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51 LITERATURA TERCEIRÃO 8 Terceirão – Caderno 8 – Código: 830385813 1 Introdução Embora tenha nascido na Ucrânia, Clarice Lispector (1920-1977) sempre se considerou brasileira e pernambucana. Com sua família, chegou ao Brasil com um ano e dois meses de idade e fixou-se primeiramente em Maceió. Não se adaptando à cidade, mudaram-se para Recife, onde a caçula foi criada e perma- neceu até os 15 anos, quando passaram a viver no Rio de Janeiro. Clarice escreveu seu primeiro romance – Perto do coração selvagem – com ape- nas 20 anos de idade. O livro foi publicado logo depois e recebido com surpresa e admiração pela crítica especializada. Formada em Direito – profissão que nunca exerceria – casou-se com seu colega de classe Maury Gurgel Valente, que se tornaria diplomata, com quem teve dois filhos. Juntos, viajaram pelo mundo, morando em vários países da Europa e também nos Estados Unidos, sem nunca parar de escrever. Foi, entretanto, ao se separar em 1959 e voltar ao Rio de Janeiro com os filhos, que a escritora passou a trabalhar como jornalista e desenvolveu mais sua carreira literária. Logo após a publicação de seu último livro – A hora da estrela – Clarice mor- reu, vítima de um câncer no ovário, em 1977, no Rio de Janeiro. © Folhapress LITERATURA CLARICE LISPECTOR Professor: Aula 55 AD TM TC (pág. 73) Aula 56 AD TM TC (pág. 79) Aula 57 AD TM TC (pág. 87) Aula 58 AD TM TC (pág. 93) Aula 51 AD TM TC (pág. 51) Aula 52 AD TM TC (pág. 55) Aula 53 AD TM TC (pág. 61) Aula 54 AD TM TC (pág. 64) ÍNDICECONTROLE DE ESTUDO

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1 Introdução

Embora tenha nascido na Ucrânia, Clarice Lispector (1920 -1977) sempre se

considerou brasileira e pernambucana. Com sua família, chegou ao Brasil com

um ano e dois meses de idade e fixou-se primeiramente em Maceió. Não se

adaptando à cidade, mudaram-se para Recife, onde a caçula foi criada e perma-

neceu até os 15 anos, quando passaram a viver no Rio de Janeiro.

Clarice escreveu seu primeiro romance – Perto do coração selvagem – com ape-

nas 20 anos de idade. O livro foi publicado logo depois e recebido com surpresa

e admiração pela crítica especializada. Formada em Direito – profissão que nunca

exerceria – casou-se com seu colega de classe Maury Gurgel Valente, que se tornaria

diplomata, com quem teve dois filhos. Juntos, viajaram pelo mundo, morando em

vários países da Europa e também nos Estados Unidos, sem nunca parar de escrever.

Foi, entretanto, ao se separar em 1959 e voltar ao Rio de Janeiro com os filhos, que a

escritora passou a trabalhar como jornalista e desenvolveu mais sua carreira literária.

Logo após a publicação de seu último livro – A hora da estrela – Clarice mor-

reu, vítima de um câncer no ovário, em 1977, no Rio de Janeiro.© F

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LITERATURA

CLARICE LISPECTOR

Professor:

Aula 55 AD

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(pág. 73)

Aula 56 AD

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52TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Pode-se dizer que as principais personagens de

Clarice Lispector são mulheres. A escritora especia-

lizou-se em investigar os dramas internos de suas

criações e acompanhá-las em seu processo de trans-

formação. O crítico Affonso Romano de Sant’anna

dividiu a estrutura dos contos da autora em quatro

grandes etapas.

Num primeiro momento, a personagem é apre-

sentada em uma dada situação. A preparação de um

evento que romperá essa situação corresponde à

segunda etapa. A seguir, temos a ocorrência do

evento (terceira etapa) e os desdobramentos que ele

traz à personagem (quarta etapa).

2 O fluxo de consciência e o monólogo interior

Fluxo de consciência é um conceito de natureza

psicológica, que nomeia os múltiplos aspectos da

atividade mental que, por meio de associações livres,

muda de foco com frequência. Monólogo interior

é a técnica literária de apreensão e apresentação des-

se fluxo. Por meio dela, o leitor é colocado em conta-

to direto com o universo íntimo da personagem.

Outro aspecto muito recorrente no trabalho de

Clarice Lispector é a utilização do tempo psicológi-

co em detrimento do cronológico. Isso significa que

as narrativas não obedecem à cronologia porque o

tempo que as organiza é aquele que transcorre no

interior da personagem, de acordo com sua imagi-

nação, seus desejos, angústias e ansiedades. Esse

tempo pode se alongar ou se encurtar de acordo

com o estado de espírito de cada um. Passado e fu-

turo se fundem normalmente sem obedecer a ne-

nhuma ordem.

