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3 Direito fundamental à moradia 3.1 Conceito e trajetória A compreensão dos direitos fundamentais como valores essenciais da sociedade brasileira está cristalizada em nosso cenário jurídico. Desde o advento da Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, esses direitos foram alçados ao vértice de nossa ordem jurídica, assumindo a preponderante função de ordenação de uma nova comunidade política, fundada nos ideais de liberdade, justiça (social) e solidariedade. Para bem cumprir essa função, o rol dos direitos fundamentais foi alargado em relação ao constante de Constituições anteriores, sem perda da sua característica de indivisibilidade, somando-se aos já clássicos direitos de liberdade de primeira dimensão (direitos civis e políticos – arts. 5º e 12 a 17) os direitos de igualdade de segunda dimensão (sociais, econômicos e culturais – arts. 6º a 11) 80 e os direitos de fraternidade ou de solidariedade de terceira dimensão (coletivos e difusos – paz, autodeterminação dos povos, meio ambiente, comunicação etc). Um desses novos direitos, incorporado expressamente ao texto da Carta Magna de 1988, foi o direito à moradia, que pode ser sumariamente conceituado como a prerrogativa atribuída a toda pessoa de ocupar por tempo razoável um imóvel no qual possa se proteger das intempéries, e, com resguardo da intimidade, praticar os atos elementares da vida como a alimentação, o repouso, a higiene, a reprodução, a convivência etc. 81 Como restará evidenciado ao longo deste capítulo, o direito à moradia, de matriz eminentemente constitucional e de forte carga humanitária, não se confunde com o direito à habitação (domicílio ou residência), que é mero reflexo de natureza civil e patrimomial de seu conteúdo. 80 Discorrendo sobre o catálogo de direitos fundamentais na Constituição de 1988, asseverou Ingo Wolfgang Sarlet: “A acolhida dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio no catálogo de direitos fundamentais ressalta, por sua vez, de forma incontestável sua condição de autênticos direitos fundamentais, já que nas Cartas anteriores os direitos sociais se encontravam positivados no capítulo da ordem econômica e social, sendo-lhes, ao menos em princípio e ressalvadas algumas exceções, reconhecido caráter meramente programático, enquadrando-se na categoria de normas de eficácia limitada” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit. p. 79). 81 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Direito à moradia. Revista de Informação Legislativa. Brasília. Ano 32. n. 127. julho/setembro 1995. p. 50.

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3 Direito fundamental à moradia 3.1 Conceito e trajetória

A compreensão dos direitos fundamentais como valores essenciais da

sociedade brasileira está cristalizada em nosso cenário jurídico. Desde o

advento da Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, esses

direitos foram alçados ao vértice de nossa ordem jurídica, assumindo a

preponderante função de ordenação de uma nova comunidade política, fundada

nos ideais de liberdade, justiça (social) e solidariedade. Para bem cumprir essa

função, o rol dos direitos fundamentais foi alargado em relação ao constante de

Constituições anteriores, sem perda da sua característica de indivisibilidade,

somando-se aos já clássicos direitos de liberdade de primeira dimensão (direitos

civis e políticos – arts. 5º e 12 a 17) os direitos de igualdade de segunda

dimensão (sociais, econômicos e culturais – arts. 6º a 11)80 e os direitos de

fraternidade ou de solidariedade de terceira dimensão (coletivos e difusos – paz,

autodeterminação dos povos, meio ambiente, comunicação etc).

Um desses novos direitos, incorporado expressamente ao texto da Carta

Magna de 1988, foi o direito à moradia, que pode ser sumariamente conceituado

como a prerrogativa atribuída a toda pessoa de ocupar por tempo razoável um

imóvel no qual possa se proteger das intempéries, e, com resguardo da

intimidade, praticar os atos elementares da vida como a alimentação, o repouso,

a higiene, a reprodução, a convivência etc.81 Como restará evidenciado ao longo

deste capítulo, o direito à moradia, de matriz eminentemente constitucional e de

forte carga humanitária, não se confunde com o direito à habitação (domicílio ou

residência), que é mero reflexo de natureza civil e patrimomial de seu conteúdo.

80 Discorrendo sobre o catálogo de direitos fundamentais na Constituição de 1988, asseverou Ingo Wolfgang Sarlet: “A acolhida dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio no catálogo de direitos fundamentais ressalta, por sua vez, de forma incontestável sua condição de autênticos direitos fundamentais, já que nas Cartas anteriores os direitos sociais se encontravam positivados no capítulo da ordem econômica e social, sendo-lhes, ao menos em princípio e ressalvadas algumas exceções, reconhecido caráter meramente programático, enquadrando-se na categoria de normas de eficácia limitada” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit. p. 79). 81 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Direito à moradia. Revista de Informação Legislativa. Brasília. Ano 32. n. 127. julho/setembro 1995. p. 50.

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Não é objetivo deste trabalho investigar a trajetória do direito à moradia

no cenário internacional82, motivo pelo qual somente serão abordados os

principais textos normativos alienígenas de projeção imediata na ordem jurídica

brasileira. O primeiro documento internacional a ressaltar a fundamentalidade de

um direito à moradia foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU

de 10.12.1948, ratificada pelo Brasil na mesma data, que consignou em seu

inciso XXV (1):

“todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência e circunstâncias fora de seu controle”.

Inobstante o termo utilizado tenha sido “habitação”, resta evidenciado que

a intenção dos legisladores da Declaração de 1948, editada após os horrores da

2ª Guerra Mundial, responsável pela produção de milhares de refugiados83, era

elevar à categoria de direito humano a prerrogativa do homem de ocupar com

privacidade um imóvel que lhe sirva de abrigo seguro, no qual possa

desenvolver as atividades básicas necessárias a uma vida com dignidade. Para

suprir o déficit de eficácia jurídica, inclusive coercitiva, da Declaração Universal

de 194884, foi firmado em 1966, por meio da Resolução 2.200-A (XXI) da ONU, o

Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, ratificado pelo

82 Segundo registra Ingo Wofgang Sarlet, em 1995 bem mais de cinqüenta Constituições reconheciam expressamente um direito fundamental à moradia (SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Crises e Desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. – Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.427). 83 Como muito bem descrito por Hannah Arendt, a primeira solução idealizada por Hitler para resolver a questão judaica foi a expulsão de todos os judeus dos territórios sob domínio nazista. Somente com o fracasso dessa solução, decorrente do excessivo contingente de judeus, é que Hitler adotou as soluções da concentração (campos de concentração) e, em seguida, do extermínio em massa (ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Tradução: José Rubens Siqueira – São Paulo : Companhia das Letras, 1999). 84 Por ter sido adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas sob a forma de resolução, muitos autores defendem que a Declaração Universal de 1948 não é um documento jurídico que imponha obrigação legal aos Estados-Partes, o que somente seria possível se o instrumento de sua adoção fosse um tratado. Em sentido contrário, com argumentos substanciais, PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. – 7. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006. pp. 137-40.

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Brasil em 24.01.199285, que em seu art. 11 consagrou, definitivamente, o direito

à moradia como direito fundamental do homem, nos seguintes termos:

“Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si proprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como na melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento”.

Para finalizar esse incompleto86 registro da contribuição internacional na

questão da moradia, não podem ficar sem menção as Declarações da ONU

sobre Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976 (Agenda Habitat I) e a de

Instambul de 1996 (Agenda Habitat II), que a par de ratificarem o direito a uma

moradia adequada como direito essencial da pessoa humana, procuraram definir

os conteúdos mínimos desse direito e as responsabilidades dos Estados na sua

efetivação progressiva87.

No cenário nacional, somente com a edição da Emenda Constitucional n.

26, de 14.02.2000, que alterou o art. 6º da Constituição de 198888, a moradia

passou a ser um direito fundamental expressamente consagrado. Discute-se, no

entanto, se realmente o caso é de positivação de um novo direito ou somente de

explicitação e reforço de um direito já presente em nossa ordem jurídico-

constitucional, ao menos no que se refere à Constituição em vigor. Os

argumentos em prol desse segundo ponto de vista me parecem insuperáveis, já

tendo sido acolhidos, ainda que implicitamente e sem fazer uma menção

expressa e direta ao direito à moradia, pelo Poder Judiciário89.

85 Decreto 591, de 06.07.92. 86 Outros documentos internacionais que versaram sobre um direito à moradia podem ser citados: a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (1969), as Convenções Internacionais sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (1979), a Convenção Internacional sobre os direitos das crianças (1989), a Convenção sobre a proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes (1990) etc. 87 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação: Análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2004. pp. 68-71. 88 Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 89 Nesse sentido consta da ementa do acórdão prolatado pelo STJ em 19.08.99, no REsp. n. 213422/BA, tendo como relator o Ministro José Delgado: “A questão habitacional é um problema que possui âmbito nacional, e suas causas devem ser buscadas e analisadas sob essa extensão, devendo ser assumida pelos vários segmentos da sociedade, em mútua colaboração na busca de soluções, eis que a habitação é elemento necessário da própria dignidade da pessoa humana, encontrando-

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Em primeiro lugar, registre-se que foi a própria Constituição de 1988 que

em diversos de seus dispositivos ressaltou expressamente a importância da

moradia, deixando implícito a fundamentalidade desse direito90. A moradia e a

posse de um mínimo de solo fértil para cultivo e sustento pessoal e familiar91

são, certamente, dois dos mais importantes conteúdos da função social da

propriedade dos arts. 5º, XXIII e 170. O salário mínimo, direito fundamental

social do art. 7º, IV, deve ser suficiente para garantir a necessidade vital básica

com moradia. O art. 23, IX, atribui a todos os entes da federação a competência

para promover programas de construção de moradias e de melhoria das

condições habitacionais e de saneamento básico. O art. 183 condiciona a

usucapição especial urbana à utilização do imóvel para fins moradia.

Em segundo lugar, sendo o Brasil signatário de tratados internacionais -

em especial o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de

1966 - que prevêem expressamente em seus textos o direito à moradia como

essencial à condição humana, é de se aplicar a cláusula de reconhecimento do

art. 5º, § 2º, da CF, no ponto em que prevê que os “direitos e garantias

expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados

internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, o

direito à moradia já seria, desde a incorporação à ordem jurídica brasileira em

1992 do referido Pacto, direito fundamental expresso92.

se erigida em princípio fundamental de nossa República (art. 1º, III, da CF/88)”. Embora o termo utilizado tenha sido habitação, o julgado quis referir-se, certamente, ao direito à moradia, que, naquele momento, ainda não constava expressamente da Constituição Federal com essa denominação. 90 Demonstrando a fundamentalidade que sempre marcou o direito à moradia, ressalte-se que, mesmo sem determinação constitucional expressa, a legislação infraconstitucional brasileira vem, desde 1964, dando atenção especial à sua efetivação, com destaque para edição da Lei 4.380, que instituiu o Sistema Financeiro da Habitação, que tinha como objetivo principal fomentar a política de construção e aquisição de casa própria ou moradia, especialmente pelas classes de menor renda da população (ver arts. 4º e 8º). 91 GONDINHO, André Osório. Função Social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (coordenador). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Renovar, 2000. p. 399. 92 Desde a entrada em vigor do disposto no art. 5º, § 2º, da CF, a doutrina mais avisada entendeu que os direitos inscritos em tratados de direitos humanos se incorporavam ao ordenamento jurídico pátrio na qualidade de normas constitucionais. No entanto, essa posição não foi acompanhada pelo Supremo Tribunal Federal, que nos últimos anos ratificou o seu entendimento de que as normas decorrentes de tratados internacionais, mesmo quando garantidoras de direitos, se incorporam ao ordenamento jurídico brasileiro com hierarquia de lei ordinária. Nesse sentido ver o HC 72.131-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01.08.03, que enfrentou a questão da prisão do depositário infiel a luz dos artigos 5º, inciso LXVII da CF e 7º, 7, do Pacto de San José da Costa Rica. O STF, no julgamento do RE 466343-1/SP (ainda não concluído), parece querer alterar parcialmente a sua jurisprudência, para manter as normas decorrentes de tratados internacionais que versem sobre direitos humanos em nível hierárquico inferior à Constituição, mas superior ao da legislação ordinária. Nesse sentido ver o substancioso

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Em terceiro lugar, e novamente aplicando a cláusula de reconhecimento

do art. 5º, § 2º, agora na parte que determina que “os direitos e garantias

expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos

princípios por ela adotados”, parece evidente que um direito fundamental à

moradia pode ser extraído sem dificuldades do conjunto de princípios que

orientam a carta de 1988 (arts. 1º e 3º), com destaque para o princípio da

dignidade da pessoa humana93, que restaria totalmente esvaziado em seu

conteúdo caso não se garantisse à universalidade de seus destinatários, como

ente individual ou integrante de uma unidade familiar, uma morada digna para o

seu abrigo, instrumento indispensável para o pleno desenvolvimento da

personalidade humana e para o gozo de outros direitos fundamentais (saúde,

liberdade, segurança, intimidade etc).

