pesquisa Legal e o Caráter distintivo do direito comparado - Christopher McCrudden I
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3. O estatuto do empresário
3.1 Introdução
Nas sociedades modernas, o papel dos empresários é fundamental,
porquanto é da actividade comercial que resulta a maior parte das receitas dos
Estados. Compreende-se então que os legisladores consagrem particular atenção
aos empresários e às condições em que exercem as suas actividades, para o efeito
estabelecendo uma série de normas destinadas a assegurar a transparência e
eficiência das relações dos empresários com o mercado.
A existência de um particular regime jurídico para os empresários é ainda
justificada com o facto de em regra a dimensão das empresas determinar a
necessidade do recurso ao crédito, para o que é preciso assegurar aos seus
financiadores meios de controlo e de garantia dos seus créditos.
O termo estatuto na linguagem jurídica significa o conjunto de normas que
definem os direitos e obrigações de determinado sujeito. O estatuto jurídico do
empresário é pois o conjunto de normas que definem a sua posição jurídica, do
ponto de vista dos direitos e obrigações e vantagens e desvantagens correlativas,
perante o ordenamento jurídico.
Dentre as obrigações, que é o aspecto mais importante desse estatuto,
cobrem particular importância as indicadas no art.º 12.º:
a) Adoptar uma firma;
b) Ter escrituração mercantil;
c) Fazer inscrever no registo os actos a ele sujeitos;
d) Prestar contas
3.2. 1. Firma
A firma é um sinal nominativo destinado a identificar/distinguir o sujeito
na sua qualidade de empresário: é o nome que o empresário utiliza no exercício
da sua actividade mercantil. É também um sinal de uso obrigatório (aliás é o
único sinal distintivo [sinais destinados a identificar e contradistinguir o
empresário, a empresa e os seus produtos dos demais empresários, empresas e
produtos) de uso obrigatório], correspondente a uma das obrigações dos
comerciantes a que se refere o art.º 12.º. A firma, dissemos, é um sinal
nominativo, porquanto, como veremos, é um sinal composto obrigatória e
exclusivamente por vocábulos, não por figuras ou emblemas (art.º 22.º).
Nos termos do art.º 14.º, n.º 1: «O empresário comercial é designado, no
exercício da sua empresa, sob um nome comercial, que constitui a sua firma, e
com ele deve assinar os documentos àquela respectivos». A firma é assim
concebida como um sinal destinado a identificar o empresário, um sinal
subjectivo pois.
Sendo um sinal subjectivo, a firma deveria ser insusceptível de
transmissão, tal como acontece com o nome civil das pessoas. Contudo, a firma
não é apenas um sinal identificativo de um sujeito, é o sinal que identifica um
sujeito a actuar no mundo do comércio. Daqui decorre a consequência de, muitas
vezes, a firma acabar por vir a identificar a própria empresa, maxime quando não
existe nome de estabelecimento (empresa). Nestes casos, a firma objectiva-se,
deixa de identificar exclusivamente o sujeito para identificar o objecto: a
empresa. Assim, e porque isto acontece, admite-se que a firma possa ser
transmitida conjuntamente com a empresa, em relação à qual seja utilizada (art.º
31.º). Nessa circunstância, a firma não identificará necessariamente um certo e
determinado sujeito, mas o sujeito que em cada momento for titular daquela
empresa, porquanto a lei apenas admite a transmissão da firma conjuntamente
com a empresa, para cujo exercício foi criada (art.º 31.º, n.º 6).
3.2.1.1. Princípios da firma
A firma deve ser composta com observância do princípio da verdade, da
novidade e da unidade.
3.2.1.1.1. Princípio da verdade
O princípio da verdade, consagrado no art.º 15.º, n.º 1 diz-nos que a firma
não pode transmitir informações não coincidentes com a realidade que se destina
a identificar, deve pois transmitir uma imagem verdadeira, não distorcida, da
realidade1. Por conseguinte, não pode a firma conter elementos que falseiem ou
criem confusão com a identidade do empresário, ou dos sócios ou associados
(problema de homonímia), a natureza do respectivo titular (se pessoa singular ou
antes colectiva, e, dentro destas, se sociedade ou antes v.g. associação, etc.),
sugiram o exercício de actividades que não possam ser desenvolvidas pelo
empresário em questão (v.g. actividade bancária, por um empresário individual,
art.º 18.º, n.º 1 do D/L 32/93/M, de 5 de Julho), ou uma dimensão da empresa
(v.g., supermercado para uma pequena mercearia2, “Casa Internacional”, para um
pequeno empresário, singular ou colectivo, de âmbito local 3 ) diversa da
realidade. As alíneas do n.º 2 do referido preceito fazem aplicações do princípio
regra consagrado no n.º 1. Com efeito, o disposto na al. a) proíbe que da firma
façam parte elementos que sugiram o exercício de actividades diversas daquelas
a que o sujeito se dedica (v.g. farmácia para uma drogaria); a al. b) proscreve que
se sugira pela firma uma caracterização jurídica do sujeito diversa da real, assim,
não pode um empresário individual compor a sua firma com expressões que
sugiram tratar-se de uma sociedade (Companhia Manuel Silva), nem uma
sociedade utilizar o vocábulo associação (v.g. Associação Rio das Pérolas, S.A.)
ou vice versa (Sociedade dos Cidadãos de Apelido Ching), etc.4.
O princípio da verdade da firma não fica prejudicado pelo facto de a lei
admitir puras firmas de fantasia, porquanto o que este princípio proíbe é a
comunicação de informações não coincidentes com a realidade, já não que a
firma contenha, necessariamente, informações concernentes à identidade do
1 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 153. 2 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 154, nota 2. 3 Cfr. Julius von Gierke, Derecho comercial y de la navegación, I, tradução de Juan M.Semon, Tipográfica Editora Argentina S.A., Buenos Aires, p. 146, nota 93. 4 Cfr. Coutinho de Abreu, 1998, p. 137ss.
titular, da sua actividade ou dimensão do seu negócio. O princípio da verdade da
firma assume assim uma dimensão essencialmente negativa.
3.2.1.1.2. Princípio da novidade
O princípio da novidade significa que a firma deve ser nova, no sentido de
ser distinta e insusceptível de confusão ou erro com outra já existente (art.º 16.º,
n.º 1). A firma sendo um sinal cuja função é identificar um concreto empresário
tem de ter capacidade distintiva, mas não lhe basta ser apta a distinguir o
empresário em questão, é também necessário que não seja fonte de confusão ou
erro. Com efeito, a firma é um sinal distintivo, destina-se a contradistinguir o
empresário em questão dos demais empresários que com ele competem. Ora, se
fosse confundível com outra já registada, a firma nova em vez de cumprir aquela
sua função, representaria um meio de confusão. Por conseguinte, há-de ser
composta por forma tal que seja distinta, nova, de todas as demais firmas já
registadas.
Contudo, o facto de a firma nova ter de ser distinta, não confundível, com
as firmas já registadas, não significa que tenha de ser absolutamente nova, no
sentido de ter ser diferente em todo e cada um dos seus elementos componentes.
Pode a firma conter elementos comuns a outras firmas já registadas, sem que
com isso seja com elas confundível. Sendo certo, aliás, que a lei veda
expressamente a apropriação exclusiva de certos elementos considerados de uso
comum (art.º 16., n.º 3).
Saber se a firma nova é ou não confundível com outra já registada,
depende de um juízo a efectivar, tendo em conta a impressão de conjunto aferida
pelo destinatário médio (o consumidor). Não é assim o critério dos interessados
directos, o empresário cuja firma se regista e o empresário cuja firma já está
registada, que releva. Na verdade, estes tendem a ser particularmente sensíveis a
qualquer mínimo pormenor quer para diferenciar quer para desconsiderar a
relevância da capacidade distintiva5.
5 Cfr. J.Gierke, 1957, pp. 147ss.
Sendo certo que o juízo do consumidor médio, medianamente sagaz e
distraído, é ainda circunscrito pelas indicações dadas no n.º 2 do art.º 16.º. Assim
relevará para efeitos do juízo de confundibilidade ou não confundibilidade, o tipo
de empresário, i.e. se se trata de pessoa singular ou colectiva e dentro destas de
que espécie de pessoa colectiva, a maior ou menor afinidade das actividades
desenvolvidas (afinidade merceológica) 6 . Por conseguinte, o grau de
diferenciação entre as várias firmas será mais ou menos intenso consoante se
trate ou não de actividades similares (art.º 16.º, n.º 2). Assim, se, por exemplo,
um empresário individual usa uma firma confundível com outra já registada, mas
o objecto das respectivas empresas (actividade desenvolvida) é perfeitamente
distinto (um fabrica camisas e o outro vende computadores, por exemplo), a
possibilidade de confusão normalmente não se verificará.
Na aferição da novidade há-de ser dada particular atenção aos elementos
originais, porquanto os vocábulos de uso comum não são susceptíveis de
apropriação exclusiva e por conseguinte não podem ser tidos em conta para
aquela aferição (art.º 16.º, n.º 3): são elementos desprovidos de capacidade
distintiva, aquilo que se designa, na esteira da doutrina alemã, por sinais francos;
i.e. sinais de uso livre, que não podem como tal ser tidos em conta para a aferição
da originalidade do sinal e respectiva tutela.
