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A publicação no Brasil de Istorie Fiorentine (História de Florença) de Maquiavel, na tradução de Nelson Canabarro, dá ao leitor brasileiro a oportunidade de tomar contato com uma das obras mais importantes do pensador florentino e que até então era inédita em nosso país. Para um pensador cujo nome é tão conhecido e que teve uma parte significativa de seus trabalhos já vertida para nosso idioma, não deixa de ser intrigante que um livro fundamental tenha escapado da atenção dos editores. Ainda que o ineditismo, no Brasil, não sirva como parâmetro, nem mesmo indicativo, da qualidade de uma obra de filosofia, a ausência de uma tradução pode levar o leitor a se interrogar, não sobre o valor da obra, mas sobre a relação que esta guarda com o restante do trabalho do pensador. No caso de Maquiavel, o problema circunstancial da ausência de uma tradução pode se converter num ponto de partida interessante para a leitura de um historiador que passou para a história como alguém que revolucionou a filosofia política. NEWTON BIGNOTTO é professor da Universidade Federal de Minas Gerais. História de Florença, de Nicolau Maquiavel, tradução, apresen- tação e notas de Nelson Canabarro, São Paulo, Musa, 1995. N E W T O N B I G N O T T O MA Q UIAV H I S T O R I A D O R R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 8 2 - 1 8 8, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 182

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A publicação no Brasil de Istorie Fiorentine (História de Florença) de Maquiavel,

na tradução de Nelson Canabarro, dá ao leitor brasileiro a oportunidade de

tomar contato com uma das obras mais importantes do pensador florentino e

que até então era inédita em nosso país. Para um pensador cujo nome é tão

conhecido e que teve uma parte significativa de seus trabalhos já vertida para

nosso idioma, não deixa de ser intrigante que um livro fundamental tenha

escapado da atenção dos editores. Ainda que o ineditismo, no Brasil, não sirva

como parâmetro, nem mesmo indicativo, da qualidade de uma obra de filosofia,

a ausência de uma tradução pode levar o leitor a se interrogar, não sobre o valor

da obra, mas sobre a relação que esta guarda com o restante do trabalho do

pensador. No caso de Maquiavel, o problema circunstancial da ausência de uma

tradução pode se converter num ponto de partida interessante para a leitura de

um historiador que passou para a história como alguém que revolucionou a

filosofia política.

NEWTON BIGNOTTOé professor daUniversidade Federalde Minas Gerais.

História de Florença, de NicolauMaquiavel, tradução, apresen-tação e notas de NelsonCanabarro, São Paulo, Musa,1995.

N E W T O N B I G N O T T O

MAQUIAV H I S T O R I A D O R

R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 8 2 - 1 8 8, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6182

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Assim, parece-nos inevitável que os lei-tores das saborosas histórias sobre Florençase perguntem pela originalidade do que lêeme pela relação que os textos guardam com onúcleo conceitual do pensamento deMaquiavel, exposto n’O Príncipe e nosDiscorsi. Ora, a questão da originalidade é,a nosso ver, uma boa questão, não tantoporque se espera de um autor original obrasoriginais – o que pode ser falacioso – masporque permite-nos ler a História de Flo-rença a partir do contexto no qual foi escri-ta. Por contexto entenda-se aqui tanto a tra-dição historiográfica italiana quanto a tradi-ção filosófica e humanística. No primeirocaso, trata-se de saber se Maquiavel podeser considerado um inovador também na artede contar o passado; no segundo caso, trata-se de relacionar a resposta à primeira ques-tão, qualquer que seja ela, aos debates teóri-cos sobre a política dos quais participouMaquiavel e de onde emergiram suas obraspropriamente conceituais.

