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88 ecopolítica, 11: jan-abr, 2015 Foucault em silêncio, 88-102 Foucault em silêncio Silence in Foucault Tony Hara Doutor em História pela Unicamp, autor do livro Ensaios sobre a Singularidade (Intermeios, 2012), organizador da Coleção Doc.Londrina (Kan). Contato: hara.tony@ gmail.com RESUMO: Há certos momentos em que sentimos que o fundamental já foi dito. O que nos resta é aprender e praticar transformar o que foi dito em algo nosso. Esse texto é um exercício de assimilação das ideias de Michel Foucault sobre o silêncio. Palavras-chave: Práticas de si, Ética, Silêncio, Escuta. ABSTRACT: There are moments when we feel that the fundamental has already been said. What remains is to learn and to practice. Turn what was said in our something. This text is an assimilation exercise from Michel Foucault’s ideas about silence. Keywords: Practices of the self, Ethics, Silence, Listen. HARA, Tony (2015). Foucault em silêncio. Revista Ecopolítica, n. 11, jan-abr, pp. 2-27.

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  • 88ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    Foucault em silncioSilence in Foucault

    Tony HaraDoutor em Histria pela Unicamp, autor do livro Ensaios sobre a Singularidade (Intermeios, 2012), organizador da Coleo Doc.Londrina (Kan). Contato: [email protected]

    RESUMO:H certos momentos em que sentimos que o fundamental j foi dito. O que nos resta aprender e praticar transformar o que foi dito em algo nosso. Esse texto um exerccio de assimilao das ideias de Michel Foucault sobre o silncio.Palavras-chave: Prticas de si, tica, Silncio, Escuta.

    ABSTRACT:There are moments when we feel that the fundamental has already been said. What remains is to learn and to practice. Turn what was said in our something. This text is an assimilation exercise from Michel Foucaults ideas about silence. Keywords: Practices of the self, Ethics, Silence, Listen.

    HARA, Tony (2015). Foucault em silncio. Revista Ecopoltica, n. 11, jan-abr, pp. 2-27.

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    Foucault em silncio, 88-102

    Penso que qualquer criana que foi educada em um meio catlico

    logo antes ou durante a Segunda Guerra Mundial pde comprovar

    que existem inmeras maneiras diferentes de falar, e tambm inmeras

    formas de silncio. Alguns silncios podiam implicar uma hostilidade

    virulenta; outros, em compensao, eram o ndice de uma amizade

    profunda, de uma admirao emocionada, at mesmo de um amor.

    Lembro-me muito bem que, quando encontrei o cineasta Daniel Schmid,

    que veio visitar-me no sei mais por que razo, ele e eu descobrimos,

    no espao de alguns minutos, que no tnhamos realmente nada a nos

    dizer. Ficamos, assim, juntos entre trs horas da tarde e meia-noite.

    Bebemos, fumamos haxixe, jantamos. E no penso que falamos mais do

    que 20 minutos durante essas 10 horas. Isso foi o ponto de partida de

    uma amizade bastante longa. Era, para mim, a primeira vez que uma

    amizade comeava a nascer em uma relao estritamente silenciosa.1

    possvel que outro elemento dessa apreciao do silncio tenha a

    ver com a obrigao de falar. Passei a minha infncia em um meio

    pequeno-burgus, o da Frana provincial, e a obrigao de falar, de

    conversar com os visitantes era, para mim, algo, ao mesmo tempo,

    muito estranho e muito maante. Eu me perguntei, muitas vezes, porque

    as pessoas sentiam a obrigao de falar. O silncio pode ser um modo

    de relao to mais interessante!2

    E depois Foucault era muito solitrio; estudava o tempo todo e no

    se ligava a ningum.

    Um dia, um pouco antes do concurso, fomos procurar informaes

    1 Michel Foucault. Uma entrevista de Michel Foucault por Stephen Riggins. In: Ditos & Escritos v. IX: Genealogia da tica, subjetividade e sexualidade. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2014. p.192

    2 Idem. p.193

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    Foucault em silncio, 88-102

    na faculdade. Caminhamos durante quinze minutos e ele me disse: Este o primeiro recreio que me permito esse ano. Um recreio de um quarto de hora!