Finalmente, a aferição da confundibilidade é efectuada não apenas
relativamente às firmas registadas, mas também relativamente aos demais sinais
distintivos (v.g. nome e insígnia de establecimento, marca), por força do art.º
16.º, n.º 6. Na verdade, a inclusão na firma de elementos que a tornassem
confundível com um dos demais sinais distintivos, daria azo a que se criasse a
ideia de que o titular da firma era o titular dos sinais distintivos em causa, ou,
pelo menos, de que alguma estreita ligação com o respectivo titular existiria. Não
é que não seja possível a composição da firma com sinais distintivos (v.g., nome,
6 A versão original do n.º 2 do art.º 16.º exigia ainda que, como elemento a considerar no juízo de confundibilidade, se incluísse a localização da respectiva sede (pessoa colectiva) ou domicílio (pessoa singular). A esse propósito dizíamos: “que em Macau, atenta a exiguidade do Território, é de parca ou nula consideração”; o legislador também assim considerou e dispensou a necessidade da consideração desse aspecto, deixando de o mencionar na nova redacção do n.º 2 do art.º 16.º ( resultante do art.º 1.º da Lei nº 16/2009, de 10 de Agosto).
insígnia, marca, etc.) pertencentes a outrem, pois que o é, desde que haja a
necessária autorização do respectivo titular (art.º 16.º, n.º 4). A recente lei n.º
16/2009, de 10 de Outubro, entendeu não ser suficiente o disposto no n.º 4, ou
não ser suficientemente claro???, e vai daí introduziu um novo n.º 5, no art.º 16.º,
passando o anterior n.º 5 a n.º 6. O novel n.º 5 tem a seguinte redacção: “Para
efeitos de registo de firmas pertencentes ao mesmo ramo de actividade é
permitida a incorporação de sinais distintivos já registados, desde que haja
autorização do titular do respectivo registo.” Ora, como se disse, o n.º 4 diz que a
incorporação da firma de sinais distintivos registados está sujeita à prova do seu
uso legítimo. Pois bem, por mais voltas que se dê ao texto, não se vê o que é que
o novo n.º 5 contenha que já não contivesse o n.º 4. A menção “ao mesmo ramo
de actividade” não basta para justificar o novo número, pois que a redacção do
n.º 4, obviamente, comporta-a: independentemente, de se no mesmo ou diverso
ramo de actividade, a incorporação de sinais distintivos registados na composição
da firma está dependente de o seu uso ser legítimo, e é-o se estiver autorizado
pelo titular.
3.2.1.1.3. Princípio da unidade
Apesar de não estar contido directamente na lei, um outro princípio, que
se costuma referir como informando a composição da firma, é o princípio da
unidade, segundo o qual a cada empresário apenas é permitido a utilização de
uma firma. A questão que a aplicação deste princípio coloca é a de saber se vale
para todas as situações ou não; ou seja, se se aplica a todos os empresários ou
apenas a alguns. Aqui as opiniões dividem-se: uns dizem que o princípio da
unidade é de preceito pelo que diz respeito às pessoas colectivas, maxime
sociedades7, mas já no que toca aos empresários individuais, seria objecto de
restricções. Assim, diz-se que, tratando-se de empresário individual, nada obsta a
que, se ele é titular de mais do que uma empresa (v.g., uma fábrica de vestuário e
uma agência de viagens), possa, relativamente a cada uma delas, exercer com
7 Cfr.Coutinho de Abreu, 1998, p. 146; Ferrer Correia, 1973, p. 283; Canaris, 2000, p. 263.
uma firma diferente (v.g. Fábrica de Vestuário João Leong; Agência de Viagens
João Leong). Já não seria admitido que o empresário usasse mais do que uma
firma para exercer os vários ramos ou sucursais da sua empresa. Por conseguinte,
a unidade da firma seria aqui entendida no sentido de que cada empresa,
independentemente de ter vários ramos ou sucursais, apenas pode ser exercida
sob uma única firma8, já não que a cada empresário individual corresponde só e
apenas uma única firma.
As razões, que explicam a diversidade de entendimento no que respeita
aos empresários individuais e às sociedades, prendem-se com o risco de indução
em erro que a utilização de mais do que uma firma para o exercício de empresas
autónomas pode representar. Assim, no que tange às sociedade, e contrariamente
às pessoas singulares, a firma é não só o respectivo nome comercial, mas também
o seu “nome civil”9. Na verdade, a sociedade apenas tem a sua firma para se
identificar, contrariamente às pessoas singulares que, para além da sua firma,
têm, em primeiro lugar, o seu nome civil.
Este argumento, quer pelo seu formalismo quer porque leva a um círculo
vicioso, não parece ser determinante10. Determinante afigura-se, antes, o facto de
que, a admissibilidade de uma sociedade poder exercer as suas várias empresas
autónomas sob várias firmas, seria susceptível de criar uma ideia falsa quanto às
relações de responsabilidade11. A pluralidade de firmas, ao sugerir a existência
não de uma mas de várias sociedades, não de um mas de vários patrimónios de
responsabilização, contribuiria para uma inconveniente falta de transparência
quanto a um aspecto cardinal do tráfico mercantil. Por conseguinte, não seria de
admitir a possibilidade de uma sociedade poder actuar sob mais do que uma
firma, mesmo que relativamente a empresas autónomas. Tanto mais que, sendo a
firma o “nome civil” da sociedade, admitir-se tal possibilidade significaria
aceitar-se que um sujeito de direito pudesse ter vários nomes. Ora, do mesmo
8Cfr. Ferrer Correia, idem, p. 283; Canaris, idem, p. 261. 9 Cfr. Ferrer Correia, idem, pp. 283, 284. 10 Cfr. Canaris, idem, p. 263. 11 Idem, ibidem.
modo que tal possibilidade não é admitida para as pessoas singulares, também
não deve ser permitida às sociedades.
Mas, perguntar-se-á, as preocupações expendidas quanto às sociedades,
relativas ao risco de falta de transparência quanto à responsabilização pelas
dívidas mercantis, não se verificam igualmente quanto às pessoas singulares?
Diz-se que não, porquanto as pessoas singulares para além das suas dívidas
mercantis têm (ou podem ter) dívidas civis, pelo que os credores estão sempre
obrigados a um exercício de investigação para determinarem o estado patrimonial
do seu devedor12. Assim, a possibilidade de o empresário individual, quando
titular de várias empresas autónomas, exercer cada uma delas sob uma firma
diferente, para além de responder a interesses dignos de tutela deste, que pretende
identificar-se nas suas várias actividades de forma clara, não representam, do
ponto de vista dos credores, um agravar da sua situação, porque, justamente,
estes não podem pretender que as dívidas do seu devedor, ao contrário do que
acontece nas sociedades, resultam apenas da sua actividade mercantil, pois
podem bem resultar de muitas outras circunstâncias. Daqui que o credor de um
empresário individual seja sempre convocado a um especial dever de diligência,
pelo que respeita a conhecer a verdadeira situação patrimonial do seu devedor,
que lhe permitirá conhecer a eventual exposição patrimonial do seu devedor
resultante do exercício de outras empresas sob outras firmas.
3.2.1.1.4. Obrigatoriedade de utilização das línguas oficiais
Para além de obedecer aos princípios da verdade e da novidade, a firma
há-de também ser composta numa das línguas oficiais da RAEM ou em ambas.
Pode também ser redigida em inglês, quando seja composta em ambas as línguas
oficiais: quer dizer, apenas é admitida uma versão em inglês da firma que tem
uma versão em ambas as línguas oficiais (art.º 17.º, n.º 1). Pode a firma ser
composta numa outra língua (que pode ser, obviamente, o inglês), ou conter
vocábulos em língua diversa das línguas oficiais, nas situações indicadas nas
12 Idem, ibidem.
várias alíneas do n.º 3 do art.º 17.º. A exigência feita neste preceito parece
deslocada em Macau, em que a língua franca dos negócios é o inglês, sendo certo
também que a globalização aconselha a maior liberdade na composição da firma.
Por outro lado, nas situações mais gravosas, já o princípio da verdade permite a
sua exclusão, pelo que não parecem subsistir razões para esta limitação. Sendo
certo que mesmo em Portugal esta exigência foi já afastada.
3.2.1.1.5. Outros requisitos
A lei veda ainda que a firma possa ser composta de tal forma que seja
ofensiva da moral pública ou dos bons costumes (art.º 18.º, n.º 1), desrespeite
símbolos da RAEM, personalidades, épocas ou instituições cujo nome ou
significado seja de salvaguardar por razões históricas, científicas, institucionais,
culturais ou outras atendíveis (art.º 18.º, n.º 2). Também não permite a lei que a
firma, para além de ser veículo de promoção de interesses próprios, possa ser
utilizada para menoscabo de terceiros (art.º 18.º, n.º 3).13
3.2.1.2. Elementos que podem entrar na composição da firma: os
aditamentos obrigatórios
Ao contrário do que sucedia no direito pretérito, em que a composição da
firma obedecia a regras diferentes consoante se tratasse de empresários
individuais ou de sociedades, actualmente a composição da firma obedece às
mesmas regras (art.º 22.º), salvo pelo que toca aos aditamentos obrigatórios.