A discussão em torno do momento em que a moradia ganhou status de

direito fundamental94 no cenário jurídico brasileiro é de grande valia, porque tem

como pano de fundo um dos temas mais importantes do direito constitucional da

atualidade: o alcance da abertura do catálogo de direitos fundamentais

proporcionada pelo disposto no art. 5º, § 2º, da CF. Pois, se é certo que uma

abertura exagerada e sem critérios pode banalizar o sistema de direitos

fundamentais, com reflexos negativos em sua carga de eficácia, a adoção de

uma linha restritiva de reconhecimento de novos direitos dessa categoria

certamente fragilizará a proteção do ser humano e de sua dignidade,

principalmente no estágio atual de nossa evolução científica, que já tem como

instrumento de trabalho a identidade genética do homem95. Entretanto, no

voto-vogal do Min. Gilmar Mendes. Atualmente, e para os novos tratados e convenções internacionais, a questão encontra-se pacificada pelo disposto no § 3º, do art. 5º da CF, incluído pela EC 45/2004. 93 Nesse ponto, como aptos a servirem de fonte de reconhecimento da fundamentalidade do direito à moradia, também merecem destaque os princípios da cidadania, da busca de uma sociedade livre, justa e solidária e da erradicação da pobreza. 94 Esse trabalho seguirá na linha da quase unanimidade da doutrina pátria, que distingue o conteúdo dos termos “direitos fundamentais” e “direitos humanos”. Para Ingo Wolfgang Sarlet: “o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de um determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit. pp. 35-6). 95 Sobre o tema ressaltou como propriedade Ingo Sarlet: “Por sua vez, vale frisar, nada impede (antes pelo contrario, tudo impõe) que se busque, com fundamento direto na dignidade da pessoa humana, a proteção – mediante o reconhecimento de posições

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âmbito restrito do direito à moradia e para os fins específicos deste trabalho a

discussão perde em importância, uma vez que a Emenda Constitucional n. 26 de

2000 colocou uma pá de cal sobre a questão, alçando a moradia,

definitivamente, a direito fundamental em nosso universo jurídico.

Fica, contudo, a advertência de Ingo Sarlet, para quem: “se o direito à moradia, pelos motivos já apontados, não chega a ser propriamente um ‘novo direito’ na nossa ordem jurídico-constitucional, por certo a sua expressa positivação lhe imprime uma especial significação, além de colocar novas dimensões e perspectivas no que diz com a sua eficácia e efetividade”96. Reforçando a nova roupagem de conteúdo, eficácia e efetividade do

direito à moradia após a Emenda 26, é importante registrar passagem de Luis

Roberto Barroso, que ao tratar da relação entre a entrada em vigor de uma nova

Constituição e a permanência de normas da legislação infraconstitucional

anterior, assim se manifestou:

“Deve-se rejeitar uma das patoglogias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo”97.

3.2 Fundamento e classificação

A dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais guardam entre

si estreita relação de pertinência. Pode-se afirmar que a dignidade da pessoa

humana é o principal fundamento dos direitos fundamentais98 e que estes

constituem a sua mais direta e imediata projeção99.

jurídico-subjetivas fundamentais – da dignidade contra novas ofensas e ameaças, em princípio não alcançadas, ao menos não expressamente, pelo âmbito de proteção dos direitos fundamentais já consagrados no texto constitucional” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, op. cit. pp. 107). Como exemplos, cita o autor: direito à identidade genética contra excessos cometidos em sede de manipulações de genes, direito à proteção da livre orientação sexual em face do alcance restritivo da união estável prevista no art. 226, § 3º, da CF, direito a um mínimo existencial para uma vida digna, direito à identidade pessoal diante das novas técnicas de reprodução humana etc. 96 SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia, op. cit. p. 429. 97 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, op. cit. p. 71. 98 Segundo Ingo Sarlet: “Ainda que estejamos convictos de que nem todos os direitos e garantias fundamentais expressamente anunciados no elenco do Título II de nossa Constituição encontram o seu fundamento direto no princípio da dignidade da pessoa

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Embora de difícil apreensão, em face de sua forte carga de abstração100,

o conteúdo mínimo do princípio da dignidade da pessoa humana engloba,

segundo visão acertada de Ingo Sarlet, a proteção “contra todo e qualquer ato

de cunho desumano ou degradante”, a garantia das “condições existenciais

mínimas para uma vida saudável” e de “participação ativa e co-responsável nos

destinos da própria existência e da vida em comum com os demais seres

humanos”.101 Sendo certo que esse conteúdo da dignidade ficaria com a sua

eficácia seriamente comprometida se dependesse somente da força vinculante

de seu enunciado polissêmico, o princípio em questão projeta-se por meio dos

direitos fundamentais, ganhando concretude e densidade normativa. Assim, tem-

se, em regra102, que direitos civis como a proibição da tortura e de penas cruéis,

a presunção de inocência, o devido processo legal e a proibição de provas

ilícitas inibem a prática de qualquer ato de cunho desumano ou degradante à

pessoa. Já direitos sociais como saúde, educação e previdência social garantem

as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, e, por fim, direitos

humana e que, de qualquer modo, diversa a intensidade deste vínculo entre dignidade e direitos fundamentais, já que distinto o âmbito de proteção de cada direito em espécie, não poderíamos, por outro lado, deixar de reconhecer que é na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento primeiro e principal e, de modo particular, o alicerce de um conceito material dos direitos fundamentais” (SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia, op. cit. p. 430). 99 Essas afirmações, embora contundentes, não afastam outras duas certezas. Primeira, a de que o direito à moradia também recolhe o seu fundamento em outros princípios da Constituição Federal de 1988, como a cidadania (art. 1º, II), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e a erradicação da pobreza (art. 3º, III). Segundo, a de que a relação entre dignidade da pessoa humana e direito à moradia também é de dependência, uma vez que este, simultaneamente, não deixa de se apresentar como um dos pressupostos concretizadores daquela. Enquanto o direito à moradia encontra o seu fundamento na dignidade da pessoa humana, não se pode falar, é verdade, em dignidade da pessoa humana sem direito à moradia. No entanto, a opção deste trabalho por enfocar somente uma das vias dessa relação – a da dignidade como fundamento de um direito à moradia – deve-se à constatação de que, se todos os direitos fundamentais da ordem constitucional brasileira tivessem que ser condensados em uma equação composta de dois fatores, estes seriam, sem dúvida e perda de conteúdo, o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. 100 NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Revista de Direito Administrativo. Volume 219 – janeiro/março 2000, p. 239. 101 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, op. cit. p. 62. 102 Essa cláusula de relativização quer demonstrar que não existe uma rígida vinculação entre as dimensões dos direitos fundamentais e os conteúdos da dignidade que eles asseguram, ou seja, direitos civis também podem assegurar condições existenciais mínimas, como direitos sociais em muitos casos inibem situações de tratamento desumano ou degradante.

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como liberdade103, igualdade e propriedade asseguram uma participação ativa

nos destinos da própria existência e da vida em comum com as demais pessoas.

Dentro do contexto geral traçado é correto afirmar que o direito à moradia

tem na dignidade da pessoa humana o seu fundamento principal, por ser

instrumento indispensável para assegurar uma vida saudável, inibir vivências

degradantes e permitir o gozo de outros direitos fundamentais. Sem adentrar no

conteúdo deste direito, que será objeto de análise no próximo item, parece não

restar dúvidas de que quem não tem um teto para se proteger das intempéries,

repousar nos seus momentos de descanso, exercer seus atos mais básicos

(alimentação, lazer etc) ou íntimos (higiene, relacionamento afetivo e sexual), e

conviver com seus familiares, não reúne condições de ter uma vida saudável ou

mesmo digna. Na verdade, sem um teto para se abrigar o ser humano está

exposto a toda ordem de atos desumanos e degradantes, decorrentes de

fenômenos naturais (frio, chuva etc), fisiológicos (fome, sede, doenças etc),

psicológicos (perda de identidade e auto-estima) e físicos (violência)104, que se

potencializam nos grandes centros urbanos, onde os efeitos deletérios da

pobreza e da exclusão social são mais perniciosos105. Em menor intensidade

essa mesma situação ocorre nos casos em que o direito à moradia é exercido de

forma inadequada, em local que não preenche as condições básicas para tanto.

Alguns autores chegam a incluir a moradia no rol dos designados direitos

de subsistência, como expressão mínima do próprio direito à vida106. Com isso, o

direito à moradia na Constituição de 1988 não teria como fundamento nuclear

somente a dignidade da pessoa humana, mas, também, a preservação da vida.

Entretanto, essa não é a melhor posição a ser adotada. É que a proteção

tributária do direito à vida dirige-se, primordialmente, às suas dimensões

biológica e física, ou seja, ao direito de viver e de permanecer vivo. Já os

aspectos materiais (vida saudável, integridade corporal etc) e espirituais

(intimidade, integridade moral etc), complementares do direito à vida, retiram a

sua proteção de outros direitos fundamentais ou mesmo da própria cláusula 103 Aqui, o direito à liberdade deve ser tomado em suas mais diversas manifestações: liberdade de consciência, manifestação, credo, política, associação, negocial, autonomia da vontade etc. 104 Nos últimos anos os moradores de rua vêm sendo alvo das mais diversas formas de violência física, podendo ser destacado, em razão das reiteradas vezes em que foi noticiado pela imprensa nacional, os episódios de ateamento de fogo em pessoas dormindo nas ruas e calçadas. 105 Juntamente com o movimento dos sem terras – MST, vem crescendo no Brasil o movimento dos sem casas, que hoje ocupam, por meio de invasões, milhares de prédios abandonados ou não acabados, sem a mínima infra-estrutura para servir como moradia. 106 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Direito à moradia. Revista de Informação Legislativa. Brasília. Ano 32. n. 127. julho/setembro 1995. p. 49.

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geral da dignidade da pessoa humana107. Prova disso é que sempre que se

violar o direito à moradia estará sendo afetada diretamente a dignidade da

pessoa humana. Situação diversa ocorrerá com o direito à vida, que, com

exceção de casos especiais,108 não será diretamente atingido quando ausente o

direito à moradia109.

