RECAPITULAÇÃO LIBERDADE, AINDA QUE TARDIA O FIM DO ... · Paulo Victorino RECAPITULAÇÃO...
Transcript of RECAPITULAÇÃO LIBERDADE, AINDA QUE TARDIA O FIM DO ... · Paulo Victorino RECAPITULAÇÃO...
Paulo Victorino
RECAPITULAÇÃO
LIBERDADE, AINDA QUE TARDIA
O FIM DO ESTADO NOVO
O ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra e o chefe da EMFA,
general Góis Monteiro são duas personalidades opostas que se
encaixam e se completam. Eurico Dutra, um militar de espinha
dorsal inflexível, é visto quase sempre fardado. Assume suas
posições sobre um determinado assunto e, a partir daí, não arreda
pé. Certo ou errado, tem uma só palavra, por isso é confiável, mas
o problema é que tem dificuldade em falar e expor suas ideias. Ao
contrário, Góis Monteiro de boa aparência, se apresenta de
preferência em trajes civis, geralmente “um terno de linho
amassado e um chapéu panamá que lhe completa o figurino.” Sua
grande força está na fluência verbal, uma fala amistosa e atraente,
capaz de conquistar amigos e iludir com suas palavras a mais
desconfiada das criaturas. Só que Góis é de uma personalidade
escorregadia e titubeante, mais o perfil de um político do que de
um militar. Pois são essas duas personalidades opostas, que já
haviam trabalhado juntas para tornar possível o golpe do Estado
Novo, que agora se completam outra vez, mas com objetivo oposto,
qual seja, derrubar o regime que ajudaram a criar em 1937. Dutra
por convicção, Góis por oportunismo.
Fatores externos contribuíram para a formação de um consenso entre civis e
militares sobre a necessidade da abertura política. O Brasil estivera em guerra
contra o fascismo e o nazismo desde 1942 e, em agosto de 1944, a Força
Expedicionária Brasileira partira para a Itália, a fim de defender, na Itália, as
democracias confiscadas dos países do velho mundo pelas ditaduras nazi-
fascistas.
- 006 -
Cemitério de Pistoia, na Itália, onde ficaram sepultados os corpos de
pracinhas brasileiros (450 soldados, 13 oficiais e 8 pilotos da aviação),
mortos na defesa da pátria. Os moradores do vilarejo o chamavam de
Cemitério Brasileiro de San Rocco (São Roque)
Lutando pela democracia, centenas de pracinhas morreram longe de sua
pátria e, os que voltaram, trouxeram dos campos de batalha sequelas, no corpo
ou na alma, que os acompanhariam pelo resto de suas vidas. Tudo para, de volta
ao Brasil, encontrar aqui, ainda em pleno funcionamento, uma ditadura igual
àquelas que foram combater lá fora.
O impacto provocado por essa disparidade, que foi grande entre os es-
pracinhas que tiraram a farda e voltaram à atividade civil, maior ainda o foi para
os oficiais, que permaneceram na caserna, vendo-se obrigados, muito a
contragosto, a dar uma retaguarda à ditadura do Estado Novo.
Assim, era natural que os militares, tal como os civis, se engajassem na luta
pela restauração das liberdades no país, dando ao Brasil condições de participar
da Conferência de Paz, de cabeça erguida, par a par com as demais
democracias ocidentais.
- 007 -
A trilha aberta pelos
democratas
Já no início dos anos quarenta, Getúlio Vargas, com o apoio de seu ministro
das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, incentivara a criação da UNE - União
Nacional de Estudantes, na qual esperava introduzir pelegos, como o fizera
nos sindicatos, de maneira a controlar a atividade estudantil. O tiro saiu pela
culatra, pois a UNE, desde cedo, manifestou o espírito rebelde da juventude,
disposta sempre a reformar o mundo, aqui e agora, sem perda de tempo.
Com o afundamento dos primeiros navios mercantes brasileiros, feito por
submarinos alemães, em 1942, começaram a surgir manifestações pela entrada
do Brasil na guerra contra o nazi-fascismo, as quais desaguavam, quase sempre,
no protesto contra o fascismo de Getúlio Vargas.
Dentro desse contexto, no Rio de Janeiro, a UNE promoveu uma grande
passeata de estudantes, cuja guerra era o assunto menor. O tema que dominou
as manifestações foi o combate ao totalitarismo do Estado Novo no Brasil. O
chefe de Polícia, Filinto Müller tentou, sem sucesso, dissolver a passeata.
Fracassando em sua missão, foi afastado da Chefatura de Polícia.
Outros protestos semelhantes aconteceram por todo o país, pondo em xeque
a capacidade do governo em continuar contendo as manifestações de massa
contrárias à ditadura.