No direito pretérito, a firma dos comerciantes em nome individual e das
sociedades em nome colectivo e em comandita era composta obrigatoriamente
com o nome de pessoas (firma-nome), o do próprio sujeito (art.º 20.º Código
Comercial de 1888) ou o dos seus (todos, alguns ou algum) sócios (art.º 21.º e
22.º Código Comercial de 1888), embora pudesse (e apenas pudesse) conter
13 A estes requisitos, engloba-os Coutinho de Abreu (1998, p. 147) sob o que denomina de princípio da licitude residual.
expressões alusivas à actividade comercial respectiva; já a firma das sociedades
anónimas originariamente não podia ser composta com nomes de pessoas, daí a
designação de anónimas, mas apenas com uma expressão que desse quanto
possível a conhecer o objecto (firma-denominação) (art.º 23.º Código Comercial
de 1888). As sociedades por quotas, introduzidas no direito português pela Lei de
11 de Abril de 1901 (LSQ), podiam utilizar na sua firma quer nomes de pessoas
(firma-nome) quer denominações particulares (firma-denominação) ou ambas
(firma-mista) (art.º 3.º LSQ). A partir de 1931 (Decreto n.º 19631 de 18 de
Abril), a firma das sociedades anónimas passou a poder ser composta com nomes
de pessoas, sócios ou não, deixando de justificar a sua designação.
Estas regras decorriam em linha recta do princípio da verdade: a firma
havia de transmitir informações verídicas sobre a situação do sujeito ou entidade
que identificava. Os aspectos publicitários e reclamísticos não eram
considerados, pelo menos directamente.
A obrigatoriedade da composição da firma com o nome do sujeito ou dos
sócios decorreria do facto de o crédito ser concedido com base numa relação de
confiança, donde que seria necessário que se soubesse quem é o comerciante ou
os sócios da sociedade que está a actuar, para que se pudesse conceder crédito.
Com efeito, sabido quem era o comerciante ou os sócios, conhecido estaria o
respectivo património e logo a garantia que era oferecida.
Esta ideia de o crédito se ligar à pessoa, supõe um tempo em que as
relações comerciais não são anónimas, mas pessoais. Quem actua no domínio da
actividade comercial conhece e é conhecido pelos seus pares. A actividade
comercial é uma espécie de clube privado em que toda a gente se conhece.
Entrados na fase da massificação das relações comerciais, o anonimato da
esmagadora maioria dos agentes passa a ser a regra, com o que deixa de fazer
grande sentido que se continue a exigir, como outrora, que a firma seja composta
obrigatoriamente com o nome civil do sujeito.
No mundo do anonimato, que é o nosso, o único caminho para se
assegurar aos interessados o conhecimento e identificação daqueles com quem
pretendem entrar em relações negociais é a exigência de registo obrigatório.
Como dissemos, a lei sempre admitiu a possibilidade da transmissão da
firma, em sede de trespasse (alienação definitiva) da empresa, caso em que, como
é óbvio, a firma já não identificava o sujeito inicial, mas sim o adquirente. Ora,
sendo possível que a firma seja utilizada por outra pessoa que não aquela com
cujo nome é composta, parece claro que a única coisa que a firma pode
verdadeiramente assegurar é a identificação da natureza do empresário, não a sua
identificação civil.
Por outro lado, assiste-se um pouco por todo o lado (v.g. França (1985),
Alemanha (1998), Áustria (2007)) a uma tendência no sentido de promover a
função reclamística da firma em detrimento da sua função original de
identificação de um concreto sujeito.
Por isso, ao contrário do direito pretérito, a lei, independentemente de se
tratar de empresários pessoas singulares ou pessoas colectivas, concedeu aos
interessados a maior liberdade para a composição da sua firma. Assim, a firma
pode ser composta com o nome, completo (v.g. Manuel da Silva Abrantes) ou
abreviado (v.g. M.Silva), ou por alcunha (v.g. o Sapo) do sujeito (empresário
individual), dos sócios (sociedades) ou associados (v.g. agrupamentos de
interesse económico), todos, alguns ou algum (firma-nome, v.g. Silva, Moledo &
Conceição, Lda.; Silva & Moledo, Lda.; Maria da Conceição, E.I.), por
expressões alusivas à actividade comercial desenvolvida (firma-denominação, v
.g. Fábrica de Vestuário da Penha, Lda.), por designações de fantasia (v.g.
Galaxy, SA) ou pela conjugação destes elementos, todos ou alguns (firma-mista,
v.g. José Malaquias, Restaurante O Cortiço, Lda.) (art.º 22.º, n.º 1).
A identificação do tipo e natureza jurídica do concreto empresário eram
assegurados pela imposição da adopção de um aditamento obrigatório,
relativamente a todos os empresários. Assim, os empresários individuais deviam
aditar a sua firma do aditamento «Empresário Individual» ou as iniciais «E.I.»
(v.g. Manuel Silva, E.I.; Manuel Silva, Empresário Individual), mas apenas
quando a firma fosse redigida em português, porque só então fazia sentido. O que
não quer dizer que o aditamento, quando a firma seja redigida em português,
tenha de ser obrigatoriamente reduzido às iniciais «E.I.». As sociedades em nome
colectivo por esta mesma designação, que se tornou aditamento obrigatório, ou
também pelas iniciais «S.N.C.», se redigida em língua portuguesa; as sociedades
em comandita simples pelo aditamento «Sociedades em Comandita», ou também
pelas iniciais «S.C.», se redigida a firma em língua portuguesa; as sociedades em
comandita por acções pelo aditamento «Sociedade em Comandita por Acções»,
ou também pelas iniciais «S.C.A.», se redigida a firma em língua portuguesa; as
sociedades por quotas pelo aditamento «Limitada» ou também pela abreviatura
«Lda.», se redigida em português; a firma das sociedades por quotas unipessoais
pelo aditamento «Sociedade Unipessoal Limitada» ou «Sociedade Unipessoal
Lda.»; a firma das sociedades anónimas pelo aditamento «Sociedade Anónima»
ou também pelas iniciais «S.A.», se redigida em português; a firma dos
agrupamentos de interesse económico, pelo aditamento «Agrupamento de
Interesse Económico» ou também pelas iniciais «A.I.E.», se redigida em
português. Finalmente, o art.º 30.º determina que a firma de qualquer outro
empresário pessoa colectiva contenha um aditamento que permita identificar
claramente o tipo de pessoa colectiva em causa. Excepto pelo que diz respeito ao
aditamento das sociedades por quotas, em que o aditamento não identifica
claramente o tipo de pessoa colectiva, nos demais casos fica-se a saber pelo
aditamento de que tipo de pessoa colectiva se trata.
Utilizou-se o pretérito, porque a situação que se acaba de descrever
corresponde ao regime gizado no Código Comercial, no entanto, a situação
alterou-se com as alterações introduzidas pela lei n.º 6/2000. Com efeito, a
referida lei veio permitir a todos os empresários a manutenção das firmas já
utilizadas, sem necessidade de adaptação das mesmas aos novos dados do
sistema (art.º 11.º do D/L n.º 40/99/M, de 3 de Agosto, na redacção resultante do
art.º 1.º da lei n.º 6/2000); mais, permitiu que os empresários que, entretanto, já
houvessem procedido às alterações da firma para se conformarem com o novo
regime, pudessem fazer marcha atrás e recuperar a firma pretérita (art.º 5.º da lei
n.º 6/2000).
Atendendo a que as novas regras de composição da firma não estão em
contradição com as regras anteriores, o objectivo das alterações introduzidas pela
lei n.º 6/2000 restringe-se à matéria dos aditamentos obrigatórios, única matéria
onde se verificaram inovações, sendo que a lei expressamente ressalvava a
manutenção das firmas de pretérito (art.º 11.º, n.º 1 D/L n.º 40/99/M, de 3/8).
Tendo em conta que não existem sociedades em comandita em Macau, que as
sociedades em nome colectivo são pouco menos do que inexistentes, que a
esmagadora maioria das sociedades são sociedades por quotas, cujo aditamento
obrigatório não determina qualquer adaptação às firmas já existentes, impõe-se a
conclusão de que a alteração se restringe às sociedades anónimas e aos
empresários individuais. Quanto aos últimos não se quis a introdução do
aditamento como compulsiva, quanto às sociedades anónimas, não se quis a
retirada dos vocábulos «responsabilidade limitada». O número de beneficiários
da alteração introduzida é pequeno, pois são apenas as sociedades anónimas, já
que apenas quanto a estas o aditamento é obrigatório, ora por isso não se percebe
qual a tão premente necessidade que justificasse a medida.
Na verdade, o novo aditamento obrigatório para as sociedades anónimas,
que se limita a reduzir a fórmula sacramental do aditamento resultante do art.º
23.º do Código Comercial de 1888 à designação pela qual estas sociedades são
conhecidas «Sociedade Anónima», é obrigatório para as sociedades a constituir,
o que demonstra que por si só é suficiente para cumprir o desiderato de
identificação do tipo de empresário em causa, o mesmo é dizer o tipo de
responsabilidade a que se sujeitam os seus sócios. Percebe-se que não se queira o
novo aditamento por menos expressivo, o que se não percebe é porque é que o
novo aditamento só não é adequado para as sociedades já existentes: uma de
duas, ou o aditamento cumpre a função que o justifica, e então deve valer para
todas as sociedades anónimas, ou não, e então não deve valer para nenhuma.