Definido o fundamento do direito à moradia, é importante agora situá-lo

no universo dos demais direitos fundamentais constantes da Constituição de

1988, atribuindo-lhe classificação compatível com o seu conteúdo normativo. De

início, é importante frisar duas questões. Primeiro, a dificuldade de se classificar

os direitos fundamentais, decorrente da diversidade de funções que exercem110,

da sua distinta e complexa estrutura normativa111 e das imprecisões

terminológicas da Carta de 1988. Segundo, embora não seja fator decisivo para

conhecimento dos direitos fundamentais, a classificação colabora na

sistematização das atividades de interpretação e aplicação desses direitos,

facilitando a formulação de pautas argumentativas racionais em torno de seus

diversos conteúdos e eficácias. Com base nos critérios eleitos pela Carta de

1988, e seguindo linha adotada por Ingo Sarlet112, tentaremos classificar, de

forma resumida e para o que interessa a este trabalho, o direito à moradia.

107 Posição divergente é defendida por José Afonso da Silva, para quem: “Mas alguma palavra há de ser dita sobre esse ser que é objeto de direito fundamental. Vida, no texto constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico, mas na usa acepção biográfica mais compreensiva. (...) No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana (de que já tratamos), o direito à privacidade (de que cuidaremos no capítulo seguinte), o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade e, especialmente, o direito à existência” (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21 ed., São Paulo: Malheiros, 2002. pp. 196-7). 108 Entre esses casos pode ser citado o exercício do direito à moradia em áreas de risco iminente de desabamentos e soterramentos, como barrancos e encostas. 109 Tratando da unidade jusfundamental entre a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à vida na Constituição da Alemanha, afirmou Michael Kloepfer: “Tal não significa, contudo, já por isso, uma equiparação entre ambos os direitos fundamentais, pois a dignidade da pessoa humana pode ser lesada de múltiplas formas sem que reste tangenciado o direito fundamental à vida” (KLOEPFER, Michael. “Vida e dignidade da pessoa humana”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet, Pedro Scherer de Mello Aleixo, Rita Dostal Zanini. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. pp. 153-184). 110 Segundo Canotilho (CANOTILHO, Joaquim José Gomes, op. cit. pp. 407-10), os direitos fundamentais exercem as funções de defesa ou de liberdade, prestação social, proteção perante terceiros e de não discriminação. 111 Sem sair do campo dos direitos sociais, percebe-se que a Constituição de 1988 positivou conjuntamente direitos de defesa (greve) e direitos à prestação (saúde), direito em face do Estado (educação) e de particulares (direitos trabalhistas), direitos de baixa densidade normativa e reduzida carga eficacial (previdência social) e direitos subjetivos de aplicabilidade direta e imediata (educação fundamental, arts. 6º e 208, I, §§ 1º e 2º). 112 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit. pp. 182-217.

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A primeira e ao que parece a mais evidente classificação do direito à

moradia é de que se trata de um direito fundamental. A favor dessa classificação

milita a sua fundamentalidade formal, decorrente de inclusão no Título II da

Constituição de 1988 (Capítulo II, art. 6º), que elenca os “Direitos e Garantias

Fundamentais”, bem como a fundamentalidade material113, tributária de sua

estreita relação de interdependência com o princípio da dignidade da pessoa

humana, que é um dos elementos constitutivos centrais do Estado e da

sociedade brasileiros. Até mesmo os que reduzem a fundamentalidade dos

direitos sociais ao atendimento do mínimo existencial114 não se afastam, na

113 Segundo Ingo Sarlet: “A fundamentalidade material, por sua vez, decorre da circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade” (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit, p. 89). Em outra passagem, registrando que na atual ordem constitucional brasileira o valor da dignidade da pessoa humana assume inegável nota de fundamentalidade material, asseverou o mesmo autor: “Todavia, não há como desconsiderar a existência de categorias universais e consensuais no que diz com a sua fundamentalidade, tais como os valores da vida, da liberdade, da igualdade e da dignidade humana” (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit, p. 91). 114 Essa posição divergente é sustentada com estremado rigor científico e riqueza de conteúdo por autores como Ricardo Lobo Torres, que negam a condição de direito fundamental aos direitos sociais e econômicos, somente elevados a essa categoria quando garantidores do “mínimo existencial” necessário ao exercício dos direitos de liberdade. Embora longa, merecem ser transcritas as lições do citado autor, que há muito vem se dedicando ao estudo dessa questão, com rica contribuição para a discussão do tema no cenário nacional. De início, Lobo Torres reduz os direitos fundamentais aos “direitos da liberdade”, que “correspondem à positivação da liberdade, valor humano básico, anterior e superior à constituição do Estado”. Neles estão incluídos os direitos civis e políticos. Em seguida, afasta os direitos sociais e econômicos da categoria de fundamentais: “Os direitos sociais e econômicos estremam-se da problemática dos direitos fundamentais porque dependem da concessão do legislador, estão despojados do status negativus, não geram por si sós a pretensão às prestações positivas do Estado, carecem de eficácia erga omnes e se subordinam à idéia de justiça social. Revestem-se eles, na Constituição, a forma de princípios de justiça, de normas programáticas ou de policy, sujeitos sempre à interpositio legislatoris, especificamente na via do orçamento público, que é documento de quantificação dos valores éticos, a conta corrente da ponderação dos princípios constitucionais, o plano contábil da justiça social, o balanço das escolhas dramáticas por políticas públicas em um universo fechado de recursos financeiros escassos e limitados. (...) A Constituição de 1988 abre, no Título II, dedicado aos direitos e garantias fundamentais, o capítulo II, que disciplina os direitos sociais (arts. 6º a 11), separando-os, entretanto, dos direitos individuais e coletivos, de que trata o Capítulo I (art. 5º); o só critério topográfico não autoriza a assimilação dos direitos sociais pelos fundamentais”. Por fim, faz a correlação entre “mínimo existencial” e direitos de liberdade, atribuindo, nesse espaço, fundamentalidade aos direitos sociais e econômicos: “A liberdade ‘para’ encontra sucedâneo na idéia de condições de liberdade, que são as garantias mínimas exigidas para que possa florescer a liberdade. De nada adianta ser titular da liberdade de expressão se não se possui educação mínima para a manifestação de idéias. (...) Os mínimos sociais, expressão acolhida pela Lei 8.742/93, ou mínimo social (social minimum), da preferência de John Rawls, entre outros, ou mínimo existencial, de larga tradição no direito brasileiro e no alemão, ou direitos constitucionais mínimos, como dizem a doutrina e a jurisprudência americanas, integram também o conceito de cidadania, Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige

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verdade, desta classificação, tendo em vista o elevado comprometimento dessa

teoria com o princípio da dignidade da pessoa humana. Essa classificação

garante ao direito à moradia a primazia concedida pela ordem constitucional aos

direitos fundamentais, em especial a prerrogativa de aplicabilidade imediata

prevista no art. 5º, § 1º.115

A segunda e também evidente classificação do direito à moradia é a sua

natureza de direito social, conforme consta do próprio capítulo II no qual está

inserido, apartando-se, assim, dos direitos civis, de nacionalidade e políticos que

integram os outros capítulos do título II da Carta de 1988. No entanto, a busca

de rigor científico na classificação adotada implica no abandono, de uma vez por

todas, da conhecida conceituação dos direitos sociais como prestações positivas

proporcionadas pelo Estado, direta ou indiretamente, que possibilitam melhores

condições de vida aos mais carentes.116 È que tal conceito não é fiel ao

conteúdo normativo e funcional desses direitos tal como positivados em nossa

ordem constitucional, uma vez que ao lado de prestações nitidamente positivas

voltadas contra o Estado, em especial de natureza material (fornecer saúde,

educação, moradia, assistência aos desamparados – art. 6º), constam inúmeros

direitos de dimensão negativa, que implicam, preponderantemente, em uma

obrigação de abstenção por parte do Estado e dos particulares de violar

posições jurídicas fundamentais garantidas pelos direitos sociais (direitos dos

trabalhadores como a irredutibilidade do salário, duração da jornada de trabalho

e proibição de diferença salarial por motivo de idade, sexo, cor ou estado civil,

greve – arts. 7º e 9º etc). São os chamados direitos sociais negativos ou

liberdades sociais117. Assim, a melhor conceituação, pelo menos no âmbito da

ordem constitucional brasileira, é a que coloca os direitos sociais como aqueles

prestações estatais positivas. (...) Despe-se o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda que originalmente não fundamental (direito à saúde, à alimentação etc), considerado em sua dimensão essencial e inalienável. (...) O problema mais intrincado é o do relacionamento entre os mínimos sociais, que se situam no campo da liberdade e dos direitos fundamentais, e o do máximo social, que integra a idéia de justiça e de direitos sociais.” Aplicando seus conceitos ao direito à moradia, afirmou o autor: “E o direito à moradia, é fundamental ou social? No que concerne aos indigentes e às pessoas sem-teto a moradia é direito fundamental, integrando o mínimo existencial e tornando obrigatória a prestação do Estado. Já as moradias populares ou a habitação para a classe média se tornam direitos sociais, dependentes das políticas públicas e das opções orçamentárias” (TORRES, Ricardo Lobo. “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro:Renovar, 2001. pp. 254-85). 115 Questão mais polêmica e que não será objeto de análise prende-se à extensão aos direitos sociais, entre eles à moradia, da condição de cláusula pétrea do art. 60, § 4º, da CF, que faz remissão aos “direitos e garantias individuais”. 116 SILVA, José Afonso, op. cit. p. 285. 117 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit. p. 204.

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voltados ao homem concretamente situado no contexto social, destinados a

garantir a liberdade e a igualdade real entre as pessoas, o acesso e a

manutenção aos bens e prestações essenciais a uma vida digna e a proteção

contra a opressão e a exploração no mercado de trabalho, tanto mediante

prestações positivas quanto negativas118.

A terceira classificação foi decisivamente alterada pelo advento da

Emenda Constitucional n. 26 de 2000, que elevou a moradia de direito

fundamental não escrito ou implícito, decorrente do regime e princípios, por força

da cláusula de abertura do art. 5º, § 2º119, para direito fundamental

expressamente positivado. A quarta classificação, que demonstra a imprecisão

terminológica e de agrupamento da Constituição de 1988120, ressai da condição

de direito individual da moradia, porque exercitável pela pessoa, em regra, de

forma individual e não coletivamente.

