25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer...

244

Transcript of 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer...

Page 1: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira
Page 2: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira
Page 3: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

ANO XII – 2014 – Nº 52

DiretoresElton José Donato

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini Saavedra

Conselho EditorialAlexandre Wunderlich (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Álvaro Sanchez Bravo (Universidade de Sevilha)Aury Lopes Jr. (Pontifícia Universidade Católica/RS)Arndt Sinn (Universidade de Osnabrück, Alemanha)

David Sanchez Rúbio (Pontifícia Universidade Católica/RS)Elizabeth Cancelli (Universidade de Brasília)

Fabio Roberto D’Avila (Pontifícia Universidade Católica/RS)Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo)

Gabriel José Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica/RS)Geraldo Prado (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Giovani Agostini Saavedra (Pontifícia Universidade Católica/RS)Luiz Eduardo Soares (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Rodrigo Moraes de Oliveira (Pontifícia Universidade Católica/RS)Rui Cunha Martins (Universidade de Coimbra)

Ruth Maria Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica/RS)Tomás Grings Machado (Universidade do Vale do Rio dos Sinos /RS)

Vittorio Manes (Universidade de Salento, Itália)

Conselho do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (www.itecrs.org)

Andrei Zenkner SchmidtAlexandre Wunderlich

Daniel GerberFelipe Cardoso Moreira de Oliveira

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini SaavedraJader da Silveira Marques

Marcelo Machado BertoluciPaulo Vinícius Sporleder de Souza

Rodrigo Moraes de OliveiraSalo de Carvalho

Page 4: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Uma publicação do ITEC (Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais) e da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos do grupo SAGE.

Revista de estudos CRiminais – ano Xii – nº 52Periodicidade trimestral – Tiragem 2.000 exemplares

ASSINATURAS: São Paulo: (11) 2188-7507 – Demais Estados: 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico:São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188-7900

Demais Estados: 0800.7247900

www.sintese.com

Os conceitos emitidos em trabalhos assinados são de responsabilidade de seus autores. Os originais não serão devolvidos, embora não publicados. Os artigos são divulgados no idioma original ou traduzidos.

Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias dos originais obtidas na Secretaria do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais.

Proibida a reprodução parcial ou total, sem autorização dos editores.

E-mail para remessa de artigos: [email protected]

© Revista de estudos CRiminais® ISSN 1676-8698

IOB Informações Objetivas Publicações Jurídicas Ltda.R. Antonio Nagib Ibrahim, 350 – Água Branca 05036‑060 – São Paulo – SPwww.iobfolhamatic.com.br

Telefones para ContatosCobrança: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900E-mail: [email protected]

Renovação: Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7283888

Page 5: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Sumário

Doutrina EstrangEira

9 Avoiding Conflicts of Criminal Jurisdiction (Arndt Sinn)

35 Disquisición a Propósito de la Muerte Digna (Fernando M. Machado Pelloni)

Doutrina nacional

81 A Diferenciação Interna do Subsistema Jurídico- -Penal: História, Organizações e Trajetórias

(Bruno Amaral Machado)

115 “Escola Positiva” e a Construção da Identidade Científica de João Vieira de Araújo (1884-1889)

(Ricardo Sontag)

145 “Eu, Vigilante”: (Re)Discutindo a Cultura Punitiva Contemporânea a Partir das Redes Sociais

(Gustavo Noronha de Ávila e Marcelo Buttelli Ramos)

163 Eficiência, Garantias e Justiça no Processo Penal (Miguel Wedy)

187 Crimes de Colarinho Branco, Seletividade Sistêmica e Modelo Sancionatório à Luz da Análise Econômica do Direito Penal

(Guilherme Gouvêa de Figueiredo)

215 Violência Urbana e Teoria Ecológica do Crime: Contribuições para a Compreensão do Fenômeno Criminal na Cidade de Maceió

(Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos)

Page 6: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira
Page 7: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EStrangEira

9 Avoiding Conflicts of Criminal Jurisdiction (Arndt Sinn)

35 Disquisición a Propósito de la Muerte Digna (Fernando M. Machado Pelloni)

Page 8: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira
Page 9: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

9

Avoiding ConfliCts of CriminAl JurisdiCtionin the europeAn union – present And future

Arndt Sinn*

RESUMO: Os Estados membros da UE acordaram em harmonizar suas leis penais, resultando em uma europeização da lei penal nacional. Em troca, prometeram aos cidadãos europeus que eles viveriam em uma “área de liberdade, segurança e justiça”. Deveria ser óbvio que esta área não se destina a ser uma first-class lounge para o cidadão europeu ideal. E nós ainda estamos muito distantes deste ideal: até mesmo a questão de qual sistema legal deve ser aplicado a uma infração penal que atinge múltiplos Estados membros não foi adequadamente tratada. Em vez disso, a UE consiste em 27 áreas, cada uma representando uma sala do tribunal onde o réu pode ser condenado dentro dos limites da jurisdição penal do seu próprio direito. Evitar conflitos de jurisdição penal requer uma solução europeia. A decisão-quadro2009/948/JHA do Conselho, de 30 de Novembro de 2009, sobre prevenção e resolução de conflitos de jurisdição em matéria penal, perdeu a chance de propor uma solução que faça justiça à ideia de uma área comum. Este artigo analisa a decisão-quadro, ressalta suas fraquezas e centra-se no verdadeiro problema: as normas de jurisdição penal

* Arndt Sinn holds a professorship in German and European Criminal Law and Criminal Procedure and International and Comparative Criminal Law at the University of Osnabrück, Germany, where he is also director of the Centre for European and International Criminal Legal Studies (ZEIS), which he founded in 2009. Since 2009, he has been vice-president of the International Forum on Crime and Criminal Law in the Global Era (IFCCLGE). Prof Sinn is a member of the European Working Group on Legal Initiatives against Organized Crime, a research network with members in all of Europe, the US, Brazil, and Japan. He is a member of the editorial board of the Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik (www.zis-online.com) and of the journals National Security (Moscow), Revista de Estudos Criminais (Brazil), and Acta Juridica et Politica (Szeged, Hungary). His research was recognized with the Dr. Herbert Stolzenberg Prize of the Justus Liebig University of Gießen in November 2006. In 2010, he initiated a broad compararive-law project on jurisdictional conflicts in transnational criminal law.

Page 10: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

10

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

10

dos Estados membros. Propõe dois novos modelos de solução possíveis, decorrentes de um longo projeto de direito comparado, iniciado pelo autor.PALAVRAS-CHAVE: Conflitos de jurisdição penal, União Europeia, Decisão-quadro2009/948/JHA do Conselho.ABSTRACT: The Member States of the EU have agreed to harmonize their criminal law, bringing about a Europeanization of national criminal law. In return, they have promised the citizens of Europe that they will live in an “area of freedom, security, and justice”. It should be obvious that this area is not intended to be a first-class lounge for the ideal EU citizen. And we are still a long way from this ideal: even the question of which legal system should apply to a criminal offence that touches multiple Member States has not been adequately addressed. Instead, the EU consists of 27 areas, each representing a courtroom where a court can convict a defendant within the bounds of its own law’s criminal jurisdiction. Avoiding conflicts of criminal jurisdiction requires a European solution. The Council Framework Decision 2009/948/JHA of 30 November 2009 on prevention and settlement of conflicts of exercise of jurisdiction in criminal proceedings missed a chance to propose a solution that does justice to the idea of a common area. This article analyses the Framework Decision, highlights its weaknesses, and focuses on the actual problem: the criminal jurisdiction statutes of the member states. It proposes two new models of a possible solution that have emerged from a sweeping comparative law project initiated by the author.KEyWORDS: Conflicts of criminal jurisdiction; European Union; Council Framework Decision 2009/948/JHA.

A. INTRODUCTION

“The Union shall constitute an area of freedom, security and justice with respect for fundamental rights and the different legal systems and traditions of the Member States” (Art 67(1) TFEU; see also Art 3(2) TEU). The entirety of Title V of the Treaty on the Functioning of the European Union is devoted to the “area of freedom, security, and justice”, inviting the assumption that it is more than a European political slogan and is instead intended as a guarantee to the citizens of the EU. The bases for bringing about this area of freedom, security, and justice are the Tampere Programme (1999-2004)1, the Hague Programme (2004-2009)2, and the Stockholm Programme

1 Presidency Conclusions, Tampere European Council, 15-16 October 1999, available at http://www.europarl.europa.eu/summits/tam_en.htm (last accessed 15 October 2012).

2 [2005] OJ C53/1, 3 March 2005; cfCOM(2005) 184 of 10 May 2005.

Page 11: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

1111

(2010-2014)3. One of the earliest stated objectives of the present and future AFSJ was to prevent offenders from exploiting the differences in the Member States’ criminal justice systems to their advantage. It was thus decided early on that verdicts and decisions of national courts should, while ensuring proper adherence to standards of legal certainty for citizens and economic actors, enjoy recognition and enforcement throughout the Union4. The principle of mutual recognition became the cornerstone of European criminal law and criminal procedure5. The content, scope, and legitimacy of this principle are a matter of considerable controversy6. But a larger problem went essentially unnoticed: the recognition, grounded in public international law, of other states’ criminal jurisdiction and the inevitable conflicts that come about as a result. The problem could be avoided if recognizing the authority of one state to prosecute effectively barred other states from doing so. But that is not the case, since the individual sovereignty of each state leads to an accumulation of applicable laws, not, as with private international law, a conflicts regime7. It has been recognized at least since the decision of the PCIJ in the Lotus case8 that a state’s criminal jursidiction can extend beyond its territory as permitted by public international law. Within these legal bounds, prosecutorial authority is an extension of state sovereignty. The basic position is that unless it is exercised arbitrarily9, the scope of individual states’ prosecutorial authority is unlimited.

3 [2010] OJ C115/1, 4 May 2010.

4 cf Presidency Conclusions (n above) No 5.

5 cf Presidency Conclusions (n above) No 33 et seq. An extensive discussion of this principle can be found in Nalewajko, Grundsatz der gegenseitigen Anerkennung, Eckstein der justiziellen Zusammenarbeit in Strafsachen in der Europäischen Union? (Berlin, 2010).

6 Ambos, ZIS 2010, 557, Bovenschulte, Rechtliche Probleme der Umsetzung des Prinzips der gegenseitigen Anerkennung von Entscheidungen über Geldstrafen und Geldbußen – Am Beispiel von Verkehrsdelikten im Verhältnis Deutschland und Österreich (Hamburg 2008), Hecker, Europäisches Strafrecht (3rd edn, Heidelberg 2010) ch 12 para 58 et seq, Heger, ZIS 2009, 406, Kaiafa-Gbandi, ZIS 2006, 521, Nalewajko (n above) incl. citations, Peers, CMLR 2004, 5, 23, Satzger, StV 2003, 141, id, Internationales Strafrecht (4th edn, Baden-Baden 2010) ch 10 para 24, Schünemann, ZIS 2007, 528, id, ZIS 2010, 515.

7 cf Hecker (n above) ch 2 para 2-3, Satzger (n above) ch 3 para 4.

8 PCIJ Series A No 10 (7 September 1927).

9 MüKo/Ambos, introduction to §§ 3-7 para 19 ff, Hecker (n above) ch 2 para 9 ff, Kasper, MDR 1994, 545, Satzger (n 6 above) ch 4 para 2.

Page 12: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

12

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

12

From the perspective of public international law, there is nothing to bar states from exercising their jurisdiction over matters which also have connections to other states as long as there is a “genuine link”10 with the prosecuting state. In fact, the logic behind this principle is to create a thick “net” of competing criminal jurisdictions11, ensuring that every offence can be prosecuted somewhere. But for the accused, an accumulation of criminal jurisdictions leads to uncertainty, since he cannot know where he may be prosecuted (and thus with which law he must comply). But one of the basic jobs of the criminal law is to account for freedom: citizens’ freedom from prosecution12.

The coexistence of different criminal jurisdictions within the “area of freedom, security, and justice” leads to multiple prosecutions of the same offence and even to repeat punishment for the same crime. This problem must be solved.

B. THE INTERNATIONAL NE BIS IN IDEM PRINCIPLE, ART 54 OF THE SCHENGEN IMPLEMENTING CONVENTION, AND ART 50 OF THE CHARTER OF FUNDAMENTAL RIGHTS OF THE EUROPEAN UNION

The transnational prohibtion on repeat punishment is only a partial solution. It only applies when the process is so advanced in the first prosecuting state as to have brought about an enforceable verdict. Article 54 of the Schengen Implementing Convention and Art 50 of the Charter of Fundamental Rights of the EU13 thus protect against multiple punishments for, but not multiple prosecutions of the same offence. Nothing stops an individual from being subjected to criminal proceedings in multiple

10 “real link”, ICJ 6 April 1955, “Nottebohm Case” Liechtenstein v Guatemala [1955] ICJ 4; “genuine link”, ICJ 5 February 1970, “Barcelona Traction Case” Belgium v Spain [1970] ICJ 3. BVerfGE 92, 277, 320, BGHSt 46, 212, 225, Hecker (n 6 above) ch 2 para 9 and citations.

11 Lagodny, Empfiehlt es sich, eine europäische Gerichtskompetenz für Strafgewaltskonflikte vorzusehen? Gutachten im Auftrag des Bundesminsteriums der Justiz (Berlin 2001); also amongthecritics Böse and Meyer, ZIS 2011, 336, 337, Vogel in Hoyer, Müller, Pawlik, and Wolter (eds), Festschrift für Friedrich-Christian Schroeder zum 70. Geburtstag (Heidelberg 2006) 877, 891 ff.

12 Sieber, ZStW 121 (2009), 1, 8.

13 On the interpretation of Art 54 CISA in light of Art 50 CFREU see Hecker (n 6 above) ch 13 para 38 ff.

Page 13: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

1313

states, since individual states’ forbearing to prosecute is simply the result of a cooperation generalized by Art 54 of the Schengen Implementing Convention14.

An example:

One does not have to reach for the much-discussed extreme examples of transnational organized crime or terrorism in order for the problems of multiple parallel prosecutions to be illustrated vividly. Take, for instance, the killing of a French citizen by a German citizen in Spain. Three criminal jurisdictions immediately lay claim to the prosecution of the offender. Three procedures are initiated, three prosecutors set to work against the accused. Germany has jurisdiction under § 7(2)(1) StGB, which states that German criminal law applies to offences committed abroad by German citizens that would also have been crimes under the law of the place where the offence was committed. Spain has jurisdiction under Art 23 LOPJ (its Law on Judicial Authority) since the offence was committed on Spanish territory, and France has jurisdiction because its criminal code applies to every offence committed against a French citizen abroad (Arts 113-117 CP). According to the recognized principles of public international law when determining national criminal jurisdiction, Germany can rely on the active personality principle, Spain on the territoriality principle, and France on the passive personality principle.

Such a case makes it clear how easily an offender can find himself in a situation where three states have the power to convict him under their respective laws. If the offender is at large, he can find himself confronted with three prosecutions for one offence if each state decides to exercise their jurisdiction. This situation is not only ineffective and expensive; it is also unnecessary, since the offender has only committed one offence and need only be punished one time. He should not of course have the privilege of choosing the land likely to treat him most leniently. But neither should he be kept in the dark about the country in and legal system under which he faces prosecution: that is part of what an area of “justice” requires. Justice

14 See Eser and Burchard in Derra (ed), Festschrift für Jürgen Meyer zum 70. Geburtstag (Baden-Baden 2006) 499, 521, Vander, Beken, Vermeulen, and Lagodny, NStZ 2002, 624, Schomburg and Suominen-Picht, NJW 2012, 1190 ff.

Page 14: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

14

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

14

and the rule of law are concerned with creating legal certainty. The present resolution of cases where offenders face multiple parallel prosecutions relies either on informal coordination after the offence (and thus opens the door to e.g. police agreements about where to arrest the offender)15 or simply a first-come-first-served pecking order16.

Coincidence or informal arrangement about place of arrest thus decide the future course of the prosecution and punishment, and on the applicable law. And in cases of the former, prosecution often comes only after an extensive extradition proceeding, bringing with it further uncertainties.

C. SOLUTIONS

In the search for possible solutions to conflcts of jurisdiction, every model falls on a spectrum between certainty on the one hand and the “net” of jurisdictions on the other. The net idea dominates the models that seek to solve the jurisdictional conflict as late as possible, as is most clearly illustrated by the European ne bis in idem solution. The net remains extended until the final resolution of a prosecution in one state, and multiple prosecutions remain possible. It is only in the carrying-out of the sentence that the rule attaches at the last minute to prevent a person from being punished twice for the same offence17. At the other end are models that seek to decide the jurisdiction question at the earliest possible moment, even, where possible, by making a decision before the offence is committed and foreclosing any possibility of multiple prosecutions at all. The goal here is the elimination of the “net” in favour of jurisdictional law that allows the prosecuting authority to be determined before the offence is committed18. But models are conceivable that float between these extremes, even as they favour one or the other by e.g. permitting informal

15 cfLagodny (n 11 above) 60.

16 Hecker, ZIS 2011, 60.

17 See the criticisms in n 14 above as well as the explanatory memorandum of the Council of 20 January 2009, 5208/09 ADD 2.

18 Eser and Burchard (n 14 above) 521, Fuchs in Schünemann (ed), Ein Gesamtkonzept für die europäische Strafrechtspflege (Cologne 2006) 112, 114. Böse and Meyer also advocate deciding jurisdiction before the offence is even committed: ZIS 2011, 336 ff. Ambos advocates a hierarchy among the decisive principles of public international law, cf MüKo/Ambos, Introduction to §§ 3-7 para 63 and id, Internationales Strafrecht (3rd edn, 2011) ch 4 paras 10 ff. Satzger (n 6 above) ch 4 para 5 advocates a pan-European territoriality principle.

Page 15: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

1515

coorindination among prosecuting authorities19 or the decoupling of substantive law from jurisdictional rules20.

I – EU solutions

Within the EU, multiple parallel prosecutions of different individuals for the same offence or for directly connected offences are on the rise, a development that the Council and the Commission have noted with increasing concern21. Solving the competence conflicts described above is one of the most urgent problems in the development of European criminal law22.

The EU’s competence to address the problem at the highest level comes from Art 82(1)(b) TFEU. This provision gives the European Parliament and the Council the power to pass measures under the ordinary legislative procedure to “prevent and settle conflicts of jurisdiction between Member States”.

II – The Framework Decision on prevention and settlement of conflicts of exercise of jurisdiction in criminal proceedings

Even before the TFEU entered into force, the Council, acting on the competence conferred by the former Art 31(1)(c) and (d) TEU, adopted on 30 November 2009 Framework Decision 2009/948/JHA on the prevention and settlement of conflicts of exercise of jurisdiction in criminal proceedings23. The Framework Decision came into force on 15 December 2009, and Member States were required to implement it by 15 June 2012. The old Art 31(1)(c)-(d) TEU was rather more narrowly formulated than the present rule in Art 82(1)(b) TFEU, speaking as it did only of the avoidance of conflicts of competency

19 cfBiehler, Kniebühler, Lelieur-Fischer, and Stein (eds), Freiburg Proposal on Concurrent Jurisdiction and the Prohibition of Mulitiple Prosecutions in the European Union (Freiburg 2003); see also the qualitative model by Lagodny (n 11 above) 104 ff as well as Schünemann (ed), EinGesamtkonzept für die europäische Strafrechtspflege (Cologne 2006). Consensus-based procedures are advocated by Schomburg and Suominen-Picht, NJW 2012, 1190, 1193.

20 Fuchs (n 18 above) 115-116.

21 Explanatory Report of 20 January 2009, Council Framework Decision on the prevention and settlement of conflicts of exercise of jurisdiction in criminal proceedings, document 5208/09 ADD 2.

22 cf LK-Werle/Jeßberger (12th edn, 2007) Introduction to § 3 para 46.

23 [2009] OJ L328/42 (hereafter just “FD”).

Page 16: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

16

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

16

between member states. This nuance is not entirely meaningless, since it points toward authority to prevent competence or jurisdiction conflicts from ever arising in the first place, while the mention of “settlement” in the title of the Framework Decision puts coordination measures on equal footing. The title of the Framework Decision is oriented toward the new Art 82(1)(b) TFEU rather than the old Art 31(1)(c)-(d) TEU, surely a result of the immediately pending Lisbon Treaty at the time of the decision. But it is clear that these conflicts have not yet been able to be “prevented”, which is why the remit was expanded to “settling” them in the interim.

1 The content of the Framework Decision

The goal of the Framework Decision is to avoid parallel prosecutions by mandating consultations between Member States’ authorities at an early stage. In this case, “parallel proceedings” is used as an umbrella term covering both investigations and court proceedings that are pending in respect of the same offence or offences in multiple Member States against the same person (Art 3(a) of the Framework Decision). The goal is to be reached (solely) by setting specifications for direct consultation and information exchange between the relevant authorities in each Member State24. The authorities must, through direct consultation, attempt to reach agreement on an efficient solution that “avoid[s] the adverse consequences arising from parallel proceedings and [...] waste of time and resources of the competent authorities concerned”25. The Framework Decision considers the concentration of proceedings in a single member state an example of an efficient solution, but states that “any other measure” aimed at the efficient and sensible conduct of proceedings, including dividing the offence into chronological slices, can be seen as having conflict-solving potential. The Council’s draft Framework Decision contained a catalogue of criteria for determining the Member State best-placed to carry out the prosecution26, but it was stricken from the final version before passage27. In cases where the Member States cannot reach consensus, Eurojust

24 Recital 17 FD.

25 Recital 4 FD.

26 Council document 5208/09 of 20 January 2009.

27 cf Art 15 of the draft (n 26 above): Criteria to determine the best placed jurisdiction

Page 17: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

1717

is to be called in to act within the bounds of its competencies (Art 12 of the Framework Decision).

2 The Framework Decision’s conflict-solving potential

The Framework Decision is disappointing. It does little to advance the Council’s stated goal of “maintaining and developing an area of freedom, security, and justice”28. The entire architecture of the AFSJ seems to be based on the guiding principles of efficiency and efficacy. Information duties for the benefit of the accused, binding deadlines, and legal rights are guarantees that form the foundation of the rule of law, but this framework provides for opaque procedural arrangements between the prosecuting authorities of the Member States. Eurojust lacks even the simplest decision-making competence, though this would be urgently needed where there is no consensus between the Member States. Instead, we are told that “[n]o Member State should be obliged to waive or to exercise jurisdiction unless it wishes to do so”29. Giving

1. There shall be a general presumption in favour of conducting criminal proceedings at the jurisdiction of the Member State where most of the criminality has occurred which shall be the place where most of the factual conduct performed by the persons involved occurs.

2. Where the general presumption according to paragraph 1 does not apply due to the fact that there are other sufficiently significant factors for conducting the criminal proceedings, which strongly point in favour of a different jurisdiction, the competent authorities of Member States shall consider those additional factors in order to reach an agreement on the best placed jurisdiction. Those additional factors shall include, in particular, the following:

– location of the accused person or persons after an arrest and possibilities for securing their surrender or extradition to the other possible jurisdictions,

– nationality or residence of the accused persons, – territory of a State where most of the damage was sustained, – significant interests of victims, – significant interests of accused persons, – location of important evidence, – protection of vulnerable or intimidated witnesses whose evidence is of importance to the

proceedings in question, – the residence of the most important witnesses and their ability to travel to the Member

State where most of the criminality has occurred, – stage of proceedings reached for the facts in question, – existence of ongoing related proceedings, – economy of the proceedings.

28 Recital 1 FD.

29 Recital 11 FD.

Page 18: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

18

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

18

Eurojust this power would require new legislation30, but that is a step one must be willing to take.

Only time will tell whether the Framework Decision is at all suitable for preventing competence conflicts. But it is doubtful, not least because the obligation of prosecutors to seek contact with other Member States only arises when they have “reasonable grounds” to believe that parallel proceedings are running in respect of the same offence in another member state (Art 5(1) of the Framework Decision). Going forward, it will be critical to ensure that prosecuting authorities receive word of parallel proceedings in other Member States in a timely fashion. But that will only be feasible if prosecutions are increasingly reported in databases that can be accessed by prosecuting authorities in other Member States, creating entirely new data protection problems.

In the absence of a catalogue of criteria for determining which state should be responsible for prosecution, it is impossible to monitor the exercise of this discretion. Article 9 of the Framework Decision hints at criteria such as the location where the greatest damage is incurred; the residence of the suspect or accused; the interests of the accused, the victims, or the witnesses; the reliability of evidence; or possible delays in one forum or another. But Art 11 of the Framework Decision (“Procedure of Reaching Consensus”) states only that the prosecuting authorities must consider the “facts and merits of the case and all the factors which they consider to be relevant”. In criminal proceedings, this is obvious to the point of banality. It is certainly not something that one needs a Framework Decision in order to set out. The EU is based upon the rule of law (cf Preamble and Art 2 TEU). But the Framework Decision contains no procedural provisions for arriving at consent that are any more specific than the general principle of the rule of law would require. That is its real defect.

But the Framework Decision does at least lay out a path that addresses its goal and may serve as a basis for future models for solving jurisdictional conflicts: “In the common area of freedom, security and justice, the principle of mandatory prosecution, governing the law of procedure in several Member

States, should be understood and applied in a way that it is deemed to be fulfilled when any Member State ensures the criminal prosecution of

30 See Hecker, ZIS 2011, 60, 62.

Page 19: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

1919

a particular criminal offence”31. Whether one wants to begin the rollback of national jurisdictional rules before or after the commission of the offence, both possibilities offer ways to prevent multiple prosecutions of the same offence.

III – The immediate goal

The immediate goal of future legislation on jurisdictional conflicts should be to correct the deficiencies of the Framework Decision. One possibility for doing so has been provided by Hecker, who has developed a catalogue of criteria for determining criminal jurisdiction. He also proposes an abuse-prevention clause that would hinder “forum shopping” to the detriment of the accused. In cases where consensus cannot be reached, the decision on forum should rest with Eurojust, whose decisions in turn are reviewable by the CJEU32.

Building on these recommendations, the European Working Group has, in cooperation with the Centre for European and International Criminal Legal Studies (ZEIS), developed a model that can serve as the basis for a future regulatory mechanism33:

The agreed jurisdiction model

I – Basis

1. The goal of the agreed jurisdiction model is to interface with and expand on the rules in the framework decision on the avoidance and resolution of jurisdictional conflicts in criminal proceedings, increasing the regulatory framework’s resistance to manipulation.

2. The further development of the existing legal instruments at EU level is possible without making changes to the European constitution (the TEU and the TFEU). The dogmatic and technically difficult and politically impossible harmonization of national criminal jurisdictional laws, which is anyway limited to specific offences (Art 83(1) TFEU), will not be necessary.

31 Recital 12 FD.

32 See Hecker (n 30 above) 62 f.

33 The results of the study and the model were published as Sinn (ed), Conflicts of jurisdiction in cross-border crime situations. A study on international criminal law (Göttingen 2012).

Page 20: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

20

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

20

3. This concept does not assign jurisdiction until after the offence has been committed, but in doing so, it respects the primary and legitimate right of the accused not to be prosecuted in multiple countries for the same offence.

II – Draft directive

The framework decision 2009/948/JHA of 30 November 2009 should be changed by issuing a directive under Art 82(1)(2)(b) TFEU through the Council and the Parliament as follows:

Proposal for a directive amending the framework decision on the avoidance and resolution of jurisdictional conflicts in criminal proceedings of 30 November 2009 [2009] OJ L 328/1942

Current rule:

Article 10

Obligation to enter into direct consultations

1. When it is established that parallel proceedings exist, the competent authorities of the Member States concerned shall enter into direct consultations in order to reach consensus on any effective solution aimed at avoiding the adverse consequences arising from such parallel proceedings, which may, where appropriate, lead to the concentration of the criminal proceedings in one Member State.

2. As long as the direct consultations are being conducted, the competent authorities concerned shall inform each other of any important procedural measures which they have taken in the proceedings.

3. In the course of the direct consultations, competent authorities involved in those consultations shall whenever reasonably possible reply to requests for information emanating from other competent authorities that are involved in those consultations. However, when a competent authority is requested by another competent authority to provide specific information which could harm essential national security interests or could jeopardise the safety of individuals, it shall not be required to provide that information.

Article 11

Procedure of reaching consensus

When the competent authorities of Member States enter into direct consultations on a case in order to reach consensus in accordance with Article 10, they shall consider the facts and merits of the case and all the factors which they consider to be relevant.

Proposed Article 12:

Objective of the consultations

Page 21: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

2121

(1) The general objective of the consultations concerning which Member State is best placed to conduct the criminal proceedings is to achieve an agreement that the national prosecuting authorities of a single Member State will conduct the proceedings concerning every part of the criminal conduct over which the prosecuting authorities of more than one Member State might have jurisdiction.

(2) If proceedings in a Member State are ongoing in respect of criminal conduct that is discovered to be related to the conduct over which consultations are being conducted under (1) above, but the conduct is not the same incident, or it is not practically possible, particularly because of the high degree of complexity of the facts or the large number of defendants, to conduct all of the criminal proceedings in a single Member State, it may prove more appropriate to conduct in multiple Member States parallel criminal proceedings which address different conduct or different persons.

Proposed Article 13:

Criteria for determining the Member State to serve as forum

(1) The Member State in which the criminal conduct was substantially committed is presumed to be the best forum for the criminal proceedings in respect of that criminal conduct. This is the Member State in which the accused committed the substantial part of the criminal acts or in which the substantial part of the criminal consequences were brought about.

(2) If the presumption in paragraph 1 above is not applicable because additional important factors weigh on the decision to conduct criminal proceedings that speak for the choice of another Member State as forum, the responsible authorities of the relevant Member States must respect these factors in coming to an agreement about the state best suited to serve as the forum for the criminal proceedings. These additional factors include:

– The territory of a Member State in which the most harm has been inflicted, taking into account the number of victims, property damage, and further serious consequences or the degree of upset of the local population;

– The citizenship and residency of the accused;

– Significant interests of the victims;

– The location of important evidence;

– The protection of endangered or intimidated witnesses whose testimony is important for the proceedings;

– The residence of the most important witnesses and their ability to travel to the Member States in which the offence was primarily committed;

Page 22: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

22

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

22

– The stage reached by proceedings already running in respect of the offence;

– Whether proceedings are already running in respect of the same;

– Procedural economy.

Comment – A catalogue of criteria should be included in the directive that enables the competent authorities in the Member States involved to decide which state will serve as the forum for both the investigation and the trial in the case at hand. It is advisable to include the list in the form of an ordered hierarchy that still leaves enough room for flexible decisions in individual cases. The traditional components of criminal jurisdictional law should be combined with qualitative criteria. The proposed concept is as follows:

1. General presumption of the territoriality principle with respect to the location of the conduct and the criminal consequences; the presumption can be rebutted by reference to the issues below if they are more important or should be given more weight in a particular case. There is no need to single out priority for a national security principle, since for attacks on a Member State or its constitutional order, the territoriality principle applies. If multiple countries are subjected by a political crime to a national security threat, the substantive criteria below (“focus of the offence”) will assist in making a proper determination.

2. Subsidiary to No. 1: the active and passive personality principles, with the active taking priority over the passive.

The deciding factor is where the “centre” of the offence is situated. The factors considered should be the following:

– Where was the most harm suffered? (number of victims, property damage, and further serious consequences or the degree of upset of the local population, etc.);

– interests of the victims;

– interests of the accused (working language of the court, resocialization prospects)

– location of important evidence;

– protection of endangered or intimidated witnesses whose testimony is critical for the proceedings;

– the residence of the most important witnesses and their ability to travel to the Member State where the offence was principally committed;

– procedural economy (whether parallel proceedings are ongoing and what stage they have reached; the ability to ensure the accused’s appearance)

The model also permits “mixed solutions” – the proceedings can be carried out in Member State A and sentence enforced in Member State B.

Page 23: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

2323

The added value of a criteria catalogue is in additional transparency of the jurisdiction decision as well as the guarantee of judiciability (proper, non-arbitrary exercise of discretion).

Whether the person is capable of standing trial is always a matter of the substantive law of the state where proceedings are conducted. The application of foreign law – unknown in practice and democratically extremely problematic – is ruled out, respecting the principle of forseeability of sanction. This elementary principle of criminal law merely demands that offenders be able to foresee the punishability of their behaviour, and the conduct must be punishable at the time it is committed. It does not mean that it must be certain at the time of the offence which of multiple possible states will ultimately conduct the proceedings. Every offender can and generally does know that committing cross-border offences or offences with a significant foreign element can lead to prosecution in another one of the countries involved.

(3) The determination as to forum is void if it constitutes abuse of process.

Comment: A generally-formulated anti-abuse clause should be included, in which it is explicitly stated that an abusive forum assignment is a nullity. Interpretation of the clause will then be a matter for the ECJ. The recitations to the directive can make clear that the decision on jurisdiction is presumed not to be abusive when prosecution is only possible in one state (because the limitation period has run in all the others or because one state has issued a pardon or will not admit evidence, etc.). The key factor here is whether the criteria listed in the directive have been properly taken into consideration in exercising the discretion it grants. The level of arbitrariness giving rise to a void decision on forum is typically a result of a desire to deliberately disadvantage the accused. If the Member State forum is determined solely on the basis of a desire to disadvantage the accused, it will always constitute abuse of process. One example of this might be a group of Romanian offenders, five adults and two 17-year-olds, arrested for trafficking in stolen cars in Germany. While the adults are prosecuted in Germany, the 17-year-olds are sent to Romania in order to get around German sentences for youthful offenders, which are seen as too lenient.

Proposed Article 14:

Involvement of Eurojust

(1) National prosecuting authorities are free at any stage of internal criminal proceedings:

a) to consult Eurojust;

Page 24: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

24

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

24

b) to decide to involve Eurojust in specific cases in which there is a question as to which Member State would be best suited to conduct a criminal proceeding.

(2) If multiple national prosecuting authorities cannot reach an agreement as to the Member State best placed to serve as the forum of criminal proceedings arising out of a given incident, they are required to involve Eurojust. The Member States involved must inform Eurojust of the reasons that agreement has not been reached.

(3) In cases involving paragraph 1(b) and 2, Eurojust must issue a quick and binding decision under the criteria in Article 13 as to the Member State which will serve as the forum of the criminal proceedings.

Comment: This proposal takes into account at every stage the accused’s right to a speedy trial. This is all the more important in these cases since the proceedings involved here will typically involve offenders in custody and be subject to the strict jurisprudence of the ECtHR and, in Germany, the Bundesverfassungsgericht.

Proposed Article 15:

Judicial review

(1) The Member States affected by the decision under Art 14(3) may apply for judicial review within one week of the issuance of the decision.

(2) The accused person or persons affected by the decision under Art 14(3) may apply for judicial review within one week of the issuance of the decision. The accused only has standing to apply for review of the decision on the basis that the Art 13 criterion of his individual rights was not sufficiently respected in the making of the decision.

(3) If the court determines that discretion under Art 14(3) was improperly exercised, it will vacate the decision and return the matter to Eurojust to be redecided. The Member States and the accused person affected by the subsequent decision may apply for judicial review within one week of its issuance. The court will then issue a final decision in the matter.

Comment: See also Part 3 on procedural questions.

This proposal immediately improves the situation of the accused. It may, however, make the underlying problem worse, at least initially, since the coordination between prosecuting authorities still happens after the offence is committed. The tug-of-war over the accused is subjected to rules, but the source of the dispute is not addressed. Until the authorities come to an agreement, it will still be the case that parallel proceedings arise and that the accused lacks the desirable certainty about where and under what laws

Page 25: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

2525

he will face prosecution and punishment. The European Working Group’s remit included the future of European legal developments, however, and so they developed a further model with which it is possible to determine where jurisdiction will lie, what law will apply, and which state will be tasked with the prosecution before the offence is committed.

IV – The long-term goal

In future, it must be possible to determine within the bounds of the EU which state is tasked with prosecution and punishment. This is only possible if national jurisdictional rules recede into the background and the principles of public international law take on a more primary role.

B. The statutory determination model

I. Basis

1. The objective of the statutory determination model is to solve competition problems in cases where the criminal proceedings relate to several different countries, resulting in the clearest possible assignment of which Member State is the appropriate forum. Reaching this objective requires limiting the scope of the potential interfaces without creating gaps in jurisdiction or punishability.

2. Going forward, every Member State must continue to have the power to begin an investigation when there is suspicion of criminal activity. The next step is to use the proposed regulatory mechanism to determine which state is ultimately responsible for carrying out the prosecution.34

3. The determination as to responsibility also determines which Member State will serve as the forum for trial, sentencing, and appeal. It determines which national law will apply, both procedurally and substantively.35

4. This link is critical to avoid situations in which a trial takes place in one Member State as the result of investigations in another.36 Legal problems, e.g. of transferability of evidence, and practical problems would be built into such a model.

34 This matches the proposal of Schünemann et al in Schünemann (ed), EinGesamtkonzeptfür die europäischeStrafrechtspflege (Cologne 2006) 5 f (Art 2(6)).

35 cf Schünemann, ibid.

36 Hence the criticism from Schünemann (n 34 above) 9.

Page 26: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

26

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

26

5. Up to now, the principle has been that punishability was determined by jurisdiction, which was in turn determined by substantive law. Broad jurisdiction was the result of the widening scope of substantive law rules on punishability. This principle appears to rest on a wide foundation of comparative law.37

6. Currently, it is only possible to tie responsibility for prosecution to substantive law as a matter of pure hypothesis. Prosecutorial authorities investigate when suspicion arises, and suspicion logically requires the presumption that the alleged offence is governed by national law. Proof of the offence and the perpetrator, however, is only achieved as a result of the trial: suspicion gives rise to a presumption that national law is applicable even when it later becomes clear that the conduct in question was not subject to domestic criminal sanction. In these cases, however, the collection of evidence is not retroactively improper. Instead, there is a limitation on further prosecution. Nor is the collection of evidence improper when it is done through legal channels at the request of another Member State.

7. The establishment of a model for concentrating prosecutorial responsibility in one Member State does not reverse the principle of ne bis in idem. Transferring a criminal proceeding to the responsible state does not constitute a judgment on the merits of the case in the surrendering state. The ECJ made this determination in the Miraglia38 case, ruling that there was no presumption of a judgment on the merits in one Member State when that state halts proceedings because its prosecutorial authorities have determined that proceedings are ongoing in another Member State. The opposite result would have led to a reversal of ne bis in idem.

8. The guiding principle of this model is a binding decision as to which law is applicable if aspects of the offence span more than one Member State.

37 Only in Denmark were we able to find an example of a system that has decoupled jurisdiction from the applicability of substantive law.

38 Case C-469/03, 10 March 2005. The question referred to the ECJ was ‘Must Article 54 of the [CISA] apply when the decision of a court in the first State consists of discontinuing the prosecution without any adjudication on the merits of the case and on the sole ground that proceedings have already been initiated in another State?’ The court answered: ‘Consequently, the reply to be given to the question referred has to be that the principle ne bis in idem, enshrined in Article 54 of the CISA, does not fall to be applied to a decision of the judicial authorities of one Member State declaring a case to be closed, after the Public Prosecutor has decided not to pursue the prosecution on the sole ground that criminal proceedings have been started in another Member State against the same defendant and for the same acts, without any determination whatsoever as to the merits of the case.’

Page 27: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

2727

9. In order to optimize forseeability and therefore freedom, justice, and security, enforcement powers are largely determined before the offence is even committed. The ability to make a decision as to forum should be understood as a means of optimization, avoiding difficult-to-challenge informal arrangements among the police.

10. Optimization can be made possible by limiting the factors able to be considered in making the decision on forum. The applicable substantive law that comes with the jurisdictional choice represents an inherent and critical limitation on the punishability of the accused. It is possible to achieve this without interfering in the jurisdictional provisions of Member States’ criminal law.

11. The criteria in a “statutory determination model” anchored in public international law that then lead to the applicability of a particular substantive law follow the competency distribution principle. This principle requires that “states determine the responsibility for the prosecution of offences with a sufficient degree of certainty, respecting the principles of justice and fitness for purpose, that surrendering jurisdiction limits the overlap of criminal law as much as possible and avoids multiple parallel prosecutions.”39

12. The provisions of public international law concerning criminal juris diction do not give rise to any hierarchy. Ordinarily, the territoriality principle ranks first in the national context. The territoriality principle gives rise to the concepts of “location of conduct” and “location of consequences” (the ‘ubiquity thesis’).

13. The territoriality principle is thus the central factor in the decision on jurisdiction. Between the location of conduct and the location of (criminal) consequences, the location of the conduct weighs more.

II. Constructing legal provisions

Statutorily determined jurisdiction must be set out in legal provisions.40 The statutory determination model comes from the tradition of nullumcrimen sine lege: by tying the exercise of state authority to abstract laws, citizens are protected from authoritarian incursions into their rights.41

39 Oehler, Internationales Strafrecht (2nd edn, 1983) 431 para 683.

40 Building on Schünemann (n 34 above), though the criteria named there are further supported by agreement between the Member States involved and, as the case may be, Eurojust.

41 Roxin, Strafrecht AT I (4th edn, 2006) ch 5 para 19.

Page 28: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

28

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

28

Proposed directive on the avoidance of jurisdictional conflicts in criminal proceedings

Article 1

(1) If it is possible for more than one Member State to prosecute a given offence, the prosecution will be conducted by the Member State within whose territory the accused committed the criminal conduct or, in the cases of omissions, in whose territory he was obligated to have acted.

Comment: It was made clear in the comparative-law investigation that the territoriality principle is to be given priority above other considerations. But it also became clear that the discrete consideration of the location of the conduct and the location of the criminal consequences could lead to jurisdictional conflicts. The location of criminal conduct is therefore the starting point for assigning jurisdiction. Cases of attempt in particular require focusing on the location of the conduct.

(2) If the accused acted within the territory of multiple Member States, jurisdiction lies with the state in which the criminal consequences also arose.

Comment: in cases where the criminal conduct spans multiple Member States, the location of the criminal consequences is subsidiarily decisive. As part of the territoriality principle, the location of the consequences is only of secondary importance – it is never itself decisive of the jurisdiction question.

(3) If the criminal conduct spans multiple Member States and the location of the criminal consequences is not one of the Member States where criminal conduct was also committed, proceedings will be conducted in the jurisdiction where the accused has his primary residence, or, alternatively, in which he has his usual residence, as long as it is one of the jurisdictions in which criminal conduct was committed.42

Comment: Art 1(3) catches situations in which criminal conduct spans multiple Member States, but jurisdiction cannot be decided under Art 1(2) because none of the conduct took place in a jurisdiction where the consequences were also felt. This provision provides, like Art 1(2), a mechanism for deciding between multiple competing jurisdictions. It needs a further criterion, however, for which the domicile is a reasonable choice. It probably does not represent a principle of public international law itself, but it is not problematic to use it as the basis of an agreement between the Member States.43 Furthermore, the connection between a

42 Schünemann (n 34 above) does not account for this situaiton.

43 cf LK-Werle/Jeßberger (12th edn, 2006) Introduction to § 3 para 254.

Page 29: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

2929

legal system and its addressees in modern systems is generally tied to a person’s settlement in a particular country. Residency is ultimately easy to determine, and can often be the location of important evidence. This competency rule brings with it court proceedings in the place with which the accused is familiar and whose law, culture, and language he knows.

(4) If the criminal conduct and its consequences both span multiple Member States, paragraph (3) applies accordingly.

Comment: This provision closes the loophole that arises when the consequences also span multiple Member States. Here, too, residency is brought in as decisive.

(5) If the conduct spans multiple Member States, the criminal consequences are not felt in any of these states, and the primary or usual residence of the accused does not fall within any of them, proceedings will be conducted in the Member State in which the greatest amount of important evidence is located.

Comment: Art 1(5) is the last chance to determine jurisdiction by tacking on an additional criterion. It only operates when there is no other means for assigning jurisdiction to a particular Member State. But paragraph 5 works against the fundamental conduct element of the territorial principle in paragraph 1. Assignment of jurisdiction to the Member State in which the most important evidence is located is only possible in concert with the location of the criminal conduct. For lack of other criteria, it seems unavoidable to focus on the state containing the most “important evidence”. The content of this term will probably be influenced primarily by Eurojust: since it collects all the information, it will necessarily also have the bases for a decision.

At this point it becomes clear that the statutory determination model relies on an agreement between the Member States based on the principle of competency distribution as to which state is responsible for the prosecution. The principles of public international law in play here are merely indications of which cases are currently unproblematic. It is open to the states to agree other criteria.

Article 2

If proceedings are to be carried out against multiple defendants who have their primary or usual residences in different Member States and if jurisdiction cannot be determined under Art 1(1) or 1(2), the Member State with jurisdiction is the one in which the greatest amount of important evidence is located.

Comment: It is difficult to assign jurisdiction in cases that involve multiple offenders, especially with gang or organized-crime characteristics. Attempting to determine the competent state for each offender individually under Art 1 would lead to cumulative

Page 30: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

30

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

30

proceedings and possibly even fights over evidence. Furthermore, it cannot be expected that these proceedings could be conducted quickly. Art 2 therefore provides that in cases where jurisdiction cannot be determined by Art 1(1) and 1(2) and where the accused have their residencies across multiple Member States, jurisdiction is assigned to the Member State in which the most important evidence is located. Article 2 represents the most flexibility in the jurisdiction decision.

Article 3

In cases where the assignment of jurisdiction under Art 1 and 2 produces a result adverse to the sovereignty interests of a Member State that could exercise jurisdiction under Art 1(1), then this state has jurisdiction.

Comment: Prosecutions of attacks on its own sovereignty is a legitimate interest of every state. The defence of the institutions of state is one of the basic conditions of the maintenance of public order. From a comparative-law perspective, the importance of national security is clear. Competition between multiple states here should be excluded in principle, since national criminal law generally does not address attacks on the integrity of other states. But cases are thinkable in which an offence is committed from outside a state that nonetheless constitutes an attack on its security. Assigning jurisdiction to the territorial state, which in such cases would have a lesser interest in prosecution, does not seem sensible.

Article 4

The state with jurisdiction conducts the entire course of proceedings according to its own law.

Comment: Assigning jurisdiction means that the entire course of proceedings – investigation, trial, and appeal – is conducted only in the state with jurisdiction. That state applies only its own criminal and criminal procedural law. Investigations conducted abroad are done through the normal international assistance channels at the request of the investigating state. The determination of jurisdiction is also the determination of which state’s law is to be applied. Until jurisdiction is decided, it rests with any state that could lay claim to it.

Article 5

The criminal proceedings may not result in a sentence under the law of the state whose jurisdiction is determined by Art 1 or 2 that is more severe than the maximum sentence possible under the law of any state in which the criminal conduct took place.

Comment: Art 5 requires the sentencing court to engage in a comparison for the defendant’s benefit. It must survey the maximum possible sentences for the offence in question according to the laws of all of the states in which the criminal conduct

Page 31: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

3131

took place. Only states that served as conduct locations are considered, because it is only when criminal conduct took place in another state that the offence was committed abroad from the perspective of the sentencing state. There is some comparative law support for this principle of lexmitior in jurisdictional law for offences committed abroad. This limited lexmitior clause is a concession to legal systems that currently feature the principle. It does not apply to cases covered by Art 3, where national security trumps the comparative sentence.

Article 6

If a state declines to prosecute or fails to carry out criminal proceedings, jurisdiction is to be decided again under Art 1 ff, excluding that state.

Comment: This provision handles negative competency conflicts. If a state rejects jurisdiction or accepts it and allows the process to “idle”, jurisdiction has to be allocated anew. It makes little sense to compel a state to carry out proceedings against its will.

Article 7

(1) Eurojust decides which state has jurisdiction under Art 1-3.

(2) Every state that could assert jurisdiction is to be given an opportunity to be heard.

(3) The accused is to be given the right to make representations.

(4) The accused’s counsel must be informed of the involvement of Eurojust in the proceedings.

(5) Eurojust must make its decision as to jurisdiction without undue delay.

Article 8

(1) The Member States affected by the decision under Art 7(1) may apply for judicial review within one week of the issuance of the decision.

(2) The accused person or persons affected by the decision under Art 7(1) may apply for judicial review within one week of the issuance of the decision.

(3) If the court determines that Eurojust decided incorrectly under Art 7(1), it will vacate the decision and return the matter to Eurojust to be redecided. The Member States and the accused person affected by the subsequent decision may apply for judicial review within one week of its issuance. The court will then issue a final decision in the matter.

Comment: see the procedural discussion in part 3.

Page 32: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

32

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

32

The statutory determination model is supplemented by the provisions on the European Arrest Warrant. As a result, extradition can be refused on the basis of a lack of parallel punishability if the case does not fall into one of the 32 exempt groups of offences. A Member State on whose territory conduct was committed that is not criminal in that state may be able to reject extradition. There is no jurisdictional conflict here, since such a state cannot assert criminal jurisdiction and therefore cannot compete for it with other states.

D. SUMMARY

The European Union has taken on one of the most urgent problems in the field of cooperation in criminal matters. That it has taken so long is probably more a result of a lack of consensus in the Council about clear criteria for conferring competence and less a result of insufficient creativity. Individual attempts by Member States to revise their jurisdiction statutes will not solve the problem. Only European guidelines and, at first, with respect to harmonized definitions of offences can a certainty-oriented model for preventing and settling jurisdictional conflicts be developed. The role of the principles of public international law in this model has been made clear by our two proposals44. In future, two separate regulatory issues will have to be separated from one another: (1) the question of which criminal law is applicable and (2) of which state is responsible for carrying out the investigation.

BIBLIOGRAPHYAmbos K., Transnationale Beweiserlangung – 10 Thesen zum Grünbuch der EU-Kommission

“Erlangung verwertbarer Beweise in Strafsachen aus einem anderen Mitgliedstaat“, Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik 2010, p. 557.

Ambos K., Internationales Strafrecht, 3. edition, Munich 2011.Biehler A., Kniebühler R., Lelieur-Fischer J., Stein S. (eds), Freiburg Proposal on Concurrent

Jurisdictions and the Prohibition of Mulitiple Prosecutions in the European Union, Freiburg imBreisgau 2003.

Böse M., Meyer F., Die Beschränkung nationaler Strafgewalten als Möglichkeit zur Vermeidung von Jurisdiktionskonflikten in der Europäischen Union, Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik 2011, p. 336.

Bovenschulte B., Rechtliche Probleme der Umsetzung des Prinzips der gegenseitigen Anerkennung von Entscheidungen über Geldstrafen und Geldbußen – Am Beispiel von Verkehrsdelikten im Verhältnis Deutschland und Österreich, Hamburg 2008.

44 In Germany, a further Working Group is also developing separate proposals: see Böse and Meyer, ZIS 2011, 336.

Page 33: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

3333

Eser A., Burchard Ch., Interlokales, ne bis in idem ”in Europa? Von westfälischem” Souveränitätspathos zu europäischem Gemeinschaftsdenken, in: FS für Jürgen Meyer zum 70. Geburtstag, Derra H.-J. (ed), Baden-Baden 2006, p. 499.

Fuchs H., Zuständigkeitsordnung und materielles Strafrecht, in: Ein Gesamtkonzept für die europäische Strafrechtspflege, Schünemann B. (ed), Cologne 2006, p. 112.

Fuchs H.,Bemerkungen zur gegenseitigen Anerkennung justizieller Entscheidungen, Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 2004, No. 116, p. 368.

Hecker B., Europäisches Strafrecht, 3rd edition, Heidelberg 2010.Hecker B., Statement: Jurisdiktionskonflikte in der EU, Zeitschrift für Internationale

Strafrechtsdogmatik 2011, p. 60.Heger M., Perspektiven des Europäischen Strafrechts nach dem Vertrag von Lissabon – Eine

Durchsicht des (wohl) kommenden EU-Primärrechts vor dem Hintergrund des Lissabon-Urteils des BVerfG vom 30.06.2009, Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik 2009, p. 406.

Kaiafa-Gbandi M., Aktuelle Strafrechtsentwicklung in der EU und rechtsstaatliche Defizite, Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik 2006, p. 521.

Kasper U.W., Die Strafbarkeit von DDR-Geheimdienstmitarbeitern, Monatsschrift für Deutsches Recht 1994, p. 545.

Lagodny O., Empfiehlt es sich, eine europäische Gerichtskompetenz für Strafgewaltskonflikte vorzusehen? Gutachten im Auftrag des Bundesministeriums der Justiz, Berlin, March 2001.

Leipziger Kommentar,Strafgesetzbuch (LK), ed von Laufhütte, Rissing-van Saan, Tiedemann, Band 1 (§§ 1-31 StGB), 12th edition, Berlin 2007.

Münchener Kommentar,Strafgesetzbuch (MüKo), ed von Joecks, Miebach, Band 1 (§§ 1-51 StGB), Munich 2003.

Nalewajko P., Grundsatz der gegenseitigen Anerkennung, Eckstein der justiziellen Zusammenarbeit in Strafsachen in der Europäischen Union?, Berlin 2010.

Peers p., Mutual Recognition and Criminal Law in the European Union: Has the Council got it wrong?, Common Market Law Review 2004, p. 5.

Rekate B., Internationale Projekttagung 2010 “Jurisdiktionskonflikte bei grenzüberschreitender organisierter Kriminalität – ein Rechtsvergleich zum Internationalen Strafrecht“, Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 2010, No. 122, p. 905.

Satzger H., Gefahren für eine effektive Verteidigung im geplanten europäischen Verfahrensrecht – eine kritische Würdigung des Grünbuchs zum strafrechtlichen Schutz der finanziellen Interessen der Europäischen Gemeinschaften und zur Schaffung einer europäischen Staatsanwaltschaft,Strafverteidiger 2003, p. 137.

Satzger H., Internationales und Europäisches Strafrecht, 4. edition, Baden-Baden 2010.Schomburg W./Suominen-Picht I., Verbot der mehrfachen Strafverfolgung, Kompetenzkonflikte

und Verfahrenstransfer, Neue Juristische Wochenschrift 2012, p. 1190 ff.Schünemann B., Die Grundlagen eines transnationalen Strafrechts, in: Ein Gesamtkonzept für

die europäische Strafrechtspflege, B. Schünemann (ed), Cologne 2006, p. 93.Schünemann B., Europäischer Sicherheitsstaat = europäischer Polizeistaat?, Zeitschrift für

Internationale Strafrechtsdogmatik 2007, p. 528.

Page 34: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

34

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

34

Schünemann B., Roger B., Die Karawane zur Europäisierung des Strafrechts zieht weiter – Zur demokratischen und rechtsstaatlichen Bresthaftigkeit des EUGeldsanktionengesetzes, Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik 2010, p. 515.

Sieber U., Die Zukunft des Europäischen Strafrechts – Ein neuer Ansatz zu den Zielen und Modellen des europäischen Strafrechtssystems, Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 2009, Nr. 121, p. 1.

Sinn A. (ed), Conflicts of jurisdiction in cross-border crime situations. A comparativelawstudy on international criminallaw, Göttingen, 2012.

VanderBeken T., Vermeulen G., Lagodny O., Kriterien für die jeweils “beste” Strafgewalt in Europa – Zur Lösung von Strafgewaltskonflikten jenseits eines transnationalen Ne-bis-in-idem, Neue Zeitschrift für Strafrecht 2002, p. 624.

Vogel J., Internationales und europäisches ne bis in idem, in: FS für Friedrich-Christian Schroeder zum 70. Geburtstag, Hoyer A. et al (eds), Heidelberg 2006, p. 877.

Page 35: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

35

DISqUISICIóN A PROPóSITO DE LA MUERTE DIGNA FernAndo M. MAchAdo Pelloni*

* Abogado & Doctor en Derecho Penal y Ciencias Penales, U. del Salvador (Buenos Aires, Argentina). El presente hace parte de lo que fue mi comunicación para el Encuentro de la Asociación Italiana de Filosofía del Derecho, a celebrarse en Roma, junio 22 de 2013. Agradezco, en primer lugar a mi Maestra, la Profssa. Teresa Serra y también e inmediatamente al Dott. Stefano Pratesi, Giuseppe Gioffredi y Michele Carducci, los últimos de la U. degli Studi di Salento. Al final pero no menor en importancia, mi gratitud al Prof. Dr. Dr. h. c. Urs Kindhäuser, de la Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universitätde Bonn.Todos hacen posible mi contribución y han sido muy (pero muy) pacientes conmigo.

En recuerdo de mi padre, Carlos A. Machado Castro “Sometimes we can spend some years without living at all and suddenly our whole life concentrates in a unique instant” Oscar F. O. W. Wilde

RESUMEN: En este análisis se bucea sobre los alcances de la libertad para vivir y porque de ello hace su parte, también morir. Se define y justifica que una cosa es la facultad para decidir morir y autoejecutar tal toma de posición, de lo que sería un derecho. Una es relativa y la disponibilidad absolutamente falsa desde la fundamentación de los bienes jurídicos e incluso desde una aproximación funcional coherente. Ello toma un giro cuando se asiste a casos de incompetencia e inconciencia, por aplicación de la lectura de corrección por (des) igualdad. Se defiende la autonomía pero también se refuerza la limitación por la regla del daño. Por otra parte se propone un itinerario por derechos comparados, en base a una hermenéutica multicultural, que no contradice el criterio rector, del que participa, a modo de conclusión, la situación normativa del caso argentino.PALABRAS CLAVE: Libertad y autonomía – Eutanasia y suicidio asistido – Bien jurídico, normativismo y eximente por consenso – Derecho, obligación, conflicto de deberes y ejercicio de derechosABSTRACT: In this analysis, we dive on the scope of the freedom to live and because it does its part, also die. It defines and justifies that

Page 36: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

36

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

36

one thing is the power to decide to die and the stance, what would be a right. One is relative and availability is absolutely false from the foundation of the legal and even from a functional approach consistent. This takes a turn when attending incompetence and unconsciousness, by applying correction reading (in) equality. It defends the autonomy but also reinforced by the rule limiting the damage. Moreover we propose a comparison itinerary rights, based on a multicultural hermeneutics that does not contradict the guiding principle, which involved, in conclusion, the regulatory situation of the Argentine case.KEyWORDS: Freedom and autonomy, Euthanasia and Assisted Suicide, – Legally, normativism and defense by consensus, Right, obligation, conflict of duties and exercise of rightsSUMARIO: I – Vivir, morir: libertad, regulación, prohibición; II – Bien jurídico, norma penal: aporía en torno de la disponibilidad; III – De-rechos, colisión, armonía: un inventario por un itinerario comparado; IV – Evaluación del caso argentino en una recapitulación.

I – VIVIR, MORIR: LIBERTAD, REGULACIóN, PROHIBICIóN

1. Uno de los momentos más importantes en el plan de vida de un ser humano es, como paradoja, cuando se acerca al final de aquella. Esta cuestión cuenta con una constelación de factores que la potencian. En la autodetermi-nación personal, la planificación de ese escenario, tanto común o genérico a la totalidad de seres humanos, cuanto único o distinto en cada uno de ellos, se elucubran ideas, se trazan planes y, también todo lo contrario, como si acaso eso mutara lo inevitable, se edifican barreras que deliberadamente bloquean pensar o proyectar en la terminación del camino; las últimas, a mi modo de ver y en cuanto a la senectud, fracasan. En esta ocasión voy a ocuparme del caso de quienes, ya con anticipación en su plan personal o bien sorprendidos frente a la imposición de un diagnóstico, tocan la puerta de salida del mundo de los sentidos y del entendimiento, sin perjuicio de la virtud de la fe.

El interés jurídico sobre la terminación de la obra que comenzó con una vida se justifica a partir de la tutela a todo nivel y especialmente en la relevancia penal de aquella. Dicho con claridad: no se abandona la mirada sobre una persona – por el dato biológico, patológico o ambas señales – que está por morir. Tal afirmación se extrae de una observación pareja del derecho comparado: ninguna norma abre un paraguas capaz de cubrir una lesión o puesta en peligro que afecte o arriesgue la libertad de vivir y su ejercicio como tal por ser humano alguno, en contradicción con la decisión de quien es portador del derecho en cuestión. Lo que si puede resultar más variable, es el hallazgo de un denominador constante e igualitario en la

Page 37: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

3737

protección1. Ahora, y para estrechar todavía más mi convocatoria aquí, en la intervención estatal resalta la regulación – abstracta o general – o la solución – concreta o particular – del lugar de reunión entre la vida que es tocada o afectada respecto a su terminación, la autodeterminación de la persona bajo esta circunstancia y el papel de profesionales de la salud en cursos causales, a partir de poner en discusión hasta qué punto puedan, sean o deban de ser salvadores y qué pueda, sea o deba de salvarse.

2. El itinerario de la protección del ser humano por la esfera del ordenamiento legal reconoce varias recaladas. La libertad como reactor nuclear para el plan de vida, se lanza para prohibir fundamentalmente daños2. Eso consagró un principio (no tan simple) que desencadenó un conjunto

1 Hay que aclarar, prontamente, que no resulta desregulado o impulsado por Estado alguno, la eliminación de enfermos -terminales o no-. Sin embargo, están aquellos que son más permeables a la libre decisión de la persona en circunstancias de graves padecimientos. Un exponente es el Reino de Holanda: allí y partir de la ley de comprobación de la terminación de la vida a propia petición y de auxilio al suicidio (sancionada en 2001, en vigencia desde 2002), se exime la punibilidad de practicas compatibles con eutanasia directa (art. 293 CP) o de asistencia al suicidio (art. 294 CP), en la medida que se obre de conformidad con la norma aludida a los cuidados finales. Otro tanto puede decirse de Bélgica -sin distinguir la colaboración en la causación de la propia muerte (que es eutanasia, para ellos) – y Suiza -que admite, a contramano de la anterior, la ayuda a quien por si quiere morir y rechaza la acción directa de un tercero sobre el paciente –. En el Reino de España la materia tomó otro curso: mientras que el punto de reunión sería la atenuación del homicidio bajo circunstancias como las que hacen a este trabajo, tal y como en Holanda, a diferencia del país bajo, que exime en orden al cumplimiento de su ley, en la península se aplican consecuencias normativas en cursos causales directos al fin de la vida (art. 143.4 CP), lo que conduce a que calificada doctrina concluya que se despenalizó la intervención indirecta o pasiva. Al respecto, Gimbernat Ordeig, Enrique, “El problema jurídico de la muerte y del dolor”, Estado de Derecho y Ley Penal, La Ley, Madrid, 2009, p. 28. Sobre la legislación, véase ut-infra lo señalado para Argentina.

2 El punto de partida se reconoce, acaso con más claridad, en la defensa de la libertad. Recuérdese, más todavía, que sobre sí, sobre el cuerpo y mente, John Stuart Mill se expresaba en torno de la persona como un real soberano; así su On Liberty, 1989, p. 68 ss. Si se analiza que la intervención por la punibilidad confiada al Estado se sigue de la prevención de daños a terceros, no apenas bajo una orientación hacia el bien o ante un determinado enfoque ético, ambos insuficientes – op. cit. –, se puede deducir que quien consiente un ataque, escapa a la prohibición orientada para supuestos en los que quien lo soporta no lo quiere ni desea; “Philosophical approaches to criminalization: consent and the harm principle”, en Freedom, edit. Nigel Warburton, Routledge, London, 2001, p. 198 ss. Para su lazo con el bien jurídico, aún crítico, von Hirsch, Andrew, “El concepto de bien jurídico y el principio del

Page 38: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

38

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

38

de reglas: los actos (acciones u omisiones) que atenten o pongan en peligro a un ser humano, amenazados con una coacción primero, desencadenan reacciones penales después. No obstante, resulta también que, y a partir del punto de salida, podría surgir que una autodeterminación colisione y enfrente la mirada de médicos respecto de esa vida; de modo que los últimos por el deber de no interferir con aquella y a su vez bajo la obligación de tomar partido desde la ciencia, soportan una enorme turbulencia a la hora de decidir respecto a un veredicto completamente ajeno.

Otro tanto debe sumarse de funcionarios públicos ante autoatentados por parte de un sujeto contra su propia vida. En efecto, tampoco los agentes estatales escapan de encrucijadas3. Entonces, ante la inexistencia de reglas de comportamiento muy claras y a partir de la textura de un principio como alterum non laedere, hay autonomías que pueden o quieren empujar el orden jurídico hacia nuevas configuraciones. Fundamentalmente, acaso, esto se constate a partir de aquellos que atraviesan situaciones de gran dolor y a los que no les alcanza con aguardar que la muerte natural sea, a su vez, la terminación de su propio sufrimiento pero, y aquí lo más delicado del conflicto, no tienen recursos bajo su organización, para acabar autolesionándose, o confrontan con mandatos cruzados de los demás. En resumen, también están los problemas derivados de la participación en el acto de otro y de la intervención directa pero a petición del que padece o es surcado por graves padecimientos.

La libertad cuanto autonomía de vivir, según se aprecia, tiene una multitud de miradas en este trayecto. Mientras que ello no puede ir contra

daño” (“Das Rechtsgutsbegriff und das “Harm Principle””, trad. Alcácer Guirao, R.), en La Teoría del Bien Jurídico, edit. Hefendehl, Roland, Marcial Pons, Madrid, 2007, p. 37 ss

3 Un agente penitenciario que ve que un interno pretende quitarse la vida no debe permanecer inmóvil o esperar el comienzo del acto suicida para intervenir. Más polémicas despiertan las intervenciones en casos de testigos de Jehová o en quienes llevan adelante huelga de hambre. A favor de tratarles, sin dejar de defender la disposición de la propia vida, Gimbernat Ordeig, Enrique, “Disposición de la propia vida y derecho penal”, en su Ensayos Penales, Tecnos, Madrid, 1999, p. 27 ss. Según su opinión, debe diferenciarse la decisión personal de los particulares, médicos o funcionarios que pueden evitar un desenlace ajeno a costa de aquella libertad, pues prevalece el interés de la supervivencia a aquella, en la colisión y para ese grupo. En contra, Sancinetti, Marcelo, “Suicidio y Estado: ¿vale la máxima: “debes vivir para ser penado”? (reflexiones a propósito del “caso Febres”), Derecho Penal. Doctrinas esenciales (Donna, E., director), La Ley, BsAs., 2010, p. 565 ss, siendo objetable que el Estado afecte una decisión racional y objetiva.

Page 39: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

3939

el cumplimiento de un calendario de vacunación o contra la intervención en el descubrimiento de una enfermedad con capacidad para desatar una epidemia4, tampoco los médicos cuentan con habilitación legal para tomar e implementar decisiones irracionales, aunque con las últimas garanticen como de lugar, la continuidad en la vida de un paciente5. Si ni una ni otra aproximación es precisamente una manifestación del derecho, lo que queda es esclarecer el recorrido entre la vida y la muerte en la tentativa de una pacífica reunión entre actores primarios y secundarios, bajo la puesta en escena estatal de la Ley 26.742 modificatoria de la 26.529 – sobre los derechos del paciente, historia clínica y consentimiento informado –6.

II – BIEN JURÍDICO, NORMA PENAL: APORÍA EN TORNO DE LA DISPONIBILIDAD

3. Continuar desde el lugar del bien jurídico es un imperativo meto-dológico. Aclarar una disyuntiva que lo involucra se vuelve esencial y es la que sigue: si la vida y la libertad (negativa, como autonomía) se tutelan por razones subyacentes o preexistentes a las normas de comportamiento, cuya contradicción impulsa la punibilidad por las normas de sanción, o es el efectivo cumplimiento de la coerción estatal ante la infracción lo que en reali-dad cuenta. Para el primer conjunto, cabe señalar que lo que cuenta es el real interés que hace al objeto de atención de los tipos delictivos; lo cual – sin dejar de resultar bastante traumático en miras a mayor puntualización – a partir de acudir al tejido constitucional o al del derecho internacional de los dere-chos humanos, trae consigo un aporte de aprobación o desaprobación del derecho objetivo – sea por cumplimiento o incumplimiento de una intervención estatal impulsada desde ambos focos de irradiación –, como así también una válvula hermenéutica de impacto dogmático, derivado de lo anterior: puede amplificar o comprimir el universo de actos prohibidos según arriesguen o no

4 Sin perjuicio del atento seguimiento de principios como los de mínima intervención y proporcionalidad, pueden existir situaciones que traspasen el consentimiento del paciente, tales y como los citados. Véase. Aslak Syse, “Coercive treatment”, en Healthcare, Welfare and Law. Health legislation as a mirror of the Norwegian welfare state, Molven, Olav-Ferkis, Julia (eds.), Gyldendal, Oslo, 2011, p. 102 ss.

5 Tiene estrecha relación con las bases que orientan la bioética; así, Schroth, Ulrich, “Medizin, Bioethik und Recht”, en Einführung in die Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, Kaufmann, A.-Hassemer, W.-Neumann, U. (Hrsg.), Müller, Heidelberg, 2011, p. 460 ss.

6 Sanción mayo 9 de 2012, promulgación y BO. mayo 24 íd.

Page 40: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

40

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

40

al núcleo de cobertura7. Para el segundo, y a contramano, las reflexiones pre-cedentes no gozan de ningún crédito, en la medida que acciones u omisiones solamente cuestionan la validez normativa de determinadas prohibiciones, o expresado de otra forma, el autor y los que participen no hacen sino ponerla a prueba: el seguimiento, el mantenimiento o la reafirmación de la ley cuenta más que prevenir un atentado o una puesta en peligro (o riesgo) al valor8. El encuentro de tal mirada con la muerte no es incomprensible, por el contrario, es su contienda por excelencia9. Ahora, esto no mueve el dedo del siguiente renglón: sin desmerecer el peso de la cobertura básica general y abstracta, hay quien pudiera considerarla disponible en lo personal y concreto10.

7 Esto tiene una relación de tipo empírica, por la que el legislador recoge lo que resulta importante a la convivencia entre las personas; Hassemer, Winfried, Theorie und Soziologie des Verbrechens. Ansätze zu einer praxisorientierten Rechtsgutslehre, Fischer Athenäum, Frankfurt am Main, 1973, p. 147 ss. Desde esa perspectiva más tarde se llegará a la dañosidad o a la ofensividad. Se dirá que la selección en el catálogo de la parte especial se resolverá por la “antisocialidad” de los actos que supera, largamente, al sujeto activo y pasivo de la figura, y que no puede ser atendido por otras áreas del campo jurídico; Amelung, Knut, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft, Athenäum Verlag, Franfurt, 1972, p. 361 ss. El aporte intrasistemático más puntual, por lo demás, viene de la mano del ataque ofensivo: la acción u omisión que no progrese en tal sentido no interesa al radio de la punibilidad, lo cual limita las soluciones del legislador y debe a su vez hacer las veces de guía en el intérprete; Marinucci, Giorgio-Dolcini, Emilio, Corso di Diritto Penale, 1, Giuffré, Milano, p. 434 ss.

8 La cuestión está inserta en el marco de la propia pena como prevención especial y también de la disciplina como prevención general positiva. Esto también impacta en el carácter público del problema. Con ello, lo que se quiere decir es que, lejos de importarle a un individuo aislado, participa de una relación social, configurada por normas. Esto se puede ampliar en Jakobs, Günther, Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y teoría de la imputación (Strafrecht AT. Die Grundlagen un die Zurechnungslehre, trad. Cuello Contreras, J.-Serrano Gonzalez de Murillo, J. L.), Marcial Pons, Madrid, 1997, p. 9 ss, especialmente 12; también Sociedad, norma, persona en un teoría de un derecho penal funcional (Das Strafrecth zwischen Funktionalusmus und ‘alteuropäischem’ Prinzipiendenken. Oder: Verabschiedung des ‘alteuropäischen’ Strafrechts?”, trad. Cancio Meliá, M.-Feijoó Sánchez, B.), U. Externado de Colombia, 1996, p. 16 ss. Lo que se sigue es que el ordenamiento normativo sea un instrumento de movilidad (o de detención) social, según las exigencias funcionales; esto es en definitiva “positivación del derecho”; Luhmann, Niklas, Rechtssoziologie, Westdeutscher, Oplander, 1987, p. 190.

9 Para la teoría del Derecho, Radbruch, G. “Der Zweck des Rechts”, en Rechtsphilosophie III (Gesamtausgabe, 3-Hassemer, W), Müller, Heidelberg, 1990, p. 42.