Aliás, a alteração introduzida pelo novo Código tem o precedente de idêntica
alteração introduzida em Portugal, onde o universo das sociedades anónimas é
incomparavelmente maior, com o Código das Sociedades Comerciais de 1986,
sem que a medida tenha suscitado quaisquer reparos ou dificuldades. Sendo certo
que neste caso, como aliás em tudo o que respeita à disciplina societária, o
sentido das alterações introduzidas pelo novo Código Comercial era público
desde 1989, pelo menos, e não se conhece quanto ao ponto a existência de
quaisquer reservas.
Dir-se-á que não apenas em relação às sociedades anónimas se dirigem as
alterações da lei n.º 6/2000, mas também aos empresários individuais. E à
primeira vista assim é, mas olhando mais de perto, logo nos damos conta de que
é mera ilusão.
Na verdade, a lei introduziu também para os empresários individuais um
aditamento obrigatório, que, por conseguinte, obrigava a que as firmas anteriores
dos comerciantes individuais devessem ser aditadas em conformidade;
aditamento que seria efectuado oficiosa e graciosamente (aliás, como em todos os
demais casos), caso o interessado o não promovesse atempadamente (art.º 11.º,
n.º 3 D/L n.º 40/99/M, de 3/8). A introdução do aditamento obrigatório para os
empresários individuais, para além de uma pedagogia de clareza e transparência,
era imposta pelo facto de a lei estender sem reservas aos empresários individuais
as amplas possibilidade abertas em matéria de composição da firma (regime
jurídico muito semelhante, consagrou o legislador alemão com a reforma do
HGB de 1998 (consultável em www. bundesrecht.juris.de/bundesrecht/hgb/).
Daqui decorre a possibilidade, como vimos, de o empresário individual compor a
sua firma exclusivamente com expressões alusivas à sua actividade ou até por
puras designações de fantasia. Ora, quando assim suceda, o único meio de se
poder identificar a expressão escolhida pelo interessado como firma, e
designadamente distingui-la de outros sinais distintivos do comércio, maxime
nome do estabelecimento, era o aditamento obrigatório. Sendo que a
identificação do concreto sujeito, que sob essa firma girava, era assegurada pela
obrigatoriedade do registo, que a lei tornou obrigatório para todos os empresários
plenos (não pequenos), pessoas físicas (art.º 3.º, na redacção original, do
Cód.Reg.Comercial).
Ora a lei n.º 6/2000 veio dispensar a obrigatoriedade do aditamento
«Empresário Individual» ou as iniciais «E.I.», se redigida a firma em português,
e a lei n.º 5/2000, a obrigatoriedade do registo dos empresários individuais, sem
que, contudo, tivesse o legislador estabelecido qualquer limitação quanto às
possibilidades de composição da firma, oferecidas pela lei ao empresário
individual.
No futuro coexistirão, sem quaisquer limitações temporais, firmas
compostas por obediência a diversos parâmetros relativas ao mesmo tipo de
empresário, o que não pode certamente ser considerado como contribuição para a
clarificação e transparência do sistema. O que só não torna a situação grave,
porque, como se viu, o universo dos sujeitos a quem a medida aproveita é
relativamente pequeno.
As amplas possibilidades concedidas pela lei em matéria de composição
de firma afastam a maior parte dos casos de homonímia, i.e. os casos de
coincidência entre a firma de dois sujeitos, resultante do facto de a mesma dever
ser composta com o respectivo nome civil. Agora a lei já não impõe que o sujeito
utilize obrigatoriamente o seu nome, completo ou abreviado, como firma, pelo
que nessa medida as possibilidades de homonímia certamente diminuirão.
Contudo, se a lei não impõe a composição da firma com o nome civil dos sujeitos
não deixa de admitir essa solução, daí que as possibilidades de homonímia
continuem a poder verificar-se. Nesse sentido, a lei estabeleceu no n.º 2 do art.º
22.º critérios para a solução dessa situação, que vão do acrescentar de novos
nomes, à retirada de nomes ou ao aditamento de expressões alusivas à actividade
comercial desenvolvida ou designações de fantasia.
3.2.1.3. Direito à firma
O registo da firma, que ocorre simultaneamente com o registo do próprio
empresário (art.ºs 3.º e 34.º do CRegCom), e, uma vez efectuado, confere ao seu
titular um direito de uso exclusivo sobre o sinal respectivo (art.º 20.º, n.º 1), que
tem carácter de direito absoluto. Este direito tem uma dimensão positiva: a de o
interessado poder usar a firma registada, no âmbito dos seus negócios; e uma
dimensão negativa: a de nenhum outro sujeito poder usar a firma registada sem
autorização do titular. Esta dimensão negativa tem uma extensão mais ampla do
que a dimensão positiva, porquanto não só é a firma, tal qual está registada, cuja
utilização não autorizada pelo titular está proibida, mas também aqueles sinais
que com ela sejam susceptíveis de confusão.
A violação do direito à firma atribui ao seu titular o direito a exigir o
imediato fim da utilização indevida, independentemente da ocorrência, ou
determinação de quaisquer danos, e, caso estes se verifiquem, à competente
indemnização; eventualmente, pode a violação da firma integrar um ilícito
criminal (art.º 21.º).
A firma não registada apenas goza da tutela frágil que as regras sobre
concorrência desleal lhe poderão conceder (art.º 159.º).
3.2.1.4. Transmissão da firma
A firma pode ser transmitida, temporária ou definitivamente (art.º 31.º, n.º
1, 5), mas, em qualquer caso, apenas no âmbito de uma negociação da empresa
para cujo exercício foi criada (art.º 31.º, n.º 6). Para além de apenas poder ser
negociada no âmbito da negociação da empresa, é ainda necessário que o
transmitente da empresa, e titular da firma, consinta na sua transmissão (n.º 1 do
art.º 31.º. Por outras palavras, é necessário a autorização do titular, sendo que não
basta, para este efeito, o facto da transmissão, porquanto ao contrário do que
sucede, por exemplo, em matéria de marcas (art.º 227.º, n.º 1 do RJPI), a lei não
se contenta com o silêncio para que a transmissão se consume. Não quer isto
dizer que seja necessária uma autorização por escrito, mas é imprescindível que a
vontade de transmitir a firma seja expressa, directa ou implicitamente, de forma
inequívoca14.
Já não exige a lei, ao contrário do que sucedia com o art.º 24.º do Código
Comercial de 1888, o aditamento da declaração de sucessão na firma (v.g. Chao
Leong, comércio de automóveis, adquirente), para evitar as chamadas firmas-
comboio (v.g., Alberto Chao, Comércio de Acessórios de Automóveis, Lda.,
Sucessor Manuel Leong). Não desconhecia a lei os interesses que justificavam a
exigência da declaração de sucessão e que se prendiam, essencialmente, com os
14 Cfr. Claus-Wilhelm Canaris, Handelsrecht, 23 ed.ª, Munique, 2000, p. 229.
que estão ligados ao princípio da verdade15: assegurar que a firma não é veículo
de falseamento da realidade. Por conseguinte, a declaração de sucessão permitia
a terceiros conhecer que a firma em causa não era uma firma originária, mas
antes uma firma derivada. Assim os precavendo, para o facto de a pessoa
designada na firma já não ter nada que ver com a mesma, ou, tratando-se de
sociedades, podendo já nada ter que ver com a mesma, e permitindo-lhes, com
averiguações complementares, saberem quem se abrigava à sombra da mesma.
Estes interesses, a nova lei prosseguia-os através da obrigatoriedade do
registo de todos os negócios que envolvessem a empresa. Por uma simples
consulta ao registo, qualquer interessado estaria em condições de saber quem é
que actuava sob determinada firma. Acontece que a Lei n.º 6/2000 veio dispensar
de registo os negócios de alienação de empresa, embora tenha mantido essa
obrigatoriedade relativamente a todos os outros, i.e. àqueles que envolvam uma
transmissão meramente temporária da empresa, quer pela constituição de um
direito pessoal de gozo (v.g., uma locação) quer pela constituição de um direito
real de gozo (v.g., um usufruto), ou a constituição de um direito real de garantia
(art.º 103.º). Por outro lado, a Lei n.º 5/2000, que alterou o Cód.Reg.Com, como
se disse, transformou em facultativo o registo das pessoas singulares (art.º 3.º).
Sem prejuízo, o n.º 6 do art.º 31.º sujeita a registo a transmissão da firma, pelo
que, se a alienação da empresa coenvolveu a firma, este facto deve ser registado,
sob pena de não produzir efeitos contra terceiros.
O consentimento para a transmissão da firma há-de ser dado pelo
transmitente (art.º 31.º, n.º 2), na generalidade dos casos, mas nos casos de
transmissão da empresa do autor da sucessão já a solução necessita de
complementações. Assim, é necessário distinguir consoante o de cujus tenha ou
não disposto, por escrito, sobre o ponto, prevalecendo, em princípio, a sua
vontade (art.º 31.º, n.º 2). Dizemos em princípio, porque a protecção da lei
explica-se por poderem estar em causa direitos de personalidade do de cujus, o
que se verificará caso a firma seja composta, total ou parcialmente, com o seu
nome. Já se a firma não foi composta com o nome do de cujus, é, por hipótese,
15 Cfr. Ferrer Correia, 1973, p. 276; J.Gierke, 1957, p. 151.
uma firma de pura fantasia ou limita-se a indicar o objecto da empresa (firma-
denominação), as razões da tutela da lei não se verificam, pelo que não faria
sentido obrigar-se os herdeiros a respeitar a vontade do de cujus16. Caso o de
cujus não tenha deixado disposição sobre a questão, o consentimento para a
transmissão da firma compete à maioria dos herdeiros, quer se trate de
transmissão para terceiro quer se trate de adjudicação da empresa a um ou alguns
dos herdeiros (art.º 31.º, n.º 2).
