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59 Educação e Filosofia Uberlândia, v. 28, n. 55, p. 59-98, jan./jun. 2014. ISSN 0102-6801 SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA “TRADUTIBILIDADE” NOS CADERNOS DO CÁRCERE DE ANTONIO GRAMSCI E ALGUMAS DAS SUAS IMPLICAÇÕES Rocco Lacorte * RESUMO A questão sintetizada no título deste ensaio é de grande atualidade pelo fato de que o conceito expresso pela palavra “tradutibilidade” não implica apenas uma “tradução” entre linguagens em sentido estrito, mas, acima de tudo, um conceito revolucionário: aquele original e inovador de tradução entre “teoria” e “prática”, filosofia e política, entendidas como “linguagens”, embora em um sentido mais forte e amplo (por isso, coloquei – e o próprio Gramsci frequentemente coloca – estas palavras entre aspas). É minha intenção explicar as razões disso ao longo desta exposição. Por agora, pode-se antecipar que a tradutibilidade é a teoria da tradução entendida de uma forma que incorpora criticamente o velho no novo significado, mais amplo e forte, sendo, ao mesmo tempo, a condição (historicamente dada) para pensar de forma nova na possibilidade de construir política e historicamente uma “igualdade real” entre seres humanos, de modo a superar a atávica separação entre dominantes e subalternos, dirigentes e dirigidos, na medida em que pensa contemporaneamente na realidade do novo conceito de equivalência entre “teoria” e “prática” como elemento de hegemonia política – elemento que é ele mesmo político e, por isso, histórico. É isto que revela o coração da filosofia da práxis de Gramsci e permite entendê-la em profundidade. Desta “tradutibilidade” deriva uma série de critérios para interpretar a realidade. Portanto, a tradutibilidade expressa não só um jeito novo de ver o mundo e de construção do pensamento, mas implica também uma nova consciência. Isto é, a tradutibilidade é o conceito por meio do qual pensa-se na teoria como algo que muda (ou pode mudar) o mundo; e na prática como algo que mudando o mundo muda (ou pode mudar) também a teoria. Iluminada com o conceito de tradutibilidade, entende-se porque * Rocco Lacorte é Ph.D. pela University of Chicago (Illinois, EUA). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE) da UFF.

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    SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA TRADUTIBILIDADE NOS CADERNOS DO CRCERE DE ANTONIO GRAMSCI E

    ALGUMAS DAS SUAS IMPLICAES

    Rocco Lacorte *

    RESUMO

    A questo sintetizada no ttulo deste ensaio de grande atualidade pelo fato de que o conceito expresso pela palavra tradutibilidade no implica apenas uma traduo entre linguagens em sentido estrito, mas, acima de tudo, um conceito revolucionrio: aquele original e inovador de traduo entre teoria e prtica, filosofia e poltica, entendidas como linguagens, embora em um sentido mais forte e amplo (por isso, coloquei e o prprio Gramsci frequentemente coloca estas palavras entre aspas). minha inteno explicar as razes disso ao longo desta exposio. Por agora, pode-se antecipar que a tradutibilidade a teoria da traduo entendida de uma forma que incorpora criticamente o velho no novo significado, mais amplo e forte, sendo, ao mesmo tempo, a condio (historicamente dada) para pensar de forma nova na possibilidade de construir poltica e historicamente uma igualdade real entre seres humanos, de modo a superar a atvica separao entre dominantes e subalternos, dirigentes e dirigidos, na medida em que pensa contemporaneamente na realidade do novo conceito de equivalncia entre teoria e prtica como elemento de hegemonia poltica elemento que ele mesmo poltico e, por isso, histrico. isto que revela o corao da filosofia da prxis de Gramsci e permite entend-la em profundidade. Desta tradutibilidade deriva uma srie de critrios para interpretar a realidade. Portanto, a tradutibilidade expressa no s um jeito novo de ver o mundo e de construo do pensamento, mas implica tambm uma nova conscincia. Isto , a tradutibilidade o conceito por meio do qual pensa-se na teoria como algo que muda (ou pode mudar) o mundo; e na prtica como algo que mudando o mundo muda (ou pode mudar) tambm a teoria. Iluminada com o conceito de tradutibilidade, entende-se porque

    * Rocco Lacorte Ph.D. pela University of Chicago (Illinois, EUA). Membro do Ncleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Poltica e Educao (NuFiPE) da UFF.

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    a filosofia da prxis se pe como objetivo fundamental realizar uma grande reforma intelectual e moral das massas populares, por meio de um trabalho poltico-pedaggico-cultural, de modo a traduzir suas lutas e aspiraes em uma nova e revolucionria filosofia e realidade.

    Palavras-chave: Tradutibilidade. Linguagem. Filosofia. Poltica. Prxis.

    ABSTRACT

    Translatability is a concept in Gramscis work that has been largely unexplored and has only recently gained the attention of some scholars for its centrality to Gramscis thought. So far, almost all the studies on Gramsci have essentially ignored the importance of this concept to the interpretation of his thought, work and biography on the whole. According to him, translatability is the theory of the concrete unification of practice and theory, that is, of how to radically change world; it theorizes both on the practical power and effectiveness of theory (i.e. on the impossibility of its transcendence) and on the knowledge power of practice. In other words, translatability means that practice and theory, as activities that belong to the same world-view or express the same culture, are not in contradiction one to the other (as, on the contrary, the main Western tradition of thought holds) and therefore are translatable. And indeed this is an innovative way of positing the conditions for thinking reality and praxis that we are going to explore in this brief essay.

    Keywords: Translatability. Language. Philosophy. Politics. Praxis.

    1 A tradutibilidade como fuso de paradigmas diferentes

    Embora esteja presente tambm nos escritos juvenis, sobretudo em sua obra Cadernos do Crcere, a partir de 1930, que Antonio Gramsci desenvolve terica e explicitamente a tradutibilidade. Como veremos, no Q 8, 2081, escrito no inverno-primavera de 1932 e dedicado explicitamente

    1 De agora em diante, as referncias aos Cadernos do Crcere so a traduo pessoal da edio crtica GRAMSCI, A. Quaderni del carcere, V. Gerratana (Org.). Torino: Einaudi, 1975, e sero sinalizadas com a letra Q (Quaderni del crcere), seguida pelo nmero do pargrafo e o nmero da pgina. Quando for necessrio, indicarei (s vezes mudando-a um

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    a este conceito, ele elabora de forma terica geral uma ideia que Marx desdobra e pressupe em todas as Teses sobre Feuerbach (1844) e, ao mesmo tempo, repensa o significado dos textos marxianos estimulado pelos eventos histricos de seu tempo, a Revoluo Russa e a sua traduo para a experincia dos Conselhos de fbrica em Turim, da qual o prprio Gramsci foi um dos organizadores e lderes polticos mais importantes. Ao mesmo tempo, interpreta estes fenmenos histricos, ajuntando-se com as ideias expressas na linguagem marxiana e leniniana, as quais so as fontes principais da tradutibilidade (como destacar o prprio Gramsci nos pargrafos dedicados a este tema).

    Antes de analisar o Q 8, 208, cabe destacar que a unidade de teoria e prtica possvel porque, segundo o autor dos Cadernos, existe a possibilidade de traduzir estes dois elementos. Por um lado, eles podem ser traduzidos duma maneira parecida, em um certo sentido, com a traduo entre linguagens (em particular a de que trata a cincia chamada lingustica histrica, que Gramsci estudou na Universidade de Torino com o Prof. Matteo Bartoli e continuou a estudar no crcere)2; por outro lado, essa traduo implica um trabalho poltico, no sentido amplo desta palavra, ou seja: um trabalho pedaggico-cultural, que se insere no quadro da transformao poltica da sociedade; e implica, tambm, um trabalho poltico, no sentido estrito, que necessrio para realizar a nova cultura e viso de mundo ou linguagem, como Gramsci tambm a chama.

    A tradutibilidade nasce absorvendo e fundindo no pensamento marxista essencialmente um paradigma de uma outra cincia, a lingustica histrica (seu conceito de lngua, linguagem e traduo); mas, obviamente, o paradigma da lingustica, ou melhor, todos paradigmas ou fontes que

    pouco) a traduo em portugus dos Cadernos do Crcere de, C. N. Coutinho (Edio e traduo). L. S. Henriques e M. A. Nogueira (Coedio). Rio Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001-2006.2 Entre os lingustas histricos que influenciaram fortemente Gramsci podemos lembrar, por exemplo, os italianos Graziadio Isaia Ascoli e Matteo Bartoli; os franceses Michel Bral, Antoine Meillet e, indiretamente, Ferdinand de Saussure (cf. LO PIPARO, 1979, p. 85-102); mas tambm o alemo Franz Nicolaus Finck, que ele traduziu no crcere. Contudo as ideias de Gramsci sobre a linguagem no so desenvolvidas s a partir de uma reflexo sobre obras de lingustica, h outros autores, filsofos, alm de Marx e Lnin que o influenciam, mas aqui no h espao para ampliar esta discusso.

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    entram nesta fuso, acabam por ser transformados (aqui, acenaremos apenas para duas destas fontes, embora centrais, e trataremos o assunto de forma muito simplificada). Se nos perguntarmos porque Gramsci indica explicitamente, como fontes da tradutibilidade, apenas Marx (em a Sagrada famlia e Teses) e Lnin (o que disse e escreveu no Q 7, 2, 854), uma possvel resposta pode ser, como argumentei em um outro ensaio3, que, neles, o autor dos Cadernos encontra embora mais implcita uma compreenso da linguagem ainda mais profunda que a da lingustica histrica (destacando seu papel poltico, no sentido amplo) e as coordenadas para impostar uma teoria absolutamente original e inovadora sobre as questes lingusticas; mas, acima de tudo, que a teoria marxiana e leniniana no estavam, apesar das diferenas, em contradio com as ideias da lingustica histrica (segundo as quais a linguagem um elemento social e histrico) como, ao contrrio, algum tentou defender4.