Manifesto dos Mineiros
Em 1943, surgiram pronunciamentos de vários setores da vida nacional. A
Ordem de Advogados do Brasil, por exemplo, protestou contra as
arbitrariedades que vinham sendo praticadas por alguns setores do governo.
No mesmo ano, foi lançado o Manifesto dos Mineiros, assinado sobretudo
por banqueiros de Minas Gerais, com data de 2 de novembro de 1943 (Dia de
Finados). Nesse documento, os signatários louvavam a coragem dos homens
que fizeram a revolução em 1930, mas lastimavam que muitos dos vícios da
República Velha (1889-1930) acabaram sendo incorporados à Segunda
República (1930-1945), com um governo personalista, cima para baixo,
impedindo a nação brasileira de participar na formação de seu próprio destino.
Em certo ponto, diz o documento:
- 008 -
"Não foi esse o espírito de vida que aspiramos no passado e
não é o que almejamos no futuro. A prosperidade nos negócios, o
êxito nas atividades profissionais, a riqueza, o conforto, o gozo de
tranquilidade fácil todos os dias, mesmo que existissem, não
esgotariam as nossas aspirações, nem resumiriam a nossa
concepção do destino humano."
A distribuição do manifesto foi realizada em segredo, chegando a vários
setores de liderança da vida nacional, mas todo cuidado não impediu a reação
do governo central, punindo severamente os signatários.
O Banco Hipotecário, de que Pedro Aleixo e Afonso Pena eram diretores, foi
encampado pelo valor nominal das ações, com sérios prejuízos aos acionistas,
já que o valor patrimonial era bem mais elevado.
José de Magalhães Pinto teve de demitir-se do Banco da Lavoura, para evitar
que este sofresse o mesmo tipo de intervenção.
Virgílio de Melo Franco foi exonerado do Banco Alemão Transatlântico.
Adauto Lúcio Cardoso foi aposentado compulsoriamente no Lóide Brasileiro,
única empresa de navegação marítima nacional. E assim por diante.
Ironicamente, o maior divulgador do Manifesto foi o próprio governo federal,
pois se a censura, de um lado, tinha poder para vetar a publicação do
documento, de outro lado, não era possível evitar a notícia destes
acontecimentos, já que se tratava de atos de governo, publicados no Diário
Oficial, não podendo ser rotulados de subversivos.
O Manifesto dos Mineiros, pois, graças à reação do Estado Novo, ganhou
uma notoriedade bem maior que a prevista inicialmente. Custou muito aos
signatários, mas, depois da reação oficial, não era mais possível tapar o sol com
uma peneira, cuja malha se tornava cada vez mais ampla, deixando passar com
energia os raios prenunciadores de uma liberdade não muito distante.
- 009 -
Vencida a força
da inércia
O ano de 1944 prossegue com contínua efervescência, mas a atenção maior
está voltada para a Força Expedicionária Brasileira, que parte para a Itália, a
partir de agosto, onde vai participar da guerra ao lado da 5ª Divisão americana.
Em 1945, o aparentemente indestrutível dique autoritário, obra da engenharia
do Estado Novo, começa a rachar, gerando por todos os lados a vazão
incontrolável da vontade das elites pelo retorno à democracia.
Dizemos das elites porque, excetuando-se ação da UNE, não há qualquer
movimentação popular pela queda de Getúlio e o retorno à normalidade, muito
ao contrário, o Estado Novo tinha pleno controle das atividades sindicais e do
operariado.
Em 27 de janeiro, publica-se a Declaração de Princípio dos Escritores;
depois, o Manifesto dos Jornalistas, em 10 de março; no dia seguinte, o
Manifesto dos Artistas Plásticos.
A imprensa oposicionista, ainda sob o regime de censura, não mais se cala e
passa a noticiar os fatos, comentando-os com inusitada ousadia.
A polícia, encarregada de conter esses abusos, evita agir contra todos os
jornais de oposição, para não provocar uma repercussão maior, principalmente
junto às embaixadas estrangeiras sediadas no Rio de Janeiro, que
acompanhavam com atenção a evolução dos acontecimentos, de tudo
informando aos seus respectivos governos.
Entre março e abril, a UNE, juntando-se a dezenas de outras entidades
estudantis, promove a Semana Pró-Anistia e realiza um grande comício no Rio
de Janeiro.
A força da inércia estava vencida e a campanha pela redemocratização
caminhava com motivação própria, à revelia do Estado Novo e de suas leis de
arrocho.
- 010 -
A entrevista de José Américo
Foi ainda pelo mês de março de 1945 que o jornalista Carlos Lacerda
procurou José Américo, convencendo-o a dar uma entrevista para o Diário
Carioca, na qual aquele político, líder de proa na revolução de 1930, contesta a
legitimidade do Novo Regime. O jornal não a publicou de imediato, achando não
ser aquele o momento oportuno.