    O mais grave, o mais perigoso, o mais assustador so os bombardeiros

    que no poupam a cidade de Poitiers. As tropas inglesas miram a estao

    e a ferrovia. Durante os alarmes os alunos correm a se refugiar nos

    abrigos. Em julho de 1944 vrios bairros prximos estao devero ser

    evacuados por medida de precauo. A rue Arthur-Rane faz parte das

    reas de risco. Assim, toda a famlia Foucault se instala em Vendeuvre,

    onde passa o vero. 3

    A ameaa de guerra era nossa tela de fundo, no quadro de nossa

    existncia. Depois, veio a guerra. Muito mais do que as cenas da vida

    familiar, so esses acontecimentos concernentes ao mundo que so a

    substncia de nossa memria. Eu digo nossa memria, porque estou

    quase certo de que a maioria dos jovens franceses e das jovens francesas

    da poca viveu a mesma experincia. Pesava sobre nossa vida privada

    uma verdadeira ameaa. , talvez, a razo pela qual sou fascinado pela

    histria e pela relao entre experincia pessoal e os acontecimentos

    nos quais nos inscrevemos. Est a, penso, o ncleo de meus desejos

    tericos.

    No sabamos se amos morrer ou sobreviver, eu s sabia uma coisa:

    a vida na escola era um ambiente protegido das ameaas exteriores,

    protegido da poltica. E a ideia de viver protegido em um ambiente de

    estudo, em um meio intelectual sempre me fascinou. O saber, para mim,

    o que deve funcionar como o que protege a existncia individual e

    o que permite compreender o mundo exterior. Eu penso que isso. O

    saber como um meio de sobreviver, graas compreenso.

    3 Didier Eribon. Michel Foucault (1926-1984). Trad. Hildegard Feist. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.28

  • 91ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    Voc poderia dizer algumas palavras dos seus estudos em Paris? Algum

    teve uma influncia particular sobre o trabalho que voc faz hoje? Ou, ento,

    h professores aos quais voc sente reconhecimento, por razes pessoais?

    No, eu fui aluno de Althusser, e, na poca, as principais correntes

    filosficas na Frana eram o marxismo, o hegelianismo e a fenomenologia.

    Eu os estudei, claro, mas o que me deu, pela primeira vez, o desejo

    de cumprir um trabalho pessoal foi a leitura de Nietzsche.4

    solido! solido, minha ptria! Quo feliz e meiga me fala a tua

    voz! bem-aventurado silncio que me envolve!

    Mas, l embaixo tudo fala e nada ouvido. Pode algum repicar

    com sinos a sua sabedoria: os merceeiros na feira lhe cobriro o som

    com o tinir das moedas! Tudo, entre eles, fala, ningum sabe mais

    compreender. Tudo, entre eles, fala, nada se realiza a contento. Tudo

    cacareja, mas quem quer, ainda, ficar quieto no ninho chocando ovos?5

    Zaratustra, O Regresso.

    Eu penso que o silncio uma das coisas s quais, infelizmente,

    nossa sociedade renunciou. No temos a cultura do silncio, tambm no

    temos a cultura do suicdio. Os japoneses, sim. Ensinava-se aos jovens

    romanos e aos jovens gregos a adotar diversos modos de silncio, em

    funo das pessoas com as quais eles se encontravam. O silncio,

    poca, figurava um modo bem particular de relao com os outros. O

    silncio , eu penso, algo que merece ser cultivado. Sou favorvel a que

    se desenvolva esse thos do silncio.6

    4 Michel Foucault. Uma entrevista de Michel Foucault por Stephen Riggins. In: Ditos & Escritos v. IX: Genealogia da tica, subjetividade e sexualidade. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2014. p.196-97

    5 Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ningum. Trad. Mrio da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1987. p.191