No caso de se tratar de firma de sociedade comercial composta com o
nome de sócio, a transmissão da firma não está sujeita, em princípio, à
necessidade do consentimento do sócio, contrariamente ao que sucedia no direito
pretérito, em que tal consentimento era obrigatório. O consentimento do sócio só
será necessário, caso isso tenha sido acordado e exarado no pacto social (art.º
31.º, n.º 3). A solução da lei decorre do facto de que, contrariamente ao que
sucedia em face do regime legal da firma no Código Comercial de 1888, já não
existir em nenhum tipo social a obrigatoriedade de a firma ser composta com o
nome de sócios. Por outras palavras, a utilização do nome de sócios na firma é
meramente facultativa. Por conseguinte, se o sócio consentiu que o seu nome,
sem a tal estar obrigado, figure na firma, sabe que fica sujeito a que a firma seja
transmitida sem que tenha de ser ouvido sobre o caso. Se quer permitir a inclusão
do seu nome na firma e, simultaneamente, assegurar-se o direito de impedir a
transmissão da firma inalterada, isto é, com o seu nome, deve ter o cuidado de
fazer estipular nos estatutos essa sua prerrogativa.
Em qualquer circunstância, o sócio, cujo nome figure na firma, deixará de
responder pelas dívidas sociais, naquelas sociedades em que aos sócios é
cometida tal responsabilidade, a partir do registo e publicação do acto de
transmissão (art.º 31.º, n.º 4). Esta solução da lei, supunha o registo de todo e
qualquer acto de negociação da empresa, como inicialmente estava previsto no
art.º 103.º. Acontece que, como já se referiu, a regra foi alterada, não sendo agora
os actos de alienação definitiva da empresa (vulgo trespasse), sujeita a registo,
sendo que nenhum acto de negociação o é a publicação. Assim sendo, só resta ao
16 Cfr. Canaris, 2000, p. 226.
sócio provocar ele próprio esse registo, se quiser aproveitar da faculdade que a lei
lhe faculta no n.º 4 do art.º 31.º.
3.2.1.5. Invalidade da firma
A firma pode ser inválida, quer porque se verifica uma nulidade na sua
composição quer porque se verifica uma anulabilidade. A firma é nula quando
tenha sido composta em violação de regras legais imperativas. Assim, a violação
do princípio da verdade, consagrado no art.º 15.º, bem como a violação da
obrigatoriedade da composição numa das línguas oficiais (art.º 17.º), ou do art.º
18.º, tornam a firma nula (art.º 33.º, n.º 1).
A nulidade tem de ser decretada pelo tribunal, por força do n.º 2 do art.º
33.º; sentença, esta, que está sujeita a registo e publicação (n.º 3 do art.º 33.º).
A firma pode também ser anulada, a requerimento do interessado (n.º 2 do
art.º 34.º), em acção judicial intentada no prazo de três anos a contar do registo,
quando de boa fé (se o registo foi feito de má fé, a acção judicial não prescreve –
art.º 34.º, n.º 3) (art.º 34.º, n.º 2), quando na sua composição tenham sido violado
os direitos de terceiros, nomeadamente o princípio da novidade (art.º 34.º, n.º 1).
A sentença de anulação da firma está, tal-qualmente a de nulidade da firma,
sujeita registo e publicação (art.º 34.º, n.º 4). Trata-se em ambos os casos de
assegurar que o registo representa uma representação fidedigna da situação dos
empresários e das empresas a que respeita, em ordem à protecção do tráfico
mercantil.
3.2.1.6. Extinção do direito à firma
A firma pode ainda extinguir-se por caducidade, nos casos indicados no
art.º 35.º. Assim, o encerramento e liquidação da empresa, a dissolução e
liquidação da pessoa colectiva ou o seu simples não uso por um período superior
a três anos, determinam a caducidade da firma, porquanto a mesma foi criada
para distinguir um concreto sujeito, o empresário, no exercício daquela empresa.
Extinguida esta, a causa daquela desaparece, daí que a firma se deva considerar
extinta com aquela. Sendo a firma um bem acessório do exercício da empresa,
não existe em si e por si, mas tão só enquanto meio de contradistinção para o
exercício de uma empresa, enquanto estratégia da sua afirmação, acreditação no
mercado, percebe-se que o seu destino esteja inextrincavelmente ligado àquele
exercício: extinto este, extinta a firma, como lógica decorrência daquela sua
ligação umbilical.
O facto do simples não uso também determinar a extinção da firma por
caducidade também se explica por causa daquela inextricável ligação funcional
entre a firma e o exercício de uma empresa. A firma, disse-se, não constitui um
bem em si e por si, desde logo apenas pode ser negociado com a empresa a cujo
exercício anda ligada, como tal não pode subsistir à margem daquele exercício;
mais, à margem de um qualquer exercício empresarial. A firma é, assim,
funcionalmente dependente de um exercício empresarial; este é o sustento
energético daquela, desaparecido aquele, a firma extingue-se por inanidade. Isto,
apesar de a firma ser objecto de um direito absoluto17, e estes não se extinguirem
com o simples não uso, pois o não uso é ainda uma firma de uso.
A caducidade da firma necessita de ser declarada pela conservatória
competente, a pedido de qualquer interessado (art.º 36.º, n.º 1), não opera, pois,
oficiosamente. A conservatória dará um prazo de um mês, ao titular inscrito, para
responder, caso queira (art.º 36.º, n.º 2). Caso julgue verificados os factos
fundamento da caducidade, indicados no art.º 35.º, a conservatória declarará a
caducidade e averba-la-á oficiosamente (art.º 36.º, n.º 3 e 5). Desta declaração de
caducidade cabe recurso para o tribunal. Tornando-se definitiva a declaração de
caducidade, a firma respectiva fica livre, podendo ser objecto de novo pedido de
registo, a favor de novo titular, nos termos gerais.
Finalmente, o direito à firma, enquanto direito disponível, pode ser
objecto de renúncia do seu titular, mediante declaração por escrito à
conservatória competente (art.º 37.º, n.º 1 e 2).
17 Cfr. Ferrer Correia, 1973, p. 281.
3.3. Escrituração mercantil e prestação de contas
3.3.1. Enquadramento e fundamentos
Todo o empresário comercial está obrigado a ter escrita organizada,
adequada à sua empresa, que permita o conhecimento cronológico de todas as
suas operações, bem como à elaboração periódica de balanços e inventários (art.º
38.º), e, especialmente, a permitir conhecer com clareza a representação
fidedigna do seu património, da sua situação financeira e dos resultados da
exploração da sua empresa, em conformidade com as disposições legais (art.º
54.º, n.º 2)18.
A obrigação de o empresário ter escrita organizada é-lhe imposta no seu
próprio interesse, e, indirectamente, no interesse dos terceiros (credores) que com
ele têm relações comerciais, e no interesse da própria RAEM, interessada em
conhecer a verdadeira situação e os resultados da exploração da empresa19.
A contabilidade foi e continua a ser um elemento fundamental para
aperfeiçoar o funcionamento da empresa, porque através dela o empresário fica
não só em condições de conhecer a sua situação patrimonial e o estado dos seus
negócios, mas também, com base na informação que a contabilidade encerra,
programar a sua linha de conduta futura, de modo mais racional. Por outro lado,
se a contabilidade é verdadeira, está bem organizada e elaborada, e representa
uma representação fidedigna do seu património, da situação financeira e dos
resultados da exploração da empresa, isso é benéfico para o interesse geral. A
RAEM está interessada em conhecer a verdadeira situação patrimonial dos
empresários, não só por razões fiscais, dado que estes são os seus principais
contribuintes, mas também para a atribuição de benefícios fiscais, subvenções,
etc., bem como para efeitos da qualificação da falência, sabido que esta pode
constituir crime (art.ºs 223.º, 224.º e 225.º do Cód. Penal). Mas a contabilidade
devidamente ordenada protege também, indirectamente embora, os credores do 18 Cfr. Manuel Broseta Pont, Fernando Martínez Sanz, Manual de derecho mercantil, vol. I, 11.ª ed., TECNOS, 2002, p. 101; Canaris, 2000, p. 272. 19 Idem, ibidem; Peter Jung, Handelsrecht, 5.ª ed.ª, Verlag C.H.Beck, 2006, p. 180.
empresário, quer os actuais quer os futuros, pois a sua decisão, de concederem ou
não crédito ao empresário, dependerá da situação patrimonial que este apresente.
Situação patrimonial, esta, para cujo conhecimento se afigura de fundamental
importância a documentação e registo das operações mercantis do empresário,
isto é a sua contabilidade. Finalmente, a contabilidade é de primacial relevo para
os sócios das sociedades comerciais e membros dos demais empresários
comerciais, pessoas colectivas, pois dela dependerá a exacta determinação dos
lucros de exercício, com base nos quais será efectuada a repartição do dividendo
(art.º 198.º, n.º 2)20.
A última nota referida logo nos alerta para o facto de que a escrita
mercantil se imbrica inextrincavelmente com a obrigação de prestação de contas,
que a lei comete aos empresários, e que assume a sua relevância máxima em sede
de sociedades comerciais. Justamente por isso é que, p.e., Canaris21 considera a
escrita mercantil (Handelsbücher), como parte de uma mais geral obrigação de
prestação de contas (Rechnunglegung), e nesse contexto expõe o tema.
