captar esse sentido nessas fontes sem

    que isso signifique, necessariamente, adentrar no estudo crtico de suas especificidades.

    O cmico (representado por charges e caricaturas) passa da condio de mero

    instrumento de entretenimento para ser compreendido como um mecanismo de

    elaborao de reflexo social, bem como pode ser entendido como um modo discursivo

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    de resistncia ao exprimir, atravs da ironia, as crticas s instituies formais e aos

    grupos polticos estabelecidos, sugerindo a existncia de campos de tenso discursivos.

    Esse tipo de anlise contribui para ampliar o leque de alternativas para a

    compreenso das lutas polticas entre e/ou intraclasses, valorizando e cedendo espao

    para possibilidades de manifestaes ainda no devidamente contempladas. uma

    perspectiva que corrobora com o pressuposto de que nas relaes de dominao, os

    dominantes no anulam os dominados, ainda que haja desequilbrio de fora entre os

    dois lados (GOMES, 2005: 24).

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