•A História de Florença foi encomendada

a Maquiavel pelos Médicis no dia 8 de novem-bro de 1520. Até então – com a exceção deVeneza, que em 1516 havia pedido a AndreaNavagero para escrever uma história da cida-de – essa tarefa era realizada, em Florença,pelos secretários da república, que procura-vam dessa maneira fazer algo mais do que seencarregar dos negócios mais imediatos daadministração, realizando a ponte entre seusestudos humanísticos e suas tarefas políticas.Essa maneira de encarar as coisas era típica dohumanista renascentista, que via na participa-ção na vida da cidade uma expressão naturalde suas convicções éticas. Essa ligação nãodeixou de ter reflexos na maneira de escrevera história, fazendo com que, para os humanistasitalianos, o fundamental fosse o papel educativodos eventos narrados.

Ora, esse é um ponto conhecido de todosos que de uma forma ou de outra se interes-sam pela cultura italiana do Renascimento.Para o leitor da obra historiográfica do Se-cretário Florentino é um ponto a ser levadoem conta, no momento em que se pretendecompreender o contexto no qual nasceu seurelato da história de Florença. Para clarear o

sentido da afirmação anterior vale a penarecorrer, ainda que de maneira breve, aoAticus de G. Pontano (1429-1503). Ele foi olivro fundamental para toda a historiografiado quattrocento, pois mostrou de maneiraclara e direta que a busca dos exemplos ade-quados no passado e o caráter educativo epragmático da história constituíam a chavepara a compreensão de sua importância, paraos que se interessavam pela política e pelasquestões de filosofia moral. De maneira re-sumida, podemos dizer que cabia ao histori-ador imitar os mestres do passado, escolhen-do os fatos e dispondo-os de tal maneira queo leitor fosse levado a aprender algo sobre avida moral e não apenas sobre o ocorrido emoutras épocas e lugares. Cícero e Tito-Líviotinham uma importância crucial nesse con-texto, pois serviam de modelo tanto no quediz respeito à narrativa dos eventos quantodo que se podia aprender com eles.

Uma primeira abordagem do problemada originalidade da obra parece assim en-contrar uma chave preciosa de solução naoposição manifesta por Maquiavel, já nadedicatória, a toda história que não se preo-cupe com a verdade dos fatos (“nonmaculando la veritá...”) e que se perde nabusca da melhor forma de exposição de acon-tecimentos, cuja relevância depende do fatode que podem se transformar em exemplosde verdades morais e não pelo que nos mos-tram. Maquiavel seria, assim, um crítico datradição da história educativa e sua obrahistórica tão revolucionária quanto seus es-critos políticos.

Essa interpretação está longe de ser fal-sa, e fornece, a nosso ver, a primeira pistapara o leitor que se lança na aventura dedecifrar o texto de um historiador tão parti-cular. Mas o que devemos nos perguntar ése, munidos da certeza de que Maquiavel seopôs aos humanistas, que viam na históriauma fonte de educação moral, estamos equi-pados para compreender o relato maquiave-liano em toda sua riqueza. O leitor contem-porâneo pode se sentir reconfortado com essaindicação, pois a exigência de objetividadelhe é tão familiar quanto lhe é estranha a idéiade que os fatos devem ser distorcidos, oupodem sê-lo, para que a história seja de

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melhor qualidade. No entanto, basta percor-rer algumas páginas do livro para perceberque, se não encontramos nele traços eviden-tes de que os ensinamentos morais são o eixoda narração – mesmo se por vezes eles pare-cem aflorar –, também não estamos diantede um texto que foi escrito com exigênciasmetodológicas próximas das que estamosacostumados. Afinal, o que Maquiavel en-tende por verdade dos fatos e de que maneiraela pode ser exposta? Dito de outra maneira,de que fala nosso autor, quando narra osacontecimentos passados de sua cidade?

A primeira conclusão a que chegamos é,portanto, a de que não basta descobrir a distân-cia que separa Maquiavel de outros historia-dores, é preciso também compreender a parti-cularidade de sua escrita, ou melhor, de suaestratégia de escrita. Para tanto, é necessárioolhar com mais cuidado para a própriahistoriografia do quattrocento e para o contex-to no qual a História de Florença foi escrita.

