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3º Seminário de Relações Internacionais: Repensando interesses e desafios para a inserção internacional do Brasil no Século XXI Área Temática: História das Relações Internacionais e História da Política Externa O Itamaraty e a comunidade de informações da ditadura militar brasileira Alessandra Beber Castilho (UNISANTOS) Florianópolis, 29 e 30 de setembro de 2016

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3º Seminário de Relações Internacionais: Repensando interesses e desafios para a inserção

internacional do Brasil no Século XXI

Área Temática: História das Relações Internacionais e História da Política Externa

O Itamaraty e a comunidade de informações da ditadura militar brasileira

Alessandra Beber Castilho

(UNISANTOS)

Florianópolis, 29 e 30 de setembro de 2016

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RESUMO

O trabalho tem como objetivo analisar o envolvimento do Ministério das Relações Exteriores com o

aparato repressivo da ditadura militar desde uma perspectiva histórica. Através da compreensão

maior do apoio civil ao golpe militar de 1964, este trabalho visa explicar de que forma parte do

corpo diplomático não apenas apoiou, mas tomou parte, de forma bastante ativa, na chamada

"luta antisubversiva". Através da pesquisa em fontes primárias, é possível determinar a criação do

Centro de Informações do Exterior (CIEX) e da Divisão de Segurança e Informações do Ministério

das Relações Exteriores (DSI/MRE) e sua ligação com a cadeia de comando do aparato repressivo

criado durante o regime militar.

Palavras chave: Relações civis-militares; Itamaraty; Ditadura Militar

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INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo analisar a relação entre o Ministério das Relações

Exteriores (MRE) - também conhecido como Itamaraty - e a comunidade de informações da

Ditadura Militar brasileira (1964-1985) através de seus dois braços atuantes durante o

período, a saber: o Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a Divisão de Segurança e

Informações do próprio ministério (DSI/MRE) e suas implicações para a política externa

brasileira do período.

Antes de partir para a análise propriamente dita do relacionamento entre essas

instituições e a comunidade de informações da ditadura militar, faz-se mister uma breve

recapitulação histórica acerca do Itamaraty enquanto instituição e sua relação com as

demais burocracias existentes dentro do Estado brasileiro, bem como a presença arraigada

do anticomunismo na mesma.

O Itamaraty pode ser classificado enquanto uma idea-infused institution, conforme

categorização apresentada por Drezner (2000). Tais instituições (também chamadas pelo

autor de instituições “missionárias”) podem ser caracterizadas da seguinte maneira: estão

estruturalmente insuladas com relação a outras agências burocráticas do Estado a que

pertence, o que permite a consolidação de uma cultura organizacional forte inspirada em

mitos fundadores, e um alto grau de autonomia decisória, em comparação a outras

instituições, cujos interesses tendem a ser dependentes das vontades de grupos de

interesses (DREZNER, 2000). Keohane e Goldstein (1993), ao analisar o papel das ideias

na formulação de política externa, deixam claro a importância da institucionalização das

ideias na tomada de decisão e futura implementação de políticas públicas, ou seja: a partir

do momento em que certa instituição “abraça” uma ideia, incorporando-a a sua cultura

organizacional, há a possibilidade de maior controle dos resultados políticos. Obviamente, a

escolha de uma determinada ideia por uma certa instituição não significa que ela seja a

melhor ou a mais forte, mas sim a que melhor atende os interesses e as demandas das

elites políticas daquela instituição (KEOHANE; GOLDSTEIN, 1993).

No caso das instituições “missionárias”, a forte cultura organizacional tende a agir

como um tecido impermeável a novas ideias, impedindo a (re)construção de sua memória

coletiva que não seja nos seus ditames (DREZNER, 2000). No caso do Itamaraty, isso é

percebido de forma clara no que tange a construção da memória acerca da sua atuação

durante o período ditatorial, cujo discurso oficial pretende fazer-nos crer que a nossa política

externa seguiu a busca pelos interesses nacionais, sendo guiada com total autonomia e

descolada dos acontecimentos internos do país.

De fato, o MRE gozou de grande autonomia em comparação a outros ministérios

durante o período do regime militar. Segundo Vizentini (2008), os diplomatas recebiam a

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alcunha de “militares à paisana”, sendo a instituição no seio do Estado brasileiro que talvez

menos sofreu com interferências das Forças Armadas. Segundo Barros (1986)

[...] O governo militar do Brasil caminhou em sentido oposto ao esperado: ao invés de o Ministério ser ocupado por militares, como aconteceu em outros países e como aconteceu em virtualmente todos os outros ministérios do Brasil, o movimento se deu em sentido oposto, isto é, foram os diplomatas que tiveram sua presença aumentada fora do seu próprio domínio profissional. Além dos preconceitos que os favorecem, um fator que propiciou o respeito dos militares pelos diplomatas (respeito esse que, em outros órgãos, os militares não demostram pelos burocratas) foi a estrutura da carreira que, na profissão diplomática, é bastante semelhante à dos militares profissionais (BARROS, 1986, pp. 31-32)