10 Como se advertirá más tarde, la indisponibilidad se conecta con la universalidad del derecho fundamental de libertad de vivir, lo que para Ferrajoli, lo distingue como tal de otro

Page 41: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

4141

4. De la separación de los sectores, las consideraciones en el tema de la muerte no son pocas. Los partidarios del bien jurídico se inclinan, desde un enfoque generalizado, a comprender al hecho punible como un fenómeno que excede la imputación de aquél a un autor y respecto, también del suceso, a su víctima: acaso se ilustra gráficamente en la situación del desenlace causal, de aquél que suministra a una persona en el turíbulo de una agonía, un preparado medicamentoso que acaba por finiquitar su sensibilidad al dolor pero que también trae fin a la vida, a lo que el sistema del derecho marca que en un supuesto así y más allá de la intención de aliviar perseguida por el agente al desahuciado – cuestión que no equivale al dolo, y a propósito no lo excluye –, la protección se sostiene invariablemente y que la diferenciación, adecuadamente, se traslada a la selección de los comportamientos bajo los tipos delictivos y a la proporción en el ámbito de la pena11. Nada más. Tampoco menos. Ensayar una justificación a partir de una necesidad de mitigar el dolor, no traspasa, como se lo presentó, la protección de la vida y de la autodeterminación personal que intersubjetivamente rodea la intervención penal plasmada por una ley en un Estado social y democrático de Derecho12. Por otro lado, los normativistas plantean un área de recursos,

de tipo patrimonial, pero dogmáticamente, como advierten Guastini o Jori, la generación de obligaciones puede ser compleja; además de dar con situaciones de desigualdad, especial en este tema. A mayor interés teórico y debate entre los autores citados, Diritti fondamentali, Laterza, Bari-Roma, 2001 (hay traducción al castellano, Fundamento de los Derechos Fundamentales, Trotta, Madrid). También hace algo de ruido reconducir la cuestión a supremacía e inviolabilidad, para todos los casos, en la avenida por la que aceleramos; sobre problemas para esta alternativa conceptual, Prieto Sanchís, “Derechos Fundamentales”, en El Derecho y la Justicia, Garzón Valdés, E.-Laporta, F. L., Trotta, Madrid, 2000, p. 501 ss.

11 Cuando una persona no se ajusta a las normas de conducta se revela ante un hecho como el expuesto, a lo sumo, una tipicidad atenuada por juicios morales que no traspasan el piso intersubjetivo fijado por vía cultural -véase, exemplo docit, Bitencourt, Cezar R., Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 48 ss; también para el sistema de la parte especial del derecho alemán, Schmidhäuser, Eberhard, Einführung in das Strafrecht, Rowohlt, Hamburg, 1972, p. 102 ss. Se diferencia y está bien, aunque participa de la problemática de la punibilidad; para abundar en el ejemplo, Hart, H. L. A., Punishment and Responsability (introd. John Gardner), Oxford University Press, Oxford, 2009, p. 122 ss. Se asume, como se citó en el principal, que los médicos no cuentan con justificación para acabar con pacientes terminales; Dworkin, R., Life’s dominion, Vintage, Ny, 1994, p. 181.

12 Dará, a todo evento, el debate en el seno de la sociedad liberal para progresar en sus derechos y expandirlos. Véase, Schopp, Robert, F., Justification defenses and just convictions, Cambridge U. Press, Cambridge, 1998, p. 194 ss. La negativa es fuerte en el derecho francés que desplaza

Page 42: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

42

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

42

en los que cada quien puede organizar su vida y las normas desempeñan un rol en pos de afianzarlos, o sea que otros no se apropien de aquellos o bien los impidan, por cuanto un sujeto no deja de vivir en conjunto, bajo formas jurídicas propias a una colectividad que persigue su contínua supervivencia. Esto último, incluso a falta de real sustrato en los comportamientos como para menoscabar el ámbito de protección, puesto que es la sensibilidad la que se respira y entonces un camino indirecto de cobertura hacia algo no constitutivo per se de tutela13. En el ejemplo, la propiedad del agonizante es casi inexistente pero con todo, nadie puede arrogarse una potestad de expropiación sobre él, siquiera un profesional de la salud.

5. El rango de la regulación jurídica, a modo de paréntesis de la última afirmación, está ajustado a nivel de reconocimiento de la dignidad personal de cada ser humano. Sin embargo y mucho menos en el campo de esta exploración, no ha sido siempre así: en efecto, la puesta en marcha de un plan de eliminación de personas a mitad de la centuria pasada, fue resultado de una definición negativa14. Esto torna imperativo volcar precisiones también de las posiciones dogmáticas, en mi concepto, desde una perspectiva de previsibilidad. Los que se enrolan detrás del bien jurídico, a pesar de sus múltiples variantes, son bien conocedores que en el lugar de largada y en la propia meta, los principios y valores que penetran al derecho penal se deben de hacer cargo de la defensa social contrabalanceada con la de la persona y viceversa, en la infinita lucha trabada por la coexistencia del favor societatis

lo personal por lo social, eje del ordenamiento penal; cfr. Conte, P. Du Chambon, P., Droit Pénal général, Colin, Paris, 2002, p. 148 ss.

13 Consultar para amplios comportamientos, crítico, Frisch, Wolfgang, “Bien jurídico, derecho, estructura del delito e imputación en el contexto de la legitimación de la pena estatal” (“Rechtsgut, Recht, Deliksstruktur und Zurechnung im Rahmen der Legitimation staalichen Strafens”, trad. Robles Planas, R.) en, La Teoría del Bien Jurídico, op. cit., p. 309 ss.

14 La relativización y la simplificación mecanizada de una idea puntual respecto de casos como los que envuelven a las presentes líneas – extremos subjetivos –, extendiéndose después hacia una objetivización normativa de casos “inútiles” de conservar, mutan la lente de una excepción a la instalación de un sistema. Para mayor profundidad, Binding, Karl, La licencia para la aniquilación de la vida sin valor de vida (Die Friegabe der Verichtung lebensunwerten Leben, trad. Serigós, B.; introducción, Zaffaroni, E. R.), Ediar, BsAs., 2009, p. 68 ss; sintéticamente aunque esclarecedor respecto de que fue “eutanasia” para el nazismo, Benz, Wolfgang, Die 101 wichtigsten Fragen. Das Dritte Reich, C. H. Beck, München, 2006, 21 (existe traducción al español, 101 preguntas fundamentales, Tercer Reich, Alianza editorial, Madrid).

Page 43: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

4343

y el favor libertatis15. En mi concepto, la distancia entre los últimos y los partidarios de la defensa de la validez normativa es que, justamente, lejos de reconocer la preexistencia de una batalla relacional consensual entre esas dos poderosas razones, simplifican – sin más – el punto de reunión en un predicado que defina lo que deba ser, incluso cuando no lo sea, o que asuma que tal o cual cosa sea ni tampoco deba serlo16.

6. Aclarado lo precedente, renuevo ahora con un pequeño ajuste desde el lanzamiento anterior: resulta ser que la aplicación por un tercero (médico o no) del preparado farmacológico es producto de una iniciativa del enfermo – heterolesión – o que por petición del último, se preste auxilio para que él le ponga fin a su aflicción – autolesión (o, con más exactitud, autoagresión) –. Aquí no hay una agresión ilegítima de frente a una autonomía personal ni ninguna expropiación de recursos, por lo que hay que reconsiderar. Ocurre que en este ámbito, asaltan dos temas: in primis, si corresponde valorar positivamente la petición del agente respecto del acto de quien

15 Cfr. Vasalli, Giuliano, “I principi generali del diritto nell’esperienzia penalistica”, Giuliano Vasalli ( a cura di Francesco Palazzo), Laterza, Roma-Bari, 2010, p. 12 ss.

16 Se me presentan dos evidencias, dispersas para la parte general como para la especial, que controvierten la postura. Bajo la influencia hegeliana – Grundlinien des Philosophie des Rechts, 1821, persona solo es quien resulta titular de derechos y deberes; o más bien un ámbito de necesidades –, la concepción del acto se limitaría a su propia imputación, cuestión que es inaceptable pues ejecutan u omiten – también – personas a las que el derecho no les asigna capacidad de culpabilidad o a las que disculpa. Por otra parte, en delitos contra la tranquilidad pública o los que asumen organización, se pone el acento en la exclusión del sistema del derecho general para ser regulado por otro, que define entonces posición, ingreso y egreso en él. Véase, Jakobs, Günther, “Feindstrafrecht? Eine untersuchung zu den Bedingungen von Rechtlichkeit”, en HRRS, 8-9, 2006, p. 289 ss y Jakobs, G-Polaino-Orts, M. Delitos de organización: un desafío al Estado, Grijley, Trujillo, 2009, p. 29 ss.

Sobre la falta de historicidad en la concepción de Hegel (que traspasa por método a los que construyen teoría del derecho (penal)), Welzel, Hans, Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, Vandenhoeck und Reuprecht, Göttingen, 1962, 4; y más ampliamente, Kaufmann, Arthur, Naturrecht und Geschichkeit, J. C. B. Mohr, Tübingen, 1957. Más recientemente, se articula que la corriente pudiera ser una “oveja con piel de lobo”, en la medida que se despeje el eje metodológico del análisis – Jakobs declara la abstracción – y se lo corra por una ideológico, en donde lo colectivo consuma lo individual. Así Alcácer Guirao, R., Sobre el concepto de delito: ¿lesión del bien jurídico o lesión de deber?, Ad-hoc, BsAs., 2003, p. 61 ss y sobre la conveniencia de una inclinación hacia los valores del Estado democrático, en lugar de tanta asepsia, acaso porque fulmina lo personal por lo social; ver Mir Puig, Santiago, “Sociedad, Norma y Persona en Jakobs”, en Derecho Penal Contemporáneo, Nº 2, Legis, Bogotá, 2003, p. 128 ss.

Page 44: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

44

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

44

obra a instancias de aquél, ya sea como eutanasia activa o pasiva – más sus posibilidades – o en la asistencia al suicidio; e, in secundis, bajo una acogida favorable al problema planteado, ponerle dimensión jurídica a la respuesta.

Despejada cualquier potestad dispositiva de una persona para obrar por cuenta y, en todo caso, resolver que sería mejor para otra en la propia sala de espera a la muerte, aquí se cuenta el ejercicio de la autonomía como libertad del interesado, titular particular del bien jurídico intersubjetivo, tutelado por vía de la norma penal. Por ello, una salida pudiera ser la exclusión de la tipicidad del acto y quienes así lo postulan, oponen que la tutela – más allá de la costumbre y la adecuación social, que también podrían agregarse a la posición (que da para dudar) – se despeja por la acción que pivotea sobre la libertad fundamentalmente garantizada, de modo que una expresión de la última vuelve imposible la lesión del titular y en consecuencia, la adecuación típica17. El giro normativista parece mutar, asimismo, cuando toma escena el consentimiento – ya sea como inducción, complicidad psíquica o vía alguna participación –, en la medida que este último elimina la arrogación de la organización ajena18, aunque con ello se contradiga la validez (re)afirmada

17 Cfr. Roxin, Claus, Antigiuridicitá e causa di giustificazione (trad. Cavaliere, A.-Fiore, S.-Schiaffo, F.), Edizione Scientifiche Italiane, Napoli, 1996, p. 126 ss. Es difícil, sin embargo, aceptar comportamientos como los analizados desde lo objetivo, como los que hacen al núcleo del campo de protección penal; Lakner, Karl-kühl, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, C. H. Beck, München, 2008, p. 887. Por igual se ha dicho, bajo el orden español, que la vida impuesta contra la voluntad de su titular no es un valor constitucional ni puede configurarse como un bien digno de tutela penal. Cfr. Vives Antón, T. S.-Orts Berenguer, E.-Carbonell Mateu, J.C.-González Cussac, J. L.-Martínez-Buján Pérez, C., Derecho Penal. Parte Especial, Tirant, Valencia, 2010, p. 92.

Son harto discutibles, por otra parte, algunos juicios de esta tendencia según ut-infra. Dicho sea, por otra parte, el marco de la convocatoria torna, en mi opinión, innecesario ir sobre el alcance del consentimiento entre una autopuesta en peligro (que podría serlo autoagresión vía suicidio asistido) o una heteropuesta (vía eutanasia en sus variables, etc.), ya que aquí no hay ninguna posibilidad de que, informándose, quien reciba las consecuencias de la realización del riesgo no las haya específicamente asumido. Sobre este tema y generalmente critico hacia una simple asimilación a la problemática del consentimiento, traducido, Roxin, Claus, “La polémica en torno a la heteropuesta en peligro consentida” (“Der Streit um die eiverständliche Fremdgefährdung”, trad. Peñaranda Ramos, E.), Indret 1/2013, Barcelona, p. 1 ss.

18 Cfr. Jakobs, Günther, “La organización de autolesión y heterolesión, especialmente en caso de muerte” (Die Organisation von Selbst und Fremdverletzung, insbesondere bei Tötung, trad. Cancio Meliá, M.), y “Sobre el injusto del suicidio y del homicidio a petición. Estudio

Page 45: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

4545

a través de una consecuencia, que no se aplica a instancias de un sujeto que acordó con otro: en ese sendero, termina el recorrido no hallándose abismo entre la cooperación a la autolesión y la heterolesión, que se clasifica como un delito de peligro abstracto.

Ahora bien, ninguna opinión de las retratadas conforman bastante19. Es que hay que distinguir dar acuerdo y así renunciar a la propiedad sobre una cosa a cuando ello se traslade sobre el cuerpo o la vida. Si se reflexiona un poco más en profundidad, un paciente que morirá a causa de una enferme-dad curable no puede volver atípico el homicidio, las lesiones o el abandono que cobijan la tutela de la vida, la suya y la de todos los demás, porque no se fia de la medicina y el facultativo no persigue que lo haga, como tampoco quien decida suicidarse al guiar un automóvil a muy alta velocidad por las calles de la ciudad, deba continuar, aclarándole su plan a un oficial de poli-cía como para que se las deje desiertas20; ni deja de ser inadmisible a los ojos de un cirujano, ser testigo del pacto sobre la venta de un riñon por más que el vendedor tenga otro y sea compatible con quien agoniza a la espera de uno21 o (por lejos) más complejo, si se prestara a que alguien se suicide – un padre – para donar un corazón a otro – un hijo –22. Estas menciones u otras más específicas, tales como la solicitud de alguien con limitación psicomotriz para que le disparen o le inyecten un compuesto letal por un precio, e incluso aquél de perfecta salud que perdió el empleo, al amor de su vida y que por ello o aquello se siente fallecer y quiere ¡en efecto! morir, como el que dilapi-dó su patrimonio en actividades lúdicas, no tiene ánimo, valor o convicción

sobre la relación entre juricidad y eticidad” (Zum Unrecht der Selbsttötung und der Tötung auf Verlangen, trad. Cancio Meliá, M.-Sancinetti, M. ), Bases para una teoría funcional del Derecho Penal, Palestra, Lima, 2000, p. 311 ss; y 346, respectivamente (aunque desliza una justificación entre los intereses para evitar planes de morir y una situación fáctica por la que sea más racional hacerlo, y eso a través de la necesidad).

19 Aunque coincida en la dificultad del tema, cfr. Mir Piug, S., Derecho Penal. Parte General, Barcelona, 1998, p. 532.

20 Cfr. Bockelmann, Paul, Strafrecht AT, C. H. Beck oHG, München, 1987, 7 con cita BGH, 23, 261 o la mención del que dona sangre a contraprestación de una suma dineraria.

21 Véase Fiandaca, G.-Musco, E., Diritto Penale. Parte Generale, Zanichelli, Bologna, 2001, p. 234 ss caso 19 (hay traducción al español de editorial Derecho Penal. Parte General, Eiroa, P.-Machado Pelloni, F.-Pennise Iantorno, M.S., Temis, Bogotá, reeditada).

22 Una historia así es contada en el cine, John Q (2002), protagonizada por el actor Denzel Washington y la dirección de Nick Cassavets.

Page 46: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

46

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

46

para, parejamente, dejar el juego y a la vez resurgir23. Por ello (ahora) soy de los que creen que quien actúa en el consenso de otra persona, lo hace sin an-tijuricidad, al abrazo de una justificante reglada, lo que es decir bajo límites y presupuestos24.

7. De lo anterior se puede destacar que el consenso puede estar muy presente en todos y cada uno de los supuestos reflejados y por imaginar, pero que por necesario no es suficiente para desarticular la existencia del bien jurídico solventado por la norma penal – que es la identidad de la sociedad y la mantiene, cuanto menos por sus canales de delegación, o sea las instituciones y a través del contrato social –. La exteriorización de la voluntad no puede perderse como un fin en si misma, perdiéndose su carácter instrumental en lo relacional o comunicacional25. Es que coexiste siempre, con la dificultad a cuestas, la individualidad de la persona con la

23 Hay muchos casos más de este calibre pero propuestos por Dworkin, R., Life’s dominion, op. cit., p. 201; de acuerdo, Cornacchia, Luigi, “Suicidio y Eutanasia” (Suicidio ed Eutanasia, trad. Polaino-Orts, M.) en El Funcionalismo en Derecho Penal (Montealegre Lynett, E., coordinador), T. II, U. Externado de Colombia, 2003, p. 435. Algunos se presentan opuestos al fundamento ético identificado con lo jurídico que plantea vivir por el compromiso con la familia; alguien puede querer morir para no ocasionar gastos médicos exhorbitantes para el núcleo parental. Completar la mirada contraria, Schmidhäuser, E. “Selbstmord und Beteiligung am Selbstmord in strafrechtlicher Sicht”, en Festschrift für Hans Welzel zum 70 Geburstag, Berlin, 1974, p. 817 ss. Si el tema no fuera crucial, su “efecto derrame” no despertaría la ola de temores que levanta; sobre mantener cualquier prohibición al suicidio asistido con fin de lucro, Neumann, U.-Saliger, F., “Sterbehilfe zwischen Selbstbestimmung und Fremdbestimmung – Kritische Anmerkungen zur Aktuellen Sterbehilfedebatte”, Hrr-Strafrecht, 8/2006, p. 280 ss.

24 Cfr. Antolisei, Francesco, Manuale di Diritto Penale (a cura di Conti, L.), Giuffré, Milano, 2000, p. 284 ss; Mantovani, Ferrando, Diritto Penale. Parte Generale, Cedam, Padova, 1988, p. 252 ss; Figueiredo Dias, Jorge De, Direito Penal. Parte Geral. T. I, Coimbra editora, Coimbra, 2007, p. 470 ss; incluso como causal supralegal, Bitencourt, Cezar R., Tratado de Direito Penal. Parte Geral, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 308 ss; Muñoz Conde, F., Derecho Penal. Parte Especial, Tirant, Valencia, 2004, p. 64 ss. Hace más de trece años y en la ausencia de toda regulación me parecía que podía no haber condiciones de reprochabilidad en circunstancias de profundos padecimientos por parte del paciente, en una específica modalidad; “El médico, el paciente y el derecho a una muerte digna (introducción a un análisis liberal restrictivo)”, JA. 1999-III-792.

25 Sobre consenso e implicancias Raz, Joseph, The morality of freedom, Oxford U. Press, Oxford, 1988, p. 80 ss e igual autor, “Autoridad y consentimiento”, en El Lenguaje del Derecho. Homenaje a Genaro R. Carrió, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1983, p. 413.

Page 47: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

4747

sociedad que puede resistirla: el campo del derecho penal es propicio para dejarla al descubierto, cuando el peso cultural que es proporcional al de la historia, presta señales sonoras a modo de alarmas, frente a peligros de destrucción. Ello no asume forzosamente la atemporalidad de un asunto refrendado normativamente ni mucho menos su imposición muy lejos de donde está la irradiación de la valoración. Lo que sucede es, en cambio, que la dinámica de la convivencia pueda concluir que lo que antes era un foco ígneo ya no lo sea o que, todavía manteniéndose como tal, sea objeto de la más atenta vigilancia y control, merced a cortafuegos estratégicos. De ahí que el Estado no es dueño del patrimonio cultural que en todo caso refleja (también) por el ordenamiento jurídico-penal y, simultáneamente, que la rebelión personal de alguien que habita en sociedad tampoco pueda expropiarlo sin una racional compensación26. Sentadas las aclaraciones, en el relevamiento de la antijuricidad y su negación la justificación, es por lejos un ambiente más propicio al debate del peso que tiene o que debe dársele, según los casos, a un consenso para la asistencia en un suicidio (vía autolesión) o la comisión u omisión en una práctica de eutanasia (vía heterolesión), en la directa proporción que la libertad como autonomía sea un rasgo básico a la cultura penalmente respaldada, como está desaprobado su ejercicio si afecta directa e incluso, según ajustes, indirectamente la autodeterminación ajena. Aquí el eje es tutelar vivir porque esto es lo constructivo, lo que va asociado al desarrollo social, y que no se persiga al suicida no asume que la negación de la vida se vuelva, por decirlo de una vez, indiferente o pase, en opuesto sentido, a ser auspiciado por el orden jurídico, cuan resultante relacional entre la persona y su comunidad.

8. La producción normativa y la mirada interpretativa sobre la última tiene que atender la realidad como la necesidad y cualquier cruzada forzosamente transitará por si posibilitar un acuerdo que relegue el favorecimiento de la opción por vivir, o lo que es igual, valorar que el consenso que lleve a la muerte – suicidio, eutanasia u homicidio a ruego –

26 Para ampliar, Mayer, Max Ernst, Filosofía del Derecho (trad. Legaz Lacambra, L.), Labor, Barcelona, 1937, p. 75 ss; Radbruch, Gustav, Rechtsphilosophie (Gesamtausgabe, 2-von Kaufmann, Arthur), Müller, Heidelberg, 1993, p. 226 ss; Kaufmann, Arthur, “Rechtsphilosophie, Rechtstheorie, Rechtsdogmatik”, en Einführung in die Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, Kaufmann, A.-Hassemer, W.-Neumann, U. (Hrsg), op. cit., p. 1 ss, I; más sintéticamente, Guzmán Dálbora, José Luis, “La teoría de las normas de cultura”, Cultura y Delito, Temis, Bogotá, 2011, p. 11 ss. Por cierto que la transformación cultural no es tarea sencilla, ni el autor de Kultur Normen lo deja así escrito; para amplitud, Novoa Monreal, Eduardo, El derecho como obstáculo al cambio social, Siglo XXI, México DF., 1976, p. 33 ss.

Page 48: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

48

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

48

es algo inmerecido de ocupar un espacio del nivel elemental o mínimo en el interés penal de tutela27. Sin embargo, un recordatorio depositado en algún rincón lo bastante visible de la mayoría de los sistemas normativos cumple la función de advertir que la elección por la vida merece toda la preferencia y que, en armonía, aunque no se quiera iuris tantum su final y ello porque se privilegia o se prefiere la libertad pero para la supervivencia, se tomará como comportamiento conforme a derecho cuando se reunan ciertas condiciones, que solamente allí valen todavía más como justificación de la autodeterminación que como fundamentación de un hecho punible respecto de un plan de asistencia o colaboración en la realización humana: el enroque importará que prime lo estrictamente personal – en un escalón superior más estrecho e inverso, muchísimo más pesado axiológicamente – como límite a lo que es intersubjetivo – más vasto, aunque más ligero y situado en otro peldaño inferior –28. Cualquier objeción que se edifique bajo el título de paternalismo tropieza con la crítica contraria, derivación de una impunidad libertaria contra-cultural capaz de destruir, imprevisibilidad por medio, la propia defensa de la autonomía. Lo trato a continuación.

9. La cobertura de un bien jurídico echando mano a una norma penal, para desaparecer por el consenso, tiene que cargar contra varios argumentos que se le oponen como ser la equiparación funcional e irreversible entre hecho punible y pena, que presupone29. El derecho penal se ocupa de la tutela de los derechos fundamentales y por aquellos encuentra contención, cuanto limitación, la libertad como autonomía siempre en perspectiva transpersonal, de lo que surge que quien cuenta con conciencia y competencia por organización, en ningún modo y como su derecho, despierta un deber (o una obligación autoimpuesta si se decidiera) en otro (médico, funcionario,

27 Sobre la tríada realidad-posibilidad-necesidad, Häberle, Peter, Die Verfassung des Pluralismus, Athenäum, Königstein, 1980, p. 4 ss.

28 Conclusión a la que se puede llegar por la antes aludida tríada realidad-posibilidad-necesidad, véase Häberle, Peter, Die Verfassung des Pluralismus, op. cit., p. 140.

29 Se agrega que la pena, a diverso de lo que puede darse a comprender por imperio del consenso, no es simple y apenas consecuencia de apropiarse de la libertad de alguien, acto que no se quiere; pretende la custodia y salvaguarda de valores intersubjetivos, aunque exista quien ceda e incluso no la quiera. De ahí que no equivale -¡es un logaritmo más complejo! – la necesidad de la prevención con el merecimiento anidado en la culpabilidad. Sobre esta distinción, Busato, Paulo C., “Beccaria, o Contratualismo e o Controle Social do Intolerável como Fundamento da Pena e do Própio Direito Penal”, en Ler Beccaria Hoje (Busato, P. C.-organizador), Lumen Juris, Rio, 2009, p. 1 ss.

Page 49: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

4949

menos en un particular) como para que ponga término a su vida: mientras en el primero hay un espacio que no se sanciona, en el segundo por el contrario subsiste la norma, por lo que la renuncia a continuar vivo es relativa y la disponibilidad ajena falsa30. Esto se distingue respecto de quien en plena lucidez no tiene organización o del supuesto de aquel que sorprendido, se halla falto de conciencia. En estos últimos la desigualdad en el ejercicio de cualquier facultad dispara otras soluciones, porque a la par de mantener la mirada humanitas de los derechos fundamentales como canal de intervención del ius puniendi estatal – su fundamento y su propio límite –, despliega otra observación en la cual es el continente empírico relacional el que empuja a procesar reacciones de disconformidad y desafío a órdenes, que con su consecuencia normativa, no haría sino desconocer la dignidad en la estatura de cada persona. No hay otro modo de comprenderla social, política y, en lo principal, jurídico penalmente, porque no tiene materialmente nada que ver justificar un derecho a morir con la constelación de vínculos que dispara y otro atinente a la calidad en la libertad de vivir o a su cuidado31.

30 A partir de lo dicho, se llega a una dimensión intermedia entre la cuestión moral del supuesto deber de honrar la vida y la de tener que hacerlo pero como deber hacia otros. Inexistente lo primero, a partir de la autorresponsabilidad, que no niega la libertad como reconocimiento y límite en los derechos fundamentales pero que afirma consecuencias normativas traspasado el último, quien persiga morir no debe perder de vista que su impunidad no es extensiva a otros, fuera de los casos tratados especialmente en el ordenamiento jurídico. De acuerdo, Kindhäuser, Urs, “Reflexiones de teoría de las normas acerca del consentimiento” (trad. Mañalich, J. P.), Teoría de las Normas y Sistematicidad del delito, Ara, Lima, 2008, p. 35. Esto explica que nadie por suicidarse o morir mate (o induzca a matar) a otro que lo quiere impedir, ni un tercero en igual acción de presunta defensa; este análisis, Cornacchia, Luigi, “Suicidio y Eutanasia”, op. cit., p. 436. Como también que no elimine la obligación de cursos salvadores de quienes ocupen posición de garante, especialmente galenos o funcionarios, que excepcionalmente deberán abstenerse y por razones superiores que sean exigencia de la dignidad humana, trátese de dolores insoportables o una convicción moral, religiosa, etc; p.ej. Gimbernat Ordeig, E. “Eutanasia y Derecho Penal”, en Estudios de Derecho Penal, Tecnos, Madrid, 1990, p. 52-53. En parte porque no se puede prescindir de estudios especializados que señalan que muchas veces se persiguen con estas conductas llamados de atención – “appelsuizide” –, en otra porque fuera de lo recién puntualizado, subsisten deberes deónticos; así se prohibe asistir suicidios u homicidios a ruego, por las academias médicas helvéticas y germanas, ver de nuevo, Cornacchia, Luigi, “Suicidio y Eutanasia”, op. cit., p. 440.

31 Este contexto es el eje de mi tesis doctoral, inédita, Desobediencia & delito. Muy superior a lo que yo pueda expresar, Gunther, Klaus, Schuld und kommunikative Freiheit. Studien zur

Page 50: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

50

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

50

El gran freno que detiene el progreso al convencimiento, proveniente de la hermenéutica, revela definitivamente que no basta un acuerdo para excluir un injusto en la superficie de la libertad para dejar de vivir32. Cuando el derecho deja de interesarse por la tutela del ser humano en la amplificación de su autodeterminación lo sostiene regularmente, de un modo u otro. Así es como no admite al consenso como justificante y lo excluye como un elemento genérico o absoluto en supuestos bajo análisis, donde anida el desarrollo de la dignidad personal, por el peligro para el fundamento y límite de los derechos fundamentales33.

personalen Zurechnun strafbaren Unrechts im demokratischen Rechsstaat. Frankfurt am Mein, Klostermann (Juristische Abhandlungen 45), 2005, p. 232 ss.

32 Aunque para Roxin surge de la libertad constitucional; Antigiuridicitá e causa di giustificazione, op. cit., p. 127 ss; siendo falto de taxatividad en clave constitucional (103 GG), la limitación a las lesiones consentidas según la costumbre, que son punibles (aunque había acuerdo con ella y se resolvía por la adecuación social, en la presentación original de su tesis). Sin embargo, desde el ámbito de protección de la norma, teleológicamente, no pareciera haber nada crítico. Opuesto a Roxin, Jescheck, Hans-Heinrich-Weigend, T., Tratado de Derecho Penal. Parte General (Strafrecht AT, trad. Olmedo Cardenete, M.), Comares, Granada, 2003, 34 III.1 y 2.

33 Así lo aclara para el art. 38 CP. de Portugal, Figueredo Dias, Jorge De, Direito Penal. Parte Geral T. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 479; art. 50 CP. de Italia, que reenvía a la totalidad del sistema e incluso la costumbre (art. 5 CC., arts. 2 y 32 CI. esquema cultural), Fiandaca, G. Musco, E., Diritto Penale. Parte Generale, op. cit., p. 237, de ahí que el homicidio consentido es punible bajo el art. 579 – que no puede tomarse a la ligera, para mejorar el tratamiento del homicidio –, y que hay una prohibición en cuanto a incentivar el suicidio, art. 580, Fiandaca, G.-Musco, E., Diritto penale. Parte speciale. Vol. II, t. I, I delitti contro la persona, Zanichelli, Bologna, 2013, p. 35 ss; también Antolisei, Francesco, Manuale di Diritto Penale, op. cit., p. 288 ss y Mantovani, Ferrando, Diritto Penale. Parte Generale, op. cit., p. 253 ss; tácita o implícitamente, Bitencourt, Cezar R., Tratado de Direito Penal. Parte Geral, op. cit., p. 308 ss. para eximir, no para castigar, sin olvidar el art. 5 CB. y; Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2, op. cit., p. 47 para el art. 121.1 CP.; o bajo la Ley Mayor, art. 10 CE., Mir Puig, S., Tratado de Derecho Penal. Parte General, op. cit., p. 520 ss; más allá de lo expuesto en monografías acotadas al tema, admite la subsistencia del interés por la ponderación de bienes en la que supera el interés social más allá del personal, Jakobs, Günther, Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y teoría de la imputación, op. cit., p. 524 ss y en la parte especial, los extremos de buenas costumbres que limitan el consenso para las lesiones (228 Stgb) y no lo admiten para el homicidio (216 íd.), se ajustan jurídicamente; además el caso germano tiene un callejón en la impunidad de la inducción o cooperación al suicidio -aunque no agrade mucho a doctrina (en especial a ese enorme jurista, Eberhard Schmidhäuser) y jurisprudencia –. En el caso argentino, sin perjuicio de la ley en el art. 82 CP., en la especie cobrarían importancia

Page 51: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

5151

10. Al contrario de lo que algunos se atrevan a deslizar, no se advierte paternalismo alguno cuando, eximido el consumidor de estupefacientes – que optaría por acabar con su vida a largo plazo –, se pone de acuerdo con su proveedor para autoabastecerse de una droga prohibida y no puede prosperar la oposición del último a una condena34; tampoco cuando alguien asume como válido ser esclavo de otro, ni menos si en aras de la ciencia ofreciera su cuerpo para ser sometido a experimentos. O sea, si el bien jurídico penalmente apoyado puede desinteresar motu propio por el consentimiento de alguien ante un hecho por el que por norma no lo haría, deberá ser objeto de escrutinio proporcional en una cosmovisión heteronoma, métodología que marca la intervención penal por la inclusión típica de un acto no querido35.

Por todo es que considero que, excepcionalmente, ante falta de competencia pero con conciencia o a falta de ella, la cooperación o el auxilio, puede ayudar al desarrollo de la personalidad de quien vive sin dignidad, justificándose el comportamiento sanitario; tanto como aquél que tiene que reconocer y respetar la autodeterminación de quien se decida en ejercicio de un derecho fundamental – conciencia, religión, petición –, aún tratándose de un funcionario penitenciario. Siempre en un marco racional, que avente cualquier indicio de que sea, al contrario, un hecho punible. La formalización de la justificación, al fin de cuentas, es otra discusión36.

III – DERECHOS, COLISIÓN, ARMONÍA: UN INVENTARIO POR UN ITINERARIO COMPARADO

11. Se anticipó ut-supra I que el reconocimiento, el respeto y la protección humana varían según los más diversos ordenamientos, y ello de acuerdo al valor cultural subyacente en los Estados. Tal diversidad, sin embargo, se ha

los arts. 19 y 33 CN., sin perjuicio de los instrumentos internacionales de derechos humanos, parte del bloque de constitucionalidad, 75.22 CN., arts. 4 y 5 CADH, art. 6 PIDCyP.

34 Para la ley federal de estupefacientes 23.737 de Argentina – arts. 5 “c” o “e”– no prosperaría y en Alemania para la Betäubungsmittelgesetz (Btmg), arts. 29.1.1 o 30.1.3 tampoco. El propio Roxin acordaría “Zur Beteiligung an eigenverantwortlicher Selbstgefährdung”, en NStZ-Neue Zeitschrift für Strafrecht, Beck, München, 1984, 411.

35 Así Kindhäuser, Urs, “Reflexiones de teoría de las normas acerca del consentimiento”, op. cit., p. 24 ss. Sobre causales concretas, quizás el petitorio del paciente pueda llegar a ser un modo de legítima defensa frente a sus mayúsculas dolencias; p. ej. Gimbernat Ordeig, E. “Eutanasia y Derecho Penal”, en Estudios de Derecho Penal, op. cit., p. 53; en contra, Lakner, Karl-kühl, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 889.

36 Se pospone para ut-infra, a propósito de decisiones judiciales que tocan esta asignatura.

Page 52: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

52

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

52

dado para sí un lugar de encuentro sobre el que interesa cavilar. En parte, por la enorme señalización que, justamente, persigue informar sobre la existencia de tal espacio jurídico, letreros sostenidos ad intra y ad extra en aquellos; aunque, esto ya sin reservas, la mayor trascendencia viene de la contribución hacia una mayor certeza, elemental para un mejor derecho. Toca alcanzar el camino, para más tarde recorrerlo.

Lo que quisiera resaltar es que la formación del derecho continental como la del Common Law, desde tiempos que no se pueden acortar ni tampoco retratar en estas líneas, siempre han mantenido su preocupación por resolver conflictos del mejor modo que les fuera posible. Es decir, y aunque pueda exceder el término en sus alcances – como despertar desacuerdos por su significación –, con justicia. La tarea en cuestión supone el mantenimiento, como preservación, de lo esencial en la historia de los pueblos pero, parejamente, que en la tempestiva demanda social, se adapte con igual pretensión; tal búsqueda, no obstante, se expande con el siguiente agregado de preocupación: que la transformación sea superadora, sin el más mínimo retroceso respecto de capitales insustituibles del ordenamiento jurídico, que hacen a su pasado y, como no recordarlo, también a su futuro37.

Ahora, sin mengua del marco de actuación estatal – cualquiera que fuere –, surgió y culturalmente tiende a imponerse, un interés supranacional por la conservación del derecho como también, si es que cabe, por su propio perfeccionamiento. Tal sendero se abrió, si se presta una fugaz mirada a la historia, recientemente. En efecto, hasta la Segunda Gran Guerra todo culminaba a nivel estatal, con la supremacía de sus disposiciones. Después, con la irrupción del derecho de los tratados sobre derechos fundamentales, se volvió por los últimos, a lo internacional, hacia aquello que es o que debía ser compartido por todas las personas y sus correspondientes gobiernos, más allá del tiempo o de la geografía. La mayor distancia con el antecedente de la transnacionalidad del derecho canónico – que tenía el monopolio de la influencia ad extra y generaba un orden espejo ad intra de los Estados medievales – se traba en que esta nueva brecha además del poder estático que despliega, también cuenta con uno dinámico, de modo que reduce la injerencia sobre la humanidad o aumenta las obligaciones estatales para con

37 Cfr. Faria Costa, José de, “Reflexoes mínimas e tempestivas sobre o direito penal de hoje” y “O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado (Babel ou esperanto universal?), en Direito Penal e GlobalizaCao, Wolters Kluwer-Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 14; 26 ss, respectivamente.

Page 53: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

5353

aquella38. Conjuga, entonces, defensa con desarrollo o lo redefine, dado que lo último puede ser a su vez lo primero, en miras a la libertad.

12. Bajo las coordenadas apuntadas, no asoman elementos que traigan crisis al conjunto de reflexiones que se volcaran ut-supra, todo lo contrario. Asoma un ius commune del que todos los Estados, con sus propias realidades culturales, participan con su aporte, merced a sus respectivas constituciones, las que como sus leyes mayores, los representan y definen. A diferencia de cuanto acontecía hasta la consolidación de la separación de la Iglesia, la capacidad estatal para decidir su legislación, bajo sus instituciones, con aptitud para condicionar la autonomía personal, no es núcleo de debate alguno. No hay cuestionamiento hacia la salvaguarda de valores que a nivel doméstico, terminan por estar fuera de la disponibilidad de los individuos, sea que busquen entregar su cuerpo o su libertad, como un suicidio contratado o una esclavitud acordada: la incuestionable legitimación ad intra, desprendida de la soberanía, se conjuga con una legalidad ad extra, en procura de que el ordenamiento interno guarde conformidad con la política exterior gestada al amparo de los acuerdos sobre derechos fundamentales39.

No debe desprenderse, a pesar de lo señalado, una suerte de inexistencia de disputas en los derechos internos ni tampoco entre las fuerzas ad intra y las que se le opongan ad extra. Nada de eso. En cambio, debe decirse que con ellos de presupuesto, germina un diálogo genuino, una enlace hermenéutico que desde un ámbito local traspasa a lo internacional, por una de sus áreas más fecundas, la superficie regional y, por supuesto, viceversa. Esto hace a una verdadera movilización de los intérpretes, los que sin desprenderse de sus historias – lo que es hacerse cargo de las culturas, las nuestras y las ajenas – reconsideran las normas, desde su producción hasta su prospectiva en clave teleológica, a partir de la reelaboración del lenguaje, el cual formulado desde antiguo en sus latitudes, viene a ser modificado a partir de tiempo reciente – y ante urgentes problemas – en pretensión de expansión universal40.

38 Cfr. Oyrechagen Sunde, Jorn, “Champagne at the Funeral. An introduction to legal Culture”, en Rendezvous of European Legal Cultures (Oyrehagen Sunde, J-Skovin, K. E., eds.), Fagbokforlaget, Bergen, 2010, p. 13, 20 ss

39 Véase el análisis con expresa mención de los ejemplos citados, en el legado de Cassese, Antonio, International Law, Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 10 ss, 46 ss.

40 De nuevo, Faria Costa, José de, “Reflexoes mínimas e tempestivas sobre o direito penal de hoje” y “O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado (Babel ou esperanto universal?), en Direito Penal e GlobalizaCao, op. cit., p. 17; 28 ss.

Page 54: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

54

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

54

13. En el aprendizaje del derecho del Common Law los jueces y abogados se concentran en los hechos, acaso como si fuera lo único vitalmente relevante, incapaces de apreciar la perspectiva más allá de ellos, tarea confiada más a los profesores e incluso a la trama del poder político. Esa proa hacia el conflicto no es así en los magistrados continentales, por lejos más formados en la abstracción, con apetito no solamente por el hallazgo de la respuesta, sino por la búsqueda y la consecuente aparición de todas las posibles merced a la dogmática. Consigo llevan – cada uno de ellos – la patente de origen y, en consecuencia, la capacidad innata de resolver mejor que otros interrogantes envolventes a derechos civiles, mientras sin pausa ni prisa adquieren herramientas para responder lo que otros bien saben mejor respecto de aquellos económicos, sociales y culturales y, desde luego, el camino inverso de los últimos actores sobre la temática de los primeros. Para unos será su ventaja la continuidad del sistema democrático a la hora señalada para terminar con un caso y acaso por haber adolecido (tiranías ad origine) o adolecer (otras ad regimine) de esa buena salud institucional, los otros (contabilizo a los iberoamericanos) tengan mucho más para apuntar e incluso mejor, ante una duda sembrada sobre el alcance de los derechos fundamentales41. A lo que voy es que el lenguaje compartido genera debates acerca de su significación que antes no era imaginable y que, por el acercamiento multicultural que lo impregna, tiene la aptitud para sentar las bases sobre acuerdos básicos, medulares a la libertad y a su regulación, merced a la gestión estatal preocupada por su defensa ante el despliegue, junto a otras, en lo que hace a la convivencia social.

Para darle mayor ilustración a esta descripción, la Corte Constitucional de Sudáfrica en una metateoría sobre la elaboración del significado de los derechos fundamentales, en forma expresa recogió que como herramientas para la interpretación de aquellos receptados en su Ley Mayor acudiría, evaluaría e iba a perseguir comprender decisiones de tribunales o de órganos con instrumentos análogos, sea el Comité de Derechos Humanos dependiente de Naciones Unidas, la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, la Corte Interamericana de Derechos Humanos, la Comisión Europea de

41 Ampliar la consulta en Arold, Nina-Louisa, “The Melting Pot or the Salad Bowl Revisited – Rendezvous of Legal Cultures at the European Court of Human Rights”, op. cit., p. 63 ss; también en lo que hace al gobierno y la supremacía de la legislación comunitaria, un plano que también tiene enorme conexión con los derechos fundamentales, Franklin, Christian, “The Melting Pot or the Salad Bowl Revisited – the Meeting of Legal Cultures at the European Court of Justica”, en en Rendezvous of European Legal Cultures, op. cit., p. 83 ss.

Page 55: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

5555

Derechos Humanos y la Corte Europea de Derechos Humanos, tanto como materiales especializados, capaces de proveer guías en la aplicación del catálogo de derechos y garantías42.

Entonces, si cuando recorremos la avenida de la libertad de vivir damos con esquinas cuyo cruce supone algún cuidado, no es ningún dislate atravesarlo con la consideración de los que también la han transitado en uno u otro modo, sin perjuicio de la inestimable colaboración de otras variables43. A la par de tomar nota del consenso estatal en torno al sistema regional de protección – que implica hacerse cargo, lo que no es poco en lo conceptual, de un bloqueo al acceso irrestricto de cada persona al Tribunal que controla el cumplimiento de las obligaciones de los Estados respecto de los derechos fundamentales (¡y hay proposiciones funcionales para que contínue así, como por ejemplo la de defensores oficiales latinoamericanos que acompañan al caso seleccionado por la Comisión ante la Corte, en lugar de perseguir la eliminación de la primera!) –, al fin de cuentas se persigue una “humanización” a la hora señalada para atender un conflicto de la magnitud que rodea a la libertad de vivir. Cuanto menos en un análisis teorético, acudir al auxilio de otros tribunales suma esfuerzos hacia una mayor efectividad de los derechos humanos, ya que las decisiones judiciales son altos factores de interpretación, enriquecidas por la constelación de ingredientes que sazonan el encuentro multicultural de los actores involucrados, los cuales sin olvidar,

42 Cfr. “S. v. Makwayanne and another”, 1995 (3) S. A. 391 (CC), 1995 (6) B.C.L.R. 665 (CC), recopilado por De Schutter, Olivier, International Human Rights Law, Cambridge University Press, Cambridge, 2010, p. 33.

43 No se piensa en abandonar -nada asumo en tal sentido – las soluciones a los problemas de interpretación o, expresado mejor, los elementos para hacerles frente. Ello trae el deber de tomar en cuenta herramientas para el reconocimiento, la reproducción y, tras la adecuación que aquello supone, la resolución de la función normativa, a la que deberá agregarse superada la actividad, la consecuencia como resultado, con la tipología de correcciones asignadas a un vocablo o sintagma; como consulta, Betti, Emilio, Interpretazione della Legge e degli Atti Giuridici, Giuffré, Milano, 1971, p. 26, 33, 39 ss; también Guastini, Ricardo, Distinguiendo (trad. Ferrer Beltrán, J.), Gedisa, Barceolona, 1999, p. 201, 211 ss y Dalle fonti alle norme, Giappichelli, 1992, p. 139 ss; más recientemente, Modugno, Franco, Interpretazione Giuridica, Cedam, Padova, 2009, p. 16, en especial 40 ss. Sobre la ampliación de intérpretes y la relación hermenéutica, Häberle, Peter, Die Verfassung des Pluralismus, Athenäum, Könnigstein, 1980, p. 79 ss; la comunicación e interrelación, Viola, F.-Zaccaria, G., Diritto e interpretazione, Laterza, Roma-Bari, 1999, p. 105 ss; y sobre acudir a otros ordenamientos comparados para la construcción teórica del derecho e impacto en su aplicación, Bongiovanni, Giorgio, Costituzionalismo e teoria del Diritto, Laterza, Roma-Bari, 2005, p. 6 ss, 151 ss.

Page 56: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

56

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

56

se avienen para posibilitar la superación del pasado histórico y del específico encuadre geopolítico, procedimiento sin el que sería imposible – o casi – idear la evolución progresiva del eje que sea centro de atención44.

14. La problemática de la muerte ha sido objeto de atención desde varias antenas de comunicación, de modo que intentaremos la triangulación para el esclarecimiento de su posición – con lo que implica –, tal y como se hiciera mención al ingreso de este tramo del trayecto. Aunque las definiciones se corresponden con la regla libertaria sin el despropósito de predicarla como absoluta, ad casum no son consistentes a la hora del posterior balance. Veamos. Para iniciar el seguimiento de las celdas, la Suprema Corte de Cánada debió atender el llamado de Sue Rodríguez, la que al momento de presentar su caso, padecía una enfermedad progresiva que acababa con sus músculos, siendo de origen neurológico y degenerativo, lo que impedía motricidad y además le resultaba intolerable. Bajo la Ley Fundamental del país, en su séptima sección, ella contaba con derecho a la vida, la libertad y la seguridad de su persona, del cual no podría ser privada sino sobre principios fundamentales de justicia. Aunque el suicido ya no era un hecho punible, se mantenía, no obstante, la prohibición normativa para quien prestara asistencia en tal acto. Así delimitada e imposibilitada de resolver su situación personal, la nombrada atacó la ley por inconstitucional. El Tribunal Federal, sin embargo y aunque a primera vista resulte contradictorio, evaluó que la disposición perseguía proteger a personas especialmente débiles a las que el Estado, a pesar de sus situaciones deficitarias, no les quitaría atención. Sin pasar por alto la afinidad del ordenamiento interno – sintonizado con países como Austria, España e Italia – con la tesis que desplegaba, se enfatizó en los pasos del Reino Unido, donde traspasándose su legislación, la Comisión Europea de Derechos Humanos concluyó que la autoría y participación en la muerte ajena (que sería heterolesión o agresión), no cabía en la latitud y la longitud de

44 Cfr. Neuman, Gerald L., “Import, export, and Regional Consent in the Inter-American Court of Human Rights”, European Journal of International Law, 19, nº 1 (2008), 101 at 115, recogido por De Schutter, Olivier, International Human Rights Law, op. cit., p. 34; también resulta del análisis de Piovesan, Flávia, “A Litigáncia de Direitos Humanos no Brasil: Desafios e Perspectivas no uso dos sistemas Nacional e Internacional de ProteCáo”, en Temas de Direitos Humanos (Piovesan, F. coord.), Saraiva, Sao Paulo, 2009, p. 371 ss. Hace ya bastante tiempo, se creía superior la perspectiva del sistema interamericano frente al europeo, más creo que se trataba más de cierta impotencia frente a un déficit de aquél que por las virtudes del transoceánico que, ya desde su potencialidad procedimental, lo supera largamente. Véase, Broekman, Jan M., “Definición y contexto legal de la Bioética”, JA. 28.10.1998, p. 4 ss.

Page 57: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

5757

la autonomía y la intimidad, envolviéndose un interés público en el despeje de situaciones de abuso, materia última que quieren reprobar, después de todo, otros países, sean Dinamarca, Francia, Suiza o en un Estado de los Estados Unidos de América45. Para el país federal citado recién, no habría cambios sustanciales frente al seguimiento enarbolado por los canadienses, desde el momento donde se estudió el rendimiento de la razonabilidad de un planteo – lo que era (o no) constitucionalmente exigible – y además su cruce con la historia norteamericana. En esta ocasión la problemática era la adecuación de la ley estadual de Washington que amenaza con consecuencias punitivas a quien asistiera – heterolesión o heteroagresión – en un suicidio. La esquina que defendían los actores era la que posicionaba a un enfermo terminal y mentalmente competente, como para ejercer su libertad de opción y que un profesional pueda ayudarle. La Suprema Corte tampoco estuvo de acuerdo. No halló rastros en su propia tradición y advirtió cuan delgada podría ser la línea entre la voluntaria y quizás involuntaria eutanasia (que dudosamente podría continuar llamándose así), lo que le alerta a tomar en consideración la evolución estadística del relevamiento en la regulación de los Reino de Holanda46.

No fue la única ocasión en que desde los Estados Unidos se estudió el texto constitucional con directa vinculación a la muerte. El Tribunal Supe-rior de New Jersey trató el problema para la jovencita Karen Ann Quinlan y para sus padres: ante una serie de concausas – trastorno alimenticio y falta de mayor atención parental, alcohol y drogas – en el año 1976 la paciente en coma era asistida para respirar y se rescata su intimidad por sobre la preten-sión estatal por la conservación de la vida; a lo que se le debe agregar, con mérito, que se reflexionó sobre la competencia subrogada para tomar deci-siones respecto de quienes no tenían conciencia. El destino quiso que su des-conexión judicialmente aprobada no le trajera término a su vida y sobrevivió hasta 1985, en condiciones difíciles de compatibilizar con la dignidad47. Todo

45 v. “Rodriguez v. British Columbia” (Attorney General), 1993, 3 S.C.R. 519 (de la mayoría, según Sopinka, J.), en parte incluido en De Schutter, Olivier, International Human Rights Law, op. cit., p. 43 ss. No obstante, hay matices donde graves padecimientos llevaron a la autorización judicial para asistir a quien consiente, carecía de competencia para morir. Sobre el caso de “Nancy B.” y el juez de Quebec, Dworkin, R., Life’s dominion, op. cit., p. 194.

46 v. “Washington v. Glucksberg”, 521 U.S. 702, 117 S.Ct. 2258, 1997, reflejado en De Schutter, Olivier, International Human Rights Law, op. cit., p. 43.

47 Ampliamente, Ponzanelli, Giulio, “Il diritto a morire: l’ultima giurisprudenza della Corte del New Jersy”, en Foro Italiano, Roma, 1988, p. 294 ss. Había otros casos al interiror del

Page 58: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

58

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

58

lo contrario aconteció cuando la Suprema Corte Federal apoyó la decisión de la instancia máxima de Missouri, ante la presentación de los padres de Nancy Cruzan48. La nombrada sufrió heridas muy graves tras haber sufrido un acci-dente vehicular, mantenida en estado vegetativo, los progenitores acudieron al tribunal para un aval judicial con el que se pusiera fin a la continuidad de tan desafortunado modo de sobrevivir. La Corte estadual, habida cuenta que no había más evidencia que testimonios informales sobre lo que Nancy quería en su pasado para situaciones como las que cursaba en aquél presen-te, negó la competencia subrogada para decidir ante la falta de una clara y convincente prueba de lo que realmente querría para una escenografía así, tesis que, por mínima mayoría, el Tribunal máximo continuó. Es decir, todos pidieron mayor formalidad en la expresión de la autonomía – supuestamente para protegerla –, aún para pacientes inconcientes, sin mayor profundización respecto de la calidad de vida – que roza el ejercicio de la libertad, o la atra-viesa sin más que decir –49.

15. Todavía dentro de las redes del Common Law pero al otro lado, en el Viejo Mundo, parte pero poco idéntica al continente, Reino Unido también tomará postura. Dianne Pretty tenía un trastorno que la paralizó del cuello hacia los miembros inferiores, por lo que se la alimentaba vía sonda. Obviamente no podía suicidarse. Acudió a los tribunales porque quería morir pronto al verse en esas condiciones indignas pero la ley británica castigaba al que asistiera a otro para cometer suicidio (sección 2(1) de la disposición de 1961) y ella no quería que el encargado de las acciones penales públicas iniciara un proceso penal contra su esposo. No obstante, su pretensión no solamente no prosperó en Inglaterra sino que, bajo el sistema europeo de protección de los derechos humanos, tampoco la Corte regional estaba de acuerdo con su interpretación de las disposiciones. Por tramos. A nivel interno,

laboratorio de la federación, como resulta del experimento que estos temas tienen las partes de la federación: como Joseph Sailkewicz en la Suprema Corte de Massachusetts (370 NE 2d417, Ct.1977), donde un juez era quien tenía que tomar posición si el paciente carecía de competencia y el terapeuta se abstenía de continuar con un tratamiento por considerarlo inapropiado.

48 Mayor consulta, Dworkin, R., Life’s dominion, op. cit., p. 196 ss. Una síntesis de Norman Cantor, “Cruzan v. Director, Missouri Department of Health”, 110 S.Ct. 2841 (1990), en The Oxford Companion to the Supreme Court of the United States (edit. Kermit L. Hall), Oxford U. Press, 1992, p. 209-210.

49 Es una toma de posición que condiciona la definición y es, claro, difícil de compartir; análogo, Dworkin, R., Life’s dominion, op. cit., p. 197.

Page 59: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

5959

la Cámara de los Lores cuestionó que se trate de una facultad al amparo de la Convención europea: la libertad y la seguridad de una persona aparecen solamente en el artículo 5(1), del que, según señalaron, no tenía dependía el caso ni podía hacerse un lugar en él; pero dijeron por si poco faltara, que ninguna referencia hacia aquellas coberturas surgían de la disposición numerada con el 8, la cual directamente protegía la intimidad, incluyendo la tutela física e integridad psicológica. Es más, en un medio giro, concluyeron que este último expresaba en sus términos un escudo para la autonomía por la que los individuos vivieran sus vidas y nada, al contrario, para los que no quisieran hacerlo. A instancia exterior, sin dejar de hacerse eco de lo señalado por la magistratura inglesa, se enfatizó que sería una perversión del lenguaje extraer que el derecho a la vida del numeral 2 del Tratado podía derivar exactamente en su opuesto como derecho a morir y volvió a lo que, en mi concepto, es el eje, que individuos abrumados por presiones reales o ficticias, se orienten prematuramente a morir50.

16. Del seguimiento de las celdas infiero una comunicación de un contenido similar al que llevó mi tratamiento anterior, a pesar que las conclusiones se les contradigan y se me presenten insatisfactorias. Lo paso a explicar según anticipé. La oportunidad canadiense que se vale de un interés legal penalmente relevante, se evapora cuando quien podría ser sujeto pasivo de un abuso que lógicamente se desaprueba, concurre a decir que, torturada por su propia situación, no puede resolverla bajo su autonomía. Otro tanto le cabe a la exposición británica y europea regional. Es esa libertad sui generis, respaldada por el derecho objetivo, pero que no se corresponde como derecho subjetivo total, la que sin embargo resurge revitalizada con unos (intimidad, seguridad contra injerencia arbitraria) u otros (conciencia, religión) a consecuencia de la problemática de la pérdida de la calidad de vida – anidada en la dignidad –, antes que la aparición de la muerte como tal. Acaso ello debió autorizar a no prolongar por años la consumición de Quinlan, no deseada por el Tribunal estadual de New Jersey y que obligaba

50 Cfr. “R. (on the application of Mrs. Dianne Pretty) v. Director of Public Prosections and Secretary of State for the Home Department” (con cita de ECHR “X and y v. Netherlands”, rta. 26.03.1985), House of Lords, 29.11.2001 IKHL 61, Lord Bingham of Cornhill y ECHR, “Pretty v. United Kingdom” (Appl. 2346/02), 29.04.2002, para. 66, ambos citados por De Schutter, Olivier, International Human Rights Law, op. cit., p. 46 ss; Bond, Martyn, The Council of Europe and Human Rights, Council of E. Publishing, Strasbourg, 2010, p. 20 ss; también, Kälin, W. Künzli, J., The Law of International Human Rights Protection, Oxford U. Press, Oxford, 2010, p. 296 ss – los profesores helvéticos llegan a derivar la obligación de evitar el suicidio bajo la custodia estatal, lo que es afín al pensamiento de Gimbernat, supra nota 3 –.

Page 60: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

60

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

60

a un nuevo análisis tras el fallido desenlace51, como también a distinguir si la preocupación sustancial por el testimonio de vida no dificulta hasta cuestionar o desconocer lo que sería más apropiado como atención para ciertas personas como aconteció con Cruzan. Como lo admitió, hace ya mucho tiempo, un tribunal italiano: no se puede desechar que alguien con una incompetencia o inconciencia sobreviniente no pueda, con los más estrechos lazos, establecer un lenguaje para ser escuchado a través de la propia relación existencial52.

17. Subsiste y entonces hasta aquí llegamos, un margen de apreciación, ampliamente confiado hacia los primeros obligados en la tutela de los derechos fundamentales en este campo: los Estados53. ¿Qué significa? Armonizar, no cabe otra respuesta, bajo una imagen común – en lo que me convoca, la importancia asignada a la libertad pero para vivir –, una multitud de fotos bien diversas, capaces de canalizar la autonomía personal, sin la escasez consagratoria de un derecho a la muerte, analíticamente diferenciado de una vida cuya calidad se pueda y deba cuestionar. Más allá de la separación del ordenamiento internacional y el interno, la convivencia de ambos no deja por ahora espacios que señalen indiferencia o promoción para destronar del sitial asignado por las democracias comprometidas con los derechos fundamentales, el puesto alcanzado multiculturalmente por las distintas sociedades y orientadas a (sobre)vivir. Acaso ex ante (pero también con proyección ex post) la posición fijada ad extra por el Tribunal regional en “Pretty”, no sea más que una consecuencia hermenéutica del hallazgo de decisiones ad intra. Cuando el órgano confiado al control de constitucionalidad en el Reino de España declara conforme a la Ley Mayor la alimentación de internos que llevaban adelante una huelga de hambre – y que no se decidieron a morir sin más –, y resuelve a favor del valor la duda suscitada frente a si quien la ejecutaba, mermado en sus fuerzas, sostenía su conducta o la hacía a un lado, siendo que la orden de la administración originalmente disponía

51 ¿Algo así – la contingencia de una indirecta – podría ser el ejemplo de un caso extremo para la eutanasia activa, al tiempo que podría generar una comisión por omisión para facultativos?, con apertura al tema, véase Neumann, U. Saliger, F. “Sterbehilfe zwischen Selbstbestimmung und Fremdbestimmung – Kritische Anmerkungen zur Aktuellen Sterbehilfedebatte”, op. cit.

52 Mutatis mutandi, porque sirvió para la adecuación típica del homicidio atenuado del 579 CP, Corte d’Assise Roma, 10.12.1983, analizado por Fiandaca, G. Musco, E., Diritto penale. Parte speciale, op. cit., p. 36 ss.

53 Cfr. Harris, D.-O’Boyle, M.-Warbrick, C., Law of the European Convention on Human Rights, Oxford U. Press, Oxford, 2009, p. 39.

Page 61: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

6161

la intervención médica en caso de volverse necesario, lo verifica54. Dicho de un modo simple: la autodeterminación encarnada en la libertad de expresión contra una decisión penitenciaria no podría llegar – como encrucijada – hasta que la última revocara un acto en ejercicio de su competencia o una omisión de auxilio, lo que no quita que en la problemática no se haga presente la proporcionalidad en una tentativa por proponer un tertium entre la primera y la última de las opciones. Otro tanto ocurre al evaluar decisiones judiciales del Tribunal Supremo alemán; por ejemplo donde se mantuvo la posición de garante del médico, cuando el profesional se limitó a dejar morir a una paciente en el domicilio, aunque en la arena de la reprochabilidad efectiva, y por especiales ingredientes fácticos, finalmente no terminara en prisión55; o más específicamente, cuando se condenó la intervención de un miembro de una asociación de ayuda a morir, que se había prestado para ayudar a una persona ante una grave dolencia, haciéndolo por el suministro de un estupefaciente, donde excluye la impunidad de tal asistencia “porque la vida está en la cumbre del ordenamiento y cualquier intervención queda acotada a circunstancias excepcionales”, unida a la dignidad consagrada en el artículo 1º de la Ley Mayor dictada en Bonn56. Si se me apura, mis intuiciones señalan como conclusión que, si se privilegia la libertad para vivir y, por encima,

54 Cfr. los fundamentos 2, 6, STC rta. 27.06.1990, BOE 181, p. 3 ss. donde como obiter se apunta que no es cualquier vida la que se tutela, sino una con calidad. Criterio reiterado más tarde en STC rta. 19-07-1990. Está claro que no es que los internos querían directamente suicidarse. Además el derecho español reprime inducir o cooperar en el suicidio según el art. 143 CP., incluso en el contexto de eutanasia, lo que no cabía decir del anterior art. 409. No es esta la posición de la doctrina italiana, que va más cerca de la asistencia y contención hasta que la intervención positiva, según Viganó, Francesco, Stato di necessitá e conflitti di doveri, Giuffré, Milano, 2000, p. 525.

55 Cfr. BGHst 32, 367; es decir consuetudinariamente no se admite desincriminación al respecto, Lakner, Karl-kühl, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 894. En lo que interesa a la plataforma de los hechos, el galeno tenía completo conocimiento de la voluntad de la paciente y, además, la nombrada realmente estaba muy enferma, a lo que debía sumársele la pérdida de su esposo, una historia clínica plagada de negativas para continuar siendo tratada.

56 Cfr. BGHst 46, 279; lo que lleva a que no sea, suicidarse, un derecho fundamental, como lo he expuesto, Lakner, Karl-kühl, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 893-894. Sería incorrecto, no obstante, decir que aquí se tutelaba la vida sino la selección de los medios (una sustancia prohibida por la ley de tráfico) para asistir el suicidio de la mujer afectada por esclerosis múltiple pero es deber notar la fuerza del valor subyacente en la decisión alcanzada, por eso se cita el tipo atenuado del homicidio del art. 216 StgB.

Page 62: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

62

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

62

hacerlo con calidad en ello, se tiene y debe de hacer, tal y como se prescribe, aunque siempre se deje una puerta abierta al universo de lo dramático que el espacio que se navega presupone.

18. Cuando quien atraviesa dificultades para vivir carece de competencia o conciencia, las comunicaciones intentan, si se caen, sostenerse por otras vías, sin modificar el rumbo en orden a la prioridad por la vida, sin desmerecer, como es obvio, la calidad en ello. Varias decisiones, de distintas geografías, lo confirman: no solamente el Common Law o la Norma Fundamental como fuentes, el derecho no se pierde cuando un paciente se vuelve incompetente o inconciente, mientras sus deseos fueran bien conocidos cuando los expresara – discusión surgida sin un testamento vital57 – y, entonces, apropiadamente una persona podría trasladarlos como tales y usárselos sustitutivamente58. No es simplemente morir; sostengo que es más sobre vivir dignamente. Ahora: ¿si, a distancia de adultos que alguna vez pudieron y ahora no pueden, se trata de personas que todavía no cuentan con plena autonomía? Ante este interrogante, la práctica multicultural ha sido inclinarse ante el principio del supremo interés del menor (incompetente), aunque ello pueda, a veces, colisionar con sus propios padres. Más allá de la progresividad en el ejercicio de los derechos en procura de alcanzar algún umbral, por el que la ley presuma la competencia para una decisión en temas médicos, se registra un paternalismo estatal cuan parens patriae que, a contrario del que se cuestiona por aquellos que ven un derecho fundamental al suicidio – que no es más que una libertad como renuncia relativa –, no abre polémica: por ejemplo por

57 Si se ajustara a formas y sustancia, cumplido todo, sería inapelable como interpretación de vivir con dignidad en los deseos del paciente; ver también Neumann, U.-Saliger, F. “Sterbehilfe zwischen Selbstbestimmung und Fremdbestimmung – Kritische Anmerkungen zur Aktuellen Sterbehilfedebatte”, op. cit. Sin embargo las situaciones se pueden suscitar con apenas días de vida – “Früheuthanasie”–, o sin haberse dado exteriorización al testamento vital.

58 El caso de un marianista, el hermano Fox de 88 años, fue patrocinado por Philip Eichner, sacerdote vinculado a la bioética y opositor a encarnizamientos terapéuticos, fue exitosamente aceptado por el Tribunal de Apelaciones de New york; 420 Ny. 2d. 64, 1981; doctrina que fue más tarde seguida por el Tribunal Supremo de New Jersey en “Claire Conroy”, 486 A 2d. 1210 (N.J.1985), donde volvió a decirse que un adulto no pierde su derecho a rehusar un tratamiento por volverse incompetente y que una persona podría subrogarle, en determinadas circunstancias, en lo que sería sostener la continuidad de la vida, por tratamiento médico, o no hacerlo.

Page 63: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

6363

profesar un culto, los progenitores tienen toda la amplitud de convertirse en mártires – ellos –, nunca sus hijos59.

59 Para rechazar intervención médica por motivos religiosos, en Estados Unidos, “Walker v. Superior Court of Sacramento County”, 491 U.S. 905; idea que ha guiado a rechazar a menores de 16 años transfusiones por ser testigo de Jehová, junto a sus padres, y resultar indistinto para la justicia británica -donde la mayoría es a los 18 – que, no obstante, impuso tratamiento, Re E & S, FLR 386 y 1065. Sudáfrica emplea estos casos – supra nota 42 –, aunque tiene mayoría de edad a los 21 y una ley que tiene categorías normativas de ejercicio de los derechos según la edad, por ejemplo a los 18 no necesita más que su consentimiento pero a los 14 los necesita, aunque sea importante su acuerdo según Child Care Act, sec. 39. Este criterio fue en un comienzo relativizado en Nueva Zelanda, y luego de que se favoreciera la opción de los padres por un uso alternativo de la medicina y un niño de 3 años muriera, se pasó a ir por el mejor interés para los chicos; MJB v. DGSW, 1996, NZFLR 337. Ampliar sobre estos derechos comparados, Family Life and Human Rights, ed. Peter Lodrup & Eva Modvar, Gyldendal Akamedisk, Oslo, 2004. En Noruega los jovencitos dan su voz a partir de los 12, y entre los 16 a 18 años no dan su consentimiento aunque parta de la escala la autodeterminación, puesto que según desarrollo de la competencia, no están listos, hasta incluso están protegidos hasta los 23; Syse, Aslak, “Children’s rights to health services”, en Healthcare, Welfare and Law. Health legislation as a mirror of the Norwegian welfare state, op. cit., p. 93 ss; en Japón la mayoría es a los 20 o por casamiento, según los arts. 3 y 753 del código civil, de modo que los padres se vuelven representantes necesarios y los actos sin ellos, revocables; cfr. Oda, Hiroshi, Japanese Law, Oxford U. Press, Oxford, 2003, p. 136 ss. Gimbernat no tendría objeciones tampoco en este terreno. Sobre un caso español idéntico, he discutido alguna vez con ese gran procesalista que fue Augusto Morello, remito al trabajo a él dedicado, “Actualidad en Derecho comparado: movimientos actuales en las Cortes Constitucionales”, en Jurisprudencia Argentina, 2002-IV-769. Diría que, las distancias entre las edades para la plena capacidad, en ámbitos de sistemas de tutela internacional y regional, formaría parte del margen estatal de apreciación: o sea, porque en un país la competencia se de más temprano, no se vuelve inhumana la que confiere plenitud de ejercicio más tarde. De hecho, esa franja de infinitos (y no tanto) grises, hace despegar el desarrollo del derecho constitucional; remito al trabajo de mi amigo Vasel, Justus Johan, “El ‘margin of appreciation’”, Revista de Derecho Constitucional Europeo, 11-2009 (www.ugr.es/-redce/REDCE11/artículos/07Vasel.html, p. 189 ss., consulta mayo 1 de 2013).

Más allá de las referencias del derecho comparado puntualizadas, cualquier problema que envuelva a los menores -que ergo no son competentes-, hay que resolverlo acudiendo al Tratado regional de protección cruzado con el respectivo de los niños, mutatis mutandi, según lo dijo la Corte Europea en “K. And T. v. Finland”, al tratar el derecho al respeto de la vida familiar y expedirse aplicándole el principio del interés superior; en pleno, 31 Eur. H.R. Rep. 18 (2001), at. para 154. La doble condición del último instrumento, el de los chicos, tanto variable instrumental como solución sustancial, involucra especialmente al art. 12.1 para conjugar la madurez con la expresión de aquella, esencial aproximación a sus

Page 64: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

64

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

64

19. A todo esto, los médicos deberán poner toda su formación a disposición del paciente60. Semejante sentencia, no obstante, requiere puntualizaciones ya que hay, en mi concepto, dos posturas básicas frente a un paciente; una que yo llamo impersonal y otra que denomino personalista. En el primer grupo damos con una posición en la que los profesionales de la salud deberían, sin otra alternativa, tratar por todos los medios que el enfermo se recupere, si éste así lo solicitase61; en el segundo, en cambio, actuarían según las circunstancias de cada caso, en el máximo de los cuidados que, sin lugar a confusiones, no equivale a intentar cualquier tratamiento, en todo momento y lugar62. Entiendo que la dignidad personal, en un área donde libertad y salud conforman un común denominador, demanda un principio inflexible – de acompañamiento, de diligencia en las prestaciones sanitarias – conjuntamente con un abanico de reglas contingentes y más elásticas, asunto que asumo tiene que receptar cualquier ley o norma individual al respecto. En efecto, recoger esto hace una regulación abstracta racional, proporcional a la libertad de vivir, sin desconocer la contracara pero humanitaria para dejar de hacerlo, pero en lo principal, sin tampoco desentenderse de la constelación ontológica de padecimientos que pudieran introducir argumentos que movilicen o conmuevan la rigidez deontológica de la ley en las decisiones judiciales, tratándose, en suma, de otra vía de justificación, bien que procedimental63. Acaso una ejemplo aclare la cuestión: desde una mirada clínica, un enfermo que cuenta posibilidades de recuperación demanda de un galeno o de un equipo bajo su liderazgo, analgésicos, cuidados psicofísicos, soportes y procedimientos de reanimación; ahora si tal cuadro comienza a variar, gradual

derechos y, en relevancia, a su ejercicio. Véase, Tobin, John, “Children’s Rights in Australia: Confronting the challenges”, en Contemporary Perspectives on Human Rights Law in Austrialia, ed. Gerber, P.-Castan M., Thomson Reuters, Sydney, 2013, p. 277 ss.

60 Cfr. Broekman, Jan M., “Definición y contexto legal de la Bioética”, op. cit., p. 5.

61 En este sentido, p. ej., Gimbernat Ordeig, E. “Eutanasia y Derecho Penal”, en Estudios de Derecho Penal, op. cit., p. 53; con menos énfasis, Vives Antón, T.S.-Orts Berenguer, E.-Carbonell Mateu, J.C.-González Cussac, J.L.-Martínez-Buján Pérez, C., Derecho Penal. Parte Especial, op. cit., p. 101.

62 En este otro, p. ej., Schroth, Ulrich, “Medizin, Bioethik und Recht”, en Einführung in die Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, op. cit., p. 463.

63 Son casos que eliminan el injusto en la presentación de sus argumentos y en donde la solución legal no es ajustada, por factores varios, a él. Remito, especialmente en lo que involucra a este trabajo, a Hassemer, Winfried-Larrauri, Elena, Justificación material y justificación procedimental en el derecho penal, Tecnos, Madrid, 1997, p. 20 ss.

Page 65: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

6565

o vertiginosamente, hay que re-evaluar tras las primeras veinticuatro horas, porque aunque se mantengan los sedantes y las atenciones personales, quizás una asistencia plena con aparatos y reanimación, paradojalmente, no sean acordes a la dignidad del paciente – con fallas multiorgánicas irreversibles –; ni que más decir si desaparecen casi los signos vitales o equivalen a muerte cerebral. El tratamiento deontológico no puede proseguir como si el sustrato óntico fuere igual, más allá de la voluntad de sobrevivir que alguien pudiera tener. Acaso la justificación de la desconexión de Piergiorgio Welby, que con su progresiva degeneración muscular se sostenía a un hilo de “vida” por una máquina, no hacía más que a una exteriorización de la ética médica en el caso64.

20. A contracara, es dable suponer que un profesional de la salud encuentre soluciones que, por alguna buena o mala razón aunque sin la regla del daño,65 el paciente rechace; pues si lo asume, en tanto la intervención se guíe por la lex artis, el médico está eximido por justificación. Señalo apenas que sin competencia o falto de conciencia el último, en principio, tratamientos (incluyo cirugías) que extiendan la libertad de vivir están justificadas en el primero, puesto que serían actos ejecutados bajo necesidad66.

Detalle aparte es el análisis cuando hay objeciones, aunque ciertamente tiene una constelación de aperturas como el antecedente. La libertad negativa del paciente y el deber del galeno que además hace a una obligación estatal positiva, podría anteponer la vida por encima de la autonomía, en una visión falta de profundidad. Sin embargo, es mucho más importante atender y respetar la no injerencia, a excepción de falta de competencia por alternativas psicóticas67. Ello no se confunde con un mandato al facultativo para que lo asista en un suicidio o le envuelva en una modalidad de eutanasia directa, como ha sido analizado.