    3 LACORTE, R., 2012.4 Cf. Lo Piparo, F., (1979, p. 263), ainda que neste livro mostre otimamente a centralidade da reflexo sobre a linguagem em Gramsci, Lo Piparo chegar a teorizar o no marxismo dele, mesmo a partir desta prpria centralidade em conexo com as fontes do revolucionrio sardo. Para ele, Gramsci teria prevalentemente desenvolvido o liberalismo aberto contido na teoria lingustica de Graziadio Isaia Ascoli, da qual derivaria o conceito de hegemonia em relao ao de prestgio lingustico. Mas isto no bastaria para explicar a gnese deste conceito, como mostraram vrios outros estudiosos, entre os quais, por ex., BOOTHMAN, 2004; FROSINI, 2003 e 2010; SANGUINETI, 1981; SCHIRRU, 2005. Contudo, Lo Piparo no considera o papel da tradutibilidade em conexo com a teoria gramsciana da linguagem. Eu acho, ao contrrio, que devemos compreender que a teoria gramsciana da linguagem impensvel sem a tradutibilidade, cujas fontes principais, alis, como explicitamente indicado pelo prprio Gramsci, so Marx e Lnin as quais, a respeito da ideia da historicidade da linguagem, no esto em contradio com a teoria lingustica de Ascoli. Por isso, o alcanado por Lo Piparo o xito que se obtm por ele ter escolhido privilegiar umas fontes em lugar de outras e , portanto, um xito unilateral, que no por nada justificado pelos prprios textos, e at por ter deixado de lado as fontes marxiana e leniniana indicadas pelo prprio Gramsci. Esta concluso extremista pode-se vislumbrar j no livro de 1979 e se torna explcita no artigo: Studio del linguaggio e teoria gramsciana. In: Revista Critica Marxista. Roma: Editori Riuniti, 1987, n. 2/3, p. 16775. Para umas interpretaes em contratendncia se podem ler SCHIRRU, 2005 e alguns dos ensaios includos em IVES, P.; LACORTE, R. (Org.), 2010. Ultimamente, Lo Piparo (2010) tentou argumentar a influncia de Wittgenstein sobre Gramsci, via Piero Sraffa (amigo de Gramsci e colega de Sraffa na Universidade de Cambridge). Pretendemos tratar disto em um futuro ensaio, por agora, podemos afirmar que, ao ler este novo estudo, o que impacta o leitor que, para demonstrar a sua tese, Lo Piparo utiliza, entre outros, os textos da Carta para Tnia e o

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    A este respeito, o prprio autor dos Cadernos destaca que a ortodoxia do marxismo e da filosofia da prxis consiste no fato que ela basta a si mesma e no deve ser buscada nesta ou naquela tendncia ligada a correntes estranhas doutrina original (Q 11, 27, 1434 grifo meu). O estudo das fontes serve para iluminar a biografia intelectual de um autor, mas sua originalidade filosfica no pode ser reduzida a elas. Muito pelo contrrio, ela consiste no fato que o autor supera as suas prprias fontes. Spinoza, Feuerbach, Hegel, entre outros, no so de nenhum modo partes essenciais da filosofia da prxis, nem essa se reduz a elas, pois o que sobretudo interessa precisamente a superao das velhas filosofias, a nova sntese, o modo de conceber a filosofia (Q 11, 27, 1436). Estas palavras de Gramsci so dedicadas tanto a Marx como a si mesmo. E a tradutibilidade o lugar no qual o pensamento de Gramsci supera todas as suas fontes: os acontecimentos histricos vividos por ele, Croce, Labriola, Sorel, os pragmatistas, Bartoli, Brel, Ascoli, entre muitos outros, incluindo-se Marx, Engels e Lnin se bem que estes ltimos so constantemente indicados como os fundadores da filosofia que ele mesmo contribui a desenvolver coerentemente (Q 11, 27, 1436) e como os primeiros elaboradores dos germes da tradutibilidade. Desta forma, o autor dos Cadernos coloca-se, ao mesmo tempo, em linha de continuidade ideolgica com estes ltimos. Pensar que a filosofia de Gramsci possa ser reduzida quela dos autores liberais significa no ter entendido tudo isso. Pensar que se possa reduzir tambm reflexo dos fundadores da filosofia da prxis significaria fazer uma operao anacrnica, levando o relgio da reflexo gramsciana para dezenas de anos antes, para linguagens cunhadas para interpretar (e transformar) uma realidade diferente. Cabe levar em conta que entre ele e suas fontes, tem a histria ocorrida, alm da sua experincia de ao poltica e a reflexo sobre elas, a qual tambm uma reflexo sobre como atualizar e sintetizar (traduzir) as linguagens das suas fontes, alm de conferir seu valor cientfico. Pois, este valor depende no apenas da coerncia lgica e formal da teoria de Marx, Engels ou

    Q 10 II, 9 (que iremos comentar abaixo) tirando, de novo, de sua argumentao o essencial: as consideraes do revolucionrio sardo sobre a tradutibilidade, comportando-se, portanto, como se Marx e Lnin no tivessem papel central, e demonstrando (involuntariamente) que a sua interpretao continua de forma unilateral.

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    Lnin, mas da sua transformao em elemento que estimula a compreender melhor a nova realidade, desenvolvendo as ideias desses autores, e em ideologia, isto , em elemento que produz efeitos reais transformadores. Com este fim a linguagem terica deve ser adaptada ativamente realidade contempornea, reelaborada e transformada, ou seja, traduzida em uma linguagem contempornea (assim aprofundando e acrescentando, sem subverter, seu valor originrio). Tudo isto testemunhado tambm pelo prprio fato que a tradutibilidade constitui o ncleo terico do marxismo gramsciano, que deriva e, ao mesmo tempo, desenvolve algo que em Marx e Lnin era apenas implcito. Alm disso, Gramsci se preocupa tambm em estudar e mostrar como a nova sntese, isto , a filosofia da prxis, nasceu por meio de uma traduo (interpretada a partir do modo como a entendiam os prprios Marx e Lnin).

    Em Gramsci a tradutibilidade o critrio que fundamenta, ao mesmo tempo, a teoria gramsciana da linguagem e a da poltica, e, pela tradutibilidade, se compreende como ambas so entrelaadas como teoria da hegemonia: nesta, o poltico lingustico-simblico-cultural e, ao mesmo tempo, o lingustico-simblico-cultural poltico ou seja, elemento de consenso e, ao mesmo tempo, de coero, como demonstra a teoria da guerra de posio, a qual inclui a teoria das estruturas ideolgicas. Estas, por sua vez, so as que produzem e difundem as linguagens que influenciam e formam a opinio pblica, especialmente nas sociedades moderna e contempornea de massa5. Cabe, portanto, destacar que a prpria tradutibilidade nasce essencialmente da fuso ou traduo do marxismo e da lingustica histrica. De ambos a tradutibilidade considera o lado lingustico e o lado poltico, mas o primeiro permanece em grande parte implcito e no suficientemente desenvolvido no marxismo (at Gramsci e tambm depois dele); o segundo, ainda mais implcito e menos desenvolvido na lingustica. Nos Cadernos, porm, por meio da tradutibilidade, tanto a compreenso do primeiro quanto do segundo, apresentam uma evoluo terica. De fato, o marxismo de Gramsci, por ter desdobrado este novo conceito, coloca-se na condio de explicar e justificar teoricamente, atravs da afirmao do seu carter concreto (ou

    5 Cf., por ex., Q 1, 44, 51 e 65; Q 3, 49; Q 29, 3.

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    objetivo, como diria o Marx da primeira tese sobre Feuerbach), quer dizer, poltico, a historicidade da linguagem (enquanto, no mbito da lingustica histrica ou no ou existia a simples constatao desta historicidade ou faltava uma explicao que no fosse de carter metafsico). Alm disso, este novo marxismo, ao buscar explicar o que significa o fato de uma linguagem ser expresso6 histrica e social, chega a conceber como qualquer atividade humana, que no se manifesta como linguagem no sentido estrito, possa ser tambm considerada expresso e linguagem, conhecimento e cultura, embora num sentido mais amplo e forte. Isto , chega a ampliar o prprio conceito de linguagem7.

    Por outro lado, uma das contribuies fundamentais da lingustica histrica para a poltica e o marxismo consiste em ajudar a entender mais a fundo que todas as ideias so, ao mesmo tempo, linguagem, portanto, tambm as ideologias, ou seja, o terreno no qual determinados grupos sociais tomam conscincia do prprio ser social, da prpria fora, das prprias tarefas, do prprio devir, ou, ainda, momento necessrio da subverso da prxis (Q 10 II, 41, xii grifo meu)8. Longe da interpretao do idealismo, do esperantismo ou daqueles que tiveram f nas lnguas fixas e universais (aceita tambm por muitos membros da Internacional), entre outros, este terreno agora considerado algo cultural e histrico, como todas as linguagens, que funciona de maneira parecida com elas. Portanto, como todas as linguagens, este terreno deve ser constantemente adaptado (traduzido da e para a) realidade histrico-cultural presente9. Por isso, fazer poltica implica desenvolver uma conscincia profunda deste lado da questo, especialmente em relao ao problema da sua capacidade de comunicar, de ser entendida pelas massas e de influenciar (pedagogicamente) a opinio pblica para educ-la e mud-la. Isto permitir a Gramsci inaugurar a sua original reflexo sobre o que hoje se chama de mass media, especialmente em relao construo e manuteno da hegemonia e do poder. Portanto, do mesmo modo que dilata o conceito de

    6 Cf. mais abaixo para a definio gramsciana deste termo.7 Cf., por ex., Q 3, 49, Q 29, 4 e Q 8 169.8 Cf., por ex. Q 1, 44, 51 e Q 10 II, 44.9 Cf., por ex., Q 7, 3; Q 7, 36 e Q 11, 16.

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    linguagem por meio da tradutibilidade, Gramsci amplia o prprio conceito de poltica como tambm o faz com todos os conceitos tradicionais.

    Em relao exigncia de ir alm dos confins lingusticos no sentido estrito, j existe uma denncia interna prpria lingustica. O grande linguista francs Antoine Meillet afirmara claramente que o problema essencial da histria das lnguas consiste em determinar como os contatos entre grupos sociais diversos se traduzem em fatos lingusticos. Mas os linguistas no queriam se aventurar em tais discusses, pois, neste terreno, no encontram a preciso e segurana dos seus procedimentos deticos ordinrios. Contudo, na medida em que visam explicar os fatos, devem sair dos fatos da lngua, pois no podemos nos limitar lingustica pura. Alis (para citar um outro texto do prprio Meillet), a lngua no existe sem a sociedade, assim como as sociedades humanas no existiriam sem linguagem10. Alm disso, no apenas em Meillet, mas tambm em mbito mais amplo da lingustica histrica (na Frana, Alemanha e Itlia), chegou-se conscincia de que cada linguagem uma concepo do mundo (embora menos coerente e homognea que aquela elaborada pelos filsofos profissionais) e, enquanto histrica e ligada a uma cultura determinada, tem seu prprio jeito de organizar semanticamente a realidade, uma encontrando solues diferentes em comparao s outras. Isto implicava a insurgncia do problema da traduo de uma linguagem para a outra o qual foi central tambm para Gramsci e no s nos seus escritos, mas tambm na sua prpria vida. Graas lingustica, Gramsci far avanar a questo do carter lingustico das ideias e, graas reflexo sobre Marx e Lnin, fornecer prpria lingustica a sua resposta e a far ir alm da concepo de linguagem no sentido estrito (s verbal) e ir alm da futura semitica (portanto, sem sair da linguagem, como fala, mas provavelmente s no sentido metafrico, o prprio Meillet), mesmo por ter compreendido o carter poltico da prpria linguagem, superando, desta forma, pelo menos na impostao das questes, os limites da lingustica de ento e tambm futura limites j destacados com grande agudeza por uns dos prprios linguistas, como Meillet. De fato, para impostar a questo da linguagem em Gramsci deve-se partir da tradutibilidade. Porm, faltam

    10 Cit. em Lo Piparo (1979, p. 263).

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    estudos nesta direo, poucos so os estudiosos informados e conscientes deste problema11.

    Como observamos, Gramsci, cita explicitamente como fontes da tradutibilidade, apenas Marx e Lnin, embora seja possvel acrescentar aqui, de forma simplificada por razes de espao, alm da lingustica (e da filologia) histrica, os pragmatistas (citados e, ao mesmo tempo, criticados por ele) e Benedetto Croce (tambm criticado cfr. Q 4, 3, 423). Isto explica-se provavelmente pelo fato de que, como acenamos, nem a lingustica histrica nem os pragmatistas colocaram o problema da traduo, acima de tudo como traduo fundamental entre atividades tericas e prticas (que o corao da filosofia da prxis) - a qual coloca o carter poltico - e por isso histrico - da linguagem e o lingustico, simblico, expressivo das atividades prticas e da realidade histrica - enquanto Croce, mesmo reconhecendo-o, rejeitara-o voluntariamente (cf. Q 4, 3, 423; Q 7, 1, 852 ss.).