    6 Michel Foucault. Uma entrevista de Michel Foucault por Stephen Riggins. In: Ditos

  • 92ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    No se deve fazer diviso binria entre o que se diz e o que no

    se diz; preciso tentar determinar as diferentes maneiras de no dizer,

    como so distribudos os que podem e os que no podem falar, que tipo

    de discurso autorizado ou que forma de discrio exigida a uns e

    outros. No existe um s, mas muitos silncios e so parte integrante

    das estratgias que apoiam e atravessam os discursos.7

    preciso que as vozes de um nmero incalculvel de sujeitos falantes

    ecoem e se faa falar uma inumervel experincia. No necessrio que

    o sujeito falante seja sempre o mesmo. No necessrio que somente

    ecoem as palavras normativas da filosofia. preciso fazer falar todas

    as espcies de experincias, dar ouvidos aos afsicos, aos excludos, aos

    moribundos, pois estamos no exterior, enquanto so eles que efetivamente

    enfrentam o aspecto sombrio e solitrio das lutas. Creio que a tarefa de

    um praticante da filosofia, vivendo no Ocidente, dar ouvidos a todas

    essas vozes.8

    O Grupo de Informaes sobre as Prises acaba de lanar sua primeira

    inquirio. No uma inquirio de socilogos. Trata-se de dar a palavra

    queles que tm uma experincia da priso. No porque eles precisem que

    os ajudemos a tomar conscincia: a conscincia da opresso est ali,

    perfeitamente clara, sabendo muito bem quem o inimigo. Mas o sistema

    atual lhe recusa os meios de se formular, de se organizar.

    & Escritos v. IX: Genealogia da tica, subjetividade e sexualidade. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2014. p.193

    7 Michel Foucault. Histria da sexualidade v.I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988. p.30

    8 Michel Foucault. Metodologia para o conhecimento do mundo: como se desembaraar do marxismo. In: Ditos & Escritos v.VI: Repensar a poltica. Trad. Ana Lcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010. p.207

  • 93ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    Queremos quebrar o duplo isolamento no qual se encontram

    enclausurados os detentos: atravs de nossa inquirio, queremos que

    eles possam se comunicar entre si, transmitir o que sabem e falar-se

    de priso a priso, de cela a cela. Queremos que eles se dirijam

    populao e que a populao lhes fale. preciso que essas experincias,

    essas revoltas isoladas se transformem em saber comum e em prtica

    coordenada.

    Nossa inquirio no foi feita para acumular conhecimentos, mas para

    aumentar nossa intolerncia e fazer dela uma intolerncia ativa.9

    Um delinquente arrisca a sua vida contra castigos abusivos; um louco

    no suporta mais estar preso e decado; um povo recusa o regime que

    o oprime. Isso no torna o primeiro inocente, no cura o outro, e no

    garante ao terceiro os dias prometidos. Ningum, alis, obrigado a ser

    solidrio a eles. Ningum obrigado a achar que aquelas vozes confusas

    cantam melhor do que as outras e falam a essncia do verdadeiro.

    Basta que elas existam e que tenham contra elas tudo o que se obstina

    em faz-las calar, para que faa sentido escut-las e buscar o que elas

    querem dizer. Questo moral? Talvez. Questo de realidade, certamente.

    Todas as desiluses da histria de nada valem; por existirem tais

    vozes que o tempo dos homens no tem a forma da evoluo, mas

    justamente a da histria.10

    Em meio ao mundo sereno da doena mental, o homem moderno no

    se comunica mais com o louco; h de um lado o homem de razo que

    9 Michel Foucault. Sobre as Prises. In: Ditos & Escritos v.IV: Estratgia, poder-saber. Trad. Vera Lucia Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010. p.4

    10 Michel Foucault. intil revoltar-se?. In: Ditos & Escritos v.V: tica, Sexualidade, Poltica. Trad. Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006. p.80

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    Foucault em silncio, 88-102

    delega o mdico para a loucura, autorizando assim a relao apenas por

    meio da universalidade abstrata da doena; h por outro lado, o homem

    da loucura que comunica com o outro somente pelo intermedirio de

    uma razo completamente abstrata, que ordem, coero fsica e moral,

    presso annima do grupo, exigncia de conformidade. Linguagem

    comum no h; ou melhor, no h mais; a constituio da loucura como

    doena mental, no fim do sculo XVIII, comprova o dilogo rompido,

    d a separao como j adquirida, e enterra no esquecimento todas essas

    palavras imperfeitas, sem sintaxe fixa, um tanto balbuciantes, nas quais

    se fazia a troca da loucura e da razo. A linguagem da psiquiatria, que

    monlogo da razo sobre a loucura, s pde se estabelecer sobre tal

    silncio.