A quinta classificação a ser abordada é a mais relevante para a doutrina,

por repercutir diretamente na esfera da eficácia121, assunto sempre delicado no

trato dos direitos fundamentais. De acordo com a função que exercem, os

direitos fundamentais podem ser classificados como direitos negativos ou de

defesa e direitos positivos ou a prestações122. Acerca do primeiro grupo

asseverou Ingo Sarlet:

118 Inobstante a diferenciação estabelecida entre prestações positivas e negativas, a verdade é que todo e qualquer direito fundamental, mesmo as chamadas “liberdades fundamentais”, não se realizam ou são garantidas sem prestações positivas por parte do Estado, sejam normativas (edição de leis prevendo a tipificação como crime de atos de restrição da liberdade individual, criando e regulamentando institutos como o do habes corpus, assegurador do direito de ir e vir etc), sejam materiais (criação e manutenção de órgãos e serviços públicos de segurança, judiciais etc). 119 Ver discussão acerca do tema no título anterior. 120 A classificação atribuída aos direitos agrupados no capítulo II – Dos Direitos Sociais - levou em conta o conteúdo dos mesmos. Já a classificação constante dos direitos agrupados no capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos – levou em conta, pelo menos no aspecto terminológico, à forma de expressão. Para uma densa e bem formulada crítica em torno da divisão dos direitos fundamentais em individuais e coletivos, ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit. pp. 199-203. 121 Sem avançar sobre matéria que será tratada em título próprio, que operador do direito já não teve a oportunidade de se deparar com afirmação do tipo: “os direitos de defesa, que se resumem a uma abstenção do destinatário, são de eficácia plena e aplicabilidade imediata, já os direitos prestacionais, por envolveram alocação de recursos públicos são de eficácia limitada ou mesmo programática, a depender da existência de recursos disponíveis e decisão legislativa para sua concretização”. 122 Não pode ser desconsiderada a correta abordagem no sentido de que, se analisado pelo anglo dos custos para sua concretização, todos os direitos fundamentais, até mesmo os mais elementares direitos civis defensivos como a vida, a liberdade, a segurança e a propriedade seriam direitos positivos ou a prestações. É que para viabilizá-los ou protegê-los o Estado tem de despender quantia considerável para manter uma força policial e um sistema judiciário atuante. Nesse sentido GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos – Direitos não nascem em árvores, op. cit. pp.

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“os direitos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos, implicando para estes um dever de respeito a determinados bens e interesses da pessoa humana, por meio de omissão de ingerências ou pela intervenção na esfera de liberdade pessoal apenas em determinadas hipóteses e sob certa condições”123.

Como na ordem constitucional brasileira diversos direitos fundamentais

sociais de função eminentemente defensiva têm como destinatários pessoas

privadas (direitos trabalhistas), e sendo certo que os direitos fundamentais como

gênero também exercem eficácia nas relações entre particulares - questão que

será melhor analisada em momento oportuno -, o direcionamento feito por Ingo

Sarlet deve ser estendido para alcançar, além dos poderes públicos, todas as

entidades e pessoas privadas124, que também devem se abster de violá-los.

Diretamente vinculados à certeza consagrada no século XX de que o

papel do Estado não deve se limitar a se abster de violar direitos fundamentais

(direitos de defesa), sendo necessário atuar na sua promoção por meio do

fornecimento de prestações das mais diversas naturezas125, os direitos positivos

199-233. No entanto, essa inequívoca constatação não retira a utilidade e pertinência da classificação em análise, como bem ponderou Ingo Sarlet: “Mesmo assim, se de fato parece inglória a tentativa de advogar uma dicotomia entre os direitos negativos e positivos (coisa que, aliás, nunca fizemos), calcada estritamente no critério da sua relevância econômica (na verdade, no critério da relevância econômica do objeto da prestação), seguimos convictos de que a relação entre os direitos de cunho negativo e de cunho positivo pode, a despeito da também por nós reconhecida indivisibilidade dos direitos fundamentais, ser traduzida como revelando uma espécie de dualismo relativo, caracterizado essencialmente por uma diferença de objeto e função entre as duas importantes distinções, mas jamais por uma lógica da exclusão recíproca e do antagonismo. (...) Com efeito, a circunstância de que um direito negativo também tem um ‘custo’ – o que assume destaque no plano de sua efetividade – não afasta a possibilidade de sua imediata aplicabilidade e justiciabilidade, o que, em princípio, como já referido, é controverso no caso da dimensão prestacional” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit. p. 238). 123 SARLET, Ingo Wolfgang. “Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direito Público em Tempos de Crise – Estudos em Homenagem a Ruy Rubem Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, pp. 142. 124 O que foi feito pelo autor já à fl. 143 (Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, op. cit). 125 Ressalta Ingo Sarlet que os direitos a prestações podem ser subdivididos em direitos originários a prestações, exigíveis diretamente das normas constitucionais, e diretos derivados a prestações, deduzidos das normas ordinárias editadas pelo legislador para concretizar as previsões constitucionais (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit. p. 220-1). Se é certo que as maiores polêmicas acerca da eficácia têm como palco os direitos originários a prestações (reserva do possível, falta de legitimação do Judiciário para implementar ou interferir em políticas públicas etc), a efetivação dos direitos derivados a prestações também não está a salvo de grandes disputas, que giram, em regra, em torno da violação do princípio da igualdade e da insuficiência na eleição pelos legisladores ordinários dos destinatários das prestações de direitos fundamentais. Nesse sentido, veja-se a polêmica estabelecida em torno do art.

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colocam os indivíduos na posição de credores de condutas ativas do Poder

Público e mesmo de outros particulares.126 Em relação a esse grupo de direitos

sustentou Ingo Sarlet:

“Assim, enquanto os direitos de defesa (status libertatis e status negativus) se dirigem, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações, que, de modo geral, e ressalvados os avanços registrados ao longo do tempo, podem ser reconduzidos aos status positivius de Jellinek, implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (fática)”127.

No âmbito dos direitos positivos ou a prestações, a promoção eficaz dos

direitos fundamentais não se faz, como até a pouco se imaginava,

exclusivamente a partir de prestações materiais (fornecimento de saúde,

educação, moradia etc). Atualmente não pairam dúvidas de que o Estado

também é devedor de prestações normativas, necessárias à promoção e à

própria viabilização dos direitos fundamentais. Restrito ao universo do direito à

moradia, lembre-se do caráter imprescindível da legislação acerca do regime de

locações residenciais, que ao regulamentar os direitos e deveres do proprietário,

prazo de duração dos contratos e de desocupação do imóvel, hipóteses de

resolução contratual (despejo) e índices de correção dos aluguéis, promove e

viabiliza o direito à moradia no universo das relações privadas, que ficaria 20, § 3º, da Lei 8.742/93 (considera incapaz de prover a manutenção do deficiente ou do idoso a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo), que concretizou o direito à assistência social previsto no art. 203, V, da CF/88 (garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência ou idosa, que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei). O STF, no julgamento em sede cautelar da ADIn n. 1.232-DF (decisão prolatada em 22.03.95, DJ 26.05.95), confirmado no mérito (decisão prolatada em 27.08.98, DJ 25.06.01), afirmou a constitucionalidade da conformação/limitação dada pelo art. 20, § 3º, da lei 8.742/93 ao disposto no art. 203, V da CF. Já as instâncias inferiores do Poder Judiciário mantiveram e ainda mantêm acesa a polêmica, ao afastar o critério da renda per capita eleito pelo legislador ordinário, para garantir o benefício a todo idoso e deficiente que, no caso concreto, demonstre que não pode prover sua manutenção ou tê-la provida por sua família (ver, por todos, STJ, AgRg/REsp 835439/SP, Rel. Min. Félix Fischer, DJ 09.10.06, pág. 355). A questão mereceu nova atenção do legislador com a edição do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), que ampliou a alcance do benefício em questão, diminuindo a idade de concessão de 70 para 65 anos, bem como determinando que caso algum idoso já receba o mesmo benefício no seio familiar, essa renda não entrará no cômputo da renda per capita imposta pela Lei 8.742/93 (art. 34). 126 Sobre a incidência dos direitos fundamentais sociais nas relações entre particulares, inclusive de sua função positiva ou prestacional, ver a bem fundamentada e propositiva contribuição de Daniel Sarmento (Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op.cit. pp. 288-306), que, explorando o conteúdo eficacial do princípio da solidariedade, advoga a possibilidade de se impor aos agentes privados certos deveres sociais. 127 SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, op. cit. p. 144.

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fortemente ameaçado caso os proprietários pudessem impor seus designos aos

locatários. Portanto, é totalmente pertinente afirmar que o Estado é devedor de

legislação específica acerca de locações residenciais (prestação jurídica) para

fins de viabilizar acesso e garantias ao direito à moradia. Outros exemplos

podem ser citados, como a necessidade de legislação para viabilizar a

transformação da posse precária para fins de moradia em propriedade segura

para o mesmo fim (usucapião), a obrigatoriedade de atos normativos que

regulamentem e obriguem as instituições do sistema financeiro a disponibilizar

crédito imobiliário etc.

Seguindo na linha de quase todos os direitos fundamentais128, em

especial após o aprofundamento dos estudos em torno de sua dimensão

objetiva, o direito à moradia, embora apresente-se mais destacadamente como

direito à prestação, seja material (direito de acesso efetivo a uma moradia), seja

jurídica (conforme exemplos acima apresentados), possui relevante função de

defesa, na medida em que serve de fundamento para a declaração de

inconstitucionalidade ou ilegalidade (no caso do direito fundamental já estar

concretizado por meio de legislação ordinária) de todo e qualquer ato legislativo,

administrativo ou mesmo privado que ofenda o seu conteúdo mínimo, podendo

ser citado como exemplo a impossibilidade de penhora do imóvel que está a

servir de residência para o devedor.

Por fim, a melhor classificação do direito à moradia é aquela que o coloca

no rol dos direitos da personalidade, ficando reservado ao grupo dos direitos

patrimoniais à habitação, que, como já mencionado, é um de seus meros

reflexos. Na visão de Gustavo Tepedino, os direitos da personalidade são os

“atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade

e integridade“129. Na mesma linha, Cristiano Chaves de Farias e Nelson

Rosenvald afirmam que “são os direitos essenciais ao desenvolvimento da

pessoa humana, em que convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais

de seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura e avançada

128 Tome-se como exemplo o direito à saúde. Primordialmente, trata-se de direito à prestação, concretizado por meio da entrega de medidas preventivas (vacinas) e curativas (remédios, cirurgias etc) aos seus destinatários. No entanto, também possui destacada eficácia defensiva, tornando passível de controle de constitucionalidade e de legalidade qualquer medida legislativa, administrativa ou até mesmo a conduta de particulares que impliquem em malefícios à saúde das pessoas. 129 TEPEDINO, Gustavo. “A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro”. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3ª edição atualizada. – Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 24.

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tutela jurídica”130. Das sínteses acima fica a certeza de que os direitos da

personalidade não recaem sobre qualquer objeto material, como os patrimoniais,

mas sim sobre projeções da própria personalidade humana, indispensáveis ao

exercício de uma vida com dignidade. Tais projeções guardam relações com os

atributos físicos (direito à vida, à integridade física, ao corpo etc), intelectuais

(liberdade de expressão, liberdade religiosa etc) e morais ou psíquicos

(privacidade, nome, imagem etc) do ser humano.

Em passagem anterior, na qual foi ressaltada a estreita vinculação entre

o direito à moradia e a proteção contra atos desumanos e degradantes às

projeções físicas (saúde, alimentação, vida, segurança etc) e morais

(privacidade, desenvolvimento da personalidade etc) do indivíduo, restou

assentando que a ausência desse direito implica no esvaziamento do princípio

da dignidade da pessoa humana. Essa afirmação revela que o direito à moradia

projeta-se diretamente sobre atributos pessoais do homem, mostrando-se

indispensável e indissociável à sua condição humana, nada tendo de

patrimonial.