Apesar da baixa presença de militares dentro do Itamaraty – segundo Mathias (2004)

algo em torno de 7,5% - é preciso ter em mente que ambas as instituições – MRE e o

Estado Maior das Forças Armadas – são, tradicionalmente, um reduto de recrutamento das

elites tecnoburocráticas, com ambas possuindo centro de formação de excelência voltado

para a formação de quadros – o Instituto Rio Branco (IRB) e a Escola Superior de Guerra

(ESG), respectivamente. Ademais, o discurso diplomático brasileiro tende a se ancorar na

percepção das elites de que o Brasil está destinado a ser uma potência e, por isso, a política

externa deve servir aos interesses do Estado e não de governos (LIMA, 2005). A mesma

percepção é encontrada na época dentro da ESG, através da análise geopolítica feita por

seus quadros quando da criação da Doutrina de Segurança Nacional (DSN).

As semelhanças institucionais entre Itamaraty e Forças Armadas bem como seu

insulamento são, a nosso ver, pontos cruciais para compreender o envolvimento daquele na

comunidade de informações da ditadura militar.

IDEOLOGIA, POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNA (I): AS RELAÇÕES

INTERNACIONAIS DENTRO DA DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL

O golpe civil-militar de 1964, além de quebrar o hiato democrático vivido pelo país

desde 19451, foi responsável pelo fim do projeto nacional-reformista2 capitaneado por João

Goulart a partir da sua ascensão à presidência da república. Esse projeto, entre cujos

objetivos se encontravam o desenvolvimento do país aliado a redistribuição de renda e

reformas populares (DREIFUSS, 1981) possuiu um forte caráter emancipatório também no

1 Cf FIGUEIREDO (1980)

2 Em sua obra “1964: a conquista do Estado”, René A. Dreifuss (1981) divide os projetos de nação

correntes na sociedade brasileira do período em duas categorias. Primeiramente, há o que ele chama de pacto modernizante-conservador, o qual representava os interesses da burguesia nacional ligada ao capital estrangeiro, cuja tríade, composta pelas Forças Armadas, o empresariado nacional associado e a tecnoburocracia, propondo um modelo de desenvolvimento associado ao capital estrangeiro. Em segundo lugar, o projeto nacional-reformista que ganha força no início da década de 1960 com João Goulart explicado acima, que obteve apoio das camadas populares, da pequena e média burguesia e de setores do agronegócio nacionalistas.

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campo internacional, através da Política Externa Independente (PEI). A PEI, formulada

durante o governo Jânio Quadros, tinha como objetivo principal a superação do nosso

subdesenvolvimento e da dependência do país frente aos países do centro do sistema

capitalista, sem abdicar de nossa condição ocidental (QUADROS, 1961).

É de se esperar, portanto, que o golpe civil-militar propusesse um redirecionamento

da política externa. O bloco modernizante-conservador que ascendeu ao poder visava uma

modernização ao mesmo tempo em que objetivava um controle maior dos movimentos

sociais, sepultando a emergência de uma sociedade de massas, percebida pelos mesmos

como um dos fatores da erosão da sociedade capitalista brasileira (DREIFUSS, 1981). A

ascensão ao poder, entre outros fatores, foi permitida graças ao desenvolvimento de um

grupo de intelectuais orgânicos, em sua maioria membros das Forças Armadas que

estudaram na Escola Superior de Guerra.

A ESG surge em 1949, à imagem e semelhança dos War Colleges estadunidenses,

com a ambição de tornar-se o locus onde serão discutidas as concepções geopolíticas e

estratégico-militares do país (GONÇALVES; MIYAMOTO, 2000). Seu público alvo era

restrito – segundo Oliveira (1987, p. 53) “de formação universitária obrigatória, pessoas

pertencentes à burocracia estatal e privada”. Sua principal contribuição para o pensamento

geopolítico brasileiro reside na formulação da Doutrina de Segurança Nacional (DSN).

Através de seus pressupostos teóricos, a DSN foi capaz de justificar o caráter

interventor desempenhado pelas Forças Armadas na sociedade – a ideia de que elas têm a

obrigação de zelar pela segurança da nação (DREIFUSS, 1987), cujo maior inimigo à época

era o inimigo subversivo, o comunista. Ademais, a DSN possui uma concepção sui generis

das relações internacionais do Brasil que, embora tenha ganhado mais destaque durante o

governo Castello Branco (1964-1967) e sua “Teoria dos Círculos Concêntricos”, esteve

presente durante os 21 anos de existência do regime.

De acordo com os teóricos da DSN, com destaque a Golbery do Couto e Silva

(1981), considerado o grande ideólogo e eminência parda do regime (GASPARI, 2014), a

Guerra Fria e o conflito entre União Soviética e Estados Unidos teriam absorvido todos os

demais acontecimentos da política internacional, relegando-os a um papel coadjuvante

dentro do grande conflito. Dessa forma, não haveria alternativa para os países periféricos

senão o alinhamento, enxergando o mundo como “constelações feudais de estados-barões

rodeados de satélites e vassalos” (COUTO E SILVA, 1981, p. 22)3.