O primeiro ponto é obviamente essen-cial, mas é claro que um tratamento detalha-do da questão é matéria para um livro e nãopara um artigo, que tem a pretensão apenasde introduzir o leitor ao estudo de um histo-riador. Seja como for, é preciso sair da sim-ples oposição entre Maquiavel e a históriaeducativa para compreender seu verdadeirosignificado. Para tanto basta lançar um olharmais atento à produção historiográfica doséculo XV para constatarmos que o quadroé bem mais complexo do que o sugerido nocomeço deste artigo.

Em primeiro lugar, devemos lembrar queo apelo à objetividade e à idéia de que osfatos devem ser narrados da forma mais fielpossível é anterior a Maquiavel. Em Milão,o antigo diretor da Biblioteca de Pavia –Tristano Calco (1455-1515), chamado em1496 para dirigir os arquivos secretos dosSforza, insatisfeito com o que seusantecessores haviam escrito, pôs-se a pro-curar a raiz dos acontecimentos em descri-ções que levavam em conta não o caráterexemplar dos atos dos grandes personagensda História, mas o nexo causal dos eventose sua relação com a totalidade dos fatos.Contra o princípio da brevidade expositiva(brevitas), que era um dos pilares da história

educativa, Calco procurava narrar os fatosde maneira a inseri-los em algo que chama-va de “totalidade” dinâmica e que servia debase para a compreensão de acontecimentosque, tomados isoladamente, não pareciamter significado algum. Assim, não haviaporque se perder em regras retóricas, umavez que o importante era buscar uma melhorcompreensão do objeto tratado e não a bele-za da narrativa. Não sabemos se Maquiavelconheceu seu trabalho, uma vez que o mes-mo só seria publicado em 1627; nem pode-mos exagerar o peso de suas descobertasmetodológicas, que estavam limitadas aoapelo a um tratamento objetivo dos fatos,mas é inegável que seu trabalho à frente dosarquivos de Milão sinalizava um caminhoque viria a ser percorrido de maneira rigoro-sa por gerações posteriores de historiadores.

No mesmo sentido, encontramos a obrade um pensador muito mais conhecido e in-fluente no quattrocento: Lorenzo Valla(1407-57). Valla rejeitou o princípio da bre-vidade e o caráter moral da narrativa histó-rica, para colocar no lugar uma dupla exi-gência facilmente compreensível para umleitor contemporâneo: a busca da verdade(veritas) dos fatos e a recusa da parcialidadedo narrador (parzialità). Inspirando-se emTucídides, ao contrário de seus colegas quepreferiam Tito-Lívio, ele procurou um mé-todo que refletisse e acolhesse a complexi-dade do objeto histórico, no lugar de tratá-locomo matéria maleável, predisposta às for-mas impostas pelas “leis morais”. Para Valla,verdade e imparcialidade andavam juntas e,por isso, o historiador estava antes de maisnada confrontado a um problemametodológico.

É claro que os dois exemplos citados nãomudam o fato de que a história de exemplosdominou o Renascimento e que Maquiavelainda lutava contra ela quando escreveu seupróprio livro. No entanto, a menção a essesprecursores serve para abrir caminho para ainvestigação da originalidade da tarefa a quese propôs Maquiavel em 1520. Nesse sentido,um segundo ponto deve ser levantado e dizrespeito à especificidade da própria Florença.

Maquiavel tinha tido predecessores ilus-tres, que deixaram obras importantes, que