64 Para más posiciones sobre el caso, Fiandaca, G.-Musco, E., Diritto penale. Parte speciale, op. cit., p. 40 ss, pero parece, en el contexto, la mejor solución antes que un homicidio privilegiado por consenso.

65 Atenerse a la autonomía no podría desencadenar una epidemia y el derecho, así las cosas, cubrirla.

66 Cfr. Vigano, Francesco, Stato di neccesitá e confliti di doveri, op. cit., p. 529.

67 Cfr. Vigano, Francesco, Stato di neccesitá e confliti di doveri, op. cit., p. 522 ss.

Page 66: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

66

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

66

IV – EVALUACIóN DEL CASO ARGENTINO EN UNA RECAPITULACIóN

21. Tras vertir mi toma de posición sobre la libertad de vivir y acordar las fronteras en la que se han de resolver conflictos derivados de aquella, puedo concluir que la nueva legislación se ajusta, expresado en términos generales, al desarrollo que le he impreso. Lo expongo enseguida, e intento un compendio al cierre, en donde un par de tesis la perfilan, a partir de su lógico presupuesto, esto es, de un consentimiento del enfermo hacia el galeno que le informa68. Por esta razón, aclaremos esto primero.

La mirada en la temática del consentimiento informado o bien es excluyente u opuesta, y entonces inclusiva, de un vínculo entre el enfermo y el profesional de la salud. En un caso es la autonomía como máxima la que gobierna los destinos del paciente, en tanto en el otro, como en toda relación, hay más elaboración, producto de una integración entre los interlocutores, de modo que antes que una toma de posición individual frente al camino a seguir, la decisión se vuelve conjunta. Pero la solución del legislador privilegió la libertad negativa como rechazo personal, aunque en la praxis asuma también paliar el dolor como obligación positiva de cuidados y atenciones: en efecto,

68 Art. 2 que modifica el 5 de la Ley nº 26529: “Entiéndese por consentimiento informado la declaración de voluntad suficiente efectuada

por el paciente, o por sus representantes legales, en su caso, emitida luego de recibir, por parte del profesional interviniente, información clara, precisa y adecuada con respecto a:

a) Su estado de salud; b) El procedimiento propuesto, con especificación de los objetivos perseguidos; c) Los beneficios esperados del procedimiento; d) Los riesgos, molestias y efectos adversos previsibles; e) La especificación de los procedimientos alternativos y sus riesgos, beneficios y perjuicios

en relación con el procedimiento propuesto; f) Las consecuencias previsibles de la no realización del procedimiento propuesto o de los

alternativos especificados; g) El derecho que le asiste en caso de padecer una enfermedad irreversible, incurable, o

cuando se encuentre en estadio terminal, o haya sufrido lesiones que lo coloquen en igual situación, en cuanto al rechazo de procedimientos quirúrgicos, de hidratación, alimentación, de reanimación artificial o al retiro de medidas de soporte vital, cuando sean extraordinarios o desproporcionados en relación con las perspectivas de mejoría, o que produzcan sufrimiento desmesurado, también del derecho de rechazar procedimientos de hidratación y alimentación cuando los mismos produzcan como único efecto la prolongación en el tiempo de ese estadio terminal irreversible e incurable;

h) [...] “(véase ut-infra, nota 71)

Page 67: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

6767

es la omnipotencia del paciente, dadas las circunstancias, la vencedora en la libertad de vivir y escoger cómo hacerlo, aunque ello implique rechazar un tratamiento médico, y racionalmente, morir69. Por cierto ello no genera la prestación comisiva u omisiva directa de poner punto final a su vida, compatible con el análisis que sostengo, definición que no encuentra eco entre nuestras decisiones judiciales tampoco. En efecto, un antiguo caso, que recientemente fue convertido en precedente según se verá en unos instantes, reconoció la facultad de rechazo frente a un tratamiento invasivo, sustentado por razones de conciencia y de opción en el programa personal para vivir, lo que era oponible a terceros, de no mediar excepciones, como pudiera ser el caso de la regla del daño70.

69 Ley nº 26.742, art. 1: “El paciente tiene derecho a aceptar o rechazar determinadas terapias o procedimientos

médicos o biológicos, con o sin expresión de causa, como así también a revocar posteriormente su manifestación de la voluntad.

Los niños, niñas y adolescentes tienen derecho a intervenir en los términos de la Ley nº 26.061 a los fines de la toma de decisión sobre terapias o procedimientos médicos o biológicos que involucren su vida o salud.

En el marco de esta potestad, el paciente que presente una enfermedad irreversible, incurable o se encuentre en estadio terminal, o haya sufrido lesiones que lo coloquen en igual situación, informado en forma fehaciente, tiene el derecho a manifestar su voluntad en cuanto al rechazo de procedimientos quirúrgicos, de reanimación artificial o al retiro de medidas de soporte vital cuando sean extraordinarias o desproporcionadas en relación con la perspectiva de mejoría, o produzcan un sufrimiento desmesurado. También podrá rechazar procedimientos de hidratación o alimentación cuando los mismos produzcan como único efecto la prolongación en el tiempo de ese estadio terminal irreversible o incurable.

En todos los casos la negativa o el rechazo de los procedimientos mencionados no significará la interrupción de aquellas medidas y acciones para el adecuado control y alivio del sufrimiento del paciente.”

70 Fallos: 316:479, donde M. B. había rechazado una transfusión por ser tesigo de Jehová. Se ha señalado: “...cuando el art. 19 de la Constitución Nacional dice que ‘las acciones privadas de los

hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral pública ni perjudiquen a un tercero, están solo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados’, concede a todos...una prerrogativa según la cual pueden disponer de sus actos, de su obrar, de su propio cuerpo, de su propia vida, de cuento les es propio...” (consid. 13º, jueces Barra y Fayt).

“...no hallándose en este caso afectados los derechos de otra persona distinta de B., mal puede obligarse a éste a actuar contra los mandatos de su conciencia religiosa” (consid. 17º, jueces Cavagna Martínez y Boggiano).

Page 68: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

68

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

68

22. En coherencia con la enunciación de los factores que hacen al consentimiento informado, o sea en llevar al conocimiento del paciente que puede rehusarse a continuar con tratamientos que no podrían impactar favorablemente en su salud, se le reconoce tal facultad71. Sin embargo, forzoso es distinguir que el ejercicio efectivo separa el rechazo como autonomía y en un supuesto cualquiera, de una objeción con un cuadro definitiva e inconteniblemente mortal: prontamente, la regla es la oralidad y la excepción la escritura en la expresión de la libertad, pero en la última está radicada la delgada línea entre la vida y la muerte, o sea, se registrará documentalmente en especial la autodeterminación ante un cuadro fatal o ante consecuencias irreversibles72. No hay una analítica concentración en ubicar padecimientos psicológicos junto a los físicos, aunque la mención de las lesiones nos

“...el art. 19 de la Ley Fundamental otorga al individuo un ámbito de libertad en el cual éste puede adoptar libremente las decisiones fundamentales acerca de su persona, sin interferencia alguna por parte del Estado o los particulare, en tanto dichas decisiones no violen derechos de terceros” (consid. 8º, jueces Belluscio y Petracchi).

Solía pasar, hoy puede que sucedan otras cosas, que la mayoría igual no falló por falta de actualidad del agravio, lo que contó, más allá de dejar a salvo la postura, con el aval de los ministros transcriptos en primer lugar (consid. 5º y 13 in fine, jueces Barra y Fayt). Véase la nota 85 para su evolución.

71 Ello estás más que acentuado, a su vez, en el decreto reglamentario 1089/2012, BO. 06.07.2012. En especial, la extensa enumeración de los derechos de los pacientes en relación con los profesionales, a partir del art. 2, menciona la autonomía en el ámbito de la intimidad -2.c-, y como título de derecho – 2-e –.

72 De la reglamentación se desprende una preocupación complementaria sobre los infinitos matices que pueden presentar los diagnósticos y su resonancia en el universo de pacientes. Así ha órdenes (o decisiones) verbales y otras que han de escritas. Las últimas en las historias clínicas, dec. 1089/2012, 2.e. La Ley nº 26.529 modificada en parte la 26.742, art. 7 – instrumentación del consentimiento – quedó así:

“El consentimiento será verbal con las siguientes excepciones, en los que será por escrito y debidamente suscrito:

a) Internación; b) Intervención quirúrgica; c) Procedimientos diagnósticos y terapéuticos invasivos; d) Procedimientos que implican riesgos según lo determine la reglamentación de la presente

ley; e) Revocación. f) En el supuesto previsto en el inciso g) del art. 5º deberá dejarse constancia de la información

por escrito en un acta que deberá ser firmada por todos los intervinientes en el acto.” (ver nota 68 ut-supra)

Page 69: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

6969

posicionen en las últimas para proceder a viabilizar el rechazo; los tormentos mentales de saberse próximos a la muerte o lejanos pero con mucho dolor tampoco parecerían quedar apartados73. Probablemente porque se trata de un comportamiento activo y no omisivo, ni indirecto como el nuestro, tampoco se demanda la íntima convicción del renunciante a los tratamientos, respecto a que no tiene ninguna otra salida que morir, lo que sucede, por caso, en Holanda74. De todos modos, en Países Bajos la cuestión se ha vuelto

73 Esta cuestión se observa puntual en el caso belga, capítulo II, art. 3(1): “Le médecin qui pratique une <euthanasie> ne commet pas d’infraction s’il s’est assuré que : –

le patient est majeur ou mineur émancipé, capable et conscient au moment de sa demande; – la demande est formulée de manière volontaire, réfléchie et répétée, et qu’elle ne résulte pas d’une pression extérieure; – le patient se trouve dans une situation médicale sans issue et fait état d’une souffrance physique ou psychique constante et insupportable qui ne peut être apaisée et qui résulte d’une affection accidentelle ou pathologique grave et incurable; et qu’il respecte les conditions et procédures prescrites par la présente loi.” (El médico que practica <eutanasia> no comete un delito si está convencido de que: – el paciente es un adulto o un menor emancipado, capaz y consciente en el momento de la solicitud – la solicitud se hace voluntariamente, cuidadosamente y repetidamente, y no es el resultado de la presión externa – el paciente está en una situación desesperada y los informes médicos de un sufrimiento físico o mental constante e insoportable no puede ser apaciguado, y son los resultados de una enfermedad grave e incurable accidental o patológica, y que cumple con las condiciones y procedimientos establecidos por la presente ley).

Esta cuestión es destacada por Palacios, Marcelo, “Soy mi dignidad. Consideraciones y propuestas sobre la muerte digna”, JA. 01.10.2008, p. 37.

74 Reino de Holanda, Cap. II, art. 2, exime del art. 293 al médico, por expresa remisión del segundo párrafo, que se concreta así:

“a. holds the conviction that the request by the patient was voluntary and well-considered, b. holds the conviction that the patient’s suffering was lasting and unbearable, c. has informed the patient about the situation he was in and about his prospects, d. and the patient hold the conviction that there was no other reasonable solution for the situation he

was in, e. e. has consulted at least one other, independent physician who has seen the patient and has given

his written opinion on the requirements of due care, referred to in parts a – d, and f. has terminated a life or assisted in a suicide with due care.” (a. tiene el convencimiento de

que la solicitud del paciente es voluntaria y bien considerada, b. tiene la convicción de que el sufrimiento del paciente era duradero e insoportable, c. ha informado a la paciente acerca de la situación en que se encontraba y de sus perspectivas, d. y el paciente mantenga la convicción de que no había otra solución razonable para la situación en que estaba, e. ha consultado al menos otro médico independiente que ha visto al paciente y ha dado su opinión escrita sobre los requisitos de la diligencia, que se refiere en las partes a – d, y f. ha terminado una vida o asistido en un suicidio con el debido cuidado).

Page 70: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

70

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

70

preocupante, porque se han constatado excesos y esto a pesar de una muy larga discusión del tema, lo que vuelve a la exigencia en una declamación75.

23. Como apéndice de la tesis precedente, descriptiva de una autonomía excluyente y conforme al derecho de la libertad de vivir con dignidad, los niños y adolescentes también cuentan progresivamente con otra, que podrán oponer proporcionalmente a la expansión de aquella76, o los que les representen77. Esta es una usina de conflictos, que hay que atajar a partir del interés superior de la Convención sobre los Derechos del Niño, que atraviesa en lo pertinente la ley de derechos del paciente y el decreto reglamentario78, como el derecho judicial. Por ejemplo, cuando el rechazo por las conciencias (“privadas”) de los jefes de familia choca con razones (“públicas) estatales y afecten sin más la salud de los incompetentes. El caso común del calendario de vacunación es un testimonio y, como en el derecho comparado, el Alto Tribunal Federal lo ha resuelto constitucionalmente por la regla del daño – art. 19 CN, a contrario sensu-, por la probabilidad de afectar a terceros: “...no alcanza sólo al individuo que la recibe, sino que excede dicho ámbito personal para incidir directamente en la salud pública, siendo uno de sus objetivos primordiales el de reducir y/o erradicar los contagios en la población. Sólo de esta forma puede entenderse el carácter obligatorio y coercitivo del régimen

75 El caso belga tiene menos trayectoria en el tiempo y sacó ventaja de las fallas de su vecino; véase Schotsmans, Paul, “El debate de la eutanasia en Bélgica” (Debating Eutanasia in Belgium, trad. Picardi, G. J.), JA 28.10.1998, p. 36 ss.

76 Se trata de un conjunto: la Ley nº 26.742 más las disposiciones de la Convención respectiva (a la que remite la citada Ley nº 26.061 de protección integral) según se advirtiera ut-supra, como intersección a todos los derechos fundamentales que atraviesen la relación médico-paciente y, especialmente, la Convención Americana de Derechos Humanos.

77 La disposición sigue aquí al art. 21 de la 24.193 que regula la donación de órganos, los que son citados como para que el facultativo sanitario los respete o para su revocación. No creo, por igual, que esto acabe cualquier discusión sobre visiones desencontradas al respecto. Como sea, la disposición reza:

“a) El cónyuge no divorciado que convivía con el fallecido, o la persona que sin ser su cónyuge convivía con el fallecido en relación de tipo conyugal no menos antigua de tres (3) años, en forma continua e ininterrumpida; b) Cualquiera de los hijos mayores de dieciocho (18) años; c) Cualquiera de los padres; d) Cualquiera de los hermanos mayores de dieciocho (18) años; e) Cualquiera de los nietos mayores de dieciocho (18) años; f) Cualquiera de los abuelos; g) Cualquier pariente consanguíneo hasta el cuarto grado inclusive; h) Cualquier pariente por afinidad hasta el segundo grado inclusive; i) El representante legal, tutor o curador”.

78 Decreto nº 1089/2012, art. 2.a, respecto de la asistencia de los niños.

Page 71: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

7171

para “todos los habitantes del país” (artículo 11 de la Ley nº 22.909) que se funda en razones de interés colectivo que hacen al bienestar general”79. Sin embargo no serían los únicos, puesto que no se descartan otros como los que ya se recolectaran ut-supra. Además, si no hubiera acuerdos entre el niño que se expresa, sus progenitores o representantes y las decisiones de los últimos contra el primero o viceversa, o ante desacuerdos entre los que deberían resolver lo que es mejor para aquél, intervendría un comité de ética80, según apunta como vía de solución el decreto reglamentario, que difícilmente pueda evitar una convocatoria jurisdiccional – que analizaría la ley y llegada la hora acudiría a la justificación procedimental-. Justamente, señalo que este cuerpo colegiado o aquellas raramente solucionaran ese vuelo de la controversia81.

24.- El consentimiento por representación podría volverse, por si no pocas dificultades tiene, un trastorno si acaso no hay evidencia para probar el lazo familiar y el cuadro exige, justamente, acordar o desacordar frente a un curso terapéutico. Pudiera darse que las circunstancias exijan exteriorizar una postura frente a una delicada situación y que, efectivamente, no se pueda probar el vínculo de otra forma que no sea por su sola declaración jurada. El problema viene si, con la consecuencia muerte como satélite a la decisión, se sucede el final de la vida. Flota a la deriva cierta simplicidad en la reglamentación, que señala que el elemento probatorio de la relación familiar

79 CSJN, N.157. XLVI. “N.N. o U., V. s/protección y guarda de personas”, rta. 12-06-2012, consid. 11º ), con expresa mención, más tarde, que apartarse del camino de los progenitores es cumplir con el interés superior del niño.

80 Los comités tienen una función docente y de mediación con la comunidad para la medicina y para sus técnicas, apelan a la casuística y actúan en su revisión, que configuren normas para semejante constelación acaso, en principio, excede lo que podría esperarse de ellos, incluso si lo intentan. Me explico: es perfectamente posible que fijen la regla que un paciente que se defina como testigo de Jehová no debe recibir una transfusión y que personal médico la siga; ya no es igual si el practicante cursa la escuela primaria y su faz preventiva no puede anticiparse a las tormentas familiares perfectas. Sobre las funciones de los cuerpos hospitalarios, en general, remito a Cragno, Norberto-Estevez, Agustín, “Comités hospitalarios de Etica: naturaleza y funciones”, JA. 28.10.98, p. 32 ss.

81 Decreto nº 1089/2012, art. 5, 5to. párrafo: “Para que opere el consentimiento por representación, tratándose de personas vinculadas

al paciente, ubicadas en un mismo grado dentro del orden de prelación que establece el presente artículo, la oposición de una sola de éstas requerirá la intervención del comité de ética institucional respectivo, que en su caso decidirá si corresponde dar lugar a la intervención judicial, sólo en tanto resultaren dificultades para discernir la situación más favorable al paciente.”

Page 72: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

72

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

72

se acreditará al menos dos días después.82 ¿Si tal cosa jamás tuviera lugar? Se supone en los galenos, igual, la subsistencia de la eximente, por adecuación de su obrar a la ley83. Sin embargo, aunque buenas razones inspiran el margen para la informalidad en la subrogación de la voluntad de quien no puede,

82 Art. 5º in fine del Decreto nº 1089/2012: “El vínculo familiar o de hecho será acreditado; a falta de otra prueba, mediante declaración

jurada, la que a ese único efecto constituirá prueba suficiente por el plazo de CUARENTA Y OCHO (48) horas, debiendo acompañarse la documentación acreditante. Las certificaciones podrán ser efectuadas por ante el director del establecimiento o quien lo reemplace o quien aquél designe.”

Ver al director de un hospital vino a enmendarse con aquél al que se le delegue por aquél. En la realidad dar con la máxima autoridad hospitalaria es, para no generalizar, mayormente imposible. Los que honren su designación estarán en mil complicaciones. Los que no y se encuentren ligados a la política, sin más, no estarán en el establecimiento.

83 El art. 7 de la Ley nº 26.742 que introduce – para aventar dudas en los profesionales – el 11bis en la Ley nº 26.529:

“Ningún profesional interviniente que haya obrado de acuerdo con las disposiciones de la presente ley está sujeto a responsabilidad civil, penal, ni administrativa, derivadas del cumplimiento de la misma.”

Se sigue, en ello, la técnica de otros derechos comparados, aunque las eximentes son intrasistémicas al código penal y, en mi concepto, de menos dispersión y mayor orden, más allá del reenvío que puedan suponer.

Por ejemplo, el Reino de Holanda: “Article 293 1. Any person who terminates another person’s life at that person’s express and earnest

request shall be liable to a term of imprisonment not exceeding twelve years or a fifth-category fine. 2. The act referred to in the first paragraph shall not be an offence if it committed by a physician who

fulfils the due care criteria set out in Article 2 of the Termination of Life on Request and Assisted Suicide (Review Procedures) Act, and if the physician notifies the municipal pathologist of this act in accordance with the provisions of Article 7, paragraph 2 of the Burial and Cremation Act.

Article 294 1. Any person who intentionally incites another to commit suicide shall, if suicide follows, be liable

to a term of imprisonment not exceeding three years or a fine of the fourth-category fine. 2. Any person who intentionally assist another to commit suicide or provides him with the means to

do shall, if suicide follows, be liable to a term of imprisonment not exceeding three years or a fourth-category fine. Article 293, paragraph 2 shall apply mutatis mutandis.”

(artículo 293 1. Cualquier persona que termine con la vida de otra persona a petición expresa y formal de esa persona será castigado con una pena de prisión no superior a doce años o con multa de quinta categoría.

2. El acto de los señalados en el primer párrafo no será un delito si es cometido por un médico que cumple con los criterios del tratamiento adecuado establecidos en el artículo 2 de la terminación de la vida a petición propia y suicidio asistido (procedimientos de

Page 73: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

7373

otras y me refiero a la experiencia holandesa aunque el comportamiento sea allí activo, me empujan a cavilar frente a abusos84. Podrían los profesionales volverse títeres de una autoría mediata de un atentado a la salud y traducir la tipicidad en adecuación típica dependerá del acontecer fáctico.

examen), si el médico notifica al forense municipal de este acto, de conformidad con lo dispuesto en el artículo 7, apartado 2, del entierro y del acto de la cremación.”

artículo 294 1. Cualquier persona que incite intencionalmente a otro a cometer suicidio será, si el suicidio se sigue, castigado con una pena de prisión de hasta tres años o una multa de la cuarta categoría de bien.

2. Cualquier persona que intencionalmente ayude a otro a cometer suicidio o le proporciona los medios para hacerlo será, si el suicidio se sigue, castigado con una pena de prisión de hasta tres años o con una multa de cuarta categoría. El artículo 293, apartado 2 se aplicará mutatis mutandis.)

Pero se ha seguido, a mi juicio, el modelo belga. “Article 1. La présente loi règle une matière visée à l’article 78 de la Constitution. CHAPITRE

I. – Dispositions générales. Art. 2. Pour l’application de la présente loi, il y a lieu d’entendre par euthanasie l’acte, pratiqué par un tiers, qui met intentionnellement fin à la vie d’une personne à la demande de celle-ci. CHAPITRE II. – Des conditions et de la procédure. Art. 3. § 1er. Le médecin qui pratique une euthanasie ne commet pas d’infraction s’il s’est assuré que : – le patient est majeur ou mineur émancipé, capable et conscient au moment de sa demande; – la demande est formulée de manière volontaire, réfléchie et répétée, et qu’elle ne résulte pas d’une pression extérieure; – le patient se trouve dans une situation médicale sans issue et fait état d’une souffrance physique ou psychique constante et insupportable qui ne peut être apaisée et qui résulte d’une affection accidentelle ou pathologique grave et incurable; et qu’il respecte les conditions et procédures prescrites par la présente loi.”

(Artículo 1. Esta Ley regula una cuestión que se refiere el artículo 78 de la Constitución. CAPÍTULO I – Disposiciones generales. Art. 2. A los efectos de esta Ley, se debe entender por eutanasia un acto practicado por un tercero que termina intencionadamente la vida de una persona, a petición de este último. CAPÍTULO II – Condiciones y procedimiento. Art. 3. § 1. El médico que practica eutanasia no comete un delito si está convencido de que: – el paciente es un adulto o un menor emancipado, capaz y conciente en el momento de la solicitud – la solicitud se hace voluntariamente, cuidadosamente y repetidamente, y no es el resultado de la presión externa – el paciente está en una situación desesperada y los informes médicos de un sufrimiento físico o mental constante e insoportable que no puede ser apaciguado, y que los resultados una enfermedad grave e incurable accidental o patológica, y que cumple con las condiciones y procedimientos establecidos por la presente ley).

84 Por supuesto, estas cuestiones se bajan siempre a la historia clínica, en la medida que hacen a cursos finales de la vida.

Page 74: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

74

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

74

25. Las posturas de la persona enferma pueden sucederse y, como es natural, cambiar. Mientras que recaigan sobre una situación de diagnóstico terminal, debe asentarse en la historia clínica pero es, y sobre la libertad para vivir o morir resulta fundamental, esencialmente revocable85. Mientras todo sea indelegable, o sea por quien es competente, siendo que se encuentra conciente, no habría mayores dificultades. Estas comienzan cuando pudieran sucederse revocaciones y quien emitió dictamen se vea subrogado. Aunque la ley prioriza, como tiene que ser, al paciente, de la reglamentación no se extrae una continuidad o una claridad respecto de aquella, que tiene

85 El art. 5 de la Ley nº 26.742, que modifica el 10 de la Ley nº 26.529: “La decisión del paciente, en cuanto a consentir o rechazar los tratamientos indicados, puede

ser revocada. El profesional actuante debe acatar tal decisión, y dejar expresa constancia de ello en la historia clínica, adoptando para el caso todas las formalidades que resulten menester a los fines de acreditar fehacientemente tal manifestación de voluntad, y que la misma fue adoptada en conocimiento de los riesgos previsibles que la decisión implica.

Las personas mencionadas en el artículo 21 de la Ley nº 24.193 podrán revocar su anterior decisión con los requisitos y en el orden de prelación allí establecido.

Sin perjuicio de la aplicación del párrafo anterior, deberá garantizarse que el paciente, en la medida de sus posibilidades, participe en la toma de decisiones a lo largo del proceso sanitario.”

El art. 10 del Decreto 1089, entre tanto, dudo que mejore la proposición. “La decisión del paciente o, en su caso, de sus familiares o representantes o personas

habilitadas, bajo el mismo orden y modalidades que el previsto en el segundo párrafo de los artículos 4° y 6° de la Ley nº 26.529, modificada por la Ley nº 26.742y esta reglamentación, relativas a las cuestiones previstas en el artículo 10, deberán ser plasmadas en la historia clínica por escrito, con la rúbrica respectiva.

El profesional deberá respetar la decisión revocatoria adoptada, dejando expresa constancia de ello en la historia clínica, anotando pormenorizadamente los datos que identifiquen el tratamiento médico revocado, los riesgos previsibles que la misma implica, lugar y fecha, y haciendo constar la firma del paciente o su representante legal, o persona autorizada, adjuntando el documento o formulario de consentimiento informado correspondiente. A tales fines se considerará que si el paciente no puede extender la revocación de un consentimiento por escrito, se documente su revocación verbal, con la presencia de al menos DOS (2) testigos y la rúbrica de los mismos en la historia clínica.

Ante dudas sobre la prevalencia de una decisión de autorización o revocación, en los casos en que hubiere mediado un consentimiento por representación, debe aplicarse aquella que prevalezca en beneficio del paciente, con la intervención del comité de ética institucional respectivo, fundado en criterios de razonabilidad, no paternalistas. Para ello, se dará preeminencia a la voluntad expresada por el paciente en relación a una indicación terapéutica, incluso cuando conlleve el rechazo del tratamiento”.

Como sea, no podría evitar por conflictos, la actuación jurisdiccional.

Page 75: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

7575

que ser el principio rector. En una parte, se aclara que se prioriza ante un enfrentamiento de posturas aquella que prevalezca en beneficio del paciente a instancias de un postura de razonabilidad y enseguida se menciona que ella, a su vez, no será paternalista. Ahora y más allá que incluir un concepto de filosofía moral y jurídica no es apropiado para el ejercicio de una facultad reglamentaria, y que ante un cuadro de indetenible e irremediable involución, podrían coincidir, está la otra parte. Justamente habrá conclusiones en las que beneficio del paciente, razonabilidad y paternalismo, orienten caminos divergentes, especialmente si aceptar una terapia podría disipar un peligro para la salud y la opinión autorizada de especialistas sea consensuada.

La Corte se hizo cargo de un conflicto hace poco tiempo y, en mi concepto, en términos generales, sostuvo la defensa de la autonomía personal, más allá de lo que sea beneficioso o razonable86. En esta ocasión, el padre de una persona mayor de edad que en una antigua internación ya había adelantado que no quería recibir transfusión de sangre, se oponía a que los médicos se ajustaran a la voluntad del hijo. El Alto Tribunal aclaró que si no mediaban pruebas claras que demostraran una revocación de la autodeterminación de aquél, la abstención para interferir con la autonomía era la regla. Podría agregarse, en la medida que se acuda a una de las más importantes citas empleadas para alcanzar la decisión y a tono con la visión multicultural que sostengo, que el reconocimiento y la protección de la acción privada solamente podría hallar un obstáculo válido ante una necesidad de la sociedad democrática87.

86 A. 523.XLVIII “Albarracini Nieves, Jorge Washington s/medidas precautorias”, rta. 01.06.2012. En el consid. 14° se remitieron a los votos de los ministros Belluscio y Petracchi, en el consid. 15° se remitieron a los votos de los jueces Barra y Fayt, todo de Fallos: 316:479 – citado ut-supra nota 70 –.

87 Es una justificación hermenéutica entre nuestro artículo 19 y las reglamentaciones a los derechos recogidos en la Convención Europea de Derechos Humanos, satisfactoriamente empleada por el Tribunal encargado de la interpretación de aquella. En el precedente de referencia en la nota anterior, se cita “Jehova’s witnesses of Moscow and others v. Russia”, app. 302/02, 22.11.2010, [104]. El caso que se discutió allí versaba más por una proscripción a los que profesaban el culto en cuestión en la Federación Rusa, con varios pretextos, todos en orden a que era una expresión de fe con acciones criminales, como ser la incitación a la discordia religiosa, la coerción para destruir a la familia, la incitación al suicidio por recomendaciones que negaban permisos para terapias médicas (especialmente relevante al conflicto ante nuestra Corte) e infringir libertades. Aunque los procedimientos penales no prosperaban, la denegatoria de los permisos se dio y con ello se violaban los arts. 9 y 11 del Tratado Regional de tutela.

Page 76: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

76

Revista de estudos CRiminais 52doutRina estRangeiRa

JaneiRo/maRço 2014

76

26. También, para ir al cierre, se destaca la oportunidad de la instrucción previsora sobre que hacer, llegada la instancia, con quien pueda verse en alguna encrucijada clínica88. El ejemplo recién recordado se hacía eco de la licitud de tal reconocimiento legal vía notarial, que era una puesta en concreto de la libertad cuanto aceptar o rechazar acciones terapéuticas, en el marco de la ley de derechos del paciente. Para ser exacto, se suscribió que la última “...reconoce a toda persona capaz mayor de edad la posibilidad de disponer directivas anticipadas sobre su salud, pudiendo consentir o rechazar determinados tratamientos médicos, preventivos o paliativos, y decisiones relativas a su salud. Estas directivas deberán ser aceptadas por el médico a cargo, salvo las que impliquen desarrollar prácticas eutanásicas, las que se tendrán como inexistentes”89. Forzoso es volver sobre el análisis que se proponía y separar el derecho de libertad de conciencia e intimidad como válidas negativas frente a injerencias en dominios personales, lo que en la jurisprudencia se rescata y promueve, de otra facultad que despiertaría una contraprestación en médicos, funcionarios o particulares, para acabar con vidas humanas, bajo las proposiciones que podemos conocer90. Claramente lo expresa el consenso parlamentario y se hace eco en el Alto Tribunal Federal.

Lo anterior nos deja, en mi concepto, en el madurez del reconocimiento abstracto en la ley, de cuanto fácticamente ya sucedía en las decisiones médicas maduras y responsables, sea en la Argentina, y en todo el mundo: en la regularmente aceptada eutanasia indirecta, o libertad para vivir aunque ello signifique morir u otro modo de hacerlo aunque aquello asuma, también, un camino para vivir91. Sin embargo, en la delicada polisemia en la

88 El art. 11 de la Ley nº 26.529, modificada por el art. 6 de la Ley nº 26742, dice: “Toda persona capaz mayor de edad puede disponer directivas anticipadas obre su

salud, pudiendo consentir o rechazar determinados tratamientos médicos, preventivos o paliativos, y decisiones relativas a su salud. Las directivas deberán ser aceptadas por el médico a cargo, salvo las que impliquen desarrollar prácticas eutanásicas, las que se tendrán como inexistentes.

la declaración de voluntad deberá formalizarse por escrito ante escribano público o juzgados de primera instancia, para lo cual se requerirá de la presencia de dos (2) testigos. Dicha declaración podrá ser revocada en todo momento por quien la manifestó.”

Como se dijo, en el precedente del Alto Tribunal, el paciente se había presentado ante un escribano, lo que fue especialmente puesto de manifiesto en la sentencia.

89 Énfasis personal.

90 Lo que refuerza la defensa de una libertad relativa en el sentido de una autoagresión.

91 Cfr. Fiandaca, G.-Musco, E., Diritto penale. Parte speciale, op. cit., p. 39.

Page 77: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 52

JanEiro/março 2014

7777

que intentemos distinguir lo que se nos presente como “muerte digna”, en ningún punto la discusión se ha cerrado, ni aquí, ni en ninguna otra parte92.

92 Véase sino la prensa contemporánea a esta exploración del análisis sobre vivir y morir. Mientras Christian De Duve, Nobel en medicina, se acogió a la ley belga siendo honrado por el primer ministro Elio Di Rupo y respetado en su intimidad por la comunidad científica (fuente, agencia EFE, mayo 6 de 2103), aquí se suscitan objeciones a la decisión de los representantes de M. D., en cuanto al retiro del soporte vital que lleva desde hace 19 años (Infobae, mayo 6 de 2013). El Obispo de Neuquén, Monseñor Virginio Bressanelli ha pedido hacerse cargo de la continuación de su cuidado, que hasta ahora llevaron las hermanas de aquél. Sin embargo no creo, respetuosamente, que se comprenda el punto: no me parece que la familia haya dejado de amar a M. D., sino que y porque a propósito ello no ha dejado de ser así, cuestionan la calidad en la vida de aquél, que pese a esfuerzos, no pueden optimizar.

Page 78: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira
Page 79: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacional

Doutrina nacional

81 A Diferenciação Interna do Subsistema Jurídico- -Penal: História, Organizações e Trajetórias

(Bruno Amaral Machado)

115 “Escola Positiva” e a Construção da Identidade Científica de João Vieira de Araújo (1884-1889)

(Ricardo Sontag)

145 “Eu, Vigilante”: (Re)Discutindo a Cultura Punitiva Contemporânea a Partir das Redes Sociais

(Gustavo Noronha de Ávila e Marcelo Buttelli Ramos)

163 Eficiência, Garantias e Justiça no Processo Penal (Miguel Wedy)

187 Crimes de Colarinho Branco, Seletividade Sistêmica e Modelo Sancionatório à Luz da Análise Econômica do Direito Penal

(Guilherme Gouvêa de Figueiredo)

215 Violência Urbana e Teoria Ecológica do Crime: Contribuições para a Compreensão do Fenômeno Criminal na Cidade de Maceió

(Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos)

Page 80: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira
Page 81: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

81

A DIFERENCIAçãO INTERNA DO SUBSISTEMA JURÍDICO-PENAL: HISTÓRIA,

ORgANIzAçõES E TRAJETÓRIAS*

Bruno AMArAl MAchAdo**

RESUMO: O artigo analisa, sob enfoque sistêmico e perspectiva histórica, a diferenciação interna do subsistema jurídico-penal. Busca-se descrever, especialmente a partir dos casos francês e in-glês, a diferenciação entre direito e política e posterior diferencia-ção do sistema jurídico. Na diferenciação interna do subsistema jurídico-penal, os casos analisados sugerem diferentes trajetórias na divisão do trabalho jurídico-penal. Analisa-se, também, a di-ferenciação entre administração pública e sistema de justiça e a distinção entre organizações incumbidas da persecução penal e as diferentes atribuições assumidas.PALAVRAS-CHAVE: Diferenciação funcional; subsistema jurídi-co-penal; organizações; persecução penal.ABSTRACT: The article analyses, from a systemic and historical approach, the internal differentiation of the criminal subsystem. It identifies, especially from the French and British experiences, the

* Este artigo constitui-se em parte da pesquisa desenvolvida como visiting scholar nas Universidades Fordham e John Jay of Criminal Justice (Nova Iorque) nos meses de maio e junho de 2011, bem como integra pesquisa pós-doutoral em Sociologia pela Universidade de Brasília. A abordagem insere-se também na linha de pesquisa “A diferenciação do subsistema jurídico-penal” – Grupo de Pesquisa em Política Criminal (Disponível em: <http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=6719883195099829>. Acesso em: 15 out. 2012).

** Master do Programa Europeu em Criminologia Crítica – Universidade de Barcelona, Doutor em Sociologia Jurídico-Penal pela Universidade de Barcelona, Pesquisador Associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Visiting Scholar das Universidades de Fordham e John Jay, Nova Iorque, 2011, Pós-Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília, Professor Associado dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito do Uniceub (Brasília), Professor de Política Criminal, Direito Penal e Criminologia da Fundação Escola Superior do MPDFT, Professor do IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público, Professor do Programa de Doutorado em Ciências Penais da Universidade San Carlos (Guatemala), Promotor de Justiça em Brasília.

Page 82: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

82

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

82

differentiation of law and politics and the subsequent differentia-tion of the law system. The British and French cases suggest diffe-rent process in the division of the penal work. It also analyses the differentiation of the public administration and the justice system and the distinction among the organizations in charge of the penal persecution and the different tasks.KEyWORDS: Functional differentiation; penal subsystem; organi-zations; penal persecution.SUMÁRIO: Introdução; 1 Direito e política: Estado, organização e poder; 2 Sistema jurídico, diferenciação interna e tribunais; 3 Socie-dade, Estado e organizações do subsistema jurídico-penal; 4 A dife-renciação do subsistema jurídico-penal e a persecução penal pública como forma; 5 Argumentação processual-penal, artefatos semânti-cos e a divisão das atribuições (competências) entre as organizações do subsistema jurídico-penal; Conclusões; Referências.

INTRODUçãO

A divisão do trabalho jurídico-penal gera controvérsias e disputas en-tre as organizações que integram o subsistema jurídico-penal. As mudanças normativas experimentadas em diversos países suscitam o debate sobre a engenharia institucional idealizada para a investigação e a persecução penal dos delitos. As diferentes trajetórias e arranjos organizacionais constituem importante objeto de pesquisa para a compreensão dos modelos contempo-râneos (Bonnelli, 2002; Di Federico, 1998; Fionda, 1995; Gershmann, 1992; Guarnieri, 1997; Jacoby, 1980; MacDonald, 1975; Machado, 2007a, 2007b e 2011; McIntyre, 1977; Misse, 2010; Mouhanna, 2004; Sanders, 1996; Walker, 1993; Vennard, 1996; Van Caenegem, 1987; Vogliotti, 2004; Zacharias, 2001).

No Brasil, a diferenciação interna do sistema jurídico em subsiste-mas propiciou a interação entre organizações historicamente vinculadas ao sistema político (Polícia, MP) com organizações típicas do sistema jurídico (Machado, 2011, p. 277-282; Luhmann, 2005, p. 359-367). A redefinição dos papéis propiciada pela idealização de um novo modelo leva a novas dinâmi-cas organizacionais e experiências na divisão do trabalho jurídico-penal. As premissas decisórias, como a cultura organizacional, são fundamentais para a compreensão da forma de comunicação das organizações contemporâneas (Luhmann, 2010). Com a proliferação das organizações, a atenção reorienta--se para as relações entre organizações e sistemas funcionais, pois aquelas surgem como pressuposto para a diferenciação funcional.

A teoria organizacional sistêmica constrói-se a partir da crítica ao mo-delo weberiano – a burocracia como forma de organização racional. A teoria

Page 83: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

8383

organizacional clássica dedicou especial atenção à redução de incerteza, fun-damental para a proteção da organização do risco e do excesso de informa-ção (Luhmann, 2010, p. 29 e ss.). Com a definição das organizações como sistemas sociais compostos de decisões e que produzem as próprias decisões – entidades autorreferentes –, a organização deixa de ser mero subsistema diferenciado internamente a partir dos diversos sistemas funcionais (Seidl, 2005, p. 39). Na medida em que as organizações atuam em sistemas funcio-nais, vinculam-se aos respectivos códigos. Mas estes não são suficientes para demarcar os limites organizacionais. Assim, as premissas decisórias, conjun-to de distinções binárias, conformam o equivalente funcional da codificação dos sistemas funcionais (Luhmann, 2010, p. 279).

No processo de diferenciação entre direito e política, cada vez mais as organizações se tornam necessárias para o desempenho de funções em socie-dades complexas. Assim, cada sistema social supõe a reestabilização de solu-ções distintas, resultantes de processos de diferenciação interna (Luhmann, 2005; Luhmann, 2010). Desse ponto de partida, indaga-se: como o subsistema jurídico-penal se diferenciou internamente, na forma de organizações que participam da divisão do trabalho jurídico-penal?

As disputas em torno das atribuições exercidas pelos atores incumbi-dos do poder punitivo apenas podem ser compreendidas quando se levam em conta os processos históricos e trajetórias na diferenciação interna do sub-sistema jurídico-penal. As diferentes tradições jurídico-penais permitem ma-pear um panorama amplo das possibilidades vivenciadas e a complexidade das aquisições evolutivas do sistema jurídico. Na aventura pela reconstrução histórica, estabelece-se via dupla: a compreensão do presente pelo passado e vice-versa. “O presente e o passado se interpenetram”, na feliz solução encontrada no léxico do historiador (Bloch, 2002, p. 65). A reconstrução é parcial, inacabada. Nos intervalos do não-dito, nos silêncios, propositais ou não, podemos entrever diferentes prismas. Outros não são percebidos, ou são ignorados. A realidade restaurada é fragmentada, policontextual, reconstruída por observações de segunda ordem (Luhmann, 2005, p. 436; Machado, 2012, p. 78).

Orientado por essa perspectiva, o artigo tem por objetivo descrever o processo de diferenciação interna do subsistema jurídico-penal por meio de organizações com funções específicas. Para essa estratégia descritiva, o foco dirige-se a dois casos paradigmáticos, o francês e o inglês, pois são repre-sentativos de duas opções jurídicas que inspiraram, e inspiram, as reformas processuais no decorrer do século XX. Certamente, o tema ocupa relevante espaço no debate capitaneado pela comunidade de processualistas penais

Page 84: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

84

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

84

(Bourdieu, 2001). Existem inúmeras peculiaridades e matizes, deve-se adver-tir o leitor. Para os limites desta proposta algumas simplificações são inevi-táveis.

Sem pretender aprofundar a repercussão dos processos históricos deli-neados na conformação dos discursos dominados pela comunidade dos pro-cessualistas penais, o que supõe novo esforço para pesquisa futura, anuncia--se (não mais que isso!), ao final, novas possibilidades teóricas para observar (observação de segunda ordem) a evolução da argumentação processual pe-nal no que se descreve como dupla dimensão. Por um lado, a faticidade das opções institucionais que programam a comunicação processual penal, resul-tado da confluência de fatores organizacionais, profissionais e, especialmen-te, dos códigos e programas da política. Por outro lado, a validade dos novos arranjos institucionais em decorrência da constitucionalização do processo penal (códigos do sistema jurídico).

1 DIREITO E POLÍTICA: ESTADO, ORgANIzAçÃO E PODER

Parte da literatura sobre a polícia e o MP sugere que os anteceden-tes históricos das referidas organizações foram instituídos com o objetivo de cumprir funções políticas, em sociedades pré-modernas, ainda não diferen-ciadas funcionalmente (Crabb, 1987; Critchley, 1972; Devlin, 1972; Esmein, 1913; Langbein, 1974; Jacoby, 1980; Manning, 1997; Monet, 2006; Vellani, 1965). Assim, razoável argumentar que o Direito e a política ainda não ha-viam se diferenciado, razão pela qual os laços de sangue, família (sociedades segmentarias) ou as clivagens marcadas pelas posições sociais legitimadas pelo domínio da terra ou outros símbolos de riqueza (sociedades estratifi-cadas) eram determinantes na redução da complexidade e possibilitavam a ordem social (dilema hobbesiano) (Luhmann, 1990, 2005, 2007 e 2010)1.

As sociedades diferenciadas funcionalmente pressupõem processos evolutivos e complexas relações sociais que ocorreram na modernidade. A distinção entre os sistemas político e jurídico é um dos aspectos mais signifi-cativos deste processo. A experiência europeia revela que o Direito precede

1 As sociedades segmentárias caracterizam-se pela articulação de sistemas parciais que formam entornos recíprocos. Pressupõe famílias e a horda (sociedade). Com o crescimento populacional, o sistema reproduz-se com secessões ou migrações (Luhmann, 2007, p. 503). A transição à hierarquia como forma de diferenciação pressupõe a existência de um estrato superior na forma de sistema parcial (Luhmann, 2007, p. 523). Com a estratificação, há a centralização política. A passagem à estratificação prepara o terreno para a diferenciação funcional (Luhmann, 2007, p. 540).

Page 85: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

8585

a formação do Estado moderno2. A convivência entre jurisdições e institutos jurídicos medievais (feudais) cede lugar à unificação do Direito, propiciada pela organização da justiça, o que possibilita o controle central e a consoli-dação da unidade do Estado3. Este se torna pressuposto básico da soberania, na sua dimensão de controle político centralizado da jurisdição, eliminando a concorrência de jurisdições feudais e eclesiásticas (Luhmann, 2005, p. 343 e ss.).

As modernas burocracias fazem parte deste processo e tiveram um papel relevante. As forças policiais tornam-se cada vez mais requisitadas pelas cidades em diversas regiões da Europa ocidental. A vigilância contra ameaças de violência impulsiona as organizações policiais pré-profissionais (Monet, 2006, p. 42-45; Weber, 1993, p. 695)4.

O movimento das codificações, a partir do século XVII, culmina o que Luhmann descreve como “processo semântico”, integrador da política e do Direito, estabilizando a concepção funcional do Estado como garantidor da liberdade segundo as regras estabelecidas pelo direito5. Em outras palavras, emerge a dupla dimensão do Estado na expressão que se consolida na mo-dernidade: o Estado como instituição jurídica e como ente político (Luhmann, 2005, p. 343 e ss.).

Antes disso, clássicos do pensamento social se interessaram pelo movi-mento de consolidação do Estado, e sua centralidade na sociedade moderna. Em análise do surgimento do Estados, Weber analisa a origem do Estado, cotejando três tipos ideais de dominação: carismática, patrimonial e buro-crática. Segundo Weber, a racionalidade da administração burocrática teria favorecido a consolidação do Estado Moderno. A própria definição do Esta-do como território com organização política, onde a ordem é mantida pelo

2 As diferenças regionais levaram a distintos processos históricos.

3 Da mesma forma, há extensa literatura que aponta distintos processos que marcam o surgimento do Estado moderno no século XIII e diferentes processos históricos até o século XIX, com matizes regionais e peculiaridades locais (Weber, 1993; Bourdieu, 1994).

4 6 No processo de diferenciação funcional, há comunicações que ultrapassam os limites internos dos sistemas, o que explica a necessidade crescente de organizações. As burocracias surgem, assim, como condição da sociedade moderna (Luhmann, 2007, p. 481).

5 O Código Civil francês (Código de Napoleão) exemplifica parte desse processo e teve funções instrumentais e simbólicas fundamentais na unificação jurídica do Estado francês, até então fortemente dividido pela tradição romana (sul) e pelo direito consuetudinário (norte) (Baudouin, 1958, p. 22).

Page 86: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

86

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

86

exercício legítimo da coerção remete à conformação das diferentes organiza-ções (burocracias) para o desempenho desta tarefa (Weber, 1993, p. 695 e ss.).

Outra interpretação contemporânea desse processo enfatiza que o Es-tado resultou do processo de concentração de diferentes formas de capital: instrumentos de coerção (Polícia, Exército etc.), capital econômico, capital cultural. A construção do Estado é concomitante à estruturação do campo de poder, entendido como espaço de jogo no interior do qual os detentores do capital lutam pelo poder sobre o Estado, o que pressupõe a consolidação de um sistema fiscal eficiente, a unificação dos mercados e a criação de um mer-cado nacional. O Estado contribui ainda para unificação do capital cultural, reunindo os códigos linguístico, métrico e jurídico, além de homogeneizar as formas de comunicação, especialmente as burocráticas (unificação de for-mulários, impressos) e as formas de classificação segundo sexo, idade, grau escolar. Tais formas de agir consolidam rituais que condicionam estruturas mentais e visões do mundo. Nesta leitura, o Estado é o espaço por excelência para exercício do poder simbólico (Bourdieu, 1994, p. 110-120).

O enfoque sistêmico investe em outra dimensão da formação do Esta-do: a diferenciação funcional. A partir do século XIX, o conceito de política aproxima-se do Estado; de outro lado, o Direito enseja múltiplas possibilida-des de conformação da política. O direito assume, assim, o papel de instru-mento para realização de fins políticos, com um forte incremento do processo de produção legislativa, mediada pela concepção hierárquica entre legislação e jurisdição (Luhmann, 2005, p. 473-477).

Esse processo leva, também, à configuração de instituições que promo-vem o acoplamento estrutural entre os diversos sistemas sociais. Em relação à política e ao Direito, a Constituição e o direito positivado são exemplos signi-ficativos. Para o sistema jurídico, constituem-se em programas que permitem a operação a partir dos códigos direito/não direito. Já para o sistema político, o Direito e a Constituição relacionam-se aos códigos da política (governo/oposição); em outras palavras, política em ação. Assim, podem assumir para o sistema político uma dimensão instrumental ou simbólica.

O Estado de Direito sugere, assim, na concepção luhmanniana, uma re-lação parasitária entre o Direito e a política. Se a política ganha com o fato de que a decisão sobre a conformidade ou não com o Direito será decidida em outro sistema social (jurídico), o sistema jurídico beneficia-se com o fato de que a coação (o uso da força) é assegurada pelo sistema político. Em síntese, a diferença externa permite, simultaneamente, redução de complexidade e crescimento das possibilidades de ação (Luhmann, 2005, p. 492). Sob esse en-

Page 87: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

8787

foque, a análise da polícia, do MP e dos tribunais ganha contornos distintos. Os antecedentes históricos dessas organizações encontram-se em períodos pré-modernos, quando o Direito e a política, assim como outros sistemas so-ciais, como a religião, a moral e a ciência, não haviam se diferenciado funcio-nalmente.

2 SISTEMA JURÍDICO, DIFERENCIAçÃO INTERNA E TRIBUNAIS

A diferenciação da sociedade – e sua constituição em comunicação – parte da distinção entre interação e sociedade. Nesse sentido, a diferenciação do Direito como sistema autopoiético ocorre a partir da diferenciação interna, em sua dupla dimensão: hierarquia e concepção de que, para o sistema par-cial, tudo o que não pertence ao sistema será entorno6. A ordem do sistema unitário opera-se pela diferenciação entre sistema e entorno. Historicamente, foram constituídas formas de diferenciação a partir da desigualdade, como tribunais/advogados, tribunais/legisladores, o que permite mais diferencia-ção e mais liberdade ao sistema (Luhmann, 2005, p. 359)7.

Razoável avançar esse argumento e identificar outros processos de diferenciação interna do subsistema jurídico-penal a partir da desigualda-de polícia/tribunais, polícia/MP, tribunais/MP, MP/advogados. A relação poderia ser bastante extensa, mas é suficiente para situar a pesquisa sobre as organizações do subsistema jurídico-penal sob a premissa sistêmica. Os “pa-

6 A diferenciação interna do sistema refere-se à construção recursiva do sistema. A diferenciação interna gera entornos no interior dos sistemas sociais. Reaplica-se, assim, a reentrada da distinção sistema-entorno (Luhmann, 2007, p. 473).

7 Por volta do ano 1150, um pequeno número de juristas ensinava direito romano ou canônico e exercia a advocacia em tribunais religiosos em poucas cidades europeias. Um século após, advogados profissionais proliferaram por quase toda cidade na Europa. Ha divergência sobre o que constitui de fato uma profissão e em que esta se diferencia da mera ocupação. Profissão vai além de um mero grupo de trabalhadores que desempenham um tipo específico de trabalho. Refere-se não apenas à utilidade para toda a comunidade. Requer, também, conhecimentos específicos (expertise) que envolvem períodos de estudo e de treinamento, com prestígio social. Conforme sugere Brundage, os advogados profissionais aparecem inicialmente nos tribunais da Igreja medieval (Brundage, 2008, p. 3-3). Os oradores romanos e juristas dos dois últimos séculos da República romana são as figuras mais claramente identificáveis como profissionais do direito na antiguidade (Brundage, 2008, p. 12). A jurisdição na Idade Média era exercida pelo Papa, bispos e outros representantes da Igreja Católica, não se exigindo credenciais profissionais específicas para o desempenho (Brundage, 2008, p. 372-373).

Page 88: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

88

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

88

res opostos” referem-se também às distintas funções ou papéis assumidos: investigar/acusar, acusar/julgar, acusar/defender8.

Os mecanismos de diferenciação interna do sistema jurídico permitem pensar diferentes campos jurídicos. O passo inicial sugerido pela diferencia-ção, sob um enfoque teórico, implica considerar a posição dos tribunais como subsistemas do Direito. Assim, é possível avançar e perquirir sobre as formas de diferenciação do sistema jurídico no momento em que este deve se dife-renciar em tribunais. A primeira diferenciação entre legislação e jurisprudên-cia é fundamental para autodescrição do sistema.

A distinção entre legislação e jurisprudência fundamenta-se na especi-ficidade da atividade dos tribunais. A aplicação do Direito ocorre por meio de decisões aplicadas caso a caso, diferentemente da legislação. Algumas questões são fundamentais em relação à forma como opera o sistema jurí-dico. Inicialmente, os tribunais devem ser provocados para conhecer uma determinada questão. Neste sentido, outros atores e organizações cumprem a função de fazer os casos chegarem aos tribunais. Internamente, ao sistema não é dada a possibilidade de não decidir por eventual dúvida quanto ao direito vigente (non liquet) (proibição de denegar justiça) (Luhmann, 2005, p. 367-381).

No modelo sistêmico, a jurisdição surge como subsistema que ocupa o centro do sistema jurídico. O processo de tomada de decisão do Judiciário implica reconhecer que o Magistrado subordina-se a restrições de comporta-mento. Por meio da organização garante-se a universalidade da competência de decidir questões jurídicas. Nesse esquema, os demais âmbitos do sistema jurídico (extrajudiciais) corresponderiam à periferia, onde não há a necessi-dade premente da decisão. Assim, os interesses (p. ex., a celebração de con-tratos) são apresentados sem a imposição da distinção legal/ilegal.

A periferia surge assim como ponto de contato com outras funções sociais (política, economia etc.). Na periferia, o sistema garante a sua auto-nomia ao não ter que decidir, circunstância necessária para a proteção em razão de sua distinta forma de operação. Contrastando com os legisladores, o isolamento cognitivo acentua-se em razão dos procedimentos probatórios. Além disso, o acesso aos tribunais é organizado seletivamente, de forma que

8 Do ponto de vista histórico, a literatura sugere o insulamento dos juízes dos vínculos de sangue e amizades (diferenciação segmentaria) (Luhmann, 2005, p. 359). Esse argumento deve ser problematizado a partir de outros enfoques que apontam que esse processo, longe de linear, sugere clivagens e peculiaridades.

Page 89: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

8989

apenas um reduzido percentual de questões jurídicas chega aos tribunais (Luhmann, 2005, p. 381-390).

Os tribunais organizam sua hierarquia de acordo com a racionalização de competências e especialidades. Além disso, os tribunais estão incumbidos de supervisionar a consistência das decisões jurídicas, atividade colocada em ação por meio da interpretação e tomada de decisão de forma argumentativa, mostrando a racionalidade da opção jurídica (Luhmann, 2005, p. 381-390). Outras organizações e atores (papéis) que participam da comunicação jurídi-ca não estão deslocados desse processo. Os padrões de atuação das funções de acusar, defender e de outros procedimentos jurídicos (saberes jurídicos) conformam um ethos próprio. A racionalidade das opções jurídicas é avaliada segundo a consistência argumentativa do direito (racionalidade jurídica)9.

Aceita a premissa da diferenciação interna do subsistema jurídico--penal, na organização seletiva das operações jurídico-penais, outros atores desempenham papel importante na evolução do sistema jurídico e reestabili-zação da comunicação jurídica10.

3 SOCIEDADE, ESTADO E ORgANIzAçõES DO SUBSISTEMA JURÍDICO-PENAL

Em sociedades segmentárias, as relações estabelecidas são mediadas por tabus e proibições. As comunicações jurídicas estão permeadas por con-teúdos morais, religiosos, culturais (míticos). As sanções pela violação à nor-ma são interpretadas como questão privada.

Apenas em sociedades mais complexas surgem os intermediários. Monet refere-se aos mediadores existentes entre os nueres do Sudão. Em um contexto de total indiferenciação entre o Direito e a política, e entre as ativi-

9 Os tribunais e outras organizações que pretendam participar da comunicação jurídica adotam pautas de ação de forma que as decisões sejam determinadas pelo direito vigente. Porém, a teoria crítica questiona as determinações sociais da decisão. A resposta sistêmica aposta na seguinte premissa: os fatores sociais não são excluídos. Mas a pergunta seguinte será: quais são as determinações sociais necessárias para garantir a independência e a proibição da recusa à decisão judicial? Luhmann sugere que a organização e a profissionalização das competências jurídicas (Luhmann, p. 391-393).

10 A sociedade moderna substitui a interação social por organizações. Ao contrário daquelas, não se trata de fenômeno universal; as organizações devem ser interpretadas como aquisições evolutivas (Luhmann, 2007, p. 655). As organizações possibilitam interdependências sociais compatíveis com a autopoiese dos sistemas funcionais (Luhmann, 2007, p. 657).

Page 90: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

90

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

90

dades de policiamento e julgamento, um grupo de notáveis encarrega-se de decidir questões relevantes para a comunidade local, como o roubo de gado. A função especialmente policial surge apenas quando a divisão do trabalho cria padrões de diferenciação política, com estruturas religiosas e militares (Monet, 2006, p. 31-32).

Nas sociedades com estrutura estatal minimamente articulada, já é possível identificar distinção da função policial em relação a outras funções, como a militar e a judiciária. Monet sugere que nas cidades-Estado da Grécia Antiga aparece, pela primeira vez na história, funcionários incumbidos de, mediante o exercício da coação física, fazer prevalecer a ordem. Contudo, as forças policiais estão destinadas muito mais à proteção dos governantes que dos cidadãos gregos, os quais estão autorizados a iniciar processos criminais e, sendo o caso, prisão daqueles que eventualmente lhes tenham causado lesão11.

Essa distinção não muda com a dominação romana, pois os cidadãos continuam responsáveis pela prisão dos acusados da prática de crime, enca-minhando-os a um Magistrado público. Entretanto, a prisão e eventual con-denação (inclusive a morte) são executadas pelas vítimas. Apenas no período de dominação do imperador Augusto são abolidas as instituições da Repú-blica romana, surgindo verdadeira administração policial pública, especiali-zada e com certo nível de profissionalização (Monet, 2006, p. 34-35).

Também há quem busque nas instituições do direito romano os ante-cedentes do Ministério Público, em funcionários destacados para a vigilância da moral, para denunciar ao imperador desvios de conduta de funcionários ou mesmo gerir os bens dominicais (Vellani, 1965, p. 11-21). Nota-se, contu-do, que tais funcionários não correspondem exatamente às funções hoje de-sempenhadas pelo Ministério Público. Ao contrário, revelam que não havia uma clara distinção entre as funções desempenhadas e não rara sobreposição (Rassat, 1967, p. 1-21; Vellani, 1965, p. 11-21).

Com a queda de Roma, as polícias especializadas desaparecem, des-centralizando-se as forças policiais e as organizações que representavam os interesses do soberano, sucedendo-se a constituição de poderes locais au-

11 Conferir descrição sobre as diferentes polícias que surgem nas cidades-Estado na Grécia Antiga, encarregadas de tarefas distintas e com âmbito de atuação definido (Monet, 2006, pp. 34). O retorno ao poder central, marcado pela formação dos Estados na Europa ocidental, manifesta-se na experiência de criação de distintas polícias especializadas (Monet, 2006, p. 47-53).

Page 91: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

9191

tônomos (Monet, 2006, p. 34-35). Com a configuração do regime feudal na Europa, há subdivisão de funções policiais, acusatórias e judiciárias, e o mo-narca, premido por obrigações morais e religiosas, encontra-se impossibili-tado de garantir paz social aos súditos, pois limitado à defesa de interesses pessoais e das terras da Coroa.

Assim, busca-se a segurança coletiva pela reciprocidade entre senho-res feudais e vassalos. Com o fim do poder centralizado, os senhores das terras tornam-se detentores de potestades policiais e judiciárias para garantir suas decisões. A autoridade legal confere poder aos senhores feudais para o exercício da justiça. Na prática, contudo, a efetividade é débil, pois fora reconhecido o direito de vingança privada, tradição vigente em grande parte da Europa ocidental na época. O processo recua apenas no século XI, com os movimentos “Paz de Deus”, com limitações aos duelos e vinganças pri-vadas12.

A formação dos Estados na Europa ocidental sinaliza o retorno do po-der centralizado e marca o início da especialização policial. Nos séculos XIX e XX, as polícias especializam-se em funções definidas. Além da alimentação do sistema de justiça criminal, os poderes políticos dispõem de forças coer-citivas para fazer prevalecer a ordem estabelecida internamente. Se as forças policiais surgem em decorrência do crescimento das cidades13, nos séculos XIX e XX há progressivo domínio do poder central sobre a polícia. Seja me-diante a criação de polícias militarizadas, seja pelo esforço do poder central em reforçar o poder sobre as polícias locais, sob domínio do Estado (Monet, 2006, p. 55-61).

O controle da população e das práticas etiquetadas como inconve-nientes, como a vadiagem, o jogo e a bebida, resultou não apenas da coerção estatal. Há evidências históricas de que o Estado interagia com elites locais

12 Monet analisa as experiências históricas nos diversos contextos da Europa feudal, e destaca as organizações criadas para desempenhar funções policiais e judiciárias (Monet, 2006, p.38-42). Particularmente sobre o sistema de justiça durante o período saxão, ver Crabb (1987, p. 7-43).

13 O desenvolvimento urbano e das atividades de mercado conformam unidade no final do século XVII e princípios do século XVIII. O desenvolvimento da economia de mercado, generalização das relações econômicas e consolidação da economia monetária introduziram o homem nas abstratas relações de troca. No equilíbrio das forças estatais, o principal papel da polícia é a organização das relações sociais e a produção de mercadorias (Foucault, 2004, p. 338).

Page 92: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

92

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

92

nesse processo. No final da Idade Média, preocupações econômicas foram importantes, redefinindo-se as estratégias de legitimação dos instrumentos de controle (Foucault, 2004, p. 333 e ss.; Thomas, 2009, p. 121-139; Muchem-bled, 1994, p. 135 e ss.). Com a urbanização e o comércio, tornam-se neces-sários mecanismos que facilitem o exercício de atividades econômicas. No século XVIII, a polícia regulatória, o poder de polícia e a ciência policial pro-piciam ao soberano poder do Estado exercer o governo (governança) de for-ma diferente da exercida nos séculos anteriores (Foucault, 2004, p. 333 e ss.; Valverde, 2008, p. 20).

Traços da diferenciação interna do sistema jurídico podem ser iden-tificados tanto na Inglaterra quanto na França. Em meados do século XIII, durante o reinado de Henry III, o Judiciário diferencia-se da Administração Pública. Em poucos anos, surge o Parlamento, organização política central na história inglesa (Plucknett, 1936, p. 20-21). A diferenciação entre organi-zações do sistema político e do sistema jurídico ocorre ao longo de vários séculos. As diferentes tradições jurídicas são concomitantes e indissociáveis dos processos de diferenciação interna dos sistemas político e jurídico14. Des-de o início do século XVII, a concepção sobre o poder de polícia distingue-se de outras formas de exercício do poder real: o poder judicial. Como a justi-ça, deriva do mesmo poder fático. Contudo, na engenharia institucional, são funções claramente delimitadas (Foucault, 2004, p. 339)15.

Até meados do século XII, tanto o direito inglês quanto o continental originavam-se de uma mesma família, germânica e feudal. Um século após, o direito romano e os procedimentos romano-canônicos foram recepcionados no continente, enquanto na Inglaterra o direito nativo foi mantido. O momen-to pode ser datado exatamente. Durante o reinado de Henry II, foram imple-mentadas reformas na organização judicial e nos procedimentos judiciais, de forma que, quando o modelo romano surgia como opção, não era suficien-temente tentador para estimular a mudança. Certamente, havia fatores que sugeriam a mudança: a persecução penal mantida nas mãos dos indivíduos

14 Cada transformação do sistema é dupla, pois muda também o entorno dos sistemas parciais. Incrementam-se dependências e interdependências, com a formação de sistemas parciais autopoiéticos (Luhmann, 2007, p. 475).

15 Dubber analisa o sentido original do termo polícia como manutenção e gerenciamento do bem-estar da comunidade. Essa conotação acaba deturpada ao longo dos anos, aproximando-se do direito penal (Dubber, 2008, p. 98-99). Em términos sistêmicos, reestabiliza a semântica da polícia, próxima e funcional ao retrato identitário do direito penal moderno (punitivo).

Page 93: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

9393

mostrava-se inadequada, havia insatisfação com os arcaicos meios de prova. Nesse contexto, as soluções oferecidas pelo rei e seus Magistrados pareciam a única solução aceitável. A resposta não foi a adoção do direito romano, mas a criação de Cortes de justiça, a sistematização de remédios jurídicos para a proteção da terra e a difusão do júri como tribunal para as demandas dos indivíduos (Van Caenegen, 1987, p. 114-117)16.

Na literatura, há extensas referências aos antecedentes das organiza-ções que integram hoje o subsistema jurídico-penal. Sugere-se que a primeira polícia pública na Europa surge na Inglaterra, após a conquista normanda17 e com os processos de centralização política e administrativa. A precisão do momento histórico é contestada por parte dos historiadores. Argumenta-se que, no século XIII, não havia ainda na Inglaterra plena diferenciação das funções policiais, que abrangeriam também a acusação penal e, em algumas situações, até mesmo a jurisdição. Tal funcionário, o sherif, que representa a Coroa perante o poder local, desempenhava tanto funções policiais quanto judiciárias, pois era autorizado a aplicar multas em caso de contravenção a determinados casos. O Estatuto de Winchester, de 1285, e a Justice of the Peace Act, de 1361, marcam o surgimento de um sistema rudimentar de polícia. Os antecedentes da justiça de paz encontram-se nos cavaleiros convocados por Ricardo I, em 1195, para manter a paz. Nos séculos seguintes, a concepção inicial foi ampliada, e tais funcionários passaram a ser denominados Custodes Paci ou mantenedores da paz (Critchley, 1978, p. 4-19; Manning, 1997, p. 55-69).

A primeira metade do século XVIII foi marcada por onda de violên-cia e ameaça à ordem estabelecida. Proliferaram as sugestões por medidas profiláticas com o endurecimento das penas. Surgem as sociedades morais e as associações para a proteção mútua para quem podia pagar pelo servi-ço. O surgimento da polícia como ciência também foi um fato relevante na virada do século XVIII para o século XIX. O influente livro A treatise on the Police of the Metropolis, de Patrick Colquhoun, comerciante de Glasgow, tra-zia descrições e estatísticas de delitos e criminosos, enfatizava a importância das provas para apuração dos fatos e sugeria a criação, sob forte inspiração (e admiração) francesa. Em edição posterior, em 1800, o autor enfatizava a importância da ciência policial para a Inglaterra, não apenas para preven-

16 No continente, a influência do direito romano prosperou, difundindo-se por parte dos territórios hoje ocupados pela Itália, Espanha, Portugal e França. Nesse processo, as universidades desempenharam um papel importante, impulsionadas também pelos governos (Van Caenegen, 1987, p. 117-118).

17 Sobre a conquista normanda e o frankpledge, conferir Critchley (1978, p. 1-3).

Page 94: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

94

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

94

ção e investigação dos crimes, mas também a manutenção da ordem social. Colquhoun defendia a separação entre as atividades de julgar e policiar, com a criação de um corpo policial, com organização em cada condado, contro-lada pelo departamento de polícia central. As propostas do comerciante es-cocês não se limitavam apenas a questões técnicas (sugeria, inclusive, a cria-ção de serviço de inteligência), pois a polícia, na sua concepção, deveria ser também veículo de educação moral (Police Gazette) (Critchley, 1978, p. 29 e p. 38-45; Manning, 1997, p. 72-79)18.

O utilitarismo também foi importante no período. Bentham, influencia-do pela obra clássica de Beccaria, traduzida em 1767 para o inglês, inspirado pelos ideais de prevenção ao crime, propõe, na obra Constitutional Code, a criação de uma polícia centralizada e sob o comando do governo (Critchley, p. 45-46). Contudo, o parlamento recusava a proposta, rejeitada em 1816, 1818 e 1822 por incompatibilidade com a liberdade britânica (Critchley, 1913, p. 46). Finalmente, em 1829, depois de quase um século de desconfianças e hostilidade pela ideia de uma polícia profissional, o Metropolitan Police Act foi aprovado com escasso debate e oposição (Critchley, 1913, p. 50-51). No caso inglês (e de Wales), a polícia torna-se não apenas responsável pela manuten-ção da ordem e investigação dos delitos, mas também pela decisão sobre os casos que devem ser objeto de persecução penal. Para os delitos de menor potencial ofensivo, a polícia é legitimada para a persecução direta (Critchley, 1978, p. 309-310)19.

18 Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a polícia ganha significado distinto na Inglaterra. Distancia-se da acepção francesa, de controle dos cidadãos. Na forma concebida por Colquhoun, a polícia não era organização incompatível com a tradição inglesa (Manning, 1997, p. 48-49). Manning sugere componente ideológico no debate sobre a polícia e a importância de Colquhoun e sua noção de polícia científica racional e orientada à prevenção; na sua visão, serviria à tradição inglesa de não intervenção, com o foco na máxima proteção dos cidadãos (Manning, 1997, p. 72-73).

19 A criação da polícia inglesa, em 1829, ocorreu sob forte pressão pela sua despolitização. A aceitação do policiamento como prática legítima foi resultado de cem anos de luta pelo insulamento da polícia, em um ambiente marcado pela pacificação social. Mudanças políticas na década de 1960, intensificando conflitos sociais e a violência policial. Nas décadas seguintes, predomina o conflito político, com duas clivagens opostas: lei e ordem X direitos humanos. Desde então houve o esforço dos partidos Conservador e Trabalhista pela recuperação da legitimidade com a construção de novas técnicas ou políticas de gestão da polícia, como o policiamento urbano e o policiamento voltado para a resolução dos problemas (Bonelli, 2002, p. 212).

Page 95: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

9595

Na Europa continental, outros processos podem ser identificados. Na França, os chamados “guardas de feiras” são os antecedentes da moderna polícia francesa, com poderes coercitivos para fazer prevalecer a ordem e a segurança, atendendo aos interesses mercantis dos senhores que concediam os direitos de comércio nos seus territórios (Monet, 2006).

4 A DIFERENCIAçÃO DO SUBSISTEMA JURÍDICO-PENAL E A PERSECUçãO PENAL PÚBLICA COMO FORMA

O enfoque sistêmico sugere outras ferramentas para análise da evolu-ção dos sistemas sociais20. Não se distinguem épocas, mas variação (comuni-cação desviante, inesperada), seleção (resposta a perturbações; expectativas que guiam a comunicação ou referências de sentido idôneas a conduzir ex-pectativas) e reestabilização (estado do sistema após a seleção). Tanto a varia-ção quanto a seleção designam acontecimentos. A reestabilização refere-se à auto-organização dos sistemas (Luhmann, 2007, p. 335-336). O modelo não se confunde com uma teoria do progresso, pois não está associada necessaria-mente à melhoria de condições, pois o entorno muda constantemente. E de-sencadeia novas adaptações. Assim, a evolução pode ser definida como mu-dança estrutural (Luhmann, 2007, p. 337-342). Sob essa perspectiva, a análise das formas de persecução penal recebe outros contornos. As organizações, procedimentos e arranjos institucionais devem ser compreendidos nos res-pectivos contextos. Certamente, a evolução do sistema jurídico e a diferencia-ção interna do subsistema jurídico-penal dependem da coevolução dos dife-rentes sistemas sociais. A história das organizações desvela, assim, trajetórias específicas na divisão do trabalho jurídico-penal. E revelam os contextos e peculiaridades da reestabilização das estruturas dos sistemas sociais.

No processo de diferenciação do subsistema jurídico-penal, a centra-lização da função política no Estado permite contextualizar os papéis das organizações. A desapropriação das formas de resolução dos conflitos pelo Estado permite outra leitura do fenômeno. Pesquisas sobre a origem da ação penal pública sugerem que até o século XIII predominava na Europa a vin-

20 A diferença meio-forma refere-se ao estado interno dos sistemas. As palavras, acopladas de maneira frouxa, são aglutinadas em orações e adquirem forma temporal. O sistema opera ligando o meio a formas próprias. Estas se conservam com a ajuda de dispositivos próprios como a memória, a escrita, os textos impressos. O uso reiterado condensa o sentido das palavras. Apenas as formas podem acoplar-se aos sistemas e não o substrato medial. As frases, e não as palavras, formam um sentido determinado e que pode ser processado na comunicação (Luhmann, 2007, p. 150-154).