    2 Aspectos da teorizao da tradutibilidade

    este o tipo de traduo que Gramsci teoriza em vrios textos e no Q 8, 208 (fevereiro-maro 1932) e que o amarra, em termos de dbito terico e ideolgico, a Marx e Lnin. Aqui, pela primeira vez nos Cadernos, os dois, como smbolos histrico-tericos de teoria e de prtica, encontram-se ambos juntos como pressupostos necessrios e equivalentes para teorizar sobre a tradutibilidade. Depois de ter comentado a observao feita por Marx na Sagrada famlia considerada como a fonte das Teses pelo autor dos Cadernos que a linguagem francesa equivale linguagem filosfica alem12, Gramsci prope a sua interpretao de como esta equivalncia

    11 Listo aqui alguns dos estudiosos que tm considerado as questes da traduo, da tradutibilidade e da linguagem em Gramsci: BORGHESE; BOOTHMAN; BUEY; FROSINI; GENSINI; IVES; KANOUSSI; DE MAURO; SCHIRRU; TOSEL. A maioria dos estudos destes autores se encontram em IVES and LACORTE, 2010.12 Se o senhor Edgar comparar por um momento a igualdade francesa com a autoconscincia alem, encontrar que o segundo princpio expressa em alemo, isto no pensamento abstrato, o que o primeiro diz em francs, isto , na lngua da poltica e do pensamento intuitivo. Traduo minha de ENGELS, F.; MARX, K. La sacra famiglia. A.

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    se constitui e deve ser pensada: pode-se afirmar que a teoria equivale prtica, na medida em que a primeira pode se transformar, traduzindo-a, para a segunda e a segunda para a primeira. Ao sintetizar o que, mais em particular, j tratou em outros textos, Gramsci expressa esta ideia da seguinte forma: [...] a filosofia deve tornar-se poltica, prtica, para continuar a ser filosofia (Q 8, p. 1066).

    Cabe observar, em primeiro lugar, que s ao tornar-se poltica, prtica (note-se que no texto de Gramsci essas palavras esto entre aspas pois tm contemporaneamente um sentido mais amplo e forte, de poltica como elemento com efeitos organizadores e transformadores da vida) uma linguagem terica demonstra, para usar as palavras de Marx, sua verdade, isto , sua realidade e poder, seu carter terreno, ou seja, imanente: de universalidade social e histrica que no reconhece nada de transcendente mas se baseia toda na ao concreta do homem, o qual para suas necessidades histricas opera e transforma a realidade (Q 5, 127, 657; CC, 1999, vol. 3, p. 216-223)13. Isto ainda mais claro no caso da atividade poltica, embora seja menos claro que ela no apenas seja elemento transformador do mundo (quando e enquanto os tem), mas tem, ao mesmo tempo, efeitos de conhecimento e, por isso, pode se tornar linguagem terica e filosfica (verbal, pois j algo lingustico, que, porm, se expressa praticamente). Contudo, j enquanto tal, nunca atividade prtica esvaziada de pensamento, mas sempre prxis, ou seja, conjunto prtico-terico em movimento.

    Em segundo lugar, cabe explicar que se tornar, no texto do Q 8, 208 acima, significa traduzir. Este verbo, de fato, em vrios textos dos Cadernos, usado segundo um significado prprio, tcnico, metafrico14 em relao aos significados passados, mas que coincide com um novo que visa expressar as novas prticas e a viso de mundo do movimento

    Zanardo (Org.). Roma: Editori Riuniti, 1967, p. 47. Conjecturei sobre uma forte ligao entre o uso de expresso em Marx e Gramsci em relao concepo de imanncia em um outro ensaio (cf. LACORTE, 2012).13 De agora em diante, com CC ser indicada a edio brasileira dos Cadernos do Crcere organizada por, C. N. Coutinho; Coedio, , L. S. Henriques;, M. A. Nogueira. RJ: Civilizao Brasileira, 2001-2006.14 Cf. FROSINI, 2010, cap. II. 2. E cfr. Q 11, 24, 1427.

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    comunista internacional15. Como sinnimo da expresso deve ser traduzido se entende bem se lermos a citao do Q 8, 208, 1066 junto com uma do Q 10 I, 5, 1218, onde o autor dos Cadernos fala da necessidade de traduzir em termos populares a filosofia. Portanto, a frase do Q 8, 208, sintetiza teoricamente, atravs de um nico conceito, o de tradutibilidade, dois lados do mesmo processo poltico-histrico e cultural, o qual, nos seus vrios aspectos, analisado pelo autor dos Cadernos em vrios pargrafos16.

    Em terceiro lugar, cabe destacar que esta traduo no apenas um processo lgico-lingustico no sentido estrito, pois, ao mesmo tempo, ela afeta a realidade; e isso ocorre entre linguagens que se baseiam em atividades diferentes por exemplo, a poltica na Frana e a terica na Alemanha17 as quais: 1) coincidem com as capacidades prtico-tericas particulares que cada comunidade humana consegue desenvolver historicamente em um dado espao-tempo; 2) dependem e contemporaneamente constituem, produzem, estas realidades e, por isso, so atividades elas mesmas; 3)

    15 Gramsci usa muito este verbo neste sentido novo. Cf., por ex., o importantissimo Q 10 II, 44.16 Em muitos desses pargrafos presente implcita ou explicitamente o conceito de catarse, com o qual Gramsci indica: a passagem do momento meramente econmico (ou egostico-passional) ao momento tico-poltico, isto , a elaborao superior da estrutura em superestrutura na conscincia dos homens. Isto significa, tambm, a passagem do objetivo ao subjetivo e da necessidade liberdade (Q 10 II, 6, i); mas cf. j, por ex., Q 1, 43; Q 1, 44, 51; Q 3, 48; Q 4, 3; Q 4, 33; Q 8, 169; Q 8, 195; Q 11, 12, etc. Gramsci coloca estas frases entre aspas pois, como veremos, para a tratutibilidade, cada atividade humana sempre um conjunto objetivo-subjetivo, prtico-terico, necessrio-livre, em movimento, no qual o que pode historicamente variar o grau de subjetividade (ou de objetividade). Uma atividade humana pode ser relativamente mais objetiva (ou prtica ou necessria) em relao a uma outra que, no espao-tempo, desenvolveu mais seu lado subjetivo, terico, superestrutural. No existe nada, no campo da prxis humana, que seja absolutamente objetivo ou subjetivo, pura estrutura ou pura superestrutura, etc. Ao longo da redao dos Cadernos, paralelamente ao desenvolvimento da tradutibilidade, Gramsci desenvolve, tambm, um novo modo de formular as vrias questes e assim supera o velho modo de teorizar sobre a realidade atravs de uma linguagem dicotmica. Quando a conserva porque pode servir do ponto de vista da anlise ou didtico e, na maioria dos casos, pe entre aspas os vrios termos que a Tradio Dicotomizadora Ocidental (TDO) separa, para indicar que ele os interpreta de uma maneira muito diferente.17 Gramsci explica isto no Q 11, 48, 1470 (reescritura posterior do Q 8, 208), afirmando que se trata de linguagens de tradio diferente, formadas com base em atividades caratersticas e particulares (Cf. CC, 1999, v. 1, p. 187).

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    coincidem pelos efeitos reais que produzem: no antes de produzi-los; isto , porque produzem efeitos fundamentalmente parecidos; 4) devem necessariamente ser traduzidas por causa do fato que so diferentes; mas, quando e enquanto, a traduo revela que so equivalentes, graa equivalncia dos seus efeitos reais, mostra que elas so substituveis ou traduzveis reciprocamente.

    Em quarto lugar, cabe explicar, mais precisamente, que a primeira parte da frase gramsciana do Q 8, 208 citada acima (a filosofia deve tornar-se poltica, prtica) refere-se ao alcance prtico da teoria, a qual, quando e enquanto traduzida para a prtica demonstra ser uma forma de atividade prtica por si mesma, ou melhor: prxis. Neste sentido, Gramsci j disse que, ao realizar politicamente a hegemonia na Rssia, Lnin havia, ao mesmo tempo, realizado a teoria de Marx. Contudo, essa traduo no deixava tal teoria sem mudanas, era tambm uma inovao, uma implementao crtica de tal teoria mesma. Como ele escrever mais adiante: A hegemonia realizada significa a crtica real de uma filosofia, a sua real dialtica (Q 7, 33, 882). Ademais, Gramsci afirmar mais tarde pressupondo, evidentemente, seu desenvolvimento paralelo do conceito de tradutibilidade que ter conscincia mais ou menos profunda das relaes necessrias j as modifica [...]. Neste sentido, o conhecimento poder (Q 10 II, 54, 1345, fevereiro 1933; CC, 1999, v.1, p. 414). E, de fato, a segunda parte da frase (para continuar a ser filosofia) refere-se ao alcance terico, gnosiolgico ou teortico da prtica, conforme o que Gramsci escrever, por exemplo, no Q 10 I, 12:

    Ilitch teria feito progredir [efetivamente] a filosofia [como filosofia] na medida em que fez progredir a doutrina e a prtica poltica. A realizao de um aparelho hegemnico, enquanto cria um novo terreno ideolgico, determina uma reforma das conscincias e dos mtodos de conhecimento, um fato de conhecimento, um fato filosfico (ibidem, 1250; CC, 1999, v.1, p. 320 grifo meu; Cfr. Q 4, 45, 471)18.

    18 Cf. LACORTE, 2009, p. 72s.

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    Mas isso significa tambm que o momento prtico , ao mesmo tempo, terico, pois nele que a teoria e os seus mtodos se desenvolvem graa s experimentaes por meio das quais se aprofundam, acrescentam e corrigem e, para Gramsci, estes experimentadores sociais so os intelectuais coletivos, os partidos polticos (Q 11, 12, 1387). E no Q 10 II, 31, ele escreve: [...] ao trabalhar praticamente para fazer histria, faz-se tambm filosofia implcita, que ser explcita na medida em que filsofos a elaborem coerentemente [...] (ibidem, 1273; cfr. CC, 1999, v. 1, p. 343; cfr. Q 3, 48, 333). Contudo, antes destas linhas, Gramsci havia esclarecido muito bem que devemos sair da concepo tradicional segundo a qual a filosofia (e podemos acrescentar as linguagens terico-cientficas em geral) se encontraria s no campo da especulao terica. Ao contrrio, a prtica no apenas no cega, vazia de pensamento, mas a forma real, concreta da filosofia: o conhecimento [...] s [...] na atividade prtica real conhecimento e no escolasticismo (Q 10 II, 31, 1271). Em outras palavras, atravs do conceito de tradutibilidade, se demonstra e explica que (e em que sentido) prxis no significa prtica. Ou seja, no significa prtica esvaziada de pensamento, ideologia, sentimentos, etc., isto , algo oposto a teoria. Mas, desta forma, se demonstra e explica tambm em qual sentido a prpria teoria no significa algo separado e oposto prtica.