José Américo procurou, então, outros órgãos de imprensa, propondo uma
divulgação simultânea, o que dificultaria uma eventual punição. O assunto
transpirou e a ideia teve de ser arquivada, para a satisfação do chefe de Polícia,
Benjamim Vargas, que acreditava ter dominado a insubordinação apenas com o
ar de sua presença.
Ledo engano. Apenas vinham sendo tomadas medidas de precaução para
garantirem-se contra qualquer represália. Como a importação de papel dependia
de autorização do governo, tratou-se de criar um estoque, o suficiente para poder
enfrentar os dias de retranca que, por certo, viriam.
Então, um dia, inesperadamente, foi o Correio da Manhã, e não o Diário
Carioca, que apareceu nas bancas trazendo a controvertida entrevista de José
Américo. A edição esgotou-se antes que pudesse ser apreendida pela polícia. E,
sinal dos tempos, não houve repressão ostensiva ao jornal.
Os movimentos
conspiratórios
Nesse meio tempo, três movimentos conspiratórios se desenvolviam, cada
um com motivação diferente, mas todos caminhando irreversivelmente para a
mudança do regime.
O primeiro tinha como moto o próprio presidente Getúlio Vargas, cercado por
alguns amigos que lhe eram realmente fiéis.
Lembremos que outros amigos, outrora íntimos do ditador, como Osvaldo
Aranha e Virgílio de Melo Franco já haviam bandeado para a oposição. Até o
jurista Francisco Pinto, autor da Constituição do Estado Novo, ora vigente,
havia abandonado o chefe.
- 011 -
Mas Getúlio ainda contava, por exemplo, com o interventor de Minas Gerais,
Otávio Mangabeira, com o interventor de Pernambuco, Agamenon Magalhães e
com alguns militares da alta oficialidade.
Uniu-se também aos pelegos sindicais e conseguiu que fossem realizadas
manifestações de rua pela nova constituição, usando o slogan Constituinte com
Getúlio. Era mais do mesmo, ou o continuismo no governo.
No extremo oposto, se achavam os que se opunham a Getúlio pelas mais
diversas razões: antifascistas, socialistas, comunistas não ligados a Prestes, ou
líderes que, por qualquer outra razão, desejavam ver Getúlio fora do poder.
Estes pediam a imediata renúncia do ditador, exigindo a entrega do poder,
sem demora, ao presidente do Supremo Tribunal Federal. Estavam reunidos em
uma frente partidária ampla, a União Democrática Nacional (UDN) e usavam
como mote a frase Constituinte com o STF.
A terceira corrente era formada pela alta oficialidade das Forças Armadas e
tinha como mentores nada menos que o ministro da Guerra, general Eurico
Gaspar Dutra, e seu fiel escudeiro, Pedro Aurélio de Góis Monteiro.
Góis, a pretexto de solidarizar-se com o ministro demissionário Osvaldo
Aranha, renunciou igualmente a uma função oficial no Uruguai e voltou ao Rio
de Janeiro, a tempo de ser recebido com tapete vermelho, banda de música e a
presença dos mais altos oficiais das Forças Armadas, entre eles, o próprio
ministro da Guerra.
Simbiose entre
Dutra e Góis
Quem quer que se ponha a estudar a história da Segunda República (1930-
1945), ficará impressionado com a perfeita simbiose entre Eurico Gaspar Dutra
e Góis Monteiro. São dois temperamentos e personalidades totalmente distintos,
mas que se somam e se completam, formando uma unidade monolítica.
- 012 -
Dutra e Góis se conheciam desde a infância e mantinham uma amizade que
já durava mais de quarenta anos. Góis atingiu o generalato após a revolução de
1930, de que foi comandante na patente de tenente-coronel. Dutra tornou-se
general após a revolução de 1932 quando, à frente das tropas legalistas na divisa
Minas-São Paulo, impediu o avanço dos soldados constitucionalistas através de
Minas Gerais.
Quando Góis era ministro da Guerra, em 1935, Dutra comandava a aviação
militar. Góis renunciou, sendo substituído pelo general João Gomes Ribeiro
Filho. No mesmo instante, Dutra assume o comando da 1ª Região Militar, onde
combate a Intentona Comunista de 27 de novembro. Pouco depois é nomeado
Ministro da Guerra, em substituição a João Gomes.
Com Dutra no Ministério da Guerra, Góis Monteiro se reaproxima do governo.
Estava formada a dupla. Em 9 de agosto de 1945, Dutra, candidato às
prometidas mas não confirmadas eleições, deixou o ministério, assumindo em
seu lugar Góis Monteiro. Ambos continuavam agindo em pleno acordo.