Page 96: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

96

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

96

gança privada como resposta ao crime. O surgimento do Estado e dos tribu-nais de justiça não alterou, contudo, a natureza do crime, que persistia como infração privada e cabia à parte prejudicada apresentar a acusação perante o juiz.

O século XIII testemunhou mudanças significativas nos métodos de acusação e julgamento penais (yardley e Hanbury, 1979, p. 30-60; Ma, 2008, p. 190-211)21. Neste momento, há uma diferenciação importante entre a Europa continental e a Inglaterra. Nos seis séculos seguintes, adotou-se a persecução penal privada na Inglaterra. O continente europeu, em contrapo-sição, adotou a persecução penal pública (Alschuler, 2005, p. 92-93; Esmein, 1913, p. 40 e ss.; Forsyth, 1852). França e Inglaterra representam, assim, casos paradigmáticos de específicos processos de diferenciação interna do subsis-tema jurídico-penal.

As raízes do modelo francês encontram-se em três importantes tradi-ções: a romana, a germânica e o direito canônico. O modelo acusatório das nações germânicas torna-se inquisitorial, escrito e secreto, em uma versão eclética das referidas influências. A necessidade de reorganizar a autoridade estatal manifesta-se, no caso francês, pelo fortalecimento do sistema repressi-vo (Esmein, 1913, p. 40). No modelo francês, a organização criminal é baseada no princípio da divisão do trabalho, atribuindo-se distintas funções a diferen-tes autoridades: prisão, investigação, julgamento e execução (Esmein, 1913, p. 43). Estabelecia-se, ainda, que o funcionário que desempenhasse qualquer dessas funções não deveria desempenhar outras, a não ser excepcionalmente. Os oficiais da polícia judicial encarregavam-se da investigação preliminar; as Cortes de investigação (instrução)22 eram competentes para apuração do fato e indiciamento. As Cortes de julgamento eram as responsáveis pelo julga-mento e execução dos julgados (Esmein, 1913, p. 43-45)23.

No século VII, o direito canônico rompe longa tradição de influência germânica e romana, admitindo-se, para determinados delitos, a persecução

21 Conferir análise do período que antecede o século XIII (Carter, 1927, p. 1-35).

22 Sobre o surgimento da figura do juiz instrutor e sua difusão na Europa continental, ver Van Caenengem (1991, p. 35, nota de rodapé 111).

23 No período de dominação germânica, a justiça era exercida pelo chefe, com a cooperação de homens da tribo em assembleias periódicas. Durante o feudalismo, a autoridade é diluída, marcada pelo conflito entre jurisdições, até o ponto em que a autoridade real acaba por absorver as demais, ao mesmo tempo em que o Estado absorve o sistema feudal (Esmein, 1913, p. 48).

Page 97: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

9797

penal sem um acusador oficial. A partir dessa experiência, abriu-se o cami-nho para o procedimento inquisitorial (Esmein, 1913, p. 79). A persecução pe-nal regular aparece apenas em 1200 e coincide com a substituição das arcaicas formas de prova pelo inquérito.

A persecução penal pública reestabiliza-se na França por volta de 130024, e aparece a figura do procurador do rei, inspirado pela tradição feudal em que apenas os senhores feudais e o rei estavam autorizados a demandas por meio de um procurador perante as Cortes. Uma das mais importantes tarefas deste funcionário era executar as multas decorrentes de sentenças condenatórias penais, receita importante de nobres e monarcas. A denomi-nação procurador fiscal, ou Ministério Público fiscal, advém dessa tradição (Esmein, 1913, p. 114-115)25. Há evidências de que a figura do procurador aparece no processo penal não como acusador oficial, mas como represen-tante da parte atingida perante os tribunais. Segundo o direito canônico, o juiz deveria iniciar o procedimento, caso houvesse um denunciante, papel que o procurador acaba assumindo. De acordo com a ordenação de 1347, sua função era promovere inquiestas fieri (Esmein, 1913, p. 116-117; Langbein, 1987, p. 216-217)26.

Na França, uma mudança importante do ponto de vista da diferen-ciação entre as funções do Ministério Público e da magistratura instrutora ocorre com o Ordenamento de 1670. O Ministério Público assume o papel de controle da polícia, sob os auspícios de que seriam conferidas mais garantias ao acusado pela clara distinção: o procurador acusa e o juiz instrutor pronun-cia (Esmein, 1913, p. 502)27. Na maioria dos países europeus, sob influência

24 O procedimento oficial que surge na França origina-se no século XIII. Assim como na Alemanha, o foco eram os delitos para os quais não havia um acusador privado. Diferentemente da Alemanha, na França as funções persecutórias são atribuídas ao procureur du roi, na Alta Idade Média. O surgimento do burocrata relaciona-se à diferenciação da função judicial, associada ao modelo litigioso cível; reforça-se a tese de um modelo persecutório e oficial (Langbein, 1987, p. 216-217).

25 Conferir as circunstâncias históricas e os detalhes da normalização da função do procurador fiscal, especialmente em 1302, sob o domínio de Felipe “O Justo”, o que leva a crer que a figura já existia há bastante tempo (Esmein, 1913, p. 114-115).

26 Outros países do continente europeu seguiram um caminho semelhante, como Itália, Espanha, Alemanha e Holanda. O direito canônico também influenciou na adoção do modelo inquisitorial, e o direito romano tornou-se a base do sistema legal (Esmein, 1913, p. 288).

27 Em 1808, com a reforma do Código Penal, a questão reacendeu-se: “From the nature of the institution the public prosecutor is a party, from his title it belongs to him to prosecute, but for that

Page 98: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

98

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

98

do Código francês de 1808, foram instituídos procedimentos preliminares de instrução, sob o fundamento de que apenas as acusações baseadas em fatos e na lei deveriam ser levadas aos tribunais (Van Caenegem, 1991, p. 1-2)28.

O interesse das monarquias pelo controle dos territórios e pela ma-nutenção da ordem foi acompanhado da criação de órgãos públicos incum-bidos da acusação penal. O caso francês foi, assim, paradigmático. A partir do século XII, a persecução penal deixa de ser assunto de exclusivo interesse da vítima e de seus familiares. Para a proteção dos interesses monárquicos, o rei dispunha do procurador do rei (procureur du roi). Com o crescente in-teresse pela repressão ao crime, o procurador foi assumindo cada vez mais atribuições, com a figura do ministère publique, o qual assume, no século XVI, o monopólio da ação penal (Cardenas, 1986, p. 371)29.

Experiência distinta no processo de diferenciação interna do subsiste-ma jurídico-penal ocorreu do outro lado do Canal da Mancha. Na Inglaterra, a ação penal pública não foi instituída com a formação do Estado nacional30.

very reason it would be contrary to justice to allow him to conduct the examination proceedings” (Locré apud Esmein, p. 502).

28 A persecução pública do suspeito pela prática de um crime perante os tribunais é uma conquista das sociedades modernas, sendo a persecução privada uma prática menos difundida atualmente. Originalmente, as ofensas foram consideradas violações de direitos privados que levavam à vingança privada ou compensações. Com o surgimento dos tribunais, tornou-se necessária a formalização de uma acusação para iniciar o processo penal. Durante séculos, o ônus desta iniciativa recaía no indivíduo, iniciando-se luta por meio de juramentos ou armas em um combate judicial ou outras formas primitivas de provas. O procedimento não era livre de riscos, pois o acusador normalmente recebia a punição que buscava caso não conseguisse êxito nos tribunais. Como consequência da formação dos Estados centralizados, no século XII, a persecução penal foi destinada a um órgão público, substituindo-se as formas arcaicas de prova pelas formas modernas e racionais de investigação. Contudo, o caso inglês é particular, pela inexistência de um órgão oficial de acusação, criado apenas em 1879, na figura do Director of Public Prosecution (Van Caenegem, 1991, p. 1-2).

29 O atual modelo de ação penal, apesar de iniciado há séculos, foi instituído e difundido na Europa continental no século XIX, sob os efeitos da Revolução Francesa, especialmente entre os países que caíram sob influência da França (Fionda, 1995). O tema foi tratado em obras seminais, referências obrigatórias para a pesquisa histórica (Esmein, 1913; Langbein, 1974; Rassat, 1967; Van Caenegem, 1991; Vellani, 1967).

30 Na tradição inglesa, o crime é visto como um ato contra o Estado, mas um dano causado à vítima, quem é responsável pela persecução. O sistema privado foi mantido em linhas gerais com poucas mudanças, sendo significativa a criação, em 1879 do Director of Public

Page 99: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

9999

Apenas em 1879 foi criada a figura do Director of Public Prosecution, com a função de assistir aos chefes de polícia e outra pessoas envolvidas em proce-dimentos criminais. Na Escócia e na Irlanda, por outro lado, foram instituí-dos modelos de persecução pública, influenciados pela experiência francesa (Esmein, 1913, p. 588-599).

Se é certo que na Inglaterra, desde o período anglo-saxão, o crime era assunto a ser resolvido pela parte ofendida, também foi considerado uma ofensa ao Estado, razão pela qual deveria ser paga indenização ao ofendido, mas também multa ao Estado. Neste último caso, a motivação era claramente aumentar a arrecadação dos cofres da Monarquia, a qual não se via obrigada a promover a ação penal, cuja iniciativa ainda dependia da vítima (Cardenas, 1986, p. 359-360).

A formação incipiente do Estado não levou, contudo, imediatamente, à constituição da polícia inglesa. A ordem era mantida por meio do assim conhecido Frank-pledge (compromisso franco), subdividido entre divisões administrativas conhecidas como tithings, que acumulavam atribuições de policiamento, mas também de acusação pela prática de crime. Com a con-quista normanda, há uma mudança importante no século XII, em face do crescente interesse da Coroa pela gestão do problema criminal, razão pela qual é criado o chamado júri de apresentação (jury of presentment), instituído (doze homens da vizinhança) nas situações em que não houvesse qualquer acusação contra o suspeito pela prática do delito, acumulando as funções de

Prosecution. Até 1960, menos de 8% dos casos originavam-se do DPP, repartindo-se o restante entre as acusações privadas e as promovidas pela polícia. Na tradição britânica, apenas quando os delitos eram considerados antissociais ou contra os interesses da Coroa, o advogado do Rei assumia a ação penal como parte legítima. Após a criação da polícia inglesa, a persecução continuou como assunto privado. Houve, porém, esforços para instituir um modelo público, como no início do século XVI, no reinado de Henry VIII, com a criação de promotores de justiça para o desempenho da função, proposta rejeitada pelo Parlamento, mantendo-se o status quo até a aprovação da figura do DPP em 1879. Havia também interesses profissionais subjacentes à mera oposição política. A associação de advogados identificava na criação da carreira uma ameaça para o seu mercado de trabalho, que incluía persecuções eventuais de crimes. Reformadores ingleses do século XIX, como Bentham, Robert Peel e Edwin Chadwick, eram favoráveis ao sistema de acusação pública. Patrick Colquhoun também teve a oportunidade de escrever sobre o tema em seus tratados e estudos (Jacoby, 1980, p. 3 e ss.).

Page 100: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

100

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

100

acusação e julgamento (Cardenas, 1986, p. 360-361)31. Ou seja, nota-se, ainda, uma indiferenciação entre acusar e julgar32.

Fatos históricos revelam como o processo de diferenciação interna do subsistema jurídico-penal apenas se anunciava33. Um exemplo disso é o que ocorre com Magna Carta de 1215, quando o júri de apresentação assume uni-camente a função de julgar, sendo constituído o grand jury, o qual, em regra, atuava quando era apresentada alguma queixa. Porém, mantinha atribuições de órgão investigador, embora limitada a poucos casos (Forsyth, 1852; Van Caenegem, 1991). Nos séculos seguintes, surgem figuras que acumulam fun-ções de manutenção da ordem, investigação e acusação. Ao lado do comis-sário, figura que se assemelhava ao policial, incumbido da manutenção da ordem pública, a investigação era atribuição dos juízes de paz (justices of the peace), designados pela Coroa para apresentar o acusado e evidências do fato perante o grand jury. As referidas figuras apenas surgiam quando não hou-vesse parte interessada em levar o criminoso aos tribunais (Devlin, 1958).

O caso inglês é paradigmático da indiferenciação entre as atribuições da polícia e do Ministério Público34. As funções de manutenção da ordem, in-vestigação e acusação foram distribuídas entre comissários, juízes de paz e acusadores privados, persistindo até a revolução industrial, ocasião em que se fizeram necessários outros mecanismos para a gestão (governança) da cri-minalidade. No século XIX, foi criada a Polícia Metropolitana de Londres, o que não significou a supressão da ação penal privada. Paulatinamente, em razão das dificuldades e custos para a proposição da ação penal, a polícia

31 Conferir também Forsyth, 1852; Van Caenegem, 1991.

32 Conferir descrição das Cortes e a composição do sistema de justiça inglês medieval (Plucknett, 1936, p. 79-158).

33 Apenas no século XVI o processo penal inglês diferencia uma fase preliminar de investigação, mais exatamente entre os anos 1554-1555, durante o reinado de Mary, quando os novos estatutos definiam que os juízes de paz deveriam ouvir testemunhas e suspeitos antes de certificar as investigações perante a Corte de julgamento. Essas transformações são contemporâneas da adoção do modelo inquistorial francês, mas não diretamente extraídas do continente, pois tiveram raízes totalmente locais (Langbein, 1974, p. 1-20).

34 No caso inglês, há evidências de que os estatutos marianos buscaram introduzir um elemento oficial ou público no sistema de persecução penal pública. Embora esta não fosse abolida, surge um primeiro ator para suprir a omissão da vítima ou de seus familiares, nem sempre dispostos a enfrentar os tribunais. Havia a previsão de que o juiz de paz teria um papel importante não apenas na investigação, mas também na persecução penal, papel que deveria ser assumido quando necessário (Langbein, p. 34-45).

Page 101: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

101101

passou a acumular a função de propor ações penais, pois a persecução penal não era exclusiva da vítima. Porém, o policial o fazia como interessado na manutenção da lei e na preservação da paz da Coroa. Teoricamente, o poli-cial agia como cidadão, mantendo-se a concepção original de que as funções desempenhadas pela polícia não seriam distintas daquelas que o cidadão deveria voluntariamente prestar. Nos casos mais complexos, um advogado era encarregado pela polícia de encaminhar a causa e sustentá-la perante o tribunal (Cardenas, 1986, p. 362-364; Devlin, 1958).

Apesar disso, houve também, embora com pouca repercussão e im-pacto, um sistema paralelo de ação penal oficial, a cargo de advogados do monarca, para os assuntos de seu interesse, o que levou à criação da figura do Attorney general no século XV (Devlin, 1958; Van Caenegem, 1991). A atua-ção desses profissionais concentrava-se em crimes que afetavam os interes-ses da Coroa ou crimes “políticos”. Essas acusações oficiais eram, contudo, conduzidas por cidadãos designados para tal, não havendo um órgão oficial. Apenas em 1879 foi criado o cargo do director of public prosecutions (diretor de ações penais públicas), com atribuição anteriormente conferida ao Attorney (Prosecution of Offences Act, 1879). Porém, manteve-se a ação penal privada, e a atuação do director era residual (Cardenas, 1986, p. 361-362; Devlin, 1958)35.

Antecedentes históricos revelam, contudo, a peculiaridade da trajetó-ria inglesa. Durante o reinado de Henry I e Sephen e nos primeiros anos de Henry II, adverte Van Caenegem, os reis ingleses foram os primeiros na Europa a introduzir oficiais da Coroa para a persecução penal de suspeitos da prática de crimes, até o momento em que Henry II estabeleceu que essa fun-ção deveria ser substituída pelo júri de apresentação (Van Caenegem, 1991, p. 10-11). A monarquia anglo-normanda foi a primeira a inserir a persecução oficial, o que não deixa de surpreender que, séculos mais tarde, enquanto a Europa continental curva-se à persecução oficial, com a criação de estrutu-ras próprias e oficiais, a Inglaterra abandona o experimento (Van Caenegem, 1991, p. 34-35)36. Posteriormente, no contexto britânico passa a predominar o

35 Há evidências de que a opção inglesa tinha também um componente político. A forte desconfiança na centralização da ação penal em nome da Coroa. O receio era que o fortalecimento da persecução penal pública poderia redundar em instrumento para opressão política (Cardenas, 1986, p. 361).

36 “Prosecution by state officials was not altogether absent from English law in later centuries, since there was the rather shadowy procedure of ‘criminal informations’ [...]. The Attorney or Solicitor General used it only in cases of public importance […].” (Van Caenegem, 1991, p. 35)

Page 102: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

102

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

102

entendimento de que o poder de persecução penal poderia levar a arbitrarie-dades dos governos (Van Caenegem, 1991, p. 20).

Na prática, na falta de um sistema devidamente institucionalizado de acusação penal oficial e diante da inércia das vítimas, consolidou-se o sistema de acusação policial. Nessa experiência, não há uma completa diferenciação entre as funções de investigar e acusar, na medida em que a polícia, conclu-ída a investigação, detinha poderes para a proposição das ações penais. O envolvimento direto com a produção da prova gerou críticas pela suposta falta de objetividade e a deficiente representação da polícia em juízo culmi-nou com a criação, em 1985, do MP inglês Crown Prosecution Service, rompen-do a tradição centenária da ação penal privada no Reino Unido, embora a ação penal privada ainda tenha sido mantida pelo Prosecution of Offences Act (Fionda, 1995)37.

A diferenciação interna do subsistema jurídico-penal assumiu contor-nos distintos na Europa continental. Nesse sentido, as irritações do entorno foram processadas pelo sistema político com a criação de estruturas comple-xas e organizações burocráticas. Certamente, promoveu-se uma adaptação do subsistema jurídico-penal e novos padrões na divisão do trabalho jurídi-co-penal.

As variações regionais são relevantes, pois sinalizam processos históri-cos marcados pelos contextos regionais e locais. Uma vez mais, a forma como o sistema político processa as informações do entorno (abertura cognitiva) pode levar a distintas estruturas e organizações. A experiência norte-ameri-cana também é interessante para análise, pois conformou modelo diferente, fruto da influência do common law, mas especialmente das necessidades de gestão da criminalidade em um território extenso, onde as vítimas não se sen-tiam encorajadas a assumir a persecução penal. Durante o período colonial, a persecução penal, fruto da influência da metrópole, era assunto exclusivo da

37 Há relatos que recordam críticas de importantes personalidades do mundo jurídico e filosófico sobre o modelo inglês desde o século XIX. Bentham, por exemplo, referia-se a graves problemas na condução das investigações e das ações penais em juízo, os conluios e acertos para resolução informal dos casos e as injustiças que o modelo propiciava. Opositores à reforma, inclusive parte da comunidade jurídica, desconfiada da oficialização da acusação penal, movida também por razões corporativas e até mesmo econômicas, propiciava argumentos jurídicos para a manutenção da tradição inglesa (Cardenas, 1986, p. 362).

Page 103: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

103103

vítima (Cardenas, 1986, p. 366)38. Com a revolução americana, a lei de 1789 cria o sistema judiciário e o sistema de acusação penal em nível federal, sob o comando do procurador-geral (US attorney general) (Jacoby, 1980, p. 11-39)39.

O promotor norte-americano, fruto de influências diversas e resquícios das tradições inglesa e holandesa, aproximava-se do schout holandês, com funções policiais e persecutórias. Por outro lado, a polícia americana evoluiu da tradição inglesa durante a colônia, representada pela figura do sheriff-cons-table watchman. Em 1636, em Boston, o primeiro night watch foi instituído, transpondo-se a experiência a Nova Iorque, ainda sob o domínio holandês, em 1654 e, na Filadélfia, em 1700 (Jacoby, 1980, p. 109-110; McDonald, 1975, p. 15-51). Nota-se, assim, um processo de diferenciação interna do subsiste-ma jurídico-penal peculiar em relação à tradição inglesa, pois as funções ti-picamente persecutórias foram paulatinamente afastadas da Polícia (Jacoby, 1980, p. 110).

A acusação pública nos Estados foi alterada significativamente apenas em meados do século XIX, momento em que, tal quais os juízes, os promoto-res de justiça dos distritos (District Attorney) passam a ser eleitos. A eleição passou a fazer parte dos modelos de acusação de grande parte dos Estados americanos, e os promotores assumem definitivamente o monopólio da ação penal. O período coincide com o crescimento urbano e o aumento da crimi-nalidade nas grandes cidades dos Estados Unidos. A consolidação da ação penal pública coincide, assim, com a criação de forças policiais urbanas, ins-piradas pela convicção de que o controle do crime deveria estar totalmente sob o domínio do Estado (Jacoby, 1980, p. 11-39).

Essa concepção parece ter potencializado a figura do promotor de jus-tiça nos últimos anos. Pesquisas sugerem que a preocupação com a gestão da criminalidade e a forte pressão por medidas preventivas colocam em evi-dência a acusação penal nos Estados Unidos (Gershman, 1992, p. 393-394;

38 O sistema de acusação privada nas colônias americanas não teve vida longa; Connecticut foi pioneiro na adoção da acusação pública, em 1704. A concepção americana é a de que todo ato delituoso, conforme declarado na Constituição de 1776, viola “a paz e a dignidade do Estado” (Jacoby, p. 3-11).

39 O iluminismo também influenciou a reforma do sistema penal nos Estados Unidos. Criticava-se a opção inglesa, e predominava o entendimento de que o crime era assunto público, a ser tratado oficialmente pelos órgãos do Estado. Nas colônias sob domínio holandês ou influência escocesa, essa concepção foi particularmente defendida e adotada (Cardenas, 1986, p. 369).

Page 104: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

104

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

104

Goldstein, 1982; Jacoby, 1980, p. 18-39; Frohmann, 2008; McDonald, 1979, p. 18-19)40. A sofisticação das novas práticas requer coordenação das orga-nizações do subsistema jurídico-penal41. A discricionariedade da polícia é

40 Jacoby analisa detalhadamente o poder dos cidadãos sobre o funcionamento do MP. Os fenômenos urbanos afetam as estratégias do promotor. Outros fatores são relevantes, como o volume de trabalho e as estratégias adotadas para a tomada de decisão. A pesquisa considera comunidades rurais, os centros urbanos e as nascentes comunidades suburbanas, levando em conta implicações nos modelos organizacionais e rotinas da promotoria (Jacoby, 1980, p. 47-79).

41 Nos Estados Unidos, sugere Jacoby, polícia e MP aparentemente estão do mesmo lado. Na verdade, porém, a polícia muitas vezes fica desapontada com a solução dada pelo promotor, ao passo que este desconfia e questiona os motivos da Polícia. Ambos revelam distintos interesses, responsabilidades e objetivos na persecução daqueles que violam a lei. A polícia deve manter a paz e a ordem. O promotor deve produzir prova suficiente para a condenação perante os tribunais. A polícia deve manter as ruas seguras e remeter os desordeiros ao sistema de justiça criminal. O promotor representa a comunidade em suas ações e deve manter a ações nos tribunais, evitando aquelas com insuficiência probatória (Jacoby, 1980, p. 110 e ss.). À medida que a divisão do trabalho separou as duas agências, os objetivos se tornam cada vez mais divergentes. Cada agência tem poderes discricionários que refletem esses interesses, objetivos e políticas. Utilizando-se de tipologia sugerida por Wilson, Jacoby sugere três estilos distintos de discrição policial: o vigia, voltado para a manutenção da ordem; o legalista, dedicado a tornar efetiva a aplicação da lei; o relações públicas, mais enfocado para os problemas da comunidade, e menos com a efetividade na aplicação das leis. Essa tipologia é contrastada com estilos de persecução penal, idealizada por Jacoby: suficiência legal, eficiência sistêmica (enfoca a cooperação policial e o plea bargaining como estratégias importantes), reabilitação do acusado e suficiência probatória perante os tribunais. Ao confrontar os vários modelos de ação, é possível identificar diferenças importantes entre os objetivos traçados ou políticas similares (figura do policial-legalista e do promotor- -legalista). O promotor também pode assumir diferentes papéis ao longo do processo penal. No início, na fase investigatória, assume um papel ativo, coordenador, avaliando o trabalho policial até a decisão de dar início à ação penal. Em juízo, no sistema contraditório norte- -americano, assume papel semelhante ao desempenhado pelo advogado. O policial passa de autoridade com grande poder discricionário a funcionário que deve justificar suas ações na fase judicial, apontando a coerência das provas colhidas (Jacoby, 1980, p. 111-112). Na medida em que o promotor assume política discricionária mais agressiva, as oportunidades de conflito são inevitáveis se as duas agências não estão sintonizadas filosoficamente. Enfim, os diferentes critérios adotados pelos atores das duas agências podem levar a situações de conflito. As demandas sistêmicas da promotoria, mediante a regulação do número de casos judicializados (caseloads), são pouco compreendidas pela polícia, que desconhece a realidade sistêmica das promotorias. Mas, em boa parte dos casos, os atores ajustam suas ações para operarem em relativa harmonia (Jacoby, 1980, p. 112-116).

Page 105: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

105105

objeto de estudos e críticas há vários anos. A amplitude das possibilidades de ação gera incerteza e dificuldades de ações concertadas (Bayley, 2001; Jacoby, 1980, p. 111-112; Manning, 1997; Walker, 1990, p. 3-53). Por outro lado, a falta de coordenação do modelo de MP norte-americano surge com aspecto negativo. A discricionariedade é frequentemente taxada de exces-siva e inaceitável, pois geraria insegurança e dificuldades para intelecção dos critérios utilizados no gerenciamento dos casos penais (Albonetti, 1987, p. 291-313; Atkins e Pogrebin, 1982; Cole, 1996, p. 167-179; Davis, 1996, p. 13-67; Leng, McConville e Sanders, 1996, p. 225-243; Miller, 1969; Stanko, 1996, p. 181; Vennard, 1996, p. 157-166; Zacharias, 2000, p. 777-778).

5 ARgUMENTAçÃO PROCESSUAL-PENAL, ARTEFATOS SEMÂNTICOS E A DIVISãO DAS ATRIBUIçÕES (COMPETÊNCIAS) ENTRE AS ORgANIzAçõES DO SUBSISTEMA JURÍDICO-PENAL

A exposição das diferentes trajetórias das organizações do subsiste-ma jurídico-penal remete ao debate processual, que não passa ao largo do tema. O discurso processual penal (comunicação), na forma de proposições teóricas, constrói categorias para sistematização das opções jurídicas acima descritas (ainda que parcialmente, de forma fragmentada). Não se limita a isso. Sugere novos parâmetros interpretativos e, não raramente, mudanças legislativas. Em términos sistêmicos, propõem-se artefatos semânticos para intelecção dos distintos experimentos e suas consequências (Luhmann, 2005, p. 452). Não raramente, por meio de acoplamentos com o sistema político42, são traduzidos e tornam-se inteligíveis para a comunicação política. As pro-postas legislativas, muitas vezes originadas de comunidades epistemológicas (comissões de reforma formada por processualistas penais), fundamentam, legitimam e movimentam as mudanças normativas (poder de nomeação dos teóricos no campo jurídico) (Bourdieu, 2001). Da mesma forma, muitas vezes os anteprojetos não avançam, o que supõe acordos e negociações. Não rara-mente, as opções são confrontadas sob o prisma constitucional. Em termos sistêmicos, a produção legislativa assume um significante distinto para os sistemas político e jurídico. Para o primeiro, legislar faz parte do jogo políti-co. A positivação do direito, para o jogo da política, é “fazer política”, instru-mental ou simbólica, em suas diversas manifestações.

Na tradução às categorias processuais, o modelo dispositivo apresen-ta-se como o primeiro existente; caracterizava-se pela disponibilidade dos

42 As comissões de juristas, especialistas em direito processual (expertos), não raramente cumprem essa função (tradutor/acoplamento).

Page 106: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

106

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

106

direitos e restringe-se na atualidade aos delitos de ação penal privada43. Com a formação dos Estados nacionais, com as variações e trajetórias assinaladas, emerge o modelo inquisitivo, na Europa continental, no qual o mesmo juiz inicia a investigação, julgando ao final. A posterior transformação do modelo promoveu a separação dos juízes competentes para as diferentes funções, o que levou a modelos mistos. Posteriormente, impulsionada por debates polí-ticos e acadêmicos (processo penal), foi proposta a criação do modelo acusa-tório (Ferrajoli, 2001, p. 564 e ss.). Neste último, a iniciativa do processo cabe a um particular, e quem acusa não deve julgar. Com o aparecimento do mo-delo acusatório formal moderno, é incorporado um órgão acusador público denominado MP. As peculiaridades históricas mostram trajetórias distintas, cuja interpretação deve estar contextualizada nos processos evolutivos dos sistemas políticos e jurídicos.

Os eventos históricos são traduzidos pela discursividade processual--penal nos esforços de sistematização conceitual. O paradigma inquisitivo destaca-se pela possibilidade de o juiz proceder de ofício na busca e na va-loração das provas, culminando com o julgamento após instrução escrita e secreta em que está limitado o contraditório; há uma disparidade entre o po-der do juiz-acusador e o acusado. No paradigma acusatório, por seu turno, o juiz é concebido como sujeito passivo rigorosamente separado das partes. O julgamento é, assim, estruturado como um confronto entre partes iguais, iniciado pela acusação (o MP no modelo acusatório formal), incumbida de apresentar provas, e enfrentando-se a defesa em juízo contraditório, oral e público (Ferrajoli, 2001, p. 564; Guarnieri, 1984, p. 126)44.

A argumentação estrutura-se em idealizado equilíbrio entre efetivi-dade (instrumentalidade) e garantias (direitos fundamentais) no proces-so penal. Reestabiliza-se, ainda que parcialmente, a semântica do processo penal contemporâneo (Memória do direito processual penal [Luhmann, 2007, p. 461]). Em términos sistêmicos, os artefatos semânticos da teoria processual penal orientam a comunicação sobre os modelos processuais contemporâne-os (Luhmann, 2005, p. 452). De forma simplificada, os modelos próximos do paradigma acusatório tendem a privilegiar a atuação do MP, valorizando o papel equidistante do juiz, limitado à função de julgar. A consolidação do

43 Os argumentos que seguem foram parcialmente expostos em trabalho anterior (Machado, 2007a, pp. 71-74). Alguns trechos se repetem, o que se justifica pelo objetivo neste trabalho: aprofundar a análise sistêmica, apenas anunciada no texto original.

44 Existe ampla literatura sobre a matéria, razão pela qual a referência é meramente sugestiva: Armenta Deu (1995), Ruiz Vadillo (1994), entre outros.

Page 107: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

107107

MP como órgão responsável pela fase pré-processual, ou seja, pela direção da investigação policial, é justificada em grande parte pela necessidade de se buscar um juiz plenamente imparcial, meta inatingível em um sistema pre-dominantemente inquisitivo (Ferrajoli, 2001, p. 567-570).

Razões garantistas (argumentação jurídica) justificam a adoção de um modelo mais próximo ao acusatório puro, separando e delimitando as fun-ções de acusar e de julgar. O fator eficiência também é destacado por autores que acusam a lentidão do modelo inquisitório, centrado na figura do juiz de instrução (Armenta Deu, 1995, p. 45; Díez-Picazo, 2000, p. 111-112; Moreno Catena, 1997, p. 779; Rusconi, 1993, p. 102-103). A direção da investigação pelo MP, coordenando as ações da polícia a ele subordinada, ensejaria mais eficiência na persecução dos ilícitos penais (Gómez-Colomer, 1997, p. 486; Moreno Catena, 1997, p. 779 e 2002, p. 15-16, 26-27 e 36).

Afastar o juiz da função de coordenador da fase inicial (juiz instru-tor/investigador), substituído pelo juiz de garantias, predomina no discurso processual penal moderno, orientado por razões/critérios de eficiência, mas especialmente por uma certa leitura garantista Discute-se a importação do modelo de juiz de garantias, afastado da investigação e com funções específi-cas de garantir direitos fundamentais na fase inicial. Há, contudo, argumen-tos contrários à importação dos modelos, retratados como inadequados para a nossa tradição processual (Andrade, 2011). Por outro lado, essa lógica não é obviamente a que orienta suficientemente para compreender as operações do sistema político. A análise das dificuldades de mudanças dos modelos exis-tentes sugere que as reformas devem-se muito mais à tradução dos discursos à lógica da política do que à estrita racionalidade dos argumentos processu-ais (artefatos semânticos da comunicação processual penal) (Luhmann, 2005; Machado, 201345). As reformas nem sempre superam as tradições anteriores. Razoável o argumento que identifica hibridismos e soluções ecléticas entre os modelos, que acabam funcionando como tipos ideais (no sentido weberiano [Weber, 1993]). A análise revela, também, diferentes graus de diferenciação funcional entre organizações que participam da comunicação jurídica. Nesse contexto, mostra-se um processo no qual podem-se entrever trajetórias, ain-da em curso, de reconfiguração das que reconfiguram diferenças entre investi-gar/acusar/julgar. E remete à discussão sobre a validade das opções jurídicas, organizacionais e políticas.

45 Conferir especialmente os artigos que tratam das reformas do processo penal (Schietti, Flores Prada, Anitua, Paladines e Cuarezma) (Machado, 2013).

Page 108: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

108

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

108

Obviamente, parte dos eventos históricos apresentados nesse texto, muitas vezes de forma simplificada, foi objeto de interpretações e sistemati-zações da comunidade processual penal. As novas distinções levaram a ca-tegorias diferenciadas, a novas classificações. As experiências históricas são confrontadas com “modelos idealizados”, que nem sempre existem (ou exis-tiram) de forma pura. As operações contínuas de diferenciação de categorias, conceitos e princípios, por meio de reiteradas interpretações e novas soluções jurídicas, sugerem ortodoxias e heterodoxias. Por outro lado, a constitucio-nalização da comunicação jurídico-penal também repercutiu diretamente na evolução da argumentação processual. Os modelos são interpretados sob o prisma constitucional (constituição ressignificada como programadora da co-municação jurídica – e não apenas acoplamento entre sistemas político e ju-rídico), o que remete à validade ou não dos novos programas do processo penal contemporâneo.

Conforme anunciado na introdução, o tema é complexo e neste espaço foi apenas anunciado, pela conexão com a questão central enfrentada no artigo. Obviamente, requer futuro aprofundamento das variações e consequências, efeitos nos discursos processuais penais.

CONCLUSÕES

Na divisão das atribuições no subsistema jurídico-penal, nem sempre houve uma clara distinção entre as funções de investigar, acusar e julgar. Os processos de diferenciação levaram a soluções híbridas em que o Judiciário muitas vezes assumia a investigação. Da mesma forma, a polícia, não rara-mente, como demonstra a experiência inglesa, assumia também a acusação.

Os selecionados (França e Inglaterra) são paradigmáticos de diferentes processos de diferenciação interna do subsistema jurídico-penal. Na Inglater-ra, a ação penal privada foi mantida ao longo dos séculos, e a criação do MP é recente, e ainda não experimentou um completo processo de profissionali-zação. Prevaleceu o modelo da polícia investigadora, com o controle total da fase inicial e primeiro filtro do subsistema jurídico-penal. Na tradição ingle-sa, a polícia também se fazia responsável pela persecução penal, e apenas em juízo um órgão oficial era chamado a sustentar a acusação, cujo input era atri-buição da polícia. Isso na hipótese de inexistência de uma ação penal privada.

Na França, a adoção do modelo de ação penal pública foi acompanha-da do modelo de juiz-instrutor. Caracterizava-se pelo predomínio do juiz de instrução como coordenador dos trabalhos de investigação, delegados à polícia, sob supervisão e direção do instrutor. O modelo tornou-se paradig-ma do tipo ideal inquisitivo. A experiência expandiu-se para outros Estados

Page 109: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

109109

europeus, na esteira do movimento de centralização política e consolidação dos Estados de Direito. Além dos Estados sob influência direta da França, Portugal, Espanha e, em seguida, com os processos de unificação, Alemanha e Itália também experimentaram o modelo de investigação sob direção do juiz-instrutor.

Nos Estados Unidos, o peculiar processo de diferenciação interna do subsistema jurídico penal sugere nova semântica para a persecução penal. Reestabiliza-se a figura do promotor que preside as investigações. A polícia realiza diretamente a investigação, mas sob coordenação e orientação dire-ta do promotor de justiça. Com o papel ativo assumido pelo promotor de justiça, as relações com a polícia tendem a ser frequentes, embora isso não signifique redução da discricionariedade policial. Os conflitos, sugerem as pesquisas realizadas, relacionam-se às disparidades dos objetivos que orien-tam as respectivas organizações.

Nos últimos anos, nota-se progressiva extinção da figura do juiz instru-tor nas reformas processuais contemporâneas, transferindo a função de coor-denador (instrutor) da fase policial ao promotor de justiça. Portugal, Itália e Alemanha foram pioneiros nas reformas legislativas que transferiram ao MP função instituída, e reservada ao Magistrado, na configuração dos Estados Nacionais na Europa (Machado, 2007a, p. 81-118).

Nos países que optaram pela mudança (faticidade), critica-se que a or-ganização responsável pela instrução, agora o MP, não foi dotado de condi-ções materiais e humanas para o desempenho de suas novas atribuições. Na prática, haveria um escasso controle sobre as investigações conduzidas pela polícia, cuja discricionariedade não foi abalada. Essa tendência tem influen-ciado reformas na América Latina. Da mesma forma, as novas organizações nem sempre são dotadas de condições para as novas tarefas, o que leva à construção de modelos reais, muitas vezes não coincidentes com os mode-los idealizados (organização resposta) ). De outro ângulo, sob o prisma da validade, os novos programas do processo penal contemporâneo são reinter-pretados sob a lente constitucional. Sob a orientação de “um paradigma (mo-delo)” de processo penal contemplado nas diferentes constituições, muitas soluções políticas e arranjos institucionais são confrontados. Resultado, tam-bém, de interesses organizacionais e trajetórias profissionais que repercutem (ressonância) na tradução das opções jurídicas aos códigos e programas da política. Criticam-se as opções do legislador e, não raramente, a passividade dos tribunais (Luhmann, 2005; Luhmann, 2010; Machado, 2007a, p. 81-118; Machado, 2007b, p. 340-360; Machado, 2011, p. 279-282; Machado, 2013).

Page 110: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

110

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

110

REFERÊNCIASALBONETTI, Celesta A. Prosecutorial discretion: The effects of uncertainty. Law and

Society Review, 21, p. 291-313, 1987.ALSCHULER, A. W. Narrative and normativity: comments on the origin of adversary

criminal trial. The Journal of Legal History, 26(1), p. 91-97, 2005.AMERICAN BAR Association. Standards relating to the prosecution function and the defense

functions. New york: Institute of Judicial Administration, 1971.ANDRADE, Mauro Fonseca. Juiz das garantias. Curitiba: Juruá, 2011. ATKINS, Burton; POGREBIN, Mark. The invisible justice system: discretion and the Law.

Cincinnati: Anderson Publishing Co., 1982.ARMENTA DEU, Teresa. Principio acusatorio y derecho penal. Barcelona: Bosch, 1995.BAUDOUIN, L. The influence of the Code Napoleon. Tulane Law Review, 33, p. 21-28, 1958.BENNION, F. The new prosecution arrangements: (1) the crown prosecution service.

Criminal Law Review, p. 3-15, 1986.BAyLEy, David. Padrões de policiamento. São Paulo: Edusp, 2001.BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Trad. André Telles.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.BONELLI, Maria da Glória. Profissionalismo e política no mundo do direito. São Paulo:

EdUFScar/Sumaré, 2002.BRUNDAGE, James A. The medieval origins of the legal profession: canonists, civilians and

courts. Chicago: The University of Chicago Press, 2008.BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la theorie de l’action. Paris: Seuil, 1994.______. Poder, derecho y clases sociales. Bilbao: Desclée, 2001. CARDENAS, J. Crime victim in the prosecutorial process. Harvard Journal of Law and Public

Policy, 9, p. 357-398, 1986. CRITCHLEy, T. A. A history of police in England and Wales. Montclair, NJ: Patterson Smith,

1972. CARTER, A. T. A history of the English courts. London: Butterworth & Co, 1927.COLE, George. The decision to prosecute. In: SANDERS, Andrew. Prosecution in common

law jurisdictions. Aldershot: Dartmouth, p. 167-179, 1996.CRABB, George. A history of the common law. Littleton: Fred B. Rothman & Co., 1987. (1831

originalmente). CRITCHLEy, T. A. A history of police in England and Wales. London: Constable London,

1978.DAVIS, Angela J. Prosecution and race: the power and privilege of discretion. Fordham

Law Review, 67, p. 13-67, 1998.DEVLIN, P. The criminal prosecution in England. New Haven, CT: yale University Press,

1958. DÍEZ-PICAZO, Luis María. El poder de acusar: Ministerio Fiscal y Constitucionalismo.

Barcelona: Ariel Derecho, 2000.

Page 111: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

111111

DI FEDERICO, Giuseppe. L’indépendence du Ministère Public et le principe de la responsabilité en Italie: l’analyse d’un cas déviant d’un point de vue comparé. Droit et Societé, Paris, n. 38, p. 71-89, 1998.

DOUGLAS, John Jay. The prosecutor in America. Houston: National College of District Attorneys, 1977.

DUBBER, M. Criminal Police and criminal law in the Rechtsstaat. In: DUBBER, Markus; VALVERDE, M. Police and the liberal state. Stanford: Stanford Law Books, p. 92-109, 2008.

ESMEIN, A. A history of continental criminal procedure. Boston: Little, Brown, and Company, 1913.

FERRAJOLI, Luigi (2001)[1989]. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez et al. Madrid: Editorial Trotta, 2001 (Trad. Perfecto Andrés Ibáñez: prólogos, introducción y apartados 29 y 31, y del 56 al final; Alfonso Ruiz Miguel: apartados 1 al 12; Juan Carlos Bayón Mohino: apartados 13 al 31; Juan Terradillos Basoco: apartados 32 al 36 y 42 al 51; y Rocío Canterero Bandrés: apartados 37 al 41 y 52 al 55. Perfecto Andrés Ibáñez y Alfonso Ruiz Miguel han revisado la traducción de los apartados 37 al 41 y 52 al 55. y, junto con Juan Carlos Bayón Mohino han llevado a cabo una lectura unificadora de todo el texto).

FIONDA, J. Public prosecutors and discretion. Oxford, UK: Clarendon Press, 1995. FORSyTH, W. History of trial by jury. London: J. W. Parker, 1852.FOUCAULT, Michel. Security, territory, population: lectures at the Collège de France.

1977-1978. New york: Picador, 2007.FRIEDMAN, L. M. A history of American law. New york: Simon & Schuster, 1985.FROHMANN, Lisa. Prosecutors and prosecution. London: Ashgate, 2008.GERSHMAN, B. L. The new prosecutors. University of Pittsburgh Law Review, 53,

p. 393-458, 1992.GOLDSTEIN, Abraham S. The passive judiciary: prosecutorial discretion and the guilty

plea. Baton Rouge: Lousiania State University Press, 1982.GÓMEZ COLOMER, Juan-Luis. La instrucción del proceso penal por el Ministerio

Fiscal: aspectos estructurales a la luz del derecho comparado. In: GÓMEZ COLOMER, Juan-Luis; GONZÁLEZ CUSSAC, José-Luis. La reforma de la justicia penal (Estudios en homenaje al Prof. Klaus Tiedemann). Castelló de la Plana: Publicacions de la Universitat Jaume I, p. 459-496, 1997.

GUARNIERI, Carlo. Pubblico Ministero e sistema politico. Padova: Cedam, 1984.______. Prosecution in two civil law countries: France and Italy. In: NELKEN, David (Ed.).

Comparing Legal Cultures, Aldershot: Dartmouth, p. 183-193, 1997.JACOBy, J. E. The American prosecutor: a search for identity. Toronto, ON, Canada:

Lexington Books, 1980. ______. The prosecutor’s charging decision: a policy perspective. Washington: U. S.

Department of Justice, 1977.LANGBEIN, J. H. Prosecuting crime in the renaissance: England, Germany, France.

Cambridge, MA: Harvard University Press, 1974.LENG, Roger; McCONVILLE, Michael; SANDERS, Andrew. Researching the discretion to

charge and to prosecute. In: SANDERS, Andrew. Prosecution in common law jurisdictions. Aldershot: Dartmouth, p. 225-243, 1996.

Page 112: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

112

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

112

LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali: fondamenti de una teoria generale. Trad. Alberto Febbrajo e Reinhard Schmidt. Bolonha: Il Mulino, 1990.

______. El derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Cidade do México: Herder, 2005.

______. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Cidade do México: Herder, 2007.

______. Organización y decisión. Cidade do México: Herder, 2010.MA, yue. Exploring the origins of public prosecution. International Criminal Justice Review,

v. 18, n. 2, p. 190-2011, jun. 2008.MACHADO, Bruno Amaral. Ministério Público: organização, representações e trajetórias.

Curitiba: Juruá, 2007a.______. Fiscalías. Su papel social y jurídico-político: una investigación etnográfico-

-institucional. Barcelona: Anthropos, 2007b.______. Representações sociais sobre o controle externo da atividade policial: cultura

organizacional e relações institucionais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 88, p. 273-314, jan./fev. 2011.

______. Discursos criminológicos sobre o crime e o direito penal: comunicação e diferenciação funcional. Revista de Estudos Criminais, n. 45, p. 77-116, abr./jun. 2012.

______. Justiça criminal e democracia. São Paulo: Marcial Pons/Fundação Escola Superior do MPDFT, 2013.

MANNING, Peter K. Police work: the social organization of policing. Prospect Heights: Waveland, 1997.

McDONALD, William F. The Prosecutor’s domain. In: McDONALD, William F. (Ed.). The Prosecutor. London: Sage, p. 15-51, 1979.

McINTyRE, Donald. Police-prosecutors relationship. In: DOUGLAS, John Jay. Prosecutorial relationship in criminal justice. Houston: National College of District Attorneys, p. 9-3, 1977.

MILLER, Frank W. Prosecution: the decision to charge a suspect with a crime. Boston: Litlle, Brown and Company, 1969.

MISSE, Michel (Org.). O inquérito policial no Brasil. Rio de Janeiro: NECVU/IFCS/UFRJ, 2010.

MONET, Jean Claude. Polícia e sociedade na Europa. São Paulo: Edusp, 2006.MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia. São Paulo: Edusp, 2003.MOUHANNA, Christian. Les relations police-parquet en France: un partenariat mis en

cause. Droit et Société, Paris, n. 58, p. 502-522, 2004.MORENO CATENA, Víctor. El proceso penal abreviado. In: GIMENO SENDRA, Vicente;

MORENO CATENA, Víctor; CORTÉS DOMÍNGUEZ, Valentín. Derecho procesal penal. 2. ed. Madrid: Colex, p. 765-804, 1997.

______. El proceso penal español. Algunas alternativas para la reforma. In: PALOMO DEL ARCO, Andrés. Sistemas penales europeos. Madrid: CGPJ, p. 15-62, 2002.

MUCHEMBLED, Robert. L‘invention de l‘homme moderne: culture et sensibilités du XV au XVIII siècle. Paris: Fayard, 1994.

Page 113: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

113113

POUND, Roscoe; PLUCKNETT, Theodore F. T. History and system of the common law. Rochester: The Lawyers Co-operative Publishing Company, 1927.

PLUCKNETT, Theodore. A concise history of common law. New york: Rochester, 1936.RASSAT, Michèle-Laure. Le Ministère Public entre son passé et son avenir. Paris: Librairie

Genérale de Droit et de Jurisprudence, 1967.RUSCONI, Maximiliano A. (1993). División de poderes en el proceso penal e investigación

a cargo del Ministerio Público. In: ROXIN, C.; MAIER, J. B. J.; RUSCONI, M.; GUARIGLIA, F.; BRUZZONE, G.; BERTONI, E.; FOLGUEIRO, H.; CERLETTI, M. El Ministerio Público en el proceso penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, p. 97-110, 1993.

RUIZ VADILLO, Enrique. El principio acusatorio y su proyección en la doctrina jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo. Madrid: Actualidad Editorial, 1994.

SANDERS, Andrew. Prosecution in common law jurisdictions. Aldershot: Dartmouth, 1996.SEIDL, David. Organization and interaction. In: SEIDL, David; BECKER, Kai Helge (Ed.).

Niklas Luhmann and organizational studies. Kristianstad: Kristianstad Boktruyckeri AB, p. 145-170, 2005.

STANKO, Elizabeth A. The arrest versus the case. In: SANDERS, Andrew. Prosecution in common law jurisdictions. Aldershot: Dartmouth, p. 181-200, 1996.

SKOLNICK, Jerome H. Justice without trial: law enforcement in democratic society. 2. ed. New york: John Wiley & Sons, In., 1967.

THOMAS, Simon. Disciplinamento social e combate à vadiagem no antigo regime. Sequência, n. 59, p. 121-139, dez. 2009.

VALVERDE, M. Police, sovereignty and law: foucaultian reflections. In: DUBBER, Markus D.; VALVERDE, Mariana. Police and the liberal state. Stanford: Stanford Law Books, p. 15-32, 2008.

VAN CAENEGEM, R. C. Judges, legislators and professor: chapter in European legal history. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

______. Legal history: a European perspective. London: The Hambledon Press, 1991.VELLANI, Mario. Il Pubblico Ministero nel processo. Bolonha: Nicola Zanchelli, v. 1, t. 1,

1965.VENNARD, Julie. Decisions to prosecute: screening policies and practices in the United

States. In: SANDERS, Andrew. Prosecution in common law jurisdictions. Aldershot: Dartmouth, p. 157-166, 1996.

VOGLIOTTI, Massimo. Les relations police-parquet: un équilibre menacé? Droit et Société, Paris, n. 58, p. 453-497, 2004.

WALKER, Samuel. Taming the system: the control of discretion in criminal system, 1950-1990. New york: Oxford University Press, 1993.

WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. 10. ed. Trad. José Medina Echavarría, Juan Roura Farella et al. Madri: Fondo de Cultura Económica, 1993.

yARDLEy, D. C. M. English courts of law. Oxford, UK: Oxford University Press, 1979. ______; HANBURy, H. G. English courts of law. Oxford: Oxford University Press, 1979.ZACHARIAS, F. C. The professional discipline of prosecutors. North Carolina Law Review,

79, p. 721-778, 2001.

Page 114: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira
Page 115: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

115

“ESCOLA POSITIVA” E A CONSTRUçãO DA IDENTIDADE CIENTÍFICA DE JOÃO

VIEIRA DE ARAúJO (1884-1889)*

itAliAn “positivist sChool” And the ConstruCtion of the João vieirA de

ArAúJo’s sCientifiC identity (1884-1889)ricArdo SontAg**

RESUMO: O penalista João Vieira de Araújo é conhecido por ter sido um dos primeiros a ter sofrido a “influência” da “escola positiva” italiana no Brasil. A imagem da “influência”, porém, não é capaz de desnudar a dinâmica da recepção das ideias positivistas nos tex-tos de João Vieira. A partir da abordagem de um período chave da sua carreira – 1884 a 1889 –, o objetivo deste trabalho é exatamente determinar, de maneira mais articulada, as formas dessa recepção. Trata-se, então, de “dobrar” o discurso de João Vieira e “friccioná--lo” em três aspectos: o dos gestos de adesão à “escola positiva”, o do influxo concreto dessas ideias na elaboração dos institutos jurí-dicos em específico e na elaboração de uma plataforma de reformas para o ordenamento jurídico brasileiro (já que o reformismo é um traço importante da “escola positiva”). A dinâmica da recepção da “escola positiva” revelou-se diferente em cada um desses planos, a ponto de os eloquentes gestos de adesão conviverem com uma gran-de timidez no plano das reformas. PALAVRAS-CHAVE: História do direito penal; ciência do direito penal; “escola positiva”; “escola positiva” no Brasil; João Vieira de Araújo.

* Este artigo é um dos resultados parciais da tese de doutorado orientada pelo Professor Paolo Cappellini e defendida no Dipartimento di Teoria e Storia del Diritto da Università degli studi di Firenze (Itália).

** Doutor em Teoria e História do Direito pela Università degli studi di Firenze (Itália), mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Graduado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Integrante do Ius Commune (Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica – CNPq/UFSC) coordenado pelo Prof. Arno Dal Ri Júnior. Professor de História do Direito na Universidade Comunitária da Região de Chapecó.

Page 116: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

116

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

116

ABSTRACT: João Vieira de Araújo is better known for being one of the first Brazilian scholars to be “influenced” by the Italian “posi-tivist school” in Brazil. The idea of “influence”, however, does not properly translate the dynamics of the reception of the positivist ideas in João Vieira’s writings. By analyzing an important moment of his career – from 1884 until 1889 – the aim of this article is to deter-mine in a more articulated way the ways of this reception. This will be done by “bending” and “rubing” the João Vieira’s speech in three dimensions: the gestures of adhesion to the “positivist school”; the concrete importance of these ideas in the construction of the legal institutions in particular and in the drafting of a reform platform for the Brazilian legal system (because the reformism is an impor-tant trait of the “positivist school”). The dynamics of the reception of the “positivist school” ideas proved to be different in each of these plans: for example, the eloquent gestures of adhesion to the “positi-vist school” coexisted with a timid reformism.KEyWORDS: History of criminal law; criminal law science; italian “positivist school”; italian “positivist school” in Brazil; João Vieira de Araújo.SUMÁRIO: Introdução; 1 1884: somente “simpatia”; 2 1888 em dian-te: eloquentes gestos de adesão versus timidez reformista; Conclu-sões; Referências.

INTRODUçãO

No famoso livro de Clóvis Bevilácqua ([1927] 1977, p. 340-341) sobre a história da faculdade de Direito do Recife, toda uma parte é dedicada à figura de João Vieira de Araújo:

[João Vieira] entrou para a Faculdade de Direito do Recife, como substitu-to, em 17 de dezembro de 1877, e foi promovido a catedrático a 7 de março de 1884 (datas das posses). [...] João Vieira pertenceu ao grupo estudioso, a que se deu o nome de escola do Recife, na sua fase jurídica, ou, antes, aos que lhe prepararam, a princípio, o advento, e, depois, se deixaram arras-tar pelo movimento. Adotara os princípios da doutrina evolucionista de Spencer, Ardigò e outros mestres italianos. Especializando-se no Direito criminal, seguiu a orientação da escola de Lombroso, Ferri e Garofalo; en-tretanto nem foi jamais um sectário intransigente, nem se restringiu a cul-tivar o Direito criminal. [...] Foi, porém, como criminalista que ele conquis-tou um lugar distinto em nossa literatura jurídica. No Ensaio de direito penal, em 1884, já se acentua a orientação do seu espírito, mantida nos trabalhos mais modernos, que, se revelam maior erudição, e maior madureza mental, em nada modificam os princípios filosóficos.

Depois de indicar os temas das cinco lições introdutórias do livro En-saio de direito penal (1884), Bevilácqua descreve o “corpo” do livro: “[O] corpo

Page 117: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

117117

é o consagrado ao estudo do crime e da pena, em face do Código Criminal; e das citações, tanto quanto das ideias expostas, se verificam serem Hauss, Carrara, Pessina, Tolomei, Buccelatti e Tobias Barreto os principais inspirado-res desta parte do livro”. E, depois, elogia o principal livro de João Vieira: “O Código Criminal brasileiro (1889) já não é mais um ensaio. É um tratado no qual as ideias adquiriram a sua forma definitiva, e onde os ensinos de Lombroso, Ferri, Garofalo, Krafft-Ebing são, inteligentemente, assimilados, sem desprezo dos Alimena Turati, Tarde e Garraud” (Bevilacqua, [1927] 1977, p. 340-341).

O percurso que será experimentado aqui, de certa forma, parte da di-ferença que Bevilácqua deixou entrever entre o João Vieira de 1884 e o de 1889. Uma trajetória, porém, que não é simplesmente o linear caminho da maturidade intelectual, mas o resultado de gestos diferenciados em cada um dos momentos.

Em termos concretos, o objetivo deste trabalho é analisar como se deu a recepção da “escola positiva” nos textos de João Vieira, ou seja, trata-se de articular a tese geral da “influência” positivista na sua obra.

No livro de 1884, é perceptível, sim, já uma “simpatia” pelas ideias positivistas, mas o objetivo dessa parte será demonstrar como se tratava so-mente de uma simpatia, como o foco de João Vieira estava muito mais em estabelecer um diálogo com a ciência do direito penal italiana de um modo geral. Por essa razão, autores considerados “clássicos” como Francesco Carrara aparecem com frequência e no posto de autoridade como todos os outros. O influxo das ideias positivistas nos institutos jurídicos em específico é muito tímido. Além disso, uma característica do pensamento da “escola positiva” é a tendência ao reformismo – a ponto de os juristas “tradicionais” considerarem os seguidores de Lombroso um perigo para os pilares da civi-lização jurídica –, e os acenos à reforma do ordenamento jurídico brasileiro são muito raros.

Os textos publicados a partir de 1888 assinalam um modo diferente de apropriação dos textos positivistas. Os “gestos de adesão” são muito mais explícitos, isto é, começa a aparecer com frequência a referência ao binô-mio “escola clássica versus escola positiva”, e, não por acaso, a posição de Francesco Carrara muda: não mais uma autoridade como todas as outras, mas um representante da “escola” adversária que é preciso evitar. As tentati-vas de fazer incidir as ideias positivistas na análise dos institutos jurídicos em específico aumentam, apesar de, muitas vezes, elas terem se revelado “trilhas interrompidas”. Mas a principal “trilha interrompida” continuou sendo a do reformismo, que permaneceu bastante tímido. Uma timidez que tem relação com a específica situação do contexto brasileiro, e da visão que um brasileiro

Page 118: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

118

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

118

como João Vieira tinha daquilo que estava acontecendo no “berço” da “escola positiva” no âmbito da elaboração do Código Penal unitário italiano com o chamado projeto Zanardelli.

Colocar em fricção, portanto, alguns planos em que a “escola positiva” aparecia nos textos de João Vieira a fim de construir um quadro menos estáti-co do modo de funcionamento dos seus textos e da sua identidade científica. Desse ponto de vista, não se trata de tomar o binômio “escola clássica versus escola positiva” como uma descrição exaustiva dos embates existentes no di-reito penal brasileiro ou italiano do final do século XIX1, mas sim, de maneira menos pretensiosa, como um dispositivo de construção de identidades, e é nesse sentido que é importante avaliar como João Vieira operava com ele.

1 1884: SOMENTE “SIMPATIA”

O primeiro dos livros mencionados por Bevilácqua, o “Ensaio de di-reito penal ou repetições escriptas sobre o Código Criminal do Império do Brazil”, recolhia as aulas de direito criminal ministradas por João Vieira na Faculdade de Direito de Recife. O objetivo dele, declarado por João Vieira (1884, p. V) já no início da introdução, era “imprimir uma feição mais mo-derna às explicações que exige a parte philosophica do nosso Código”. Uma “feição mais moderna” significava Lombroso, Pessina, Tolomei – os três au-tores mencionados por João Vieira já na introdução do livro. “Filosofia”, por sua vez, deveria significar “filosofia científica” (Araujo, 1884, p. V). O termo provavelmente foi tomado de empréstimo da Rivista di Filosofia Scientifica, da qual João Vieira cita alguns artigos ao longo do livro.

Por causa das “novidades” da “filosofia científica”, o direito criminal, segundo João Vieira (1884, p. V), “há de [...] passar por tão profundas e ra-dicaes transformações quanto atrazadas e rotineiras são as concepções que delle fazem legislações e autores contemporâneos”. Radicais novidades, alta velocidade de desenvolvimento da ciência, progressos futuros da legislação que deveria correr atrás das novas concepções científicas. Nesse momento, o “atraso” da legislação é um juízo genérico. Já no plano científico, João Vieira (1884, p. VI) especifica quais eram as concepções mais avançadas: Lombroso e os seus seguidores na Itália, enquanto franceses, belgas e outros “se acham na retaguarda do movimento scientifico moderno nesta parte”.

A propósito das reformas, a principal força motriz da (futura) transfor-mação radical do Direito, segundo João Vieira, é a “escola positiva”. Nessa

1 Seguindo a advertência de Sbriccoli, [1990] 2009.

Page 119: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

119119

parte da introdução, ele recorda o livro de Cesare Lombroso, O homem delin-quente. Mas a questão da relação entre João Vieira e a “escola positiva” não se resolve assim facilmente. Dois indícios preliminares: primeiro, as refor-mas radicais não são desenvolvidas nas páginas sucessivas do livro. Ou seja, Lombroso é lembrado somente na introdução, mas não é utilizado depois. As primeiras lições – quase cinquenta páginas em um universo de duzentas e vinte e cinco – estão plenamente imersas, é verdade, no evolucionismo, no cientificismo, no positivismo. A citação de Lombroso na introdução e de ou-tros dois “positivistas menores” (Sergi e Poletti) nas primeiras cinquenta pá-ginas são sinais claros de que João Vieira, desde 1884, olhava com simpatia2 para as ideias da “escola positiva”. Em segundo lugar, a ausência de Ferri, Garofalo e do próprio Lombroso, mesmo nas lições introdutórias, é um indí-cio a ser levado a sério. Além disso, depois das primeiras cinquenta páginas, os positivistas desaparecem quase completamente.

A incompleta adesão de João Vieira à “escola positiva” nesse livro de 1884 foi percebida, também, pelos seus contemporâneos. É eloquente o testemunho de um texto com grande tendência em reconhecer uma adesão nos mais frágeis indícios: trata-se do artigo do positivista italiano Giovanni Albano sobre João Vieira publicado na edição de 1889 do “Archivio di psichia-tria, antropologia criminale e scienze penali per servire allo studio dell’uomo alienato e delinquente” de Lombroso. Trata-se de um pequeno comentário ao Ensaio de direito penal (1884) e a um breve artigo de 1888 intitulado “A nova escola de direito criminal”. Nas páginas do “Archivio” ou da revista Scuola Positiva, são publicados com frequência comentários a livros e artigos, geralmente no sentido de enfatizar a expansão da “scuola”. Esse artigo sobre João Vieira in-

2 O uso da palavra “simpatia” pretende lembrar uma distinção do velho artigo do jurista brasileiro Evaristo de Moraes sobre os primeiros positivistas brasileiros. Nesse escrito dos anos trinta do século XX, Moraes constrói uma distinção entre os “simpáticos” ao positivismo e os positivistas a pleno título (adeptos). Talvez não seja coincidência o fato de Moraes (1939, p. 147-148) reservar a uma obra posterior a memória pioneira: “[...] fora ele [João Vieira] quem, antes de todos, se mostrara mais bem informado das teorias criminológicas de Lombroso, Ferri e Garofalo e as inculcara, em 1889, no seu Comentário filosófico-científico do Código Criminal”. Além disso, ele atribui os predicados mais positivistas a outros personagens (como Francisco Viveiros de Castro), enquanto na economia da sua descrição o papel de João Vieira parece limitar-se (somente?) ao de pioneiro. Antes de João Vieira, Moraes lembra, também, que Tobias Barreto conhecia a obra de Lombroso, porém, ao contrário de João Vieira, ele tinha uma atitude bastante crítica em relação ao expoente da “escola positiva” italiana.

Page 120: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

120

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

120

sere-se exatamente entre esses discursos que são dispositivos de construção identitária da “scuola”.

A descrição de Giovanni Albano do livro Ensaio de direito penal inicia identificando um verdadeiro abismo entre a “parte positiva” e a parte inicial sobre os “princípios gerais do direito de punir”. De fato, não obstante todas as ressalvas que se poderiam fazer sobre a adesão ao positivismo na parte ini-cial (como a ausência quase completa de Lombroso, Ferri e Garofalo), o abis-mo realmente existe: nas primeiras lições, o discurso de João Vieira move-se plenamente num plano que poderíamos chamar tranquilamente de positivis-ta, ao menos em comparação com a segunda parte. Por esse motivo, Albano afirma que a parte de maior interesse do livro é a inicial. É perceptível como o único objetivo do artigo é reafirmar a “scuola”: ora, na parte inicial, João Vieira “confessa” que não havia ali nenhuma reflexão original, mas somente cópia (de autores da órbita positivista). Nessa parte inicial, quase todas as lições indicam o texto sobre o qual se baseara.

Sobre a segunda parte, ao contrário, é possível entrever um juízo ne-gativo exatamente porque os pontos de apoio de João Vieira eram excessiva-mente “clássicos”:

[I]l saggio di diritto penale che l’A. pubblicava a Pernambuco cinque anni fa, non è altro, e specialmente nella parte positiva, che un’esposizione precisa ed esatta, anche troppo mi pare, delle teorie sostenute fra noi dal Carrara, dal Pessina, dal Tolomei e da altri; e da lui applicate all’esplicazione del codice penale brasiliano. L’A., per altro, lo dichiara francamente nella prefazione, e non sarò io che gli farò torto, d’aver seguito le orme dei nostri giuristi classici. (Albano, 1889, p. 218)

E tem razão Albano: Carrara, Pessina e Tolomei são as autoridades mais citadas durante a segunda parte do livro.

Tomemos o exemplo de Carrara, o “clássico dos clássicos” na visão positivista. As referências a Carrara permeiam toda a segunda parte do livro. Ele é lembrado explicitamente vinte e quatro vezes no arco de pouco mais de cento e setenta e cinco páginas, isto é, em mais de 75% do livro. Somente duas vezes a citação foi feita em tom crítico – pequenas críticas a uma opinião es-pecífica de Carrara sobre a condição feminina no direito penal (Araujo, 1884, p. 87-88) e a uma opinião sobre a cumplicidade (Araujo, 1884, p. 165). Essa presença de Carrara é eloquente; e é preciso sublinhar que não é uma simples presença: trata-se de uma presença qualificada pelo fato de que quase sem-pre ele aparece como argumento de autoridade. Vale a pena sublinhar esse aspecto porque estamos diante de um sinal muito evidente de uma ausência:

Page 121: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

121121

não existem indícios, nesse livro, das disputas identitárias em torno do binô-mio “escola clássica versus escola positiva”.

Digna de nota, ainda, a presença de Carrara em uma passagem delica-da para os positivistas: a imputabilidade. Sob a “sombra dos juristas clássi-cos”, para usar as palavras de Albano, João Vieira (1884, p. 62) ergue as defi-nições relativas à imputabilidade: “[D]ada uma acção criminosa, o seu lado subjectivo implica o conhecimento da lei, a previsão dos effeitos, a liberdade de escolha e a vontade de pratical-as”. Na explicação dessas condições, a au-toridade de Carrara: “[A]s duas últimas [condições] se resumem na fórmula concurso da vontade, porque a liberdade é um attributo indispensável da vontade, de tal sorte que esta não pode existir sem aquella, como não pode haver matéria sem peso (Carrara)” (Araujo, 1884, p. 63). E outra passagem bem pouco positivista: “[O] direito não é infringido senão por seres racionaes e livres” (Araujo, 1884, p. 65). Revelando uma verdadeira prevenção contra algumas ideias positivistas, mais adiante João Vieira (1884, p. 79) afirma: “[N]em a herança, nem a psychose criminal como um aspecto de qualquer nevro-se são uma objeção séria contra a imputabilidade”.

De qualquer maneira, é bem verdade que João Vieira não levava às úl-timas consequências a premissa da “liberdade”. Não há, nos seus textos, ne-nhuma defesa filosófica decidida do princípio, mas simplesmente o reconhe-cimento que a liberdade é um pressuposto inarredável, um aforismo extraído daquilo que parecem ser as condições regulares do homem. Ir além, segundo João Vieira, seria tropeçar na “filosofia pura”, na “metafísica” (Araujo, 1884, p. 62). Quando João Vieira se aproxima das ideias mais ou menos positivis-tas, o desenvolvimento delas costuma ser “interrompido”:

[S]e nós fôssemos estudar o conceito de imputabilidade a fundo teríamos de fazer uma longa digressão pelos domínios de uma sciencia chamada anthropologia criminal. Mesmo se quizessemos referir-nos a phenomenos ou a dados sociológicos, teríamos de estudar o homem, como ser social influenciado por causas internas e externas, intelligencia, sentimentos, na-tureza physica nos seus differentes graos de evolução, factores externos de toda ordem etc. etc. Ainda a questão psychologica nos levaria muito longe. Já tivemos occasião de ver como o caracter, a conducta humana se produ-zem e agem no meio social. (Araujo, 1884, p. 77)

E a conclusão do raciocínio também aponta para uma “interrupção”: segundo João Vieira (1884, p. 78), “[e]ssas questões nos levariam muito lon-ge”. No subcapítulo seguinte, é interessante notar que ele retoma as reflexões da primeira parte do livro – a parte mais próxima do positivismo – exata-mente para sublinhar essa posição defensiva: “[N]ós devemos, observando

Page 122: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

122

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

122

a realidade das cousas, estudando a gênese do crime, accentuar, como já fi-zemos, que elle é constituido por uma acção ou omissão, causada, praticada pelo homem” (Araujo, 1884, p. 78). Ou seja, todas as prevenções possíveis contra qualquer tipo de determinismo. Avançar no sentido do determinismo não é mais do que “metafísica”; o terreno seguro e positivo é o do “dogma” da liberdade3.

O uso de um tradicional argumento antipositivista – a liberdade como dogma necessário – é significativo nessa parte do discurso de João Vieira em que se verifica a ausência de teorias estritamente positivistas na questão central da imputabilidade. Seria arriscado avaliar o discurso de João Vieira somente a partir das ausências, mas, como simples indício, juntamente com todos os outros trazidos até agora, é válido indicar outras ausências impor-tantes: a defesa social como leitmotiv de um projeto de sistema penal pres-suposto às doutrinas especificamente jurídicas; nenhuma crítica à função de prevenção geral das penas ou às penas enquanto tais; as palavras “temibili-dade” ou “periculosidade” praticamente não são pronunciadas4.

3 “[D]evemos acceitar que o homem é livre como um aphorismo. A pesquiza metaphysica da liberdade será em pura perda. A liberdade é um postulado” (Araujo, 1884, p. 78).

4 Uma pequena exceção: na descrição do percurso histórico do aspecto subjetivo do crime no direito penal, existe uma referência que, talvez, possa ser encaixada no conceito de “temibilidade”/”periculosidade”. A primeira fase descrita por João Vieira (1884, p. 64) é aquela em que o aspecto subjetivo do crime seria considerado de maneira exclusiva, em que “a relação de culpabilidade se transmitte por via hereditária do primeiro culpado aos seus descendentes [...]. O aspecto subjectivo do crime veio mais tarde e foi um progresso”. Até aqui, trata-se da culpa como o critério moderno que teria circunscrito a aplicação da pena, mas, olhando para o futuro, João Vieira acrescenta: “[N]o caracter do indivíduo está collocada, ora a probabilidade de repetição da culpa, uma vez commetida, ora a garantia que acções semelhantes não se repetirão no futuro. Reconhecer por isso as razões subjectivas de uma acção ministra exactamente à sociedade o critério para julgar dos perigos futuros provenientes da mesma origem. Assim se adquirio um ponto de vista novo para a apreciação do valor moral das acções humanas, um ponto de vista que sem dúvida nasce primitivamente do mesmo conceito fundamental da culpa, mas que pode abrir à theoria e à prática um horisonte mais vasto”. Apesar da insistência na palavra “culpa” – com a qual tantos positivistas se sentiam, por assim dizer, “desconfortáveis” – a “probabilidade de repetição”, os “perigos futuros provenientes da mesma origem”, parecem ideias próximas à “temibilidade”/”periculosidade”. O autor citado por João Vieira nesse fragmento, porém, não é nenhum dos juristas positivistas, mas o psiquiatra alemão Emil Kraepelin, em um artigo publicado na Rivista di Filosofia Scientifica em 1883. De qualquer forma, trata-se, mais uma vez, de uma trilha interrompida: não existem desenvolvimentos ulteriores da ideia

Page 123: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

123123

Portanto, Giovanni Albano tinha motivos para, de um ponto de vista positivista, emitir um juízo nada entusiasta sobre esse livro de 1884. Mas a resenha de Albano foi feita tardiamente, isto é, em 1889. Nesse momento, ele pôde avaliar, também, outro pequeno artigo de João Vieira intitulado “A nova escola de direito criminal”, e é esse segundo texto que explica a exis-tência da resenha nas páginas do “Archivio”. No livro de 1884, o positivismo aparece muito mais como uma “trilha interrompida”, em função de explícitas desconfianças ou de falta de articulação entre a primeira e a segunda parte. Quando existiam “aberturas” – quase em contradição com as ideias circun-dantes –, elas eram adiadas para o futuro ou para um espaço de reflexão que ultrapassava os limites e os objetivos do livro.

Toda a “falta” de positivismo no livro de 1884 é simplificada por Albano e qualificada como uma tendência não desenvolvida plenamente – tendência que, segundo Albano (1889, p. 219), no artigo de 1888,

è giunta al termine della sua evoluzione, decidendosi tutta in favor nostro. [...] Al prof. Vieira, dunque, che promette d’esser l’interprete autorevole dei nostri ideali, laggiù nell’Impero del Brasile, noi mandiamo il nostro saluto. Intanto sottoponia-mo ancora quest’altra vittoria alla buona fede di quelli che vanno predicando la sterilità e la scarsa diffusione delle idee della scuola positiva.