Nesse sentido a lição de Sérgio Iglesias Nunes de Souza:

“A moradia é bem irrenunciável da pessoa natural, indissociável da sua vontade e indisponível, exercendo-se de forma definitiva pelo indivíduo; secundariamente, recai o seu exercício em qualquer pouso ou local, mas é objeto de direito e protegido juridicamente. O bem da ‘moradia’ é inerente à pessoa e independe de objeto físico para a sua existência e proteção jurídica. É uma situação de direito reconhecida pelo ordenamento jurídico, é uma qualificação legal reconhecida como direito inerente a todo o ser humano, notadamente, em face da natureza de direito essencial referente à personalidade humana”.131

Como direito da personalidade, a moradia goza de todas as

características que lhe são peculiares. È direito erga omnes, porque possui

eficácia contra todos, impondo-se aos poderes públicos e aos particulares o

dever de respeitá-lo. É indisponível, irrenunciável e intransmissível, uma vez que

não se concebe que alguém possa ter uma vida digna sem o seu gozo. É

imprescritível, tendo em vista a possibilidade de ser invocado a qualquer

momento da vida de seu titular, inobstante possível período de não exercício. É

impenhorável, por decorrência lógica de sua intransmissibilidade. Ao final, como

130 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 6ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007. p. 108. 131 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de, op. cit. p. 340.

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já visto, é também extrapatrimonial, por insusceptível de apreciação econômica,

inobstante a sua violação possa implicar indenização por danos morais132.

Diferente é a situação do direito de habitação, que tem cunho

estritamente patrimonial, compreendendo o bem imóvel (residência) no qual está

sendo exercido o direito à moradia. Pode decorrer de relação jurídica de direito

real como a propriedade, o direito real de habitação e o direito real de superfície,

ou das mais diversas relações de direito pessoal como a locação, o comodato, o

mútuo imobiliário, o mero ato de possuir etc. Suas características são totalmente

diversas das que marcam o direito à moradia, senão vejamos. Com exceção das

situações que decorrem de direito real, é direito relativo, que possui eficácia

somente em face de quem mantém com o titular relação jurídica preexistente. É

disponível, renuncíável e transmissível, podendo o seu titular, a qualquer

momento, vender, doar, alugar ou abandonar o imóvel que lhe serve de

habitação, o que não implica que tais atos de disposição se estendam ao direito

à moradia, que deve projetar-se em outro imóvel. Note-se, inclusive, que nem

mesmo a Lei 8.009/90, que instituiu a impenhorabilidade sobre o imóvel familiar,

vedou essas condutas. É prescritível, tendo em vista que o seu não exercício por

determinado período de tempo pode gerar a perda do direito de habitar

determinado imóvel. Com exceções decorrentes da legislação ordinária (Código

Civil e Lei 8.009/90), é penhorável, sendo passível, até mesmo, de ser ofertado

voluntariamente como garantia de negócio jurídico. Concluindo, possui nítida

vocação patrimonial, por não se projetar sobre qualquer aspecto da

personalidade humana133.

132 Segundo Sérgio Iglesias Nunes de Souza: “Na mesma linha de pensamento, não obstante o direito à moradia incidir sobre um bem material, que pode ou não se relacionar com um direito real, como a propriedade, inexiste, na sua essência, o seu caráter patrimonial. Isso porque, o direito à moradia é um direito referente à essencialidade do indivíduo e é de valor inestimável a sua ofensa ou desrespeito. O imóvel em que incide naturalmente o exercício do direito à moradia não tem qualquer reflexo patrimonial com a indenização medida para o quantum a ser arbitrado quando violado esse direito (moradia). O sofrimento e o abalo ante a privação deste bem juridicamente protegido: o direito à moradia, é um bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens, como dissera a citada jurista” (SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de, op. cit. pp. 162-3). 133 Em bem formulado exemplo, Sérgio Iglesias Nunes de Souza extremou com precisão os direitos à moradia e de habitação, mostrando, no entanto, a interdependência entre eles, no sentido de que o segundo deve ser sempre interpretado no sentido de promover o primeiro: “O zelo ao retirar o exercício da habitação de um indivíduo deve existir como forma de proteção do direito à moradia. Como na hipótese do locatário que deixou de pagar de modo injustificado o aluguel e os encargos contratuais: não obstante não mais lhe seja conferido o direito de habitar determinado imóvel alugado, sobretudo após decisão transitada em julgado em ação própria, devem ser observados os prazos para a

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3.3 Conteúdo A definição do conteúdo ou objeto de um direito é pressuposto

inarredável para o enfrentamento de questões como a sua eficácia e a limitação

de seu âmbito de proteção, que ainda serão analisadas ao longo deste estudo.

Portanto, é chegada a ora de se definir o conteúdo do direito à moradia, ou seja,

quais os elementos concretos indispensáveis à própria existência desse direito.

Desde já fica a advertência de que essa iniciativa de definição de conteúdo não

tem qualquer pretensão de ser universal ou exaustiva, tendo em vista a forte

influência cultural134, das condições físicas e climáticas de cada país e região135,

dos avanços tecnológicos136 e do desenvolvimento sócio-econômico local na

conformação do direito à moradia137. Assim, o que se vai definir é um conteúdo

mínimo para esse direito no cenário brasileiro, que promova a dignidade da

pessoa humana que lhe serve de fundamento.

efetiva desocupação do imóvel, como regramento de base, a fim de que não se violem os direitos da personalidade quanto ao direito à moradia. Isso deve ocorrer não só porque a Lei 8.245/1991 estabeleceu prazo para tal, mas também porque seria uma afronta à própria dignidade do ser humano, diante dos abruptos problemas envolvidos com as mudanças de sua morada, admitir o repentino despejo, sem qualquer aviso prévio ou prazo para efetivar a decisão livremente pelo locatário, submetendo o mesmo a sério constrangimento moral, ante a violação do direito à moradia. Embora haja a inadimplência contratual pelo locatário, tal fato não confere direito ao locador, ou a qualquer credor, de violar direitos inerentes à personalidade humana. Causa-se não só um sofrimento injustificado e imotivado, com também uma lesão a um interesse juridicamente tutelável aos bens da personalidade” (SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de, op. cit. pp. 322-3). 134 O conteúdo do direito à moradia certamente terá elementos diversos quando seus destinatários se tratarem de povos indígenas. 135 Em países e regiões que vivenciam temperaturas extremamente baixas, um sistema de aquecimento passa a ser elemento integrante e essencial do conteúdo do direito à moradia, sob pena de se colocar em risco a vida dos habitantes do local. 136 Atualmente, não se imagina o direito à moradia desgarrado do acesso à energia elétrica. 137 Segundo Ingo Sarlet: “Que a implementação dos padrões estabelecidos pela ordem jurídica internacional reclama, por outro lado, uma exegesse afinada com as peculiaridades de cada País e região (já que é na realidade concreta de quem mora e onde mora que se pode aferir a compatibilidade da moradia com uma existência digna), por sua vez, constitui premissa igualmente já destacada. Também por esta razão, a despeito da necessidade de padrões mínimos referenciais de caráter até mesmo supranacional, é no contexto regional e local que se poderá melhor avaliar a manifestação concreta destes critérios e as condições para o seu atendimento, o que evidencia o acerto de nosso legislador quando da edição da Lei 10.257/01, não apenas no que diz com a terminologia adotada (Estatuto da Cidade), mas especialmente ao optar pelo estabelecimento de algumas diretrizes e regras de âmbito nacional, privilegiando, contudo, a esfera regional e, particularmente, a local” (SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia, op. cit. p. 437).

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De início, é preciso separar o direito à moradia do direito de propriedade

ou à propriedade, tendo em vista que a propriedade não é elemento essencial da

moradia, embora seja forçoso reconhecer que em muitos casos a relação entre

eles seja de total cumplicidade. A propriedade de imóvel transformado em

habitação realiza o direito à moradia, bem como a moradia em imóvel de

terceiro, atendidas as demais exigências constitucionais, pode implicar aquisição

da propriedade (usucapião especial). Inobstante essa relação privilegiada, quase

de meio-fim, o direito à moradia é direito fundamental autônomo, que tem

existência, conteúdo e eficácia independentes, mesmo na ausência do direito de

propriedade. Essa diferenciação se torna nítida ante a constatação de que

milhares de brasileiros exercem o seu direito à moradia em imóveis de

propriedade de terceiros, com fundamento nos mais diversificados negócios

jurídicos, com destaque para o contrato de locação. A autonomia do direito à

moradia também fica evidenciada nas inúmeras restrições que a sua

salvaguarda impõe ao direito de propriedade138, atualmente potencializadas

pelos avanços dos estudos acerca da função social da propriedade e do

reconhecimento, ainda tímido é verdade, de que somente a propriedade

socialmente útil é protegida constitucionalmente139. Em resumo, e para destacar

a importância desta distinção para o desenvolvimento do estudo em curso, é

imperioso reconhecer que, diferente do que ocorre com o direito à moradia,

sempre essencial à promoção da dignidade da pessoa humana, o direito de

138 Como exemplos podem ser citados: a usucapião especial constitucional (art. 183), a impossibilidade de penhora e excussão do imóvel residencial para fins de satisfazer pretensões patrimoniais (Lei 8.009/90), as regulamentações impostas pela Lei 8.245/91, que protegem o locatário em face do proprietário-locador, etc. 139 Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “É fundamental ressaltar que a tutela constitucional da propriedade, alinhavada no art. 5º, inciso XXII, é imediatamente seguida pelo inciso XXIII, disciplinando que a ‘propriedade atenderá a sua função social’. Esta ordem de inserção de princípios não é acidental, e sim intencional. Inexiste incompatibilidade entre a propriedade e a função social mas uma obrigatória relação de complementariedade, como princípios da mesma hierarquia. Não se pode mais conceder proteção à propriedade pelo mero aspecto formal da titularidade em razão do registro. A visão romanística, egoística e individualizada, sucumbiu em face da evolução da humanidade. A Lei Maior tutela a propriedade formalmente individual a partir do instante em que se exiba materialmente social, demonstrando merecimento e garantindo a sua perpetuidade e exclusividade. A propriedade que não for legitimada pela função social será sancionada pelo sistema por diversas formas e intensidades. (...) A função social penetra na própria estrutura e substância do direito subjetivo, traduzindo-se em uma necessidade de atuação promocional por parte do proprietário, pautada no estímulo a obrigações de fazer, consistentes em implementação de medidas hábeis a impulsionar a exploração racional do bem, com a finalidade de satisfazer os seus anseios econômicos sem aviltar as demandas coletivas, promovendo o desenvolvimento econômico e social, de modo a alcançar o valor supremo no ordenamento jurídico: a Justiça” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral, op. cit. pp. 203-5).

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propriedade, embora formal e materialmente fundamental em nosso

ordenamento constitucional, somente revela esse caráter promocial quando

garante o mínimo necessário para uma vida digna140, podendo, no que sobejar a

essa garantia, ser alvo de relativizações a partir de ponderações com outros

bens e interesses constitucionais.