    Por isso, atravs da tradutibilidade, chegamos a compreender como, nos Cadernos, Gramsci supera progressivamente, at em relao as suas prprias formulaes lingustico-tericas, a separao tradicional entre teoria e prtica; e como o que tradicionalmente se chama de prtica, na realidade, sempre uma determinada teoria em seu desenvolvimento, isto , expressa, ao mesmo tempo, uma determinada concepo do mundo; e o que se chama de teoria , ao mesmo tempo, uma determinada prtica que se est elaborando, potencializando e transformando. Por isso, neste caso, podemos afirmar que ela expressa, ao mesmo tempo, uma determinada prtica. Em ambos os casos, trata-se sempre de um nico conjunto prtico-terico, ou seja, de um objeto-sujeito, uma estrutura-superestrutura, etc., em movimento e a um certo grau (quantitativo e qualitativo) do seu devir histrico. Isto o que, por exemplo, podemos ler em uma das formulaes gramscianas mais maduras:

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    a cincia no essa mesma atividade poltica e pensamento poltico, na medida em que transforma os homens, os torna diferentes do que eram anteriormente? [] Contudo, deve-se ver se se trata de criao arbitrria ou racional, isto , til aos homens para ampliar o seu conceito da vida, para tornar superior (desenvolver) a prpria vida (Q 15, 10, 1766).

    Cabe, enfim, observar que o prprio conceito de prxis a traduo gramsciana luz da prpria tradutibilidade e dos acontecimentos histricos presentes (a Revoluo Russa e a experincia dos Conselhos de fbrica em Turim)19 do que se encontra na fonte principal desta ideia nos Cadernos, as Teses sobre Feuerbach de Marx20. Este ltimo, em lugar de prxis, utiliza tambm a expresso atividade humana sensvel, objetiva. E no Q 4, 37, falando do conceito de prxis marxiano, Gramsci o interpreta como atividade do homem (histria) em concreto (Q4, 455), isto , na linguagem de Gramsci, como algo que tem efeitos reais. Como se v, a tradutibilidade (que j estava sendo desenvolvida quando o autor dos Cadernos escreve este pargrafo) que ilumina a compreenso, j exposta na primeira tese sobre Feuerbach, de que o objeto no apenas o sensvel; mas objetiva ou sensvel tambm a atividade do sujeito, do pensamento e, portanto, objeto entendido ao mesmo tempo subjetivamente; ento, objetivo significa tambm algo que tem uma eficcia prtica ou poltica, pois seus efeitos transformam-revolucionam o mundo. De fato, medida que se pe como objetiva ou sensvel a prpria atividade humana, deve ser interpretada como objetivo ou sensvel tambm o (modo de proceder) teortico (theoretische Verhalten), pois o prprio pensamento atividade humana, uma das atividades humanas. Assim, no apenas qualquer atividade, mas nem sequer a peculiar do pensamento, ato puro (isto , depurado de qualquer diferena, matria, circunstncia, etc.), como o entendia o filsofo

    19 Cf., sobre este aspecto em particular, LACORTE; SILVA; PAIVA; LEITO, 2013.20 O autor dos Cadernos traduziu as Teses no crcere do texto original em alemo, mas elabora, ao mesmo tempo, o uso do termo marxiano prxis assim como foi interpretado anteriormente tambm pelo marxista italiano Antonio Labriola. Cf., por ex., Q 4, 3 e Q 3, 31, os estudos de FROSINI, 2010, cap. 1, e de LOSURDO, 1990.

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    idealista Giovanni Gentile, pois, na medida em que prxis, sempre ato impuro, quer dizer: um conjunto de elementos heterogneos em movimento. S ao raciocinar desta forma chega-se tambm a compreender o significado e a importncia da atividade revolucionria, da atividade prtico-crtica (Q 2355).

    Aps um ou dois meses depois de ter escrito o Q 8, 208, Gramsci dir, de forma mais geral, que possvel demonstrar que existe uma ligao necessria no apenas entre as diferentes atividades cientficas mas, ao mesmo tempo, entre atividades cientficas e atividades prticas21. Trata-se das linhas de uma carta para Piero Sraffa (ou ainda para Palmiro Togliatti)22, via cunhada Tatiana (chamada mais frequentemente Tania), escrita no fim de maio de 1932, na qual Gramsci tenta esclarecer para o grande economista (e companheiro de partido) o contedo de algo que j escrevera no Q 10 II, 9, 1247, no qual em lugar de atividades (palavra usada nas Teses por Marx, que ele traduziu no crcere) usa a palavra linguagens (o que demonstra, na elaborao da tradutibilidade, a influncia da lingustica e no s de Marx, embora este ltimo tambm, na Sagrada famlia,fonte das Teses, refira-se poltica francesa e autoconscincia alem como a duas linguagens). E isto, alis, acontece em vrios outros apontamentos anteriores ou contemporneos, nos quais trata implcita ou explicitamente da tradutibilidade23. Por meio da leitura

    21 GRAMSCI, A. Lettere dal carcere. CAPRIOGLIO, S.; FUBINI, E. (Org.). Torino: Einaudi, 1965, p. 582, citado, de agora em diante, com a sigla LC, seguida pelo nmero da pgina, e traduzido por mim. Estas afirmaes se encontram na carta para Tania de 30 maio de 1932, na qual Gramsci conjetura que Marx teria derivado a concepo da imanncia da sua interpretao dos conceitos de homo economicus e de mercato determinado de David Ricardo, e da sntese deles com as linguagens poltica francesa e filosfica alem sntese que ele mesmo chama traduo .22 Conforme afirmado pelo presidente do Instituto Gramsci italiano, Giuseppe Vacca, em sua palestra, durante o Simpsio Internacional de Filosofia Poltica A Atualidade de Marx e Gramsci na Filosofia Poltica, 25 a 29 de novembro de 2013, na Universidade Federal de Uberlndia (UFU) - Brasil.23 Que o nexo entre prtica e teoria reenvie tradutibilidade, o que se pode deduzir da referncia sucessiva de Gramsci a um texto de Marx e Engels da Sagrada famlia (citado acima), mas as linhas s quais Gramsci se refere foram escritas por Marx. A estas ele faz referncia j em outros pargrafos dos Cadernos em relao sua teorizao. Na Carta citada, Gramsci escreve: Na Sagrada Famlia se v como este nexo posto por Hegel entre

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    comparada da carta e do Q 10 II, 9, entre outros pargrafos, pode-se entender que, nos Cadernos, os dois termos e os conceitos correspondentes formam uma incindvel relao dialtica, a qual remete a uma relao real.

    Aqui atividade significa atividade humana histrica, organizadora-transformadora, em uma palavra, prxis, a qual coincide com tudo o que tem efeitos concretos, enquanto atividade que consegue (e deve) tornar-se historicamente permanente. Neste sentido, pode-se falar de atividade racional como expresso que indica algo no arbitrrio enquanto aceito e atuado com regularidade pelas massas (e, portanto, no propriamente no sentido de atividade lgica, raciocnio, pensamento etc.)24. Desta forma, posta politicamente e historicamente a sua racionalidade, qualquer atividade humana (prxis) expressa e simboliza algo determinado, e, portanto, linguagem tambm no sentido de que pode ser lida, interpretada, compreendida e, por isso, traduzida e conhecida; mas, ao mesmo tempo, qualquer linguagem-expresso-smbolo (racional) atividade transformadora do mundo, ou seja, prxis. Portanto, prxis o conceito mais geral que sintetiza a compreenso de todas as atividades humanas racionais, includas as lingusticas e simblicas, como algo que tem uma eficcia real e, vice-versa, da prtica como algo que tem contemporaneamente efeitos tericos ou de conhecimento. Daqui, tambm o carter estratgico ou tendencialmente estratgico da prxis, quer dizer, de um determinado conjunto de atividades humanas prtico-tericas em movimento que se universaliza ou tenta progressivamente se universalizar socialmente e historicamente, atravs de uma srie de tradues prtico-tericas, at o ponto de se tornar no s o elemento que pode dar o impulso a uma dialtica real, mas que pode conquistar a hegemonia e at construir uma nova civilizao.

    a atividade poltica francesa e a filosfica alem tenha sido apropriado pelos tericos da filosofia da prxis (LC 582).24 Cf., por ex., Q 6, 10 e Q 11, 59. [...] A cada momento do desenvolvimento histrico h luta entre racional e irracional entendido o irracional como o que no triunfar em ltima anlise, nunca se tornar histria efetiva, mas que em realidade tambm racional, porque necessariamente ligado ao racional, sendo um momento imprescindvel dele [] S a luta, atravs do seu xito, e nem sequer do seu xito imediato, mas atravs do que se manifesta em uma permanente vitria, dir o que racional o irracional, o que digno de vencer, pois continua, do seu jeito, e supera o passado (Q 6, 10, 689-90).

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    na traduo entre teoria e prtica entre atividades diferentes que erroneamente a Tradio Dicotomizadora Ocidental (TDO) separa e considera em contradio e s dentro dessa forma peculiar de traduo que emergem analogias profundas que levam tona a composio histrica de uma determinada prxis, ou seja, da prpria atividade humana nas suas configuraes histricas. Esta atividade ou conjunto dialtico de atividades histricas se desenvolve e expressa (ou pode se desenvolver e expressar) de vrias formas: tantas quantas so as diferentes atividades que a(s) constituem, isto , as que os homens se tornam capazes de gerar historicamente. As fundamentais que sintetizam de forma lgica uma expresso da histrica diviso do trabalho so a prtica e a terica. A filosofia da prxis mantm, at um certo ponto, esta distino entregada pela TDO, mas a interpreta como distino analtica, didtica ou metodolgica e no orgnica (Q 7, 21), real ou metafsica, pois a traduo que ela faz mostra que no h duas substncias realmente diferentes que correspondem a teoria e prtica, e sim que qualquer atividade humana racional sempre um conjunto prtico-terico, embora em graus diferentes de composio terica (ou ideolgico-prtica), conforme seu desenvolvimento histrico. Isto significa que, atravs da tradutibilidade, nos Cadernos, se redefinem e resignificam todos os conceitos tal como pensados pelo senso comum e pela tradio (prtica, teoria, traduo, linguagem, filosofia, poltica, matria, esprito, Estado, etc.).

    3 A tradutibilidade e o significado do termo expresso25

    O mesmo conceito encontrado no Q 8, 208 aparece j no Q 7, 45 (fevereiro-novembro de 1931) e, embora no explcito, o que Gramsci escreve neste pargrafo uma definio importante da (e que ajuda a entender melhor a) tradutibilidade: afirmar que uma filosofia expresso de uma sociedade significa no s que ela depende de uma determinada realidade (como o efeito da causa, mecanicamente), como pensavam

    25 Esta parte do ensaio uma reelaborao de uma parte do que tratei em LACORTE, 2012.

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    muitos marxistas (da Segunda e Terceira Internacional), mas tambm que ela conquistou uma eficcia prtica: a medida em que ela reage [...] a medida de sua importncia histrica, de no ser ela elucubrao individual, mas sim fato histrico (Q 7, 45, 894; CC, 1999, p. 249 grifo meu). Contudo, ao considerar o que ele escreve nos textos comentados mais acima, pode-se perceber que isto vale no apenas no caso da filosofia como linguagem particular, mas para todas as linguagens e atividades-linguagens no arbitrrias ou racionais, como confirmado tambm por um texto posterior, intitulado Tradutibilidade das linguagens cientficas, no qual o autor dos Cadernos generaliza ulteriormente o discurso sobre a capacidade hegemnica da filosofia, estendendo-o a todas as relaes de conhecimento: a filosofia da prxis concebe a realidade das relaes humanas de conhecimento como elemento de hegemonia poltica (Q 10 II, 6, iv, 1245, abril 1932; CC, 1999, v.1, p. 315 nota-se o uso explcito da palavra hegemonia que testemunha, cada vez mais, do peso de Lnin na formulao da tradutibilidade); mas sempre conforme o desenvolvimento deste conceito alcanado nos textos de 1932 citados acima pode-se acrescentar que ela concebe, ao mesmo tempo, a realidade das relaes prtico-poltico-hegemnicas como elemento de conhecimento.