A disciplina legal baseia-se nas disposições do anterior Código Comercial,
que simplificou substancialmente (v.g., diminuiu os livros obrigatórios), mas
também nas disposições do Anteprojecto de Lei das Sociedades Comerciais
respeitantes às contas anuais, e, muito especialmente, na directiva comunitária n.º
78/600/CEE, de 25 de Julho de 1978 (4.ª directiva sobre sociedades), sobre as
contas anuais das sociedades de capitais. Embora a referida directiva se referisse,
como disse, apenas às sociedades de capitais, tendo em conta que a maioria dos
empresários comerciais são sociedades, e dentro destas sociedades de capitais
(anónimas ou por quotas), por um lado, que os demais tipos societários são
irrelevantes em Macau e que os empresários individuais são em regra pequenos
empresários, e por isso, lhes seriam inaplicáveis as disposição relativas à
obrigação de ter escrita organizada (art.º 13.º, n.º 1), entendeu-se generalizar a
20 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 104. 21 2002, p. 270.
aplicação das referidas exigências a todos os empresários, e, por conseguinte,
incluiu-se o essencial da disciplina em questão no Código Comercial22.
3.3.2. Livros obrigatórios
A escrita mercantil é efectuada com o apoio de um conjunto de livros,
impostos por lei, e, por isso, ditos obrigatórios. Os livros obrigatórios são os
indicados no n.º 1 do art.º 39.º (na redacção da Lei n.º 6/2000): o livro de
inventário e balanços e os demais que sejam fixados por ordem executiva. Não
era assim na redacção original do preceito, pois então prescrevia-se, para além do
livro de inventário e balanços, um livro do diário e não se fazia qualquer
referência a livros impostos por ordem executiva.
A exclusão do livro do diário do n.º 1 do art.º 39.º levantava uma dúvida
quanto ao exacto alcance da medida, porquanto a lei continuava a prever a função
e o modo de escrituração do mesmo, no art.º 43.º. Esta situação foi saneada pela
Lei n.º 16/2009, que revogou este preceito. Apesar de a função do livro do diário
ser a de registo quotidiano das operações praticadas, como base para a elaboração
dos futuros balanços, ter-se-á julgado que, porventura, esses registos podem ser
assegurados sem o recurso a este livro.
Quanto aos livros que sejam impostos por ordem executiva, o que se pode
dizer é que se tratou de repetir aquilo que já se dizia, e continuou a dizer aliás, no
n.º 5 do art.º 39.º, na medida em que as ordens executivas se enquadram dentro
das disposições especiais (como os regulamentos administrativos e as leis da
AL), a que a lei se refere no n.º 5. Fez bem, por isso, a lei (Lei n.º 16?2009) ao
dar nova redacção ao n.º 1 do art.º 39.º, em que se já não faz menção à ordem
executiva. A mesma lei deu também nova e mais elegante redacção ao n.º 2.
22 Acompanhou o legislador a opção do legislador espanhol que, pelos mesmos motivos, incluiu no Código Comercial as normas resultantes da transposição da directiva comunitária em questão (cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 102. Idêntico procedimento se adoptou na Alemanha, tendo a transposição da 4.ª directiva, bem como das 7.ª e 8.ª directivas sobre sociedades, respeitantes, respectivamente, a balanço dos grupos de sociedades e a auditoria, levado à reforma de 1986 do HGB, com a introdução de um novo Livro III, dedicado à escrituração mercantil (cfr. Canaris, 2000, p. 269; K.Schmidt, 1997, pp. 439, 440).
Aos indicados no n.º 1 do art.º 39.º, acrescem, para os empresários pessoas
colectivas, livros de actas (art.º 39.º, n.º 2) (da assembleia geral, do conselho de
administração, do conselho fiscal – art.º 252.º, n.º 1, als. a), b) e c)), o livro de
registo de ónus, encargos e garantias (art.º 252.º, n.º 1, al. d)), o livro de registo
de acções (art.º 252.º, n.º 1, al. e)), o livro de registo de emissão de obrigações
(art.º 252.º, n.º 1, al. f)). Estes três últimos tipos de livros obrigatórios
representam exemplos de livros impostos por disposições especiais, a que faz
referência o n.º 5 do art.º 39.º. A par destes, prevê a lei a possibilidade de os
empresários utilizarem outros livros (v.g. livro do razão, onde os elementos, que
são de incluir no livro do diário, aparecem em contas de Deve e Haver, por forma
a facilmente se conhecer a situação económica do empresário), consoante assim o
entendam conveniente (art.º 39.º, n.º 5).
O livro de inventários e balanços abre com um balanço inicial e detalhado
da empresa (do que é que a constitui) e nele são lançados os balanços a que
empresário está obrigado por lei (art.º 42.º).
3.3.3. Formalidades e requisitos externos da escrituração
A diferença entre livros obrigatórios e não obrigatórios reside na
circunstância de, relativamente àqueles que considera obrigatórios, a lei
estabelecer particulares cautelas destinadas a assegurar a fidedignidade da
informação neles contida. Assim, impunha a sua legalização (art.º 40.º, n.º 1) por
intermédio de notário23 ou do conservador do registo comercial (art.º 41.º). A lei
n.º 6/2000 veio permitir que a legalização dos livros obrigatórios possa ser
efectuada por qualquer membro da gerência24 ou administração, devidamente
23 O que representa uma novidade relativamente ao direito pretérito em que apenas o conservador do registo comercial podia efectuar a legalização dos livros obrigatórios, tal qual ainda sucede hoje em Portugal. Pretendeu a lei aproveitar do facto de em Macau existir o regime de notariado privado, por um lado, e de a maioria dos advogados serem notários privados, por outro, para, sem cedências às exigências de rigor, agilizar a legalização dos livros de escrituração mercantil obrigatórios. 24 A lei quer referir a gerência órgão das sociedades, não o gerente, a que se referem os art.ºs 64.º ss. Na verdade, a lei introduziu, no art.º 383.º, um novo n.º 2 (dizemos que introduziu um novo n.º 2, porquanto, embora o art.º 383.º já tivesse um n.º 2, o conteúdo do novo n.º 2 nada tem que ver com o anterior, não representando uma mera alteração de redacção, mas sim um verdadeira revogação do anterior e
autorizado (Por quem? Pelos restantes membros do órgão, todos apenas a
maioria? E se o órgão for singular? Pela Assembleia Geral?), ou pelo secretário
(da sociedade). Por conseguinte, a lei n.º 6/2000 veio estender para os livros, em
sentido estrito, a faculdade que admitia para os livros compostos por folhas soltas
(infra). A partir de agora, a legalização apenas será efectuada por notário ou pela
conservatória quando se trate de empresários individuais, pois não é crível que,
podendo-o fazer directamente sem custos e sem demoras, os interessados vão
requerer a terceiros (notário ou conservador) a legalização dos seus livros.
A lei, atendendo à crescente divulgação e utilização dos meios
informáticos, para permitir a impressão da informação arquivada em computador,
já tinha admitido que os livros pudessem ser constituídos por folhas soltas (art.º
39.º, n.º 3). As quais, em conjuntos de 60, devem ser numeradas sequencialmente
e rubricadas pela gerência ou administração ou secretário, que também lavram os
termos de abertura e de encerramento (art.º 39.º, n.º 4). Contudo, continuava a
exigir a legalização das folhas soltas, agrupadas em conjuntos de 60 e, depois de
devidamente numeradas, rubricadas e com os respectivos termos de abertura e de
encerramento lavrados (art.º 39.º, n.º 4, in fine). A legalização consistiria nesse
caso na assinatura, pelo notário ou conservador, ou quem este representasse, dos
termos de abertura e de encerramento (art.º 40.º, n.º 2). A partir da lei n.º 6/2000,
já não existe esta última exigência legal.
No fundo, tratou-se de alargar a todos os livros, independentemente da sua
composição, da faculdade conferida aos interessados relativamente aos livros
constituídos por folhas soltas e de afastar a necessidade da intervenção do notário
ou do conservador. Ora, a comissão da legalização a um terceiro, oficial público
ou dotado de fé pública, visava assegurar a integridade e incolumidade dos livros
obrigatórios, o que não é seguro que esteja assegurado no novo sistema. O que é
que impede os interessados de terem vários livros, para poderem manipular a sua
contabilidade a seu bel prazer, se são eles mesmos que os legalizam?
introdução de um novo n.º 2), que permite que os estatutos das sociedades por quotas (e as outras não podem?) possam prever outras designações para os administradores, como, p.e., directores, gerentes.
A legalização consiste na assinatura dos termos de abertura e de
encerramento, na indicação, na última folha25, do número de folhas que o livro
contem e na numeração e rubrica de cada uma das folhas que compõem o
respectivo livro (art.º 41.º, n.º 2).