    No quis fazer a histria dessa linguagem, mas sim a arqueologia

    desse silncio.11

    Em um livro publicado em 1840 e dedicado ao tratamento moral

    da loucura, um psiquiatra francs, Leuret, expe a maneira pela qual

    havia tratado um de seus pacientes de quem havia tratado e,

    naturalmente, como vocs podem imaginar, curado. Certa manh, Leuret

    faz o Sr. A. entrar no banheiro, fazendo com que ele lhe conte seu

    delrio detalhadamente. Mas tudo isso, retrucou o mdico, no passa

    de loucura. Voc vai me prometer que no acreditar mais nisso. O

    paciente hesita, mas depois promete. Isso no basta, retruca o mdico,

    voc j me fez esse tipo de promessas e depois no as manteve.

    Abre ento a torneira de gua fria em cima da cabea de seu paciente.

    Sim, sim, sou louco!, grita o paciente. O jato de gua interrompido,

    e o interrogatrio recomea. Sim, reconheo que sou louco, repete o

    paciente. Mas, acrescenta ele, eu s o reconheo porque voc est

    11 Michel Foucault. Prefcio (Folie et draison). In: Ditos & Escritos v.I: Problematizaes do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanlise. Trad. Vera Lcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1999. p.141

  • 95ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    me forando. Novo jato de gua fria. Est bem, est bem, diz o Sr.

    A., eu reconheo. Sou louco, e tudo isso no passa de loucura.

    [...] Desde a poca faz 20 anos aproximadamente em que li

    pela primeira vez esse trecho de Leuret, mantive em mente o projeto

    de analisar a forma e a histria dessa prtica singular. Leuret apenas

    se satisfaz quando seu paciente declara: Sou louco, ou melhor: Tudo

    isso no passa de loucura. Ele se baseia na hiptese de que a loucura

    como realidade desaparece a partir do momento em que o paciente

    reconhece a verdade e declara ser louco. Em que concepo da verdade

    do discurso e da subjetividade se baseia essa prtica singular, e, no

    entanto, to habitual?12

    Imagine-se como deve ter parecido exorbitante, no incio do sculo

    XIII, a ordem dada a todos os cristos para se ajoelharem, pelo menos

    uma vez por ano, e confessar todas as suas culpas, sem omisso de

    uma s.13

    Em todo caso, alm dos rituais probatrios, das caues dadas pela

    autoridade da tradio, alm dos testemunhos, e tambm dos procedimentos

    cientficos de observao e de demonstrao, a confisso passou a ser,

    no Ocidente, uma das tcnicas mais altamente valorizadas para produzir

    a verdade. Desde ento nos tornamos uma sociedade singularmente

    confessanda. A confisso difundiu amplamente seus efeitos: na justia, na

    medicina, na pedagogia, nas relaes familiares, nas relaes amorosas,

    na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes; confessam-se passado

    12 Michel Foucault. Sexualidade e Solido. In: Ditos & Escritos v.V: tica, Sexualidade, Poltica. Trad. Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006. p.92

    13 Michel Foucault. Histria da sexualidade v.I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988. p.60

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    Foucault em silncio, 88-102