    Alm disso, cabe notar: 1) que, na frase do Q 7, 45, os verbos conquistou e reagir equivalem a se tornar da frase do Q 8, 208, 1066 citada acima (no primeiro pargrafo Gramsci afirma que a filosofia conquista uma eficcia prtica, no segundo que se torna prtica; no conquistou percebe-se ainda o eco da realizao da hegemonia na Rssia, o qual depois , digamos assim, catartizado no mais descritivo se tornar conforme o momento da teorizao, mas o significado o de uma filosofia que se traduziu em realidade). Este uso peculiar, tcnico e, embora conservando-o, vai metaforicamente alm daquele tradicional e comum, implicando a ideia de que a traduo da teoria para a prtica e vice-versa demonstra, consideradas as devidas diferenas, o alcance, ao mesmo tempo, mais amplo de cada uma, em comparao com as que interpreta a TDO, e que a realizao da equivalncia entre as duas um processo prtico-terico no qual uma comunidade de seres humanos deve sempre construir, atravs de um trabalho pedaggico-cultural-poltico, o termo prtico equivalente ao terico e vice-versa, segundo um

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    movimento contnuo que, se interrompido, acaba enfraquecendo ou mesmo comprometendo irremediavelmente a ao e o desenvolvimento de uma determinada prxis. Neste movimento, a teoria se torna elemento concreto (histria) atravs da poltica, enquanto a prtica se elabora e potencializa, tornando-se mais concreta, por meio da elaborao cultural-terica-lingustica26; 2) que o conceito de tradutibilidade est fortemente amarrado a um certo uso, de novo tcnico e metafrico, do termo expresso, ou melhor, a uma famlia de termos e expresses (entre os quais, por exemplo, manifestar, manifestao, j no Q 1, 44, 54; se tornar, nos Q 4, 3, 423, Q 6, 10, 691, Q 8, 208 (explicitamente sobre a tradutibilidade), Q 9, 63, Q 10 II, 44, entre outros; expressar e conquistar no Q 7, 45, e at os prprios refletir, reflexo, respectivamente nos Q 1, 44, 51 e Q 7, 35, 886, no qual reflexo sinnimo de expresso e no vice-versa)27, usados em vrios textos dos Cadernos no sentido novo e peculiar de atividade humana que tem uma eficcia prtica, transformadora, na medida em que se torna fenmeno concreto, fato histrico. O que demonstra contemporaneamente que, nesta obra de Gramsci, este conceito muito difundido, usado mais do que aparece a um olhar superficial; 3) que, alm da possiblidade de criar os novos, todos os conceitos-termos tradicionais vo ser resignificados e recriados por meio de tradues que os (re-)constroem de acordo com a nova linguagem-concepo do mundo em construo, entendida como expresso lingustico-terica do movimento real de grupos sociais subalternos.

    26 Cf. p. ex. Q 1, 43; Q 3, 48; Q 11, 12; Q 15, 10; Q 15, 22.27 Que a dialtica hegeliana tenha sido um reflexo destes grandes ns histricos e que a dialtica, de expresso das contradies sociais [...] (Q 7, 35, 886 grifo meu). Aqui, est claro que o primeiro termo usado no sentido do novo significado do segundo; enquanto, no Q 1, 44, 51, que refletia, na frase A linguagem dos jacobinos, a sua ideologia, refletia perfeitamente as necessidades da poca, conforme as tradies e a cultura francesa, signifique expressava, no sentido que encontramos no Q 7, 45, o que se deduz ao ler o que Gramsci escreve nas linhas sucessivas. Nelas, de fato, ele argumenta como esta linguagem teve um papel real, ativo e reativo, pois, ao responder as suas necessidades reais, mobilizou ideologicamente os camponeses e unificou a populao de toda Frana e foi, portanto, decisivo para mudar as correlaes de fora a favor da burguesia francesa, a qual assim conquistou a hegemonia (cf. Q 1, 48, 61); mas est claro tambm ao considerar a referncia Sagrada famlia, entre parnteses no Q 1, 44, 51, que indica a ligao entre o significado de refletia e a tradutibilidade (por meio da qual, de fato, se pensam as linguagens racionais como elemento de hegemonia), embora ainda implcita.

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    Cabe destacar melhor que o significado das prprias tradues nunca meramente lingustico. Como parte de um processo molecular, que envolve uma enorme quantidade delas, na medida em que conseguem tornar uma (nova) filosofia (expresso das novas necessidades, sentimentos, conhecimentos dos subalternos) para um elemento que estimula a ao, mudando o jeito de pensar e sentir (a linguagem Q 10 II, 44, 1330) de inteiros estratos sociais, as tradues acabam por mudar tambm o comportamento dos indivduos como indivduos e como massa, a ao deles e as suas finalidades e, ao longo do tempo, atravs de tradues entre culturas diferentes, pode transformar toda uma civilizao. Disto se pode deduzir que a prpria traduo revela a dimenso mais profunda sempre poltica e no apenas morfolgica e sinttica da linguagem, ou melhor, que a prpria dimenso morfolgica, sinttica e gramatical, assim como a expresso entendida no sentido literal, , ao mesmo tempo, atividade humana transformadora, ou seja, momento de um devir mais vasto, ao mesmo tempo poltico e histrico28. Isto quer dizer que a traduo literal remete quela histrico-poltica; e deve-se, portanto, distinguir pelo menos entre um primeiro nvel ou grau mais superficial, no qual o que se traduz leva a compreender melhor uma determinada realidade (mas aqui quem compreende j muda os seus comportamentos, e, por isso, h j mudana nas prticas, ainda que em mbito social e cultural limitado), e um segundo nvel, mais profundo29, no qual o que traduzido se universaliza socialmente e culturalmente, pois muda no s o jeito de sentir e de pensar, mas tambm a prtica de inteiras massas humanas. Neste sentido, para Gramsci, quando se traduz, traduz-se tambm a prtica e no apenas a expresso lingustica que corresponde a uma prtica determinada: as revolues ativa francesa e passiva alem, e ainda outras sucessivamente, tm progressivamente difundido no apenas a ideologia

    28 Tambm sobre a prpria gramtica, Gramsci claro quando pergunta se ela serve para fazer a histria de um aspecto da civilizao ou para transformar um aspecto da civilizao (Q 29, 1, 2342; meu grifo).29 Cf. BOOTHMAN, 2004, em part. p. 73-78. Superficial/profundo corresponde aqui relao sentido estrito/amplo ilustrada acima neste ensaio e ligada ao uso gramsciano da tradutibilidade ao pensar ou elaborar os vrios conceitos, assim necessariamente resignificando-os.

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    liberal (e neoliberal), mas tambm as prticas que correspondem a ela em quase todo mundo. Por isso, a traduo no sentido estrito, sempre pressupe umas afinidades mais profundas entre culturas, entre prticas humanas, as quais, ento, so elas tambm sempre, ao mesmo tempo, lingusticas.

    Neste quadro, cada vez mais desenvolvido a partir da temporada que comea acerca do fim de 1930 e prossegue nos anos seguintes, Gramsci retoma com mais intensidade a reflexo sobre o significado da obra de Lnin, ou seja, sobre a traduo da filosofia de Marx para a poltica, a ideologia30, mais compreendendo qual o valor da teoria, do saber e, portanto, chega mais prximo do significado da equivalncia j indicada pelo revolucionrio alemo. Por isso no casual: 1) que j no Q 7, 1 escrito antes de Q 7, 45, em novembro de 1930 aberto com uma reflexo sobre a tradutibilidade, encontra-se, no final, um comentrio de Gramsci sobre a terceira tese de Marx, em particular sobre o significado da expresso educao do educador (isto , a transformao do ambiente, da realidade histrica e natural, pelo homem), que segundo o autor dos Cadernos consiste no fato de que a estrutura no algo imvel, mas realidade em movimento, pois tem a superestrutura que reage dialeticamente sobre a estrutura e a muda (ibidem, 854); cabe notar que ao copiar mais tarde, em junho-agosto 1932, esta linha no texto C correspondente, em lugar de superestrutura se encontra uma formulao mais realstica: reao ativa do homem sobre a estrutura (Q 10 II, 40, 1300 ), pois o autor dos Cadernos bem sabe porque isto mesmo o que a tradutibilidade visa esclarecer (que no existem superestruturas ou linguagens que reagem sobre o ambiente separadamente dos seres humanos histricos e que fazem sentido por si mesmas); 2) que no pargrafo sucessivo, Q 7, 2 (escrito no mesmo perodo), Gramsci cita pela primeira vez Lnin como fonte da tradutibilidade31 e se refere ao problema da traduo do russo para as outras lnguas europeias como questo de hegemonia, ou seja, da difuso da hegemonia comunista nos pases da Europa Ocidental durante os anos 1920, o qual remete ao da tradutibilidade (como comprova o texto C correspondente, que abre a seo sobre o mesmo tema no Caderno

    30 Cf. Q 7, 1, 854; Q 7, 19 e Q 7, 21; Q 7, 33; Q 7, 35, entre outros.31 Se bem que, como argumentei em LACORTE, 2009, a presena implcita de Lnin em relao tradutibilidade pode-se detectar j nos Cadernos, em especial no Q 1, 43.

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    11); 3) que o Q 7, 3 (tambm escrito em novembro de 1930) seja sobre a historicidade das linguagens, a qual, podemos agora deduzir melhor, depende da medida em que elas reagem (politicamente) sobre a realidade, como bem perceberemos se ligarmos todos esses textos aos Q 7, 45 e Q 8, 208 (e a outros, como veremos).

    Contudo, no Q 7, 45, o autor dos Cadernos acrescenta, a respeito dos Q 7, 1, Q 7, 2, Q 7, 33, uma considerao crucial em sintonia com a sua reflexo sobre a ideologia e a poltica, pois neste pargrafo consegue formular a distino entre filosofia da prxis e as filosofias tradicionais-abstraes-individuais. Quer dizer, frente questo sobre o valor da teoria, encontra finalmente a maneira de contrastar a tese idealista (apriorista) da realidade do pensamento, de modo a no desvalorizar contemporaneamente a sua (relativa) autonomia, como acontecia no caso do materialismo tradicional. A realidade, a eficcia concreta do pensamento no dada a priori, nem eterna; no uma caraterstica intrnseca dele, mas depende da medida em que, isto , enquanto e quando, por meio da atividade de determinados seres humanos, reage (politicamente) sobre a realidade e se torna histria. Por isso, contra Benedetto Croce, Gramsci desenvolve uma ideia graa qual legitimamente se pode e deve falar de um universal que tem graus de generalizao social e cultural ou de individuao coletiva e, portanto, de algo conceptual que tem uma hegemonia poltica (Q 10 II, 6, iv, 1245) mais ou menos extensa. De fato, no Q 7, 45, como em muitos outros textos, Gramsci fala sobre uma linguagem particular, a linguagem filosfica, que para ele a forma mais alta da ideologia (da prtica), enquanto um tipo de linguagem que pode elaborar a prtica e a realidade de uma forma mais coerente e homognea, para torn-la universalmente hegemnica atravs de seus efeitos organizadores (Q 1, 43, 33) e transformadores.