Permite ainda a lei que a escrita mercantil possa ser levada
exclusivamente em termos informáticos, ou seja, sem necessidade da reprodução
da informação respectiva em folhas soltas. Antes da Lei n.º 16/2009, isso
resultava inequivocamente do art.º 46.º, n.º 3 que expressamente referia tal forma
de manutenção da escrituração mercantil, contanto que se conformasse com os
princípios de uma contabilidade ordenada (art.º 46.º, n.º 3). Para tal era
necessário assegurar que a informação, arquivada em suporte informático, ficasse
acessível durante o período de conservação obrigatória, que era de 10 anos (art.ºs
46.º, n.º 4, 49.º, n.º 1), e agora passou a 5. Os n.º 3 e 4 do ar.º 46.º foram,
contudo, revogados pela Lei n.º 16/2009, mas não o seu conteúdo que passou a
constituir o n.º 3 do art.º 49.º. O que, aliás, é confirmado pelo n.º 6 do art.º 46.º,
que se refere à legalização dos livros em suporte informático, dizendo-se aí que a
mesma está sujeita à adopção de procedimentos que garantam a inalterabilidade
da informação neles contida. Por outro lado, foi dada nova redacção ao art.º 47.º,
passando aí a prever-se não só, como até agora a microfilmagem dos documentos
de suporte da escrituração, mas também à sua passagem para suporte electrónico.
Contudo, a deslocalização do conteúdo dos n.ºs 3 e 4 do art.º 46.º, , para o art.º
49.º, que trata do prazo da conservação, não parece acertada, porquanto a
manutenção da escrituração em suporte electrónico é questão que se prende com
a forma da conservação (v.g., em papel, em suporte electrónico?), tratada no
referido art.º 46.º, não com o problema do prazo pelo qual deve ser conservada,
que constitui o objecto do art.º 49.º, pelo que era ali que correctamente estava
ubiquada.
Quanto aos requisitos externos da escrituração, determina a lei que os
livros devem de ser lavrados com clareza, por ordem cronológica, sem espaços
em branco, interpolações, emendas ou rasuras, não podendo ser utilizados
25 Na redacção original, dizia-se que esta indicação era efectuada na primeira folha de cada livro.
códigos, siglas ou abreviaturas cujo significado não seja claro relativamente à lei
(art.º 46.º, n.º 1, 1ª parte e in fine). Os erros ou omissões devem ser corrigidos,
imediatamente após a sua descoberta, sendo que, se for necessário efectuar o
cancelamento de algum registo, este deve ser realizado de forma a que o registo
cancelado se mantenha legível (art.º 46.º, n.º 1).
A escrituração mercantil, para além de poder ser conservada em suporte
informático, pode ainda ser microfilmada, substituindo os microfilmes os
originais para todos os efeitos (art.º 47.º). As fotocópias e as ampliações obtidas a
partir do microfilme têm a força probatória do original, contanto que contenham
a assinatura do responsável pela microfilmagem, devidamente autenticada (art.º
48.º).
O empresário estava ainda obrigado a conservar a sua escrituração
mercantil (livros, correspondência, documentos e demais justificativos relativos à
sua empresa), devidamente ordenados, pelo prazo de 10 anos, a partir do último
assento lavrado nos livros, sem prejuízo do disposto em disposições especiais
(art.º 49.º, n.º 1). O prazo de 10 anos, que, recorde-se, reduziu a metade o anterior
prazo de 20 anos fixado no art.º 40.º do Código Comercial de 1888, era fixado
por coordenação com o prazo de prescrição do procedimento penal, fixado na al.
c) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 110.º do Cód.Penal, atento a que, nos termos do art.º
223.º, n.º 1, a falência intencional é punida com pena de prisão até cinco anos.
Esta obrigação do empresário mantinha-se, mesmo após a cessação do
exercício da empresa, até ao decurso do prazo de 10 anos, e mesmo que o
empresário tivesse falecido, devendo neste caso a conservação da escrita
mercantil ser assegurada pelos herdeiros, e, tratando-se de empresário comercial,
pessoa colectiva (v.g. sociedade, agrupamento de interesse económico) pelos
liquidatários (art.º 49.º, n.º 2), embora o prazo de conservação, neste caso e só
neste caso, fosse apenas de 5 anos, por força do art.º 322.º, n.º 2. “Tendo em
conta que é este prazo de 5 anos o fixado pela pela lei fiscal para a conservação
dos livros de escrituração, talvez fosse conveniente uniformizar estas
disposições”, escrevíamos nós ao tempo. Esta uniformização foi efectuada
recentemente pela Lei n.º 6/2009, de 10 de Agosto, pelo que o prazo de
conservação dos livros de escriuração mercantil é agora de apenas 5 anos.
3.3.4. Contas anuais ou de exercício
O empresário está ainda obrigado, no seguimento da obrigação de levar
escrituração mercantil ordenada, e agora numa perspectiva de prestação de
contas, a elaborar as contas anuais ou de exercício, no prazo de 3 meses a contar
do encerramento do exercício, que compreenderão o balanço, a conta de ganhos e
perdas e o anexo (art.º 54.º, n.º 1). O balanço compreende, com a devida
separação, os bens e direitos que constituem o activo da empresa e as obrigações
que formam o passivo da mesma, especificando os fundos próprios (art.º 55.º, n.º
1, 1.ª parte). Nos termos da parte final do n.º 1 do art.º 55.º, o balanço de abertura
de um exercício deve corresponder ao balanço de encerramento do exercício
anterior (princípio da identidade).
O balanço de exercício permite conhecer a situação patrimonial resultante
da exploração da empresa, num dado momento (dimensão estática)26.
A conta de ganhos e perdas constitui um complemento do balanço e
compreende, com a devida separação, os proveitos e os custos do exercício e, por
diferenças, o resultado, positivo ou negativo, do mesmo, ou seja, a existência de
ganhos (lucros) ou perdas, distinguindo os resultados ordinários, aqueles que
resultam da exploração da empresa, dos resultados extraordinários, aqueles que
não resultam daquela exploração (v.g. a venda de um imóvel, no caso de um
empresário têxtil) (art.º 55.º, n.º 2).
A conta de ganhos e perdas, contrariamente ao balanço, não permite
conhecer apenas a situação patrimonial num dado momento, mas sim o
desenvolvimento da situação patrimonial ao longo do exercício, permitindo
determinar a utilização dada aos recursos e a causa dos lucros ou perdas
verificadas (dimensão dinâmica)27.
26 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 106. 27 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, idem, p. 106.
Ao balanço e à conta de ganhos e perdas acresce ainda o anexo que
completa, amplia e explica a informação contida naqueles (art.º 55.º, n.º 3, 1.ª
parte). Assume basicamente uma função explicativa da informação contida quer
no balanço, quer na conta de ganhos e perdas.
As contas anuais são elaboradas pelo empresário, como aliás toda a
demais escrituração mercantil, ou por alguém por sua indicação, e devem ser
redigidas com clareza, de modo a mostrar a representação fidedigna 28 do
património (true and fair view)29, da situação financeira e dos resultados da
empresa (art.º 54.º, n.º 2). A necessidade de as contas revelarem a representação
fidedigna do património é o princípio cardinal nesta matéria, de tal sorte que, se a
aplicação das normas legais não for suficiente para assegurar a imagem fiel do
património, devem as mesmas ser complementadas com as informações
necessárias a atingir aquele desiderato (art.º 54.º, n.º 3), podendo até determinar a
inaplicação de normas jurídicas, em princípio, aplicáveis, quando da aplicação
destas possa resultar uma distorção daquela imagem (art.º 54.º, n.º 4, 1.ª parte).
Quanto aos critérios valorimétricos a utilizar na redacção das contas
anuais, os mesmos são determinados por lei, em ordem a permitir que as contas
de todos os empresário sejam normalizadas para poderem ser comparadas30, e
correspondem aos princípios de contabilidade geralmente aceites (art.º 58.º, n.º
1). A lei indica, nas várias alíneas neste n.º 1, algumas das regras que devem ser
observadas para a redacção das contas anuais: a presunção de que a empresa
continua em funcionamento (princípio da continuidade formal), que os critérios
valorimétricos não se alteram de ano para ano (princípio da consistência), que é
observada a adequada prudência valorativa (princípio da prudência), que os
custos e os lucros são imputados ao exercício em que se verificaram,
independentemente do momento da data do pagamento ou da cobrança (princípio
da especialização ou acréscimo), que os vários elementos integrantes das diversas
rubricas do activo e do passivo, são valorizados autonomamente (princípio da
28 Esta expressão foi introduzida pela Lei n.º 16/2009, em substituição da expressão “imagem fiel”. Nada a dizer, porquanto a nova expressão parece mais rigorosa e técnica, o que se aplaude. 29 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, idem, p. 106; K.Schmidt, 1997, p. 461. 30 Idem.
avaliação individual), que os elementos do activo imobilizado e do activo
circulante são contabilizados pelo custo de aquisição ou custo de produção
(princípio do custo histórico). Em caso de conflito, prevalece a regra da
prudência valorativa, que obriga a indicar no balanço apenas os lucros já
realizados na data do seu encerramento (princípio da realização), a ter em conta
os riscos previsíveis e as perdas eventuais com origem no exercício ou em
exercício anterior, distinguindo-se as realizadas ou irreversíveis das potenciais ou
reversíveis e a ter em conta as depreciações (princípio da materialidade) (art.º
58.º, n.º 2). Em situações excepcionais, estes princípios podem não ser aplicados,
devendo a sua inaplicação ser fundamentada no anexo, e explicada a sua
influência sobre o património, a situação financeira e os resultados da empresa
(art.º 58.º, n.º 3).