Embora a Constituição de 1988 não tenha atribuído qualificativos ao

direito à moradia, como fez o Pacto Internacional de Direitos Sociais,

Econômicos e Culturais da ONU de 1966, ao secundá-lo do adjetivo “adequado”,

é certo que somente uma habitação que forneça ao seu titular uma vida

saudável nos aspectos físico e moral satifaz o conteúdo deste direito

fundamental, valendo lembrar registro feito pela Conferência Habitat II da ONU

de que “habitação adequada para todos é mais que um teto sobre a cabeça das

pessoas”141. E não poderia ser diferente, sob pena de se quebrar toda a relação

de interdependência entre o direito à moradia e a dignidade da pessoa humana,

por diversas vezes já ressaltada ao longo deste trabalho. Nas precisas palavras

de Ingo Sarlet:

“Assim, em face de sua íntima conexão com a dignidade da pessoa humana, verifica-se, desde logo, que, na interpretação do conteúdo de um direito à moradia, há que considerar parâmetros mínimos indispensáveis para uma vida saudável, nos termos das exigências postas pela Organização Mundial da Saúde, no sentido de um completo bem-estar físico, mental e social, já que uma vida com dignidade em hipótese alguma poderá ser menos do que uma vida com saúde, à evidência não restrita a mera existência e sobrevivência física”142. Na ausência de norma constitucional ou infraconstitucional expressa

acerca do conteúdo mínimo do direito à moradia no cenário nacional, torna-se

necessário, para precisar os elementos que lhe são indispensáveis, recorrer a

uma interpretação construtiva da Constituição Federal, que promova uma análise

sistêmica de todos os direitos fundamentais correlatos, em especial a vida, a 140 Defendendo a subsistência de um patrimônio mínimo para todos os indivíduos, que garanta uma vida digna, assim se expressou Luiz Edson Fachin: “A pessoa natural, ao lado de atributos inerentes à condição humana, inalienáveis e insuscetíveis de apropriação, pode ser também, à luz do Direito Civil Brasileiro contemporâneo, dotada de uma garantia patrimonial que integra sua esfera jurídica. Trata-se de um patrimônio mínimo mensurado consoante parâmetros elementares de uma vida digna e do qual não pode ser expropriada ou desapossada. Por força desse princípio, independente de previsão legislativa específica instituidora dessa figura jurídica, e, para além de mera impenhorabilidade como abonação, ou inalienabilidade como gravame, sustenta-se existir essa imunidade juridicamente inata ao ser humano, superior aos interesses dos credores” (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo – 2ª ed. Revista e atualizada. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 1). 141 FERNANDES, Marlene. Agenda Habitat para municípios. Rio de Janeiro: IBAM, 2003. 142 SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia, op. cit. p. 435.

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saúde, a integridade física, a intimidade, a segurança, o segredo doméstico e a

liberdade, sempre tendo como norte o princípio unificador da dignidade da

pessoa humana. Sem a pretensão de exaurir os elementos indispensáveis ao

preenchimento do conteúdo mínimo de um direito à moradia, e buscando

subsídios em documentos internacionais143, listamos os que se seguem:

a) condições efetivas de habitabilidade com segurança física: a

moradia deve estar localizada em área fisicamente segura,

protegida dos riscos de desastres naturais como

desmoronamentos de encostas e enchentes, as chamadas

moradias em local de risco, tão comuns em épocas de chuvas

na periferia das grandes cidades brasileiras. A moradia

também deve apresentar estrutura física segura, com a

utilização em sua construção de materiais adequados, que

afaste os riscos de desabamento sobre seus ocupantes.

Imóveis em local de risco ou com estrutura insegura colocam

sob iminente perigo o direito à vida e à integridade física, que

como já visto guardam íntima relação com o direito à moradia;

b) disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da

saúde, segurança, conforto e nutrição dos moradores: a

moradia deve possuir tamanho adequado, que comporte

satisfatoriamente a presença física de todos os seus

ocupantes; ser protegida do acesso físico e visual de terceiros

e de fenômenos naturais como chuvas; estar servida por água

potável, energia (iluminação), saneamento básico (instalações

sanitárias internas e rede de esgoto), coleta de lixo, vias de

acesso e de utensílios indispensáveis à realização das

necessidades essenciais dos moradores. Esses elementos são

imprescindíveis para a promoção e proteção de direitos

fundamentais como saúde, integridade física, segurança,

intimidade e segredo doméstico, ou seja, para uma vida

saudável e com dignidade;

143 Elementos identificados pelo Comitê dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais das Nações Unidas, em seu Comentário Geral n. 4, item 8. Consultado em Recopilación de Las Observaciones Generales Y Recomendaciones Generales Adoptadas por Órganos Creados en Virtud de Tratados de Derechos Humanos, n. 4 – El derecho a una vivienda adecuada (párrafo 1 Del artículo 11 del Pacto), pp. 21-8, junto ao endereço eletrônico WWW.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/HRI.GEN.1.Rev.7.Sp?opendocument.

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c) segurança jurídica e estabilidade na posse da moradia: como

direito da personalidade, que integra a própria identidade e

dignidade do indivíduo e de grupos familiares, a moradia não

deve ser exercida em caráter precário, sob ameaças

constantes e iminentes de solução de continuidade ou

turbações provenientes do Estado ou de particulares. Assim,

esse elemento propugna que o sistema jurídico cerque esse

direito de todas as garantias necessárias para torná-lo

perene144 e seguro, e, de preferência, permanente no local em

que vem sendo exercido;

d) as despesas com a manutenção da moradia não podem

comprometer a satisfação de outras necessidades básicas:

uma das características dos direitos fundamentais é a sua

indivisibilidade, ou seja, devem ser efetivados em conjunto,

sob pena de não cumprirem a sua função de preservação da

dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, a realização do

direito à moradia não pode comprometer a possibilidade de

efetivação de outros direitos fundamentais, que se traduzem

em necessidades básicas do individuo como alimentação,

vestuário, saúde, higiene, educação etc, como muito bem

registrou a nossa Constituição Federal em seu art. 7º, IV, ao

prever a capacidade de atendimento do salário mínimo. Em

resumo, a moradia deve ser oferecida a custos acessíveis;

e) localização que permita o acesso ao emprego, serviços de

saúde, educação e outros também essenciais: além de ser

dotada de vias de acesso que garantam o não isolamento do

morador, a localização da moradia não pode privar o seu

ocupante do contato com o seu local de trabalho e com os

locais onde funcionam a infra-estrutura de saúde, educação e

144 Relembrando a diferença estabelecida entre direito à moradia e de habitação, é importante que o Poder Judiciário, no cumprimento de ordens de reintegração de posse ou despejo, que envolvam imóveis que servem de habitação para os destinatários, se acautelem de garantias de que o direito à moradia não sofrerá solução de continuidade, seja se certificando de que as pessoas atingidas já possuem outro imóvel para habitar ou condições financeiras para fazê-lo, ou, em caso negativo (pessoas de baixa ou nenhuma renda), condicionando o cumprimento dos mandados à viabilização pelo Poder Público de locais adequados para a transferência da morada, ainda que de forma transitória.

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comercial da qual se utiliza com frequência, sob pena de ser

alijado da vida política, social e econômica145;

f) acesso e adaptação da moradia aos portadores de deficiência:

somente com moradias adequadas de acordo com as

limitações físicas de seus moradores, a liberdade de ir e vir e

de decidir o seu próprio destino poderá ser exercida por essa

grande parcela de nossa população, que atualmente já

participa ativamente do mercado de trabalho;

g) a moradia e o modo de sua construção devem respeitar o meio

ambiente, o patrimônio histórico e cultural e expressar a

identidade e diversidade cultural da população.

3.4 Eficácia146

É recente a aceitação de que a Constituição é uma ordem normativa, que

busca determinar a produção de efeitos no mundo dos fatos, passíveis de serem

impostos coercitivamente a partir de requerimento de qualquer interessado147.

Anteriormente, ainda no século XIX e início do XX, no cenário europeu148, a

Constituição era uma mera norma política, uma carta de intenções não

vinculativa e sem caráter impositivo, a ter o seu conteúdo concretizado no plano

infraconstitucional pelos poderes legislativo e executivo, sem participação do

145 Atualmente, em razão do crescimento desordenado das grandes cidades e de suas regiões metropolitanas, com o surgimento de bairros em locais extremamente distantes dos centros comercial, administrativo e industrial dos municípios, bem como das denominadas “cidades dormitórios”, aliado à notória deficiência e alto custo de nosso transporte coletivo municipal e intermunicipal (para se chegar a determinados destinos são necessários, às vezes, dois ou três tickets), um batalhão enorme de pessoas de baixa renda está tendo o seu direito de acesso ao emprego, princípio fundamental de nossa República (art. 1º, IV), inviabilizado ou extremamente dificultado, tendo em vista que o custo do transporte para se chegar ao local de trabalho passou a ser critério de seleção no momento da contratação. 146 A escolha por explorar a eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais, e, em especial, do direito à moradia, que seria, na visão de nossa mais abalizada doutrina (ver, por todos, SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2003), a aptidão de ser aplicada aos casos concretos, gerando efeitos jurídicos (eficácia jurídica), não afasta, até mesmo em razão de sua íntima relação de dependência, incursões no campo de sua efetividade, definida como a materialização da norma no mundo dos fatos, geradora de resultados concretos (eficácia social). 147 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana, op. cit. pp. 14-5. 148 Diferentemente se passou nos Estados Unidos da América, que desde o famoso caso Marbury v. Madison, julgado pela Suprema Corte em 1803, conferiu juridicidade à sua Constituição, ao introduzir em seus domínios o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Nesse sentido ver MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição Constitucional como Democracia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 19-24.

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Judiciário ou do cidadão. Ou seja, sem amarras ou controles a Constituição era o

que a lei dissesse, não podendo dela ser extraída, diretamente, qualquer eficácia

jurídica, inclusive no que tocava aos direitos enunciados. Foi somente ao longo

do século XX, com o desenvolvimento dos estudos acerca do controle de

constitucionalidade das leis e atos normativos, que as normas constitucionais

assumiram definitivamente a sua juridicidade149, irradiando a sua carga de

imperatividade e superioridade hierárquica sobre todo o ordenamento jurídico,

em especial por ação do Poder Judiciário e provocação do cidadão.

A partir dessa transformação, precisar o que se pode exigir, judicialmente

se necessário, com fundamento em cada uma das normas constitucionais150, ou

seja, determinar a sua eficácia, passou a ser matéria obrigatória em todos os

debates doutrinários151 e jurisprudenciais. Como síntese desses debates, as

normas constitucionais foram divididas em dois grandes grupos: as de eficácia

plena, que por possuírem elevada densidade normativa se encontram aptas a,

diretamente e sem intervenção do legislador ordinário, gerar os seus efeitos

principais; e as de eficácia limitada ou reduzida, que por carecerem de

densidade normativa suficiente, necessitam de intervenção do legislador

infraconstitucional para produzirem tais efeitos ou a plenitude deles152.

Antes de direcionar a discussão acerca da eficácia das normas

constitucionais para o objetivo pontual e momentâneo deste estudo, a eficácia

do direito à moradia, é necessário delimitá-la, em homenagem à sua importância

e especificidade, ao universo da eficácia das normas constitucionais instituidoras

de direitos fundamentais, que como será visto, superficialmente, possuem

regime jurídico próprio e diferenciado dos demais preceitos constitucionais no

que toca à produção de efeitos153.

De início, registre-se que as normas definidoras de direitos e garantias

fundamentais são as únicas em todo o texto constitucional de 1988 que

possuem comando expresso e específico acerca de sua eficácia (art. 5º, §1º), 149 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op. cit. pp. 51-2. 150 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana, op. cit. p. 159. 151 No âmbito da doutrina pátria trataram especificamente do tema, entre outros: SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, op. cit.; TEIXEIRA, João Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991; DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989; BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. – 8. ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 152 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit. pp. 264-5. 153 Para um estudo aprofundado da questão no cenário nacional, recomenda-se a imprescindível obra do professor SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit.