A política externa brasileira deveria, então, formular-se a partir de uma divisão

geopolítica do mundo, a que Golbery do Couto e Silva chamava de teoria dos hemiciclos.

Segundo esta concepção, as áreas de influência e interesse do Brasil estariam divididas

3 Percebe-se, aqui, a oposição a um dos princípios fundadores da PEI, que enxergava o Brasil como

país ocidental não-satelizável (QUADROS, 1961).

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entre o hemiciclo interior - Américas, a África Ocidental e a Antártida, onde se concentrariam

as maiores influências e parcerias da política externa brasileira e a “fronteira decisiva da

segurança sul-americana” (COUTO E SILVA, 1981. p. 82). O hemiciclo exterior

corresponderia ao resto do mundo ocidental, Europa, Oceania, bem como os países da

África Oriental, Oriente Médio e Japão. Contudo, a maior ameaça encontrada para a

segurança da América do Sul está localizada naquilo que a Doutrina de Segurança Nacional

chamou de hemiciclo perigoso, que compreenderia o eixo comunista Moscou-Pequim

(idem). Percebe-se, portanto, o avanço do movimento comunista como a maior ameaça à

nossa soberania. Dessa forma, fazia-se necessário a articulação e o alinhamento com os

Estados Unidos:

O que nos ameaça hoje, como ontem, é uma ameaça não dirigida propriamente contra nós, mas sim indiretamente contra os Estados Unidos da América, a qual, mesmo se a entendermos subestimar dando maior ênfase à praticabilidade ainda bastante discutível de um ataque transártico, nem por isso resulta insubsistente, além de que, de forma alguma, pode desmerecer a importância estratégica do Nordeste brasileiro, não para nós que nada queremos do outro lado do Atlântico, mas para os EUA, que já se engajaram a fundo na defesa da Europa, como plataforma de ataque ou simplesmente de salto por sobre o oceano ao continente africano onde desde já se situa, ao norte, o cinturão de importantes bases aéreas das quais se espera deter qualquer avanço comunista para oeste e martelar o coração industrial da Rússia (idem, p. 51)

O primeiro governo do regime militar seguiu à risca essa percepção das relações

internacionais. Castello Branco passou a definir a projeção internacional do país nos

mesmos termos de Golbery do Couto e Silva: ênfase na defesa do ocidente e dos valores

morais da cristandade, da democracia liberal e do capitalismo, em contraponto ao hemiciclo

perigoso representado pela União Soviética e pelo Comunismo.

A política externa do período, batizada de “Diplomacia dos círculos concêntricos”, foi

calcada em uma hierarquia de aproximações que deveria ser priorizada pelos formuladores

de política externa – respectivamente o Cone Sul, o continente americano e o mundo

ocidental (cristão, capitalista e democrático). Além da hierarquia de aproximações, havia a

tese da defesa coletiva e integral, em que países do bloco ocidental dividem funções em

auxílio aos Estados Unidos no combate ao “perigo comunista” (MARTINS, 1975). Vasco

Leitão da Cunha, chanceler do governo supracitado, teria afirmado que “o Brasil não

admitiria qualquer ação comunista em seu território, não pactuando com o comunismo no

continente americano” (apud GONÇALVES e MIYAMOTO, 2000, p. 188). Verifica-se,

portanto, uma correlação entre a política externa e o modelo político elitista, representando

“os interesses virtuais da burguesia internacionalizada” (MARTINS, 1975, p. 57).

O governo Castello Branco reduziu a intensidade das relações brasileiro-soviéticas,

rechaçou a aproximação com a China comunista que houve durante os tempos da PEI –

inclusive prendendo e torturando nove funcionários do escritório comercial chinês que

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funcionava no Rio de Janeiro (VIZENTINI, 2008). A aproximação com os Estados Unidos e o

respeito às fronteiras ideológicas levou a politica externa a afastar-se do ideal da integração

latino-americana visto no período democrático, em especial durante o governo Juscelino

Kubitschek e os governos Jânio Quadros/João Goulart.

A mudança observada na política externa brasileira pós-1964 reflete o

redirecionamento da política doméstica. Embora em regimes presidencialistas a

implementação da política externa dependa muito mais da articulação do aparato

burocrático, possuindo um caráter mais técnico que político (AMORIM NETO, 2012),

mudanças de regime e/ou governo afetarão a tomada de decisão:

[...] nenhuma política é realizada ao acaso, por impulso (em algumas oportunidades, contudo, isso pode ocorrer, dependendo basicamente da personalidade do próprio chefe de governo) ou sem que interesses estejam claramente delimitados, por afiliações políticas, ideológicas, econômicas ou estratégico-militares. Políticas no âmbito interno e no plano externo obedecem aos interesses que estão em jogo em determinado momento, conforme os grupos que estão no poder e que são distintos no transcorrer da história. (MIYAMOTO, 2014, p. 19)