As contas anuais devem ser assinadas pelo empresário, ou, tratando-se de
empresário comercial, pessoa colectiva, por todos os seus administradores (art.º
57.º, n.º 1, als. a) e b)). Ao assinarem as contas anuais, as pessoas a quem a lei o
impõe, assumem o seu conteúdo e eventuais inexactidões, independentemente de
terem sido ou não eles que as elaboraram31.
3.3.5. Valor probatório da escrituração mercantil
A escrituração mercantil devidamente organizada pode ser utilizada pelo
empresário como meio de prova contra outros empresários, nas condições
indicadas no art.º 51.º. A lei supõe que se a escrituração está devidamente
elaborada e organizada, então os factos que reporta são verdadeiros. Com isto a
lei permite ao empresário fazer prova com factos que ele própria cria. Trata-se de
faculdade que a lei em nenhum outro local atribui, o valor de prova dos vários
factos é determinado pela própria lei, mas não pode ser determinado directamente
pelos próprios interessados. Quer dizer, em regra, os interessados não podem
atribuir valor probatório aos seus próprios factos, não podem criar a sua própria
prova. Pois bem, no âmbito da actividade mercantil, supõe a lei que os
31 Idem.
empresários, sendo pessoas diligentes e zelosos dos seus interesses, ao registarem
os factos do seu comércio fazem-no porque os mesmos são verdadeiros. E como
verdadeiros os considera a lei para efeitos de prova contra outros empresários,
que, de duas uma, ou apresentam assentos contabilísticos devidamente ordenados
de sinal contrário aos que resultam dos assentos do primeiro ou então verão ser
contra eles prevalecente o sentido que dos registos deste resultam contra si (art.º
51.º, n.º 1, al. b) e c)), se não apresentarem prova em contrário. Quer dizer,
mesmo que, de acordo com as regras gerais de distribuição do ónus da prova,
incumbisse ao empresário fazer a prova dos factos que invoca, se ele apresenta a
sua escrituração mercantil devidamente organizada, basta-lhe invocar os assentos
constantes dos seus livros de escrituração, para que passe a ser a contraparte a ter
de demonstrar que a materialidade invocada não corresponde à realidade. Se este
tem, também ele, a sua escrituração mercantil regularmente arrumada, e da
mesma constam assentos que contrariam os assentos do outro, volta-se à primeira
fase: é o empresário que pretende invocar certo direito que terá de fazer prova
dos factos constitutivos, e a correr consequentemente o risco da não prova. Se o
empresário, contra o qual se invocam certos assentos contabilísticos, tem
escrituração mercantil organizada, mas não apresenta assentos opostos aos do
outro (al.b do n.º 1 do art.º 51.º), ou se não tem a sua escrituração devidamente
ordenada, ainda que dela constem assentos opostos aos da outra parte (al.c) do n.º
1 do art.º 51.º), então só através dos meios gerais pode infirmar a materialidade
que daqueles flui. Não o conseguindo, verá prevalecer contra si aqueles assentos,
com as inerentes consequências.
Os assentos constantes dos livros de escrituração mercantil, devidamente
arrumados, farão prova também contra o empresário que, em vez de apresentar
escrita desorganizada, pura e simplesmente não tem os livros de escrituração, que
está obrigado a ter, ou se recusa a apresentá-los, salvo se a falta dos livros se
dever a caso de força maior (v.g. furto, incêndio), e sem prejuízo do recurso aos
meios gerais de prova (art.º 51.º, n.º 2).
Os assentos contabilísticos do empresário que lhe sejam desfavoráveis,
mesmo quando este não tenha a sua escrituração mercantil devidamente
arrumada, fazem prova contra ele (al.a) do n.º 1 do art.º 51.º), pois presume a lei
que, tendo a escrita desorganizada, se mesmo assim nela registou certo facto que
lhe é adverso é porque o mesmo é verdadeiro. Contudo, aquele que de tais factos
se pretenda prevalecer tem também de suportar os factos registados que lhe sejam
desfavoráveis, a despeito da desorganização da escrita mercantil da contraparte
(art.º 51.º, n.º 1, al. a), in fine). Não pode pois escolher os que lhe são favoráveis
e desconsiderar os adversos: ou tudo ou nada.
3.3.6. Carácter secreto da escrituração mercantil
A escrituração mercantil é secreta, não podendo ser objecto de devassa
sem prévio consentimento do empresário, sendo certo que sobre aqueles que, em
virtude das suas funções, tomam conhecimento da mesma impende um dever de
segredo. A lei, em certas circunstâncias, as indicadas no n.º 2 do art.º 52.º,
permite que, mesmo contra a vontade do empresário, a escrituração possa ser
consultada e examinada (exame geral), a requerimento de quem nisso tenha
interesse [v.g. os herdeiros, os credores do falido, os sócios em nome colectivo
(art.º 336.º, n.º 1)] ou oficiosamente. Fora desses casos, o exame da escrita é
sempre particular, ou seja, limitado aos aspectos relacionados directamente com
o assunto em discussão, e apenas possível desde que o empresário respectivo
tenha interesse ou responsabilidade no assunto. O que logo nos diz que a
exibição só pode verificar-se compulsivamente em sede da competente acção
judicial (art.º 52., n.º 3).
O exame da escrituração mercantil será efectuado de forma a limitar o
mais possível os riscos de devassa, devendo o mesmo ocorrer na empresa e na
presença do empresário ou de quem o represente (art.º 53.º, n.º 1). Aquele a quem
a lei confere o direito de exame, quer geral quer particular, poderá fazer-se
acompanhar por técnicos auxiliares, na forma e número que o tribunal entender
conveniente (n.º 2 do art.º 53.º). Pretende a lei assegurar o exercício material do
direito de exame e não apenas o exercício formal, porquanto, implicando a
compreensão da escrituração mercantil especiais qualificações, sempre que o
interessado as não possuísse, ver-se-ia impedido, de facto, de exercer o seu
direito.
3.3.7. Auditoria das contas anuais
Para além de em certas circunstâncias, limitadas embora, a lei permitir o
exame, quer geral quer particular, da escrituração mercantil do empresário,
também admite, e por vezes determina, a possibilidade de as contas anuais
(balanço, conta de ganhos e perdas e anexo) serem auditadas. Umas vezes, a lei
impõe que as contas anuais sejam sempre auditadas [v.g. contas anuais das
Seguradoras (art.º 88.º, n.º 1 do D/L n.º 27/97/M, de 30 de Junho), dos Bancos
(art.º 53.º, n.º1, do D/L n.º 32/93/M, de 5 de Julho) etc.], outras vezes, permite
que a requerimento de quem nisso demonstre interesse sério (v.g., quando um
sócio tiver fundadas suspeitas de graves irregularidades, pode requerer ao
tribunal exame judicial à sociedade, nomeando o tribunal um auditor de contas
para o efeito – art.º 211.º, n.ºs 1 e 2) o tribunal ordene que as contas anuais sejam
sujeitas a auditoria (art.º 60.º, n.º 1). Neste último caso, o tribunal exigirá que o
requerente preste caução adequada a cobrir as custas processuais e despesas da
auditoria, as quais ficarão a cargo do requerente, quando não se encontrem vícios
ou irregularidades (art.º 60.º, n.º 2).
4. Obrigação de registar certos factos
A lei determina a necessidade de o empresário registar certos actos (art.º
12.º, al. c)), para tal institui o registo comercial destinado a dar publicidade à
situação jurídica dos empresários e das empresas comerciais, tendo em vista a
segurança do comércio jurídico (art.º 61.º).
Na verdade, o exercício da empresa traduz-se na prática de actos em
massa, o que origina a estipulação de inúmeras relações com terceiros; além
disso, os empresários recorrem intensamente ao crédito, potenciam a sua
intervenção jurídica no mundo económico através de gerentes, utilizam firmas,
por vezes de mera fantasia (art.º 22.º, n.º 1, al. c)), firmas, essas, que podem ter
pertencido a outrem (art.º 31.º); por outro lado, as empresas são objecto de um
direito de propriedade (art.º 95.º), e podem ser objecto de vários negócios, tudo
circunstâncias que aconselhem um adequado sistema de publicidade que permita
aos terceiros facilmente conhecerem a situação jurídica dos empresários e
respectivas empresas.
Esse sistema de publicidade jurídica é, justamente, assegurado pelo registo
comercial, cujo regime jurídico, para lá das duas disposições (art.ºs 61.º e 62.º)
que o Código Comercial lhe dedica, consta do D/L n.º 56/99/M, de 11 de
Outubro32, com as alterações resultantes da Lei n.º 5/2000, de 26 de Abril.
A função essencial do registo é dar publicidade a certos factos em ordem à
protecção da segurança do comércio jurídico, por isso, em regra, um acto sujeito
a registo, enquanto não registado, se produz efeitos entre as partes e seus
herdeiros, já não produz efeitos contra terceiros, a menos que estes os
conhecessem ou não devessem ignorar, atentas as circunstâncias (art.º 9.º, n.º 1,
CRC).
Em regra o registo tem um efeito meramente declarativo (art.º 8.º CRC),
em certos casos, porém, assume uma feição constitutiva (art.º 9.º, n.º 2). Assim,
v.g., as sociedades comerciais adquirem personalidade jurídica com a sua
inscrição no registo (art.º 176.º), o penhor de empresa só se considera constituído
com registo (art.º 145.º), o mesmo sucede com a garantia flutuante (art.º 931.º, n.º
2).
32 De ora em diante CRC.