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vazado nestes incisivos termos: “As normas definidoras de direitos e garantias

fundamentais têm aplicação imediata”. Esse destaque dado pelo constituinte,

extensivo a todos os direitos e garantias elencados no título II, não teve outro

objetivo senão evitar um esvaziamento dos direitos fundamentais, que privados

de eficácia voltariam a ostentar o status de meras intenções políticas à

disposição do legislador ordinário. Com a previsão de eficácia imediata

constante do dispositivo em questão, que traz implícita a potencialidade de

aplicação direta, independentemente de intermediação legislativa, os poderes

públicos – Executivo, Legislativo e Judiciário – foram vinculados de maneira

indissociável à tarefa de promover e proteger os direitos fundamentais,

garantindo sempre a sua maior eficácia possível. Lado outro, ao dotar os direitos

fundamentais de carga eficacial privilegiada, armou os seus destinatários da

prerrogativa de, diretamente, de forma individual ou coletiva, buscar a sua

efetivação em juízo, caso o poder público ou os particulares, de qualquer forma,

os violem ou inviabilizem a sua promoção154.

Embora as garantias e possibilidades a serem extraídas do dispositivo

em comento sejam excepcionais, inclusive para assegurar a inexistência de

norma definidora de direito destituída de um mínimo de eficácia155, não se pode

ser ingênuo a ponto de atribuir a ele carta branca para que todo administrador ou

juiz efetive, no caso concreto, a carga eficacial plena de todos os direitos

fundamentais elencados no texto constitucional. É por isso que acima se

trabalhou com a premissa de se garantir sempre a maior eficácia possível e não

a completude da carga efacial dos direitos. Como será visto resumidamente

ainda neste tópico, a forma de positivação e a função desempenhada pelos

direitos fundamentais exercem influência decisiva na sua potencialidade

eficacial, graduando os efeitos que podem ser extraídos diretamente de seus

comandos. Dentro desse contexto, com razão Ingo Sarlet ao atribuir à norma

contida no art. 5º, §1º, da Carta de 1988, natureza eminentemente

principiológica, nos seguintes termos:

154 Para tanto, ao lado do disposto no art. 5º, § 1º, foram previstos constitucionalmente instrumentos jurídicos como o mandado de segurança individual ou coletivo, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de injunção, o direito de petição etc. 155 Já é clássica a atribuição dos seguintes efeitos mínimos a todas as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais, inclusive as programáticas: a) acarretam a revogação dos atos normativos anteriores e contrários ao seu conteúdo; b) vinculam o legislador a concretizar os seus objetivos; c) orientam e vinculam ao atendimento de seus objetivos a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas.

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“Percebe-se, desde logo, que o postulado da aplicabilidade imediata não poderá resolver-se, a exemplo do que ocorre com as regras jurídicas (e nisto reside uma de suas diferenças essenciais relativamente às normas princípios), de acordo com a lógica do tudo ou nada, razão pela qual o seu alcance (isto é, o quantum em aplicabilidade e eficácia) dependerá do exame da hipótese em concreto, isto é, da norma de direito fundamental em pauta”.156 E arrematando com precisão, o mesmo autor bem definiu a presunção de

que tal norma gera em favor da plena eficácia dos direitos fundamentais:

“Para além disso (e justamente por este motivo), cremos ser possível atribuir ao preceito em exame o efeito de gerar uma presunção em favor da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, de tal sorte que eventual recusa de sua aplicação, em virtude da ausência de ato concretizador, deverá (por ser excepcional) ser necessariamente fundamentada e justificada, presunção esta que milita em favor das demais normas constitucionais, que, como visto, nem por isso deixarão de ser imediatamente aplicáveis e plenamente eficazes, na medida em que não reclamarem um interpositio legislatoris, além de gerarem – em qualquer hipótese, uma eficácia em grau mínimo. Isto significa, em última análise, que, no concernente aos direitos fundamentais, a aplicabilidade imediata e a eficácia plena assumem a condição de regra geral, ressalvadas exceções que, para serem legítimas, dependem de convincente justificação à luz do caso concreto, no âmbito de uma exegesse calcada em cada norma de direito fundamental e sempre afinada com os postulados de uma interpretação tópico-sistemática, tal qual proposta, entre nós, na já referida e referencial obra de Juarez de Freitas”.157 Somando-se à regra especial de eficácia do art. 5º, §1º, a dimensão

objetiva dos direitos fundamentais é o outro elemento chave que confere às

normas instituidoras destes direitos regime jurídico próprio dentro do contexto da

eficácia das normas constitucionais. O constitucionalismo germânico, em

especial após a 2ª Guerra Mundial e a edição da Lei Fundamental de Bonn de

1949, quebrou o dogma de que os direitos fundamentais seriam apenas direitos

subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, ou seja,

preceitos que garantiam ao indivíduo uma pretensão em face do Estado violador

de seus direitos. A partir da aceitação de que a Constituição condensa valores

eleitos como essenciais pela comunidade política, que são veiculados por meio

das normas de direitos fundamentais, desenvolveu-se no âmbito da doutrina e

da jurisprudência alemãs a perspectiva de que estes direitos também devem

atuar como diretrizes para orientar e dirigir todas as relações sociais e as ações

dos poderes públicos (executivo, legislativo e judiciário). Essa perspectiva,

156 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit. pp. 284-5. 157 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit. pp. 285.

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denominada “dimensão objetiva dos direitos fundamentais”158, que não concorre

ou amesquinha a prestigiada dimensão subjetiva, expandiu consideravelmente a

carga eficacial dos direitos fundamentais159, alçando-os à condição de elementos

norteadores de todo o ordenamento normativo.

A doutrina vem ressaltando como principais consequências da dimensão

objetiva a eficácia irradiante, os deveres de proteção e a vinculação dos

particulares aos direitos fundamentais, todas de grande importância para o

desenvolvimento deste estudo. A eficácia irradiante apregoa que a força

normativa dos direitos fundamentais deve se estender a todo o ordenamento

jurídico, orientando a interpretação e a aplicação das demais normas

constitucionais e das infraconstitucionais, numa verdadeira “interpretação

conforme os direitos fundamentais”. Na feliz síntese de Daniel Sarmento:

“A eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a ‘humanização’ da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento da aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional”160.

Já os deveres de proteção, escudados na idéia de que ao Estado não

cabe a mera posição de não violador de direitos fundamentais, determinam que

o poder público implemente ações no âmbito normativo (criação de tipos penais,

regulamentação do conteúdo de contratos que versem sobre prestações de

saúde, educação e moradia etc) e material (melhorias na estrutura dos aparelhos

158 Para um aprofundando estudo do tema, com rica abordagem da formação da teoria, recomenda-se a leitura de SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op. cit. 159 Na síntese de Daniel Sarmento, estes são alguns exemplos dessa expansão: “Sob este prisma, passa-se a entender que não basta que os Poderes Públicos se abstenham de violar tais direitos, exigindo-se que eles o protejam ativamente contra agressões e ameaças provindas de terceiros. Além disso, caberá também ao Estado assegurar no mundo da vida as condições materiais mínimas para o exercício efetivo das liberdades constitucionais, sem as quais tais direitos, para os despossuídos, não passariam de promessas vãs. Ademais, o Estado tem o dever de formatar seus órgãos e os respectivos procedimentos de um modo que propicie a proteção e efetivação mais ampla possível dos direitos fundamentais. (...). No mesmo diapasão, afirma-se que a dimensão objetiva expande os direitos fundamentais para o âmbito das relações privadas, permitindo que estes transcendam o domínio das relações entre cidadão e Estado, às quais estavam confinados pela teoria liberal clássica. (...). A dimensão objetiva, por outro turno, permite a atribuição de efeitos jurídicos concretos mesmo àquelas normas consagradoras de direitos fundamentais que, pela sua natureza carecem de integração legislativa para criação de direitos subjetivos fruíveis pelos seus titulares. Tais normas, no mínimo, produzirão efeitos hermenêuticos, condicionando a interpretação e integração do ordenamento, vincularão o legislador futuro e servirão de parâmetro para a não recepção de preceitos legais anteriores, bem como decretação de inconstitucionalidade de normas supervenientes que com elas conflitem” (SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op. cit. pp. 107-8). 160 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op. cit. p. 124.

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policial e judiciário, fiscalização eficiente das relações de trabalho etc) para

salvaguardar os direitos fundamentais dos indivíduos das agressões de

terceiros161.

Por fim, e sendo certo que não somente o Estado viola direitos

fundamentais162, hoje é amplamente aceita a tese de que os particulares

também se encontram vinculados a estes direitos163, devendo observá-los

atentamente em todas as suas relações inter-privadas, não somente com o

objetivo de se abster de atacá-los164, mas, também, e em alguns casos, com o

propósito de promovê-los165. Sem essa extensão do espectro pessoal de

vinculação, a proteção proporcionada pelos direitos fundamentais seria apenas

parcial166, pois sujeita a violações no âmbito de cada uma das relações travadas

entre os indivíduos e as pessoas jurídicas privadas entre si, em especial nas

estabelecidas com alto grau de desigualdade (poderes sociais), o que destoa da

posição privilegiada e indisponível que esses direitos assumiram em nossa

ordem constitucional.

Mesmo gozando de um regime jurídico privilegiado em matéria de

eficácia, já restou registrado que os direitos fundamentais nem sempre

conseguem emanar sua carga eficacial plena somente a partir de seu enunciado

positivado na Constituição. É que a forma de positivação no texto constitucional

161 O novo § 5º do art. 109 da CF, introduzido pela EC 45/04, pode ser considerado um caso paradigmático de concretização por nossa Carta Magna da “teoria dos deveres de proteção”, ao permitir que, diante da omissão ou incapacidade de Estados Membros em apurar e punir condutas violadoras de direitos humanos, o inquérito ou o processo passem à alçada da competência da Justiça Federal. Esse chamado “incidente de deslocamento de competência” tem como fundamento maior o dever assumido pelo Estado Brasileiro, perante a comunidade internacional, de proteger os direitos fundamentais dos indivíduos (art. 4º, II e 5º, caput e inciso XLI). Ver, nesse sentido, a IDC 1 – Incidente de Deslocamento de Competência 1, processo n. 2005/0029378-4, julgado pelo STJ em 08.06.05, tendo como rel. o Min. Arnaldo Esteves Lima, versando sobre o famoso caso da Irmã Dorothy Stang, DJ 10.10.05, p. 217. 162 Salvo os que têm como destinatário, única e exclusivamente, o Estado, como os direitos dos presos. 163 Essa vinculação em discussão não alcança a maioria dos direitos fundamentais que envolvem as relações de trabalho (arts. 7º a 11), tendo em vista a sua destinação específica aos particulares (empregadores). 164 O STF vem entendendo que a exclusão de sócio dos quadros de uma sociedade civil deve ser precedida da garantia do devido processo legal, ampla defesa e contraditório (RE’s 158215-4/RS e 201819-RJ) 165 A forma e a intensidade dessa vinculação, bem como a sua extensão aos direitos econômicos, sociais e culturais são os temas que hoje ganham destaque nas discussões travadas no âmbito da doutrina e jurisprudência. Para um profundo estudo dessas questões, ver SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op. cit. e SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit. 166 Qual o grau de eficácia seria proporcionado pelo direito à moradia se, em decorrência da inadimplência de qualquer negócio jurídico privado o credor pudesse, em execução judicial ou extrajudicial, penhorar e excutir o imóvel que serve de abrigo a uma pessoa carente?

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e a função desenvolvida pelos direitos fundamentais exercem influência decisiva

no seu grau de eficácia e aplicabilidade. Registre-se, de início, que pela forma

como foram enunciados no texto constitucional alguns direitos fundamentais são

dotados de densidade normativa suficiente para gerar diretamente toda a sua

carga eficacial, como a proibição de tortura (art. 5º, III), a liberdade religiosa (art.