    e sonhos, confessa-se a infncia; confessam-se as prprias doenas e

    misrias; emprega-se a maior exatido para dizer o mais difcil de ser

    dito; confessa-se em pblico, em particular, aos pais, aos educadores,

    ao mdico, queles a quem se ama; fazem-se a si prprios, no prazer

    e na dor, confisses impossveis de confiar a outrem, com o que se

    produzem livros. Confessa-se ou se forado a confessar. Quando a

    confisso no espontnea ou imposta por algum imperativo interior,

    extorquida; desencavam-se na alma ou arrancam-na ao corpo. A partir

    da Idade Mdia, a tortura a acompanha como uma sombra, e a sustenta

    quando ela se esquiva: gmeos sinistros. Tanto a ternura mais desarmada

    quanto os mais sangrentos poderes tm necessidade de confisses. O

    homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente.14

    A obrigao da confisso nos , agora, imposta a partir de tantos

    pontos diferentes, j est to profundamente incorporada a ns que no

    a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage; parece-nos,

    ao contrrio, que a verdade, na regio mais secreta de ns prprios,

    no demanda nada mais que revelar-se; e que, se no chega a isso,

    porque contida fora, porque a violncia de um poder pesa sobre ela

    e, finalmente, s se poder articular custa de uma espcie de liberao.

    A confisso libera, o poder reduz ao silncio; a verdade no pertence

    ordem do poder mas tem um parentesco originrio com a liberdade:

    eis a alguns temas tradicionais da filosofia que uma histria poltica

    da verdade deveria resolver, mostrando que nem a verdade livre por

    natureza nem o erro servo: que sua produo inteiramente infiltrada

    pelas relaes de poder. A confisso um bom exemplo.15

    Tentei sair da filosofia do sujeito fazendo uma genealogia do sujeito

    14 Idem. p.59

    15 Idem. p.60

  • 97ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    moderno, que abordo como uma realidade histrica e cultural; ou seja,

    como alguma coisa capaz de se transformar, o que, obviamente,

    importante do ponto de vista poltico. A partir desse projeto geral, so

    possveis dois modos de abordagem. Uma das maneiras de abordar o

    sujeito em geral consiste no exame das construes tericas modernas.

    Nessa perspectiva, tentei analisar as teorias do sujeito como ser que

    fala, vive e trabalha, nos sculos XVII e XVIII. Mas tambm possvel

    apreender a questo do sujeito de maneira mais prtica, a partir do

    estudo das instituies que fizeram, de certos sujeitos, objetos de saber

    e de dominao: os asilos, as prises...

    Gostaria de estudar as formas de apreenso que o sujeito cria a

    respeito dele mesmo. Porm, uma vez que comecei pelo segundo tipo

    de abordagem, devo mudar de opinio sobre vrios pontos. Permitam-me

    fazer aqui, de qualquer forma, a minha autocrtica. Talvez seja possvel,

    se nos ativssemos a certas proposies de Habermas, distinguir trs tipos

    principais de tcnicas: as tcnicas que permitem produzir, transformar,

    manipular coisas; as tcnicas que permitem utilizar sistemas de signos; e,

    finalmente, as tcnicas que permitem determinar a conduta dos indivduos,

    impor certas finalidades ou determinados objetivos. Temos ento as

    tcnicas de produo, as tcnicas de significao ou de comunicao, e

    as tcnicas de dominao. Fui me dando conta, pouco a pouco, de que

    existe, em todas as sociedades, um outro tipo de tcnica; aquelas que

    permitem aos indivduos realizar, por eles mesmos, um certo nmero de

    operaes em seu corpo, em sua alma, em seus pensamentos, em suas

    condutas, de modo a produzir neles uma transformao, uma modificao,

    e a atingir um certo estado de perfeio, felicidade, de pureza, de poder

    sobrenatural. Chamemos essas tcnicas de tcnicas de si.16

    16 Michel Foucault. Sexualidade e Solido. In: Ditos & Escritos v.V: tica, Sexualidade, Poltica. Trad. Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006. p.95

  • 98ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    Parece-me que na ascese pag, na ascese filosfica, na ascese da