Contudo, além da mudança de regime, que acarretou a uma mudança na liderança e

nos quadros do executivo, é preciso compreender como o golpe recondicionou o

ordenamento burocrático do Itamaraty, colocando em posições de poder membros da

diplomacia mais afeiçoados ao novo regime. Como afirma Amorim Neto (2012):

[...] não alterar os titulares dos principais postos diplomáticos pode significar o sério risco de manter opositores da política externa do governo em cargos importantes. [...] a tradução das preferências de um presidente em políticas implementadas – no tocante as relações internacionais – depende muito mais do controle que tem sobre o aparato burocrático do que sobre maiorias legislativas. E uma das maneiras mais eficazes de se controlar uma burocracia é nomear pessoas de confiança do presidente para posições-chave. Afinal, como diz a famosa máxima do jargão político estadunidense, “personnel is policy” (AMORIM NETO, 2012, p. 128).

IDEOLOGIA, POLÍTICA INTERNA E POLÍTICA EXTERNA (II): O ITAMARATY E A LUTA

ANTISUBVERSIVA

“O MRE, por natureza, é um órgão de informação” (CNV, 2014, p. 177). Assim é

definido o papel do Itamaraty no relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Desde a

sua fundação, em 1808, o ministério se preocupou em produzir informações estratégicas e

salvaguardar segredos de Estado (SETEMY, 2010). Tal natureza é definida da seguinte

forma:

Tem como uma de suas atividades precípuas a coleta e o processamento de informações procedentes do exterior, para seu próprio uso e para os demais setores da administração pública. Sua estrutura compreende a Secretaria de Estado das Relações Exteriores (SERE), na capital, e uma rede de postos, no exterior – missões diplomáticas e repartições consulares. [...] esses órgãos tem como uma de suas principais atividades fornecer, ao governo brasileiro, informações sobre o que o que acontece nos países em que estão sediados. Essas informações são enviadas à Secretaria de

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Estado, que centraliza seu processamento. Inicialmente recebidas e tratadas pelas divisões (organizadas por critérios geográficos ou temáticos), vão sendo depuradas, avaliadas e integradas ao longo de sucessivos exames pelas instâncias hierarquicamente superiores – departamentos, secretarias-gerais adjuntas (hoje, subsecretarias gerais) – até chegarem à mais alta chefia: a secretaria-geral, o gabinete do ministro de Estado e, eventualmente, a Presidência da República. São essas instâncias superiores de decisão que determinam diretrizes e políticas a serem adotadas em cada matéria – que, por sua vez, percorrem o caminho inverso, sob a forma de instruções (BRASIL, 2014, p. 177)

Esta característica será fundamental para o envolvimento do Itamaraty com a

comunidade de informações da ditadura militar brasileira, porém, o envolvimento do órgão

com a luta anticomunista e antisubversiva é anterior a 1964 e, inclusive, anterior à criação

da ESG em 1949. De fato, talvez tenha sido o primeiro ministério a lidar com isso de forma

direta. Já em 1925 o diplomata Raul Paranhos do Rio Branco, plenipotenciário do Brasil em

Berna (Suíça), iniciou intercâmbio com a Entente Internacional Anticomunista (EIA),

organização cujos objetivos eram combater, no plano internacional, o Komintern e defender

a ordem, a família, a propriedade e a pátria (BRASIL, 2014).

Durante o Estado Novo, na década de 1930, foram criados convênios e acordos com

as polícias de outros países sul-americanos, bem como acordos internacionais de

cooperação com países como Estados Unidos e Alemanha, que assinalavam a diplomatas

atividades de vigilância de elementos considerados perigosos à segurança nacional

(SETEMY, 2010). O comunismo passa a ser visto como “inimigo da nação” mais

precisamente a partir de 1935, com o fracasso da Intentona Comunista. A partir daí, tem-se

a construção de uma retórica que permitia a repressão política e a tentativa de eliminação

da ideologia comunista. Esta retórica acabará sendo incorporada ao Discurso da Doutrina

de Segurança Nacional com o advento da Guerra Fria (SETEMY, 2014).

Em 1936, José Carlos Macedo Soares, Ministro das Relações Exteriores de Getúlio

Vargas, criou o Serviço de Estudos e Investigações (SEI), cujo chefe era Odette de Carvalho

e Souza, a primeira mulher a ocupar o posto de cônsul. O SEI tinha por objetivo “tratar da

obra de repressão ao comunismo, mediante o estudo especializado da doutrina marxista,

métodos da propaganda bolchevista, sua infiltração no nosso país e meios de combatê-la de

maneira prática e eficiente” (ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATY apud SETEMY, 2010,

p. 6). Em 1937, o Serviço de Estudos e Investigações passaria a se chamar Serviços

Especiais de Informações, elevando o SEI hierarquicamente, subordinando-o ao gabinete do

Ministro dado o caráter confidencial e secreto de sua atuação (BRASIL, 2014; SETEMY,

2010).