Dutra era um militar de espinha dorsal inflexível. Andava quase sempre
fardado. Assumia suas posições sobre um determinado assunto e, a partir daí,
não arredava pé. Por fidelidade ao governo de Washington Luís, combateu a
Revolução de 1930. Por fidelidade ao governo Getúlio Vargas, combateu a
Revolução Constitucionalista de 1932 e, depois, com o mesmo espírito
movimentou suas tropas para liquidar a Intentona Comunista, em 1935.
Tinha uma só palavra, era confiável, mas o problema é que não conseguia
colocar suas ideias. Sentia enormes dificuldades para se expressar, gaguejava
quando precisava falar de improviso e, a duras penas, expunha seus
pensamentos nos despachos com o Presidente, ou no contato com seus
subordinados.
Góis era o avesso de tudo isso. Bem aparentado, andava quase sempre em
trajes civis, geralmente um terno de linho amassado e um chapéu panamá que
lhe completava o figurino, conforme a descrição de Alzira Vargas. Tinha plena
fluência verbal, uma fala amistosa e atraente, capaz de conquistar amigos e iludir
com suas palavras a mais desconfiada das criaturas.
- 013 -
Mas a personalidade de Góis era titubeante e escorregadia. Nunca se sabia
o que de fato passava pela sua cabeça, nem os planos, por vezes diabólicos,
que se escondiam por trás de suas cativantes mensagens.
Eram, pois, duas metades que se completavam, formando um bloco sólido e
arrasador. Sozinhos, a ação era dificultada pelas limitações de cada um. Juntos,
todas os limites eram ampliados até o infinito.
Nesta conspiração, vamos encontrá-los, uma vez mais, juntos. Ambos
perseguiam um objetivo muito bem identificado, que era o da redemocratização
do país sem mais demora, com o fim da Era Vargas. Se possível, por bem. Se
necessário, pela força.
A Sociedade dos
Amigos da América
Mostrado o cenário e apresentados os principais personagens, vamos à peça,
desde o princípio.
Osvaldo Aranha, que era nosso embaixador nos Estados Unidos, retorna ao
Brasil e assume o Ministério das Relações Exteriores. Pela mesma época, Pedro
Aurélio de Góis Monteiro é nomeado representante do Brasil no Comité de
Emergência e Defesa Política da América, com sede no Uruguai.
No final de 1942, o general Manuel Rabelo (que foi interventor em São Paulo
no atribulado ano de 1932) fundou a Sociedade dos Amigos da América, a
qual pretendia exaltar vultos históricos que contribuíram para a independência
dos países latino-americanos, entre eles, o próprio Patriarca da Independência,
José Bonifácio.
Cumprindo determinações legais, foi obtida permissão do chefe de Polícia,
coronel Alcides Etchegoyen, para funcionamento. Rabelo tornou-se Presidente
da entidade, ficando o chanceler Osvaldo Aranha como vice. A iniciativa contou
com a simpatia, para não dizer apoio ostensivo de vários embaixadores, entre
eles, Jefferson Caffery, da Embaixada americana.
- 014 -
Passado algum tempo, na Chefatura de Polícia, sai Etchegoyen e entra
Coriolano de Góis. Com este, em 11 de agosto de 1944, a sede da Sociedade
foi, inopinadamente, invadida e fechada, sem que houvesse um motivo sério
para isso.
Como seus participantes, desafiando a ordem policial, resolveram levar a
efeito um almoço no salão de festas do Automóvel Clube, a polícia agiu com
maior rigor, esvaziando o local e fechando também a Associação.
Osvaldo Aranha, que era vice-Presidente da entidade, demite-se do
Ministério de Relações Exteriores, rompendo com o governo.
Muito embora a Sociedade dos Amigos da América tenha recebido
autorização para reabrir, em 5 de abril de 1945, as relações entre Aranha e
Getúlio ficaram estremecidas por longos anos, privando o ditador de seu melhor
amigo e conselheiro, justamente quando mais precisava dele.
Góis Monteiro de
volta ao Brasil
Góis Monteiro, já sabemos, estava em missão oficial no Uruguai. Ao ser
comunicado por Osvaldo Aranha sobre os últimos acontecimentos, demite-se e
volta ao Brasil, passando primeiro por São Paulo e seguindo depois ao Rio de
Janeiro, onde é recebido com uma pompa inusitada. É ele mesmo quem conta:
"Ao desembarcar na ‘gare’ Pedro II, tive a surpresa de uma
recepção festiva, fato raro no transcurso de minha vida. Todos os
generais de serviço no Rio de Janeiro, à frente do Ministério da
Guerra, estavam presentes, em uniforme militar, banda de música,
guarda de honra, etc. Não deixei de ficar sensibilizado, mas pude
logo compreender que ainda esperavam de mim alguma atuação
no cenário nacional."