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lhe serviriam de fonte e inspiração. Deve-mos destacar pelo menos dois historiadorese humanistas florentinos que influenciaramnosso autor e ao mesmo tempo fugiram dopadrão historiográfico corrente: LeonardoBruni (1370-1444) e Poggio Bracciolini(1380-1459). Bruni, sobretudo, escreveuuma história de Florença que ultrapassavaos limites da história educativa, ligando in-timamente suas preocupações teóricas coma narração dos acontecimentos mais impor-tantes de sua cidade e que já haviam servidode fio condutor para os cronistas florentinosdo trecento (Villani, Compagni, Stefani). Aocontrário, no entanto, desses escritores, quese preocuparam apenas em colecionar fatoscuriosos ou extraordinários, Bruni introdu-ziu um conceito essencial para a compreen-são da história florentina: o conceito de li-berdade. Para ele, compreender a formaçãoe o desenvolvimento de sua cidade era com-preender a relação que os diversos aconteci-mentos tinham com a liberdade e com asinstituições que a representavam. Essa ma-neira de pensar o ofício do historiador intro-duzia limitações no trabalho de Bruni, umavez que seu próprio tempo e os governos aosquais serviu não eram o exemplo vivo doque defendia como modelo teórico de umarepública livre. Isso conduziu-o muitas ve-zes a falsificar dados e mesmo a tirar con-clusões absurdas quanto à origem de Flo-rença, o que seria duramente criticado porMaquiavel, às vezes mesmo de maneira in-justa. O que cabe ressaltar, no entanto, é quecom Bruni os laços entre filosofia política ehistória ficaram evidentes e abriram a viaque iria se desenvolver justamente comMaquiavel. Longe das generalidades da his-tória educativa, à qual serviram à sua manei-ra, os antigos secretários da RepúblicaFlorentina procuraram escrever uma histó-ria que tinha em grande conta aespecificidade da formação social que lhesinteressava.

Ao começarmos a ler o historiadorMaquiavel devemos, portanto, evitar a ten-tação de conferir-lhe originalidade a qual-quer preço, abandonando o estudo infinita-mente mais complexo de seus laços com atradição. Mas se não podemos no espaço de

um artigo explorar essa via, podemos pelomenos esboçar uma resposta para a questãoque colocamos no começo. Ora, se nossasobservações anteriores são válidas, devemosinicialmente descartar a idéia de que bastareconhecer as críticas de Maquiavel à histó-ria educativa para encontrar a explicação daoriginalidade de sua abordagem. Resta-nos,assim, seja aceitar a herança múltipla com aqual esteve confrontado nosso autor comosinal de seu pertencimento à sua época e,dessa maneira, negar a originalidade de suaobra, seja abandonar a simplificação da teseda ruptura sobre a qual já falamos, para ten-tar encontrar um outro caminho capaz desolucionar nosso problema.

A nosso ver, a segunda via é a correta,mas mais uma vez tentar segui-la até o fimimplicaria num estudo extenso da filosofia deMaquiavel, o que evidentemente não é possí-vel aqui. Podemos, no entanto, buscar umatalho, se tomarmos como certo o que quasetodos os intérpretes afirmam, a saber, queMaquiavel é extremamente original no do-mínio da filosofia política. Trata-se, assim,de saber se essa originalidade teórica temreflexos diretos na obra que estamos anali-sando, de forma a produzir uma ruptura coma tradição muito mais radical do que a que jáapontamos. Lendo suas obras políticas, so-mos confrontados a uma variedade de afir-mações sobre a história, muitas das quaisencontraremos expostas de maneira breve nocurso de suas descrições do passadoflorentino. Mas o que poderia se converterem novo impasse encontra uma solução pos-sível, exatamente porque nosso autor seguemuitas das regras da história educativa, divi-dindo a história em livros e escrevendo capí-tulos introdutórios, que contêm reflexõesgerais sobre os temas que serão tratados. Oespaço, que os manuais de história educativareservavam para a apresentação dos princí-pios morais diretivos do bom uso da razão, seconverte, com Maquiavel, no lugar onde seafirma sua distância em relação a seu tempo.Assim como já fizera n’O Príncipe, quandoadotara a fórmula tradicional dos tratados deaconselhamento dos governantes (speculumprincipis), para melhor demarcar o territóriodas conquistas teóricas que empreendeu,

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Maquiavel se serve de uma estrutura clássicae conhecida dos leitores de sua época paraescrever uma história de sua cidade totalmentediferente da de seus predecessores.