    prtica de si da poca de que lhes falo, trata-se de encontrar a si mesmo

    em um movimento cujo momento essencial no a objetivao de si em

    um discurso verdadeiro [o momento da confisso], mas a subjetivao

    de um discurso verdadeiro em uma prtica, em um exerccio de si

    sobre si. No fundo, esta espcie de diferena fundamental que venho

    tentando fazer aparecer desde o incio deste curso [A hermenutica

    do sujeito]. Procedimento de subjetivao do discurso verdadeiro,

    isto que encontraremos continuamente expresso nos textos de Sneca

    quando, a respeito do saber, da linguagem do filsofo, da leitura, da

    escrita, das anotaes, etc., ele afirma: trata-se de fazer suas (facere

    suum) as coisas que se sabe, fazer seus os discursos que se ouve,

    fazer seus os discursos que se reconhece como verdadeiros ou que nos

    foram transmitidos como verdadeiros pela tradio filosfica. Fazer sua

    a verdade, tornar-se sujeito de enunciao do discurso verdadeiro: isto,

    creio, o prprio cerne desta ascese filosfica.17

    Primeiramente pois, escutar. Pode-se dizer que escutar com efeito o

    primeiro passo, o primeiro procedimento na ascese e na subjetivao do

    discurso verdadeiro, uma vez que escutar, em uma cultura que sabemos bem

    ter sido fundamentalmente oral, o que permitir recolher o lgos, recolher

    o que se diz de verdadeiro. A escuta ser o primeiro momento deste

    procedimento pelo qual a verdade ouvida, a verdade escutada e recolhida

    como se deve, ir de algum modo entranhar-se no sujeito, incrustar-se nele

    e comear a tornar-se suus (a tornar-se sua) e a constituir assim a matriz

    do thos. A passagem da altheia ao thos (do discurso verdadeiro ao que

    ser regra fundamental de conduta) comea seguramente com a escuta.18

    17 Michel Foucault. A hermenutica do sujeito. Trad. Mrcio Alves da Fonseca e Salma Muchail. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p.401

    18 Idem. p.402

  • 99ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    Tagarelice constitui o primeiro vcio do qual necessrio curar-se

    quando se comea a aprender filosofia e nela se iniciar. Plutarco faz da

    aprendizagem do silncio um dos elementos essenciais da boa educao.

    O silncio, diz ele no Tratado sobre a tagarelice, tem alguma coisa de

    profundo, de misterioso e de sbrio. Foram os deuses que ensinaram o

    silncio aos homens e foram os homens que nos ensinaram a falar. (...)

    Segundo Plutarco, no tagarela o ouvido no se comunica diretamente com

    a alma: o ouvido se comunica diretamente com a lngua. De modo que,

    assim que uma coisa acaba de ser dita, ela passa imediatamente para a

    lngua, e ento se perde. Tudo o que o tagarela recebe pelo ouvido escoa,

    derrama-se de imediato no que ele diz e, derramando-se no que ele diz,

    a coisa ouvida no pode produzir nenhum efeito sobre a prpria alma.

    O tagarela sempre um recipiente vazio. O tagarela incurvel, pois s

    se pode curar esta paixo da tagarelice, assim como as outras paixes,

    pelo lgos. Ora, o tagarela algum que no retm o lgos, que o deixa

    derramar-se de imediato no seu prprio discurso. Consequentemente, no

    se pode curar o tagarela, a menos que ele queira se calar.19

    Da toda uma srie de conselhos tradicionalmente dados nesta tica da

    escuta: quando se ouvir algum dizer alguma coisa de importante, no

    se colocar imediata e interminavelmente a discuti-la; procurar recolher-se,

    guardar silncio para melhor gravar o que se ouviu, e fazer um rpido

    exame de si mesmo aps a lio que se ouviu ou a conversa que se acabou

    de ter; lanar um rpido olhar sobre si mesmo para ver como se est, para

    examinar se o que se ouviu e aprendeu constitui uma novidade em relao

    ao equipamento (a paraskeu) de que j se dispunha e ver, consequentemente,

    em que medida e at que ponto foi possvel aperfeioar-se.20

    19 Idem. p.411

    20 Idem. p. 421

  • 100ecopoltica, 11: jan-abr, 2015

    Foucault em silncio, 88-102

    Nestas prticas de apropriao do discurso verdadeiro, no se trata de

    aprender a verdade, nem sobre o mundo nem sobre si mesmo, mas de

    assimilar, no sentido quase fisiolgico do termo, discursos verdadeiros

    que sejam auxiliares para afrontar os acontecimentos externos e as

    paixes interiores. O lgos deve atualizar a retido da ao, mais do

    que a perfeio do conhecimento.21

    Em seu curso sobre a hermenutica do sujeito se encontra um trecho

    no qual o senhor diz que o nico ponto original e til de resistncia ao

    poder poltico est na relao de si consigo mesmo.