A chegada de Góis ao Rio de Janeiro coincidiu com um almoço no Iate Clube
em homenagem ao ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, contando
com a presença maciça dos generais em atividade no Distrito Federal.
- 015 -
A ele compareceu Góis Monteiro, como convidado especial. Quebrando o
protocolo, o ministro Eurico Gaspar Dutra foi saudado, não pelo chefe do EMFA,
mas pelo general Cristóvão Barcelos, o mesmo que, dez anos antes, havia sido
o pivô da querela em torno das eleições no Rio de Janeiro, quase provocando
uma guerra civil naquele Estado. A estranheza foi maior, porque o orador não só
era adversário do Presidente, como também do próprio Ministro, ao qual saudava
naquele momento.
Góis e Dutra juntos
outra vez
Em encontro informal, já que Góis Monteiro não exercia naquele momento
qualquer cargo de governo, o ministro da Guerra relata a ele a evolução dos
acontecimentos no Brasil e lhe pede que interceda junto a Vargas para a
convocação de uma Assembleia Constituinte.
Acentuou que, ao clamor da sociedade civil, se opunha a atitude do
Presidente, que caiu num mutismo total, deixando sua equipe desorientada, por
não saber quais eram suas reais intenções, se pretendia a abertura, em que grau
essa abertura se daria, se ele seria candidato a uma reeleição, ou se indicaria
outro pretendente. Essa falta de informações em nada ajudava uma transição
pacífica do regime.
Góis tinha mesmo um pretexto para aparecer no Palácio, pois pretendia
justificar seu pedido de demissão e abandono da missão no Uruguai. Esse era o
momento para levantar o assunto e manifestar seus pontos de vista.
Aliás, Getúlio apreciava a fluência e a clareza de raciocínio do general e não
se furtava à troca de ideias com ele, permitindo sempre uma conversa franca,
ainda que, ao final, Getúlio fizesse aquilo que tinha em mente, sem influências
externas.
A outra face da conspiração
Realmente, em audiência com Getúlio, dias após, Góis Monteiro comentou o
almoço do Iate Clube e transmitiu-lhe suas apreensões sobre o ânimo nos altos
escalões do Exército, aconselhando-o a se antecipar aos acontecimentos,
convocando uma Assembleia Nacional Constituinte.
- 016 -
Nem era preciso o palpite de Góis. O Presidente, velha raposa política, já
sentira de há muito a mudança de ares e tinha dado mais um avanço em sua
estratégia para conservar-se no poder.
Com a saída de Francisco Campos do Ministério da Justiça, essa pasta foi
entregue interinamente ao ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes
Machado Filho, incumbido também de preparar um anteprojeto de Constituição.
Não que Getúlio pretendesse realmente convocar uma Assembleia
Constituinte, pelo contrário, seus planos contemplavam uma constituição
novamente outorgada por ele, como a de 1937, que mudasse o regime, mas
sem os inconvenientes de um parlamento a lhe obstar os passos e dificultar a
administração do país.
A escolha do ministro do Trabalho se fez sob medida e estava dentro do
figurino, pois era intenção do ditador fazer renascer os planos do integralista
Plínio Salgado, ora no exílio, o qual preconizava o país governado por um
homem forte, com o apoio de um Congresso eleito por sindicalistas e não por
um eleitorado de universo mais amplo. Aliás, Juan Domingo Peron acabara de
implantar algo semelhante na Argentina, com o mais absoluto sucesso.
Assim, colocando Marcondes Filho como interino no Ministério da Justiça, o
anteprojeto poderia ser desenvolvido sem despertar suspeitas, por se tratar de
assunto ligado a esta Pasta.
Paralelamente, ia tomando medidas de distensão política, para deixar patente
sua boa-fé no processo de redemocratização.
Os avanços registrados
Marcando intenção governamental de liberar o regime, em 15 de março de
1945, é criada uma comissão para elaborar a legislação eleitoral. No que tange
à anistia, Getúlio declarou que o assunto, por envolver vários problemas
correlatos, não seria objeto de estudo agora, ficando para o Congresso a ser
eleito oportunamente. Era uma tentativa de protelação.
- 017 -
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, em 11 de abril de 1945, assegurou
aos exilados políticos o direito de retornarem ao país, abrindo uma brecha para
reivindicações em favor dos que se achavam encarcerados aqui dentro, também
por motivos políticos.