Em 1939 há a criação da Seção de Segurança Nacional do Ministério das Relações

Exteriores mediante Decreto nº 4.644, diretamente subordinada ao gabinete do ministro,

sendo constituída por sete diplomatas. Com a saída de Odette de Carvalho e Souza, o

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embaixador Pio Corrêa tomou as rédeas do SEI. A Seção de Segurança Nacional do

Itamaraty, junto com o Departamento Político e Cultural, passaram a ter grande interlocução

com o Serviço Federal de Informação e Contra Informação (SIFICI) após a sua criação

(CNV, 2014). Segundo o embaixador Pio Corrêa:

Quando deixei o Departamento no fim do governo Kubitschek [...], deixei esse arquivo, consideravelmente aumentado, confiado a um oficial amigo, que fazia a ligação do então Serviço Federal de Informação e Contra Informação (SIFICI) com o Itamaraty. [...] Logo depois da Revolução de 1964, recuperei esse precioso arquivo, que regressou ao Itamaraty. (apud BRASIL, 2014, p. 182).

Chefiado por Golbery do Couto e Silva durante o governo Jânio Quadros, o SIFICI

dará origem ao Sistema Nacional de Informações (SNI) através da lei nº 4.341 de 13 de

junho de 1964, ao qual estarão subordinados o CIEX e a DSI/MRE.

O ITAMARATY E A COMUNIDADE DE INFORMAÇÕES DA DITADURA MILITAR – A

CRIAÇÃO DO CIEX E DA DSI/MRE

O SNI foi o órgão central da comunidade de informações, cuja missão central

consistia em “superintender e coordenar, em todo o território nacional e no exterior, as

atividades de informações” e “assessorar diretamente o presidente da república com as

informações necessárias à execução da Política Nacional” (ARQUIVO NACIONAL, p. 04)4.

Com status de superministério, possuía grande autonomia administrativa, respondendo

apenas e diretamente ao presidente da república.

No campo externo, o SNI foi integrado à rede de serviços ocidentais de informações.

Em 1964, SNI e CIA começaram a negociar operações conjuntas, em que esta

“comprometia-se a ‘fornecer pistas operacionais específicas que se tornarem disponíveis a

respeito atividades subversivas no Brasil’. Em troca, o SNI dispunha-se a não passar

adiante o material que recebesse e alimentaria a CIA com suas próprias informações a

respeito da subversão esquerdista” (GASPARI, 2014, p. 168). Além da CIA, houve

convênios com as polícias secretas da Inglaterra (MI5) e de Israel (Mossad), além dos

serviços secretos da França e Itália - Golbery do Couto e Silva também chegou a receber

ofertas do ministro do Exército de Portugal para conhecer as ações de contrainsurgência

que combatiam os movimentos de libertação em Angola (idem).

A partir do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967 foram criadas as Divisões

de Segurança e Informações (DSI), com o objetivo de assessorar os ministérios civis. Seus

diretores eram escolhido entre cidadãos civis que haviam sido diplomados pela ESG ou

oficiais superiores das Forças Armadas que se encontravam na reserva, transformando,

4 ARQUIVO NACIONAL. DSI/MRE. BR, AN BSB Z4.ESN.6.1

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desta forma, atividades de segurança nacional em atividades-fim dos mais diferentes

ministérios. De acordo com o Decreto 66.622/1970 as funções da DSI consistiam em

“proporcionar assessoramento de alto nível ao respectivo ministro, nos assuntos de seu

ministério, relacionados com a segurança nacional e as informações” (BRASIL, 2014, p.

122).

No organograma hierárquico do SNI, as DSI estavam subordinadas a Agência

Central do SNI. Contudo, três ministérios civis gozavam de certa autonomia, havendo uma

composição diferenciada em seu sistema de informações – o Ministério do Interior, o

Ministério da Justiça e o Ministério das Relações Exteriores:

No Sistema Setorial do primeiro, o Ministério da Justiça, entra como componente o Centro de Informações do DPF. O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez, possui um órgão de informações específico para o trato de assuntos do campo externo, o Centro de Informações do Exterior (CIEx). No Sistema Setorial do Ministério do Interior integram-se, também, os órgãos de informações dos Territórios Federais. O CIEx, diretamente ligado ao Ministério das Relações Exteriores está, também, integrado ao SISNI. Na medida da necessidade da produção de Informações no campo externo, o CIEx tem a capacidade de instalar subcentros no exterior, que funcionarão junto às Embaixadas Brasileiras dos países correspondentes. (ARQUIVO NACIONAL, p. 10)

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Além do CIEX, o Itamaraty também possuía uma Divisão de Segurança e

Informações – a DSI/MRE, agindo em duas frentes na coleta de informações em âmbito

externo. Ressaltamos, aqui, que o Centro de Informações do Exterior se diferenciava dos

centros de informações do Ministério da Justiça e do Ministério do Interior, pois gozava do

mesmo status das comunidades de informações dos ministérios militares, a saber: o Centro

de Informações da Aeronáutica (CISA), Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e o