    Sempre neste quadro, no Q 9, 63 (julho-agosto 1932), Gramsci tentar uma elaborao ainda mais geral do conceito expresso nos Q 7, 45 e Q 8, 208 e afirmar que a prova da universalidade de uma verdade ou linguagem terica consiste [] no que ela se torna: isto , no estimulo a conhecer melhor a realidade efetiva em um ambiente diferente do no qual foi descoberta e no se incorporar nesta mesma realidade como se fosse a expresso original dela, pois a sua universalidade consiste em se

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    tornar realidade efetiva e no s na sua coerncia lgica e formal (Q 9, 63, 1134; CC, 1999, v. 1, 256 grifo meu). No portanto correto tratar as questes assim chamadas tericas como se tivessem um valor em si mesmas, independentemente de qualquer prtica determinada (Q 9, 63, 1133; CC, 1999, v. 1, 255). O pensamento no nasce por partenognese, isto , [...] deve sempre valer o princpio de que as ideias no nascem de outras ideias, mas so expresso sempre renovada do desenvolvimento histrico real (Q 9, 63, 1134; CC, 1999, v. 1, 256 grifo meu). Em outras palavras, a tradutibilidade sempre tradutibilidade entre expresses que, enquanto tais, so realidades efetivas (cabe lembrar que tambm o pensamento realidade efetiva, prxis, quando e na medida em que se torna real, norma de ao). Isto implica dizer que qualquer traduo, no sentido estrito, sempre pressupe esta traduo fundamental entre prtica e teoria, realidade e linguagem, pois por meio dela que os significados se realizam, ou seja, tornam-se aqueles elementos culturalmente e historicamente permanentes usados diariamente por uma determinada comunidade humana. De fato, s depois de ter conferido o tipo de relao entre as realidades efetivas produzidas que se pode estabelecer a efetiva igualdade (ou menos) entre as ideias ou linguagens correspondentes. isto que parece significar a frase de Gramsci: Igualdade de realidade efetiva determina identidade de pensamento e no vice-versa (Q 9, 63, 1134, CC, 1999, V. 1, 256) a qual no se deveria interpretar como uma expresso do determinismo, economismo, ou pior, mecanicismo do autor dos Cadernos. Muito pelo contrrio. O que confirmado tambm pelo fato de essa frase corresponder a uma formulao da tradutibilidade: com efeito, parecida com a que se pode ler no Q 8, 208, 1067, que duas estruturas smiles tm superestruturas equivalentes e traduzveis reciprocamente , embora a do Q 9, 63 seja formulada por um grau de universalidade e abstrao muito maior (e por causa da forma no muito clara na qual este conceito est formulado que, talvez, Gramsci no ir copi-la nem retom-la nestes prprios termos em outros textos). Por isso, possvel concluir que expresso no sentido ordinrio ou literal (por exemplo, estado, assim como qualquer outra palavra ou expresso) implica sempre expresso no sentido mais forte e amplo. Quer dizer, o valor histrico e cultural de uma expresso depende do seu traduzir-se ou incorporar-se na realidade, de

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    poder ser expresso nas linguagens das situaes particulares (Q 9, 63, 1134).

    H, agora, bastante elementos para afirmar que se coloca neste quadro tambm a afirmao anticrociana da historicidade da linguagem que se encontra em um texto anterior, segundo a qual as prprias inovaes lingusticas no so individuais (como ocorre na arte), mas de toda uma comunidade social que inovou sua cultura, que progrediu historicamente: naturalmente, tambm estas se tornam individuais, mas no do indivduo-artista, e sim do indivduo elemento histrico-[cultural] completo, determinado (Q 6, 71, 738, dezembro 1930 - maro 1931; CC, 2002, v. 6, p. 197). Essa mesma ideia pode ser encontrada no Q 9, 63, e tambm no conceito que se encontra no Q 6, 71, onde podemos ler: At na lngua no h partenognese, isto , a lngua produz outra lngua, mas h inovao por interferncias de culturas diversas etc., se funda na concepo da no-partenognese das ideias, isto , na equivalncia peculiar posta pela tradutibilidade entre teoria e prtica. E, ainda, no Q 6, 71 onde pode-se ler: lngua = histria32. Mas ns sabemos que, para Gramsci, lngua = histria, porque lngua = poltica embora no imediatamente, mas como tentei explicar acima, como resultado de um processo complexo (quando e enquanto acontece). Esta passagem falta no Q 6, 71, mas Gramsci a tinha j suficientemente clara na cabea enquanto escrevia este pargrafo, porque a partir do final de 1930 que ele comea a perceber melhor o carter poltico no apenas da filosofia, mas tambm das linguagens racionais em geral. Alis, ao ler uma citao do Q 6, 10 (novembro-dezembro 1930, o qual, portanto, ou precede ou contemporneo do Q 6, 71), v-se que uma virada terica estava no ar precisamente naquele momento. Ao criticar o jeito olmpico de Benedetto Croce-Erasmo, Gramsci alicera seu argumento em uma equivalncia entre intelectuais-cincia-alta cultura e vida prtica - aspectos prticos da cultura, que, alis, formular em termos fundamentalmente parecidos no Q 8, 208 (e no Q 7, 45). E as semelhanas vo alm da aparncia sinttica. De fato, se no Q 8, 208 ele

    32 No Q 6, 71, o termo italiano lngua utilizado por Gramsci segundo um dos seus significados. Nele, mantm-se uma certa ambiguidade e ambivalncia, medida que indica, ao mesmo tempo, lngua e linguagem.

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    escrever: os filsofos explicaram o mundo e se trata agora de mud-lo, isto , que a filosofia deve se tornar poltica, prtica, para continuar a ser filosofia (Q 8, 1066 grifo meu), no Q 6, 10 afirmar: tambm o grande intelectual se deve lanar na vida prtica, se tornar um organizador dos aspectos prticos da cultura, se quiser continuar a dirigir (Q 6, 689 grifo meu). Isto , se entende que tambm no Q 6, 10 contemporneo ou quase do Q 6, 71 Gramsci pressupe a equivalncia entre teoria e prtica que formular explicitamente s depois no Q 8, 208 e que coincide com a tradutibilidade, e a utiliza para interpretar o carter histrico da lngua e da linguagem. Contudo, tudo isto confirmado, mais uma vez, tanto que na mesma ou em temporada prxima Gramsci continuar desenvolvendo uma srie de equivalncias que antecipam a teorizao no Q 8, 208 - no Q 7, 33, ali por exemplo, se encontra: Marx = Lnin; no Q 7, 35, 886: filosofia = poltica quanto pelo que a ideia do carter poltico, ideolgico da linguagem - conforme a de Marx na Sagrada famlia e nas Teses33 est j claramente presente em um texto do Q 1, 44, 51 e em um outro do Q 1, 48, no qual a ideia contida no primeiro se encontra de forma mais sinttica. Aqui, se l que a linguagem dos jacobinos, isto , a sua ideologia, era ultra-realista, pois eles fizeram marchar as foras necessrias para conseguirem os fins da revoluo e deram classe revolucionria o poder (Q 1, 48, 61).

    Desta forma, pode-se concluir que, de um ponto de vista geral, para Gramsci, a afirmao da no partenognese da linguagem e da lngua (Q 6, 71) da mesma srie qual pertence a afirmao da no partenognese da teoria (Q 9, 63) e isso implica tambm o conceito de tradutibilidade. Alis, o que significa a frase do Q 6, 71, 738: que as lnguas e as linguagens so expresso cultural de um determinado povo? No quer dizer que elas sejam expresso cultural no sentido, ao mesmo tempo, de expresso poltica conforme o que se encontra no Q 7, 45? Ou seja, de algo que ao mesmo tempo reage sobre o povo transformando seu jeito de pensar, de sentir e de agir ou que constitui um elemento coletivo-individual necessrio para que o povo possa atuar e educar o ambiente?

    33 Cf. LACORTE, 2012.

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    Que em Gramsci as questes lingusticas sejam questes de polticas, de hegemonia e, contemporaneamente, as questes de hegemonia sejam questes lingusticas; que as lutas para construir uma nova sociedade sejam, ao mesmo tempo, lutas para afirmar novos significados e vice-versa; que a unidade entre teoria e prtica, intelectuais e povo, seja o resultado de um processo complexo, no qual a linguagem e a traduo, como elementos culturais-polticos, de consenso e coero (no se pode esquecer este ponto e falar dos Cadernos como manifestao de um pensamento abstratamente dialgico e pacifico), tm um papel imprescindvel, o que ele desenvolve e esclarece passo a passo. De fato, Gramsci insiste muito sobre o fato de que [...] linguagem significa tambm cultura e filosofia (ainda que no grau do senso comum) e que, ento, o momento cultural e a posio da questo da linguagem em geral so importantes a respeito da atividade prtica (coletiva), especialmente na moderna sociedade de massa, enquanto a linguagem , ao mesmo tempo, o material histrico-cultural para os seres humanos construir e cimentar determinadas relaes sociais (e que pode fragment-las), para criar uma vontade e conscincia coletiva poltica; e o ato histrico sempre realizado pelo homem coletivo, isto , pressupe o alcance de uma unidade cultural-social pela qual uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins heterogneos, se soldam conjuntamente em busca de um mesmo fim, com base numa (igual) e comum concepo do mundo (Q 10 II, 44, 1330-31). Ele afirma isto depois de ter observado que a nova filosofia deve ser concebida no simplesmente da velha forma individual, mas, acima de tudo, como luta cultural para transformar a mentalidade popular e difundir as inovaes filosficas que se demonstrem historicamente verdadeiras34 na medida em que se tornem concretamente, isto , histrica e socialmente, universais (Q 10 II, 44, 1330 grifo meu; cf. CC, 1999, v.1, 398) quer dizer, sejam traduzidas em realidades hegemnicas.

    Assim, por exemplo, por causa da Revoluo Russa, o significado da palavra Estado muda: no mais o do Estado de Luis XIV, do Estado

    34 Aqui mudei um pouco a traduo brasileira, por preferir manter o equivalente do verbo italiano dimostri, com o qual Gramsci, na parte do Caderno 7 dedicada traduo das Teses sobre Feuerbach, traduz o verbo alemo beweisen, usado por Marx na segunda tese, e cujo significado traduzido atravs de toda a formulao gramsciana no Q 10 II, 44.

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    liberal ou, mais em geral, das formas passadas de Estado. Por causa das mudanas produzidas atravs da poltica, um novo significado da palavra Estado, ligado a uma nova conscincia e concepo do mundo, deve ser acrescentado ao dicionrio, o que demonstra, ao mesmo tempo, a eficcia poltica da prpria nova linguagem-concepo qual a palavra Estado pertence. Contudo, como se v, pode mudar o significado, mas no (ou no imediatamente) o significante, a forma exterior de uma linguagem, pois

    nenhuma nova situao histrica, mesmo a derivada da mudana mais radical, transforma completamente a linguagem, pelo menos em seu aspecto exterior, formal. Mas o contedo da linguagem deveria ter mudado, ainda que seja difcil, de imediato, ter conscincia exata desta modificao (Q 11, 16, 1407; CC, 1999, p. 124).

    Alm disso, Gramsci sabe que uma nova classe que se torna dirigente inova [a lngua R. L.] em massa, mas tambm que as mudanas lingusticas nem sempre ocorrem em ligao direta e imediata com as transformaes radicais de uma sociedade, pois elas ocorrem tambm de forma molecular: O latim inovou o cltico da Gallias em massa e, ao contrrio, influenciou o germnico molecularmente, isto , emprestando-lhe palavras ou formas singulares, etc. (Q 6, 71, 739) e a realizao de uma nova hegemonia no algo que acontece simplesmente de forma repentina, mas algo que precedido de milhes de mudanas moleculares que podem intervir entre naes diferentes ou dentro da mesma nao, camadas scias dela, etc. (cfr. Q 6, 71, 739).