Assim, em 18 de abril de 1945, o Presidente assina o Decreto-lei 7.474, que
concede anistia aos presos políticos. Com esses dois acontecimentos, voltam à
atividade velhos adversários do Estado Novo, reforçando ainda mais a ideia da
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
Apenas causou estranheza o apoio que os comunistas de carteirinha,
comandados por Luís Carlos Prestes, emprestaram ao governo Vargas, após
serem libertados os seus líderes. Eram todos eles remanescentes da Intentona
de 1935, que pretendia derrubar Getúlio. e agora estavam ao seu lado, sob o
pretexto de defender a causa operária.
Nunca se soube ao certo, mas comentários surgiram sobre um acordo entre
Prestes e o Estado Novo, em que o líder comunista evitaria hostilizar o governo
e, em troca, este permitiria a legalização do partido para concorrer às eleições,
o que, de fato, acabou acontecendo.
Pressionado, Getúlio Vargas finalmente convoca eleições, fixando a data de
2 de dezembro de 1945 para a escolha do Presidente e Congressistas, bem
como o dia 6 de maio de 1946 para as eleições estaduais.
Não satisfez os anseios políticos e, assim, recuou uma vez mais,
transformando o dia 2 de dezembro em eleições gerais, para Presidente,
Congresso, Governadores e Assembleias Legislativas. Ficavam de fora apenas
os pleitos para prefeito e vereadores, que aconteceriam em 1947.
Por fim, para acalmar descontentes, traz Agamenon Magalhães para o Rio
de Janeiro, nomeando-o Ministro da Justiça, com o que Marcondes Filho passa
a cuidar apenas da pasta do Trabalho. Isso acaba com os atritos entre o Ministro
e a dupla Dutra-Góis Monteiro, facilitando assim a aproximação do governo com
os militares.
- 018 -
Tendo Agamenon à frente da Pasta, foi redigido o Ato Adicional nº 9 (em
realidade tratava-se uma emenda à Constituição mas as modificações eram
tantas que a imprensa denominou-a como Ato Adicional, ou Lei Constitucional,
e assim era ela referida no noticiário).
A volta dos partidos
políticos
Com a fixação da data para as eleições, a edição do Ato Adicional e a
publicação da legislação eleitoral, iniciou-se a formação dos partidos políticos,
que, por dispositivo da lei, precisavam ter âmbito nacional, sendo vedada a
formação de agremiações estaduais, como acontecia na Primeira República.
Assim, juntaram-se os remanescentes dos vários partidos republicanos
estaduais da República Velha, representando a mais genuína expressão
conservadora no país.
Com esses velhos caciques da Primeira República, fundou-se o PSD –
Partido Social Democrático. Era um bloco heterogêneo, em que as correntes
estaduais se mantinham vivas e atuantes e, por isso, tornou-se comum a
referência ao PSD gaúcho, ou PSD paulista, ou PSD mineiro, revelando as
tendências políticas de cada bloco. Getúlio foi eleito presidente de honra do PSD.
- 019 -
Como o PSD trazia de volta as oligarquias, sendo, pois, incompatível com as
massas populares das grandes cidades, tornava-se necessária outra
organização voltada para o trabalhismo, não um partido de trabalhadores, mas
um partido para trabalhadores, que pudesse atuar junto a eles e exercer-lhes
domínio. Surgiu, assim, o PTB – Partido Trabalhista Brasileiro, do qual o
ditador tornou-se, também, presidente de honra.
Por fim, os adversários de Vargas, de todas as tendências políticas e com as
mais variadas motivações, reuniram-se em torno de uma frente única, a UDN –
União Democrática Nacional.
A UDN saiu adiante de todos, lançando a candidatura do brigadeiro Eduardo
Gomes à presidência da República. O PSD e o PTB permaneceram em
compasso de espera, aguardando uma definição de Getúlio que, ao fim, optou
pelo nome de seu ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, enquanto
nos bastidores jogava sua última cartada para embaralhar o processo, como o
fizera em 1937.
De menor repercussão, o Partido Comunista Brasileiro, outra vez na
legalidade, lança o nome do engenheiro Yedo Fiuza, totalmente desconhecido
do grande público, não querendo jogar a sorte com seu maior trunfo, o legendário
Prestes. Surgiu também o Partido Agrário, com o nome de Rolim Teles, que
não disse a que veio.
A campanha eleitoral
- 020 -
Após longos anos, a população viu, novamente, a movimentação das ruas,
com passeatas e comícios políticos, aos quais o povo acorria com grande
entusiasmo, embora a presença curiosa a essas manifestações não
representasse necessariamente uma intenção de voto neste ou naquele
candidato.
Quem tem maior facilidade de comunicação é o brigadeiro Eduardo Gomes,
o último representante da Revolta do Forte, em 1922. Dos quatro tenentes que
participaram da marcha dos Dezoito do Forte, Carpenter e Newton Prado
morreram naquele confronto; Siqueira Campos sobreviveu até 1930, quando
morreu, vitimado por um desastre aéreo.