5º, VI) e a jornada de trabalho de oito horas (art. 7º, XIII). Nestes casos, o

próprio texto constitucional já permite que o intérprete alcance, sem maiores

dificuldades, todo o conteúdo do direito fundamental positivado e o que pode ser

exigido, ainda que judicialmente, com base nele. Já a forma de proclamação de

outros direitos fundamentais dificulta a definição de seu próprio conteúdo,

quando não a remete à própria lei ordinária, comprometendo ou reduzindo a sua

carga eficacial direta, por tornar incerto ou impreciso o que pode ser exigido com

base nele. Como exemplos podem ser citados o direito de propriedade (art. 5º,

XXII), o direito à herança (art. 5º, XXX), o direito autoral (art. 5º, XXVII, XXVIII e

XXXIX), a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), o direito dos empregados à

participação nos lucros da empresa (art. 7º, XI) e os direitos à saúde,

educação167 e previdência social (art. 6º). Para estes direitos, a plenitude da

carga eficacial somente será alcançada por meio da atividade do legislador

ordinário168, que deve delinear precisamente o seu conteúdo e o alcance das

prestações que os destinatários podem exigir a partir dele (conteúdo), sem,

contudo, se afastar a possibilidade de manifestações imediatas e diretas de sua

eficácia em situações concretas, inclusive geradoras de pretensões a prestações

materiais169.

A função exercida pelos direitos fundamentais também guarda papel

decisivo na definição do grau de eficácia passível de ser extraído diretamente de

cada um deles. Por exigirem mera conduta omissiva por parte dos seus

destinatários, de abstenção da prática de ato violador, os direitos fundamentais,

na sua dimensão negativa ou de defesa, emanam, em regra, eficácia plena a

167 Com exceção do direito à educação fundamental gratuita, que foi positivada na CF/88 como direito público subjetivo (art. 208, I, § 1º), portanto, passível de exigência direta e imediata do Estado, ainda que por via judicial. 168 Como lembra Ingo Sarlet, citando direitos como a saúde, a educação, a previdência social e o salário mínimo, o legislador ordinário brasileiro, “ainda de forma parcial e não-satisfatória”, já concretizou esses direitos (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit. pp. 330). 169 Ver, entre outras, as decisões proferidas pelo STF no RE-Agr. 271.286-8/RS, julgado em 12.09.2000, DJU 24.11.2000 e no RE-Agr. 393.175/RS, julgado em 12.12.06, DJU 02.02.07, ambos de relatoria do Ministro Celso de Mello, tratando do fornecimento gratuito de remédio para pessoas carentes, diretamente com fundamento nos artigos 6º e 196 da CF/88.

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partir do seu mero enunciado constitucional170. Lado outro, na sua dimensão

prestacional, que exige atuação positiva e concreta do Estado na geração de

prestações materiais voltadas à proteção e promoção dos direitos fundamentais,

a sua carga eficacial esbarra em questões como as restrições orçamentárias

(reserva do possível) e a separação de poderes (reserva de atuação parlamentar

e executiva), que acabam por afastar ou mitigar a sua possibilidade de

aplicabilidade direta, inclusive pelo Poder Judiciário. Não é por acaso, assim,

que a maioria dos direitos a prestações materias são positivados por normas

com baixa densidade normativa.

Para resolver esses déficitis de eficácia que atingem principalmente os

direitos sociais, a doutrina nacional, valendo-se dos ensinamentos da alemã,

vem desenvolvendo estudos acerca do chamado “mínimo existencial”,

constituído de prestações sociais mínimas indispensáveis à garantia da

dignidade da pessoa humana. No âmbito desse mínimo existencial, todos os

direitos fundamentais a prestações (saúde, educação, assistência aos

desamparados, moradia etc), independentemente de sua forma de positivação,

teriam eficácia direta e aplicabilidade imediata, com possibilidade de

concretização pelo Poder Judiciário171, que, destaque-se, já se abriu ao debate

em torno do tema172.

Aplicando tudo o que já foi dito até aqui acerca da eficácia das normas

instituidoras de direitos fundamentais, percebe-se claramente que o direito à

moradia, da forma como positivado na Constituição de 1988, encerra um

complexo de direitos e deveres de cunho negativo e positivo, que prescindem da

atividade complementar do legislador ordinário (e do administrador) para atingir

170 É importante reafirmar aqui, como já feito na nota 122, que não pode ser desconsiderada a correta abordagem no sentido de que, se analisado pelo anglo dos custos para sua concretização, todos os direitos fundamentais, até mesmo os mais elementares direitos civis defensivos como a vida, a liberdade, a segurança e a propriedade, são direitos positivos ou a prestações. 171 Para maior aprofundamento do tema recomenda-se a leitura de: TORRES, Ricardo Lobo. “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”, op. cit.; BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana, op. cit.; KRELL, Andréas J., op. cit.; SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos Fundamentais Sociais, ‘Mínimo Existencial’ e Direito Privado: Breves Notas Sobre Alguns Aspectos da Possível Eficácia dos Direitos Sociais nas Relações entre Particulares”. In: SARMENTO, Daniel e GALDINO, Flávio (orgs.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006. pp. 205-66. 172 Ver decisão monocrática final, prolatada em 29.04.04, na Ação de Argüição de Preceito Fundamental – ADPF n. 45 (DJ 04.05.04), na qual o Ministro Celso de Mello deixou registrado que o STF pode, no exercício da jurisdição constitucional, exercer o controle judicial de políticas públicas, para garantir a efetivação de direitos sociais, em especial quando se tratar da garantia do mínimo existencial.

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plena eficácia junto aos entes públicos e privados. É que, se existe a certeza de

que a consagração na Constituição de um direito à moradia veio para colocá-lo a

salvo de agressões (direitos de defesa) e para promover a sua realização

(direitos à prestação), muitas dúvidas surgem, derivadas da baixa densidade

normativa do seu enunciado, na identificação dos inúmeros efeitos passíveis de

serem produzidos para a implementação desses objetivos, bem como dos meios

e instrumentos que devem ser utilizados para tanto, como será visto abaixo.

Ademais, alguns desses efeitos, bem como dos meios e instrumentos para a sua

realização, implicam na formulação e desenvolvimento de políticas públicas

complexas e duradouras (construção de moradias para populações carentes,

urbanização de favelas, implementação de saneamento básico, canalização de

rios e esgotos, concessão de incentivos fiscais etc), que necessitam de

disponibilidade e adequação orçamentária, como bem reconhece o Pacto

Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ao determinar

em seu art. 2.1 que os Estados signatários estão obrigados a implementar

medidas, utilizando-se do máximo dos recursos disponíveis, para alcançar de

modo progressivo a plena realização dos direitos nele reconhecidos.

Em resumo, a plenitude da carga eficacial do direito à moradia previsto

no art. 6º da Carta Magna somente poderá ser alcançada a partir da atuação

determinante do legislador ordinário, que deve formular disposições normativas

(políticas públicas) aptas e suficientes para sua promoção e proteção173,

evitando que se torne, nas palavras do Ministro Celso de Mello do Supremo

Tribunal Federal, mais uma “promessa constitucional inconsequente”174. No

entanto, essa necessária participação do legislador ordinário na conformação e

efetivação do direito à moradia não frustra o diversificado rol de efeitos que

podem ser extraídos diretamente de seu enunciado constitucional, prontos a

regularem os casos concretos e serem invocados como direito subjetivo por seus

beneficiários. Essa carga eficacial direta, que ressai do regime jurídico

privilegiado dos direitos fundamentais nessa matéria, conforme já visto

anteriormente, situa-se especialmente no campo dos direitos de defesa, ficando

a expectativa de que avance, também, para o universo de prestações materiais

que garantam o “mínimo existencial”.

173 Muitas políticas públicas nesse sentido já foram formuladas e estão em curso no Brasil, propiciando, inclusive, melhora dos índices de desenvolvimento humano no país. No entanto, é inequívoca a constatação de que tais políticas ainda são pouco abrangentes, mal elaboradas e conduzidas, o que faz com que milhões de brasileiros ainda vivam à margem de uma moradia adequada. 174 RE-Agr. 271.286-8/RS, julgado em 12.09.2000, DJU 24.11.2000.

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Para encerrar, segue lista de possíveis manifestações da eficácia do

direito à moradia, seguida de instrumentos e meios eleitos para sua

realização175: a) vedação da penhora e venda judicial de imóvel residencial176

para satisfazer créditos de terceiros, em favor dos devedores que,

comprovadamente, não puderem exercer o direito à moradia sobre outro

prédio177; b) obrigação de edição de lei que regulamente as locações

residenciais, em especial no que toca aos direitos e deveres de locador e

locatário, motivos e prazos para desocupação do imóvel, índices e critérios de

correção do valor do aluguel; c) adoção de medidas legislativas e administrativas

que determinem e incentivem os bancos privados a aumentarem o volume e

diminuírem os custos das linhas de crédito imobiliário; d) adoção e incremento

de políticas públicas que facilitem o acesso à moradia às populações carentes;

e) promover a redução da carga tributária sobre os materiais de construção civil,

destinados à edificação e reforma de moradias de baixa renda; f) manter

adequado serviço de fiscalização, proteção e remanejamento de populações que

habitam áreas de risco; g) investimento em programas de saneamento básico

nas áreas urbanas; h) garantias de que o Poder Judiciário, no cumprimento de

ordens de reintegração de posse, despejo ou desapropriação, que envolvam

imóveis que servem de habitação para os destinatários, se certifique de que as

pessoas atingidas já possuem outro imóvel para habitar ou condições financeiras

para fazê-lo, ou, em caso negativo (pessoas de baixa ou nenhuma renda),

condicione o cumprimento dos mandados à viabilização pelo Poder Público de

locais adequados para a transferência da morada, ainda que de forma 175 Como a questão da eficácia direta e da dependente de complementação legislativa (indireta) do direito à moradia já foi enfrentada acima em linhas gerais, como convém aos objetivos deste estudo, não será individualmente abordada quando da indicação das manifestações a ser feita em seguida, salvo no caso da impossibilidade de penhora do imóvel que serve de moradia, exceção imprescindível para o bom entendimento dos próximos capítulos. 176 Como será visto na parte final deste estudo, a imunidade somente alcançará o imóvel naquilo que for necessário para se garantir uma moradia adequada para o devedor. 177 Para o autor, essa manifestação da eficácia defensiva do direito à moradia sempre pôde ser extraída diretamente do texto constitucional, independentemente das intervenções legislativas que foram editadas nesse sentido, como o Bem de Família do Código Civil e a Lei 8.009/90. Assim, o juiz que se deparasse com essa situação no transcorrer de uma execução poderia, com fundamento direto e imediato no direito à moradia, negar ou decretar a nulidade do ato de penhora e leilão do imóvel residencial do devedor. Esse entendimento prestigia a dignidade da pessoa humana, bem como garante a efetividade de um núcleo essencial para o direito à moradia, que não pode ser atingido por agressões do Estado e de particulares. No entanto, em bom momento vieram as intervenções legislativas citadas, que a par de ampliarem a carga eficacial dessa manifestação do direito à moradia, por não condicionarem a proteção do imóvel à impossibilidade de seu exercício sobre outro prédio, também trouxeram segurança jurídica para credores e devedores, que agora sabem quando e em que extensão prevalece o direito (patrimônio e moradia) de cada um (art. 2º, da Lei 8.009/90).

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transitória; i) produção de medidas legislativas para combate da especulação

imobiliária; j) a prestação pelo Estado, ainda que de forma transitória, de moradia

para as pessoas que, comprovadamente, não possam adquiri-la com as suas

próprias forças.

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