O leitor contemporâneo pode assim sabo-rear por antecipação a revolução historio-gráfica maquiaveliana, lendo em primeirolugar o “proêmio” e os primeiros capítulosdos cinco primeiros livros. Não se trata deencontrar um resumo, ou de separar o que éteórico do que é narrativo – essa distinçãoseria totalmente artificial –, mas de aprovei-tar da estratégia de convencimento dos leito-res de sua época para melhor compreender aorganização de um livro, que hoje nos parecetão distante das diversas formas de escrevera história. Seguindo essa pista, veremos, en-tão, como o filósofo migra para o historiadorsem perder sua coerência e rigor.

E se quiséssemos agora percorrer essecaminho, veríamos que é possível falar de umconceito matriz, que abre as portas para osofisticado pensamento de nosso autor e queliga sua História de Florença ao restante deseus trabalhos. Como já mostrou Felix Gilbert,esse conceito é o de corrupção. Corrupçãoque devemos entender no sentido clássico,ou seja, corrupção do tempo e das formaspolíticas e não simplesmente institucional oupessoal. Segundo o historiador americano, aHistória de Florença narra a decadência dacidade e com isso se distancia de tudo o queaté então fora dito sobre a história em geral,sobre Florença e sobre o tempo e sua formacircular. A plena compreensão dessa afirma-ção depende da análise das raízes profundasda revolução teórica operada por Maquiavelem suas outras obras, mas podemos ter umaidéia de sua aventura percorrendo de maneirasucinta os capítulos indicados.

Como já observamos, logo no início,Maquiavel coloca como essencial a buscada verdade dos fatos históricos e não mais ados princípios morais. Essa exigência per-mite-lhe desencadear um ataque vigorosocontra os historiadores, que de forma diretaou indireta haviam servido à históriaeducativa, como foi o caso de Bruni e dePoggio. Ora, é preciso entender essa primei-ra investida dentro do contexto no qual foiformulada. Em primeiro lugar, devemos lem-

brar que Maquiavel escrevia para uma gera-ção que, tendo assistido à derrota da Repú-blica Florentina, passara a acreditar mais naforça como elemento constitutivo da políti-ca do que na beleza de certos princípiosmorais. Em segundo lugar, é preciso ver queos ataques aos historiadores florentinos vi-savam também aos pensadores humanistas,que acreditavam poder pensar a história dacidade como a do desenvolvimento da liber-dade. Maquiavel acusa Bruni de ter se es-quecido dos conflitos internos, quando naverdade sabia que seu predecessor havia seocupado e muito das disputas internas. Oque estava em jogo, na verdade, não era oreconhecimento da existência dos conflitosinternos, mas a importância conferida a eles.Enquanto toda a tradição se unia em confe-rir-lhes um caráter negativo, Maquiavel ha-via afirmado a originalidade de seu cami-nho, mostrando no quarto capítulo dosDiscorsi que os conflitos regulados e acei-tos pelas leis haviam sido a causa da grande-za do povo romano. Fazendo, assim, apare-cer a especificidade de cada sociedade noque diz respeito às divisões sociais, ele su-gere que nenhuma análise baseada unica-mente na comparação com os antigos é ca-paz de restituir o movimento real de consti-tuição das sociedades. Escamoteando a im-portância das lutas internas na compreensãoda história, Bruni teria escrito uma obra deacordo com as conveniências retóricas emesmo ideológicas, mas distante da verda-de da vida política.

A insistência das críticas de Maquiavelaos outros historiadores se explica, portan-to, menos por uma querela metodológica emais por uma compreensão totalmente dife-rente da natureza da política e da essência dotempo. Enquanto Bruni e Poggio se apoia-vam na idéia de que Florença estava destina-da a ser livre – lugar-comum do pensamentohumanista – Maquiavel procurava mostraras raízes do fracasso florentino e a lógicaque o presidiu.