Eduardo Gomes ressurge agora como um símbolo de união entre o eleitorado
de hoje e os movimentos tenentistas dos anos vinte.
A experiência veio mostrar que essa candidatura tinha livre acesso à classe
média, mas era enorme a sua dificuldade em repercutir nas camadas mais
humildes.
O trabalhismo voltava-se para Getúlio Vargas e, na sua ausência, para a
candidatura do general Eurico Gaspar Dutra. A população rural permanecia sob
a influência dos coronéis do sertão, que ressurgiam com o Partido Social
Democrático, voltado igualmente para o candidato oficial, Eurico Dutra.
Assim, pois, o espaço deixado à União Democrática Nacional e ao seu
candidato, Brigadeiro Eduardo Gomes, era muito pequeno.
A campanha eleitoral ficou polarizada entre as duas candidaturas militares e,
confrontando Eduardo Gomes com Eurico Gaspar Dutra, este último ganhava
terreno na disputa.
Ao lado dos dois, por fora da raia, corria o presidente Getúlio Vargas, tentando
uma última cartada para permanecer no poder. A sorte sempre estivera de seu
lado e, pensava ele, não o abandonaria desta vez.
- 021 -
O golpe que falhou
Em outubro de 1945, era ministro da Guerra Góis Monteiro, em substituição
a Eurico Gaspar Dutra, que se desincompatibilizou do cargo para assumir a
candidatura à presidência da República. Na Chefatura de Polícia, estava João
Alberto, revolucionário de 1930 e pivô da revolução de 1932.
Góis não confiava no ditador do Estado Novo e, por experiência, tinha
convicção de que, por trás da abertura política, se escondia uma conspiração
para garantir a permanência de Vargas no poder. A presença de João Alberto na
Chefatura de Polícia era uma garantia da ordem e os dois (Góis Monteiro e João
Alberto) tinham entre si um compromisso pessoal de trocar informações,
permitindo detectar qualquer tentativa de minar o caminho rumo às eleições.
No dia 29 de outubro de 1945, uma segunda-feira, logo pela manhã, João
Alberto telefona a Góis Monteiro e lhe pede que, de caminho ao Ministério, o
apanhe à porta de sua casa, pois necessita falar-lhe urgentemente.
No automóvel, João Alberto revela ao ministro que estava sendo substituído
na Chefatura de Polícia, pois o Presidente desejava nomeá-lo Prefeito do Distrito
Federal, em substituição a Henrique Dodsworth.
Tal substituição contrariava toda a lógica, pois João Alberto desempenhava
satisfatoriamente suas funções na polícia e Dodsworth vinha sendo um dos
melhores prefeitos que o Rio de Janeiro já teve, tanto que se achava no cargo
desde a implantação do Estado Novo. Era um nome que Getúlio buscara na
oposição e que merecia sua confiança.
A informação que se seguiu, completou o quebra-cabeças. Para o lugar de
João Alberto, na Chefatura de Polícia, estava sendo nomeado Benjamim
Vargas, o irmão do presidente da República.
Era o sinal esperado. Reforçando posições estratégicas, o Presidente se
preparava para um novo golpe de Estado, e Góis bem o sabia, partícipe que fora
do golpe de 1937.
- 022 -
Os acontecimentos
se precipitam
Ao chegar ao gabinete, lá pelas oito horas da manhã, o ministro da Guerra,
Góis Monteiro, pôs em marcha todo um plano de defesa já traçado e debatido
com os chefes de comando. Primeiro, preparou uma carta, demitindo-se do
cargo. Essa carta jamais foi entregue, mas era a primeira providência para
começar as articulações contra o governo, que não poderiam ser feitas ocupando
oficialmente o Ministério.
Em seguida, ordenou que fossem remetidos telegramas criptografados a
todos os comandantes de Regiões Militares, avisando-os de que deveriam pôr
em vigor a Diretiva nº 1 que era um plano, previamente traçado, para garantir a
ordem, quando esta fosse ameaçada pela subversão.
Ao comandante da 1ª Região Militar, sediada no Rio de Janeiro, as instruções
foram mais específicas. Deveria ele estabelecer regime de prontidão e, em
coordenação com as outras duas forças, a Marinha e a Aeronáutica, assumir o
controle da Polícia Militar, da Light (serviços de força e luz), dos Correios e
Telégrafos, das vias férreas e de todos os setores estratégicos à segurança.
Pela manhã, Dutra foi chamado ao Ministério e, ciente das medidas tomadas,
colocou-se à disposição, dirigindo-se às unidades militares de São Cristóvão, em
companhia do general Canrobert Pereira da Costa, para ultimar outras
providências.