Centro de Informações do Exército (CIE). Segundo o documento supracitado, o CIEX não

participava apenas do Sistema Setorial de Informações dos ministérios civis, mas também

era parte do Subsistema de Informações Estratégicas Militares (SUSIEM):

O SUSIEM, coordenado pelo Ministro-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, é integrado pelos seguintes órgãos: - 2ª Seção do EMFA - Subchefia de informações do Estado-Maior da Armada (M-20) -2ª Seção do Estado-Maior do Exército (2ª/EME) - Seção de Informações do Estado-Maior da Aeronáutica (2ª/EMAer) -Centro de Informações do Exterior do Ministério das Relações Exteriores (CIEx) (ARQUIVO NACIONAL, p. 12, grifo nosso)

6

O Centro de Informações do Exterior (CIEX) surge em 1966, sendo anterior a outros

centros de informações, como o do Exército (CIE), criado em 1967, e o da Aeronáutica

5 ARQUIVO NACIONAL. DSI/MRE. BR, AN BSB Z4.ESN.6.1

6 ARQUIVO NACIONAL. Op. Cit.

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(CISA), criado em 19707. Já a Divisão de Segurança e Informações (DSI) do MRE surge em

1967, substituindo a Seção de Segurança Nacional, seguindo o padrão de todos os demais

ministérios civis (BRASIL, 2014). Diferenciando-se no método, ambos os órgãos tinham

como missão a obtenção de informações externas. Assim, através do CIEX e da DSI/MRE,

o Itamaraty pôde colocar praticamente todos os postos consulares e diplomáticos a serviço

dos órgãos de repressão da ditadura:

Por meio de instruções vindas, em certos casos, diretamente da alta chefia do MRE ou da própria DSI, ou ainda por iniciativa de diplomatas em serviço nas embaixadas e consulados, o MRE pôs sua rede de postos no exterior a serviço da política repressiva. Muitos diplomatas e funcionários de outras categorias do Serviço Exterior desempenharam funções de espionagem de brasileiros que se opunham ao regime: restringiram-lhes o exercício de direitos fundamentais, criaram embaraços à vida cotidiana nos países em que residiam, impediram seu retorno ao Brasil, mantiveram os órgãos repressivos informados de seus passos e atividades no exterior, e chegaram a interagir com autoridades de outros países para que a repressão brasileira pudesse atuar além-fronteiras. (BRASIL, 2014, p. 176).

A diferença de escopo entre os dois órgãos era tênue - a DSI/MRE tinha, como ponto

focal, a coleta de informações, enquanto o CIEX visava a busca de informações que seriam

repassadas ao SNI, ao CENIMAR, ao CISA, ao CIE e ao centro de informações do

Ministério da Justiça. Quando falamos de coleta de informações, deve-se ter em mente que,

no caso, são utilizados meios lícitos, enquanto a busca de informações geralmente se dá

através de meios ilícitos (grampos em residência de exilados, perseguições etc). Uma

análise dos documentos produzidos pelos dois órgãos deixa claro essa diferença: todos os

documentos com o carimbo da DSI/MRE possuíam a assinatura do embaixador brasileiro

local, enquanto os documentos do CIEX não possuíam menção nominal a nenhum

funcionário da embaixada brasileira.

Um exemplo são os informes produzidos no Chile entre os anos de 1968 e 1973. No

documento da série DSI produzido em 22 de maio de 1969, o então embaixador do Brasil

em Santiago à época, Antônio Candido da Câmara Canto reportou o seguinte:

[...] na transmissão do despacho telegráfico DSI-5 ocorreu um lapso de segurança, que foi a identificação, no texto inicial em claro do telegrama, [...] do encarregado da série DSI, cujo anonimato é de toda importância para a realização do seu trabalho. Esse fato expõe o Secretário responsável não só à observação das autoridades locais de inteligência que, obviamente, controlam as comunicações telegráficas das Missões Diplomáticas, mas, sobretudo, o que é mais grave, também ao controle dos membros das células comunistas existentes nas companhias telegráficas, os quais vigiam com especial interesse a correspondência telegráfica das Missões de países como o Brasil. (ARQUIVO NACIONAL, p. 2)

8

7 O Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) foi criado em 1957.

8 ARQUIVO NACIONAL. DSI/MRE AGR.DNF.25, p. 02/65

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A “missão DSI” era sempre incumbida a um funcionário diplomático, como relata este

documento da Secretaria de Estado das Relações Exteriores para a Embaixada de Santiago

datado de 4 de março de 1969:

Série DSI-1 – A partir desta data fica aberta, entre essa missão e a Secretaria de Estado, série própria de telegramas, cuja numeração será precedida da expressão “Série DSI” que deverá ser cifrada com o texto. Os telegramas dessa série se destinam a assuntos que exijam grau máximo de sigilo e terão, por isso mesmo, sua distribuição limitada à Divisão de Segurança e Informações, cujo chefe dará dos mesmos conhecimento direto ao Senhor Secretário Geral. Nessa Missão a Série DSI ficará sob responsabilidade de funcionário diplomático, que Vossa Excelência designará. (ARQUIVO NACIONAL, p. 1)

9.