A partir do primeiro capítulo do segundolivro até o primeiro capítulo do quinto livro,nosso autor procura, então, fundar sua cren-ça de que a história de sua cidade só podiaser compreendida como a história de sua

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corrupção e não como o desabrochar deuma liberdade triunfante. Ele mostra que anatureza é um obstáculo poderoso à açãodos homens, mas não serve como chavepara a compreensão dos acontecimentoshistóricos. Incorre no mesmo erro, segun-do ele, o historiador que transforma o con-ceito de conflito político em matriz abso-luta da compreensão histórica. De formaampla, podemos dizer que a grande liçãode Maquiavel é a de que nenhum conceitoou aparato conceitual sozinho é capaz dedar conta da história, pois esta é sempre oproduto de ações e de lutas que não podemser extintas ou reduzidas a conteúdos co-nhecidos a priori. Resta sempre um espa-ço para a indeterminação, que é a face ver-dadeira da liberdade.

Por isso, depois de recusar a transforma-ção do conceito de conflito em algo pareci-do com a idéia de liberdade dos humanistas,Maquiavel enfrenta o difícil problema da fun-dação das novas repúblicas de um ponto devista totalmente diverso do da tradiçãohumanista. Enquanto os historiadores doquattrocento se preocupavam com a desco-berta das origens das cidades, estabelecen-do um nexo causal entre a primeira formaconstitucional e a história posterior,Maquiavel vai mostrar que a roda do tempoconfere um peso excepcional à figura dacorrupção e não à garantia da conservaçãodas formas primeiras, mesmo quando presi-didas pela liberdade. Para que essa rupturafosse possível, entretanto, nosso autor ade-riu à mesma concepção do tempo circularprópria de todos os autores do Renascimento,operando uma reviravolta no paradigma te-órico que havia servido de base para ahistoriografia de seu tempo.

Com efeito, em momento algum o Se-cretário Florentino diz que a forma do tem-po é diferente da que aprendera com osmestres do passado, ou seja, um círculo. Mas,enquanto os autores antigos viam no movi-mento do tempo o motor para o aparecimen-to da diversidade constitucional, Maquiavelenxergava apenas a alternância entre a or-dem e a desordem. Como sua época era cor-rupta, os conceitos de seus antecessores lhepareciam insuficientes para compreender o

que se passava com a cidade. Com isso, elenão era levado a afirmar uma nova forma dedeterminismo, nem a História de Florençadeixa entrever algo nesse sentido. O queMaquiavel mostra é que o círculo do tempoé uma universalidade abstrata, incapaz denos falar sobre a particularidade de cadasociedade. Ora, é essa particularidade quelhe interessa descrever ao contar a históriade sua cidade, e esse é o terreno da ação e dacriação e não o da repetição do já sabido. Porisso não faz sentido escrever sobre o passa-do, para se falar de exemplos ou de princí-pios morais. O que se pode aprender com ahistória são os limites da ação do homem esua importância na construção do que cha-mamos de tempo. Entre a corrupção, destinode toda forma política, e a criação das novasformas, inscreve-se o terreno propriamentehumano da política, que é o único que real-mente interessa aos homens desejosos deescapar das armadilhas de sua condição deseres finitos.

• • •É sobre esses pilares teóricos que o livro

se organiza. No entanto, as observações queacabamos de fazer não têm a pretensão deesgotar o sentido da História de Florença,nem mesmo dos capítulos introdutórios aosquais se referem. O que queremos é introdu-zir o leitor em um texto cujas originalidadee força podem escapar a alguém acostuma-do a outras formas de narrativa. Maquiavelfoi um mestre na combinação de um extra-ordinário esforço teórico com uma escritaque em tudo seduz o leitor pela proximida-de que parece ter com as formas mais tradi-cionais de se contar o passado. E essa écertamente uma das grandes originalidadesdo texto, que soube trazer para o ofício dohistoriador a revolução que se operava nosterrenos da filosofia política e da ética. AHistória de Florença é, portanto, um textoprivilegiado para os que querem ao mesmotempo conhecer algo dos extraordináriosacontecimentos que forjaram o rosto de umadas cidades mais interessantes da época ealgumas das conquistas teóricas mais im-portantes no terreno da política e que joga-ram por terra os velhos esquemas de com-preensão do mundo.