    4 A tradutibilidade: corao da filosofia da prxis

    O que tratamos acima deveria ajudar a entender melhor porque a tradutibilidade o ncleo terico central da filosofia da prxis. Gramsci concebe a prxis como conjunto prtico-terico em movimento, mas a tradutibilidade a teoria deste conjunto, medida que a teoria da unidade de teoria e de prtica (Q 8, 208, 1066). Portanto, a tradutibilidade o que Gramsci utiliza para pensar a (e desenvolver o conceito de) prxis, por isso, constitui o corao terico desta nova filosofia. Com efeito, em relao ao primeiro aspecto, o autor dos Cadernos, ao estabelecer em que

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    termos se possa falar de Materialismo histrico (Q 4, 37) ou, mais tarde, de filosofia da prxis (texto C no Q 11, 69), como uma nova forma de monismo (do grego antigo mnos que significa um, a ser referido a essa unidade de elementos heterogneos da qual falvamos acima), afirma que este ltimo se funda no novo conceito de prxis, entendida como atividade do homem (histria) em concreto (Q 4, 37, 455, setembro-outubro de 1930). Ao reescrever este texto posteriormente, ele acrescenta e este acrscimo crucial para entender melhor o prprio conceito de prxis que este novo monismo uma filosofia do ato impuro, pois pensa nele como identidade dos contrrios no ato histrico concreto (Q 11, 69, 1492, agosto-fim de 1932 ou incio de 1933). Quer dizer, matria e esprito, prtica e teoria, intelectuais e povo, etc., embora diferentes, no so elementos contraditrios. De fato, a traduo entre eles demonstra que esto em oposio de contrariedade. Portanto, a filosofia da prxis pensa na prpria identidade de maneira diferente da TDO, isto , como uma dinmica poltico-histrica na qual realmente se unificam e podem se unificar atividades contrrias ou diferentes.

    Mas buscar a real identidade na aparente diferenciao e contradio e encontrar a substancial diversidade sub a aparente identidade (Q 1, 43, 33-34, dezembro 1929-fevereiro 1930) o prprio critrio, tarefa e atividade do tradutor entendido em sentido estrito e, ao mesmo tempo, amplo e forte. De fato, o autor dos Cadernos explicar que quem sabe traduzir um mundo cultural na linguagem de um outro mundo cultural quem sabe encontrar as semelhanas tambm onde parece que no existam e sabe encontrar as diferenas tambm onde parece que tenham apenas semelhanas, etc. (Q 7, 81, 914, dezembro 1931). Portanto, o critrio ilustrado no Q 1, 43 e a traduo como a interpreta Gramsci coincidem j que a prpria atividade do tradutor, no sentido estrito, no deve ser entendida como atividade meramente lingustica, mas em um sentido mais amplo, na medida em que sempre parte de um processo mais vasto (guerra de posio, estruturas ideolgicas, luta cultural como luta prtica), o qual implica, ao mesmo tempo, o papel poltico dele. A traduo, como a concebe Gramsci, e o critrio ilustrado no Q 7, 81 citado acima coincidem, desde que no se transforme este mesmo critrio em algo para buscar abstratamente qualquer tipo de analogia entre fenmenos diferentes ou de diferenas

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    entre fenmenos aparentemente idnticos35. Com efeito, a anlise deve sempre partir do estudo dos efeitos concretos, polticos, de determinadas atividades, que produzam ou contribuam com a produo de elementos historicamente permanentes ou tendencialmente, comparando-os para ver se entre eles existem reais diferenas ou analogias. Por isso, para analisar os fenmenos culturais, sociais, polticos e histricos e para criar novos conceitos e critrios prtico-tericos realistas, necessrio partir daqui.

    Assim, atravs da tradutibilidade, Gramsci coloca-se tambm na condio de analisar os tipos de relaes que existem entre determinadas atividades humanas: se esto em relao dialtica e de qual tipo (diferena, contrariedade, contradio). No caso da relao de traduo recproca a dialtica nunca ser entre atividades contraditrias, porque contraditrias so s as atividades que produzem efeitos contraditrios e, por isso, no podem ser traduzidas reciprocamente (embora exista uma certa margem de traduo, pelo menos em relao aos valores instrumentais de cada atividade-linguagem). Por exemplo, a prxis dos nobres uma expresso da civilizao feudal e da dos burgueses antes e durante a Revoluo francesa; a filosofia da prxis traduz os valores instrumentais do idealismo (cf. Q 10 II, 6, ii), mas est em contradio com ele pois expressa (ou tenta expressar) uma prxis antagnica da burguesia. E o pensamento idealista expressou a especificidade cultural burguesa alem. Portanto, o que Gramsci escreve no Q 8, 208 e nos outros textos analisados anteriormente a teorizao do critrio para entender a prxis e para distinguir entre contradies e diferenas reais e aparentes, entre dialtica real e aparente. Isto ajuda a

    35 Gramsci observa que, em geral, os intelectuais profissionais adquiriram o hbito e a disciplina mental necessrios para conectar rapidamente conceitos aparentemente diferentes, e vice-versa (Q 16, 29). Este conceito (a tradutibilidade), relativamente ao perodo carcerrio, se encontra (implcito) j no plano de trabalho exposto na carta para Tania de 19 de maro de 1927. Nela, Gramsci indica uma srie de quatro temas que quer aprofundar e na concluso acrescenta que, apesar da aparente diferena, para quem olha bem, existe homogeneidade entre estes quatros argumentos [...]. Contudo, h vrios intelectuais que no (ou no sempre) conseguem fazer isso do jeito correto, isto , que no conseguem traduzir e, portanto, suas anlises e afirmaes resultam abstratas, desligadas da realidade. Entre eles, Gramsci lista: Sorel e De Man (Q 4, 31), Croce (Q 4, 3; Q 6, 10, etc.), Bucharin (Q 11, 26), Loria (Q 1, 25), Ferrari (Q 1, 44, 44), etc. Quando o critrio mencionado acima no usado da forma correta, realista, no coincide com a tradutibilidade no sentido gramsciano. Trata-se de um critrio usado pelos gregos antigos e estudado e usado na Itlia (barroca), por Emanuele Tesauro e Giambattista Vico.

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    entender o que o autor dos Cadernos escreve cerca de um ano e meio antes deste pargrafo. Nele, refere-se ao que historicamente aconteceu na Frana e na Alemanha nos sculos XVIII e XIX, onde diferentes linguagens (o poltico francs e o filosfico alemo) se tornam realidade, ou seja, produzem efeitos reais. Ao comparar os efeitos dos dois, descobre-se que, apesar de cada atividade ser diferente da outra, os seus efeitos so fundamentalmente parecidos porque produzem a mesma realidade (a realizao da hegemonia da burguesia francesa atravs de uma revoluo ativa na Frana, com a participao ativa do povo, e da hegemonia da burguesia alem atravs de uma revoluo passiva, conduzida pelo alto por intelectuais burgueses alemes) e portanto so traduzveis reciprocamente (Q 4, 42, 467-68, outubro 1930). Ento, ao analisar os seus efeitos reais, descobre-se que estas prxis diferentes no resultam contraditrias, mas se as analisamos do ponto de vista das transformaes que elas produziram, em nvel mais profundo, descobrimos que remetem mesma prxis e viso do mundo. E, de fato, j antes, com referncia implcita tradutibilidade (Q 1, 44, 51) e construo histrico-poltico-cultural da hegemonia burguesa, na Europa dos sculos XVIII-XIX, Gramsci afirma que houve um diferente manifestar-se do mesmo fenmeno em pases diferentes (Q 1, 44, 54 grifo meu). Em outras palavras, o prprio Gramsci afirma que, neste caso, estas diferentes linguagens ou prxis equivalem a expresses diferentes da mesma prxis em movimento.

    5 Os conceitos de prxis, imanncia e filosofia da prxis luz da ideia de tradutibilidade36

    Este olhar para os fenmenos histricos o desenvolvimento do novo olhar de Marx. Dentro dele, Gramsci encontra uma nova filosofia, autnoma e original, que deve ser ulteriormente desenvolvida (cf., por ex., Q 4, 3 e Q 7, 33). No Q 4, 46 (outubro-novembro 1930), o revolucionrio sardo j afirmara, ao referir-se relao entre Filosofia-Poltica-Economia (como titula este pargrafo), que se se trata de elementos

    36 Esta parte deste ensaio, aqui reelaborada, foi apresentada no Seminrio Internacional Gramsci e os Movimentos Populares, 13-16 de setembro de 2010, organizado pelo NuFiPE, UFF, .

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    constitutivos de uma mesma concepo do mundo37, os princpios tericos de cada um se podem reciprocamente traduzir na prpria especfica linguagem de cada parte constitutiva. Neste caso, segundo Gramsci, um elemento implcito no outro e todos juntos formam um crculo homogneo (Q 4, 472 grifos meus). Quando Gramsci reescreveu este texto, destacou o aspecto ativo destes elementos e acrescentou que estes so trs atividades (Q 11, 65, 1492, entre agosto e o fim de 1932 ou o incio de 1933: CC, 1999, v. 1, p. 209 grifo meu), precisamente no sentido de prxis transformadora do mundo. Com efeito, este acrscimo no constitui s uma mudana terminolgica, pois enquanto escrevia estes dois textos, Gramsci, como j vimos, estava ulteriormente elaborando a tradutibilidade, no Q 10 II, 9 (segunda metade de maio de 1932) e na carta para Tania (30 maio 1932), buscando chegar a uma formulao mais geral, para mostrar que a traduo no acontece apenas entre linguagens, no sentido estrito, mas entre atividades humanas.

    Retornando ao assunto no Q 10 II, 9, o terico sardo usar o critrio da tradutibilidade para explicar como nasceu a filosofia da prxis e afirmar que viu a luz atravs do seu uso (implcito) por Marx, isto , de uma traduo. De fato, ele afirma que a filosofia da prxis elaborou sinteticamente os trs movimentos (filosofia, poltica e economia), isto , toda cultura da poca, e que na nova sntese, em qualquer momento que se examine, momento terico, econmico, poltico, reencontra-se como momento preparatrio cada um dos trs movimentos. Quer dizer, a expresso prtica de uma prxis deixa implcito seu lado terico, assim como a sua expresso terica deixa implcito seu lado prtico, mas isso no quer dizer que cada expresso ou atividade humana (prxis) no seja, ao mesmo tempo, um conjunto inscindvel de ambos, embora

    37 Cabe notar que aqui, para Gramsci, a noo de concepo do mundo implica que ela no seja considerada simplesmente como atividade teortica: no Q 10 II, 5, 1217-18 ele escreve que religio toda filosofia, ou seja, toda concepo do mundo, medida em que se tornou f, isto , em que vista no como atividade teortica (de criao de um novo pensamento), mas sim como estimulo ao (atividade tico-poltica concreta, de criao de nova histria) (CC, 1999, v. 1, p. 289 grifo meu). E, de fato, no Q 4, 46 ele est falando de elementos tericos que podem se tornar prticos e vice-versa, se pertencerem mesma concepo do mundo, isto , entendida como algo que j subverteu a prxis afirmando a nova, ou que tende a subvert-la, enquanto tem j alcanado o momento tico-poltico.