2 1888 EM DIANTE: ELOqUENTES gESTOS DE ADESÃO versus TIMIDEz REFORMISTA

Apesar de todas as cautelas que devem ser tomadas diante de dispo-sitivos discursivos de construção identitária como os do artigo de Giovanni Albano, é verdade que, entre o livro de 1884 e o pequeno texto de 1888 de João Vieira, existe uma visível distância.

O subtítulo do artigo de 1888 é “os juristas italianos E. Ferri, F. Puglia e R. Garofalo”. Nesse texto, João Vieira já estava decididamente dentro do jogo positivista: o discurso é organizado com base, exatamente, no binômio “es-cola clássica versus escola positiva”. Depois de uma referência ao “trabalho monumental do célebre médico anthropólogo Cesare Lombroso”, João Vieira (1888, p. 481) acrescenta:

[...] os juristas metaphysicos e clássicos, não comprehendendo que as scien-cias moraes e políticas, inclusive o direito, não podem ficar fora do concerto

ao longo deste livro de 1884 justamente porque ele a considerava importante no futuro do direito penal. Em suma, uma ideia que “que pode abrir à theoria e à prática um horisonte mais vasto”.

Page 124: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

124

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

124

universal das outras sciencias, porque a philosophia as domina todas, es-bravejaram inutilmente contra as novas ideas.

Na descrição da diferença entre a “escola clássica” e a “escola positiva”, João Vieira seleciona dois elementos extraídos da esquematização ferriana: o crime versus o delinquente, e a diminuição das penas versus a diminuição da criminalidade (Araujo, 1888, p. 482).

Para os nossos fins, não é necessário seguir página por página esse ar-tigo de João Vieira, porque todo ele não é mais do que um elogio aos “pro-gressos científicos” trazidos pelos positivistas italianos. Citações, palavras de ordem, sem qualquer pretensão de acrescentar reflexões próprias: uma obra de propaganda. Existe, porém, um dado relevante que se insinua na seleção feita por João Vieira dos elementos dignos de menção: mesmo as propostas e ideias mais “renovadoras” da “scuola” são mencionadas. Exemplos: as mudanças no conceito de imputabilidade (Araujo, 1888, p. 482 e 486); a lei da saturação crimi-nal de Ferri (Araujo, 1888, p. 482); a teoria dos substitutivos penais e o discurso da ineficácia das penas (Araujo, 1888, p. 483-484); o delito natural garofaliano (Araujo, 1888, p. 486). Todos esses elementos quase sempre circundados de afirmações de princípio genéricas e sem desenvolvimentos ulteriores.

Em janeiro de 1889, João Vieira escreve outro artigo dedicado à “esco-la positiva”, intitulado genericamente “Anthropologia criminal”. Mais uma vez, um texto de propaganda. Além disso, ele começa retomando exatamente a resenha publicada no “Archivio” de Lombroso, e o faz tornando pública uma carta que lhe fora escrita pelo próprio Lombroso:

Há pouco tive occasião de fazer no Diário de Pernambuco uma ligeira re-censão de obras dos chefes (juristas) da escola criminal positiva em dous artigos, a respeito dos quaes o patriarcha da anthropologia criminal, o sá-bio Lombroso, disse-me agora em carta: “Io ho letto i due articoli stupendi del Diario che popolarizzono così bene le nostre idee”. (Araujo, 1889c, p. 177)

De fato, mais uma vez, a “popularização” é o leitmotiv.

As dramatis personae são praticamente as mesmas também, dessa vez com algumas anotações críticas a Gabriel Tarde.

Nos aspectos enfatizados por João Vieira, exatamente como no artigo do ano anterior, não há qualquer prevenção em falar dos aspectos mais radi-cais do pensamento de Ferri ou de Garofalo. Em termos de aceitação da pro-paganda (ainda que de ideias radicais), João Vieira provavelmente confiava na força de sedução que ideias novas (e estrangeiras) poderia ter entre os juristas brasileiros. Além disso, a “popularização” mesmo das ideias mais ra-

Page 125: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

125125

dicais certamente tinha um forte valor de declaração de pertencimento – um fantasma que, muitas vezes, sobrepôs-se à tendência de procurar a autonomia intelectual na história do pensamento jurídico brasileiro. O que encontramos reproduzido, então, nesse artigo de João Vieira? A necessidade de fundar a ciência jurídico-penal na antropologia e na psiquiatria criminal, que, por sua vez, fundar-se-iam no estudo do homem delinquente; as palavras de ordem contra a “metafísica”, contra o “livre-arbítrio” e contra a “responsabilidade moral”, com todas as consequências em favor de um sistema penal fundado na “temibilidade” e no tratamento diferenciado segundo a “classificação dos delinquentes”, que poderia, então, abdicar da distinção entre sãos e loucos (Araujo, 1889c, p. 178-182) etc.

Até agora, com esses dois artigos, estamos diante de eloquentes “ges-tos de adesão”, e João Vieira “sustenta” – “popularizando-os” – inclusive os mais radicais horizontes da “escola positiva” para a reforma do sistema penal. Porém, um traço importante do reformismo da “escola positiva” é a capacidade de elaborar institutos jurídicos específicos, não permanecendo, assim, somente no plano das formulações genéricas. Os eloquentes gestos de adesão de João Vieira não respondem imediatamente à pergunta sobre o influxo concreto dessas ideias na construção dos institutos jurídicos.

Em um parecer de 1888 sobre a relação entre premeditação e paixão, é possível iniciar a verificação do influxo da “escola positiva” em temas jurídi-cos mais específicos. O quesito inicial era colocado de maneira abrangente: “[N]a psychologia criminal a premeditação e a paixão são antinômicas?”; e a pergunta subsequente indicava um problema aplicativo: “[N]o caso nega-tivo, são conciliáveis as disposições do art. 16, § 8º, do Código Criminal e as dos arts. 10, § 3º, 18 e 19?” (Araujo, [1888] 1889, p. 5).

Os “gestos de adesão”, nesse artigo, são bastante claros: João Vieira começa o discurso afirmando que a pergunta colocada dividia “clássicos” e “positivistas”, e cita como expoentes da “anacrônica” teoria “clássica” todas as “autoridades” do seu livro de 1884 (Tolomei, Carrara, Pessina etc.). João Vieira, nesse aspecto, considerava o Código Criminal brasileiro de 1830 bas-tante “clássico”, mas nenhuma proposta de reforma é avançada, provavel-mente por causa do “gênero literário” desse artigo: um simples parecer sobre a possibilidade de aplicação concomitante de alguns dispositivos do Código.

Em 1889, João Vieira publica um artigo sobre o estupro que se pres-ta à mesma verificação. Todo o discurso é uma tentativa de ser positivista na interpretação de um tipo penal específico. João Vieira tenta dar um en-quadramento garofaliano ao problema: o estupro como “delito natural” e como ofensa ao “sentimento de piedade”, com a ajuda de outros positivistas

Page 126: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

126

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

126

no desenvolvimento das ideias conexas (Lombroso, Ferri, Puglia etc.). Mais uma vez, o “clássico” Carrara aparece sob críticas: o binômio “escola clássica versus escola positiva” como dispositivo de identificação estava em plena ati-vidade. Carrara “sob crítica”, na verdade, é um eufemismo: a expressão uti-lizada por João Vieira para criticar a opinião de Carrara sobre a consumação do estupro é “curteza de mente” (Araujo, 1889d, p. 12).

Sobre o tipo penal estupro do Código brasileiro, João Vieira não tinha nenhuma ideia de reforma para propor. Sobre a parte geral, dois institutos aparecem na sua análise: a tentativa e a responsabilidade. Sobre a tentativa (art. 2º, § 2º), dessa vez, nenhuma proposta de reforma, porque o problema central era a disposição da parte especial sobre o estupro. Sobre a responsa-bilidade, existe uma proposta de reforma, por assim dizer, “pressuposta”, e que não toca diretamente ao texto do Código. Porém, a conclusão de João Vieira (1889d, p. 7) sobre o assunto, na verdade, é um atalho muito defensivo.

[...] [s]e o crime pode ter como origem o vício ou a moléstia, e os delinqüen-tes podem ser considerados sãos ou doentes, esta grande divisão determina a prática aconselhada pela sciencia, fundada na diversidade de sancções, a pena propriamente e o hospício penal, instituição tão bem defendida por E. Ferri.

Apesar do uso da expressão ferriana “sanção” como termo geral e da menção explícita a Ferri, tomar a divisão entre “sãos” e “doentes” como a grande divisão do direito penal não corresponde às complexas classificações de delinquentes sobre as quais o positivismo ferriano pretendia fundar a di-versidade de respostas sancionatórias. Além desse aspecto – que pode ser considerado uma variação do pensamento de João Vieira, já que, em outras ocasiões, ele revela pleno conhecimento da questão das classificações dos de-linqüentes no pensamento positivista –, a reforma pressuposta é a construção de manicômios judiciários.

A inexistência de manicômios judiciários no Brasil conduz João Vieira a uma interpretação que simplesmente riscava dois dispositivos legais do or-denamento brasileiro da época: o “clássico”, mas ainda presente, dispositivo sobre a inimputabilidade com as duas únicas consequências legalmente pre-vistas para os “criminosos loucos”: o tratamento em “casas para elles desti-nadas” ou entrega para a família (art. 12). João Vieira, por sua vez, propunha que os “loucos criminosos” fossem igualmente submetidos a penas5.

5 “[...] se nos não temos hospícios penaes para os criminosos declarados loucos que matam, estupram ou roubam impunemente, não sendo mesmo recolhidos aos asylos communs, a

Page 127: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

127127

Conclusão positivistamente curiosa: o uso do conceito de “temibilida-de” não para diferenciar as respostas sancionatórias, mas para igualar. Além disso, talvez devamos anotar, ainda, uma segunda reforma pressuposta nes-se discurso de João Vieira: a eliminação da possibilidade de devolução do “louco criminoso” à sua família.

Agora, finalmente, chegamos à primeira grande oportunidade de João Vieira de aprofundar o seu positivismo para além das declarações de perten-cimento: o livro Commentario philosophico scientifico ao código criminal do final de 1889.

A resenha desse livro no “Archivio” de Lombroso tinha um tom mui-to diferente em comparação com o juízo expresso por Giovanni Albano em 1888, como vimos, sobre o Ensaio de direito penal de 1884. Dessa vez, o autor da resenha, Adolfo Zerboglio, conseguiu exercitar, de maneira mais linear, o pa-pel que se esperava desse “gênero literário” numa revista como o “Archivio”, isto é, afirmar a expansão da “scuola”. De fato, Zerboglio (1890, p. 108) não en-controu qualquer traço de “classicismo” para admoestar o colega brasileiro.

No início do Commentario, João Vieira (1889b, p. V) explicita o seu obje-tivo de “propagar as novas idéias”:

[R]econheço que a melhor forma de propagar as novas idéias não é o com-mentario e nem talvez mesmo um tratado ou curso geral e sim as mono-graphias sobre os pontos cardeaes da nova escola positiva criminal. [...] Mas lembrando-me de que Garofalo escreveo um livro completo sobre a matéria da parte geral dos códigos e desejando mostrar praticamente que o novo direito criminal pode illustrar e illuminar os códigos vigentes, pondo a descoberto nelles as partes que devem ser substituídas, não hesitei em preferir a forma que adoptei. Sou o primeiro a confessar que não fiz mais do que repetir lições dos mestres, applicando-a à interpretação do nosso código, que alias é um dos melhores da actualidade, apezar de votado em 1830, e invocando a attenção do legislador para úteis e possíveis reformas. Neste trabalho [...] o meu objectivo tem sido o estudo pelo amor do estudo, alliado ao desejo de servir ao meu paiz, collaborando como simples cida-dão com o meu fraco esforço individual na cultura do direito e no melho-ramento da legislação.

segurança da ordem e a tranqüilidade dos honestos e pacíficos exigem que aos loucos se applique as mesmas penas que aos sãos, quando por sua temibilidade offerecerem perigo, equivalendo a chamada irresponsabilidade moral no caso à plena impunidade real.” (Araujo, 1889d, p. 11)

Page 128: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

128

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

128

Reformismo versus prestígio do Código de 1830. Por duas vezes, nesse pequeno fragmento, João Vieira menciona como objetivo do livro a reforma da legislação vigente. Todavia, ele afirma que o Código brasileiro, apesar de vetusto, era um dos melhores ainda em vigor. Simples retórica nacionalis-ta? A resposta parece ser negativa. Por dois motivos: entre 1888 e 1889, João Vieira se opôs politicamente à substituição do Código de 18306; o peso do prestígio do Código parece realmente significativo porque o reformismo nas obras de João Vieira é menos eloquente em comparação aos expoentes da “es-cola positiva” italiana. Na tensão entre reforma e legitimação, pretender ex-trair dessa premissa que o livro era particularmente reformista é apressado. Ou melhor, parece mais plausível dizer o contrário: entre os polos reforma e legitimação, a obra de João Vieira tende mais para o segundo, apesar das declarações de princípio favoráveis às reformas mais “avançadas” e “van-guardistas” da “escola positiva”.

Sobre a relação entre o (discreto) reformismo e o prestígio do Código de 1830, na resenha ao livro de João Vieira de um jurista brasileiro simpático ao positivismo, A. J. de Macedo Soares (1889, p. 327-328), vemos a seguinte conclusão:

[...] é agradável, é satisfactorio ao espírito nacional apreciar quanto o gênio do principal auctor da lei criminal de 1830, o grande estadista Bernardo Pereira de Vasconcellos, anteviu e estampou na sua obra princípios e re-gras que, só muitos annos mais tarde, forão reconhecidos como verdadei-ras e fecundas doutrinas da sciencia criminal. E o A. não se descuida de patentear as excellencias do nosso Código, justificando-o, salvo questões de detalhe, nos grandes lineamentos de um systema que tem despertado a attenção dos mais illustres escriptores do direito criminal na Europa.

Evidentemente, nenhum jurista brasileiro duvidava que o Código de 1830, em suas linhas gerais, era “clássico”. Porém, a afirmação de Macedo Soares não era somente um lance de retórica. Os juristas positivistas – inclusi-ve João Vieira – procurarão identificar as linhas “heterodoxas” do Código de 1830 e qualificá-las como antevisões. A prova mais clara de que essa opinião

6 Trata-se do debate sobre a “nova edição official do Código Criminal de 1830”, em que João Vieira contrapôs-se ao futuro redator do Código de 1890, João Baptista Pereira, exatamente sobre a ideia de substituir o Código de 1830. Boa parte dos documentos relativos a esse debate foi coligida por João Vieira, em 1910, no volume intitulado “Nova edição official do Código Criminal brasileiro de 1830, ante-projecto (1889)”.

Page 129: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

129129

não era retórica vazia é a postura de João Vieira contra a substituição do Có-digo de 1830, exatamente entre 1888 e 1889.

Na introdução do Commentario, não estamos somente diante da enun-ciação de uma simpatia, como é o caso do “Ensaio” de 1884. Aqui, o que vemos são verdadeiros gestos de adesão que exprimem uma vontade de pertencimento muito clara. Desaparece, na introdução, qualquer referência a autores não positivistas, e, ao longo do livro, os positivistas serão largamente predominantes. Esses gestos de adesão tiveram ressonância na época. Mais uma vez, na resenha de Macedo Soares (1889, p. 327), lemos o seguinte:

[O] commentario do sr. dr. Vieira de Araújo é a franca e sincera adapta-ção do nosso Código às doutrinas da moderna criminologia, cujo início e progressos se incarnão nos estudos de Lombroso, Ferri, Garofalo, Pessina, Bruno Battaglia, Tolomei, Puglia e tantos outros, cada qual mais illustre, desses altíssimos talentos, que, arrancando o direito criminal dos nevoeiros da metaphysica, tem porfiado em assental-o em dados humanos, forneci-dos pela anthropologia e sociologia acerca do homem e da sociedade dos homens.

Apesar das palavras de Macedo Soares, o influxo concreto dos gestos de adesão de João Vieira na construção dos institutos jurídicos em específico ainda precisa ser avaliada. A resenha de um autor simpático ao positivismo como Macedo Soares e que faz uma lista excessivamente estendida de au-tores da “moderna criminologia” – com a estranha presença de Tolomei e Pessina, por exemplo – não pode ser a resposta definitiva a essa pergunta.

Ainda no plano dos gestos de adesão, dois aspectos sublinhados por Marcela Varejão (2005, p. 423) são significativos:

[N]el volume Código criminal brasileiro: commentario philosophico-scientifico del 1889 di João Vieira de Araújo, quasi l’ottanta per cento dei riferimenti bibliografici si rifanno alla teoria socio-giuridica di Garofalo e Lombroso, nonché ad altri posi-tivisti italiani minori seguaci di entrambi. Inoltre, in questo volume Vieira critica Pessina e Carrara come esponenti della scuola criminale metafisica (la scuola “clas-sica”), contraria alle teorie positivistiche. Tuttavia la sua non è una critica globale, come quella di Tobias Barreto. Vieira de Araujo infatti è d’accordo con Carrara quando questo presenta i punti di vista ritenuti “neutrali”, cioè non “compromessi con la metafisica”.

De fato, o caso de 1889 era diferente. Em 1884, profusão de citações de autoridade de Carrara, qualificado en passant como “moderno” (palavra ge-ralmente reservada aos próprios positivistas, ou seja, no caso, ele foi utilizado

Page 130: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

130

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

130

na acepção mais genérica de “mais atual”, o que gerava essencialmente o mesmo efeito: colocar Carrara praticamente no mesmo patamar “evolutivo” dos positivistas); já em 1889, no artigo sobre estupro, “curteza de mente” é a qualificação atribuída a Carrara; seguindo a tendência iniciada em 1888, no livro de 1889, as ideias carrarianas são quase sempre chamadas de “metafísi-cas” e acusadas de pertencerem a uma tendência de pensamento – “clássica” – excessivamente favorável aos réus.

Antes de se debruçar sobre os detalhes dessa questão, é necessário, para os objetivos deste trabalho, acrescentar uma observação à comparação de Varejão entre Tobias Barreto e João Vieira: é verdade que o primeiro é muito mais intransigente contra Carrara do que o segundo, mas eles não se moviam no mesmo plano de jogos identitários. Por esse motivo, a intran-sigência de Tobias Barreto contra Carrara não o aproxima de Lombroso. Barreto claramente considera Lombroso não tão problemático quanto Carrara, porém João Vieira, que é menos intransigente, identifica-se muito mais com Lombroso. Esses jogos de identificação tornam-se compreensíveis se levamos em consideração os diferentes planos nos quais eles se moviam: Tobias Barreto pretendia ser, substancialmente, um “germanista”7, e, assim, ele conseguia distanciar-se de Carrara sem escorregar na direção de Lombroso. Nesse âmbito, o próprio sentido do diálogo (ainda que crítico em alguns de-talhes) com Carrara tende a esvair-se. João Vieira, ao contrário, constrói o seu pertencimento em relação à penalística italiana, e, no interior dela, especifi-camente no jogo identitário que opunha “escola clássica” e “escola positiva”. Nesse sentido, as críticas a Carrara não são meramente quantificáveis. As di-vergências de João Vieira com Carrara em 1889 não são simples divergências, mas elementos que apontam para a própria construção da sua identidade científica, do pertencimento à “escola positiva”. Nesse sentido, quando João Vieira qualifica Carrara de “metafísico”, excepcionalmente com ideias não comprometidas por essa “metafísica”, a sua crítica é “global”. Desse ponto de vista, trata-se de uma crítica global porque existe um elemento considerado constitutivo que coloca cada qual em um campo claramente diferente. As ex-cepcionais concordâncias de opiniões específicas não mudam essas posições identitárias: nas críticas de João Vieira a Carrara em 1889, ele se preocupa em vincular as divergências, exatamente, à diferença identitária.

Ainda sobre a presença de Carrara no Commentario, é razoável pensar, como afirma Varejão, que os pontos em que João Vieira o evoca são aqueles

7 Sobre esse aspecto do pensamento de Tobias Barreto, cf. Losano, 1974 e 2000.

Page 131: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

131131

considerados não comprometidos com a “metafísica”, apesar de não exis-tir, ao longo do livro, afirmações explícitas nesse sentido. Isto é, João Vieira não chega a justificar a presença de Carrara. Poder-se-iam, ainda, acrescen-tar outras dimensões a essa análise: o fato, por exemplo, de as ideias positi-vistas não cobrirem, ainda, naquela época, todos os aspectos da parte geral de um código penal. Um exemplo muito claro é a parte sobre a “ordem”, o “mandato” e o “constrangimento”, em que Carrara é utilizado para explicar o Código brasileiro (Araujo, 1889b, p. 165). E, logo depois, na parte sobre a codelinquência, João Vieira diz explicitamente que a “escola positiva” ainda não tinha uma teoria elaborada a respeito (Araujo, 1889b, p. 131) e, portanto, além de buscar inspiração na teoria dos “mestres” (positivistas), era neces-sário também buscar os “clássicos” para conseguir chegar a um esboço de teoria “positiva”.

Vale a pena debruçar-se ainda sobre as menções a Carrara nesse livro porque nelas é possível enxergar, com clareza, os gestos de adesão de João Vieira à “escola positiva”. Um primeiro dado importante: é exatamente nes-sas menções que se percebe, com mais clareza, a recepção do binômio “esco-la clássica versus escola positiva”, que reorganizou, como vimos na análise de alguns artigos anteriores ao Commentario, o modo de funcionamento das ideias positivistas no interior dos textos de João Vieira.

As referências à distinção entre “clássicos” e “positivistas” aparecem em todo o livro. Bastará, aqui, trazer alguns exemplos, especialmente dos trechos em que Carrara é mencionado.

Há um fragmento na parte sobre circunstâncias agravantes e atenuan-tes que repete quase todas as palavras de ordem positivistas sobre as suas diferenças em relação aos “clássicos”: punibilidade do indivíduo “normal” versus exigência de defender-se também dos “anormais”; mitigação das pe-nas versus diminuição da criminalidade; estudo do crime versus estudo do criminoso (Araujo, 1889b, p. 303-304) etc. Sobre o último ponto, isto é, sobre o fato de que o estudo das circunstâncias agravantes e atenuantes empurra-ria a análise na direção da concretude do delito (e, por isso, à concretude do autor), João Vieira afirmava que esta era uma contradição interna dos “clássi-cos” (Araujo, 1889b, p. 300), e, assim, o binômio mantinha-se a salvo.

Em tema de irretroatividade, João Vieira criticava as exceções ao prin-cípio da irretroatividade em favor do réu, uma tendência, segundo ele, da “metafísica clássica”. E o seu principal representante seria, como era de se esperar, Carrara:

Page 132: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

132

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

132

[...] estaremos sempre premunidos contra a torrente clássica ou metaphy-sica, que por um dos seus órgãos, talvez o mais autorisado na Itália, assen-tava princípios como este: “n’esta matéria prevalece sempre o que mais se tornar em favor do accusado” (Carrara). (Araujo, 1889b, p. 25)

Sobre a punibilidade da tentativa de mandato, João Vieira (1889b, p. 151) menciona a supressão de um artigo do Código sardo no Código ita-liano de 1889 que havia impossibilitado a punição desse tipo de situação; uma supressão equivocada, segundo ele (e a autoridade positivista citada é Garofalo), e que se explicaria pela “influência dominante da escola tradicional que representada por Carrara e outros nega que haja tentativa de mandato em virtude do brocardo dos antigos práticos: mandans tenetur causa mandati, non ex mandato”.

A informação de Marcela Varejão sobre a profusão de citações de po-sitivistas italianos ao longo do texto e o modo de ele referir-se à Carrara, indicam muito claramente a “vontade de adesão” à “escola positiva”. Depois dessas conclusões genéricas, a recepção dessas ideias articula-se de várias formas.

Algumas vezes, por exemplo, os positivistas são citados em questões banalíssimas, para repetir ideias tradicionais – nesses casos estamos dian-te, por assim dizer, de gestos de adesão puros, que revelam simplesmente a vontade de tornar os textos positivistas os seus intertextos privilegiados, por razões de pertencimento “de escola”8. Outras vezes, o positivismo aparece como fundamento da reflexão, mas com uma relação frágil com a elaboração jurídica do instituto em questão9. Enfim, outra tipologia de recepção é aquela

8 Um exemplo desse caso é a referência a Lombroso para defender a expressão código “criminal” ao invés de “penal”: “o conceito de pena para a escola positiva que seguimos é muito diverso e muito mais genérico do que o da escola clássica, de modo a não exprimir o vocábulo penal, como se o entende commummente, uma idéia tão geral como exprime o qualificativo criminal” (Araujo, 1889b, p. 2). O problema é que o Código em questão – o brasileiro de 1830 – não se ocupava de outras medidas senão a tradicionalíssima pena em sentido estrito – e a situação continuará a mesma tanto no Código de 1890 quanto nos primeiros projetos de substituição deste último.

9 A relação frágil entre a elaboração do instituto jurídico e as ideias positivistas evocadas é perceptível, por exemplo, na parte sobre os crimes comissivos por omissão. O objetivo fundamental desta parte do livro era contradizer os juristas “clássicos”, que consideravam impossível esta hipótese. As autoridades utilizadas para essa operação eram, substancialmente, juristas considerados também “clássicos”, porque praticamente não havia teoria positivista sobre esse assunto. No final da argumentação, as ideias desenvolvidas são

Page 133: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

133133

em que o influxo das ideias positivistas conduz à elaboração teórica do ins-tituto jurídico, e, algumas vezes, aproveitando que a parte geral do Código de 1830 não era muito desenvolvida, inserindo interpretações convergentes com as ideias da “scuola”10. A “trilha interrompida”, mesmo na forma que podemos considerar a mais profunda de recepção – a última – é sempre a “reforma”.

Sobre a tentativa – instituto em que o influxo positivista é muito claro –, João Vieira tenta elaborar uma interpretação do art. 2º, § 2º, do Código de 1830 adequada à teoria subjetiva (Araujo, 1889b, p. 67). Esse artigo do Código brasileiro impunha duas condições para a configuração da tentativa, uma delas era o ato exterior que se configurasse como início da execução: “Art. 2º Julgar-se-ha crime, ou delicto: [...] 2º A tentativa do crime, quando fôr mani-festada por actos exteriores, e princípio de execução, que não teve effeito por circumstancias independentes da vontade do delinquente”. Segundo João Vieira, o problema era evitar absolvições com base nas condições objetivas exigidas por esse dispositivo legal. Como a definição do Código era bastante aberta e concisa em comparação com outros códigos, ele tenta reinterpretar de maneira positivista a lei. Então, João Vieira parte da teoria segundo a qual o ponto central da tentativa seria a “consumação subjetiva”, que revelaria a “temibilidade” do réu. Desse ponto de vista, o primeiro requisito da lei – os

conectadas ao positivismo, como na parte sobre a possível semelhança entre o que dizia Carrara com o que poderia pensar Lombroso com uma simples frase – a passagem que já foi colacionada anteriormente sobre a recepção de Carrara. No último parágrafo dessa parte, João Vieira afirma que, por causa do critério da “temibilidade”, um positivista não poderia aceitar a teoria de quem considerava impossível os crimes comissivos por omissão (Araujo, 1889b, p. 166), porém, a “temibilidade” é referenciada somente no último parágrafo, enquanto toda a teoria foi desenvolvida em outros trilhos.

10 Um caso muito claro de “trilha interrompida” encontra-se na classificação positivista dos delinquentes. Na parte sobre a codelinquência, sobre a distinção entre autor e cúmplice etc., João Vieira, em certo ponto, praticamente suspende o discurso para afirmar que essas distinções dos Códigos eram somente “nominais” e não forneciam “critérios seguros”. O “critério seguro” estaria na “temibilidade”, e ela exigia o conhecimento da classificação dos delinquentes (Araujo, 1889b, p. 139). Seguem mais de dez páginas para explicar as classificações positivistas (Araujo, 1889b, p. 139-150), com uma tabela comparativa entre as classificações de Ferri, Garofalo e Lombroso (Araujo, 1889b, p. 147). O problema é que toda essa digressão permanece praticamente paralela à elaboração do instituto jurídico porque não se explica como a “temibilidade” (e a classificação dos delinquentes) poderia substituir os critérios ditos tradicionais de distinção entre autor e cúmplice, nem na aplicação da lei vigente, nem como programa de reforma legislativa.

Page 134: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

134

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

134

atos exteriores – transforma-se em um sinal da tendência a delinquir do acu-sado (Araujo, 1889b, p. 64-66). Sobre o “princípio de execução”, João Vieira (1889b, p. 65-69) praticamente o esvazia criticando as distinções “clássicas” entre execução e atos preparatórios. A conclusão é que competiria ao juiz dar concretude a essas palavras da lei (Araujo, 1889b, p. 69). Em suma, “[n]o código do Brazil (art. 2º, § 2º) uma interpretação racional de que o juiz pode usar livremente, uma vez compenetrado da necessidade da defeza social, im-pedirá nesse terreno muitos casos de impunidade” (Araujo, 1889b, p. 65). Os espaços deixados pelo Código de 1830 para interpretações positivistas de alguns dispositivos legais são importantes, pois, tendo em vista o que estava ocorrendo na Itália com o projeto Zanardelli, um novo código com uma parte geral mais extensa, detalhada e “clássica” era o risco que João Vieira queria prevenir.

No capítulo sobre as circunstâncias agravantes e atenuantes, a premis-sa é sempre a crítica aos “clássicos” que, como vimos, segundo João Vieira, contradizem-se quando descem à análise das circunstâncias porque saem do plano abstrato do delito e utilizam as circunstâncias com o escopo de tornar a pena o mais determinada possível, cometendo o equívoco, porém, de ma-tematizar a medida das circunstâncias: é o sistema dos códigos da época, e também, segundo João Vieira, do Código brasileiro com os seus três graus de penalidade (Araujo, 1889b, p. 303). Era de se esperar, a essas alturas, uma crítica sistemática aos dispositivos “clássicos” do Código brasileiro. Algu-mas críticas foram levantadas, porém a tendência da argumentação de João Vieira foi perfeitamente inversa: apesar do “classicismo” do Código de 1830, João Vieira encontrava nele o influxo “heterodoxo” das ideias de Jeremy Ben-tham (Araujo, 1889b, p. 304) que fazia com que muitos dispositivos se tor-nassem defensáveis em termos positivistas. Não por acaso, mais de uma vez, Bentham foi elogiado pelos positivistas, não obstante ele fosse distante, in-clusive cronologicamente, da “scuola”. E o discurso de João Vieira sobre as circunstâncias é outro caso de “aproximação” proposto pelos positivistas e algumas ideias benthaminianas (Araujo, 1889b, p. 305).

Quase sempre João Vieira alinhou-se pela defesa do Código, algumas vezes com argumentos positivistas, isto é, considerando defensável o velho texto de 1830 sob as novas vestes positivistas. Por outro lado, existiam opi-niões críticas sobre o Código mais incisivas do que as de João Vieira a partir de perspectivas não positivistas. Como veremos mais adiante, a existência dessas opiniões provavelmente ajudam a explicar a postura contrária de João Vieira à substituição do “clássico” Código de 1830, já que uma reforma po-

Page 135: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

135135

deria consagrar tendências que, de um ponto de vista positivista, piorariam o sistema.

Na atenuante da embriaguez, é perceptível um duplo horizonte cons-tituído pela forma legal futura desejada pelos positivistas e a perspectiva da possibilidade imediata representada por uma interpretação positivista da lei vigente. Evidentemente, não poderia faltar, no discurso de João Vieira, uma digressão criminológica sobre a embriaguez como origem da maior parte dos crimes, a referência às taxas sobre as bebidas alcoólicas como substitutivo penal (Araujo, 1889b, p. 396-397) etc. Essa postura defensista resultava no re-clame pelo encarceramento por tempo indeterminado dos bêbados – na mes-ma forma proposta para os “loucos criminosos” – porque, no pensamento positivista, um delinquente do gênero não poderia ser simplesmente absol-vido (Araujo, 1889b, p. 398). O Código de 1830 não previa nada disso, e João Vieira não propõe explicitamente qualquer reforma. A razão é que existiam “perigos” mais imediatos para esconjurar: em primeiro lugar, a interpreta-ção segundo a qual a embriaguez muito profunda poderia enquadrar-se nos casos de inimputabilidade do art. 10, § 2º11. Do ponto de vista estritamente positivista, essa não era uma interpretação equivocada, mas aprofundava o paradoxo da expansão dos casos de inimputabilidade e de absolvição, já que os códigos da época – inclusive o brasileiro – não regulavam as medidas de segurança. Era exatamente esse o paradoxo que fazia com que alguns positi-vistas deplorassem o “ecletismo”, porque a aceitação de uma parte das suas ideias (encontrar as causas do delito em razões médicas) conduzia a conse-quências contrárias à “defesa social”. Por isso, a primeira providência de João Vieira, em nome do defensismo positivista, foi considerar essa interpretação – que existia em outros países – inadequada para o Código brasileiro (Araujo, 1889b, p. 395). Segundo João Vieira, a embriaguez deveria ser considerada estritamente da maneira como o código a havia previsto explicitamente: uma simples circunstância atenuante, mas nunca uma dirimente do art. 10 (Araujo, 1889b, p. 406).

Para os bêbados havia essa solução de mantê-los distantes do art. 10; com os “verdadeiros” loucos do art. 10, § 2º, porém, permanecia-se no cora-ção do problema. Por um lado, o positivismo tendia a ampliar o círculo da “anormalidade” e as críticas positivistas às fórmulas dos códigos da época tendiam a identificar, exatamente, a insuficiência dos conceitos de “loucura”

11 “Art. 10. Tambem não se julgarão criminosos: [...] 2º Os loucos de todo o genero, salvo se tiverem lucidos intervallos, e nelles commetterem o crime.”

Page 136: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

136

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

136

(Araujo, 1889b, p. 228). Na crítica ao livre-arbítrio e à responsabilidade moral – logo, também ao Código brasileiro –, João Vieira chega às afirmações mais positivistas: que tais distinções tradicionais serviriam somente para deixar à solta indivíduos perigosos (Araujo, 1889b, p. 89) e que, portanto, seria neces-sária a resposta sancionatória em todos os casos, ainda que diferenciada se-gundo o tipo de delinquente (cárcere ou manicômio criminal) (Araujo, 1889b, p. 230). E o Código brasileiro, apesar de ainda ser exemplar do “classicismo”, segundo João Vieira, não era deplorável nesse aspecto porque no seu art. 12 previa, pelo menos, o recolhimento dos “loucos criminosos” absolvidos em “casas para elles destinadas” (Araujo, 1889b, p. 232).

O dispositivo do art. 12 do Código Criminal brasileiro de 1830 não era muito difundido entre os códigos da época, e, não por acaso, João Vieira con-siderava-o bastante particular. Juristas do século XX, no âmbito da irresistível ascensão das medidas de segurança, também considerarão esse art. 12 digno de ser lembrado12.

Observando os principais códigos e projetos modernos anteriores a 1830, alguns deles traziam fórmulas que poderiam ser consideradas pre-cedentes do dispositivo brasileiro. No projeto de Código Penal de Edward Livingstone para o Estado americano da Louisiana de 1824, existe um dispo-sitivo que, do ponto de vista do conteúdo, aproxima-se do art. 12 brasileiro no sentido que previa a “securing” do acusado “in state of insanity” (Livings-tone, 1824, p. 112-113). Um dos códigos mais importantes da época, o francês de 1810, na forma do dispositivo, é mais próximo do brasileiro, mas, no con-teúdo, previa uma medida do gênero, na verdade, no artigo sobre os meno-res13. A semelhança está na previsão de duas alternativas – a “detenção” em uma “maison de correction” ou a “remision a ses parents” – que poderia fazer

12 É o caso, por exemplo, do jurista Ladislao Thot, que, em 1930, escreve um artigo em homenagem aos cem anos do Código Imperial: “[Q]uanto às disposições relativas aos loucos, seu valor político criminal se concentra na acceitação dos lúcidos intervallos de um lado, e de outro, na internação delles em casas a elles destinadas. A condição de tal collocação era, naturalmente, que o louco tivesse commettido um crime” (Thot, 1930, p. 125).

13 “Art. 64. Il n’y a ni crime ni délit, lorsque le prévenu était en état de démence au temps de l’action, ou lorsqu’il a été contraint par une force à laquelle il n’a pu résister”; e, depois, o art. 66: “[l]orsque l’accusé aura moins de seize ans, s’il est décidé qu’il a agi sans discernement, il sera acquitté; mais sera, selon les circonstances, remis à ses parents, ou conduit dans une maison de correction, pour y etre élevé et détenu pendant tel nombre d’années que le jugement déterminera, et qui toutefois ne pourra excéder l’époque où il aura accompli sa vingtieme année” (France... 1810, p. 14-15).

Page 137: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

137137

pensar que o Código brasileiro adotou a fórmula francesa generalizando-a. O outro “modelo forte” da época, o Código Universal austríaco de 1803, não previa nada a respeito, isto é, havia somente a fórmula da inimputabilidade (§ 2º) e nada mais.

Também no caso dos vários códigos pré-unitários italianos existem disposições similares, porém sempre restritas aos menores (Piombino... [1808] 2001, p. 45; Italia... [1811] 2002, p. 25; Due Sicilie... [1819] 1996, p. 17-18; Sardegna... [1839] 1993, p. 26; Toscana... [1853] 1995, p. 16). Não é por acaso que Garofalo, em 1885 (p. 485), esperava que fosse aprovado, com urgência, um projeto de lei de 1881 que previa o que já dizia o Código brasileiro cin-quenta anos antes: a possibilidade de o juiz ordenar que os “loucos” absolvi-dos fossem recolhidos em manicômios criminais.

Um dos principais comentaristas do Código Criminal brasileiro de 1830, Thomaz Alves Júnior (1864, p. 255), no seu comentário ao referido art. 12, sublinhava que se tratava de um dispositivo administrativo. Por ser considerado um dispositivo administrativo, não é de se estranhar a sua au-sência em vários códigos penais da época.

João Vieira simpatizava com a previsão deste poder administrativo no Código; contudo, permaneciam dois problemas para a perspectiva posi-tivista: o primeiro é o arbítrio deixado ao juiz, que poderia decidir utilizar o segundo dispositivo do art. 12, isto é, a entrega à família. A crítica ao dispo-sitivo da entrega à família tinha um valor duplo: por um lado, projetava uma reforma que eliminaria essa possibilidade – e João Vieira fará essa tentativa com o seu projeto de Código de 1893; por outro lado, era necessário, desde já, difundir a visão positivista da lei porque, sendo uma questão de arbítrio judi-cial, os juízes poderiam ser simplesmente convencidos das razões favoráveis ao recolhimento em todos os casos de “loucura”, “antecipando” judicialmen-te, por assim dizer, a reforma (Araujo, 1889b, p. 231). O segundo problema: a inexistência de manicômios criminais no Brasil. A utilização de manicô-mios simples, segundo João Vieira, era uma alternativa inadequada (Araujo, 1889b, p. 232) – em dissonância com outros comentadores do Código de 1830, como Thomaz Alves Júnior (1864, p. 255), que interpretava as “casas para elles destinadas” como manicômios simples, já que não se tratava de verda-deiros criminosos – e o paradoxo, diante da impossibilidade de recorrer aos manicômios simples, parece sem solução. A via de fuga que restava, então, era a interpretação contra legem, ventilada no artigo sobre o estupro analisado anteriormente, isto é, encarcerar o “louco criminoso” em uma prisão simples como qualquer outro delinquente.

Page 138: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

138

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

138

Provavelmente o caso mais claro de defesa positivista do Código de 1830 encontra-se nas últimas páginas do Commentario: trata-se do comentário ao capítulo IV, “Da satisfação”. A simples existência do comentário a esse capítulo é um sinal da distância entre o João Vieira de 1884 e o de 1889 em termos de recepção do positivismo. Em 1884, esse capítulo não foi comenta-do, provavelmente em obséquio às distinções tradicionais entre direito subs-tancial e processual. Em relação à reparação, o Código de 1830, segundo João Vieira (1889b, 419), era avant-la-lettre:

[...] nesta matéria me affasto do modo geral de sentir, suppondo que de-fendo a verdade e que as disposições do nosso código neste capítulo IV são excellentes a vista das de algum outro e do silêncio de quasi todos, o que não devemos imitar, representando o nosso para a escola positiva um ponto de vista relativamente adiantado, em que peze àquelles que pensão que sempre toda innovação é um progresso e nunca um regresso, como se não fosse possível innovar para peior.

Então, apesar de João Vieira conhecer muito bem a origem benthami-niana – não positivista – desse capítulo do Código, mais uma vez o nome de Bentham serve como um vínculo entre as duas pontas do século XIX. Portan-to, em nome do pensamento positivista (que via em Bentham um precursor), o capítulo sobre a reparação merecia ser defendido aguerridamente.

Apoiando-se quase sempre nas ideias de Garofalo, João Vieira conside-ra a reparação congenial ao pensamento positivista porque operava com um elemento não vinculado à proporcionalidade entre delito e pena. A reparação seria algo além da proporção, e a tentativa de inseri-la nessa proporcionali-dade (e, portanto, inclusive de moderá-la segundo estes critérios) seria ina-dequada à natureza do instituto (Araujo, 1889b, p. 440). Seguindo por esse caminho, João Vieira criticou o comentarista do Código de 1830, Mendes da Cunha, por ter pensado a reparação no interior de um raciocínio proporcio-nalista.

A defesa da reparação do dano no Código de 1830 passava, então, pela crítica às opiniões que diminuíam a sua importância, a começar pela Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841. Essa lei revogava a competência do juiz criminal para aplicar a reparação14, mutilando-a, ao invés de desenvolvê-la através do código de processo (Araujo, 1889b, p. 419). Além da lei, João Vieira

14 Trata-se, especificamente, do art. 68 da lei: “[A]rt. 68. A indemnisação em todos os casos será pedida por acção cível, ficando revogado o art. 31 do Código Criminal, e o § 5º do art. 269 do Código do Processo. Não se poderá, porém, questionar mais sobre a existencia

Page 139: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

139139

(1889b, p. 419-420) rebate as opiniões de doutrinadores brasileiros contrários ao instituto ou que tendiam a diminuir a sua amplitude em relação à pre-visão original de 1830 (Lafayette Rodrigues Pereira, por exemplo). Ou seja, existiam opiniões doutrinárias que colocavam o capítulo sobre a reparação, no todo ou em parte, em risco. Com isso, é possível compreender por que a proposição de reformas, por parte de João Vieira, nessa parte do Commenta-rio, era muito tímida – a urgência era completamente outra: “[N]este ponto o Código Criminal e o Código do Processo Criminal devem ser melhorados e restabelecidas algumas de suas disposições” (Araujo, 1889b, p. 420).

Não obstante a defesa positivista desse capítulo do Código, João Vieira sabia muito bem que se tratava de um texto de 1830, ou seja, não totalmente assimilável às ideias da “escola positiva”. Ele chega a citar algumas ideias do positivista italiano Fioretti como possibilidades de desenvolvimento fu-turo do Código de 1830, mas o centro do capítulo permanece sendo a defesa dos dispositivos já existentes – a dimensão de “legitimação” em oposição à “reforma” – contra os assédios dos comentadores que tendiam a limitar o influxo do instituto.

Em suma, no Commentario, um livro longo e completo sobre o Código Criminal de 1830, entre os polos legitimação ou reforma, o primeiro preva-leceu. Apesar da enunciação das premissas positivistas de reformas radicais, mesmo a proposição de reformas imediatas mais prudentes foi bastante tími-da. Não por acaso, o resenhista do Commentario, Macedo Soares, sublinhou como o livro evidenciava os méritos do Código de 1830.

Essa postura tendencialmente centrada na defesa dos institutos exis-tentes ajuda compreender o projeto de “consolidação” (a “nova edição offi-cial do Código Criminal de 1830”) elaborado por João Vieira em 1889, ou seja, é contemporâneo ao Commentario, e ajuda a compreender, também, a timidez reformista do seu projeto de 1893 – mas analisar o empenho legislativo de João Vieira demandaria muito mais espaço.

Em 1888, João Vieira publica no “Archivio” de Lombroso um pequeno artigo intitulado “La riforma dei codici criminali”. O ponto estranho é que esse artigo é praticamente contemporâneo à batalha de João Vieira contra a ideia de uma revisão do Código de 1830 (isto é, a favor da simples nova edição). De qualquer forma, a lista de dispositivos a serem reformados não era muito extensa, e, além disso, mesmo nesse artigo, que tinha como objetivo central

do facto, e sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no crime”.

Page 140: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

140

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

140

defender as reformas positivistas, é possível entrever o receio que provavel-mente condicionava a sua opinião no debate sobre a manutenção ou substi-tuição do Código de 1830: o receio que fosse elaborado um novo código, mais uma vez, “clássico”.

O exemplo vinha justamente da Itália, onde, no exato momento do flo-rescimento da “escola positiva”, estava prestes a ser emanado um código, em linhas gerais, considerado bastante “clássico”. Citando Raffaele Garofalo, em meio aos elogios ao reformismo positivista, é perceptível o receio do exemplo italiano:

[s]ebbene Garofalo riconosca l’impossibilità di applicare tutto d’un tratto la teoria positiva e la necessità di riforme graduali tentate prima nella procedura, poi nel sistema penitenziario e nelle leggi di polizia, essendo preferibile lo statu quo nella legislazione penale all’azione di progetti, come l’Italiano, ispirati dal dottrinarismo giuridico, pure egli riconosce almeno la necessità di modificazioni parziali che potrebbero farsi al codice. (Araujo, [1888] 1889, p. 52 - grifos nossos)

João Vieira, de certa forma, tenta “antecipar” a batalha do capítulo cita-do do livro de Garofalo (o Criminologia de 1885). O capítulo citado – que era o último do livro – intitulava-se “[C]onclusioni relative alle condizioni della società contemporanea e dell’Italia in particolare”. “Na Itália contemporânea”, o proje-to Zanardelli estava em plena discussão, e, não obstante Garofalo pensasse que a batalha contra essa ulterior afirmação da “escola clássica” já estives-se perdida, todo o capítulo dedica-se a listar pequenas reformas que pode-riam ser aplicadas imediatamente. Tais reformas tinham como escopo dimi-nuir os “danos” do pensamento “clássico” consagrado no projeto de código (Garofalo, 1885, p. 490).

É preciso mencionar, ainda, um artigo de 1891 intitulado “A reforma das leis criminaes (a União Internacional de Direito Penal)”. Uma análise por-menorizada desse texto demandaria um passo avante, isto é, trazer à baila o contexto posterior ao Código de 1890, por isso, aqui, bastará somente um aceno a uma característica dele: quando João Vieira aborda a questão das reformas no Brasil, ele não faz outra coisa senão criticar a substituição do Código de 1830.

CONCLUSÕES

Entre os grandes gestos de simpatia em 1884 e os gestos de adesão a partir de 1888 existe uma diferença na maneira como João Vieira utiliza as ideias da “escola positiva” italiana. Um elemento central desta diferença é a efetiva entrada das disputas identitárias em torno ao binômio “escola

Page 141: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

141141

clássica versus escola positiva”. Em 1884, João Vieira declarava simpatia pe-los positivistas, mas citava Carrara como autoridade sem qualquer proble-ma. Em 1889, torna-se importante explicitar críticas ao “metafísico” Carrara. A postura de 1889 parece ser quase uma resposta às críticas da resenha de Giovanni Albano.

Em relação aos pertencimentos de João Vieira, poder-se-ia representar a questão por meio de dois círculos concêntricos.

O círculo externo é representado pelos gestos de pertencimento expres-sos em 1884: a “escola italiana”. Apesar das declarações de simpatia pelas ideias de Lombroso, não há qualquer sinal, em 1884, das disputas identitárias em torno do binômio “escola clássica versus escola positiva”. Pelo contrário, as únicas declarações sobre escolas jurídicas mencionavam divisões nacio-nais: os italianos e os alemães, em seguida os franceses e todos os outros em posições menos adiantadas no “movimento scientifico moderno” (Araujo, 1884, p. VI).

O círculo interno: a partir de 1888, coloca-se, para João Vieira, o proble-ma do pertencimento à “escola positiva”. Nesse momento, ele toma parte na disputa – inicialmente interna à Itália, mas que, depois, foi exportada – entre “escola clássica” e “escola positiva”. Sobre esse problema, uma última obser-vação sobre o modo como o binômio incidia nas citações de João Vieira: não se tratava simplesmente de reconhecer divergências específicas entre penalis-tas. As divergências entre os penalistas italianos em 1884 e, também, entre os próprios positivistas depois de 1888 não eram desconhecidas por João Vieira. As diferenças identitárias não são simples divergências: elas passam por um dispositivo que cria “diferenças qualificadas”, isto é, diferenças constitutivas de uma identidade científica, de uma “escola”.

Apesar da recepção da “escola positiva” com eloquentes gestos de ade-são entre 1888 e 1889, observa-se, por outro lado, uma timidez por parte de João Vieira na proposição concreta de reformas para o Código Penal brasi-leiro.

A razão dessa postura pode ser compreendida a partir da própria di-nâmica da recepção das ideias positivistas. João Vieira conheceu a “escola positiva” também por meio dos textos envolvidos no embate contra o projeto Zanardelli. Na comparação entre o excessivamente “clássico” projeto italiano e o Código brasileiro de 1830, em uma escala de “classicidade”, o brasileiro levava alguma vantagem. Esse fato nos ajuda a compreender dois elementos da obra de João Vieira: a) a postura, por assim dizer, defensiva de João Vieira em relação ao Código de 1830; b) o fato de a sua balança pender para o lado

Page 142: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

142

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

142

da “legitimação”, ainda que ele fosse um positivista entusiasta. Mais do que propor reformas, João Vieira estava preocupado em defender os institutos que ele considerava bons – institutos que poderiam desaparecer em um em-bate com os “tradicionalistas”. Ao invés de desenvolver a parte geral – como fez o projeto Zanardelli –, era conveniente manter a enxuta parte geral do Có-digo de 1830: assim, pelo menos, os possíveis desenvolvimentos doutrinários positivistas encontrariam menos obstáculos, isto é, não encontrariam um es-pesso tecido de conceitos “clássicos” no caminho da teoria para a prática. Se essa pequena parte geral já criava dificuldades para a teoria positivista (como o tantas vezes evocado art. 12 sobre a entrega dos “loucos criminosos” aos cuidados da sua família), a primeira urgência era defender-se de uma possí-vel reforma na direção de uma parte geral mais longa e “clássica”. O exemplo italiano, isto é, a imagem da derrota positivista com o projeto Zanardelli na pátria de Lombroso, Garofalo e Ferri, tornava o “perigo” real e concreto.

A necessidade de adotar uma postura defensiva colocou em segundo plano a elaboração articulada de um programa de reformas positivistas. O positivismo italiano, nessa época, também era tímido na proposição de re-formas imediatas que tocassem a parte geral de um código penal, seja por razões de prudência gradualista, seja porque muitos dos esforços positivistas estavam concentrados em outros setores do campo penal (a questão peni-tenciária, por exemplo). Porém, a timidez e a prudência italiana eram, ainda sim, estratégias de “avanço”, enquanto a prudência de João Vieira era muito mais uma estratégia de “defesa”. João Vieira recepciona o positivismo con-templando a derrota dos seus colegas italianos no plano legislativo.

Depois da promulgação do novo Código Penal brasileiro em 1890, a situa ção brasileira parece aproximar-se à italiana para a perspectiva positivis-ta: os dois países possuem códigos “clássicos” promulgados recentemente. O novo Código brasileiro de 1890 mudou a postura de João Vieira no que tange ao “reformismo”? Aparentemente, a resposta seria “sim”, pois ele elaborou um projeto de novo Código Penal em 1893. Esse seria outro tema autônomo, mas é possível adiantar uma hipótese: apesar do projeto de substituição do Código de 1890 elaborado por João Vieira (1893), o seu “reformismo” não sofreu uma inflexão significativa. Não por acaso, ele considerava o seu projeto uma revisão de ambos os códigos (1830 e 1890), quase uma tentativa de começar algumas reformas parciais restaurando a situação anterior ao Código de 1890.

REFERÊNCIASALBANO, Giovanni. Prof. Ivào [na verdade, “João” – erro tipográfico da revista] Vieira –

1. Ensaio de direito penal sobre o Código Criminal do Império do Brazil, Pernambuco,

Page 143: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

143143

1884. – 2. A nova escola de direito criminal, nel Diario di Pernambuco del 27 settembre 1888. Archivio di psichiatria, scienze penali ed antropologia criminale, v. 10, fasc. II, p. 218-219, 1889.

ALVES JUNIOR, Thomaz. Annotações theoricas e práticas ao código criminal. Rio de Janeiro: Francisco Luiz Pinto & C., v. I, 1864.

ARAUJO, João Vieira de. Ensaio de direito penal ou repetições escriptas sobre o Código Criminal do Império do Brazil. Pernambuco: Typographia do Jornal do Recife, 1884.

______. A nova escola de direito criminal. Os juristas italianos E. Ferri, F. Puglia e R. Garofalo. O Direito: Revista de Legislação, Doutrina e Jurisprudência, 47º v., p. 481-487, 1888.

______. Na psychologia criminal a premeditação e a paixão são antinômicas? No caso negativo, são conciliáveis as disposições do art. 16, § 8º, do Código Criminal e as dos arts. 10, § 3º, 18 e 19? [1888] O Direito: Revista de Legislação, Doutrina e Jurisprudência, 48º v., jan./abr. 1889.

______. La riforma dei codici criminali [1888]. Archivio di psichiatria, scienze penali ed antropologia criminale, v. 10, 1889.

______. Código criminal brazileiro: commentario philosophico-scientifico em relação com a jurisprudência e a legislação comparada. Recife: Editor José Nogueira de Souza, 1889b.

______. Anthropologia criminal. O Direito: Revista de Legislação, Doutrina e Jurisprudência, 1889c.

______. O estupro violento. Esboço theorico do art. 222 do Código Criminal. A gênese anthropologica do delicto. O Direito: Revista de Legislação, Doutrina e Jurisprudência, 50º v, 1889d.

______. A reforma das leis criminaes (a União Internacional de Direito Penal). O Direito: Revista de Legislação, Doutrina e Jurisprudência, 55º v., p. 375-380, maio/ago. 1891.

______. Projecto de código penal. Exposição de motivos. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, 1893.

______. Nova edição official do Código Criminal Brasileiro de 1830, ante-projecto (1889). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910.

BEVILACQUA, Clóvis. Historia da Faculdade de Direito do Recife [1927]. 2. ed. Brasília: INL, 1977.

BRASIL. Código criminal do Império do Brazil de 16 de dezembro de 1830. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 02 mar. 2011.

______. Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/104058/lei-261-41>. Acesso em: 17 jun. 2011.

DUE SICILIE. Codice per lo regno delle [1819]. Ristampa anastasica. Padova: Cedam, 1996.FRANCE. Code Pénal suivi... Tome premier. Paris: Firmin Didot, imprimeur-lib., 1810.

Disponivel em: <http://cujas-num.univ-paris1.fr/ark:/45829/pdf0603221594>. Acesso em: 19 jul. 2011.

GAROFALO, Raffaele. Criminologia. Torino: Fratelli Bocca, 1885.ITALIA. Codice dei delitti e delle pene pel regno d’ [1811]. Ristampa anastasica. Padova:

Cedam, 2002.

Page 144: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

144

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

144

LIVINGSTONE, Edward. Project of a new penal code for the state of Lousiana. London: Baldwin, Cradock, and Joy, 1824.

MORAES, Evaristo de. Primeiros adeptos e simpatisantes, no Brasil, da chamada “Escola penal positiva”. Revista Forense, set. 1939.

PIOMBINO. Codice penale per il principato di [1808]. Ristampa anastasica. Padova: Cedam, 2001.

SARDEGNA. Codice penale per gli stati di S. M. Il re di [1839]. Ristampa anastasica. Padova: Cedam, 1993.

SBRICCOLI, Mario. La penalistica civile: teorie e ideologie del diritto penale nell’Italia unita [1990]. In: ______. Storia del diritto penale e della giustizia. Milano: Giuffrè, v. I, 2009.

THOT, Ladislao. O Código Criminal brasileiro de 1830. Estudo histórico-jurídico comparativo. Pandectas Brasileiras: registro de doutrina, jurisprudência dos tribunais e legislação, Rio de Janeiro, v. 8, 1º e 2º sem. 1930.

TOSCANA. Codice penale pel granducato di [1853]. Ristampa anastasica. Padova: Cedam, 1995.

Page 145: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

145

“EU, VIGILANTE”: (RE)DISCUTINDO A CULTURA PUNITIVA CONTEMPORÂNEA

A PARTIR DAS REDES SOCIAISGustavo NoroNha de Ávila*

Marcelo Buttelli raMos**

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apresentar as pri-meiras reflexões dos autores relativamente ao papel desempenha-do pelas redes sociais, bem como pelos seus usuários nesse con-texto de ampla e franca expansão de uma mentalidade punitiva. Trata-se, pois, de uma relação que merece ser ampla e detidamen-te estudada por todos aqueles que se (pré)ocupam com a elabo-ração de planos de ação que venham a mitigar os danos provo-cados pela mentalidade punitiva em nossa já esfacelada tessitura social. Estabelecidas e justificadas, pois, as premissas que emba-sam, desde o ponto de vista teórico, a preocupação dos autores relativamente ao rumo que tem tomado o debate sobre a questão criminal no Brasil, parte-se para a análise (e consequente proble-matização) dos discursos que, explícita ou implicitamente, apa-recem estampados nos post’s elencados em página do Facebook intitulada “quem não gosta de polícia é bandido”. Nesse sentido, resta o seguinte diagnóstico: a dinâmica célere do processo de in-teração social propiciada (e mesmo estimulada) pelo ciberespaço parece suscitar, na atual conjuntura político-criminal, debates ao mesmo tempo superficiais e efêmeros, que representam verdadei-ros retrocessos no que tange à consolidação de uma cultura de

* Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Professor de Direito Penal e Processual Penal do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter)/Laureate International Universities, Professor da Especialização em Direito Penal e Processo Penal do IBCCrim/UniRitter, Professor da Especialização em Ciências Penais da Universidade Estadual de Maringá, Advogado.

** Pós-Graduando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Bacharel em Direito no Centro Universitário Ritter dos Reis/Laureate International Universities, Advogado.

Page 146: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

146

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

146

respeito aos direitos humanos, mormente de respeito aos direitos dos acusados/apenados. De qualquer modo, depreende-se que a investigação do tom do debate sobre a questão criminal no âmbi-to das redes sociais pode servir aos investigadores interessados como uma espécie de termômetro a revelar as tendências, prefe-rências e direções do punitivismo contemporâneo.PALAVRAS-CHAVE: Política criminal; criminologia; redes so-ciais; punitivismo; mídias.ABSTRACT: This article aims to present the first reflections of the authors regarding the role played by virtual social networks and its users in the context of a broad and expanding punitive mentali-ty. There is a relationship that deserves to be widely and carefully studied by all those worried with the preparation of action plans that will mitigate the damage caused by the punitive mentality in our already crumbling social fabric. Established and justified the theoretical point of view regarding the direction it has taken the debate on the criminal matter in Brazil, we proceed to the analysis (and consequent questioning) of speeches that, explicitly or impli-citly, appear stamped on “post’s” listed on a Facebook page titled “Who does not like the police is a criminal”. In this sense, there is the following diagnosis: a rapid dynamic process of social interac-tion made possible (and even encouraged) by cyberspace seems likely to be superficial and ephemeral, which represent real setba-cks with regard to consolidation of a culture of respect for human rights, especially in relation to the rights of the accused/convicts. Anyway, it appears that the investigation of the tone of the de-bate over the criminal matter within social networks can serve interested researchers as a kind of thermometer to reveal trends, preferences and directions of the contemporary control society.KEyWORDS: Criminal policy; criminology; virtual social ne-tworks; punishism; mass media.SUMÁRIO: Introdução; 1 Redes sociais e vigilância; 2 A (contra)instrumentalização das mídias ágeis na era do punitivismo: como a velocidade das redes sociais pode representar um retrocesso no debate sobre os direitos do homem aprisionado; Considerações finais; Referências.

INTRODUçãO

Vivemos em uma época de urgências, em que a velocidade da vida, disposta no centro desse turbilhão informacional que representa a era da alta tecnologia, acentua-se vertiginosamente. As experiências cara a cara vão sen-do rapidamente substituídas; rearranjadas pela fugaz dinâmica do dia a dia, as relações humanas desenvolvem-se mediatizadas pela tela do computador,

Page 147: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

147147

essa janela que, sob o pretexto de permitir o desbravamento de um mundo virtual, paradoxalmente nos fecha para mundo real1.

Existe um sentimento de imediaticidade nos ares do ciberespaço. Em busca constante por uma (re)afirmação identitária no âmbito deste espaço de sociabilidade constitutivo feito representado nas redes sociais, expomos cada vez mais os nossos sentimentos através do virtual. O objetivo: alcançar a interatividade real2. Sucede, no entanto, que, em tempos em que terabytes circulam na velocidade de um piscar de olhos, algo parece se perder, algo distintivo e fundamental: o espaço para reflexão.

Efetivamente, basta o toque de um botão e o “no que você está pensan-do agora?” é dividido com um número incontável de espectadores. Na web 2.0, todos somos potenciais jornalistas, especialistas em direito, analistas po-líticos, sociólogos e criminólogos. Decerto, todos têm algo a dizer sobre tudo aquilo que sucede na atualidade.

Nesse espaço aparentemente plúrimo e democrático, onde a todos é dada a oportunidade de manifestar “what’s on your mind3”, verificamos que a formação de consciências descartáveis no espaço de discussão cibernético constitui consequência lógica e direta da própria dinâmica de funcionamento das redes sociais, onde a necessidade de reafirmação identitária imposta pelo constante e impetuoso pro-cesso de atualização informacional suscita situações nas quais o irrefletido, elevado à condição de trending topic, reveste-se de certa credibilidade, razão pela qual é difundido.

Quanto mais espontâneo, melhor. Quanto mais rápido, também. Po-rém, entre send’s, (dis)like’s, share’s e comment’s, direitos que por séculos foram lapidarmente construídos podem ser irremediavelmente afetados, mormente quando o punitivismo, irracional em sua essência, constitui-se como a gênese discursiva que dá a tônica do debate sobre a questão criminal no âmbito da world wide web.

Neste trabalho, discutiremos a afetação da cultura punitiva contem-porânea às redes sociais. Uma migração inevitável, por um lado, mas que por outro precisa estar consciente de seus próprios limites. Estes certamente estarão para além da fácil (re)produção de uma ética da vingança.

1 BAUMAN, Z. Amor líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 10.

2 Ibidem.

3 Texto de referência que permanece, constante, na epígrafe da página inicial do perfil da rede social Facebook.

Page 148: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

148

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

148

1 REDES SOCIAIS E VIGILÂNCIA

Os meios de comunicação contribuem, via de regra, para a difusão do medo e da insegurança, expondo, de forma teatral, uma sociedade violen-ta e desordenada. Alguns programas de televisão expõem cotidianamente imagens de violência, como forma de chocar e representar a realidade co-mum. Como se todos aqueles fatos violentos ocorressem contínua e simulta-neamente, em todos os lugares do País. A banalização do mal faz a violência ganhar um status de “destino nacional”.

É nesse contexto, pois, que se faz gestado o quadro de pânico moral que acomete toda a sociedade e que é responsável pela (re)produção de es-tereótipos que encerram um perigo fantasmagórico, latente, permanente e decisivo que necessita ser vigiado e combatido a todo o momento.

Essa espécie paranoia coletiva em torno da (in)segurança pública, mui-to em voga desde o advento da ideia de sociedade do risco (Ulrich Beck), reclama das pessoas em geral uma espécie de vigilância constante, que pro-voca, enfim, uma alta sugestionabilidade por parte dessas prováveis vítima que assumem e racionalizam, com certa facilidade, a legitimidade do exter-mínio ao mesmo tempo sumário e preventivo destes supostos, porém ainda não revelados agressores4.

Mas não são apenas os veículos tradicionais de informação que proje-tam seus sensos e ideais sobre a violência e punitividade. Atualmente, existe uma forte crise patrocinada pela Internet; de acordo com Ramonet, “seme-lhante àquela que fez desaparecer os dinossauros” e “tem provocado uma mudança radical de todo o ‘ecossistema midiático’ e a extinção massiva e progressiva dos jornais da imprensa escrita”5.

Provavelmente, afirma Ramonet6, a mídia da era industrial não irá de-saparecer. No entanto, a circulação das notícias não se dá mais em “unidades controladas, bem corrigidas e formatadas (notas de agências, jornais diários, impressos, boletins radiofônicos, telejornais)”. Está em curso, pois, o desloca-

4 PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 237-267.

5 RAMONET, Ignacio. A explosão do jornalismo: das mídias de massa à massa de mídias. Trad. Douglas Estevam. São Paulo: Publisher Brasil, 2012. p. 16.

6 RAMONET, Ignacio. A explosão do jornalismo: das mídias de massa à massa de mídias. Trad. Douglas Estevam. São Paulo: Publisher Brasil, 2012. p. 16-18.

Page 149: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

149149

mento dessas mídias para a chamada “web 2.0”, onde todo ator pode “com-pletar cada informação, acrescentando a ela uma precisão, um comentário, uma citação, uma foto ou um vídeo, num trabalho de inteligência coletiva”7.

Nesse sentido, se, por um lado, os oligopólios midiáticos foram forte-mente abalados pelo fator Internet, que amplificou as possibilidades de ma-nifestações e interpretações sobre a violência urbana, toda essa conectivida-de, vez que disposta no âmbito de uma sociedade marcadamente desigual, predatória e punitivista, tal como é a brasileira, pode ensejar pré-julgamentos inaceitáveis e retrocessos incomensuráveis no que tange ao debate sobre os direitos do homem encarcerado.

Nos dizeres de Mendonça Pinto:A difusão do medo tem sido um mecanismo indutor e justificador de polí-ticas autoritárias de controle social. O medo torna-se fator de tomadas de posição estratégicas seja no campo econômico, político ou social. Os meios de comunicação de massa geram a ilusão de eficácia da pena e alertam a percepção de perigo social, deslocando a atenção, em regra, para a crimi-nalidade violenta. Nem se discutem a idoneidade e a desnecessidade da sanção penal, ou de sua exacerbação. Tem-se nos discursos de combate ao crime e do aumento das penas a valorização simbólica do direito penal como solução única e miraculosa para a violência social.8

Todo esse quadro poderá, então, nos levar a dizer que “uma das mani-festações mais cruéis da violência simbólica exercida pelas mídias é identifi-cada no processo de ‘etiquetamento’, de rotulação e na criação do estereótipo criminoso”9.

Conforme leciona Rui Cunha Martins, a tarefa daqueles que persistem entrincheirados lutando contra a avassaladora expansão do punitivismo con-temporâneo torna-se especialmente difícil frente à atividade desenvolvida pelos media; isso porque, ao tratar da informação como um reles produto, no

7 Idem, p. 17.

8 PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 238.

9 ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 3.

Page 150: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

150

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

150

qual a celeridade é a commodity mais importante, funcionam eles como “temí-veis redutores de complexidade”10.

Seguindo esse ponto de vista, de que existe um padrão na veiculação de notícias sobre o crime e a violência sempre tendente à estigmatização da habitual clientela do sistema penal, acrescente-se o argumento de Ramonet:

[...] o único meio de que dispõe um cidadão para verificar se uma infor-mação é verdadeira é confrontar os discursos dos diferentes meios de co-municação. Então, se todos afirmam a mesma coisa, não resta mais do que admitir esse discurso único.11

Segundo pesquisa realizada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência Nacional (Secom) no final de 201012, aproximadamente 52,2% da população entrevistada na Região Sul do país afirmava ler jornais habi-tualmente. Em que pese a pouca confiabilidade dispensada aos meios de co-municação em geral (71,9%), o jornal aparece em terceiro lugar na lista dos veículos mais confiáveis para a obtenção de informações (11%), perdendo apenas para a televisão (57,7%) e o rádio (11,4%).

De acordo com a pesquisa, ainda, os telejornais são os programas mais vistos pela população entrevistada (36,9%), com uma pequena margem de vantagem sobre o segundo lugar, cuja posição é atualmente ocupada pelas telenovelas (31,5%). Precisamente, esses dados demonstram que, indepen-dentemente do veículo de informação eleito – se a nova ou a velha mídia –, parte considerável dos debatedores do cotidiano operam os seus discursos sobre o cotidiano baseado um repertório argumentativo induzido, é dizer, alimentado por uma série que dados não originais derivados das manifesta-ções e/ou impressões gestadas pelos e nos editorais dos grandes veículos de informação.

10 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 68.

11 RAMONET, Ignácio. A tirania da comunicação. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 45.

12 Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Hábitos de informação e formação de opinião da população brasileira II. 2010. Disponível em: <http://www.secom.gov.br/pesquisas/2010-12-habitos-ii/2010-12-habitos-de-informacao-e-formacao-de-opiniao-da-populacao-brasileira-ii-sul.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2013.

Page 151: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

151151

Portanto, nesse contexto pós-moderno marcado pela insegurança, in-certeza e alta fluidez informacional13, somos todos chamados a opinar sobre a questão criminal, todos somos agentes interventores e potencialmente mo-dificadores da realidade político-criminal do País.

A fim de ilustrar o argumento, convidamos o leitor a pensar sobre a situação do nosso dócil tele-espectador brasileiro. Este sujeito “de bem”, que, orientado por toscas emulações da realidade suscitadas por pautas jornalís-ticas altamente sensacionalistas, avoca para si o poder/saber de discutir as causas da criminalidade, o que, por via de consequência, lhe autoriza apontar e catalogar – com uma facilidade incrível – os responsáveis pela violência urba-na, a quem querem encarcerar, neutralizar.

De fato, os signos da violência retratados diariamente pela maioria ma-ciça dos veículos de informação em atuação no País temperam amargamente o cotidiano do brasileiro.

Decorrência direta dessa “proliferação de imagens do crime e da vio-lência nos distintos veículos de informação e entretenimento do homem à violência, geralmente potencializada e desonestamente direcionada pela mídia”14, é a fixação de um doentio senso comum no imaginário social.

Nessa perspectiva algo que caótica: i) acirrados debates são travados entre aqueles que, na contramão do discurso punitivo, buscam argumentar a prevalência dos direitos individuais, e aqueles que se fizeram enamorados pelo ideal salvacionista e higienizador consubstanciado na teoria da nova defesa social15; ii) imagens de suspeitos são publicadas sem qualquer preo-cupação quanto à fonte (e, mais importante, sem qualquer respeito ou con-sideração no que toca à dignidade daquele que se envolve numa situação problemática); iii) a cada descoberta de um crime violento, setores bastante específicos da sociedade convulsionam – numa serie sucessiva de espasmos histéricos – clamando por “justiça”; iv) a escalonada da violência é explica-da, à direita e à esquerda, pelo velho argumento da “impunidade”, que se pretende suficiente para fins de legitimar o endurecimento cíclico do sistema

13 POZZEBOM, Fabrício Dreyer de Ávila; ÁVILA. Gustavo Noronha de (Org.). Crime e interdisciplinaridade. Estudos em homenagem à Ruth M. Chittó Gauer. 1. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2013. p. 194.

14 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 32.

15 Lastro teórico que representa o núcleo duro do punitivismo no hodierno.

Page 152: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

152

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

152

penal; v) atualmente e por fim, a “pena” projetada/desejada como “solução” é, senão o linchamento, a morte16.

Sobre a tormenta punitiva que é a política criminal tupiniquim, diz Passetti:

[...] para se combater o investimento de dinheiro e suor públicos em prisões para pobres e subversivos, pois sabemos quanto é mais barato responder à vítima com indenização e quanto é estúpido retribuir uma infração com crime, direito penal e teatro-tribunal, com sentenças e prisões podres que renovam os presídios e os ilegalismos em empresas capitalistas, mais ou menos humanizadas. E nisto não há e nunca houve perversão ou banaliza-ção do mal; somente funcionamento empresarial que procede de práticas de campos de concentração, máfias e Estado acopladas à crença em tolerân-cia zero, democracia participativa e representativa, vigilâncias e seguranças em fluxos que caracterizam esta época de neoconsevadorismo moderado.17

Como resultado final do “funcionamento” desse verdadeiro moinho de gastar gente, restam mais crimes, mais penas, mais submissão inútil de dor18.

Paradoxalmente, o direito penal liberal, lido no curso dos discursos sobre a questão criminal como a primeira proposta histórico-teórica de limi-tação da intervenção do Estado sobre a liberdade dos indivíduos, apesar dos seus 300 anos de (in/e)volução, não logrou firmar-se como um programa concreto e funcional de administração (e contenção) da justiça criminal. O direito penal de Beccaria persiste sendo, nesse diapasão, senão uma ilusão, uma promessa ainda não cumprida.