O segundo candidato à presidência, Brigadeiro Eduardo Gomes, também
foi chamado ao Ministério da Guerra, só podendo comparecer no período da
tarde, já que não tinha sido localizado antes. E é claro, interessava também a
ele cortar os passos de Getúlio, garantindo as eleições.
O desfecho
Foi à tarde que o clima se tornou mais tenso no Ministério, com a presença
de várias personalidades civis e militares, tentando colocar-se a par das
ocorrências para tomar uma posição.
- 023 -
Entre os visitantes, se achava Benjamim Vargas, a pretexto de comunicar ao
Ministro da Guerra, Góis Monteiro, que acabara de assumir a Chefatura de
Polícia, colocando-se à sua disposição.
Porém, ao tomar conhecimento dos fatos, retirou-se precipitadamente,
seguindo para o Palácio Guanabara, residência oficial do presidente da
República. E o fez bem a tempo, pois, logo em seguida, as tropas do Exército
começaram a fechar as ruas que davam acesso ao prédio.
Tentando retomar o controle da situação, o presidente Vargas, por intermédio
do general Firmino Freire, convida Dutra e Góis para uma conversa no palácio,
o primeiro às 19 horas e o segundo às 21 horas. Somente Dutra compareceu,
em companhia do general Osvaldo Cordeiro de Farias, que fora comandante
do 2º escalão da FEB na Segunda Guerra.
Cordeiro, agora chefe do Estado Maior das Forças Armadas, tinha a missão
de levar a Vargas a mensagem do general Góis Monteiro, pedindo ao Presidente
que tomasse a iniciativa de renunciar ao governo, em troca de garantias de vida
e segurança a ele e sua família. Exerceu sua tarefa no estrito cumprimento do
dever, pois era amigo do Presidente e, pessoalmente, estava solidário com ele.
À noite, a situação no Palácio Guanabara era caótica. Todas as
comunicações estavam cortadas, o edifício ficara sem luz e sem água e os
serviçais se retiravam em paz, enquanto os jardins à volta do prédio começavam
a ser ocupados pelas tropas.
Aproximadamente às nove horas da noite de 29 de outubro de 1945, o
presidente da República renuncia. Horas depois, o presidente do Supremo
Tribunal Federal, José Linhares, comparece ao Ministério da Guerra e é
investido, oficiosamente no cargo de presidente da República.
Às 14 horas do dia 30 de outubro de 1945, em cerimônia oficial, José
Linhares torna-se, em efetivo, Presidente do Brasil, com a incumbência de
garantir as eleições gerais, marcadas para o dia 2 de dezembro.
- 024 –
Considerações
finais
Sobre o general Cordeiro de Farias, uma nota digna de registro. Após a
renúncia do Presidente, o general voltou à sede do Ministério da Guerra e atuou
incansavelmente na comunicação social, atendendo jornalistas e políticos, e
dando a cobertura de retaguarda, enquanto o Ministro da Guerra consolidava a
operação de rescaldo.
Amizades à parte, embora getulista e leal ao presidente deposto, Cordeiro
não se recusou ao cumprimento do dever. Registre-se, também, em favor do
general Góis Monteiro, que sua serenidade em face dos acontecimentos evitou
qualquer tipo de abusos, tão comuns nesses momentos de instabilidade.
Pessoalmente, e com sua autoridade, Góis deu ao ex-presidente todas as
garantias que Vargas sempre recusou aos seus adversários, vítimas de foram
de prisão, perda de direitos políticos e exílio.
- 025 -
Neste momento, Getúlio Vargas apenas pediu um prazo de 48 horas para
retirar-se do palácio, o que lhe foi concedido. Ele e sua família saíram em paz e
segurança. Contrariando o desejo de muitos militares da linha dura, ninguém foi
exilado, nenhum mandato foi cassado e o próprio Getúlio candidatou-se às
eleições como senador e deputado, saindo vitorioso e permanecendo na vida
pública.
As eleições de 2 de dezembro de 1945 foram realizadas com plenas
garantias, não ocorrendo maiores incidentes que não ser aqueles comuns de
toda eleição. Após 15 anos ininterruptos de Getúlio no poder, termina a Segunda
República.
O presidente interino, José Linhares, exerceu, sem embaraço, o seu cargo,
com pleno controle do governo, que transferiu, no devido tempo, ao novo
Presidente, escolhido pelas urnas.
Em toda a História da República, desde sua proclamação, nenhuma
transição se fez com tamanha tranquilidade e segurança, contrariando boatos e
afastando todos temores de interferências indevidas na vontade da Nação. Dava
a impressão de que o Brasil havia, finalmente, alcançado sua maturidade
política. Mas o futuro se encarregaria de mostrar que não era bem assim.