Por sua vez, os documentos do CIEX eram produzidos com informações repassadas,

em sua maioria, por agentes infiltrados na comunidade brasileira de exilados no exterior.

Não havia assinatura ao final de cada memorando e, em grande parte constava ao final do

mesmo o pedido de não divulgação para fora do círculo da comunidade de informações a

que eram destinados. Além do monitoramento de elementos considerados subversivos para

o governo brasileiro e a busca de informações, era incumbido ao CIEX a análise de

conjuntura político-econômica e militar de países vistos como relevantes para a Segurança

Nacional. Seu foco eram os países latino-americanos e os Estados do bloco socialista.

Estes devido às conexões dos movimentos e partidos de esquerda, aqueles por serem o

destino da primeira leva de exilados políticos após o golpe (PENNA FILHO, 2009). Tal

escolha faz sentido ao analisarmos o foco da política externa brasileira dentro da teoria dos

círculos concêntricos: a América do Sul vista como o principal ponto de influência brasileira,

e o bloco comunista percebido como a maior ameaça à Segurança Nacional do país.

Os informes produzidos pelas bases do CIEX no exterior eram diretamente

endereçados à Secretaria Geral do MRE, como pode ser averiguado no documento CIEX de

03/11/1969 (classificado como Pessoal-Secreto) cujo assunto é a mudança do diretor

executivo do órgão, distribuído à SNI/AC, CIE, 2ª Secretaria/EME, 2ª Secretaria/EMAer,

Cenimar, 2ª secretaria/EMA e o Núcleo do Serviço de Informações da Aeronáutica (NSISA):

1. A partir desta data a função de Diretor-Executivo do Centro de Informações do Exterior (CIEX), que era exercida pelo primeiro secretário JOÃO CARLOS PESSOA FRAGOSO nomeado sub-chefe da Casa Civil da Presidência da República passa a ser desempenhada pelo segundo secretário PAULO SERGIO NERY

10

2. Nessas condições a correspondência endereçada ao CIEX deverá ser doravante destinada a:

10

Paulo Sergio Nery foi o terceiro secretário geral do CIEX, comandando-o entre novembro de 1969 e

novembro de 1973. Ao todo, o CIEX teve cinco secretários-gerais: o primeiro-secretário Marcos Henrique Camillo Cortes entre 1966 e setembro de 1968; o primeiro-secretário João Carlos Pessoa Fragoso, entre setembro de 1968 e novembro de 1969; Paulo Sérgio Nery, já citado; conselheiro Octávio José de Almeida Goulart entre novembro de 1973 e março de 1979 e, por último, o ministro Carlos Luzilde Hildebrandt de março de 1979 e 1984 (BRASIL, 2014).

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Secretário Geral Paulo Sérgio Nery Secretaria-Geral de Política Exterior Ministério das Relações Exteriores Palácio Itamaraty (ARQUIVO NACIONAL, p. 1)

11.

O núcleo central do CIEX, localizado na Secretaria Geral de Política Exterior,

comunicava-se diretamente com as suas chamadas “Bases”, os postos no exterior, cuja

abreviação era BEX. Comprovadas pela comissão as bases do Cone Sul: Assunção,

Buenos Aires (identificada como BEX/SS), Montevidéu (BEX/EO), Santiago do Chile

(BEX/NG); as bases da Europa Ocidental, em Paris e Lisboa (BEX/XA); base de Genebra e,

por fim, as bases da Europa Oriental (Praga, Moscou, Varsóvia e Berlim) – há indícios, não

comprovados, de que teria havido Bases do CIEX em La Paz, Lima, Caracas e Londres.

Uma de suas funções era “estabelecer um enlace com seus homólogos das polícias

políticas e dos serviços de informações locais” (BRASIL, 2014, p. 184).

Devido ao fato de que constituía um dos braços do SUSIEM, o CIEX encontrava-se

subordinado também ao Estado Maior das Forças Armadas, o que o dotava de prerrogativa

e autonomia própria com relação a estrutura administrativa do Itamaraty. O embaixador Raul

Fernando Leite Ribeiro, que foi chefe da base do CIEX em Lisboa, afirmou, em depoimento

a Comissão Nacional da Verdade, que o órgão “fazia ‘o trabalho sujo’ de polícia política,

nada tendo de um verdadeiro órgão de inteligência” (BRASIL, 2014, p. 185) 12.

O Ministério das Relações Exteriores não esteve apenas na vanguarda da

comunidade de informações do regime militar. Também ajudou a formular diretrizes políticas

no âmbito da Doutrina de Segurança Nacional. O Documento BR AN, BSB N8 PSN.EST.33,

classificado como secreto, que trata da formulação do Conceito Estratégico Nacional, traz

apontamentos do ministro das relações exteriores do governo Costa e Silva, José de

Magalhães Pinto, no que se refere à política externa brasileira.