    No acredito que o nico ponto de resistncia possvel ao poder

    poltico entendido justamente como estado de dominao esteja na

    relao de si consigo mesmo. Digo que a governabilidade implica a

    relao de si consigo mesmo, o que significa justamente que, nessa

    noo de governabilidade, viso ao conjunto das prticas pelas quais

    possvel constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratgias que os

    indivduos, em sua liberdade, podem ter uns em relao aos outros. So

    indivduos livres que tentam controlar, determinar, delimitar a liberdade

    dos outros e, para faz-lo, dispem de certos instrumentos para governar

    os outros. Isso se fundamenta ento na liberdade, na relao consigo

    mesmo e na relao com o outro. Ao passo que, se voc tentar analisar

    o poder no a partir da liberdade, das estratgias e da governabilidade,

    mas a partir da instituio poltica, s poder encarar o sujeito como

    sujeito de direito. Temos um sujeito que era dotado de direitos ou que

    no o era e que, pela instituio da sociedade poltica, recebeu ou perdeu

    direitos: atravs disso, somos remetidos a uma concepo jurdica do

    sujeito. Em contrapartida, a noo de governabilidade permite, acredito,

    21 Frdric Gros. Situao do curso. In: A hermenutica do sujeito. Trad. Mrcio Alves da Fonseca e Salma Muchail. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p 639

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    Foucault em silncio, 88-102

    fazer valer a liberdade do sujeito e a relao com os outros, ou seja, o

    que constitui a prpria matria tica.

    O senhor pensa que a tarefa da filosofia advertir dos perigos do

    poder?

    Essa sempre foi uma grande funo da filosofia. Em sua vertente

    crtica entendo crtica no sentido amplo a filosofia justamente

    o que questiona todos os fenmenos de dominao em qualquer nvel e

    em qualquer forma com que eles se apresentem poltica, econmica,

    sexual, institucional. Essa funo crtica da filosofia decorre, at certo

    ponto, do imperativo socrtico: Ocupa-te de ti mesmo, ou seja:

    Constitua-te livremente, pelo domnio de ti mesmo.22

    Eu o li [Nietzsche] apaixonadamente e rompi com minha vida,

    abandonei o emprego no hospital psiquitrico, deixei a Frana: tinha o

    sentimento de ter sido capturado. Atravs de Nietzsche, tinha me tornado

    estranho a todas essas coisas. Nem sempre estou bem integrado vida

    social e intelectual francesa. Se eu fosse mais jovem, teria emigrado

    para os Estados Unidos.

    Por qu?

    Vislumbro oportunidades aqui. Vocs no tm uma vida intelectual e

    cultural homognea. Como estrangeiro, no tenho que me integrar. Nenhuma

    presso se exerce sobre mim. H aqui muitas grandes universidades,

    todas com interesses diferentes. Mas, certamente, a universidade poderia

    me excluir da maneira mais indigna.

    O que o leva a dizer que a universidade poderia exclu-lo?

    Tenho muito orgulho de que certas pessoas pensem que represento

    um perigo para a sade intelectual dos estudantes. Quando as pessoas

    comeam a raciocinar nas atividades intelectuais em termos de sade,

    22 Michel Foucault. A tica do cuidado de si como prtica da liberdade. In: Ditos & Escritos v.V: tica, Sexualidade, Poltica. Trad. Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006. p.286-87

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    Foucault em silncio, 88-102

    porque alguma coisa no vai muito bem. Para eles, sou um homem

    perigoso, j que sou um criptomarxista, um irracionalista, um niilista.23

    As palavras mais quietas so as que trazem tempestades. Pensamentos que

    vm com ps de pombas dirigem o mundo.24

    Zaratustra, A hora mais quieta.

    23 Michel Foucault. Verdade, poder e si mesmo. In: Ditos & Escritos v.V: tica, Sexualidade, Poltica. Trad. Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006. p.298

    24 Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ningum. Trad. Mrio da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1987. p.158