Como dito, as every day theories sobre a questão criminal em solo brasi-leiro, na antípoda da vontade libertária que encerra o pensamento ilustrado, têm-se limitado ao nada propositivo recrudescimento das sanções já existen-tes, bem como à expansão do sistema de criminalização por meio da criação de novas figuras típicas.

16 No ponto, a advertência subscrita por Pierre Legendre e sempre lembrada por Salo de Carvalho é reveladora: “Vamos parar de rir da Idade Média, de suas técnicas de obscurecimento, sempre eludidas, sempre presentes” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 65).

17 PASSETTI, Edson. Sociedade de controle e abolição da punição. In: São Paulo em Perspectiva, v. 13, n. 3, p. 77-78, 1999.

18 No sentido trabalhado por Nils Christie em: CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Trad. Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988.

Page 153: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

153153

A propósito disso, nos dias de hoje, a demanda pelo endurecimento do sistema penal é tão carismática (e hipnótica) que faz convergir, numa mesma direção, dois espectros ideológicos tradicionalmente antagônicos: direita conservadora e esquerda revolucionária19. Nesse espetacular con-senso que promove o populismo punitivo20, o aparelho repressivo segue ganhando corpo21.

As propostas usuais da política criminal brasileira denotam, pois, o fracasso retumbante dos mecanismos de controle penais na resolução e no abrandamento da conflitividade social. Mesmo o ideal minimalista precisa ser (re)lido frente a essa desalentadora conjuntura, em que mesmo as (ínfi-mas) proteções oferecidas pelo sistema de justiça criminal são insuficientes, frágeis e facilmente reversíveis.

19 A propósito do tema, é indispensável à leitura do artigo “A esquerda punitiva” de Maria Lucia Karam, publicado na Revista Discursos Sediciosos, do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).

20 Que representa, conforme leciona Larrauri, a instrumentalização da questão criminal como plataforma político-eleitoral. Em síntese, ilustra uma forma de governar através do crime. LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul: Notadez, n. 25, abr./jun. 2007.

21 Expressão trabalhada especialmente por Salo de Carvalho, que afirma ser o punitivismo alimentado basicamente pelas seguintes circunstâncias em âmbito legislativo: “Nota-se, portanto, que, no âmbito do Poder Legislativo, inúmeros fatores contribuíram para o aumento dos índices de encarceramento: (a) criação de novos tipos penais a partir do rol de bens jurídicos expostos na Constituição (campos penal); (b) aplicação de quantidade de pena privativa de liberdade em inúmeros e distintos delitos (campo penal); (c) sumarização do procedimento penal, com alargamento das hipóteses de prisão cautelar (prisão preventiva e temporária) e diminuição das disponibilidades de fiança (campo processual penal); (d) criação de modalidade de execução penal antecipada, prescindindo o trânsito em julgado da sentença condenatória (campo processual e da execução penal); (e) enrijecimento da qualidade do cumprimento da pena com a ampliação dos prazos para progressão e livramento condicional (campo da execução penal); (f) limitação das possibilidades de extinção da punibilidade com a exasperação dos critérios para indulto, graça, anistia e comutação (campo da execução penal); e (g) ampliação dos poderes da administração carcerária para definir o comportamento do apenado, cujos reflexos atingem os incidentes de execução penal (v.g., Lei nº 10.792/2003) (campo penitenciário)” (CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 35-36). No entanto, importante referir que esse autor deixa bastante claro que o punitivismo não deriva tão somente de políticas legislativas, mas, especialmente, da formação cultural dos atores do sistema penal (juízes, promotores e advogados), que, muitas vezes, subverte valores garantistas e constitucionais.

Page 154: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

154

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

154

Em nosso País, a atuação de algumas representantes civis em relação ao sistema penal, não raro, se dá no sentido da apologia ao discurso punitivo (exemplo do movimento “Brasil Sem Grades”). O paradoxo opera na medi-da em que a grade que será tão somente aquela que cerca a “minha casa”. Teóricos, como Hulsman22, defendem a derrubada de todas as grades, de toda e qualquer barreira que nos impeça de viver e exercer a liberdade, en-quanto pressuposto mínimo e essencial à realização da condição humana.

Entre as mais estilísticas e sintomáticas expressões do vocabulário pu-nitivo, destacamos a fórmula “direito dos manos”, uma (lamentável e precon-ceituosa) ironia dirigida aos defensores dos “direitos humanos”, designado-ra, pois, numa dimensão mais explícita, do abismo que ainda hoje separa os setores sociais mais abastados dos setores economicamente subalternizados.

Direitos humanos são, assim, para todos, independentemente do rótu-lo utilizado. Independentemente de cor, gênero, religião e, também, do crime cometido.

Difícil é o senso comum punitivista perceber a absoluta artificialidade da separação acima. Igualmente difícil perceber a necessidade de políticas sociais e a urgência em rever as criminais e entendermos definitivamente que “o sistema penal somos nós”23.

2 A (CONTRA)INSTRUMENTALIzAçÃO DAS MÍDIAS ÁgEIS NA ERA DO PUNITIVISMO: COMO A VELOCIDADE DAS REDES SOCIAIS PODE REPRESENTAR UM RETROCESSO NO DEBATE SOBRE OS DIREITOS DO HOMEM APRISIONADO

A world wide web sempre representou, em maior ou menor medida, um espaço fértil e propício a toda a sorte de manifestação contracultural. Com efeito, símbolo maior desse arquétipo e anárquico projeto virtual é a ativi-dade de compartilhamento de dados e informações que, alheia às amarras impostas pelo decrépito e limitadíssimo sistema de direitos autorais, escorre pelos dedos dos grandes conglomerados do entretenimento, e segue facul-tando o acesso às múltiplas faces das novas e das velhas culturas.

22 Cf. HULSMAN, Louk. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, 8, p. 246-275, 2005; HULSMAN, Louk. Entrevista à Nilo Batista. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, n. 5-6, p. 10, 1998; e HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1999.

23 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 140.

Page 155: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

155155

Mas não é só a atividade de compartilhamento de dados que caracteri-za o ciberespaço. Fundamentalmente, todos os grandes movimentos sociais contemporâneos têm sido articulados em torno e a partir das redes sociais. Ilustrativamente: i) numa perspectiva superlativa: a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street24; ii) numa dimensão mais tópica: as periódicas marchas contra a homofobia, a favor da legalização da maconha, em favor da redução das tarifas operadas pelas empresas que exploram o transporte público etc.

Apesar dos distintos programas de reivindicação, todos esses movi-mentos sociais de base assemelham-se no que tange à questão que constitui o cerne dos debates que suscitam, é dizer, todos esses movimentos consubstan-ciam mobilizações plurais e horizontais de caráter contestatório cujo mote é, senão, a crítica ao establishment, ao letárgico e contraprodutivo estado de re-pouso em que se encontra, domesticado e conformado, o senso crítico social.

Todavia, não obstante os inegáveis méritos das redes sociais, cuja capa-cidade de difusão informacional tem contribuído sobremaneira para corroer este monopólio estabelecido pelos tradicionais veículos de informação (v.g., rádio, televisão e jornal), parece-nos fundamental problematizar este locus digital, afirmando, para tanto, que ele encerra um potencial latente, um por-vir ainda não suficientemente demonstrado, pesquisado ou explorado pela criminologia cultural25.

A primeira hipótese que sustentamos em torno da implicação negativa das redes sociais no que tange ao debate sobre a violência urbana, o crime e as suas formas de controle é a de que este é o espaço de manifestação preten-samente público e plural, cujo princípio básico é a formação de comunidades para o diálogo, tornou-se, em larga medida, um grande confessionário, onde cada usuário despeja no ciberespaço (muitas vezes anonimamente) as suas impressões sobre cada um dos três eventos sociais dantes elencados.

É dizer, antes de constituírem topos essencialmente aberto e dialético de conversação, os ambientes virtuais onde se concentram as discussões sobre a questão criminal têm representado um lugar que propicia a manifestação de um irascível senso comum que acredita, um tanto quanto ingenuamente, que

24 ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87.

25 Optamos pela criminologia cultural por ser ela, na correta expressão de Salo de Carvalho, o discurso criminológico que se propõe a fazer este tão necessário debate sobre as formas e os momentos nos quais a questão criminal emerge no âmbito dessa experiência de hiperexposição feita cristalizada no ciberterritório das redes sociais (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 35).

Page 156: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

156

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

156

a truculência e a beligerância policial constituam instrumentos aptos a cum-prir, com suficiência e eficiência, aquelas quiméricas promessas institucionais que versam sobre a manutenção da segurança, da paz e da ordem pública26.

Tomemos, por exemplo, o perfil intitulado “Quem não gosta de polícia é bandido”27.

A fim de evidenciar a dinâmica a partir da qual opera o moderador da página, iremos transcrever algumas de suas confissões/impressões sobre a questão criminal, problematizando, logo após, o seu conteúdo.

Com efeito, enunciando as suas proposições sob o olhar atento do “Ca-pitão Nascimento”28, símbolo maior desse fenômeno social de “glamouriza-ção da violência policial”29, o administrador do perfil faz reverberar, a cada post, o que de melhor tem a oferecer o fundamentalismo punitivo que se es-praia, como visto, também pelas redes sociais.

Ilustrativamente, todo o ardor punitivo do morador da página aparece estampado em sentenças marcadas por uma espécie de ironia ululante:

Você é um defensor dos direitos humanos? Participe do projeto: leve um bandido para casa.30

26 A crença na violência policial como um caminho necessário, senão inexorável, à obtenção da paz resta estampada no dizer que caracteriza o intróito da página e que diz: “admiradores da polícia”.

27 Acessível em: <https://www.facebook.com/QuemNaoGostaDePoliciaeBandido?fref=ts>. Acesso em: 11 ago. 2013.

28 Cuja imagem resta estampada no plano de fundo da página. Acesso em 11 ago. 2013.

29 BATISTA, Vera Malaguti. Memórias das milícias. In: Boletim IBCCrim, a. 21, n. 244, p. 3, mar. 2013.

30 Post (postagem) lançado no dia 9 de maio de 2013. Existem alguns exemplos concretos: no Rio Grande do Sul, o de Maria Ribeiro da Silva Tavares poderia ser considerado bastante promissor, no entanto. A pelotense, formada em serviço social, iniciou seus trabalhos no sistema prisional a partir da tentativa de ajuda à mãe de um preso recolhido na Casa de Correção de Porto Alegre, na década de 40 do século passado. A ideia do senso comum (“Tá com pena? Leva para casa”) não se aplica à Maria, que, em 1940, com autorização do Juiz Coriolano de Albuquerque, levou para sua própria casa 36 presos da referida casa de correção, inclusive apenados com condenados a mais de 100 anos, se responsabilizando por eles (TAVARES, Maria Ribeiro da Silva. Estudo e sugestões sobre o reajustamento de delinquentes. Porto Alegre: Orquestra, 2013).

Page 157: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

157157

Prestando clara e inequívoca homenagem às recentes (e infelizes) ma-nifestações31 subscritas pelo Promotor de Justiça Rogério Leão Zagallo, do Ministério Público do Estado de São Paulo, ressalta-se na página: “Bandido que dá tiro para matar, tem que tomar tiro para morrer”.

Mais uma vez, mesmerizado pela violência institucional “glamouriza-da”, o moderador colaciona em sua página a seguinte mensagem, que tem por fundo uma imagem de guarnição do batalhão da Rota, a emblemática tropa de elite da policia militar do Estado de São Paulo:

A população trabalhadora jamais usa a expressão “violência policial”. Não se pode enfrentar bandidos com flores. PM’s/SP: Façam o que deve ser feito.

Concernentemente à prisão do adolescente acusado de ter ateado fogo no corpo de dentista, no estado de São Paulo32:

Ateou fogo na dentista e foi “apreendido”, olhem o sorriso de preocupação dele por estar indo para “casa”. Ele é “di menor”, não pode ir no guarda preso e nem ser algemado, isso fere a sua inocência. Esse é o sorriso da impunidade, da falta de humanidade, do crime para você.

Relativamente à questão da maioridade penal, um dos estandartes do populismo punitivo atual, a página em comento, reforçando antigos e am-plamente difundidos estereótipos, adverte: “Maioridade penal: se tem idade para ser bandido... Tem idade para estar na cadeia”.

31 Em função dos protestos do primeiro semestre de 2013, o referido membro do Ministério Público realizou inflamada manifestação em seu perfil da rede “Facebook”, ofendendo os manifestantes que estavam impedindo-o de avançar no trânsito e incitando os policiais militares do entorno a praticar atos de violência. Após, justificou o rompante, afirmando estar preocupado com seu atraso em pegar o filho (ainda criança) na escola. O fato repercutiu enormemente e ensejou investigação pela Corregedoria do Ministério Público paulista (ROVER, Tadeu. MP vai investigar promotor sobre incitação à violência. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jun-10/mp-sp-investigar-promotor-incitou-violencia-manifestantes>. Acesso em: 1º ago. 2013).

32 A situação ensejou (re)discussão sobre a menoridade penal, típica demanda de recrudescimento de política criminal. Três adolescentes e dois homens teriam jogado álcool no corpo do dentista, em seu consultório, para forçá-lo a mostrar os locais em que guardava o dinheiro da clínica. De acordo com depoimentos, o fogo teria sido ateado por acidente (SANTOS, Bárbara Ferreira. Polícia prende dois acusados de assaltar e atear fogo em dentista em São José dos Campos. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,policia-prende-dois-acusados-de-assaltar-e-atear-fogo-em-dentista-em-sao-jose-dos-campos,1047694,0.htm>. Acesso em: 1º ago. 2013).

Page 158: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

158

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

158

O nível (quase patológico) do ensandecimento punitivo(ista), que só permite operar (ir)reflexões a partir de uma lógica binária e/ou belicista, que posiciona em postos diametralmente opostos, como inimigos, aquele que pratica o desvio e o “cidadão de bem”, fica bastante claro no seguinte post:

Não aguento mais tanta bandidagem, tantos crimes e as leis só favorecem os bandidos, sem contar os Direitos Humanos dos Vagabundos que sempre está lá pra proteger o meliante... Chega, não aguentamos mais... we go to war!

Cada uma dessas frases, compartilhadas centenas de vezes e acessa-das, certamente, outras milhares de vezes, sugere a possibilidade de utiliza-ção dos espaços das redes sociais como ferramentais formidavelmente am-plas de difusão de uma nova e cada vez mais presente espécie de moralidade que tende a condensar, por vezes em cento e quarenta caracteres (caso do Twitter), uma parca e esfacelada (in)compreensão de toda a conflitividade social que subjaz a questão criminal.

A dinâmica “democrática” instituída pelo ciberespaço fomenta, inclu-sive, a realização de inesperadas e improváveis digressões criminológicas. Nesse contexto, mesmo renomados técnicos de voleibol manifestam, sem embaraço, a sua opinião sobre a atual conjuntura político-criminal brasileira:

Chega de impunidade, ha de se enrigecer (sic) contra esse (sic) covardes (sic) queimam, estupram e matam por nada. Direitos humanos para os hu-manos!!!

Cada um destes post’s parece representar, em verdade, uma ferramen-ta individual de (re)afirmação identitária a partir da qual o usuário da rede social tende a se manifestar, convenientemente, no sentido de reforçar uma ideia preconcebida, facilmente reconhecida, já confirmada pela maioria e por isso mesmo legitimada perante toda uma comunidade de desconhecidos. Essa busca por meios de reafirmação de uma muitas vezes diluída noção de subjetividade constitui, nas lições de Zygmunt Bauman, sintoma típico de uma pós-modernidade liquidificada, volátil e solipsista, dissolvida, pois, em múltiplos, contraditórios e inconciliáveis interesses33.

Destarte, nestes espaços cuja configuração é aparentemente horizontal e comunitária, põe-se à parte, paradoxalmente, a discussão sobre a violência institucional produzida e reproduzida pelas instâncias oficiais de controle;

33 BAUMAN, Zymunt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 93.

Page 159: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

159159

deixa-se, ainda, de se discutir o que precisa ser feito para abolirmos o maior de todos os males da pós-modernidade, o sentimento de insegurança, que brota do medo e que aniquila a liberdade. Não obstante todas essas omissões, o moderador da página em comento segue, através da sua ironia, a relegar ao Outro criminalizado, protagonista maior das suas postagens, a deletéria condição de receptáculo de ódio.

Veja-se que as postagens antes relacionadas celebram, desembaraça-das, a transfiguração do compatriota em inimigo, do humano em besta mar-ginalizada. Essa tolerância tácita ou manifesta com o processo de embruteci-mento dos homens e mulheres apreendidos pelo sistema de justiça criminal está a denunciar o gozo necrofílico que subjaz cada um dos post’s transcritos: um prazer sádico e perverso que condiz a deterioração subjetiva do Outro retratado, sempre criminalizado.

Com efeito, parece-nos que o fato de o indivíduo se posicionar a fa-vor do recrudescimento das ferramentas de controle de que dispõe o sistema de justiça criminal, antes de representar o reflexo autêntico de uma opção ideológica, denota a vontade, quase mecânica (v.g., desprovida, pois, de uma razão problematizadora), imposta pela própria necessidade de criar signos de conformidade/identidade com aquilo que se acredita ser o “todo social”. Em outras palavras, fazer reverberar pelas redes sociais mensagens cujo mote é a banalização dos direitos do homem criminalizado parece constituir, atualmente, uma espécie de estratégia de “autodignificação social”: quem cri-tico não sou Eu, mas o Outro.

Pois bem, o matiz das engrenagens que fazem funcionar a ideologia punitiva nem sempre são institucionais. Os tentáculos do punitivismo estão para além dos mecanismos de intervenção que integram o sistema formal de controle administrado pelo Estado. Na era das discussões virtuais no âmbito das redes sociais, onde é ágil e informal o circular informacional, novas e di-versas formas de manifestações reivindicam espaço no debate sobre a ques-tão criminal como instrumentos de arregimentação ideológica de uma massa de pessoas capturadas pelo fantasmagórico sentimento de medo constante que caracteriza a “vida líquida” na pós-modernidade34.

Esse medo cotidiano que se semeia na publicação diária e ininterrupta de imagens e dizeres que banalizam os direitos do homem aprisionado “ser-ve de alerta em relação não só à passionalização do debate, mas, sobretudo,

34 BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 10.

Page 160: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

160

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

160

à internalização de uma repulsa social que é permissiva e favorecedora das políticas de exclusão social”35.

CONSIDERAçÕES FINAIS

Os contundentes exemplos ilustrados reafirmam, pois, desde o ponto de vista empírico, a proficuidade do ciberespaço como terreno/objeto de in-tervenção da crítica criminológica.

As proposições que foram postas na página “Quem não gosta de po-lícia é bandido” podem representar, com efeito, a gênese de uma nova e re-vigorada mentalidade punitiva que tem o potencial para servir como motor simbólico de uma produção legislativa contingencional e irracional. É dizer, a análise e a problematização dos discursos profanos no âmbito do ciberespa-ço podem propiciar a realização do auspício criminológico crítico feito pro-pagado por Nilo Batista: fazer revelar o invisível36. Noutras palavras: poder identificar e discernir os processos políticos ocultos que sustentam todas es-sas relações pré-políticas cujos clamores ecoam/ressoam, como que natural-mente, no plano legislativo37.

Compreendemos que o tom do debate sobre a questão criminal no âm-bito das redes sociais pode servir como uma espécie de termômetro a revelar as tendências, preferências e direções do punitivismo contemporâneo.

Com efeito, a análise deste locus virtual onde afluem, alheias as barrei-ras do espaço-tempo, as mais diversas opiniões sobre a violência e o crime e as suas formas de controle permite problematizar (e quase sempre pôr em xeque) a sempre injusta crítica que se faz àqueles que persistem entrinchei-rados e engajados na luta contra o desenvolvimento de uma cultura punitiva que insiste em lançar, numa mesma vala, direitos e garantias individuais, ocultado e alimentado, quase sempre em nome da defesa da sociedade (qual sociedade?), a existência de um verdadeiro estado penal de exceção38.

35 CHIES; PASSOS. Auxílio-reclusão: a bizarra transmutação de um direito social e sua colonização perversa por um populismo punitivo. In: Textos e Contextos, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 273-291, ago./dez. 2012. p. 286.

36 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 33.

37 ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 422.

38 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana de Norberto Bobbio. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 785.

Page 161: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

161161

REFERÊNCIASANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2012.ASIMOV, Isaac. Eu, robô. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan,

2007.BATISTA, Vera Malaguti. Memórias das milícias. In: Boletim IBCCrim, a. 21, n. 244, p. 3,

mar. 2013.BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos

Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.______. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.______. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.______. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2010.CHIES; PASSOS. Auxílio-reclusão: a bizarra transmutação de um direito social e sua

colonização perversa por um populismo punitivo. Textos e Contextos, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 273-291, ago./dez. 2012, p. 286.

CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Trad. Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988.

HULSMAN, Louk. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, 8, p. 246-275, 2005.

______. Entrevista a Nilo Batista. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, n. 5-6, 1998.

______; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1999.

KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996.

LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul: Notadez, n. 25, abr./jun. 2007.

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

PASSETTI, Edson. Sociedade de controle e abolição da punição. In: São Paulo em Perspectiva, v. 13, n. 3, p. 77-78, 1999.

PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Crime e interdisciplinaridade. Estudos em homenagem à Ruth M. Chittó Gauer. 1. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2013.

RAMONET, Ignacio. A explosão do jornalismo: das mídias de massa à massa de mídias. Trad. Douglas Estevam. São Paulo: Publisher Brasil, 2012.

Page 162: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

162

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

162

______. A tirania da comunicação. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

ROVER, Tadeu. MP vai investigar promotor sobre incitação à violência. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jun-10/mp-sp-investigar-promotor-incitou-violencia-manifestantes>. Acesso em: 1º ago. 2013.

SANTOS, Bárbara Ferreira. Polícia prende dois acusados de assaltar e atear fogo em dentista em São José dos Campos. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,policia-prende-dois-acusados-de-assaltar-e-atear-fogo-em-dentista-em-sao-jose-dos-campos,1047694,0.htm>. Acesso em: 1º ago. 2013.

SECRETARIA de Comunicação Social da Presidência da República. Hábitos de informação e formação de opinião da população brasileira II. 2010. Disponível em: <http://www.secom.gov.br/pesquisas/2010-12-habitos-ii/2010-12-habitos-de-informacao-e-formacao-de-opiniao-da-populacao-brasileira-ii-sul.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2013.

TAVARES, Maria Ribeiro da Silva. Estudo e sugestões sobre o reajustamento de delinquentes. Porto Alegre: Orquestra, 2013.

ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.______. O ano em que sonhamos perigosamente. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2012.

Page 163: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

163

EFICIêNCIA, gARANTIAS E JUSTIçA NO PROCESSO PENAL

effiCienCy, guArAntees And JustiCe in CriminAl proCess

Miguel Wedy*

RESUMO: No contexto atual, impõe-se um elemento de ligação entre garantias e justiça no processo penal. Esse elemento é a eficiência. Não uma eficiência meramente utilitarista, mas uma efi ciência estribada numa visão ontoantropológica, a partir do fundamento da relação de cuidado de perigo, da função de pro-teção de bens jurídicos e da finalidade que busca a justiça e a paz jurídica. Assim se poderia construir uma noção mais robusta de garantias e de justiça no processo penal. Uma noção que repercuta sobre a questão do ônus da prova e também sobre o vasto proble-ma das vedações probatórias.PALAVRAS-CHAVE: Direito penal; justiça; eficiência; prova. ABSTRACT: In the current context, we need a liaison between guarantees and justice in the criminal process. This element is efficiency. Not merely utilitarian efficiency, but efficiency onto--anthropological anchored in a vision from the foundation of the relationship of care hazard, the protective function of legal goods and purpose of seeking legal justice and peace. So if you could build a more robust notion of guarantees and justice in criminal proceedings.A notion which have repercussions on the issue of burden of proof and also on the broader issue of evidentiary seals.KEYWORDS: Criminal law; justice; efficiency; proof. SUMÁRIO: Introdução; 1 Eficiência, garantias e justiça: uma héli-ce tríplice no direito processual penal; 2 Eficiência, ônus da prova, vedações probatórias e o artigo 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988; Considerações finais; Referências.

* Advogado Criminalista, Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS, Coordenador Executivo e Professor de Direito Penal e Processo Penal do Curso de Direito da Unisinos.

Page 164: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

164

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

164

INTRODUçãO

A luta e o embate entre garantias e justiça em processo penal impõem um ponto de equilíbrio. Impõem uma ligação. E é aqui, justamente aqui, que a ideia de eficiência se apresenta como mecanismo de extrema significação para a legitimação de um processo penal acusatório e democrático.

Encontrar um ponto de equilíbrio duradouro entre justiça e garantismo no processo penal é tarefa nada fácil. Não apenas em razão de entendermos que a eficiência não pode ser vista desconectada da ideia de justiça, numa unidade de sentido, mas também em razão da existência de uma pressão natural para que a “eficiência” seja sinônimo de presteza jurisdicional e de enfrentamento da impunidade.

É inegável a existência de uma visão que permeia boa parte do racio-cínio jurídico-penal dos tempos modernos. Uma ideia utilitarista de direito e de processo. Uma ideia que acaba por observar o processo penal apenas como o aríete capaz de agilizar o procedimento, e não aquele filtro capaz de conduzir a verdade possível e válida, a partir de um clima de equilíbrio e ponderação, capaz de alcançar a justiça respeitando garantias, de forma eficiente.

A grande dificuldade, a nosso ver, reside aqui. Reside numa certa mu-dança de mentalidade, na capacidade de enfrentar os contundentes proble-mas penais de forma serena e frontal, sem perder a capacidade de, em meio ao conflito jurídico, perceber a necessidade de manutenção de garantias, a fim de alcançar a justiça de maneira eficiente. Ou seja, uma mentalidade que tenha a capacidade de ligar, de forma evidente, as ideias de eficiência, de garantias e de justiça, sem as quais o processo penal acabará por carecer de uma legitimidade maior. Um caminho de defesa inquebrantável das garan-tias, para que o processo seja eficiente na finalidade de alcançar a justiça. Ou, como disse Ferrajoli:

Um sistema penal é justificado se, e somente se, minimiza a violência ar-bitrária da sociedade. E atinge tal objetivo à medida que satisfaz as garan-tias penais e processuais penais do direito penal mínimo. Essas garantias se configuram, portanto, como outras condições de justificação do direito penal, no sentido que somente a atuação destas vale para satisfazer-lhes os objetivos justificantes.1

1 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2006. p. 318.

Page 165: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

165165

Infelizmente, o que se observa, não raro, é a incapacidade de relacionar eficiência com a ideia de justiça e de garantias. Isso se dá por culpa dos pró-prios operadores e trabalhadores do Direito, que acabaram por tomar essa ideia apenas sob um viés utilitarista ou funcionalista mais exacerbado. Esse não é o viés que julgamos correto quando se trata da ideia de eficiência. E é justamente aqui que se impõe a relevância da discussão que é trazida nas linhas que seguem.

1 EFICIêNCIA, gARANTIAS E JUSTIçA: UMA HÉLICE TRÍPLICE NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

A ideia que entendemos relevante no atual contexto histórico é uma ideia que observa a eficiência sob outro prisma. A nossa ideia é a verificação da eficiência a partir de um fundamento (a relação ontoantropológica), de uma função (a proteção subsidiária dos bens jurídicos mais importantes) e de uma finalidade (o alcançamento da justiça e da paz jurídica)2. A partir daí, com o equilíbrio e a presença desses requisitos, poder-se-ia falar de eficiência legítima em direito penal, e, por conseguinte, poder-se-ia falar também da repercussão da eficiência em processo penal.

Mas, aqui, isso ocorreria pela ligação fundamental entre essa hélice trí-plice, formada pelas ideias de garantia, de justiça e de eficiência. Quando em processo penal estivermos diante da conjunção desses predicados, que não se podem separar sob pena da perda de legitimidade e densidade axiológicas, poder-se-á falar em maior eficiência do processo penal.

Trata-se, pois, de trilhar um caminho difícil, porém necessário, capaz de fortalecer garantias e direitos fundamentais, com os pés firmemente esta-belecidos na realidade do presente, mas sem perder a capacidade de manter antigas conquistas e de olhar para o futuro, com os desafios que se apresen-tam ante o direito penal e o processo penal dos tempos atuais.

2 Ideia desenvolvida em “Eficiência como critério de otimização da legitimidade do direito penal e seus desdobramentos em processo penal”. Tese de Doutoramento na Universidade de Coimbra (2013). Sobre a ideia ontoantropológica em direito penal, estribamo-nos em COSTA, José Francisco de Faria. Noções fundamentais de direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2007; e COSTA, José Francisco de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. E também em D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios (contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico). Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

Page 166: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

166

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

166

O caminho não será fácil, ante aquela visão que está enraizada em boa parte do pensamento jurídico-penal. Observemos, por exemplo, o que escre-veu Laborinho Lúcio acerca do projeto de revisão do Código de Processo Penal de Portugal: “O projecto de revisão caminha ao arrepio dos próprios tempos, acentuando a vertente dos direitos individuais, nomeadamente no que res-peita aos direitos da defesa, em detrimento da eficácia e das soluções a esta vulgar-mente ligadas”3. Essa visão, numa dimensão mais lata, tende a vislumbrar as garantias individuais como mero obstáculo para a realização da justiça. As garantias colocadas como um impeditivo para a afirmação da justiça e do próprio Estado Democrático de Direito. Uma visão que, talvez, mesmo sem intenção, acaba por significar uma forma de fragilização de garantias e de desconsideração de fórmulas essenciais para um processo penal acusatório e autenticamente democrático4.

Como referiu Costa Andrade, o momento atual e as últimas reformas legislativas se caracterizam, essencialmente, pela

redução e neutralização de garantias de defesa; multiplicação, em número e em potencial de lesividade e devassa, dos meios institucionalizados de intromissão nos direitos fundamentais; deslocação das linhas de equilíbrio normativo do lado da liberdade, da autonomia e da dignidade, para o lado da segurança; do lado da justiça da “superioridade ética do Estado” (EB Schmidt), para o lado da eficácia e da Funktionstütikeit der Strafrechtspflege; do arguido para a ordem, a reafirmação da validade das normas e, aqui e ali, os interesses da vítima. Este é seguramente um dos metacodes centrais

3 LÚCIO, Laborinho. Processo penal e consciência colectiva. In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 148.

4 E aí não podemos esquecer, mais uma vez, as afirmações de Figueiredo Dias, lembrando Henkel e João Mendes, de que o direito processual penal nada mais é do que “direito constitucional aplicado” (Henkel) e de que “as leis do processo são o complemento necessário das leis constitucionais; as formalidades do processo são actualidades das garantias constitucionais” (João Mendes), para concluir que “daqui resultam, entre outras, as exigências correntes: de uma estrita e minuciosa regulamentação legal de qualquer indispensável intromissão, no decurso do processo, na esfera dos direitos do cidadão constitucionalmente garantidos; de que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial de tais direitos, mesmo quando a Constituição conceda àquela lei liberdade para os regulamentar de proibição de provas obtidas com violação da autonomia ética da pessoa, mesmo quando este consinta naquela” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 74-75).

Page 167: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

167167

que facilmente se poderá referenciar por detrás da generalidade das novas soluções normativas no domínio do processo penal.5

Eis um fato inegável: a tendência de apequenamento de garantias, sob o pretexto de combater novas formas de criminalidade. Tudo isso, como se a criminalidade mais grave, a que mais afeta aquela relação ontoantropológica de cuidado de perigo, não fosse ainda aquela criminalidade mais tradicional, com a violação da vida, da integridade física, da liberdade e do patrimônio das pessoas.

Deve-se, portanto, fazer uma distinção entre uma eficiência “ideal” e a eficiência meramente instrumental pretendida pelos tempos atuais. A pri-meira há de ser vista dentro do contexto que expressamos, numa unidade de sentido equilibrada pela busca da justiça e da paz jurídica, temperada pela função de proteção dos bens jurídicos, o que é próprio de uma concepção mais liberal. Outra é aquela eficiência meramente instrumental e que reper-cute, de forma direta, no processo penal, uma eficiência própria de um sis-tema jurídico despreocupado com certas garantias que foram conquistadas com sacrifícios e adversidades. Essa eficiência pretende vulgarizar garantias em detrimento do “combate à corrupção e ao crime”, de forma a “reduzir a criminalidade” e a “sensação de impunidade”.

Trata-se de uma fortíssima e sedutora ideia que credita à eficiência fun-cional ou instrumental a redução da criminalidade e a celeridade processual. Na verdade, a realidade demonstra que, de forma paralela e, talvez, mais forte, o que se diminui é a pletora de garantias que deveria ser a característica fundamental de um Estado Democrático de Direito no século XXI e não a criminalidade, bastando para isso se observar as taxas de encarceramento e, contraditoriamente, as taxas de criminalidade do Brasil, já referidas. O que se vê, de fato, é uma explosão da intervenção penal em certas áreas, com a contínua despreocupação penal em outras áreas, tudo agravado pela utiliza-ção do processo penal como um mecanismo sem densidade valorativa, sem cerne, de forma fraca e pobre do ponto de vista das garantias fundamentais.

No entanto, em que pese a capacidade de sedução desse pensamento, próprio do senso geral comum, é preciso entender que uma ideia assim não tende a dar equilíbrio ao sistema jurídico-penal. Ao contrário, uma ideia as-sim causa ainda mais impunidade, pois impulsiona o descumprimento de

5 ANDRADE, Manuel da Costa. Métodos ocultos de investigação (plädoyer para uma teoria geral). In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 528.

Page 168: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

168

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

168

formalidades processuais que possuem razão de existência e que objetivam dar racionalidade e ponderação ao sistema. Essa ideia de processo penal aca-ba por gerar um conflito pontual dentro das controvérsias judiciais, expondo a ausência de densidade das discussões jurídicas, posto que não se aplica muitas vezes o conteúdo de garantias constitucionais e, tampouco, enfrenta--se com veemência as violações de normas legais e o déficit de aplicação do texto constitucional. Via de regra, quanto mais esse discurso está impreg-nado na atividade jurisdicional, mais garantias são violadas, principalmen-te nas instâncias iniciais de julgamento, por Magistrados mais sensíveis aos apelos populares e mediáticos. Como resultado, o que se tem é um déficit de garantias. Um déficit que resulta em processos expeditos e prontos, mas que não se legitimam do ponto de vista dos princípios e da Constituição, motivo pelo qual acabam anulados ou extintos, em determinadas situações. E isso acaba por resultar num aumento da sensação de impunidade, ao menos para o senso geral comum, pois se tem a sensação de que os tribunais superiores julgam de forma mais tênue e fraca, quando, na verdade, estão a cumprir a sua razão de existência, de zelar pela uniformidade da jurisprudência e pelo respeito à Constituição. O papel que se lhes cabe não é o de realizar “justiça-mentos” ou de atender ao clamor popular, muitas vezes, os maiores inimigos da Justiça e da Eficiência, mas, sim, o de fazer justiça dentro dos limites da Constituição. E tudo isso é deletério para a democracia, pois se passa a ver o conteúdo das garantias fundamentais como um mecanismo de impedimento da aplicação da justiça, quando o que ocorre é justamente o contrário: o con-teúdo das garantias existe para dar legitimidade e eficiência à justiça e a sua aplicação.

Trata-se, pois, de uma inversão acerca da ligação entre eficiência, jus-tiça e garantias. Na prática, muitas vezes o que se depreende é a ideia de que as garantias impedem a afirmação da justiça, barram condenações crimi-nais e repelem a aplicação de penas, tornando ineficientes sanções penais e a afirmação do Direito. Uma inversão completa dessa relação. Na realidade, só se alcança justiça de fato com uma decisão que respeita garantias. Assim haverá uma decisão justa e legítima e, por conseguinte, uma decisão eficiente, que observou ou recompôs uma relação ontoantropológica de cuidado de perigo, procurou proteger um bem jurídico com densidade penal e atingiu aquela finalidade da justiça ou paz social, a partir de uma ideia de pondera-ção, equidade, equilíbrio, medianidade. A questão processual necessita ser reordenada, sob pena de sermos os responsáveis pela estruturação de um processo penal que, sob o manto da busca da verdade e da justiça, nada mais faça do que praticar a injustiça, ao desrespeitar garantias fundamentais e des-considerar uma ideia saudável de eficiência. Não é e não pode ser tal o nosso

Page 169: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

169169

compromisso, sob pena de perversão de todos aqueles valores e garantias que nos foram legados com sacrifícios, lutas e adversidades. Não podemos implementar ou manter um processo penal que seja o carrasco de garantias conquistadas após grandes asperezas e dificuldades.

Por isso, entendemos que essa hélice tríplice formada pela eficiência, justiça, garantias deve estar em equilíbrio6. Ainda que se trate de um equi-líbrio frágil, deve haver equilíbrio. Um equilíbrio que esteja atento, sempre, para essas ideias que não podem ser separadas, sob pena de enfraquecimento da legitimidade do processo penal.

Isto é, sem garantias não haverá justiça e eficiência legítima, sem justiça não há eficiência, sem eficiência não há garantias ou justiça. E, sem garantias, eficiência e justiça, não há legitimidade dentro do contexto de um Estado Democrático de Direito. Por certo que haverá aqui algum reparo, capaz de opor ou advertir que esse equilíbrio não será fácil. Por certo que não. Embora as garantias estejam expressas nas normas e nas Constituições democráticas, como aquelas de Portugal e de Brasil, a sua implementação prática depen-derá, por certo, da capacidade dos tribunais de institucionalizarem juridica-mente o texto constitucional e infraconstitucional. Dependerá da capacidade de se vislumbrar a eficiência a partir daquela ideia ontoantropológica, capaz de robustecer garantias. Dependerá de uma ideia de justiça como equilíbrio, como ponderação garantista, como equidade, como razoabilidade, como me-dianidade. Não é fácil, pois, esse equilíbrio. No entanto, ele é fundamental para a construção de um processo penal legítimo. E, importa ressaltar, esse equilíbrio não será feito de pesos iguais entre a justiça, a eficiência e as ga-rantias.

Isso em razão de que não há justiça sem garantias. Uma decisão justa sem o respeito pelas garantias perde a legitimidade. E, aqui, não falamos da legitimidade popular, o anseio do povo, a fome e a sede de justiça. Não. Essa justiça, desprovida de forma, de ponderação e de racionalidade, não raro é a própria vingança travestida de ideário nobre. Num Estado Constitucional e Democrático de Direito, a justiça judicial não se há de fazer sem formas. O contrário é a burla e a opressão. Assim, para que um processo seja eficiente e justo, ele não poderá prescindir de garantias. De garantias, que são autên-ticas conquistas de um Estado Democrático de Direito e que não podem ser

6 O termo hélice tríplice não é nosso, mas o tomamos emprestado de Henry Etzkowitz, na sua obra Universidade-indústria-governo, inovação em movimento (ETZKOWITZ, Henry. Universidade-indústria-governo, inovação em movimento. Porto Alegre: EdiPucrs, 2009).

Page 170: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

170

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

170

desprezadas. Falamos, assim, da presunção de inocência, da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal, da intimidade e da privacidade e do sigilo profissional, do direito ao silêncio, da oralidade, da publicida-de. Tais garantias não devem ser desprezadas sob o pretexto de alcançar a verdade e a justiça a qualquer preço. Na realidade jurisdicional, entretanto, não é raro que, sob a afirmação da “proporcionalidade”, boa parte dessas garantias estejam a ser violadas e diminuídas concretamente. Aí se dá um contrassenso, pois justamente pela ideia de “proporcionalidade e pondera-ção” se está a decidir de forma não razoável e imponderada, fragilizando-se garantias em nome da comodidade da investigação, numa inversão absoluta dos valores processuais, ficando o conteúdo das garantias fundamentais em segundo plano.

A realidade que nenhum sistema é capaz de esconder é que vem sendo uma constante, em vários ordenamentos jurídicos, um certo desfalecimento dessas garantias, em razão de um incremento acentuado das prisões cautela-res (especialmente no Brasil), das interceptações telefônicas, das quebras de sigilo, da introdução de meios de investigação invasivos, bem como da ideia forte de inexistência de nulidades sem o reconhecimento de prejuízos concre-tos. Esses desfalecimentos vêm gerando mais e mais impunidade, em razão da insegurança jurídica decorrente da restrição desarrazoada de garantias. Estamos a tratar, pois, do ponto mais saliente e relevante dessa tríade, sem o qual justiça e eficiência não subsistem. Importa, pois, mostrar que, num contexto assim, de um sistema que objetiva a justiça e a paz jurídica de forma eficiente, impõe-se, como fundamental e preponderante, a ideia de garantias. A garantia dá estabilidade ao sistema. Por seu maior peso, a garantia há de ser preservada num patamar mais altaneiro, ainda que uma decisão que a preserve custe uma postergação da justiça, da verdade e da paz. Isso em ra-zão de que não haverá paz e justiça sem o respeito pela formalidade racional e essencial das garantias. Com isso, não estamos a propor o absolutismo de princípios constitucionais. Não. O que estamos a propor é a refutação da rela-tivização absoluta dos princípios como se tem visto na prática judicial desses países, o que está expresso na relativização da presunção de inocência, da intimidade, do contraditório, da ampla defesa, do devido processo etc. Só desse modo é que os direitos e garantias fundamentais serão preservados.

Na atualidade, uma certa compreensão de compensação e sopesamen-to dos princípios vem esgaçando o conteúdo das garantias, mormente em razão de um tremendo apelo da mídia e de uma tendência populista do legis-lador penal. As garantias, assim, passam de uma condição de estabilizadoras do sistema para meros obstáculos. Numa perspectiva psicológica, o superego

Page 171: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

171171

representado pelas garantias vem sendo esmagado pelo id da justiça, num desequilíbrio que vem se estabilizando no sentido da refutação e da fragiliza-ção de princípios fundamentais. Um caminho que se sabe como começa, mas não se sabe onde poderá terminar, ainda mais numa sociedade esquecida dos sacrifícios do passado para o alcançamento dessas mesmas garantias.

Mas, se tudo isso é verdade, não se pode esquecer que o sistema penal e processual penal deverá ter uma eficiência mínima e republicana, com órgãos de investigação e acusação independentes e equidistantes, com Magistrados que preservem a sua imparcialidade e distribuam a justiça num tratamento igualitário das partes. Assim, um sistema ineficiente, que esqueça a busca da justiça e da paz jurídica, que descambe pela ausência de proteção dos bens jurídicos mais relevantes na seara penal, não é um sistema legítimo, pois não encontrará nem respaldo democrático e popular para se manter hígido e tampouco resguardo constitucional, já que a justiça é um fim fundamental de um direito democrático. Da mesma forma, esse processo penal deverá ter sempre no seu norte a busca da justiça e da paz jurídica, sem desconsiderar das garantias, da relevância e da densidade dos bens jurídicos, da relação ontoantropológica de cuidado de perigo. Haverá, assim, eficiência nesse sis-tema. Ou, ao menos, uma prática que se alberga também numa eficiência legítima, com um fundamento claro, uma função específica e uma finalidade íntegra. Portanto, o fim do processo também é alcançar a justiça e a paz jurí-dica. Afastando-se por completo dessa ideia, o processo passa a ser também um instrumento de proteção de determinadas parcelas da sociedade, capazes de construir uma plêiade de leis processuais penais que impossibilitem ou obstaculizem, por completo, a realização da justiça. E isso também não se pode permitir, pois então se deixa escapar a ideia de justiça e de paz jurídica, decaindo a eficiência do próprio sistema processual.

Por fim, a justiça apresenta-se como um fim absolutamente necessário e legítimo do direito penal e do próprio processo penal. Mas não uma justiça a qualquer preço. Uma justiça desabrida, demagógica, populista, eleitoreira e esquecida da razão. Uma justiça que não é justiça, mas mero “justiçamento”. Não se fará justiça, como já se referiu, sem respeito pela garantias e tampouco será fácil alcançar a justiça sem eficiência. A justiça, como foi visto, aquela ideia de decisão razoável, ponderada, equilibrada, serena, construída de for-ma equitativa, não se realiza sem um processo com garantias plenas, assegu-radas na lei e na prática judicial. Por certo que, aqui e ali, a busca da justiça obrigará a restrição de garantias, mas que isso não seja uma carta branca para a generalização das restrições da liberdade antes do trânsito em julgado, para a introdução de meios invasivos de prova como regra, para a perversão abso-

Page 172: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

172

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

172

luta da intimidade como primeiro mecanismo da investigação, muitas vezes com base em depoimentos anônimos e muito menos para a adoção de in-terpretações redutoras das garantias conquistadas com sacrifícios históricos. Que a justiça se alcance num processo eficiente, respeitador das garantias, ponderado e racional.

Por conseguinte, essa noção de hélice tríplice parece-nos capaz de mo-ver, com equilíbrio, o sistema processual penal. É bem verdade que, nessa relação entre justiça, eficiência e garantias, devem preponderar as últimas. Sem garantias não haverá decisão justa num processo eficiente. Ao contrário, haverá aí um gravíssimo déficit de legitimidade, que tenderá, cada vez mais, a se aprofundar, agudizando o cerceamento das liberdades e a destruição da intimidade e da vida privada. Essa, assim quer nos parecer, lamentavelmen-te, é uma tendência dos pueris tempos atuais. Uma tendência de fragilização de garantias. Como referimos, essa tendência aprofundará, cada vez mais, a insegurança jurídica do sistema e inclusive reforçará um ciclo criminoso decorrente do aumento da carcerização, mormente para as populações mais desassistidas.

Não se desconsidera que tal equilíbrio não será fácil, mormente em ra-zão de uma pugna constante entre o anseio de liberdade e a vontade de justi-ça e segurança. Como diz Flávia Loureiro, quando se trata do processo penal,

por um lado, a sua actuação é exigida, e com graus de celeridade e eficiên-cia até aí não pensáveis sequer, em campos para os quais, na grande maio-ria das vezes, não está preparado para agir, nem é fácil fazê-lo sem interfe-rir na esfera da liberdade de cada um; por outro, é chamado a consegui-lo, ainda assim, com respeito por um núcleo intangível de direitos e liberda-des que não pode suportar-se ver afectado, sob pena de se descaracterizar o próprio Estado de Direito.7

7 LOUREIRO, Flávia Noversa. A (i)mutabilidade do paradigma processual penal respeitante aos direitos fundamentais em pleno século XXI. In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 272. Também entendendo o problema básico do processo penal como o equilíbrio entre a eficiente repressão e a garantia dos direitos humanos dos arguidos, sejam culpados ou inocentes, leia-se MADLENER, Kurt. Meios e métodos para alcançar-se no processo penal as metas de “prazo razoável” e de “celeridade”. Observações a respeito da justiça alemã. In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 646 Ainda, segundo Kurt Madlener, inúmeros instrumentos estão a surgir para diminuir o número de demandas criminais, como o arquivamento de feitos com ou sem imposição de condições, julgamentos abreviados em razão da confissão etc. Ibid., p. 645-670.

Page 173: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

173173

Esse embate é uma constante inegável, mas que não podemos apartar em extremos inconciliáveis e totalmente dissonantes. A liberdade só se pre-serva num contexto de justiça e segurança jurídica, com garantias e respeito aos princípios fundamentais do direito penal e do direito processual penal. A liberdade atinge aí a sua maturidade, num contexto assim, com garantias, com justiça, que gera responsabilidade, estabilidade, constância. E a seguran-ça, por sua vez, possui relevância e legitimidade num contexto de liberdade, de forma que tais questões estão imbricadas, posto que ajudam a nortear o que é certo e o que é o errado para o ordenamento jurídico, indicando onde estará a justiça e a injustiça.

A diferença é que aqui se procura estruturar um sistema equilibrado que fomente a ação simultânea da eficiência, da justiça e das garantias, com preponderância para as últimas.

Não se trata, assim, de um mero equilíbrio entre liberdade e defesa so-cial8, mas, sim, de estruturar uma noção que atente para todas essas questões

8 Nesse sentido parece argumentar Scarance Fernandes: “São dois os direitos fundamentais do indivíduo que interessam especialmente ao processo criminal: o direito à liberdade e o direito à segurança, ambos previstos no caput do art. 5º da CF. Como decorrência deles, os indivíduos têm direito a que o Estado atue positivamente no sentido de estruturar órgãos e criar procedimentos que, ao mesmo tempo, lhes provenham segurança e lhes garantam a liberdade. Dessa ótica, o procedimento a ser instituído, para ser obtido a um resultado justo, deve proporcionar a efetivação dos direitos à segurança e à liberdade. Em outros termos, o direito ao procedimento processual penal consiste em direito a um sistema de princípios e regras que, para alcançar um resultado justo, faça atuar as normas do direito repressivo necessárias para a concretização do direito fundamental à segurança, e assegure ao acusado todos os mecanismos essenciais para a defesa de sua liberdade. De maneira resumida, um sistema que assegure eficiência com garantismo, valores fundamentais do processo penal moderno” (FERNANDES, Antônio Scarance. Reflexões sobre as noções de eficiência e de garantismo no processo penal. In: FERNANDES, Antônio Scarance; ALMEIDA, José Raul Gavião de; MORAES, Maurício Zanóide de (Org.). Sigilo no processo penal, eficiência e garantismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 9-10). Na mesma linha: GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996. Não se pode deixar de apontar, como relevante, a distinção de Scarance Fernandes acerca da “eficiência do processo” daquela “eficiência no processo penal”. Assim, segundo Scarance Fernandes, a “eficiência no processo ou eficiência da relação jurídica leva em conta principalmente a eficiência na atuação dos sujeitos processuais, ou seja, a eficiência na atuação do juiz, do promotor ou querelante, do acusado e de seu defensor. Já a eficiência dos atos que o compõem, quando vistos principalmente na sequência que devem seguir”. Já no que diz respeito àquela eficiência correlata à finalidade do processo, existiriam três posicionamentos. Um “atribui ao processo penal a finalidade de assegurar a defesa do acusado. Sustenta que,

Page 174: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

174

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

174

sem deixar de colocar sempre à frente a noção de garantias. Colocar a no-ção de garantias num patamar inferiorizado pode ser o primeiro passo para um sistema invertido e fraco do ponto de vista dos direitos fundamentais da pessoa humana – sem contar que, a médio e longo prazo, essas tendências de fragilização de garantias tendem a se vulgarizar, de forma a tornar uma regra aquilo que deveria ser uma exceção, como uma prisão cautelar, uma interceptação telefônica, uma quebra de sigilo, por exemplo.

E, com o máximo respeito, não é isso o que se almeja. O que o presente estudo almeja e pretende é demonstrar como a eficiência opera como critério de otimização da legitimidade em direito penal e que repercute sobre o pro-cesso penal. Como essa ideia, que não é irrelevante, pode repercutir de forma densa sobre o processo penal, assegurando justiça, preservando garantias e tornando mais eficiente e legítimo o sistema em que estamos a trabalhar.

2 EFICIÊNCIA, ÔNUS DA PROVA, VEDAçÕES PROBATóRIAS E O ARTIgO 5º, LVII, DA CONSTITUIçÃO FEDERAL DE 1988

Uma das questões mais difíceis e tormentosas do direito penal e pro-cessual penal é aquela questão que diz respeito ao ônus da prova criminal. Como regra, os ordenamentos jurídicos de países democráticos estabelecem,

historicamente, o processo penal se afirmou como instrumento necessário para evitar que se impusesse a alguém uma pena sem que pudesse defender-se. Seria, então, eficiente o processo que assegurasse ao acusado os meios para o exercício de sua defesa, de modo a impedir condenações injustas. Para outra corrente, a finalidade do processo é permitir aos órgãos da persecução a apuração da verdade e a punição dos autores de infrações penais. Essa posição dá maior predominância à acusação do que à defesa do acusado, pois eficiente seria o processo que permitisse aos órgãos da persecução penal a apuração dos fatos criminosos e a condenação dos seus autores. Finalmente, terceira posição entende que a finalidade do processo penal é a obtenção de um resultado justo que se legitime pelo procedimento adequado. Deve equilibrar as posições das partes, sem dar predominância a qualquer delas, procurando compensar eventuais desigualdades naturais ou jurídicas entre elas. Eficiente, nessa ótica, é o processo justo que assegure a ambas as partes os exercícios de seus direitos e as proteja com as garantias constitucionais” (Ibid., p. 24-25). Sem esquecer que, para Scarance Fernandes, a eficiência no processo penal “é a capacidade de um ato, de um meio de prova, de um meio de investigação, de gerar o efeito que dele se espera” (Ibid., p. 25). Em que pese a respeitabilidade desses posicionamentos, não podemos concordar com o fato de que a eficiência se veja nesses prismas. Para nós, não cansamos de repetir, ela há de ser vista numa unidade de sentido entre as ideias de justiça, paz jurídica, proteção de bens jurídicos e manutenção ou refazimento da relação ontoantropológica de cuidado de perigo. O que repercute também sobre o processo penal, no instante em que a eficiência deve também ser vista num contexto de equilíbrio com a justiça e com as garantias.

Page 175: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

175175

como princípio fundamental, que o ônus da prova esteja sob o encargo da acusação, a partir de uma decorrência da presunção de inocência9.

Essa é uma garantia de grande repercussão prática dentro de um pro-cesso penal legítimo. Uma garantia que vai repercutir diretamente sobre os direitos dos cidadãos, no instante em que impõe ao órgão acusador a com-provação de uma ação ou omissão típica, ilícita e culpável.

E isso se impõe num sistema que seja aberto, democrático, plural, pro-porcional, ponderado e eficiente. Não se pode aceitar que um sistema que privilegia a ideia de pessoa humana seja refratário a tal princípio. Esse siste-ma até poderia ser minimamente eficiente, numa perspectiva funcional mais extrema, mas não seria nunca um sistema legítimo, ainda mais à luz do orde-namento jurídico nacional e internacional10.

O reflexo dessa questão repercute sobre a questão da liberdade do réu ou imputado, como se verá adiante, e ainda sobre a gestão e o ônus da prova criminal. E qual a razão disso? É que a ausência, a ilicitude ou a insuficiência das provas hão de levar o réu à absolvição. Portanto, essa questão repercute sobre o que é de extraordinário no homem: a sua liberdade.

E, assim, não é raro que se ouça a afirmação de que o ônus da prova é questão que diz respeito apenas à acusação. E isso não está errado. Bem ao contrário, é uma decorrência clara do disposto do art. 5º, LVII, da Constitui-ção Federal do Brasil. Se está presente a presunção de inocência ou de não culpabilidade como garantia fundamental, essa presunção deve valer quan-do se trata da questão da gestão da prova criminal.

Ocorre que, nos dias atuais, algumas construções típicas, especialmen-te aquelas de perigo abstrato, quando interpretadas em determinadas situ-ações, acabam, na verdade, por inverter o onus probandi. Uma inversão que

9 No caso do Brasil, o art. 5º, LVII, da Constituição Federal: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

10 Do ponto de vista histórico, tal garantia remonta ao direito romano e já vinha assegurada na Declaração da Virgínia (1776) e na Declaração dos Direitos do Homem (1789). Atualmente, além da previsão constitucional, vem também expressa na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1966), na Convenção Européia dos Direitos do Homem (1950) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 11, I). Um bom resumo em FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2006.

Page 176: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

176

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

176

atenta, de forma evidente, contra a garantia da presunção de inocência e que também perverte a ideia do in dubio pro reo, também uma decorrência do dis-posto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.

Vejamos os exemplos referidos do simples porte de arma sem a devi-da autorização, “o trazer consigo para consumo substância entorpecente” e, especialmente, a “embriaguez ao volante”. Não raro o que se dá, especifica-mente, é o preenchimento em tese e formal do tipo penal. Não se perquire a significância, a ofensividade, a eficiência da conduta e tampouco a existência de um bem jurídico protegido. Em tais situações, quando o operador do Di-reito assim raciocina, o que se está a fazer, de fato, é impor ao réu a carga de uma prova, ainda que a acusação não se tenha desincumbido de prova alguma, ainda que simplesmente tenha feito a descrição meramente formal de uma conduta típica. Trata-se, pois, de uma evidente inversão do onus pro-bandi com a aniquilação do chamado in dubio pro reo.

Mas essa questão não se esgota aí. Ela também se reflete, como veremos mais adiante, na questão da gestão da prova, na imparcialidade do julgador e na questão da verdade no âmbito do processo penal.

Por enquanto, porém, o que cabe é ressaltar que uma percepção de efi-ciência, não exatamente aquela que estamos a propor, tem se desenvolvido no âmbito do processo, especialmente para aumentar a carga de prova do réu e para estabelecer uma profusão de pequenas inversões processuais, a fim de privilegiar um certo “eficientismo processual”.

E, assim, se impõe que asseveremos, a partir de nossa concepção, cer-tos pontos que nos parecem transcendentais para que a eficiência que referi-mos tenha uma adequada repercussão sobre o processo penal.

O primeiro ponto que se nos apresenta como fundamental é aquele que decorre da presunção de inocência e que impõe o ônus da prova apenas e tão somente para a acusação. Ora, se o réu é inocente, e assim estamos a presu-mir, o que deve ele provar? Nada. A ele não incumbe nenhum ônus proba-tório. Sua conduta pode ser absolutamente passiva no curso de um processo. Pode ele deixar apenas que a acusação se desincumba do dever de provar o que relatou na inicial da ação penal. É a acusação que deve provar a imputa-ção formal. Não é o réu que deve provar a inocência em sentido contrário11.

11 Nessa linha, LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2007. p. 519.

Page 177: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

177177

E, se assim é, o que se pode depreender é que certas construções típi-cas, desapegadas das ideias de ofensividade, proporcionalidade, relevância e eficiência, acabam, na prática, por inverter o ônus processual de provar a acusação. Por isso, deve-se repelir toda construção de ilícito-típico que não se coadune com aqueles critérios que antes expusemos e que, por fim, acabam por romper também com a presunção de inocência, quando emoldura o in dubio pro reo12.

Mas é importante ver mais adiante. Isso em razão de que não descon-sideramos que ao réu também incumbe se desvencilhar de certas cargas pro-batórias, se assim o desejar. Imagine-se a situação de uma acusação lastreada em vasto material probatório contra o réu, que indica a materialidade com-provada e a autoria do delito. Caso a defesa fique inerte, numa postura passi-va, o réu acabará por ser fatalmente condenado. Por isso, a necessidade de a defesa se desincumbir de certas cargas de prova no curso da ação penal. No entanto, se assim não o fizer, acabará por perder a possibilidade de provar a inocência do réu ou de obter a absolvição por outro motivo, como a dúvida geradora da insuficiência de provas.

Isso não quer dizer uma inversão do ônus probatório. O que a acusação deve provar é o que consta da inicial. Se assim o fizer, o réu fatalmente será condenado, caso não traga elementos reais ou argumentativos que destruam ou fragilizem a acusação. E, aqui, por conseguinte, temos de ponderar a po-sição de Aury Lopes Júnior, quando afirma que só a acusação possui carga probatória. Na verdade, o réu possui o direito de se desincumbir de uma

12 Ainda, sobre o ônus da prova, leia-se Ferrajoli, ao referir ser esse ônus uma incumbência da acusação: “Sendo a inocência assistida pelo postulado de sua presunção até prova em contrário, é essa prova contrária, que deve ser fornecida por quem a nega formulando a acusação. Daí o corolário do ônus acusatório da prova expresso pelo nosso axioma A9 nulla accusatio sine probatione. Por outro lado, a rígida separação dos papéis entre os atores do processo, que como se viu nos parágrafos 10.7 e 39.3 forma a primeira característica do sistema acusatório, impede que tal ônus possa ser assumido por sujeitos que não da acusação: não pelo imputado, a quem compete o contraposto direito de contestação, e de modo algum pelo juiz, que tem ao invés a função de julgar livremente a credibilidade das verificações e das falsificações exibidas. Do mesmo modo que ao acusador são vedadas as funções judicantes, ao juiz devem ser em suma vedadas as funções postulantes, sendo inadmissível a confusão de papéis entre os dois sujeitos que caracteriza o contrário do processo misto, em que o Ministério Público forma as provas e decide acerca da liberdade pessoal do imputado e o juiz, por sua vez, tem poderes de iniciativa em matéria probatória e desenvolve de fato a investigação com o auxílio da acusação” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 562).

Page 178: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

178

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

178

“carga probatória”, pois, se assim não o fizer, acabará por ser condenado, caso haja provas acusatórias suficientes em contrário. Ademais, a tese de-fensiva, via de regra e, por óbvio, não consta da inicial acusatória, devendo a acusação provar a “sua tese”, aquela que está escrita na prefacial. Por isso, não podemos aceitar no todo a alegação de que o réu sequer deve provar uma causa excludente de ilicitude, quando a alega. Ora, tal causa excludente, via de regra, não consta da inicial. É trazida pelo réu, em sua defesa. Se assim é, deve ele carrear aos autos a prova de sua alegação, sob pena de trazer ape-nas alegações “ao vento”, desabrigadas por completo de qualquer elemento ou argumento probatório, enfraquecendo a sua própria defesa. Ainda assim, não nos parece equivocada a afirmação de que, “se o réu aduzir a existência de uma causa excludente da ilicitude, cabe ao acusador provar que o fato é ilícito e que a causa não existe (através de prova positiva)”13.

Ora, é o acusador quem deve provar que o fato descrito na inicial é ilícito. Não há dúvida disso. O acusador, de qualquer forma, deverá provar que o fato é típico, ilícito e culpável. Se não o fizer, o réu será absolvido. Mas isso não significa que a defesa não tenha uma carga de carrear aos autos os elementos probatórios para coadjuvar a sua tese defensiva, que não constava da inicial. A acusação, por sua vez, possui o ônus de provar o que consta da inicial e nada mais, o que não é pouco, pois assim estará a confirmar a acu-sação. Confirmada a acusação de que o fato é típico, ilícito e culpável, o réu deverá ser condenado, caso haja, evidentemente, ofensividade, significância e eficiência da conduta. Como diz Aury Lopes Júnior, o que assim podemos conceber, como já explicamos ao tratar do pensamento de Goldschmidt, é uma assunção de riscos. A defesa assume riscos pela perda de uma chance probatória. Assim, quando facultado ao réu fazer prova de determinado fato por ele alegado e não há o aproveitamento dessa chance, assume a defesa o risco inerente à perda de uma chance, logo, assunção do risco de uma senten-ça desfavorável. Exemplo típico é o exercício do direito ao silêncio, calcado no nemo tenetur se detegere. Não gera um prejuízo processual, pois não existe uma carga. Contudo, potencializa o risco de uma sentença condenatória. Isso é inegável14.

Ainda assim, parece-nos que não se deve comparar o direito ao silêncio com aquela situação do réu que não fica em silêncio e que, ao invés de refutar

13 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade processual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2007. p. 521.

14 Ibid., p. 519.

Page 179: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

179179

a tese acusatória por ausência de provas, por exemplo, acaba por alegar uma outra tese, que excluiria a ilicitude. Uma tese que não constava, por óbvio, da prefacial e que carece absolutamente de provas. Mas é à acusação que incum-be provar, na verdade, exatamente o que consta da inicial. Assim, se a defesa não se desincumbir de trazer a prova de suas alegações, poderá acabar por ver repelida a sua tese, que carecia de provas.

Essa questão é relevante quando se trata de eficiência penal. E isso se dá em razão da necessidade e possibilidade de se compatibilizar eficiência e garantias. Um processo penal eficiente deve preservar garantias fundamen-tais, como aquela decorrente da presunção de inocência e que impõe o ônus da prova da inicial para a acusação.

Inverter esse ônus e atribuí-lo à defesa seria perverter não apenas um pressuposto vital de um processo democrático, como também enveredar de-cisivamente por um processo penal inquisitorial e autoritário, contrário àque-la garantia constitucional expressa no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.

Da mesma forma, afirmar que a defesa não necessita absolutamente se desincumbir de provar o que alega comporia claramente um processo de formatação ineficiente, pois desapegado da ideia de proteção do bem jurídi-co, de justiça e de paz jurídica. Isso não significa que o fato de a defesa não provar totalmente o que alega acarrete, por si só, uma condenação criminal.

Não. A realidade é que a acusação é que possui o ônus de provar o que consta na inicial acusatória. A não confirmação do fato descrito na inicial, em razão da insuficiência de provas, de não se tratar de fato típico ou da exis-tência de dúvidas sobre a excludentes de ilicitude ou de culpabilidade deve redundar, por certo, na absolvição do réu.

O equívoco de uma posição mais conservadora parece ser justamente o de que a dúvida acerca de uma excludente de ilicitude ou de culpabilidade deva ser interpretada contra o réu. Mas é claro que não. Havendo dúvida, não havendo a certeza da ilicitude ou da culpabilidade da conduta, o que se impõe é a absolvição15. O que estamos a afirmar é que a defesa possui uma

15 Assim também para BADARÓ, Gustavo H. R. I. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 310-311. Para Badaró, “demonstrada a existência da excludente, a sentença será absolutória, não sendo sequer necessário recorrer às regras sobre ônus da prova. Este interesse, contudo, não se confunde com o ônus de provar. Se o acusado, embora interessado em provar plenamente a ocorrência da excludente, não consegue levar ao juiz a certeza de sua ocorrência, mesmo assim, se surgir a dúvida sobre sua ocorrência – o que significa que o acusador não conseguiu desincumbir-se do seu ônus de provar plenamente a inocorrência

Page 180: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

180

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

180

carga probatória, não a de provar sua inocência, mas, quando necessário, ao menos deve carrear elementos ou argumentos que coloquem em dúvida a existência da ilicitude ou da culpabilidade16.

Tudo isso é verdade. O relevante é que a noção de eficiência, relacio-nada com a noção de garantias e de justiça, perpassa a questão do ônus da prova, impondo-o para a acusação. Mas a questão da eficiência vai além dis-so, pois se imiscui também nas chamadas vedações probatórias. E mais, a eficiência repercute sobre a questão das vedações probatórias, pois apontará se o sistema tende mais para uma preservação de garantias, ou, pelo contrá-rio, tende mais para uma realização da justiça mais simbólica.

E essa tentativa de realização de uma justiça mais simbólica está a des-carnar as garantias processuais penais. Sob o manto de um discurso eficien-tista, o que se vem fazendo, em não poucas partes, é a absoluta desconsidera-ção das vedações probatórias17.

da excludente –, a consequência será a absolvição. Em tal caso, fica claro, portanto, que o acusado tinha interesse em provar, por exemplo, a legítima defesa, mas isto não significa que tivesse o ônus de demonstrar a ocorrência da excludente de ilicitude” (Ibid., p. 324).

16 Com o mesmo entendimento sobre as excludentes de culpabilidade, ibid., p. 329. Também DIAS, Jorge de Figueiredo. Ônus de alegar e de provar no processo penal? Revista de Legislação e de Jurisprudência, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, n. 155, p. 121-143, 1971. E ainda: CORDERO, Franco. Procedura penale. 7. ed. Milano: Giuffrè, 1983. p. 930.

17 Relevante, sobre a origem da expressão “proibição probatória”, o estudo de Kai Ambos, referindo que Ernst Beling, há mais de um século, elaborou o termo, descrevendo-o como aquela situação em que “existem limitações à busca e à averiguação da verdade na investigação operada no processo penal, isto em razão de interesses contrapostos de índole coletiva e individual. De modo que a fixação de tais limitações probatórias depende, principalmente, do status outorgado no ordenamento jurídico à posição do indivíduo perante o poder do Estado” (AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo acusatório e a vedação probatória perante as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 81-82). De Beling, relevante a tradução de Kai Ambos e Oscar Julián Guerrero: Las prohibiciones de prueba como límite a la averiguación de la verdad en el proceso penal. In: AMBOS, Kai; GUERRERO, Oscar Julián. Las prohibiciones probatorias. Bogotá: Temis, 2009. p. 3-56. No Brasil, leia-se a Constituição Federal, no seu art. 5º, III (ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante), LVI (são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos), LVIII (o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei), LXIII (o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado). Em Portugal, o art. 32º da Constituição da República, no seu

Page 181: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

181181

Não desconhecemos que a doutrina distingue entre regras de produ-ção e de proibição de prova. Como salienta Aires de Sousa, as primeiras têm por objectivo disciplinar o modo e o processo de obtenção da prova, não de-terminando, se infringidas, a proibição de valoração do material probatório. Segundo Figueiredo Dias, as regras de produção da prova configuram “me-ras prescrições ordenativas de produção da prova, cuja violação não poderia acarretar a proibição de valorar como prova (mas) unicamente a eventual responsabilidade [...] do seu autor”. As proibições de prova constituem ver-dadeiros limites, obstáculos à descoberta da verdade, à determinação dos factos que constituem objecto do processo, arrastando, em regra, a proibição de valoração da prova. Como exemplos, pode apontar-se a proibição de tema de prova, uma vez que determinados factos não podem ser objecto de prova (art. 137º) e a proibição de determinados métodos de prova (art. 126º)18.

Também não desconsideramos que hoje são poucas as vozes a seguir a crença de Beling e Henkel, segundo a qual a identificação em concreto de uma proibição de produção de prova teria, necessariamente, como reverso, uma proibição de valoração da prova19.

Isso não significa, porém, que, em nosso juízo, não se possa construir uma noção de vedações probatórias que alinha e iguala, em certas situações mais duras, uma vedação de produção e valoração de provas. Esse retorno nos parece necessário no atual momento, ao menos em casos de certa pecu-liaridade.

Assim, parece-nos que se impõe um reforço necessário e fundamental para garantir um agir eficiente e garantista do Estado, de forma a alcançar a justiça de forma elevada. Como adverte Costa Andrade:

A exigência da superioridade ética do Estado (Eb. Schmitt), das suas mãos limpas (Radbruch) na veste de promotor da justiça penal, sem o que será pírrica toda a vitória alcançada na luta contra o crime, vem sendo recor-rentemente glosada pelos autores. Nesta linha, aponta Hassemer a “perda da dignidade e distância que o Estado a si mesmo se inflige”, através da

nº 6: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.

18 SOUSA, Susana Aires de. Agent provocateur e meios enganosos de prova. Algumas reflexões. In: Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 1212.

19 ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 58.

Page 182: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

182

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

182

proibições de prova, que significa o encurtamento da diferença ética que deve subsistir entre a perseguição do crime e o próprio crime. O Estado, prossegue o autor, “expõe-se ao perigo da erosão daquela superioridade moral do processo penal que constitui a justificação das medidas coercivas que nele podem vir a ser aplicadas”.20

Em sentido convergente, também referido por Costa Andrade, Otto considera que

o aproveitamento de um meio de prova, obtido à custa da dignidade hu-mana do arguido, para a sua condenação, “contraria a ideia de direito a cuja realização o processo penal está preordenado. Quem, em ordem à re-alização da ideia de direito, tira vantagens da sua violação, perde credi-bilidade e sacrifica, por via disso, a eficácia na sua tentativa de emprestar vida e força real à ideia de direito”. O que fica dito ajudará a compreender a permeabilidade – de algum modo, a “colonização” – da perseguição pe-nal pelos sentidos e injunções que radicam na dignidade, na autonomia e nas liberdades do arguido. O que implica o reforço e a multiplicação das barreiras à procura da verdade, sc., das proibições de prova. Pode, assim, emergir proibições de prova que, mais do que impostas pela complexidade do ambiente (direitos fundamentais do arguido), representam limitações assumidas pelo próprio sistema processual penal, a partir de sua abertura e reinterpretação autorreferente do significado normativo e pragmático dos direitos fundamentais.21

Trata-se, pois, como aponta Costa Andrade, de uma experiência pró-xima de Babel22.

Falemos claramente sobre o verdadeiro “pantanal” de pequenas e grandes ilegalidades processuais que, todos os dias, são praticadas e coad-juvadas pela jurisprudência e por parte da doutrina. Sobre aqueles ilícitos na produção e utilização de provas que o calo profissional tornou um “fato consumado”, por intermédio de uma proliferação sem precedentes de uma ideia imponderada de proporcionalidade.

A noção de que a verdade não pode ser perseguida a qualquer preço cada vez mais se enfraquece com os “modernos” meios de investigação e

20 ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, reimpressão, 2006. p. 73-74.

21 Ibid., p. 73-74.

22 Como diz Costa Andrade, nessa temática, “falando todos do mesmo (proibições de prova), raros falam, afinal, da mesma coisa” (Ibid., p. 19).

Page 183: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

183183

com técnicas ultra-avançadas de violação da intimidade, a fim de se alcançar a justiça. Cada vez mais, fica robustecida uma ideia de invasão da intimidade e de antecipação da colheita dos materiais probatórios, ainda que embasados no anonimato e na perversão da ideia de pessoa humana.

E tal fato não é circunscrito a esse ou aquele país. Como salienta Costa Andrade,

durante muito tempo ter-se-á acreditado que o juiz poderia figurar como barreira eficaz contra o recurso exagerado às medidas. Uma expectativa que, como de todos os lados hoje se reconhece, os factos acabaram por frus-trar em toda a linha. Sem poupar nas palavras, hoje é corrente falar-se de “capitulação dos tribunais”.23

Por certo, como dissemos, não é fácil equilibrar justiça, eficiência e ga-rantias. Porém, em nossa visão, o respeito pelas garantias trará maior segu-rança jurídica e, consequentemente, menor impunidade e mais justiça. Não que aquele conflito entre garantias e de anseio de justiça não se configure, mas, sim, que não se faça dele, como se tem visto, um argumento permanente e perene da prática judicial para solapar direitos individuais e coletivos.