O ministro, embora afirme que devam ser considerados outros aspectos da

conjuntura internacional na formulação do Conceito Estratégico Nacional, analisando os

fatos que marcariam o início da détente entre Estados Unidos e União Soviética (como o

Acordo de Moscou e o acordo de não proliferação de armas nucleares) além de destacar a

importância da integração latino-americana, diz o seguinte:

Noto que na parte analítica do documento em exame, se dá relevo especial a ação desintegrante e subversiva do comunismo internacional, atuante em nossas fronteiras, e se focaliza, no campo externo, a “hipótese de guerra

11

ARQUIVO NACIONAL. CIEX. BR AN, BSB IE.04.11 12

Apesar das evidências, quando chamados para depor na Comissão Nacional da Verdade os dois

únicos secretários gerais do CIEX ainda vivos – a saber, Marcos Henrique Camillo Cortes e João Carlos Pessoa Fragoso - negaram enfaticamente a existência do órgão (BRASIL, 2014).

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revolucionária na América Latina”, de conflito entre os “Blocos Democráticos e Comunista” e a da simultaneidade de ambas as ocorrências. Quero, desde logo, deixar constância do aplauso irrestrito à ênfase que se empresta a esta séria e real ameaça às instituições democráticas, à segurança ao Estado e aos próprios princípios em que se fundamenta a civilização ocidental. [...] Nossa posição, como país soberano, no que toca a matéria, é nítida e perfeitamente definida. Não creio que nada a ela se deva acrescentar nem retirar o que quer que seja face a uma aparente tendência de abrandamento das tensões internacionais [...]. (ARQUIVO NACIONAL, p. 43-44)

13

Em 1974, durante o governo Médici, há uma atualização do uso do Conceito

Estratégico Nacional. O recrudescimento da repressão no âmbito interno tem reflexos na

política externa. Documento datado de 15/02/1974 coloca as pressões do movimento

comunista internacional como uma das principais ameaças à Estratégia Nacional não

apenas em âmbito nacional, mas também em contexto interamericano:

c) A aceitação ou não do princípio da pluralidade ideológica tem constituído uma ameaça à unidade da OEA e a todos os acordos estabelecidos sob a sua égide. [...] e) Os países sul-americanos, como URUGUAI, BOLÍVIA, CHILE E PARAGUAI, que reconhecem ter o BRASIL vencido a ameaça da dominação comunista, necessitam e tem solicitado a solidariedade e o apoio do BRASIL no esforço de eliminar, também, de seu território a ameaça de envolvimento do MCI

14 (ARQUIVO NACIONAL, p. 108)

15.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Através de análise documental, este artigo procurou analisar o envolvimento do

Itamaraty com a comunidade de informações da ditadura militar. Porquanto o ministério não

estivesse envolvido diretamente com a repressão política, o monitoramento de exilados

através do CIEX e da DSI/MRE possibilitou que os órgãos de repressão da ditadura os

encontrassem, contribuindo para a contagem de mortos e desaparecidos políticos, como é o

caso dos exilados brasileiros que desapareceram logo após o golpe de estado ocorrido no

Chile em 11 de setembro de 197316.

O insulamento do Itamaraty, em conjunto com a visão de que a política externa deve

ser tratada como política exclusiva do Estado faz com que haja pouca accountability do

13

ARQUIVO NACIONAL. MRE. BR AN, BSB N8 PSN.EST.33 14

MCI: Movimento Comunista Internacional 15

ARQUIVO NACIONAL. MRE. BR AN, BSB N8.0.PSN, EST.34 16

Em um prelúdio da Operação Condor, alguns dos brasileiros presos no Estádio Nacional

desapareceram no Chile logo após o golpe, sendo eles: Túlio Roberto Cardoso Quintiliano, desaparecido no dia 12/09/1973; Nelson de Souza Kohl, desaparecido no dia 15/09/1973; Luiz Carlos de Almeida, desaparecido entre os dias 13 e 14/09/1973; Wânio José de Mattos, desaparecido no dia 15/10/1973 (BRASIL, 2014).

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ministério perante a população. O corporativismo da instituição faz com que muitos de seus

membros pressintam a necessidade de não falar à população sobre o envolvimento do

mesmo com o aparato repressivo da ditadura.

Tal comportamento está diretamente ligado à cultura institucional do MRE, que criou

para si mesmo uma memória coletiva calcada em feitos grandiosos e grande senso de

profissionalismo – embora este trabalho não ponha em xeque tais feitos, muito menos o

profissionalismo da instituição, especialmente se comparado com suas contrapartes latino-

americanas. Há, porém, de se ter a consciência crítica de discernir mito e realidade,

investigando o primeiro de forma a se garantir a segunda. Garantir que o Itamaraty também

cumpra os ritos da memória, da verdade e da justiça referente a sua participação no regime

militar não significa enfraquece-lo enquanto instituição, mas sim reelaborar a nossa memória

de modo que ele se torne uma instituição menos insular e mais democratizada.

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