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    um lado seja mais (ou menos) histrica e culturalmente desenvolvido do que o outro. Este o resultado da traduo como a fez e a entendeu Marx. Atravs dela se demonstra que o carter comum s trs atividades a indissociabilidade, em cada uma, de prtica e teoria, ou seja, a imanncia recproca destes aspectos (que acontece s no ato concreto e por isso no imanncia especulativa), que o novo conceito que as sintetiza e dele se deduz o carter terreno de qualquer atividade humana racional ou prxis: O momento sinttico unitrio deve ser identificado no novo conceito de imanncia, que da sua forma especulativa, tal como era apresentada pela filosofia clssica alem, foi traduzido em forma historicista graa a ajuda da poltica francesa e da economia clssica inglesa (Q 10 II, 9, 1246-47).

    Com grande escndalo dos idealistas como Croce (1922), ficou claro que a filosofia poderia se encontrar implcita na poltica e at na economia. E, no Q 7, 1, como vimos, Gramsci j afirmara que a estrutura no algo imvel, mas realidade em movimento, pois acontece que a superestrutura algo que reage dialeticamente sobre a estrutura e a muda (idem, 854). Pouco depois teria confirmado que a prxis no e no deve ser entendida como algo que se ope teoria, ou seja prtica esvaziada de pensamento, mas uma relao entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econmica (Q 7, 18, novembro-dezembro 1930 - fevereiro 1931). Contudo, ao desenvolver progressivamente o conceito de tradutibilidade que Gramsci procura entender melhor esta relao dinmica, ou seja, a prxis, como demonstra o retrato ainda mais complexo dela que ele desdobra sucessivamente.

    Portanto, o prprio conceito de tradutibilidade ilumina o de prxis e o de prxis, junto com o primeiro, o de imanncia, isto , o relativo ao carter terreno de qualquer atividade humana. Na carta para Tania e no Q 10 II, 9, Gramsci investiga com novos olhos na estrutura da prpria prtica (cabe notar que at a primavera de 1932 ele no mencionara Ricardo e o papel da sua teoria econmica a respeito do nascimento da filosofia da prxis). Para ele, Marx entendeu que na economia e na teoria econmica de David Ricardo h elementos (as leis tendenciais, etc.) que tm um alcance gnosiolgico e, por isso, podiam se desenvolver em uma nova concepo de mundo. Gramsci escreve: Ricardo tivera um significado na histria da filosofia alm do significado na histria da cincia econmica

  • 91Educao e Filosofia Uberlndia, v. 28, n. 55, p. 59-98, jan./jun. 2014. ISSN 0102-6801

    (LC, 581), e acrescenta:

    A descoberta do princpio lgico formal da lei tendencial, que leva a definir cientificamente os conceitos fundamentais na economia de homo economicus e de mercado determinado no foi uma descoberta de valor tambm gnosiolgico? No implica mesmo uma nova imanncia, uma nova concepo da necessidade e da liberdade, etc.? (LC, 581).

    Tratava-se, portanto, de ver como e em que medida, alm da poltica francesa e da filosofia alem, ao ulterior desenvolvimento da nova teoria tenha contribudo a economia clssica inglesa, na forma metodolgica elaborada por Ricardo (LC 582).

    Nas leis tendenciais ricardianas e no conceito de mercado determinado derivado delas encontra-se, creio, um paradigma prtico-terico que exemplifica a tradutibilidade, ou seja, o nexo entre atividades cientificas e atividades prticas (LC, 582), de uma forma ainda mais clara do que o da poltica francesa em relao ao da filosofia alem38. A respeito disso, na carta para Tania, Gramsci conjectura que, por um lado, ao partir destes dois conceitos (mercado determinado e lei tendencial), Marx teria operado a reduo [traduo - R. L.]39 da concepo imanentista

    38 Na carta para Tania, Gramsci faz a seguinte observao: Que a economia clssica inglesa tenha contribudo ao desenvolvimento da nova filosofia comumente admitido, mas se pensa usualmente teoria ricardiana do valor. Gramsci, ao contrrio, pensa nas leis tendenciais e de mercado determinado. E acrescenta que lhe parece que deva-se olhar mais alm (LC 582). Com efeito, poucas linhas antes, ele formulara a hiptese que Ricardo tivera um significado na histria da filosofia alm da histria da cincia econmica (LC, 581). Portanto, alm indica que Gramsci est enfrentando Ricardo e a sua metodologia por meio da tradutibilidade: o olhar sobre a obra dele deve ser no apenas analtico, referido a uma doutrina particular. Quer dizer, nesta obra no se deve s (= analiticamente) reconhecer o que se limita esfera da economia, mas tambm identificar uma contribuio que diria sinttica prossegue Gramsci isto , que concerne a intuio do mundo e o jeito de pensar (LC, 582-83). E a tradutibilidade expressa, contemporaneamente, a necessidade e a prpria capacidade de ir alm do olhar analtico e unilateral, e de individuar nexos substanciais, permitindo assim sintetizar em novos conceitos os elementos que se encontram conectados, apesar das suas aparentes diferenas.39 Gramsci usa, usualmente, o termo reduo para indicar um tipo de traduo, a no recproca, na qual nem tudo dos elementos a serem traduzidos pode ser traduzido, mas sim, pelo menos, o valor instrumental.

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    da histria expressa com a linguagem idealista e especulativa por Hegel para uma imanncia realista imediatamente histrica (expressa em uma linguagem realista por Marx). Por outro lado, ele assevera que a lei de causalidade das cincias naturais foi depurada do seu mecanicismo e foi sinteticamente identificada com o raciocnio dialtico do hegelianismo (LC 582). Tambm no texto dos Cadernos, Gramsci apontara uma ideia anloga: Em um certo sentido me parece que se possa dizer que a filosofia da prxis igual a Hegel + David e Ricardo (Q 10 II, 9, 1247). Em outras palavras, por um lado, Marx teria descoberto que entre a linguagem de Hegel e a de Ricardo pode estabelecer-se uma equivalncia, na qual no s o primeiro esclarece o que acontece no segundo, mas tambm o segundo ilumina o que acontece no primeiro. Isto , a linguagem filosfica tem (quando e enquanto os tem) efeitos transformadores da realidade, apesar de parecer muito abstrata e parece iluminar isto melhor do que a linguagem da poltica francesa pois, no paradigma ricardiano, e em particular no conceito de mercado determinado, vem tona, de forma mais clara, a imanncia a uma determinada configurao histrico-social de qualquer linguagem terica. Com efeito, o mercado determinado consiste em uma determinada correlao de foras sociais em uma determinada estrutura do aparelho de produo [...] garantida (isto , tornada permanente) por uma determinada superestrutura poltica, moral, jurdica (Q 11, 52, 1477), isto , por determinadas linguagens e elementos culturais, os quais produzem paixes e sentimentos imperiosos que induzem ao a todo custo40 e que, por isso, garantem, ou seja determinam

    40 Parece que o conceito de necessidade histrica est estreitamente ligado ao de regularidade e de racionalidade. A necessidade no sentido especulativo-abstrato e no sentido histrico-concreto. Existe necessidade quando existe uma premissa eficiente e ativa, a conscincia da qual nos homens se tornou operante, ao colocar fins concretos conscincia coletiva e ao constituir um complexo de convices e de crenas que atua poderosamente como as crenas populares. Na premissa devem ser contidas, j desenvolvidas ou em via de desenvolvimento, as condies materiais necessrias e suficientes para a realizao do impulso de vontade coletiva; mas evidente que desta premissa material, quantitativamente calculvel, no pode ser destacado um certo nvel de cultura, isto , um conjunto de atos intelectuais e destes (como seu produto e consequncia) um certo complexo de paixes e de sentimentos imperiosos, isto , que tenham a fora de induzir ao a todo custo (Q 11, 52, 1479-80; cf. CC, 1999, v. 1, 196-97 o segundo grifo meu).

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    a estrutura, mas, se faltarem, faltar tambm todo o mercado. Para Gramsci, o fato do modelo ricardiano no ser determinista de importncia crucial, pois na sua ideia de mercado determinado as superestruturas so o elemento necessrio, j que tambm determina a estrutura modificando-a, diferentemente do modelo materialista mecnico da sociedade ou da interpretao do modelo ricardiano segundo o determinista e mecnico dos economistas neoclssicos:

    O automatismo em contraste com o arbtrio, no com a liberdade. [...] uma liberdade de grupo, em oposio ao arbtrio individualista. Quando Ricardo dizia: postas estas condies, haver tais consequncias em economia, no tornava determinista a prpria economia, nem sua concepo era naturalista. Observava que, posta a atividade solidria e coordenada de um grupo social, que opera segundo determinados princpios aceitos por convico (livremente) em vista de determinados fins, tem-se um desenvolvimento que se pode chamar de automtico e que pode ser assumido como desenvolvimento de certas leis reconhecveis e isolveis com o mtodo das cincias exatas (Q 10 II, 8, 1246; cf. CC, 1999, v. 1, p. 316).

    Desta forma, pode-se compreender porque Gramsci fala, por um lado, de uma reduo de Hegel a Ricardo. De fato, atravs do raciocnio dialtico do hegelianismo, a nova filosofia tem universalizado as descobertas de Ricardo estendendo-as adequadamente para toda a histria, e extraindo delas, portanto, uma nova concepo do mundo (Q 10 II, 9, 1247; CC, 1999, v. 1, p. 318). Em relao a esta questo, Gramsci j observara que para a filosofia da prxis o prprio mtodo especulativo no futilidade, mas foi fecundo de valores instrumentais do pensamento, que a filosofia da prxis incorporou (a dialtica, p. ex.) (Q 10 I, 1211; CC, 1999, vol. 1, p. 283; cfr. Q 10, 1235). Quer dizer, por um lado, Marx teria interpretado como momento (dialtico) de um devir histrico mais amplo o que o modelo ricardiano descreve abstratamente embora Gramsci destaque que esta abstrao de Ricardo seja uma abstrao determinada. Ele teria traduzido o valor instrumental da dialtica como para Gramsci se pode deduzir ao ler as Teses marxianas, em particular a segunda e a

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    terceira (sobre a recproca influncia de homem e ambiente, estrutura e superestrutura, etc.). Por outro lado, a teria utilizado para interpretar as dinmicas dialticas internas ao prprio modelo ricardiano do mercado determinado, que so as mesmas que o conectam para toda histria atravs de seu prprio desenvolvimento poltico e histrico. Isto parece implicar o conceito da extenso para toda a histria das descobertas de Ricardo e, portanto, tambm da lei tendencial.

    Com efeito, cabe observar que, para Gramsci, as leis econmicas de tendncia no so naturais ou do determinismo especulativo, mas so superestruturas histricas que explicam o mercado determinado e que podem ser compreendidas s enquanto este mercado acontece. Contudo, ele acontece porque sempre um conjunto prtico-terico no naturalmente, mas historicamente, necessrio, isto , cuja necessidade, ou melhor regularidade41, o resultado, como acenamos acima, da dialtica interna entre prtica e teoria, economia e cultura. E as leis se referem, no caso ricardiano, a este conjunto dinmico teoria-prtica, superestrutura-estrutura, enquanto estes elementos estiverem em uma configurao relativamente (isto , politicamente e historicamente) equilibrada e estvel. Por isso, so tendenciais, ou seja, histricas e no eternas.

    Gramsci acrescenta tambm que a economia estuda estas leis tendenciais enquanto expresses quantitativas dos fenmenos; os histricos e polticos (como Gramsci) tambm enquanto expresses qualitativas, isto , enquanto so, ao mesmo tempo, linguagens-ideologias e hi