Um direito eficiente não pode tolerar o apequenamento de fórmulas essenciais à democracia, sob pena de permitir e reconhecer, logo adiante, eventuais abusos que deverão ser corrigidos. Daí o motivo pelo qual há uma relação íntima entre as proibições de prova e o regime das nulidades. As úl-timas como sanção das primeiras24.

As vedações probatórias, por conseguinte, possuem um relevantíssimo papel, pois possibilitarão que a estabilidade das garantias seja mais encorpa-da. Há certas garantias que não resistem ao entrechoque cotidiano do princí-pio da proporcionalidade, acabando por ceder ante os interesses de persecu-ção penal, anseios de justiça e pressões da imprensa e da população.

23 ANDRADE, Manuel da Costa. Métodos ocultos de investigação (plädoyer para uma teoria geral). Justiça penal portuguesa e brasileira: tendências de reforma. In: Colóquio em Homenagem ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, p. 115, 2007. Ainda segundo Costa Andrade, tratando-se dos meios ocultos de obtenção de prova, estudos empíricos de Asbrock demonstram que “a regra é o deferimento em praticamente 100% dos pedidos e, sobretudo, o deferimento com generalizada remissão ou assunção passiva dos argumentos e fundamentação avançadas pelo Ministério Público” (Ibid., p. 116).

24 ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, reimpressão, 2006. p. 193-194.

Page 184: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

184

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

184

CONSIDERAçÕES FINAIS

Impõe-se, assim, uma noção de vedações probatórias que não se furte de atentar para aquela hélice tríplice que antes referimos25. Assim, quanto mais garantia houver, mais seguro e estável será o sistema jurídico penal, de forma que mais certa será a justiça. Por via de consequência, esse sistema será mais eficiente, pois permitirá um alargamento de garantias, uma estabilidade maior, com um incremento da justiça.

Mas, para isso, preciso será romper com um paradigma funcional ex-tremado que almeja atingir fins e mais fins, solapando direitos e fórmulas legais essenciais para a manutenção da democracia.

Na verdade, pensamos que fundamental será desdobrar aquela hélice tríplice em um catálogo de consequências no instante em que estivermos a tratar da repercussão da eficiência sobre as vedações probatórias no processo penal.

Para nós, quanto mais garantista e estável for um sistema, mais perto da justiça ele estará, pois redundará em menor impunidade. Dessa forma, o reflexo de nossa ideia de eficiência sobre o processo alcança aqui uma reper-cussão extraordinária, com ampla repercussão prática.

Uma repercussão que decorre da força da ideia de garantia naquela hélice tríplice que deve fazer avançar o processo penal. E uma repercussão

25 Segundo Kai Ambos, há certa órbita de direitos, nas quais “existem áreas que estão protegidas das possíveis ingerênciais estatais por parte do legislador, resultando, por consequência, que a apuração dos fatos delituosos, através de determinados meios probatórios, pode resultar inadmissível e proibida. O investigado ou imputado é sujeito ativo, e não um simples objeto de investigação do processo penal, sua liberdade de decisão e de ação é intangível e invulnerável, razão pela qual, de maneira alguma, pode ser objeto de desprezo ou de manipulação. A manipulação da vontade livre do investigado ou imputado, por exemplo, por meio da ameaça, coação, erro, ardil ou táticas similares, devem ser proibidas e, consequentemente, coibidas através de sanções. Em corolário, as proibições probatórias resultam de um componente individual e de outro coletivo: por um lado, servem para a garantia dos direitos fundamentais, protegendo o investigado ou imputado de utilização, contra si, de provas ilegalmente obtidas – no sentido amplo de proibição da imposição da responsabilidade criminal, através de tais provas – ainda que, não obstante, o reconhecimento desta utilidade, devido ao princípio da culpabilidade sempre podem tais provas ser utilizadas para fins de exculpação, ou de defesa; já, por outro lado, se preserva – e aqui está o componente coletivo – a integridade constitucional, particularmente através da realização de um processo justo (fair trial)” (AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo acusatório e a vedação probatória perante as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 82-83).

Page 185: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

185185

que traz um decálogo que, para nós, é fundamental para dar estabilidade ao sistema.

Um decálogo com as seguintes vedações probatórias: 1) vedação da produção e utilização de provas ilícitas e derivadas das ilícitas em desfavor do réu; 2) vedação da produção e utilização de provas atentatórias contra o direito ao silêncio; 3) vedação da produção e utilização de provas direta-mente decorrentes de denúncias anônimas para fins de condenação criminal; 4) vedação da produção e utilização do agente infiltrado e encoberto; 5) veda-ção da produção e utilização do agente provocador; 6) vedação da utilização de meios e exames invasivos de prova; 7) vedação da produção e utilização da delação premiada não espontânea; 8) vedação da produção e utilização de meios de prova violadores da intimidade como prima ratio; 9) vedação da utilização do princípio da proporcionalidade como instrumento hermenêuti-co para a aceitação da prova ilícita ou da prova ilícita por derivação contra o réu; 10) vedação da produção e utilização de prova testemunhal sem devido processo e contraditório plenos26.

Cada uma dessas vedações que exigem, por óbvio, um aprofundamen-to, o que se não poderá fazer aqui, pela exiguidade do espaço.

Porém, ficam traçados os primeiros passos de um caminho, pelo qual se poderá fortalecer e avivar aquelas garantias que nos foram legadas com sacrifícios de toda ordem.

REFERÊNCIASAMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo acusatório e a vedação probatória perante

as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.ANDRADE, Manuel da Costa. Métodos ocultos de investigação (plädoyer para uma teoria

geral). In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009.

ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, reimpressão, 2006.

ANDRADE, Manuel da Costa. Métodos ocultos de investigação (plädoyer para uma teoria geral). Justiça penal portuguesa e brasileira: tendências de reforma. In: Colóquio em

26 Importante referir ainda a distinção entre proibições de utilização de prova (Beweisverwertungsverbote) e proibições de produção de provas (Beweiserhebungsverbote), em que as primeiras vedam o uso judicial das provas obtidas e as segundas advêm do regulamento legal ou da limitação de obtenção de provas. Sobre o tema: AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo acusatório e a vedação probatória perante as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 85.

Page 186: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

186

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

186

Homenagem ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2007.

BADARÓ, Gustavo H. R. I. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.BELING. Las prohibiciones de prueba como límite a la averiguación de la verdad en el

proceso penal. In: AMBOS, Kai; GUERRERO, Oscar Julián. Las prohibiciones probatorias. Bogotá: Temis, 2009.

CORDERO, Franco. Procedura penale. 7. ed. Milano: Giuffrè, 1983. COSTA, José Francisco de Faria. Noções fundamentais de direito penal. Coimbra: Coimbra

Editora, 2007.COSTA, José Francisco de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão

do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. DIAS, Jorge de Figueiredo. Ônus de alegar e de provar no processo penal? Revista de

Legislação e de Jurisprudência, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, n. 155, p. 121-143, 1971.

ETZKOWITZ, Henry. Universidade-indústria-governo, inovação em movimento. Porto Alegre: EdiPucrs, 2009.

FERNANDES, Antônio Scarance. Reflexões sobre as noções de eficiência e de garantismo no processo penal. In: FERNANDES, Antônio Scarance; ALMEIDA, José Raul Gavião de; MORAES, Maurício Zanóide de (Org.). Sigilo no processo penal, eficiência e garantismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2006. GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996.LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2007.LOUREIRO, Flávia Noversa. A (i)mutabilidade do paradigma processual penal respeitante

aos direitos fundamentais em pleno século XXI. In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009.

LÚCIO, Laborinho. Processo penal e consciência colectiva. In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009.

MADLENER, Kurt. Meios e métodos para alcançar-se no processo penal as metas de “prazo razoável” e de “celeridade”. Observações a respeito da justiça alemã. In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009.

MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009.

SOUSA, Susana Aires de. Agent provocateur e meios enganosos de prova. Algumas reflexões. In: Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

WEDY, Miguel Tedesco. Eficiência como critério de otimização da legitimidade do direito penal e seus desdobramentos em processo penal. Tese de Doutoramento na Universidade de Coimbra, 2013.

Page 187: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

187

CRIMES DE COLARINHO BRANCO, SELETIVIDADE SISTÊMICA E MODELO SANCIONATóRIO à LUz

DA ANÁLISE ECONôMICA DO DIREITO PENALguilherMe gouvêA de Figueiredo*

RESUMO: Pela via de um método que preza pela interdisciplina-ridade, o fulcro do trabalho é acrescer à problemática que envolve a criminalidade de colarinho branco – nomeadamente à aborda-gem criminológica que denuncia sua patente ineficácia e a seleti-vidade das instâncias formais de controle – o estudo desenvolvi-do por juristas e economistas que, a partir da chamada “análise econômica do direito penal” e do desenvolvimento da ideia de “escolha racional”, buscam conceber um novo modelo punitivo e uma reconfiguração da ideia e legitimidade (utilidade) da pena criminal e do próprio direito penal.PALAVRAS-CHAVE: Política criminal; direito penal econômico; penologia; direito econômico; análise econômica do direito.ABSTRACT: By means of an interdisciplinary method, the main goal of this paper is to provide a contribution to the criminologi-cal discussions concerning white-collar criminality – namely, the criminological aprroaches that denounce its conspicuous ineffec-tiveness and the selectiveness of the formal instances of control – related to the studies developed by legal scholars and economists that, from the perspective of the so-called “economic analysis of law” and the idea of “rational choice”, seek to establish a new punitive model and a reconfiguration of the idea and legitimity (utility) of the criminal punishment.KEyWORDS: Criminal law policy; economic criminal law; peno-logy; economic law; economic analysis of law.SUMÁRIO: Introdução; 1 Direito, economia e análise econômica do Direito; 2 Análise econômica do Direito e direito penal; 3 O debate sobre os modelos sancionatórios e os crimes de colarinho branco;

* Professor Assistente da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra, Doutorando na mesma área pela UFMG.

Page 188: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

188

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

188

4 Crimes de colarinho branco e seletividade sistêmica; 5 Crimes de colarinho branco, modelo sancionatório, seletividade sistêmica e análise econômica do direito – apontamentos (in)conclusivos; Refe-rências.

INTRODUçãO

Para além da velada crise porque passa a dogmática jurídico-penal, muito mais declarado é o quadro desordenado e ilegítimo que se desenha quando em conta a relação entre o “problema criminal” e as respostas insti-tucionais que o direito penal oferece.

De fato, observamos uma política legislativa em que o que sobreleva é o desrespeito por parte do legislador a mandamentos político-criminais que buscam restringir a intervenção penal a condutas de fato ofensivas a valores fundamentais à sobrevivência da sociedade (bens jurídico-penais) e, ademais, aos casos em que a cominação, aplicação e execução da pena são ineficazes do ponto de vista preventivo geral e especial. Desdenha-se, pois, a necessidade de criminalizar somente condutas de fato relevantes, o que implica um con-junto legislativo casuísta e simbólico1; por outro lado, segue-se uma orientação de recrudescimento das respostas punitivas em relação aos crimes dos menos favorecidos e, em contrapartida, uma parca intervenção, do ponto de vista da sua efetividade preventiva, em relação à criminalidade econômica e política.

Se nos achegarmos mais proximamente à criminalidade de colarinho branco, veremos que a parca intervenção acima referida não significa, por sua vez, a não edição de tipos penais de forma aleatória, nos moldes de uma corrida para o direito penal. Em outras palavras, é sintoma da ineficácia dos instrumentos formais de controle para a tutela efetiva de crimes desta sorte a edição casuísta e inflacionada de tipos legais de crime, sobretudo no âm-bito do direito penal secundário, assim como o descuido no plano sancio-natório que repercute numa assombrosa ineficácia preventiva. Essa inflação legislativa em relação ao direito penal extravagante, nomeadamente àquele setor legislativo que busca punir os crimes dos poderosos (v.g., a lei de crimes ambientais, crimes contra a economia popular, contra a ordem econômica, contra a propriedade industrial, contra o sistema financeiro etc.),

é fenômeno causado tão só para censurar fatos (e não seus autores, por não se mostrarem perigosos), uma vez que não geram penalidade in concreto. Trata-se de uma legislação promulgada para ser “virtual”, cuja finalidade

1 ALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de la política populista. La insustenible situación del derecho penal. Granada: Comares, 2000.

Page 189: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

189189

é ser estigmatizante de determinados fatos e, a um só tempo, indulgente para com seus autores.2

Todo o dito para que possamos afirmar, agora com maior rigor, que uma alternativa satisfatória para os problemas acima levantados – mais es-pecificamente a busca por respostas institucionais alternativas(jurídicas ou não), aptas a combater de forma minimamente eficaz e legítima a crimina-lidade de white-collar – só será encontrada se partirmos de uma abordagem criminológica e político-criminal, para além do auxílio de metodologias que não são usuais nas ciências penais, mas que têm sido incorporadas pela cri-minologia recente (v.g., a análise econômica do direito penal).

À semelhança do que deve ocorrer com a política criminal, também a criminologia reivindica uma posição de autonomia e transcendência em rela-ção ao horizonte jurídico-criminal. E é exatamente por meio do pensamento criminológico que pretendemos encontrar algumas vias alternativas, ainda que de forma breve e inconclusiva, para a ineficácia do sistema jurídico-penal no controle dos crimes of the powerfull; essas respostas deverão influenciar, nos moldes de uma autêntica relação de “unidade funcional”, o sistema institu-cionalizado de controle de um modo geral e, ademais, a partir de mandamen-tos de política criminal, a ciência do direito penal em sentido estrito3.

Ainda mais precisamente, o que se objetiva a partir do presente estudo é tentar incorporar às novas propostas político-criminais e criminológicas de prevenção da criminalidade econômica, e a toda uma plêiade de concepções criminológicas surgidas a partir do legado de Suthertand4, as teorias contem-porâneas desenvolvidas com base no método da análise econômica do direito e a sua aplicação ao direito penal e às teorias da pena.

2 SALES, Sheila Jorge Selim de. Princípio da efetividade no direito penal e a importância de um conceito garantista do bem jurídico penal. Revista dos Tribunais, São Paulo : RT, v. 848, p. 417, jun. 2006.

3 Sobre as relações a interceder entre o direito penal e a criminologia, nos moldes de uma ciência conjunta do direito penal, mas chegando a diferentes conclusões: BARATTA, Criminologia e dogmática penal. Passado e futuro do modelo integral da ciência penal. Revista e Direito Penal, v. 31, p. 5 e ss., 1981; Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1992. p. 96 e ss.

4 SUTHERLAND, Edwin, White-collar crime, the uncut version. New Haven: yale Univessity Press, 1983.

Page 190: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

190

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

190

1 DIREITO, ECONOMIA E ANÁLISE ECONôMICA DO DIREITO

Em política criminal, talvez o tema mais intrigante e que mais polê-mica suscita seja aquele que trata das finalidades da pena criminal5. Tanto é assim que, em qualquer momento histórico, podemos encontrar autores que atribuem à sanção penal funções variadas, quando não díspares. Noutros termos, em meio ao ideário que associa à pena criminal a função de prevenir a prática de futuros crimes – seja reforçando a expectativa cognitiva da socie-dade na afirmação do mínimo ético que representa o direito penal (prevenção geral positiva), seja agindo na pessoa do delinquente para que, cumprida a pena, retome a vivência social sem praticar novos crimes (prevenção especial positiva) –, assomam-se sempre aqueles outros que, partidos de um certo ce-ticismo quanto ao ideal ressocializador6, atribuem à pena uma tarefa de mera retribuição, expiação e castigo.

De resto, com relação à criminalidade econômica (segundo alguns au-tores sinônimo de criminologia de colarinho branco)7, diante do alto número de cifras negras e do consequente ceticismo que é sintoma dos crimes desta sorte, é de extrema atualidade a procura por sanções mais eficientes do ponto de vista preventivo, assim como opção técnicas de tutela, mesmo que extra-penais, aptas a minimizar o casuísmo legislativo e o conjunto de condenações simbólicas, característica das infrações praticadas por agentes influentes.

Para além de tudo, cumpre-nos – e este é o objetivo declarado do pre-sente “estudo” – refletir sobre a contribuição trazida ao tópico das funções e objetivos da pena criminal, nomeadamente em relação aos crimes de colari-nho branco, pela doutrina da análise econômica do Direito.

5 Cf., por todos, ROXIN, Claus. Derecho penal – Parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz. Madrid: Civitas, t. I, 2000. p. 81 e ss.

6 RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo olhar sobre a questão penitenciária. São Paulo: RT, 2000. p. 15 e ss.

7 Conforme afirma Bajo Fernández, a expressão delinquência econômica vem sendo utilizada em sentido coincidente com a delinquência de colarinho branco: “Esta identificación es explicable porque ya le proprio Sutherland dentro de las actividades econômicas, científicas o políticas que podrían dar lugar a la delincuencia de cuello blanco, se preocupo fundamentalmente de las infracciones económicas relegando el resto de las actividades profesionales” (BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico. In: Nuovas tendencias del derecho penal económico y de la empresa. Lima: Ara Editores, 2005. p. 23). Analogamente, RACITTI, Annamaria. Il criminal e economico nella ricerca criminologica: dall’operadi Sutherland alle più recenti formulacione teoretiche. Rivista Trimestrale di Diritto Penale Dell’Economia, Padova, v. 18, n. 3, p. 677 e ss., 2005.

Page 191: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

191191

Como é sabido, a análise econômica do Direito é sintoma da tentativa de se densificar a compreensão do fenômeno jurídico a partir de uma apro-ximação deste com a economia8. A teoria econômica, com seus mecanismos próprios de atuação e compreensão da realidade, passa, progressivamente, se não a revolucionar, ao menos a proporcionar uma real evolução do pensa-mento jurídico.

A análise econômica do Direito pode-se conceituar como a vitalização dos conhecimentos advindos da economia na análise do funcionamento e da otimização das instituições jurídicas. Noutros termos, o método agrega ao universo jurídico as técnicas utilizadas pela economia para a compreensão do comportamento humano. Na definição de Richard Posner, cumpre à eco-nomia “explore the implications of assuming that man is a rational maximizer of his ends in life, his satisfaction, what we shall call his ‘self-interest’”9. Fornece, pois, ao jurista e ao legislador um parâmetro e um renovado padrão normativo para a compreensão do Direito e das políticas públicas implementadas por instrumentos jurídicos.

Entre as ferramentas operacionais da microeconomia utilizadas para a interpretação do Direito, encontramos a teoria da escolha racional (rational choice theory)10, que busca, por meio da apreensão teórica da racionalidade humana, os seus desejos e preferências. Cada indivíduo, a partir de uma de-cisão racional, manifesta, por meio de suas atitudes, seus desejos e vontades, e busca maximizá-los11.

8 Parece ser consensual dever-se a Ronald Coase o primeiro trabalho a inaugurar o movimento Law and Economics com o ensaio intitulado “The problem of the social cost”, de 1960. Mas o nome análise econômica do Direito decorre mormente da célebre obra de Richard Posner, Economic analysis of law, datada de 1973. De forma mais didática, sobre o movimento, POSNER, Richard. Values and consequences: an introduction to economic analysis of law. Disponível em: <http://www.law.uchicago.edu/files/files/53.Posner.Values.pdf>.

9 POSNER, Richard. Economic analysis of law. 7. ed. New york: Aspen Publishers, 2007. p. 3.

10 Optamos por negligências neste estudo as críticas que vêm sendo dirigidas à teoria da escolha racional, principalmente por parte da análise econômica comportamental, para os quais nem sempre as decisões tomadas são racionais ou tendentes à maximização dos lucros.

11 Segundo Posner, “most economic analyses consists of tracing out consequences of assuming that people are more or less rational in their social interactions. In the case of activities that interest the law, these people may be criminals or prosecutors or parties to accidents or taxpayers or tax collectors or striking workers...”). Cf. Values and consequences: an introduction to economic analysis of law, p. 3.

Page 192: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

192

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

192

Aquele que decide sempre deseja aumentar o que foi conseguido para um plano mais elevado, denominado benefício marginal, que, por sua vez, leva ao incremento do obstáculo (denominado custo marginal)12. Assim, caso o be-nefício marginal seja superior ao custo marginal, o indivíduo segue tomando decisões tendentes ao rearranjo das suas atitudes com vistas à maximização dos ganhos. A busca pela maximização dos resultados toma em consideração não só os benefícios iniciais perante os custos também iniciais, mas ainda os chamados custos marginais. Portanto, as escolhas racionais estão diretamen-te atreladas ao aumento do benefício com um custo marginal menor ou a manutenção dos benefícios primeiros com a diminuição dos custos.

Destarte, a teoria da escolha racional nada mais é que a ponderação e o exame de uma decisão tomada pelo indivíduo, a avaliação minuciosa das vantagens e dos custos enquanto elementos de sua postura diante dos fatos tendentes à maximização dos seus ganhos.

Por outro lado, é comum distinguir-se a análise econômica do Direi-to em dois planos relativamente independentes: um primeiro que releva a positividade e um outro que considera a normatividade do Direito. Essa dis-tinção tem a vantagem de evidenciar a capacidade da teoria econômica de analisar a estrutura do Direito, a estrutura normativa que lhe é característica. O Direito é visto, assim, como característica da manifestação de decisões e da ordenação de preferências num ambiente de escassez. Contudo, obviamente, a economia não oferece uma forma de explicação total do fenômeno jurídico, sendo uma entre uma multiplicidade de formas de se analisar as maneiras pelas quais o Direito se manifesta.

Paralelamente, segundo Mercuro e Medema, a análise econômica do Direito está vocacionada para a normatividade e tem por objetivo lidar com “what should be. It’s the arena in which legal policy is debated and formulated”13. Visa, portanto, à investigação e busca pela solução de questões econômicas, como a maximização da riqueza, por meio do Direito. Em outras palavras, o método da análise econômica do Direito voltado para a normatividade pre-tende, por um lado, vincular a interpretação do direito, e, consequentemente, o juiz, a diretrizes axiológicas ditadas pela teoria econômica; da mesma for-ma, promover modificações no plano legislativo.

12 BECKER, Gary. Crime and punishment: an economic approach. The Journal of Political Economy, v. 76, p. 190, 1968.

13 MERCURO, Nicholas; MEDEMA, Steven. Economics and law: from Posner to post-modernism. 2. ed. Princeton, p. 47.

Page 193: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

193193

2 ANÁLISE ECONôMICA DO DIREITO E DIREITO PENAL

Depois de traçar em breves linhas a evolução e o estatuto da análise econômica do Direito, devemos ter em conta a frutuosidade desse método para a compreensão e análise das políticas públicas e de todo o horizonte jurídico-dogmático instituído para a determinação de crimes e cominação de penas, nomeadamente a eficiência e justiça de todo o arcabouço normativo jurídico-penal para cumprir a finalidade preventiva comumente atribuída à pena criminal – isto considerando que a importância da busca pela maximi-zação do efeito preventivo das sanções penais e o rico debate sobre a adoção de substitutos penais, para além da crítica dirigida ao sistema institucional, ganhou especial atenção pela análise econômica do Direito. E, veremos, tudo isso pode nos servir como contribuição à busca por minimização da simbóli-ca intervenção penal no contexto da criminalidade econômica.

De fato, diante das constantes críticas que periodicamente são dirigi-das às ideologias da prevenção em relação aos crimes de colarinho branco, não seria desarrazoado tratar das proposições a esse respeito oriundas da metodologia supracitada. Acresce que, dada a sua relevância para o debate acerca da finalidade e eficiência do sistema penal, muitos criminólogos têm incluído as propostas oriundas do movimento law and economics nos manuais e estudos especificamente criminológicos14.

É atribuído a Gary Becker, com seu ensaio Crime and punishment: an economic approach15, o primeiro estudo mais primoroso sobre a compreensão do sistema penal à luz da análise econômica do Direito e, mais especifica-mente, da teoria da escolha racional. “Este seria um dos exemplos mais claros da aplicação à questão punitiva da desde então ativa escola de ‘análise eco-nômica do Direito’, que também se organizava na escola de Chicago”16. Deste modo, o pensamento de Becker é o antecedente da teoria do crime e das san-ções penais à luz da análise econômica do Direito. Becker “era também um daqueles economistas que tentaram justificar a doutrina econômica que se tornaria dominante como se ela fosse obra de alguns pensadores iluministas e, inclusive, como se fosse a disposição ‘natural’ dos seres humanos”17.

14 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Renavan, 2008. p. 791 e ss.; BECKER, Crime and punishment..., p. 170 e ss.

15 BECKER, Gary. Crime and punishment: an economic approach. The Journal of Political Economy, v. 76, 1968.

16 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos..., p. 792.

17 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos..., p. 792.

Page 194: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

194

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

194

A grande inovação trazida por Becker seria justamente a utilização deste modelo teórico às condutas não necessariamente mercantis, com o que sua doutrina passa a se relacionar diretamente com a criminologia. Define--se assim um suposto sujeito como indivíduo racional e como rational choice a escolha que lhe traria satisfação pessoal a curto prazo. A busca por adaptar a doutrina economicista ao direito penal parte do pressuposto de que um aumento no custo de uma determinada atividade em relação a outras alterna-tivas – num contexto de preferências idênticas – provoca uma mudança para alternativas mais baratas. Baseada na teoria da escolha racional, portanto, a assunção de uma atitude criminosa e antinormativa em relação ao sistema penal decorreria diretamente de uma postura, previamente tomada de ma-neira racional, sobre os custos e benefícios da prática delitiva18.

Becker inicia seu ensaio com as seguintes questões: “What determines the amount and type of resources and punishment used to enforce a piece of legisla-tion? In particular, why does enforcement differ so greatly among different kinds of legislation?”19. Seu intuito declarado é o de demonstrar, a partir de dados eco-nômicos concretos, qual a quantidade de recursos e quanta punição “deve” ser usada para implementar a legislação; também declaradamente, o método ao qual recorre para atingir seu objetivo parte de uma análise da perda social trazida pela prática, persecução e aplicação de penas criminais.

O trabalho, assim, entra inevitavelmente em temas criminológicos, como a penologia e as teorias do comportamento humano20. A análise tem a pretensão de partir da teoria econômica da escolha, sugerindo a improprie-dade de teorias como a da anomia e das inadequações psicológicas.

Por esse caminho, busca o autor uma abordagem que atente para toda forma de infração penal, desde os chamados crimes comuns (furtos, roubos, homicídio, estupro etc.) até os já denominados crimes de colarinho branco, partindo da ideia de que a infração penal não deixa de ser uma atividade tão importante quanto a indústria, apesar de negligenciada pelos economistas. Tanto é assim, que Becker acaba por demonstrar que os custos sociais do cri-me são elevadíssimos, sendo essa constatação que o leva à procura por, a um só tempo, reduzir os custos decorrentes da infração penal e maximizar os be-nefícios. Partindo de uma estimativa realizada pela “Crimes Commision”, rea-lizada na década de 60, os custos das práticas de crimes, somados às despesas

18 BECKER, Gary. Crime and punishment..., p. :169 e ss.

19 BECKER, Gary. Crime and punishment..., p. 169.

20 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos..., p. 169.

Page 195: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

195195

tanto públicas quanto privadas, chegavam a aproximadamente 21 bilhões de dólares. Acresce que, de forma perspicaz, já chama a atenção para o crescente aumento das “evasões fiscais e outros tipos de crimes de colarinho branco”21.

O problema que então se colora diz respeito à tentativa de combater o crime de forma ideal, desenvolvendo um modelo capaz de incorporar as relações pessoais que endossam os custos da persecução penal. Tal modelo deve ser divisado em cinco categorias:

The relations between (1) the number of crimes, called “offenses” in this essay, and the cost of offenses, (2) the number of offenses and the punishment meted out, (3) the number of offenses, arrests, and convictions and the public expenditures on police courts, (4) the number of convictions and the cost of imprisonments or other kinds of punishments, and (5) the number of offenses and the private expenditures on protection and apprehension.22

Depois de provar matematicamente sua teoria, a conclusão, num pri-meiro momento, em termos de medida punitiva, é a de que a elasticidade das tipologias de crime é uma importante determinante na otimização das condições e por consequência nos custos sociais, já que esta elasticidade é a maior causa dos diferentes tipos de punição. Daí decorre a ideia de que, quanto maior for o prejuízo para o infrator (custo marginal) e menor o ganho (benefício marginal), haverá menos perda social. Em outras palavras, se a corriqueira teoria da escolha utilizada pelos economistas for aplicada a in-frações penais, o valor marginal dessas penalidades deve ser igual ao ganho marginal privado23.

Por ser assim, Becker e seus seguidores passam a refletir sobre a função dissuasória da pena e a propor modelos sancionatórios pretensamente capa-zes de inibir a tomada de posição racional vocacionada à prática da infração penal. A resposta penal deve, pois, inibir a vontade daquele que pratica o crime em busca de proveito pessoal, fazendo-o crer que o benefício diminui e o custo aumenta. Mas como?

Com vistas a maximizar o efeito preventivo da pena, a doutrina eco-nomicista inclina-se à opção de primazia da pena de multa, supostamente a resposta penal que não traria qualquer custo social e, em contrapartida, uma comprovada elevação do benefício (para a sociedade). Becker, “embora tives-

21 BECKER, Gary. Crime and punishment..., p. 172.

22 BECKER, Gary. Crime and punishment..., p. 172.

23 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos..., p. 191.

Page 196: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

196

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

196

se pleno conhecimento de que a multa não pode ser arcada por todos, não hesitava em manifestar que outros tipos de medida poderiam subsistir com aquela pena, tão conveniente para quem tem dinheiro”24.

Em termos mais simples, a multa se enquadraria como uma proposta fiável à medida que, entre os modelos sancionatórios de que dispõe o direi-to penal, seria ela dotada de uma maior capacidade dissuasória (prevenção geral negativa ou de intimidação) de acordo com os já definidos modelos teóricos da escolha racional e dos custos e benefícios. Não se deve olvidar, contudo, que a declarada apologia à pena pecuniária não implica necessa-riamente a supressão de outras espécies de sanção, obviamente compatíveis entre si a partir de um modelo de cominação cumulativa.

Contudo, não podemos desdenhar que o pensamento do sistema penal por meio do instrumental metodológico oferecido pela análise econômica do Direito é passível de críticas. Na verdade, ao se defender o uso da pena crimi-nal como instrumento de dissuasão, opta-se pela legitimação da pena criminal pela prevenção geral negativa, ou seja, pelo princípio de que a função da pena não é assegurar a estabilidade social por meio do aprendizado (pre-venção geral positiva), e sim por meio da ameaça penal. Portanto, as velhas ideias associadas à intimidação por meio da pena acabam por ser retomadas por meio do recurso à intimidação à ameaça penal25.

24 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos..., p. 193. Com o que retoma o autor a ideia da pena como instrumento de prevenção negativa.

25 A crítica que se faz a este modo de conceber a função da pena criminal por Becker, como veremos no ponto 4, decorre da sua ideia de dissuasão: a função da pena é vista não como um instrumento de educação e estabilização social, mas sim como um instrumento de prevenção geral negativa, o que, em termos jurídico-penais, significa justificar a pena como uma forma de ameaçar e coibir práticas delitivas por meio do incremento da punição. Isso levaria a uma elevação das respostas penais desmedida, que lembra o chamado direito penal do terror e se confunde com as teorias que imprimem à pena uma função de castigo e expiação. Aclarando os motivos e que levaram Sutherland a uma postura de endurecimento do sistema penal quanto aos “intocáveis”, por todos, CROALL. White-collar crimes..., p. 9 e ss. Veja-se também REIMAN, Jeffrey. The rich get richer and the poor get prision, p. 50 e ss. Sobre os crimes de um modo geral: HASSEMER, Winfried. El destino de los derechos del ciudadano em um derecho pena eficaz. In: Estudios Penales e Criminologicos, XV, p. 183 e ss., 1992. Do mesmo autor: Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado, Barcelona, n. 1, 1991, passim. Também: ALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de la política populista...

Page 197: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

197197

Deste modo, os estudiosos da análise econômica do Direito definem como indivíduo racional um sujeito que, isolado e egoísta, toma como “esco-lha racional” a postura que maior ganho vai lhe trazer. É tratado como uma pessoa “amoral”, de modo que uma atitude altruísta seria concebida como algo imprevisível ou, em termos jurídico-penais, não passível de socialização, como se a opção por agir em conformidade com o Direito fosse uma atitude somente oportuna àquele que é dissuadido pela ameaça penal. Não pros-peram aqui, portanto, como veremos ao longo do texto, as teses segundo as quais os criminosos de colarinho branco seriam carentes de socialização, já que, para ideário da AED, todas as pessoas só não infringem a lei por medo da ameaça de uma eventual reprimenda penal.

Tudo isso seria, na realidade, um recurso para poder manter os cas-tigos – quando não possível somente a multa – e concretamente a prisão e outras sanções mais gravosas, diante das críticas recebidas diante do ideal ressocializador, assim como de um certo ceticismo diante do potencial educa-tivo ou estabilizador das expectativas cognitivas por meio das sanções penais concretamente aplicadas (prevenção especial).

Por uma outra perspectiva, a análise econômica do direito penal não pode deixar de ser vítima da crítica de que o referencial teórico liberal adota-do por aqueles autores, fixados em Chicago, não deixa de apoiar sociedades desiguais e injustas e, consequentemente, todas as construções oriundas da chamada criminologia do conflito26.

Merece ainda destaque a preocupação de Becker com a análise econô-mica do próprio funcionamento do sistema de justiça, que também deveria minimizar seus custos e majorar seus benefícios, o que, em outras palavras, significaria a busca por um sistema institucional mais eficiente e menos bu-rocrático e dispendioso. Essa última ideia converge com uma plêiade de es-tudos oriundos da moderna criminologia sobre o enfraquecimento da função preventiva da pena por decorrência da seletividade e do favorecimento, sin-

26 Para uma síntese das doutrinas do conflito, em contraste ao pensamento do “delito natural”, ver BARATTA. Criminologia crítica, p. 117 e ss. Mais detalhadamente, sobre os pontos convergência e dissintonia entre a chamada criminologia radical e a criminologia do conflito: BERNARD. The distinction between conflict and radical criminology. In: The Journal of Criminal Law and Criminology, v. 72, p. 362 e ss., 1981. Fazendo um paralelo entre as teorias do conflito, nos moldes do proposto por Dahrendorf, e a teoria dos crimes de colarinho branco, ALLER, German. “White collar crime”. Edwin H. Sutherland y “El delito de cuello blanco. Revista de Derecho Penal y Procesal Penal, Buenos Aires, n. 6, p. 31 e ss., fev. 2005.

Page 198: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

198

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

198

toma da fragilidade das instâncias formais de controle, mormente para a cri-minalidade de colarinho branco27. Por essa via, a AED pretendia refletir, do mesmo modo, sobre a ineficácia do próprio sistema de justiça e as instância formais de controle, também partindo do método da minoração dos custos e maximização dos benefícios. As constatações advindas da doutrina economi-cista, veremos, serão de grande utilidade ao questionarmos a viabilidade do sistema de persecução da criminalidade de colarinho branco.

Ora, como já dissemos de forma insistente, se o objetivo deste estudo é entrever as contribuições da análise econômica para o direito penal, mais es-pecificamente para a criminalidade econômica, haveremos de compatibilizar tanto os estudos da criminologia herdeira de Sutherland quanto as contri-buições provenientes da dogmática e da política criminal com as conclusões oriundas da perspectiva da análise econômica do Direito. Neste sentido, cre-mos que dois tópicos serão fundamentais neste intuito: 1) um primeiro que diz respeito às peculiaridades das penas criminais e a polêmica à volta do seu mitigado caráter preventivo quando cominadas ou impostas a agentes de elevado poder político e econômico: deve-se levar em consideração, dentro do elenco de sanções que dispõe o direito penal, quais seriam as espécies de pena que mais surtiriam efeito preventivo e qual a sua determinação e a con-tribuição que nos pode oferecer a análise econômica do Direito; 2) o segundo diz respeito à seletividade notória que se dá pelos instrumentos formais de controle e persecução em relação à punição destes mesmos agentes, que, já o dissemos, contribui para a impunidade e as cifras negras. Tudo isso objeto de estudo pela criminologia de white-collar e que pode inegavelmente ser objeto de uma análise econômica.

3 O DEBATE SOBRE OS MODELOS SANCIONATÓRIOS E OS CRIMES DE COLARINHO BRANCO

Portanto, mesmo atentos às limitações do nosso estudo, não podemos abandonar aqui toda a discussão em torno do papel sancionatório do direito penal nesta área; o papel sancionatório do direito penal nos crimes de cola-rinho branco, ou seja, a força preventiva das sanções cominadas pelo direito positivo em relação a agentes dotados de grande status econômico e político.

27 Nesta linha despontam os estudos voltados para o especial tratamento benevolente por parte da polícia, do Ministério Público, dos tribunais, que leva à ineficácia preventiva os crimes of the powerful. Cf., entre tantos, ASHWORT, Andrew. Sentencing and criminal justice. Butterwords, 1995, p. 192 e ss.

Page 199: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

199199

Sabe-se que, desde que os estudiosos atentaram para a criminalida-de dos poderosos, houve consequentemente um apelo crescente por man-damentos de criminalização e por um endurecimento das sanções penais28. Assim, por um lado, se minimizaria a seletividade que ocorre já no plano da criminalização e, por outro, haveria um maior efeito preventivo. Contudo, a imposição de sanções criminais severas (nomeadamente penas privativas de liberdade de longa duração) em áreas onde essa mesma punição ocorre de forma fortemente seletiva reitera o caráter simbólico da resposta estatal – pu-nindo com severidade os bodes expiatórios caídos aleatoriamente nas malhas do aparato punitivo, o Estado satisfaz simbolicamente o clamor social por punição29.

Propondo-nos enfrentar o problema da ineficácia preventiva do direito penal no âmbito da criminalidade de colarinho branco, e ante o que ficou dito sobre o endurecimento das respostas punitivas, cremos que uma proposta coerente no âmbito sancionatório só será avistada pela perspectiva da sem-pre atual discussão sobre a função e legitimidade político-criminal das penas criminais30. Por sermos declaradamente contrários aos que se socorrem das teorias absolutas ou retributivas – segundo as quais ao direito penal só cabe-ria a função de retribuir o mal crime com o mal da pena e, consequentemente, à pena a função de expiação e castigo31 –, nossas preocupações se voltam às chamadas teorias da prevenção, nomeadamente as da prevenção geral posi-tiva ou de integração e as da prevenção especial positiva.

Para a teoria da prevenção geral positiva, a intervenção do Estado por meio da imposição de penas criminais só é legítima quando visa à proteção

28 Aclarando os motivos e que levaram Sutherland a uma postura de endurecimento do sistema penal quanto aos “intocáveis”, por todos, CROALL. White-collar crime. Open University Press, 1992, p. 9 e ss. Veja-se também REIMAN, Jeffrey. The rich get richer and the poor get prision. Allyn and Bacon, 1998, p. 50 e ss.

29 Cf. HASSEMER, Winfried. El destino de los derechos del ciudadano em um derecho pena eficaz..., p. 183 e ss. Do mesmo autor: Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. In: Pena y Estado, Barcelona, n. 1, 1991, passim. Também: ALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de la política populista...

30 Sobre o assunto, com profundidade e acuidade, o trabalho de RODRIGUES, Anabela Miranda. A determinação da medida da pena privativa de liberdade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.

31 Para um apanhado geral sobre o problema dos fins das penas nas suas vertentes mais tradicionais, reafirmando a falência do ideário retribucionista, veja-se ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Veja, 1998. p. 53 e ss.

Page 200: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

200

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

200

necessária de bens jurídico-penais. Assim, cumpre à pena criminal a “manu-tenção da vigência da norma violada; sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime”32. Por ser essa a função primor-dial da pena criminal, sempre que se constatar que com a sanção penal não se atinge nenhum efeito preventivo, ou seja, não promove a “estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade da norma violada”33, deve-se optar por outros instrumentos menos atentatórios à liberdade e mais eficientes que os jurídico-penais.

Por sua vez, sendo a prevenção geral positiva ou de integração a fun-ção primordial e a tarefa essencial atribuída à pena criminal, é legítimo e louvável que a esta função primária acresça uma outra, voltada não para a comunidade, mas para a pessoa do delinquente. Portanto, sempre dentro da moldura de prevenção oferecida pela prevenção geral positiva, deve-se recorrer a instrumentos sancionatórios aptos a surtirem efeitos socializadores naque-le a quem se impõe a pena34. Significa, pois, a prevenção especial positiva, a missão atribuída à pena de afastar o máximo possível, o apenado, de um novo comportamento criminal. E uma tal missão só não é determinante nos casos em que o indivíduo se revelar carente de socialização35.

32 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal – Parte geral. Coimbra: Coimbra Editora, t. I, 2004. p. 76.

33 Contudo, a expressão, furtada de Jakobs, não corresponde à compreensão do autor sobre a função preventiva da pena, já que este se aproxima, guardadas as devidas particularidades, das teorias retributivas (cf. JAKOBS, Günther. Derecho penal: parte general – Fundamentos y teoría de la imputación. Trad. Joaquin Cuello Contreras, Jose Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995. p. 43 e ss.).

34 “Dentro, pois, da moldura ou dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou da ‘defesa do ordenamento jurídico’) – devem atuar, em toda e medida possível, pontos de vista de prevenção especial, sendo de resto eles que vão assim determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza: seja a afirmação positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização.” (Cf. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 133)

35 Sobre o argumento de que há delinquentes socializados ou absolutamente dessocializados e que, portanto, à pena criminal não dever ser acrescidas quaisquer medidas de prevenção especial, veja-se RODRIGUES, Anabela Miranda. A posição jurídica do recluso na execução da pena privativa de liberdade. São Paulo: IBCCrim, 2000. p. 144 e ss.

Page 201: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

201201

Ocorre que, no âmbito da criminalidade de colarinho branco, a referi-da carência de socialização é um dos vetores de convergência para a descrença acerca dos modelos tradicionais de controle36 e a opção por um retorno às te-orias absolutas. Com efeito, fora o cepticismo quanto ao ideal ressocializador que levou grande parte dos autores à retomada do modelo retribucionista, nos moldes do just deserts norte-americano. A partir da crise do ideal ressocia-lizador que ocorreu em relação à criminalidade comum e, posteriormente, à de white-collar, são retomadas aquelas posturas conservadoras que vislum-bravam como única função da pena criminal a imposição de um castigo pela culpa manifesta, garantidos ao apenado somente os seus direitos fundamen-tais. Não só a determinação da sanção efetiva, mas, sobretudo, a sua fixação concreta ficavam alheias às diretrizes da socialização e, além, da prevenção geral positiva37.

Mas a retomada do modelo retribucionista, como já adiantamos, não deve ser vista como a alternativa mais coerente para o sancionamento dos criminosos de colarinho branco. Esse modelo, por um lado, mantém absolu-tamente intacta toda a seletividade que é característica marcante dos crimes desta sorte. A ideia de que a “justa punição” seria a única opção ante a fa-lência do ideário ressocializador e da prevenção geral é falaciosa exatamen-te porque mantém intacto todo o aparato desigualitário que culmina numa crescente impunidade. Assim, a afirmação dos just deserts como modelo de controle não passa de um retorno a um direito penal seletivo e simbólico. Por outro lado, parece-nos obvio que, como acertadamente esclarece Cruz Santos,

a adopção de um modelo de cooperação por parte das instâncias formais de controlo é mais útil que um modelo adversarial. Este, diz-se, leva à cria-ção de uma “cultura da resistência”, com os potenciais white-collars a parti-lharem entre si as estratégias de burla dos aplicadores da lei.38

Para além do mais, a manutenção de um sistema de controle que obe-dece a todo um procedimento persecutório rico em garantias, dada a sua morosidade e o acesso dos acusados a defensores conhecedores de todas os expedientes dilatórios, dificulta ainda mais a prevenção efetiva. Somem-se

36 Em sentido contrário: FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais..., p. 133 e ss.

37 Trata-se do pensamento, tão lucidamente exposto, mas contrário à nossa mundividência, por Gary Becker, cf. nota 25.

38 CRUZ SANTOS, Claudia Maria. O crime de colarinho branco, a (des)igualdade e o problema dos modelos de controlo. In: Temas de Direito Penal Econômico, São Paulo: RT, 2000. p. 208.

Page 202: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

202

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

202

a tudo isso os fatores atrelados às especificidades dos crimes praticados que levam a manifestas dificuldades de prova39 e, consequentemente, à inefetivi-dade da punição.

Mas qual seria então, do ponto de vista sancionatório, o modelo pre-ventivo mais eficiente e, ao mesmo tempo, congruente com os postulados po-lítico-criminais de um direito penal mínimo? Reiteramos que a resposta será bem avistada se lograrmos dimensionar o problema com a moderna doutrina dos fins da pena criminal. Na condição de assumidos defensores das teorias da prevenção geral e especial positivas, devemos, pois, compatibilizá-las com as específicas exigências advindas da criminalidade de colarinho branco.

Neste empenho, pensamos que, depois de definidas as violações que de fato devem ser criminalizadas – atentando-se, assim, para a necessária legitimidade da criminalização e a acertada técnica de tutela por conta das especificidades da infração de white-collar –, ou seja, as infrações de fato me-recedoras de pena, deve-se levar em consideração, dentro do elenco de sanções que dispõe o direito penal, quais seriam as espécies de pena que mais surti-riam efeito preventivo e qual a sua determinação.

E por esta via há que se discordar, desde já, de um certo setor da lite-ratura especializada que demonstra serem os autores desta espécie de crime carecedores de socialização, à medida que, por serem pessoas de elevado status social e econômico, estão extremamente vinculadas ao núcleo de valores fun-damentais que o direito penal busca tutelar40. Devem, pois, ser contrariados os que afirmam ser inócua in casu qualquer tentativa de prevenção especial, principalmente na sua vertente negativa. As sanções criminais podem e de-vem, depois de impostas, refletir em efeitos preventivos especiais quanto aclaradas as particularidades dos autores, a ponto de, uma vez impostas, in-viabilizarem uma eventual reincidência.

Devemos, por outro lado, negar sentido às afirmações de que a crimi-nalização e o efetivo sancionamento dos white-collar crimes são ineficazes do ponto de vista preventivo geral positivo, seja porque a grande maioria destes crimes é eticamente neutro, ou mesmo, para além disso, por ser a criminali-

39 BAJO FERNÁNDEZ. La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico, p. 48 e ss.

40 Para o mesmo sentido convergem as reflexões de FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Breves considerações sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas em direito penal econômico. Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico, in: C. E. J., 1985, in fine. Parece ser cético quanto ao ideal ressocializador e defensor da pena criminal como um instrumento de intimidação o próprio Becker: Crime and punishment, p. 207.

Page 203: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

203203

zação vista como algo negativo entre os seus destinatários. Característica da criminalidade de colarinho branco é,

com efeito, a de que os destinatários das normas tendem a não se sentir como beneficiários da incriminação (mas antes como perseguidos por ela) e, consequentemente, também não como vítimas. Tendem, portanto, a desin-teressar-se da punição e da sua eficácia. Ou, por outras palavras, não recla-mam punição.41

Mesmo sendo assim, sempre que entender o legislador dever incrimi-nar violações aceitas socialmente, deve assim proceder desde que a crimi-nalização seja legítima. Cabe ao direito penal não somente a criminalização de condutas já consagradas na consciência coletiva como violadoras de inte-resses fundamentais, mas também uma função propulsora ou promocional42 de outros interesses tão ou mais valiosos, mas ainda não sedimentados so-cialmente. E, entre tais interesses, tutelados contemporaneamente muitas ve-zes de forma ilegítima e casuísta por uma série de microssistemas punitivos, estão os violados pelos white-collars. Nesses casos, legítima a incriminação porque atenta aos mandamentos político-criminais restritivos da atuação pu-nitiva do Estado, a função de prevenção geral positiva mantém-se da mesma forma, somente se distinguindo porque aqui o direito penal não confirma uma expectativa social pré-existente.

As normas em questão – as novas normas penais – e a sua respectiva puni-ção terão, neste caso, uma função particular de tornar visível para os seus destinatários (o conhecimento d)as vantagens que a observância da norma conleva e, ao mesmo tempo, os reais quocientes de vitimização produzidos pelos comportamentos proibidos.43

41 RODRIGUES, Anabela Miranda. Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria fiscal. Direito Penal Econômico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra: Coimbra Editora, v. II, p. 482, 1999. No mesmo sentido, BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico, p. 44 e ss.

42 Função esta que não deve ser confundida com a criticada intrumentalização do direito penal, que o tornaria num instrumento já não mais de ultima, porém de prima ratio, e, enquanto tal, influenciável política e ideologicamente. Para este perigo de desvirtuamento da função do direito penal atentam, entre outros, CATENACCI, Mauro. La tutela penale dell’ambiente: contributo all’analisi delle norme penali a struttura “sanzionatória”. Milano: Cedam, 1996. p. 95 e ss.; e BARATTA, Alessandro. Integración-prevención: una “nueva” fundamentación de la pena dentro de la teoría sistémica. Doctrina Penal, n. 29, p. 11, 1985.

43 RODRIGUES, Anabela Miranda. Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria fiscal, p. 482.

Page 204: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

204

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

204

Ademais, essa tarefa de promoção de novos valores a serem respeita-dos será tão mais frutuosa quanto mais eficiente for a atuação do direito pe-nal, minimizando a seletividade institucional e as consequentes cifras negras.

4 CRIMES DE COLARINHO BRANCO E SELETIVIDADE SISTÊMICA

Uma definição dos crimes de colarinho apta a surtir resultados con-cretos, a ponto de ofertar respostas contundentes à impunidade e às notórias dificuldades de imputação e atribuição de responsabilidade, no plano institu-cional e jurídico-dogmático, só se consegue se não nos desviarmos das teori-zações de cunho subjetivo (aquela que releva o autor do crime e não a espécie de infração). E isto porquanto as propostas de substituição dos fatores vincu-lados ao agente por outros adstritos às especificidades da infração44 redimen-sionam o conceito de tal forma que ele perde a sua capacidade funcional45. Por outro lado, cremos que a definição cingida aos moldes mais “clássicos” é a única que tem condições de – demarcando os crimes de colarinho branco como aqueles perpetrados por uma “elite” e que, por conta disso, perpetuam um tratamento favorecido dos seus agentes pela justiça penal – preservar ainda o interesse criminológico do conceito46.

Será possível, comparando a efetiva resposta institucional ante a “cri-minalidade comum” e aquela de colarinho branco, atestar uma qualquer de-

44 Para um aprofundamento desta vertente da teoria dos white-collar crimes, por todos, RACITTI, Annamaria. Il criminal e economico nella ricerca criminologica, p. 689 e ss.

45 Atido à delinquência econômica, que define como “las infracciones lesivas del Orden econômico, cometidas por personas de alto nivel socio-económico en el desarollo de su actividad profesional”, Bajo Fernández critica as concepções que suprimem do conceito criminológico “la referencia a la procedencia social del autor”, porquanto com referidas conceituações “se olvida que la relevancia social de la delincuencia económica se deriva de la cuntía del dano y del recrutamiento del autor entre miembros de la alta sociedad. Son precisamente los delitos económicos cometidos por éstos quienes producen efectos más lesivos por la cuantia de sus efectos y por el numero de personas afectadas, y porque estas suelen pertenecer a clases modestas. Las pequeñas estafas, la delincuencia económica de los bajos fondos o la llamada delincuencia de ‘cuello azul’, tienen uminteres criminológico distinto y no debe ser englogada con la delincuencia económica de la alta sociedad” (La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico, p. 24).

46 Em termos mais contundentes: “Permitirá a nova conceptualização um mais correcto entendimento desta temática? A resposta, segundo julgamos, terá de ser negativa, desde logo porque a definição de white-collar crime que prescinde das qualidades do agente torna muito difícil a colocação do problema” (Cf. CRUZ SANTOS, Claudia Maria. O crime de colarinho branco (da orígem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal). Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 71).

Page 205: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

205205

sigualdade ou disparidade? Ora, se a essa pergunta alguns autores, críticos da concepção primitiva, fizeram questão de responder negativamente47, fato é que, mesmo ante a ausência de pesquisas empíricas confiáveis, quanto à nossa realidade, trata-se de algo incontestável. Basta atentarmos para a ma-nifesta corrupção48 que se dá em vários níveis do nosso sistema institucional de persecução, a ineficiência técnica que ocorre já no plano de elaboração da lei, o recurso a uma defesa técnica extremamente especializada que facilita a absolvição ou o trancamento do procedimento de persecução etc. Portanto, se a concepção que define os crimes de colarinho branco a partir do status do agente mostra-se a mais operativa, dela não devemos nos afastar também, ou sobretudo, porque, para além disso, é a que melhor explicita o caráter desi-gualitário da administração da nossa justiça49.

Por outro lado, mesmo não nos modelando aos novos contornos das teorias que pretendem estender os white-collar crimes também aos agentes de blue-collar50, nestas doutrinas há muito de útil e operativo, mormente a aten-ção dispensada às especificidades das infrações. Em termos mais claros, sen-do o nosso interesse declarado o de, da perspectiva de uma ciência conjunta do direito penal, encontrar modelos renovados de criminalização e controle de crimes desta sorte, o aprofundar nas características da infração é uma das vias mais promissoras.

Assumindo esse objetivo essencial, mesmo diante das formas várias que se podem enquadrar na categoria dos white-collar crimes51, será possível identificar alguns elementos comuns que caracterizam esta espécie de crimi-nalidade.

47 TAPPAN, Paul R. Who is the criminal? In: American Sociological Review, n. 12, p. 96 e ss., 1947.

48 Sobre o problema e a procura por soluções institucionais, NOSENZO, Alberto. Cooruzione e sistemi instuticionali: uma ricerca comparata. In: Ressegna Italiana di Criminologia, Milano: Giuffré, 1999. p. 83 e ss.

49 Conforme bem demonstra o estudo de FILHO, Oscar Mellim. Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. IBCCrim, São Paulo, 2010, passim.

50 Para uma análise crítica destas teorias: BOLLONE, Luisa Balma. White collar crimes: Sutherland è ancora attuale? Rivista Trimestrale di Diritto Penale Dell’Economia, Padova, v. 9, n. 1, 1996, p. 196 e ss.; CRUZ SANTOS. O crime de colarinho branco, p. 59 e ss.

51 Até porque a distinção entre occupational e corporate crimes nos parece, em conta a nossa realidade, extremamente redutora.

Page 206: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

206

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

206

Deveremos, desde já, sublinhar como aspecto determinante a comple-xidade52 e a opacidade, ou a “aparência externa de licitude”53, das condutas criminosas resultantes. Ora, com o desenvolvimento científico que caracte-riza o tempo presente, houve necessariamente uma repercussão no mundo das relações humanas e, consequentemente, das atividades criminosas, com “uma especialização laboral com decisivas consequências para o objecto do nosso estudo”. Assim, com a exigência de conhecimentos muito específicos, várias atividades acabam por tornarem insindicáveis por todos aqueles que não dominam o modus operandi dos novos experts54. Por lógica decorrência, ocorre a falta de visibilidade social das condutas criminosas já que se dão, di-ferentemente do crime comum, longe dos olhos da sociedade e, pois, distantes de uma exposição frutuosa para efeitos de persecução penal.

Da referida complexidade das condutas deriva um outro problema, mais atrelado ao objeto que salta do presente estudo, respeitante à dificulda-de dos órgãos formais de controle de selecionar e reagir às condutas crimi-nosas. Além de ser indispensável um conhecimento muito especializado por parte dos órgãos institucionais para a descoberta da deviance, sobretudo, num primeiro momento, da polícia, o que se nota é que o próprio “legislador reve-la, muitas vezes, problemas na regulamentação de matérias mais complexas, e as autoridades judiciárias sentem, também, particulares dificuldades na apreciação delas”55. Especificamente no que respeita à atividade legislativa, o que nos parece notório é que o legislador pátrio não se atém aos problemas

52 Em estudo recente, aponta Croall sua preocupação com o conceito de white-collar, nomeadamente com sua compatibilidade com o recente fenômeno das “transnational criminal activities” e a consequente maior complexidade das atividades ilícitas daí resultantes (Cf. CROALL, Hazel. Transnational white collar crime. In: Transnational and comparative criminology, London: Glasshouse Press, p. 227 e ss., 2006).

53 BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico, p. 44 e ss.

54 Cf. CRUZ SANTOS. O crime de colarinho branco, p. 101. “E, se isso ocorre no campo das empresas, no que respeita a funcionários particularmente qualificados que lesam os interesses do empregador – a título de exemplo, veja-se o que se passa com os especialistas em informática –, o mesmo nao deixa de suceder relativamente a profissões liberais tão tradicionais como a medicina ou a advocacia. Também as infrações perpetradas pelas grandes sociedades e no seu próprio interesse, frequentemente de cariz financeiro ou fiscal, pressupõem o domínio de um fluxo informacional que, regra geral, não está ao alcance dos cidadãos”.

55 Cf. CRUZ SANTOS, Claudia Maria. O crime de colarinho branco, p. 101.

Page 207: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

207207

técnicos suscitados, atuando de forma casuísta e expansiva (nomeadamente quanto em meta a tutela do meio ambiente, da economia popular, da ordem econômica, da propriedade industrial, do sistema financeiro etc.), o que im-plica sérios problemas de legitimidade e eficácia56.

De outra perspectiva, característica desta espécie de criminalidade é o fato de, como regra, não ser necessário recorrer-se à violência para a sua prática. Daí deriva mais uma vez a opacidade das condutas delituosas, por ser menos perceptível a existência de um conflito, o que, conseguintemente, torna imperceptível a prática da infração e impede a intervenção penal57. O delinquente de white-collar, diferentemente do delinquente comum, não neces-sita, para a realização do ilícito, expor-se, bastando abusar de sua posição privilegiada.

Além, outro fator que distingue os crimes of the powerful dos crimes co-muns pode-se divisar da perspectiva da relação entre a conduta delinquente e a vítima. Ocorre aqui uma difusão das vítimas que, mais uma vez, implica a opacidade da conduta delinquente. De fato, nesta espécie de criminalida-de, as vítimas desconhecem sua condição: seja porque os crimes cometidos, notoriamente desvaliosos, atingem as vítimas somente de forma reflexa ou bagatelar em relação a cada uma delas, mesmo sendo o resultado inegavel-mente ofensivo aos interesses coletivos58, seja porque muitos dos agentes justificam sua atitude por serem eles mesmos vítimas delas – ou seja, acaba por haver uma maior tolerância social, à medida que a conduta passa a ser socialmente aceita com a justificativa de que todos fazem o mesmo. É o que se passa, por exemplo, nas infrações penais tributárias e ecológicas59. De mais a

56 Cf. FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Direito penal secundário, inflação legislativa e white-collar crimes. RBCCrim, n. 87, p. 308 e ss., 2010.

57 Fala-nos Bajo Fernández da “ausência de afectividad del delito (crime appeal), a diferencia de figuras clásicas como el asesinato, la violación o el robo...” (La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico, p. 45).

58 É o que aponta Croall, ao demonstrar que o caráter bagatelar que assume o crime de white-collar ser apenas aparente, quando se leva em conta a multiplicação dos resultados (CROALL. White-collar crime, p. 25 e ss.).

59 Sobre a ausência de vitimização, nos crimes fiscais, RODRIGUES, Anabela Miranda. Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria fiscal. Direito Penal Econômico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra: Coimbra Editora, v. II, p. 482, 1999. Genericamente, veja-se BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico, p. 46 e ss.; SILVA SANCHEZ, La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal de las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999. p. 52 e ss.

Page 208: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

208

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

208

mais, como é notório, é de grande importância a posição da vítima na seleção da criminalidade: crimes com vítimas difusas ou crimes sem vítima importam em enormes cifras negras. Temos, pois, mais um fator que leva à impunidade dos “intocáveis”60.

Por fim, há de se atentar para a difusão da responsabilidade como outro fator que leva à dificuldade de punição. Aqui, o que se descortina é uma ca-racterística peculiar a crimes que envolvem organizações61.

E as dificuldades de prova da responsabilidade inerentes à divisão das ta-refas acrescem se tivermos em conta que, para além da responsabilidade moral nem sempre coincidir com a autoria material, são frequentes os casos em que se alega inexistir uma intenção criminosa, invocando-se antes o descuido, a falta de condições.62

5 CRIMES DE COLARINHO BRANCO, MODELO SANCIONATóRIO, SELETIVIDADE SISTêMICA E ANÁLISE ECONôMICA DO DIREITO – APONTAMENTOS (IN)CONCLUSIVOS

Portanto, mesmo que o legislador se ativesse aos rígidos padrões de legitimidade que delimitam a intervenção punitiva do Estado, optando por uma criminalização mais restrita e, a um só tempo, recorresse a técnicas de criminalização atentas ao peculiar modus operandi dos agentes, haveríamos de lidar com grandes cifras negras a apontar ainda para a ineficácia do direito penal e seu caráter simbólico.

Noutros termos, teríamos ainda de procurar por uma resposta para a inefetividade do direito penal, quando os agentes criminosos são pessoas de extremo status social e político e a seletiva relação deles com os aparatos formais (institucionais) de controle e punição.

Nesta busca, cremos que a análise econômica do direito penal é de enor-me atualidade, uma vez que demonstra, pela via econômica, que um sistema de controle institucionalizado que favorece a cifra negra e a punição sim-

60 Cf. BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico, p. 44 e ss.

61 Sobre o problema da difusão da responsabilidade penal nos crimes corporativos, desenvolvidamente, ALLER, German. “White collar crime”. Edwin H. Sutherland y “El delito de cuello Blanco”, p. 21 e ss.; na literatura anglo-saxônica, ver CROALL. White-collar crimes..., p. 70 e ss. Do mesmo autor, no contexto dos crimes transnacionais: Transnational white collar crime..., p. 229 e ss.

62 Cf. CRUZ SANTOS. O crime de colarinho branco, p. 106.

Page 209: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

209209

bólica não é, de qualquer perspectiva, fiável, muito menos economicamente proveitosa da perspectiva dos custos e benefícios. Em termos mais simples, considerando a seletividade e a ineficácia que se dá desde o primeiro contato do agente criminoso com as instituições, a busca por alternativas inovadoras de persecução não só se legitima por uma motivação político-criminal, mas também por uma outra (econômica). Neste sentido, são muito interessantes as propostas oriundas da moderna doutrina penal pela flexibilização do sis-tema penal quanto às suas rígidas regras de imputação, desde que a pena im-posta não seja a privativa de liberdade63. Além, a ideia propalada por outros segundo os quais caberia ao direito penal somente a tutela de crimes de cola-rinho branco que atentassem contra valores absolutamente imprescindíveis à sobrevivência da sociedade, deixando a tutela dos demais valores ao direito administrativo64. E, obviamente, temos aqui um outro enorme ponto de con-vergência entre direito penal e economia muito pouco explorado.

Não devemos também deixar de abordar algumas correntes, oriundas da criminologia, que objetivam prevenir os crimes de colarinho branco par-tindo de soluções não institucionais, como, por exemplo, a sugestão de téc-nicas da prevenção situacional65, que apontam métodos preventivos alternati-vos, anteriores mesmo à intervenção criminal e, portanto, ao cometimento do crime. A ideia da prevenção situacional surge como um desdobramento da criminologia crítica contemporânea, mais realista tanto em relação aos crimes comuns quanto em relação aos de colarinho branco. Estes autores buscam fu-gir do determinismo oriundo de setores da criminologia crítica que condicio-nam a criminalidade à pobreza. Assim, mesmo a disparidade material sendo um irrenunciável fator criminógeno, a opção pelo crime sempre envolve, em maior ou menor medida, uma “escolha moral”.

Portanto, uma forma de prevenir a criminalidade, nomeadamente a de colarinho branco, seria a diminuição das oportunidades para a ocorrência de uma rational choice voltada para o crime. A utilidade desta técnica de controle entre os white-collars é indiscutível, porquanto são eles os agentes mais frios

63 Neste sentido as múltiplas referências a um direito penal mais flexibilizado e minorado em garantias quanto aos crimes de colarinho branco, cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria. La expansion del derecho penal..., p. 159 e ss.

64 Sobre a administrativização do direito penal, nomeadamente em ramos em que o direito penal e ineficaz, a bibliografia é praticamente inabarcável.

65 Uma perspectiva geral sobre esta variante do pensamento criminológico encontramos na coletânea Rational Choice and Situational Crime Prevention – Theoretical Foundations, Dartmounth, 1997.

Page 210: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

210

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

210

e racionais quando da opção pela deviance. Seria, pois, a prevenção situacio-nal a adoção de expedientes não institucionais que devolvam aos potenciais infratores os receios morais associados ao crime e, assim, evite a sua prática: medidas preventivas adotadas no próprio seio das corporações; instrumen-tos tecnológicos repressivos; a chamada polícia privada; a autorregulamen-tação nos occupational crimes etc. A convergência destas ideias com a análise econômica do Direito é, por obvio, inegável – já que há uma associação entre a eficácia das medidas, institucionais ou não, e o seu proveito econômico.

Convictamente, pois, como propugna Becker, são as penas pecuniárias a espécie sancionatória mais eficiente para crimes desta espécie.

Na literatura criminológica especializada, em congruência com os es-tudos da análise econômica do direito penal, há uma plêiade de estudos a demonstrar que a opção pela conduta desviante é tomada de forma extrema-mente racional66, ponderando o agente sobre a vantagem do crime a partir do quantum de punição, nos moldes de um juízo de custo/benefício67. Ora, se sempre, ou quase sempre, é o enriquecimento ilícito que motiva o criminoso de white-collar, a imposição de limites máximos (e elevados) para as sanções pecuniárias funciona como um notável elemento preventivo. Esse efeito, se de fato resultar numa diminuição das infrações, surte também notório pro-veito econômico, já que a criminalidade de white-collar fora batizada de ma-crocriminalidade exatamente pelo fato de serem essas infrações as que mais prejudicam o sistema financeiro e, consequentemente, a ordem econômica (corrupção, sonegação fiscal, evasão de divisas, gestão fraudulenta etc.).

Em suma, tal como ocorre em relação à criminalidade comum, a pena de prisão, mesmo sendo legítima para grande parte da criminalidade de co-larinho branco, só será aplicada quando indispensável à luz de considerações preventivas gerais. Em contrapartida, não contrariando a reafirmação (ou, in casu, a promoção) das expectativas comunitárias, será sempre oportuna a sua substituição por sanções não detentivas, sobretudo as sanções pecuniárias e as prestações de serviços, enquanto formas específicas de reafirmar o ideal

66 Cf., entre outros, OPP. Limited rationality and crime. In: Racional Choice and Situational Crime Prevention – Theoretical Foundations, Dartmounth, 1997. p. 48 e ss.

67 “In tale ottica, analizzando le modalità di attuazzione dei white collar crimes è típico rintranciarenei comportamenti criminali la realizzazionedi um complesso di azioni antecipatamente programmate e finalisticamente orientate al raggiungimento delloscopo criminale in termine stretamente economici.” (RACITTI, Annamaria. Il criminal e economico nella ricerca criminologica..., p. 693 e ss.)

Page 211: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

211211

preventivo especial, mesmo que numa vertente mais negativa do que positiva. Inoportuna a substituição, sempre será defensável a aplicação cumulativa.

De resto, mesmo diante de todo o nosso esforço por redimensionar o papel do direito penal na prevenção dos crimes de colarinho branco, minimi-zando a sua intervenção e conferindo a ela um maior relevo preventivo, de-verá o legislador atentar sempre para o aprisionamento que reflete a norma penal diante de contextos mutáveis e procedimentos complexos que notabi-lizam os crimes de white-collar68. Esse aprisionamento é manifestação do ca-ráter seletivo do direito penal já no horizonte da criminalização e que aponta para um novo modelo institucional de controle – para além dos modelos não institucionais que vêm progressivamente sendo adotados69 –, mais flexível, mais célere, mais eficiente: o direito administrativo sancionador ou direito de mera ordenação social70.

Como bem esclarece Baratta, é preciso instaurar uma política de in-tervenção mínima coerente, a partir de programas alternativos de controle social, nos quais a intervenção penal não se dê somente para a punição da-queles menos favorecidos socialmente71. Assim, por óbvio, um direito penal mínimo deve ocupar-se também do sancionamento da criminalidade pratica-da por agentes influentes e acobertados por um favorecimento que, em últi-ma medida, se explica por um contexto de desigualdade e conflito. Contudo, não é tarefa do direito penal servir como instrumento revolucionário, prima ratio de um programa político de supressão de desigualdades. Cumpre ao direito penal a tutela subsidiária de bens jurídico-penais, devendo o legis-lador reservar o recurso às sanções jurídico-criminais somente para aqueles

68 Aprisionamento para o qual, em relação à criminalidade organizada, nos alerta FRANCO, Alberto Silva. Um difícil processo de tipificação. In: Boletim IBCCrim, v. 21, 1994.

69 Pensemos nas alternativas que têm sido apresentadas, como a criminal compliance e a prevenção situacional.

70 O direito administrativo sancionador, nas palavras de Cruz Santos, “para além de ser um direito sancionatório, logo repressivo, desempenha também uma importante tarefa preventiva [...]: as suas especificidades processuais, a inversão do conteúdo de alguns princípios fundamentais e as características muito próprias do critério de determinação da coima e do conjunto de sanções acessórias confirmam-no. A não criminalização ou a descriminalização não significarão, pois, necessariamente permissividade” (CRUZ SANTOS. Temas de direito penal econômico, p. 216-217).

71 Cf. BARATTA, Alessandro. Principi del diritto penale mínimo. In: Il Diritto Penale Minimo, ESI: Napoli, p. 447, 1985.

Page 212: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

212

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

212

comportamentos insuportáveis socialmente, relegando para outros ramos do Direito, menos ofensivos e mais eficazes, a resolução dos demais conflitos72.

De mais a mais, se, como se demonstrou, o papel do direito penal em relação à tutela dos white-collar crimes é (deve ser) modesto, devemos avançar na busca por modelos distintos de prevenção (institucionais ou não)73. Nesse empenho, temos a firme convicção de que respostas frutuosas só serão avis-tadas se entre os universos jurídico, criminológico e político-criminal houver uma autêntica relação dialógica e de interferência recíproca.

E as incursões provenientes da análise econômica do Direito, como se tentou demonstrar, conjugam e dialogam com uma série de questões que antes eram consideradas eminentemente jurídico-penais.

REFERÊNCIASALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de la política populista. La

insustenible situación del derecho penal. Granada: Comares, 2000.ALLER, German. “White collar crime”. Edwin H. Sutherland y “El delito de cuello

Blanco”. Revista de Derecho Penal y Procesal Penal, Buenos Aires, n. 6, fev. 2005.ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Renavan,

2008.ASHWORT, Andrew. Sentencing and criminal justice. Butterwords, 1995.AyRES; BRAITHWAIT, John. Responsive regulation. Oxford University Press, 1992.BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. La delincuencia económica desde el punto de vista criminológico.

In: Nuovas tendencias del derecho penal económico y de la empresa. Lima: Ara Editores, 2005.BARATTA, Alessandro. Principi del diritto penale mínimo. In: Il Diritto Penale Minimo. ESI:

Napoli, 1985.______. Integración-prevención: una “nueva” fundamentación de la pena dentro de la

teoría sistémica. Doctrina Penal, n. 29, 1985.

72 Sintetizando, entre os autores anglo-saxônicos, as várias propostas político-criminais por modelos de prevenção da criminalidade de colarinho branco, FERNÁNDEZ, José Núñes. Algunos aspectos conceptuales y políticos de la criminalidad de cuello blanco. In: Cuadernos de Política Criminal, Comunidad de Madrid: Madri, n. 71, p. 321 e ss., 2000.

73 Neste caminho, parece-nos de extrema pertinência a ideia da responsive regulation avançada por Ayres e Braithwait. De acordo com essa construção teórica, a solução para o problema da criminalidade de white-collar deve partir do chamamento de uma pluralidade de regimes normativos que mesclam a mera advertência com a sanção criminal. Exemplificativamente, os autores usam a figura de uma pirâmide: na base estariam medidas preventivas de caráter persuasivo e, conforme se ascende, as reprimendas são progressivamente mais severas, até que se chegue ao topo, com o direito criminal e as penas privativas de liberdade (Ayres; Braithwait. Responsive regulation. Oxford University Press, 1992, p. 5 e ss.).

Page 213: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

213213

______. Criminologia e dogmática penal. Passado e futuro do modelo integral da ciência penal. Revista e Direito Penal, v. 31, 1981.

BECKER, Gary. Crime and punishment: an economic approach. The Journal of Political Economy, v. 76, p. 190, 1968.

BERNARD. The distinction between conflict and radical criminology. The Journal of Criminal Law and Criminology, v. 72, 1981.

BOLLONE, Luisa Balma. White collar crimes: Sutherland è ancora attuale? Rivista Trimestrale di Diritto Penale Dell’Economia, Padova, v. 9, n. 1, 1996.

CATENACCI, Mauro. La tutela penale dell’ambiente: contributo all’analisi delle norme penali a struttura “sanzionatória”. Milano: Cedam, 1996.

CRUZ SANTOS, Cláudia Maria. O crime de colarinho branco, a (des)igualdade e o problema dos modelos de controlo. In: Temas de Direito Penal Econômico, São Paulo: RT, 2000.

CROALL. White-collar crime. Open University Press, 1992.Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente

e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1992.FERNÁNDEZ, José Núñes. Algunos aspectos conceptuales y políticos de la criminalidad

de cuello blanco. In: Cuadernos de Política Criminal, Comunidad de Madrid: Madri, n. 71, 2000.

FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal – Parte geral. Coimbra: Coimbra Editora, t. I, 2004.

______. Breves considerações sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas em direito penal econômico. In: Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico, C. E. J., 1985.

FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Direito penal secundário, inflação legislativa e white-collar crimes. RBCCrim, n. 87, 2010.

FILHO, Oscar Mellim. Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. São Paulo: IBCCrim, 2010.

FRANCO, Alberto Silva. Um difícil processo de tipificação. In: Boletim IBCCrim, v. 21, 1994.

HASSEMER, Winfried. El destino de los derechos del ciudadano en un derecho pena eficaz. In: Estudios Penales e Criminologicos, XV, 1992.

JAKOBS, Günther. Derecho penal: parte general – Fundamentos y teoría de la imputación. Trad. Joaquin Cuello Contreras, Jose Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995.

MERCURO, Nicholas; MEDEMA, Steven. Economics and law: from Posner to post-modernism. 2. ed. Princeton, p. 47.

NOSENZO, Alberto. Cooruzione e sistemi instuticionali: uma ricerca comparata. In: Ressegna Italiana di Criminologia, Milano: Giuffré, 1999.

OPP. Limited rationality and crime. In: Racional Choice and Situational Crime Prevention – Theoretical Foundations, Dartmounth, 1997.

POSNER, Richard. Economic analysis of law. 7. ed. New york: Aspen Publishers, 2007.______. Values and consequences: an introduction to economic analysis of law. Disponível

em: <http://www.law.uchicago.edu/files/files/53.Posner.Values.pdf>.

Page 214: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

214

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

214

RACITTI, Annamaria. Il criminal e economico nella ricerca criminologica: dall’operadi Sutherland alle più recenti formulacione teoretiche. Rivista Trimestrale di Diritto Penale Dell’Economia, Padova, v. 18, n. 3, 2005.

REIMAN, Jeffrey. The rich get richer and the poor get prision. Allyn and Bacon, 1998.RODRIGUES, Anabela Miranda. A posição jurídica do recluso na execução da pena

privativa de liberdade. São Paulo: IBCCrim, 2000.______. Novo olhar sobre a questão penitenciária. São Paulo: RT, 2000. ______. Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria fiscal. In:

Direito Penal Econômico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra: Coimbra Editora, v. II, 1999.

______. A determinação da medida da pena privativa de liberdade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.

ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Veja, 1998.______. Derecho penal – Parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz.

Madrid: Civitas, t. I, 2000.______. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Veja, 1998.SALES, Sheila Jorge Selim de. Princípio da efetividade no direito penal e a importância

de um conceito garantista do bem jurídico penal. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v. 848, jun. 2006.

SUTHERLAND, Edwin. White-collar crime, the uncut version. New Haven: yale Univessity Press, 1983.

TAPPAN, Paul R. Who is the criminal? In: American Sociological Review, n. 12, 1947.

Page 215: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

215

VIOLÊNCIA URBANA E TEORIA ECOLóGICA DO CRIME: CONTRIBUIçÕES PARA A COMPREENSãO

DO FENÔMENO CRIMINAL NA CIDADE DE MACEIócriStiAno ArAújo luzeS*

hugo leonArdo rodrigueS SAntoS**

RESUMO: O artigo trata de uma investigação acerca do problema da violência urbana nas cidades, tendo como foco o problema crimi-nal da cidade de Maceió/AL, para isso aplicando os conceitos e as noções da chamada teoria ecológica do crime. Com esse propósito, foram investigados os problemas urbanos da desorganização social, da mobilidade e da fluidez e da formação das áreas degradas, e sua relação com o intenso crescimento da criminalidade e violência na capital alagoana.PALAVRAS-CHAVE: Teoria ecológica do crime; ecologia humana; Escola de Chicago; violência urbana.ABSTRACT: The article is about an investigation about the problem of urban violence in cities, focusing on the crime problem in the city of Maceió/AL, for that applying the concepts and notions of the ecological theory of crime. For this purpose, were investigated pro-blems of urban social disorganization, mobility and fluency and the formation of degraded areas, and its relation to the intense growth of crime and violence in the capital of Alagoas.KEyWORDS: Ecological theory of crime, human ecology, school of Chicago; urban violence.

* Acadêmico do Curso de Direito da Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste – Seune, Bolsista do Programa de Iniciação Científica (PIBIC-CNPq).

** Doutorando e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Pós-Graduado em Ciências Criminais pela Universidade do Amazonas – Unama e em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior de Magistratura de Pernambuco – Esmape, Professor de Direito Penal e Criminologia em Cursos de Graduação e Pós-Graduação de Maceió/AL, Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e da Associação Internacional de Direito Penal – AIDP, Pesquisador Colaborador do Núcleo de Estudos da Violência de Alagoas – Nevial.

Page 216: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

216

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

216

SUMÁRIO: Introdução; 1 A ecologia humana: uma breve definição; 2 A cidade e a teoria das zonas concêntricas; 3 Formação das áreas criminais em Maceió; 4 Desorganização social em Maceió; 5 Fluidez, mobilidade e, enfim, o problema do êxodo rural em Maceió; Conclu-são; Referências.

INTRODUçãO

Este trabalho tenta, mais do que dar respostas exaustivas e definitivas, suscitar indagações. O objetivo é problematizar e servir como um ponto de partida para as pesquisas que virão. Trata-se, com efeito, de uma proposta, uma sugestão científica para os estudos acerca da violência urbana, resgatan-do o instrumental teórico de uma escola que vem sendo, de certo modo, ne-gligenciada, a fim de que novas luzes possam ser encontradas em um cenário que parece ser catastrófico e insolúvel.

O presente artigo sintetiza as conclusões parciais de uma pesquisa, ain-da em andamento, acerca do grave problema da violência e criminalidade na cidade de Maceió, capital do Estado de Alagoas. E o tema surgiu com a sincera preocupação do estado atual da capital alagoana, que nos últimos 10 anos sofreu com o súbito crescimento da criminalidade, sobretudo com rela-ção ao número de homicídios e outros crimes de violência contra a pessoa. Indaga-se: O que fez da antes pacífica Maceió tornar-se, em um curto espaço de tempo, a capital mais violenta do País?

Assim, diante dessa problemática, propomos resgatar os conceitos da chamada teoria ecológica do crime e demonstrar sua aplicabilidade e utilida-de para entender o fenômeno criminal na capital alagoana. Cuida-se, aqui, de um primeiro esforço de indagação teórica, em que se suscita a relevância das investigações sobre o habitat urbano para o tema da formação de uma so-ciedade criminógena, com a esperança de que sirva de um ponto de partida para pesquisas futuras acerca do estado atual das cidades brasileiras como fator de desorganização social.

1 A ECOLOGIA HUMANA: UMA BREVE DEFINIçãO

Ao final do século XIX, a Revolução Industrial que se fez na Europa provocou uma súbita e inédita expansão dos grandes centros urbanos, fazen-do com que o povo que vivia no campo migrasse para os principais centros comerciais e industriais da época, a fim de trabalhar na emergente ativida-de fabril. Evidentemente que não foi esse o único motivo para a alarmante expansão demográfica percebida no continente europeu, em especial na In-glaterra. Ocorreu que a taxa de mortalidade diminuiu significativamente ao

Page 217: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

217217

longo da Modernidade, com a consequente alta da taxa de natalidade, o que poderia se justificar pelos avanços medicinais1.

Essa expansão das cidades e de sua importância fez crescer a preocupa-ção científica sobre esse fenômeno e os problemas que dele decorreram, tais como a pobreza, criminalidade e desorganização social, de modo que esses fatores não fizeram do século XIX um momento tão só politicamente efer-vescente, mas também proporcionou amplo campo para as recém-nascidas ciências sociais2.

Nesse cenário que surge a ecologia humana. Trata-se, basicamente, de uma linha de pesquisa sociológica que retira seus conceitos fundamentais e, inclusive, muitos de seus métodos da ecologia vegetal e animal, que, por sua vez, também eram disciplinas bem incipientes à época do surgimento da ecologia humana3. O próprio termo ecologia foi criado apenas em 1869, quando o biólogo Ernst Haeckel assim denominou o novo ramo da ciência que relacionava o comportamento dos organismos vivos ao condicionamen-to que sofrem pela convivência e disputa com outros seres do mesmo habitat.

Ecologia, etimologicamente, origina-se do grego oikos, que significa casa ou morada. Mas, na comunidade grega, o vocábulo tinha um signifi-cado mais amplo, que igualmente se aproximava da noção de convívio e de atividades praticadas pelos habitantes da morada4. Portanto, percebe-se que, desde quando foi concebida, a ecologia humana destinou-se ao estudo das relações do homem com o ambiente e com os outros homens que comparti-lham o mesmo convívio espacial5.

1 FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço urbano e criminalidade: lições da escola de Chicago. São Paulo: IBCCrim, 2002. p. 22; WITH, Louis. Histórico da ecologia humana. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 65.

2 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade: violência urbana e a escola de Chicago. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 10-11.

3 WITH, Louis. Histórico da ecologia humana. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 65.

4 HOLLINGSHEAD, A. B. Noções básicas da ecologia humana. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 53.

5 Como demonstra Quinn (p. 77-78), há vários conceitos de ecologia humana que, por tomarem distintos pontos de partida e ênfase, não podem residir no mesmo discurso sem provocar imprecisões científicas. A análise sobre esse conceito é ampla e exige nível de densidade que não é compatível com os propósitos deste trabalho, de modo que não precisaremos um conceito fechado de ecologia humana e de seu objeto. Para uma análise detalhada

Page 218: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

218

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

218

Antes mesmo de a ecologia humana ser reconhecida como um campo científico de estudo sociológico, muitos estudos foram realizados sobre as comunidades humanas utilizando-se de métodos característicos da ecologia6. Porém, foi somente com o artigo “The City: Suggestions for the investigation of human behavior in the urban environment”, publicado em 1915 por Robert Erza Park, que foi feito o primeiro estudo sistemático da comunidade humana. Pode-se dizer, com Wirth7, que “tais pesquisas levaram também, finalmente, ao reconhecimento do papel que a ecologia humana pode desempenhar no estudo da vida social em geral”.

A partir daí, a Escola de Chicago, como assim ficou conhecido o pri-meiro grupo efetivo de estudos sobre a ecologia humana, empenhou suas pesquisas na compreensão dos fenômenos citadinos mais diversos, estabe-lecendo conceitos e métodos que se pretendiam universalmente aplicáveis, isto é, que pudessem ser úteis para estudos ecológicos do comportamento humano em diferentes contextos e localidades urbanas. Assim, entre as va-liosas contribuições da Escola de Chicago para as ciências sociais, podemos dizer que a criminologia foi um campo que recebeu especial atenção e desen-volvimento8, inaugurando, inclusive, uma perspectiva inédita até então de análise do crime nas grandes cidades, ao criar uma corrente de pensamento predominantemente sociológica e se opor à corrente biopsicológica do posi-tivismo criminológico9.

Porém, a importância da Escola de Chicago é mais do que somente histórica, pois continua sendo muito relevante para entender os problemas atuais das grandes cidades10, que envolvem, na essência, os mesmos proble-mas enfrentados pelos sociólogos americanos do início do século XX, quais sejam, entre outros, a desorganização social, a pobreza e o crime.

do assunto, vide QUINN, James A. “Ecologia Humana” e “Ecologia Internacional”. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.

6 WITH, Louis. Histórico da ecologia humana. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 65-66.

7 Idem, p. 66

8 FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço urbano e criminalidade: lições da escola de Chicago. São Paulo: IBCCrim, 2002. p. 53.

9 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 154.

10 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade: violência urbana e a escola de Chicago. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 4.

Page 219: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

219219

Passaremos, então, a expor os principais conceitos da Escola de Chicago, a fim de investigar, sob essas premissas, a crescente incidência de crimes em Maceió.

2 A CIDADE E A TEORIA DAS zONAS CONCÊNTRICAS

A cidade é o palco das análises criminológicas da Escola de Chicago. Para essa corrente de pensamento, fundada nas bases da ecologia humana, o surgimento e desenvolvimento das cidades é um fenômeno muito semelhan-te ao que se dá no plano da ecologia animal e vegetal. Com isso, entende--se que a organização das cidades decorre de um processo de competição e adaptação, que é biológico antes de ser social11. Paradoxalmente, essa relação de disputa, em uma determinada altura do convívio, converte-se em relação de interdependência dos seres, formando uma unidade orgânica que se sus-tenta na divisão do trabalho, isto é, na distribuição funcional dos indivíduos no espaço12.

No entanto, a adaptação nos agrupamentos humanos é bem mais com-plexa do que a organização animal ou vegetal. Além de sofrer a influência dos fatores exclusivamente físicos e biológicos, típicos dos grupos não huma-nos, a organização espacial humana é marcada por estruturas culturais e ins-titucionais, de costume e de consenso, tais como os interesses econômicos e as afinidades religiosas, para citar exemplos. Com isso, a teoria ecológica con-vencionou denominar de simbiose as relações eminentemente físicas e bioló-gicas, tal como predomina nos organismos vegetais, e de sociedade as relações constituídas pelas tradições e convenções, que são tipicamente humanas13.

Esses fatores culturais, evidentemente, complicam os processos sociais humanos, porém não eliminam a estrutura fundamental da disposição es-pacial, que ocorre pelos processos de sucessão e dominação, uma vez que a simbiose ainda se mantém na pluralidade de fatores14.

A formação das cidades, com o seu crescimento espacial, faz com que uma zona ou área tenda a invadir a outra adjacente, provocada pela relação

11 PARK, Robert Erza. Ecologia humana. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 23.

12 Idem, p. 27.

13 Idem, p. 33-34.

14 Idem, p. 34.

Page 220: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

220

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

220

de competição que, nas sociedades humanas, ocorre pela prevalência do in-teresse econômico. A esse processo dá-se o nome de sucessão15.

O fenômeno da sucessão, em que uma comunidade invade a outra ad-jacente, expulsando os menos adaptados, nas grandes cidades é motivado por variados fatores, tais como: i) a mudança na disposição e forma das vias de transporte; ii) decadência física ou perda da atratividade do local; iii) fi-xação de importantes estruturas públicas ou particulares, tais como edifícios e praças, que podem ter efeito atrativo ou aversivo; iv) novas indústrias ou mudança das já existentes; v) especulação imobiliária e procura por localida-des mais especiais16.

Já a dominação, também chamada dominância, é o processo ordenador das comunidades caracterizado pela competição, em que a disposição espa-cial dos indivíduos se dará de acordo com suas capacidades de adaptação e sobrevivência, fazendo com que os mais fortes residam nos locais mais pri-vilegiados17. Esse processo, nas cidades modernas, é caracterizado pela con-centração das populações e das instituições humanas, incluindo o comércio e a indústria, ao mesmo passo que promove a especialização dessas zonas de concentração de acordo com a divisão social do trabalho.

Seguindo a trilha desses conceitos, Ernest Burgess, em trabalho publi-cado no ano de 1925, formulou o primeiro modelo teórico para descrever o processo de crescimento urbano18, na medida em que isso importa para a análise do comportamento humano. Concebeu esse autor que a expansão das cidades dar-se-ia do centro rumo à periferia, em uma constante relação de sucessão19.

Esse processo resultaria em uma disposição da cidade em zonas con-cêntricas, delineadas de acordo com a homogeneidade que havia, em maior

15 Idem, p. 321-322.

16 MCKENZIE, Roderick D. A comunidade humana abordada ecologicamente. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 107-108.

17 HOLLINGSHEAD, A. B. Conceito de dominância. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 284-286.

18 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Alternativas ao sistema punitivo: possibilidades de prevenção da criminalidade urbana violenta por meio do controle social informal. Revista de Estudos Criminais, ano VII, n. 27, p. 99, 2007.

19 BURGESS, Ernest W. O crescimento da cidade: introdução a um projeto de pesquisa. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 358.

Page 221: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

221221

ou menor intensidade, e esquematizadas em número de cinco, na ordem crescente do centro à periferia. A primeira zona, conhecida como Loop, é ca-racterizada por concentrar as principais atividades comerciais e industriais. A segunda zona, por sua vez, é tida como espaço de transição, em que ainda residem as casas mais baratas e decadentes, mas que se encontra invadida pelo comércio e pela pequena indústria. Adentrando na terceira zona, encon-tra-se a principal aglomeração dos trabalhadores industriais que, apesar de escaparem da área de decadência, estão dispostos proximamente ao local de trabalho. A quarta zona é composta de casas mais caras e sofisticadas, com al-tos prédios. Por fim, a quinta e última zona é a dos trabalhadores que residem em vilarejos ou distritos para além da cidade, porém que se deslocam para o centro para trabalhar. Esses são, também, chamados de commuters20.

Essa elaboração de Burgess, evidentemente, trata-se de um esquema ideal, em que dificilmente uma cidade pode se adaptar com perfeição21. A própria cidade de Chicago, por exemplo, não cresceu em forma totalmente circular, mas sim parcialmente circular devido ao contato direto com o Lago Michigan22. Porém, é preciso entender que a teoria das zonas concêntricas consiste, antes de tudo, em um artifício didático, com a manifesta finalidade de esboçar graficamente como se dá o desenvolvimento espacial das cida-des23, de modo que não podemos dizer que o autor negligenciou a dinâmica e as variáveis que estão, naturalmente, presentes nos processos de crescimento urbano.

Na visão de Burgess, o processo de sucessão é sempre acompanhado por cíclicos processos de organização e desorganização, que implica não só aspectos físico-espaciais, mas também comportamentais. É dizer, com o ritmo da expansão urbana pode se verificar readaptações espaciais que provocam perturbações na organização social e na personalidade dos indivíduos24. A partir dessa dedução, o sociólogo americano chegou à conclusão os espaços de transição, que no seu gráfico estão representados pela segunda zona, são marcados pela maior decadência física, moral e social, habitando boa parte do contingente de pobres da cidade e formando as slums, estruturas que, nas cidades americanas do início do século XX, se assemelhavam bastante às fa-

20 Idem, p. 356.

21 FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço..., p. 101.

22 BURGESS, Ernest W. Idem, p. 358.

23 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Alternativas..., p. 100.

24 BURGESS, Ernest W. Idem, p. 359-360.

Page 222: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

222

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

222

velas brasileiras de hoje. Essa zona de transição, a segunda, seria o reduto da criminalidade nas grandes cidades, uma vez que nela os laços de solidarieda-de social são enfraquecidos ou, até, destruídos, agravando consequentemen-te a desorganização social25.

Muitas críticas foram dirigidas à teoria das zonas concêntricas. Houve, inclusive, quem dissesse que o esquema proposto por Burgess não se adapta, sequer, à formação de boa parte das cidades americanas, que não tiveram seu crescimento calcado de forma gradual no sentido centro-periferia, muito embora boa parte delas tenha apresentado a característica da concentração comercial e industrial na chamada loop (zona central)26.

O problema é ainda maior quando se analisa a formação das cidades latino-americanas, que difere bastante do padrão norte-americano. Nos Es-tados Unidos, conforme demonstram os estudos, as cidades possuem uma disposição que concentra nas zonas centrais as atividades comerciais e indus-triais, residindo ao seu redor a população das classes sociais mais desfavore-cidas. Na medida em que se afasta do centro, maior o poder aquisitivo dos residentes, demonstrando que a população de maior status socioeconômico tende a fixar residência nas zonas periféricas, distantes da agitação do comér-cio e dos bolsões de pobreza. Por outro lado, nas cidades da América Latina, especialmente as de origem pré-industrial, tiveram uma formação no sentido inverso, pois historicamente as zonas centrais tendem a abrigar as classes mais altas, enquanto que a massa da população pobre costuma residir nas grandes periferias27.

Vale dizer, Maceió é uma cidade que se desenvolveu, e ainda se de-senvolve, ao longo de seu litoral, próximo a ele se concentrado o centro da cidade bem como os principais bairros que abrigam a população de renda mais elevada, a Pajussara, a Ponta Verde e a Jatiúca, enquanto que, por ou-tro lado, as populações mais carentes se concentraram nos locais periféricos e mais distantes do centro, tais como as comunidades de Benedito Bentes, Santa Lúcia, Jacintinho e grande parte do Tabuleiro.

25 FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço..., p. 77.

26 QUINN, James A. A hipótese de zonas de burgess e seus críticos. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 370-371.

27 COELHO, Edmundo Campos. Oficina do diabo e outros estudos sobre a criminalidade. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 220 e 264-265. No mesmo sentido: FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço..., p. 115-120.

Page 223: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

223223

Ademais, vale destacar que em Maceió, como em boa parte das cidades brasileiras, podemos observar um fenômeno que parece não ter sido obser-vado nas cidades americanas: o assentamento informal e precário das po-pulações miseráveis em locais espalhados pela cidade, inclusive no ceio dos principais bairros. Em Maceió, é o que se pode ver, por exemplo, ao longo do complexo do Vale do Reginaldo, que se estende pelos bairros do Jacitinho, Feitosa, Farol, Ouro Preto, Canaã, Gruta de Lourdes, Barro Duro e Pitangui-nha. Também é exemplo disso comunidades informalmente instaladas nas grotas de Maceió28, tais como Grota do Ouro Preto, Grota do Canaã, Grota do Santo Amaro, Grota do Arroz, Grota da Alegria, Grota da Caveira, Grota do Cigano, Encosta da Gruta e outras tantas29.

Não obstante, podemos constatar em Maceió a presença de alguns ele-mentos que coincidem com as conclusões de Burgess. Bem distante do centro da cidade, e além das zonas residenciais dos trabalhadores da classe média, podem ser encontrados alguns empreendimentos habitacionais destinados para os seguimentos populacionais de melhor condição socioeconômica, tais como os condomínios do Aldebaran, Jardim do Horto e Jardim Petrópolis, que ficam na parte alta da cidade, e outros mais recentes que se instalaram pelo litoral norte, a exemplo do condomínio Morada da Garça30. São casos muitos semelhantes ao commuters, ou quinta zona de Burgess, podendo ser encontrados em diversas cidades brasileiras31, além de Maceió.

28 As grotas são elementos marcantes da geomorfologia de Maceió, devido à particularidade de seu relevo, que é constituído, essencialmente, por planícies e tabuleiros. Esses últimos, no território maceioense, são entrecortados por rios e riachos, formando as chamadas grotas, que nada mais são do que pequenos vales. Pelo evidente motivo de que são pouco atrativos para o ramo imobiliário, acabam se tornando espaços disputados pelos os que veem à cidade sem condições materiais de se instalar numa residência comum, formando grandes bolsões de pobreza e violência, conforme será melhor demonstrado abaixo (MELO, Tainá Silva; LINS, Regina Dulce Barbosa. O fenômeno dos assentamentos humanos precários em áreas urbanas ambientalmente frágeis: o caso das favelas do dique-estrada, em Maceió/Alagoas, p. 7. Disponível em: <http://www.anppas.org.br/encontro5/cd/artigos/GT3-848-991-20100903191215.pdf>).

29 MELO, Tainá Silva; LINS, Regina Dulce Barbosa. Idem, p. 7.

30 MELO, Tainá Silva. A localização dos pobres nas cidades brasileiras: um estudo sobre a situação dos assentamentos humanos às margens da Lagoa Mundaú, em Maceió/AL. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo: Dinâmicas do Espaço Habitado pela Universidade Federal de Alagoas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Maceió, 2010.

31 Para uma análise crítica do fato, vide: FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço..., p. 120-128.

Page 224: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

224

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

224

Além desses condomínios de luxo, a tese de Burgess parece-nos que se confirma parcialmente quando se vê que alguns bairros dos arredores do cen-tro da cidade, como Jaraguá, Prado, Vergel do Largo e Trapiche, que relati-vamente antigos na história urbana, são locais que possuem boa parte de sua população na condição de pobreza. Isso se deu, a nosso ver, pelo processo de sucessão, motivado pela desvalorização desses locais no cenário imobiliário.

Esses casos (os distantes condomínios de luxo e os bairros pobres cen-trais), no entanto, continuam no campo das exceções, tendo em vista todo o contexto urbano de Maceió. Os bairros de Jaraguá, Prado e Trapiche, apesar de concentrar população relativamente mais pobre, não são a maior ilustra-ção de espaço degradado e de transição, que caracteriza a segunda zona de Burgess a ser vista em Maceió.

Assim, entendemos que a teoria das zonas concêntricas, tal como for-mulada por Burgess, especialmente no que se refere ao gradient tendency, não pode ser acriticamente aplicada ao estudo dos problemas de Maceió, disso podendo concluir que não é apenas na segunda zona que está a fonte das pre-ocupações em matéria criminal, mas, sim, em espalhados espaços da cidade, incluindo grotas e espaços periféricos.

Porém, com isso não se quer dizer que os estudos ecológicos de Burgess e seus seguidores são inúteis. Muito pelo contrário. A Escola de Chicago e a teoria das zonas concêntricas nos mostram como se dá o processo de formação das cidades, em um constante processo de competição e adap-tação chamado de sucessão, que tende a formar a decadência e desorgani-zação de alguns espaços e comunidades, segregando o povo maceioense, na medida em que as alterações econômicas vão interferindo na disposição das pessoas na cidade.

Como dito, esse processo de competição e adaptação acaba por criar áreas que guardam, no seu interior, características culturais, físicas e sociais que lhes são próprias (homogeneidade interna)32. No dizer de Tangerino, “a dimensão mais ampla desse processo é o surgimento de áreas culturais se-gregadas e bastante homogêneas quanto à composição interna”33. São o que Robert E. Park chamou de “regiões morais”, que, diferentemente do que pen-sava Burgess, não se dão necessariamente em uma progressão uniforme do

32 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Alternativas..., p. 103.

33 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade..., p. 28.

Page 225: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

225225

centro para a periferia, constituindo, na verdade, pequenos polos que se es-palham pelo território urbano.

Alguns dessas áreas naturais, conforme chamaremos, adotando a pro-posta mais atual34, acabam por ter contornos de degradação social (áreas de-gradadas), esquecidas que são do Poder Público e dos investimentos priva-dos. Como consequência, esses locais de degradação tendem a incrementar a criminalidade, tornando-se área criminal.

3 FORMAçÃO DAS ÁREAS CRIMINAIS EM MACEIÓ

Um dos importantes legados da Escola de Chicago para compreender o fenômeno criminal nas grandes cidades é o tipo ideal de áreas naturais. Im-plica dizer, através desse conceito, que a população é segregada pelo proces-so de competição e são formadas áreas que constituem uma unidade, não de natureza física-estrutural, mas caracterizada pelas atitudes e pelos sentimen-tos típicos de seus habitantes, elementos culturais que os unem ou atraem a esses espaços35.

A Escola de Chicago desenvolveu muitos de seus estudos criminoló-gicos a partir desse conceito, especialmente após o significativo trabalho de Clifford Shaw e Henry McKay, intitulado Juveline Delinquency and Urban Areas, publicado ainda na primeira metade do século XX. Os autores desen-volveram o conceito de áreas criminais a partir de pesquisas realizadas com jovens delinquentes em Chicago, demonstrando haver certos locais da cidade sob a constante e persistente incidência de crimes, que ocorria independente-mente da composição populacional36. Eles perceberam que, ao longo de vinte anos de registros de dados, uma mesma área mantinha altas taxas de crimi-nalidade, ao mesmo passo que sua composição populacional vinha sofrendo várias alterações, com a saída de determinados grupos sociais e a chegada de outros bem distintos. Daí concluíram que existem fatores criminógenos próprios dessas áreas, que não tinham relação de dependência com os indi-víduos lá presentes, mas que, na verdade, influenciavam de alguma forma o comportamento humano para a delinquência37.

34 ZORBAUCH, Harvey W. Áreas naturais. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 339-349.

35 Idem, p. 349.

36 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade..., p. 36.

37 Idem, p. 44.

Page 226: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

226

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

226

Perceberam, ainda, mais uma constante: espaços degradados e inade-quados ao bom convívio humano tendem a provocar a prática de crimes. Em Chicago, as áreas criminais eram representadas por locais em que predomi-navam as slums (cortiço, em uma tradução aproximada), bem como as regiões onde se instalavam os imigrantes estrangeiros (guetos). Além disso, devido à proximidade com as fábricas, essas zonas, conforme descrições, continham grande quantidade de poluição, mau cheiro, fuligem e aspecto repugnante. Assim, como observa Tangerino, “a péssima qualidade de vida parece, as-sim, estar imbricada no fenômeno criminal”38.

Em Maceió, a realidade das áreas degradadas não parece diferente. As slums, porém, são substituídas pelos barracos de favela; o mau cheiro e a po-luição existem fortemente, mas provêm dos esgotos a céu aberto e dos lixos expostos, e não das fábricas; e o imigrante não é o estrangeiro, mas, sim, o alagoano do campo, que vem tentar a sorte na capital, sem quaisquer recur-sos de subsistência.

Como dito, as áreas naturais pressupõem uma unidade cultural, uma homogeneidade interna. O fato é que, além da caracterização físico-estrutural provocada pelas relações de competição e adaptação (e.g., as regiões de po-breza predominante, as regiões comerciais, os bairros turísticos e hoteleiros, os bairros ricos, etc.), as áreas naturais têm um aspecto moral que atrai su-jeitos que buscam uma identidade para reforçar a sua conduta individual39. Essa associação proporciona estímulo e suporte moral para os comportamen-tos e traços em comum40.

Esse processo pode, evidentemente, colaborar para o bem comunitário, criando laços de vizinhança41, porém, em um ambiente terrivelmente degra-dado, de baixa solidariedade, massificado e de intensa desorganização social, em que os freios do controle social informal não se operam42, e o efeito pro-vocado é reverso. Instala-se uma cultura criminal que influencia, sobretudo,

38 Idem, p. 44.

39 PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 64-65.

40 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia..., p. 171.

41 PARK, Robert Ezra. A cidade..., p. 30-34.

42 Solidariedade, controle social informal e desorganização social são conceitos que precisam ser pormenorizadamente explicados, especialmente no que diz respeito ao ambiente urbano, de modo que serão tratados em tópico exclusivo logo a seguir.

Page 227: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

227227

a população jovem dos “recém-chegados”43, passando, essa subcultura, a se tornar sua referência moral.

Com isso, a Escola de Chicago concebe um modelo de pensamento cri-minológico que enfatiza os fatores sociológico-ambientais que motivam os crimes em larga escala. Assim, os fatores da degradação urbana, desorgani-zação social, intensa pobreza, entre outros, formam a equação característica para que determinadas áreas sejam potencialmente criminógenas, influen-ciando a personalidade e conduta dos indivíduos que nela habitam, especial-mente os mais jovens.

Porém, não podemos dizer que a Escola de Chicago propôs um deter-minismo social/ambiental como modelo de explicação do crime. Os fatores ecológicos e a área criminal não indicam um nexo de causalidade entre po-breza e criminalidade44. É dizer, o simples fato de um indivíduo residir em uma área de pobreza e intensa criminalidade não significa que sua conduta, necessariamente, será pautada pela “moral delinquente”. As áreas criminais, e os aspectos que as caracterizam (pobreza, desorganização...), não indicam um determinismo ecológico, mas concebe a ideia de vetores criminógenos45. Em síntese, as áreas criminais demonstram uma tendência, uma probabilida-de, e tão só.

A partir dessas conclusões teóricas, intensamente trabalhadas pelos es-tudiosos de Chicago, é preciso identificar, ainda que em uma análise introdu-tória que este trabalho possibilita, quais seriam as áreas criminais de Maceió, conforme as características expostas, a fim de por as teses aqui expostas em confronto com os dados locais46.

Quando analisados os dados estatísticos da incidência e distribuição dos crimes pela cidade de Maceió, as expectativas teóricas são mais do que

43 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia..., p. 182.

44 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade..., p. 74.

45 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia..., p. 181.

46 Ademais, é preciso salientar que a comunidade científica alagoana não dispõe de numerosos estudos estatísticos acerca da criminalidade e de sua disposição no espaço urbano da capital, o que evidentemente tornaria imprescindível uma pesquisa empírica de campo, para a apuração de dados e a sua consequente sistematização. Tal empreitada não foi empregada neste trabalho, pois, como já parece estar claro, foge aos limites e objetivos propostos, que são os de fornecer uma exposição introdutória e incipiente acerca da aplicação dos conceitos da teoria ecológica do crime à Maceió, a fim de instigar a comunidade acadêmica a futuras investigações.

Page 228: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

228

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

228

confirmadas, isto é, curiosamente percebermos que os conceitos de área cri-minal, e sua íntima relação com as áreas degradadas, encaixam-se no cenário alagoano em uma simetria perfeita entre a teoria e os fatos. Vale dizer, entre os bairros mais pobres e degradados da cidade estão, também, aqueles com os maiores índices de homicídios. Para ilustrar com exemplos, podemos ci-tar os bairros do Tabuleiro dos Martins, Benedito Bentes, Jacintinho, Clima Bom, Cidade Universitária, todos situados na parte alta e periférica da cida-de, ao lado de Vergel do Lago, Bom Parto e Trapiche, que são regiões pobres situa das aos arredores do Centro e da Lagoa Mundaú47. São justamente essas regiões que concentram os bolsões de pobreza da cidade, recheados de assen-tamentos precários e de alto, e abrigando a população, na maior parte de ori-gem imigrante, que se encontra à margem do mercado de trabalho formal48.

Além do mais, importa bastante o dado de que, em todos esses bairros, a população jovem ultrapassa 40% do total de habitantes49, confirmando a tese de que a influência e a formação das áreas criminais ocorrem com maior força sobre as populações mais jovens, especialmente aquelas que são, tam-bém, compostas por pobres e imigrantes, ou descendentes de imigrantes50, tendo, portanto, pouco convívio e adaptação ecológica ao novo ambiente, bem como poucas referências morais na tradição e forma de comportamento local. Assim, as áreas de degradação espacial, a miserabilidade e a baixa co-esão social, esta motivada por outros fatores, como a migração e juventude da população, são os elementos do caldo de fatores que provoca a formação das áreas criminais, conforme pode também ser confirmado no cenário ma-ceioense.

47 Seguem os dados do número de homicídios por 100 mil habitantes, cada bairro, em ordem decrescente: Tabuleiro dos Martins, 93; Benedito Bentes, 86; Vergel do Lago, 70; Jacintinho, 59; Cidade Universitária, 52; Trapiche, 51; Clima Bom, 37; Levada, 31; Bom Parto, 20; Chã da Jaqueira, 18; e Farol, 18. Esses são dados obtidos no Relatório Estatístico da Secretaria de Estado da Defesa Social do Estado de Alagoas (Relatório Estatístico da Secretaria de Estado da Defesa Social do Estado de Alagoas. Alagoas, 2009).

48 MELO, Tainá Silva. A localização dos pobres nas cidades brasileiras: um estudo sobre a situação dos assentamentos humanos às margens da Lagoa Mundaú, em Maceió/AL. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo: Dinâmicas do Espaço Habitado pela Universidade Federal de Alagoas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Maceió, 2010.

49 Relatório Estatístico da Secretaria de Estado da Defesa Social do Estado de Alagoas. Alagoas, 2009.

50 O problema da imigração, ou melhor, do êxodo rural em Maceió, é por demais importante e complexo, de modo que será abordado em tópico exclusivo, nas linhas que se seguirão.

Page 229: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

229229

4 DESORGANIzAçãO SOCIAL EM MACEIó

A explicação do fenômeno das áreas criminais implica, necessariamen-te, a análise da desorganização social e da falta de controle social que afetam essas regiões. O crime, nesse contexto, é produto da degradação e desorga-nização social, ao mesmo tempo em que as reforça, constituindo uma cadeia de fatores criminógenos51. É preciso, então, compreender em que consiste a desorganização social e suas causas nas grandes cidades, a fim de melhor compreender o fenômeno criminal maceioense.

Com efeito, a prática de crimes em um determinado ambiente é, em boa medida, reflexo da fragilidade dos mecanismos de controle social ou, dito de outra forma, na (in)capacidade da massa ecológica de fazer valer seus padrões de comportamento, suas normas morais, aos indivíduos. Isso se dá, especialmente, através das formas de controle social informal, o que está in-timamente ligado à intensidade da organização social, em contraposição à desorganização social, que é o seu efeito reverso52.

A ideia de controle social, segundo salienta Tangerino53, tem como ponto de partida ideológico o Iluminismo e a noção de contrato social, na me-dida em que pressupõe a existência de um padrão conformador de condutas, genericamente aceito como os valores de um grupo social. Porém, a primeira vez que o conceito surge expressamente na comunidade científica, no campo específico da sociologia, foi com o trabalho de Edward Ross, intitulado Social Control, publicado em 1901.

O controle social consiste, precisamente, no complexo de mecanismos de imposição de condutas e valores morais aos indivíduos pertencentes a um determinado grupo, formando, como consequência, uma unidade comunitá-ria, um conjunto coeso de indivíduos, que passam a compartilhar os mesmos interesses, afinidades e valores. Esse complexo de mecanismos é subdividi-do, de acordo com sua forma de atuação, em dois grandes sistemas, que, apesar de distintos, são bastante articulados entre si. Assim é que podemos falar em controle social formal e informal54.

O controle social formal é obtido através dos aparelhos estatais, en-volvendo a atividade das instituições de repressão dos desvios de conduta,

51 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Alternativas..., p. 106-107.

52 Idem, p. 107.

53 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade..., p. 86.

54 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia..., p. 66.

Page 230: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

230

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

230

tais como a polícia, os órgãos penitenciários, o Ministério Público, o Poder Judiciário e tantos outros relacionados. Trata-se, portanto, de uma instância de controle social que opera pela coerção, utilizando da força e intimidação.

Por outro lado, o controle social informal funciona a uma maneira bem mais sutil, pois caminha próxima à base moral da sociedade, educando e so-cializando o indivíduo por meio da própria intimidade do convívio social, da família, da escola, etc. Esses mecanismos influenciam o indivíduo, intro-duzindo nele, pouco a pouco, ao longo de sua vida, os valores e as pautas de conduta socialmente aceitáveis no seu ambiente, diminuindo as possibi-lidades de desvio de conduta55. Como anota Park, “psicologicamente, o re-sultado da associação íntima é uma certa fusão de individualidades em um todo comum, de tal forma que o próprio ser individual, pelo menos para muitos fins, é a vida e o propósito comuns do grupo”56. Complementa, ainda, o autor que, nessa modalidade, “o controle social surge espontaneamente, em resposta direta a influências pessoais e ao sentimento público. É mais o resultado de uma acomodação social do que a formulação de um princípio racional e abstrato”57.

O controle social informal é, com mais intensidade, presente nas so-ciedades menos complexas, menores, em que as relações de vizinhança e os laços familiares ainda predominam. Nas grandes cidades, no entanto, a força do controle social informal é cada vez mais diminuta, na proporção em que são também enfraquecidos os laços comunitários58 e ocorre a “dissolução da solidariedade”59.

E é precisamente desse fenômeno, dissolução da solidariedade, que se tem as bases para o que seja desorganização social. Trata-se de uma condição social em que uma determinada sociedade encontra-se relativamente inca-paz de integrar e influenciar os seus membros para o respeito às regras de conduta60. Como conceituam Mark Lanier e Stuart Henry, “a desorganização social se refere a uma situação em que há pouco ou nenhum sentimento de

55 Idem, p. 66.

56 PARK, Robert Ezra. A cidade..., p. 47.

57 Idem, p. 47.

58 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia..., p. 66.

59 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 20.

60 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Alternativas..., p. 88.

Page 231: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

231231

comunidade, relações são transitórias, níveis de vigilância da comunidade são baixos, instituições de controle informal são fracas e as organizações so-ciais ineficazes”61. Nesse cenário, o indivíduo encontra-se sem parâmetros axiológicos e comportamentais em que se espelhar. Nada parece justificar a norma imposta, e aí ele passa a construir seu próprio conjunto de valores, juntamente com um grupo de indivíduos “simpatizantes”, fragmentando a sociedade em um grupo heterogêneo e desprovido de coesão62.

É certo que a desorganização social é forte fator criminógeno, como é certo também que esse fenômeno encontra-se presente nas grandes cidades. Podemos dizer, com Anitua63, que, inclusive, a ideia da desorganização social como o fator mais destacado da criminalidade foi certamente a maior contri-buição dada pela teoria ecológica do crime. Cumpre-nos, no entanto, anali-sar, tal como fizeram os estudiosos de Chicago, os diversos aspectos da vida urbana que tornam a desorganização social um amplo e sistêmico problema social, procurando sempre identificá-los no contexto maceioense.

Podemos começar dizendo que o ambiente urbano, especialmente des-de que se operou a chamada Revolução Industrial, tende a unir os homens em relações impessoais de trabalho e mercado. A cidade moderna, mais do que um agregado humano destinado à sobrevivência familiar, é um centro de comércio, onde existe “solidariedade fundada não sobre sentimentos e o hábito, mas sobre uma comunidade de interesses”64. Nesse cenário, os indiví-duos empenham-se na alta especialização de suas atividades, sofisticando sua força de trabalho para, sob condições de competição interpessoal, valo-rizá-lo65, o que provoca, em contrapartida, a sua própria interdependência para com a cidade, isto é, para com todos os outros indivíduos que desempe-nham atividades de que ele não seria capaz.

Disso podemos dizer que, na cidade, ocorre a preponderância das re-lações econômicas. No campo, o princípio regente é o da ajuda mútua. A solidariedade social é muito mais forte e a integração é presente. Porém, o

61 Apud FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço..., p. 77.

62 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Alternativas..., p. 88.

63 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p. 429.

64 PARK, Robert Ezra. A cidade..., p. 39; WIRTH, Louis. Urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 100.

65 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 22.

Page 232: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

232

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

232

cenário da cidade é bastante diferente. Prevalece nessa o valor econômico sobre os afetivos e familiares. A atitude do indivíduo da cidade é em direção ao acúmulo de riqueza, ao máximo desempenho no seu ofício, reduzindo os espaços e as energias das relações sociais mais espontâneas. Essa conduta de-teriora o modelo de vida comunitário, ao passo em que reforça o modelo de vida do homus economicus66, ou seja, o modelo de vida motivado pelo desejo intenso por posses pessoais de valores econômicos67.

Como decorrência, a relação entre os habitantes das grandes cidades reveste-se de impessoalidade. O anonimato é característica própria da vida na cidade grande e é um dos principais fatores de desencadeamento criminal, quando posto em comparação à estrutura de outros modelos, mais simples, de sociedade. Nas metrópoles o indivíduo não conhece, ou sabe sequer o nome, de seu vizinho. Frequenta lugares onde é totalmente desconhecido, imerso em um mar de anônimos, e se faz indiferente ao problema alheio. Esse cenário dificulta a formação de uma comunidade solidária, bem como do controle social informal. É a marca da sociedade líquida, segundo Bauman68.

A consequência é que o anonimato, concebido em um conceito amplo que implica também a impessoalidade das relações humanas, colabora para a desorganização social, formando, ao longo de anos, um estado de anomia. Os indivíduos tem maior dificuldade de formar uma identidade pessoal, agre-gando-se a grupos que, por vezes, têm propósitos delinquentes, em um pro-

66 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade..., p. 80.

67 Simmel destaca a forma como essa especialização do trabalho e a competitividade de uma vida urbana orientada para o sucesso econômico provocam a fragilidade moral do indivíduo e, logo, da sociedade: “De fato, em alguns pontos notamos um retrocesso na cultura do indivíduo com relação à espiritualidade, delicadeza e idealismo. Essa discrepância resulta essencialmente da crescente divisão de trabalho. Pois a divisão de trabalho reclama do indivíduo um aperfeiçoamento cada vez mais unilateral. E um avanço grande no sentido de uma busca unilateral com muita frequência significa a morte para a personalidade do indivíduo. Em qualquer caso, ele cada vez menos pode equiparar-se ao supercrescimento da cultura objetiva. O indivíduo é reduzido a uma quantidade negligenciável [...]. O indivíduo se tornou o elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva. Não é preciso mais do que apontar que a metrópole é o genuíno cenário dessa cultura que extravasa de toda vida pessoal” (SIMMEL, Georg. A metrópole..., p. 23).

68 BAUMAN, Zygmunt. Confiança..., p. 27.

Page 233: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

233233

cesso que culmina, então, na formação de subculturas criminais69. Daí se pode dizer que os estudiosos de Chicago foram os primeiros a concluir que não só ambiente moralmente fragilizado propicia o crime, como também a formação de agrupamentos que acolhem o delinquente reforçando suas ações antis-sociais70.

O anonimato, além disso, tem íntima relação com o comportamento blasé, relatado por Simmel71. Os sujeitos na cidade grande sofrem a irradiação de uma série de estímulos sensoriais, devido aos anúncios comerciais, ao di-namismo do cotidiano, às ocupações com o trabalho e às distrações de todos os tipos. Essa sobrecarga de informação prejudica a capacidade de empenhar atenção às coisas mais simples e cotidianas da vida, até mesmo as mais in-comuns. Assim, a pobreza e miséria tornam-se indiferentes ao olhar acostu-mado do homem da cidade. Por evidente, “isso não significa que os objetos não sejam percebidos, [...] mas antes que o significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas, são experimentados como destituídos de substância”72.

Não fosse o bastante, o anonimato também colabora na disseminação dos crimes na cidade na medida em que o homem delinquente, sendo apenas mais um no universo metropolitano, sente-se mais a vontade para delinquir, pois tem a crença reforçada de que dificilmente será identificado de imediato. A vida no campo ou em sociedades menores, ou naquelas mais estruturadas socialmente, não possibilita a mesma margem de transgressão às normas. O homem, nessas circunstancias, cria um laço forte de afetividade e identifica-ção pelo lugar e pelos outros habitantes, de modo que a prática de um delito, ainda que acidental, provoca-lhe um sentimento muito mais forte de autor-responsabilização e culpa, sentimento que, apenas com dificuldade, pode ser encontrado no anônimo homem da cidade.

Outra característica das grandes cidades é a pluralidade de valores, ou seja, a heterogeneidade cultural. O ambiente citadino é capaz, e é tendente a isso, de congregar em um mesmo espaço enorme gama de sistemas morais. No dizer de Tangerino73, “a pluralidade de possíveis atitudes que coexistem

69 SIMMEL, Georg. A metrópole..., p. 22.

70 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias..., p. 427.

71 SIMMEL, Georg. A metrópole..., p. 16.

72 Idem, p. 16.

73 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade..., p. 82.

Page 234: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

234

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

234

levam à instabilidade quanto à existência (vigência) e ao grau de observância (eficácia) de regras sociais”. Essa observação permite concluir que a heteroge-neidade de valores, típica das grandes cidades, ataca a coesão social em duas formas: na própria existência de normas ou na eficácia das já existentes. A consequência direta é a deficiência de um pensar comum, do ponto de vista moral, que provoca, por sua vez, uma ausência de referenciais valorativos. Isso implica, em um único dizer, a rejeição, especialmente pela população mais jovem, dos padrões morais da sociedade, enfraquecendo a sua função como ordenadora da vida social74. Por isso, a pluralidade de valores é forte aspecto fatorial da desorganização social e, portanto, relevante condicionante da criminalidade.

Esse complexo de valores da sociedade pós-moderna, impulsionado pelo fluxo irrefreável de informações, produz um estado de incerteza, obs-curidade e confusão, que tem como consequência desorientação dos sujeitos, no que Sánchez denomina de “perplexidade da relatividade”. Esse fenômeno traduz a perda de princípios generalizáveis ou referências valorativas obje-tivas, onde tudo pode ser igualmente certo ou verdadeiro, criando um sen-timento de insegurança e solidão moral. O pluralismo, é verdade, não deixa de ter um efeito paradoxal: ao mesmo tempo em que integra uma enorme quantidade de indivíduos diferentes, aproximando culturas e reduzindo dis-tâncias paradigmáticas, provoca também a desintegração da estrutura social, dessocializando a sociedade, o que vem a se chamar de “individualismo de massas”75. Nas cidades, nunca estivemos fisicamente tão próximos, mas tam-bém nunca estivemos espiritualmente mais distantes uns dos outros76.

74 Idem, p. 83.

75 SÁNCHEZ, Jesús-Mária Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 41-44.

Sobre o assunto, assim destaca Lauwe: “Contrariamente ao que se pode pensar em certos momentos, o desenvolvimento dos meios de comunicação e aproximação dos homens no espaço urbano nem sempre suprimiram o isolamento social, mas, muitas vezes, desenvolveram-no. O número e a facilidade das trocas não devem ser confundidos com sua qualidade; elas podem ser muito numerosas e, ao mesmo tempo, superficiais. Os homens se encontram, então, ‘isolados na multidão’, sem poderem, na verdade, compreender os outros profundamente e, sobretudo, se fazer compreender por eles” (LAUWE, Paul-Henry Chombart de. A organização social no meio urbano. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 121).

76 WIRTH, Louis. Urbanismo..., p. 103.

Page 235: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

235235

Agrava a situação o fato de que nas grandes cidades ocorre a preva-lência dos espaços privados em detrimento dos espaços públicos, tornando as ruas um lugar de hostilidade, pouco frequentado e perigoso. A segrega-ção se expressa com maior força nos condôminos privados ou na privatiza-ção dos espaços de convívio social (tais como academias e clubes esportivos, shopping centers, etc.)77, que, com os portões fechados, só alimentam o medo e a insegurança. Assim, as pessoas, notadamente as mais favorecidas, se li-mitam à recreação nos espaços privados. Isso tudo provoca uma sensação de niilismo moral comum, que afeta aqueles que estão excluídos desses espaços de convívio, além de provocar um sentimento de indiferença daqueles mais favorecidos com os problemas sofridos pelo restante da população, sintoma de uma sociedade pouco solidária para com os problemas comunitários – é dizer, o problema deixa de ser comunitário porque não atinge a “minha comunidade”78. A solução sugerida para isso é promover a integração entre as áreas degradadas e as áreas da cidade que possibilitem o bom convívio social, a homogeneização dos valores e o sentimento de solidariedade. Isso pode ser feito através de políticas públicas de segurança, não violentas, que busquem a melhora das praças, parques, transporte, escolas, bibliotecas, áre-as de esporte e outras medidas de revitalização. “Trata-se de locais onde se descobrem, se aprendem e sobretudo se praticam os costumes e as maneiras de uma vida urbana satisfatória. Os locais públicos são os pontos cruciais nos quais o futuro da vida urbana é decidido neste exato momento”79. Enfim, reconstruir o espaço público é uma boa solução.

Outro problema que precisa ser analisado sob o prisma da desorga-nização social é a estrutura das famílias na contemporaneidade. Na cidade grande a família tende a se enfraquecer enquanto instituição de controle so-

77 Segundo assevera Bauman, “como bem sabemos, as cercas têm dois lados. Dividem um espaço antes uniforme em ‘dentro’ e ‘fora’, mas o que é dentro para quem está de um lado da cerca é fora para quem está do outro. Os moradores dos condomínios mantêm-se fora da desconcertante, perturbadora e vagamente ameaçadora – por ser turbulenta e confusa – vida urbana, para se colocarem ‘dentro’ de um oásis de tranquilidade e segurança. Contudo, justamente por isso, mantém todos os demais fora dos lugares decentes e seguros, e estão absolutamente decididos a conservar e defender com unhas e dentes esse padrão; tratam de manter os outros nas mesmas ruas desoladas que pretendem deixar do lado de fora, sem ligar para o preço que isso tem. A cerca separa o ‘gueto voluntário’ dos arrogantes dos muitos condenados a nada ter” (BAUMAN, Zygmunt. Confiança..., p. 39-40).

78 BAUMAN, Zygmunt. Confiança..., p. 34.

79 Idem, p. 70.

Page 236: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

236

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

236

cial informal, em relação à importância que tem para o homem do campo. A vida familiar tornar-se difícil na medida em que, na cidade, a demanda pelo trabalho faz os pais mais ausentes na criação de seus filhos, o que só vem a se agravar com o tempo que se perde nos congestionamentos da cidade ou no transporte público deficiente80. O resultado é que gerações de jovens são formadas com pouca proximidade ou relação familiar, agravando o quadro de escassa referência moral que há nas cidades. Mas não só os pais estão dis-tantes. Assim, ocorre a tendência de que as crianças sejam entregues cada vez mais cedo em instituições de educação formal, de modo que os cuidados das crianças, que antes pertencia exclusivamente à família, enquanto instituição com papel primário na socialização do sujeito, passa a ser terceirizada a ou-tros, que, evidentemente, não conseguem suprir o vácuo familiar81.

A desintegração familiar pode ocorrer em diferentes graus de gravi-dade. O fato de alguém viver em uma grande metrópole não implica, neces-sariamente, ausência de referências familiares, porém esse fenômeno ocorre com maior intensidade nas grandes cidades, especialmente nas famílias mais pobres e desestruturadas.

5 FLUIDEz, MOBILIDADE E, ENFIM, O PROBLEMA DO ÊXODO RURAL EM MACEIó

A fluidez pode ser entendida como a capacidade física e logística das pessoas se deslocarem pela cidade, no seu cotidiano, ou pela propensão da comunidade a ter diversidade cultural e que as pessoas possam transitar en-tre esses diversos nichos culturais, o que provoca, por sua vez, a heteroge-neidade moral. Assim, pode-se falar em um aspecto espacial e em um aspecto moral82 da fluidez.

A fluidez espacial tem um efeito paradoxal sobre o fenômeno criminal, pois ela provoca tanto a disseminação de crimes quanto a sua diminuição. O primeiro efeito (disseminação) é imediato, de curto prazo, mas o segundo ocorre apenas a médio e longo prazos. É que a melhora na fluidez da cidade

80 PIMENTEL, Elaine. Mobilidade urbana: a violência e a metamorfose das cidades. In: VASCONCELOS, Ruth; PIMENTEL, Elaine. Violência e criminalidade: em mosaico. Alagoas: Edufal, 2009. p. 77.

81 FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço..., p. 131.

82 A fluidez moral, entendida como diversidade moral e cultural, vem sendo tratada ao longo de todo o trabalho, especialmente linhas atrás quando tratamos do pluralismo nas cidades. Portanto, desnecessário tecer outras considerações sobre o problema.

Page 237: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

237237

pulveriza a incidência de crimes que, antes, estavam restritos às áreas crimi-nógenas, antes mencionadas. As tensões sociais e criminais que estão latentes na cidade transbordam com o incentivo à fluidez, atingindo bairros e regiões que antes não eram atingidos, disseminando medo e desorganização social.

Disso podemos deduzir porque, na cidade de Maceió, a incidência dos crimes, notadamente os violentos, fica restrita a alguns espaços e regiões da cidade, enquanto que noutros lugares prevalece a sensação ilusória de que a capital alagoana permanece em estado de paz. É que o transporte público em Maceió é precário e atinge, com satisfação, apenas pequena parte da popula-ção e regiões da cidade; além das ruas e avenidas, que, sendo estreitas e pou-co planejadas, encontram-se abarrotadas de veículos, provocando longos e demorados congestionamentos. Tudo torna as distâncias ainda mais longas, fazendo concentrar a criminalidade violenta nas áreas de degradação huma-na, o que reforça, ainda mais, o desprezo e a inércia das lideranças políticas para com o problema que aflige essas localidades.

A melhora na fluidez espacial em Maceió, que deve ser a todo custo buscada, pode, então, provocar a pulverização da criminalidade por toda a cidade. Para combater isso, é preciso o acompanhamento do sistema de se-gurança pública, inclusive repressora, nos pontos de maior concentração e vazão de pessoas, tais como postos policiais, câmaras de segurança e outras medidas do tipo.

Mas não obstante esse efeito negativo da fluidez espacial, ocorre tam-bém um efeito positivo e de grande contribuição para a diminuição da crimi-nalidade. A fluidez espacial promove, ao longo dos anos, a melhora da soli-dariedade social urbana, incrementando a força do controle social informal, na medida em que aquele que vive nas zonas degradadas da periferia ma-ceioense pode vir a gastar menos tempo em seu deslocamento diário, apro-veitando esse tempo extra para dedicar-se aos filhos e à família, aos estudos ou ao lazer na vizinhança. A fluidez espacial promove, ainda, a integração social entre as zonas degradadas com o restante da cidade, abrindo espaço para o lazer e convívio social em favor daquele que, até então, poderia estar privado desses bens da vida; além de aproximar as pessoas, quebrando o preconceito e a indiferença, contribuindo para a formação de uma polis so-cialmente integrada e solidária83.

Como dito, em Maceió, contudo, a fluidez espacial é diminuta, com raros esforços do Poder Público para melhorar a situação, pois os preços

83 PIMENTEL, Elaine. Mobilidade..., p. 77.

Page 238: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

238

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

238

do deslocamento são por demais onerosos para a maioria pobre da popula-ção, as rotas e alternativas de transporte público são escassas, sem falar dos congestionamentos nas ruas estreitas e lotadas de carros em Maceió. Como consequência, se percebe que a parte baixa da cidade e outros bairros mais estruturados não sentem, na mesma proporção que os habitantes das grotas e bairros periféricos, o crescimento assustador dos crimes violentos e patri-moniais na cidade. É dizer, o crime é pouco pulverizado e, por isso, é pouco sentido pelas lideranças políticas, salvo quando são vítimas diretas (eventos tão pontuais que não propiciam a exata noção da natureza sistêmica do pro-blema criminal em Maceió) ou quando recebem a notícia das estatísticas, que quase não chega, por ser escassa. Porém, ao mesmo tempo em que isso ocor-re, se dá também verdadeiro stress social com a falta de fluidez adequada em Maceió. Essa circunstância afeta a qualidade de vida direta dos cidadãos que vivem nas zonas periféricas, pois estão especial e logisticamente privados de convívio social adequado, reforçando o quadro de desorganização social que assola essas regiões da cidade.

Já a mobilidade, no conceito de Park, consiste no fenômeno de desloca-mento, físico ou social, de partículas da comunicação, reagrupando-as tanto no aspecto espacial quanto no aspecto econômico-social. Por esse conceito, portanto, podemos falar, também, em dois aspectos da mobilidade: um as-pecto físico-espacial e outro moral-comunicacional84. Esse processo desencadeia a sucessão, e ocorre pelo princípio da dominação (aspecto físico-espacial). Como consequência se dá a formação das áreas naturais, que, conforme já tratamos, são espaços delimitados da cidade que possuem características aproximadas entre si (aspecto moral-comunicacional). Daí que surgem re-giões industriais, comerciais, residenciais, de luxo e as favelas e grotas. As regiões degradadas são espécie de região natural, e são marcadas pela forte miséria, descaso, anomia e segregação85.

84 Aqui, ressaltamos o aspecto comunicacional para destacar, também, a influência e as bases do interacionismo simbólico, de John Dewey, sobre a Escola de Chicago, cuja premissa consiste na ideia de que “a sociedade existe na comunicação e por meio dela, e a comunicação compreende, não uma transmissão de energias, [...] mas a comunicação antes compreende uma transformação nos indivíduos que assim se comunicam” (PARK, Robert E. A comunidade urbana como configuração espacial e ordem moral. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 137).

85 Sendo as cidades espaços de intensa mobilidade social, temos que a metrópole não só “cria” os grupos e, logo, as personalidades delinquentes, como também os segrega. A desorganização social e a falência do controle social informal, além de provocar a

Page 239: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

239239

Essas áreas têm forte propensão para serem criminógenas, concentran-do maior incidência de crimes, independente inclusive da composição popu-lacional. Assim, pelo desencadeamento que provoca, a mobilidade tem como efeito a instabilidade, inclusive moral, da vida comunitária local. Conforme anota Ernest W. Burguess: “A mobilidade da vida da cidade, com o seu au-mento de estímulos em número e intensidade, tende inevitavelmente a con-fundir e a desmoralizar a pessoa”; e mais a frente complementa o dizendo: “Onde é maior a mobilidade e onde, por consequência, os controles primá-rios se desintegram completamente, como na zona de decadência na cidade moderna, é que se desenvolvem áreas de desmoralização, de promiscuidade e vício”86.

Assim, a mobilidade é responsável pela formação das áreas criminais, na medida em que provoca o isolamento e a desvalorização de determinadas regiões da cidade, degradando-as. Não fosse o bastante, a mobilidade cria problemas de adaptação moral dos indivíduos. Ocorre que essas regiões con-gregam legiões heterogêneas de sujeitos diferentes entre si em sua cultura e moral, provocando, a médio e longo prazos, fragilidade moral das pessoas mais jovens que vivem nesses ambientes.

O movimento das massas populacionais, caracterizadas pelos desloca-mentos interno (sucessão) e externo (migração) das pessoas nas cidades, pro-voca, portanto, problemas de desorganização social. Esse último movimento, contudo, foi o que despertou maiores atenções dos estudiosos de Chicago, e certamente é o que traz maiores elucidações sobre o problema criminal de Maceió, pois a migração faz com que, no dizer de Hollingshead, “os indiví-duos e os grupos se libertem dos controles costumeiros; uma condição de status característica de uma cultura estável é substituída pela condição de

delinquência, promove o isolamento e rejeição do infrator, desencadeando um ciclo vicioso que não é quebrado, mas retroalimentado. No dizer de Anitua: “A cidade em geral permitia a confusão, a mobilidade e, portanto, o refúgio e a criação de personalidades conflitivas, como vagabundos, alcoólatras, prostitutas e delinquentes. Todos eles, porém, seriam reprimidos e censurados em determinadas áreas morais, nos quais, em virtude desse controle social, não se verificariam conflitos sociais significativos. Na realidade, esses centros de controle social não resolviam o problema da cidade, pois essas individualidades que refletiam tais problemas nem sempre eram acolhidas e controladas pela comunidade local, mas antes eram, em geral, expulsas e encontravam sua acomodação em outras áreas, onde o dito controle era mais frouxo” (ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias..., p. 425).

86 BURGESS, Ernest W. O crescimento da cidade: introdução a um projeto de pesquisa. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 365.

Page 240: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

240

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

240

competição livre. As antigas relações deixam de ligar o indivíduo à base de sua subsistência ou à ordem cultural”87. É dizer, de forma simples, a migra-ção provoca um estado de colisão, onde as estruturas sociais são desintegra-das, devido à incapacidade de adaptação social.

Em Maceió, a recente onda de mobilidade, provocada pelo êxodo rural e pela expansão populacional da cidade, quando relacionada à completa falta de dinamismo econômico-social, provocou desastrosos efeitos do ponto de vida da solidariedade. A sociedade alagoana é, por essência, estratificada, devido ao monopólio produtivo e às oligarquias políticas. Essa paralisação da dinâmica dos segmentos sociais incrementa, mais do que diminui, a cri-minalidade, pois mantém o grau de miséria e de baixa instrução educacio-nal das classes que, tradicionalmente, ocupam as castas mais baixas. Com a forte urbanização de Maceió, que vem a se tornar centro comercial local a partir dos anos 70, esvaziando o interior do estado de Alagoas, a situação se agrava, pois o dinamismo e as oportunidades que se esperava na capital não são encontrados, formando, com o passar dos anos, nas periferias e grotas das cidades, aglomerados de uma população desempregada e ociosa, que se firmou em assentamentos precários sem a mínima estrutura assistencial, des-providos de escolas, postos de saúde, transporte público ou mesmo lazer. O resultado pior aparece ao longo dos anos, quando os filhos desses imigrantes do campo se desenvolvem, sem o mínimo grau de informação ou educação, completando o ciclo vicioso de imobilidade social. Disso se pode concluir que, em Maceió, a mobilidade produziu as áreas criminais e os espaços de segregação, enquanto que a falta de dinamismo econômico-social colabora para incrementar a incidência dos crimes na cidade, na medida em que man-tém e agrava os quadros de pobreza e exclusão social.

Os dados estatísticos evidenciam esse processo. A população alagoana, até os anos 70, era rural em sua maioria, compondo 60% do total popula-cional, enquanto as cidades eram compostas por apenas 40% do total. De-pois dos anos 70 deu-se um processo acelerado de migração para as cidades, especialmente para a capital, Maceió. Como consequência, nos anos 2000, a população urbana era de 68%, enquanto que a população rural agora era de 31,98%. Esse processo de migração foi, em grande parte, impulsionado pela mecanização do cultivo da cana-de-açúcar no interior do Estado, agravando a miséria e o desemprego daqueles que viviam, forçando-os a ir à capital. Assim, dado o esgotamento do campo, ocorreu verdadeira expulsão dos tra-

87 HOLLINGSHEAD, A. B. Migração e mobilidade. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940. p. 235.

Page 241: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

241241

balhadores rurais para as cidades. O resultado, evidentemente, foi a urbani-zação precária de Maceió, que recebeu esse contingente sem mínimas estru-turas sociais de emprego, renda, saúde, educação e moradia. Com o tempo, surgiram no cenário maceioense a alarmante violência, prostituição, mendi-cância, subemprego, crianças e adultos de ruas e assentamentos precários88. Tudo isso consequência de um recente processo, mas o habitante de Maceió parece ter se acostumado.

E foi a segunda geração desses imigrantes quem mais sofreu com a in-capacidade de adaptação social e com a mobilidade desestruturada. A Escola de Chicago logo percebeu, em seus estudos, que o mal que assolava aquela cidade americana estava na mobilidade social intensa devido à migração de numerosos grupos de europeus, de diversos países (alemães, irlandeses, ita-lianos, etc.). Mas também percebeu que o homem imigrante foi à terra ame-ricana, mas manteve os seus valores, sua conduta e tradições, que guardou consigo desde sua vida no continente velho. O problema, então, estava na se-gunda geração desses imigrantes. Os descentes dos imigrantes, contudo, não tinham a mesma capacidade de preservar os valores antigos e, pelo contrário, mergulhavam no clima de desorganização e relativismo moral das grandes cidades89.

Diferente não acontece em Maceió, e os dados, mais uma vez, compro-vam isso. No espaço de tempo de uma geração após o início do acelerado processo de urbanização de Maceió, a cidade experimentou uma explosão na taxa de crimes violentos, de proporções surpreendentes. A partir do ano de 1998, em um espaço de dez anos a índice de homicídios pela população total cresceu surpreendentes 288,2%; o número que era de 255 em 1998, passou para 990 em 200890. Já a taxa de homicídios por cem mil habitantes subiu de 28,2 em 2000 para 100,7 em 2010, de modo que Maceió, em 2008, alcançou o posto de capital mais violenta entre as capitais brasileiras, quando, dez anos antes, ocupava a 14ª posição. E o público dessa violência é a população ado-lescente e jovem dos bairros periféricos, confirmando a tese de que a desor-ganização social incide com maior força sobre a população jovem, pois, de 1998 a 2008, os homicídios de jovens de 15 a 24 anos cresceu 362,6%, vindo Maceió a ser a cidade número um em homicídios de adolescentes. E vale a pena mencionar novamente que nos bairros mais violentos de Maceió a po-

88 ALBUQUERQUE, Cícero Ferreira de. Cana, casa e poder. Maceió: Edufal, 2009. p. 59-60.

89 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade..., p. 70.

90 Fonte: SIM/SVS/MS.

Page 242: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

242

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

242

pulação jovem ultrapassa, em média, 40% do total, e é nesses bairros, calha dizer, que se concentram a maioria dos assentamentos precários91.

Portanto, podemos acreditar que o assustador crescimento da violência em Maceió, que afeta jovens e adolescentes, está intimamente relacionado com a recente urbanização desordenada que a cidade passou, levando a se consti-tuir na cidade uma geração inteira que se desenvolveu e cresceu num ambiente socialmente desorganizado e em meio ao completo niilismo moral. Some-se a todos os fatores de desorganização (fluidez moral, ausência da família, baixa sociabilidade, etc.), aqui trabalhados estudados, à concentração de renda e à falta de emprego, além das condições subumanas de existência, e teremos, en-tão, bons elementos para compreender a criminalidade de Maceió.

CONCLUSãOComo dito a princípio, o presente trabalho consistiu em um resgate

teórico-conceitual das premissas e noções básicas da teoria ecológica do crime, a fim de promover sua aplicação ao cenário do problema empírico da violência em Maceió. As conclusões parciais dessas reflexões – dizemos “parciais”, pois a pesquisa ainda está em curso – caminham no sentido de que o problema da violência urbana na capital alagoana, cujos dados impres-sionam, está intimamente relacionada ao crescimento súbito da população e com a má administração do ambiente urbano, que cai, em alguns setores, na completa degradação física e social.

Percebeu-se a relevante utilidade e imprescindibilidade dos concei-tos da teoria ecológica do crime para compreender o fenômeno criminal de Maceió, e não poderia ser diferente, das grandes cidades brasileiras; afinal, o sucesso na aplicação daqueles conceitos ao cenário urbano escolhido reforça a potencial de universalidade da teoria ecológica, tal como pretendiam os destacados membros da Escola de Chicago.

Sabe-se, então, que investigar a cidade e os problemas que lhe são ine-rentes é imprescindível para compreender o fenômeno criminal urbano na contemporaneidade, que parece ter se tornado um denominador comum das capitais brasileiras. Cumpre, então, agora, empreender novos esforços de in-vestigação, a partir dos conceitos traçados, com o propósito final de que esses estudos levem novas luzes para os gestores do espaço urbano e da segurança

91 Relatório Estatístico da Secretaria de Estado da Defesa Social do Estado de Alagoas. Alagoas, 2009.

Page 243: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 52

Janeiro/março 2014

243243

pública, devolvendo, assim, ao espaço coletivo a atenção e preocupação que merecem.

REFERÊNCIASALBUQUERQUE, Cícero Ferreira de. Cana, casa e poder. Maceió: Edufal, 2009.ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Trad. Sérgio Lamarão.

Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008.BURGESS, Ernest W. O crescimento da cidade: introdução a um projeto de pesquisa. In:

PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.COELHO, Edmundo Campos. Oficina do diabo e outros estudos sobre a criminalidade.

Rio de Janeiro: Record, 2005.FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço urbano e criminalidade: lições da escola de

Chicago. São Paulo: IBCCrim, 2002.HOLLINGSHEAD, A. B. Noções básicas da ecologia humana. In: PIERSON, Donald

(Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.______. Conceito de dominância. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana.

São Paulo: Martins, 1940.______. Migração e mobilidade. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana.

São Paulo: Martins, 1940.QUINN, James A. “Ecologia Humana” e “Ecologia Internacional”. In: PIERSON, Donald

(Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.______. A hipótese de zonas de burgess e seus críticos. In: PIERSON, Donald (Org.).

Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.LAUWE, Paul-Henry Chombart de. A organização social no meio urbano. In: VELHO,

Otávio (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.MCKENZIE, Roderick D. A comunidade humana abordada ecologicamente. In: PIERSON,

Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.MELO, Tainá Silva. A localização dos pobres nas cidades brasileiras: um estudo sobre a

situação dos assentamentos humanos às margens da Lagoa Mundaú, em Maceió/AL. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo: Dinâmicas do Espaço Habitado pela Universidade Federal de Alagoas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Maceió, 2010.

______; LINS, Regina Dulce Barbosa. O fenômeno dos assentamentos humanos precários em áreas urbanas ambientalmente frágeis: o caso das favelas do dique-estrada, em Maceió/Alagoas, p. 7. Disponível em: <http://www.anppas.org.br/encontro5/cd/artigos/GT3-848-991-20100903191215.pdf>.

PARK, Robert Erza. Ecologia humana. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.

______. Sucessão. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.

______. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

Page 244: 25 5 0 52_miolo.pdf · Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo) Gabriel José Chittó Gauer ... (Cristiano Araújo Luzes e Hugo Leonardo Rodrigues Santos) Doutrina EStrangEira

244

Revista de estudos CRiminais 52doutRina naCional

JaneiRo/maRço 2014

244

______. A comunidade urbana como configuração espacial e ordem moral. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.

PIMENTEL, Elaine. Mobilidade urbana: a violência e a metamorfose das cidades. In: VASCONCELOS, Ruth; PIMENTEL, Elaine. Violência e criminalidade: em mosaico. Alagoas: Edufal, 2009.

SÁNCHEZ, Jesús-Mária Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno

urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade: violência urbana e a escola de Chicago.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.______. Alternativas ao sistema punitivo: possibilidades de prevenção da criminalidade

urbana violenta por meio do controle social informal. Revista de Estudos Criminais, ano VII, n. 27, 2007.

WITH, Louis. Histórico da ecologia humana. In: PIERSON, Donald (Org.). Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1940.

______. Urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.