Perto do coração selvagem (1943)

Não, nenhum Deus… Quero estar só. E um dia virá

sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e

afirmativa quanto clara e suave. Um dia o que eu fizer

será cegamente, seguramente, inconscientemente pisan-

do em mim e na minha verdade. Tão integramente lança-

da no que fizer que seja incapaz de falar. Um dia virá em

que todo o meu movimento será só criação e nascimen-

to. Eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim

e provarei a mim mesma que nada há a temer. Que tudo

que eu for será sempre onde haja uma mulher com o

meu princípio. Erguerei dentro de mim o que sou e a um

gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas – água

pura submergindo a dúvida, a consciência. E quando eu

falar serão palavras não pesadas e lentas, não levemente

sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o

passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e

inteiro. Não haverá nenhum espaço dentro de mim para

eu saber que existe tempo e nem para eu saber sequer

que estou criando porque então viverei! Só então viverei

maior do que na infância, serei brutal e malfeita como

uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não

se entende. E que tudo venha e caia sobre mim porque

basta me cumprir e então nada impedirá o meu caminho

até a morte-sem-medo. De qualquer luta ou descanso eu

sempre me levantarei forte e bela como um cavalo novo.LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem.

Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

O trecho anterior trata de um exemplo concreto

de utilização do monólogo interior. Joana, narradora

e protagonista do livro, conta sua vida em dois pla-

nos diferentes: a infância e o início da vida adulta,

refletindo sobre si mesma e substituindo o tempo

cronológico pelo psicológico. Sua consciência de-

senvolve um movimento que leva a própria subjeti-

vidade a uma crise, uma vez que seus desejos e

decisões se confundem constantemente.

3 O existencialismo

O existencialismo é uma linha filosófica de pensa-

mento desenvolvida entre os séculos XIX e XX, popula-

rizada na obra do autor francês Jean-Paul Sartre

(1905 -1980). Para ele, "a existência precede e governa a

essência". Todos possuímos uma essência que pode ser

transformada e redefinida pelas experiências da vida.

Em A paixão segundo G.H., obra de grande impor-

tância, Clarice exercita seu existencialismo literário ao

compor uma personagem bem-sucedida profissional-

mente, que não conhece profundamente a si mesma e

que, numa rápida incursão pelo quarto da empregada

que se demitira, vê uma barata saindo do armário. A

partir desse acontecimento banal, G.H. percebe-se

completamente sozinha no mundo.

A paixão segundo G.H. (1964)

Então, de novo, mais um milímetro grosso de ma-

téria branca espremeu-se para fora. Santa Maria, mãe

de Deus, ofereço-vos a minha vida em troca de não ser

verdade aquele momento de ontem. A barata com a ma-

téria branca me olhava. Não sei se ela me via, não sei

o que uma barata vê. Mas ela e eu nos olhávamos, e

também não sei o que uma mulher vê. Mas se seus olhos

não me viam, a existência dela me existia – no mun-

do primário onde eu entrara, os seres existem os outros

como modo de se verem. E nesse mundo que eu estava

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53LITERATURA TERCEIRÃO 8

conhecendo, há vários modos que significam ver: um

olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer

o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali

também: tudo isso também significa ver. A barata não

me via diretamente, ela estava comigo. A barata não me

via com os olhos mas com o corpo.

E eu – eu a via. Não havia como não vê-la. Não ha-

via como negar: minhas convicções e minhas asas se

crestavam rapidamente e não tinham mais finalidade. Eu

não podia mais negar. Não sei o que é que não podia

mais negar, mas já não podia mais. E nem podia mais

socorrer, como antes, de toda uma civilização que me

ajudaria a negar o que eu via.

Eu a via toda, a barata.

A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo

avesso. Não, não, ela mesma não tem direito nem aves-

so: ela é aquilo. O que nela é exposto é o que em mim

eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso

ignorado. Ela me olhava. E não era um rosto. Era uma

máscara. Uma máscara de escafandrista. Aquela gema

preciosa ferruginosa. Os dois olhos eram vivos como

dois ovários. Ela me olhava com a fertilidade cega de

seu olhar. Ela fertilizava a minha fertilidade morta. Se-

riam salgados os seus olhos? Se eu os tocasse – já que

cada vez mais imunda eu gradualmente ficava – se eu os

tocasse com a boca, eu os sentiria salgados?

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 16. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.

No excerto, ao olhar detalhadamente o inseto que

encontrara, a personagem procura a si mesma e, de

certa forma, passa a se confundir com a barata. Ao

observá-la e defini-la em sua feiura e estranhamento,

é a si mesma que observa e define. O ápice da narra-

tiva seria a fusão dos dois seres na boca de G.H.,

numa atitude desesperada de compreensão de sua

existência para transformação de sua essência.

A hora da estrela (1977)

Clarice Lispector exercita a metalinguagem em

muitas de suas obras, mas é em A hora da estrela que

desenvolve mais profundamente a questão da cons-

trução da narrativa. Isso se dá porque Rodrigo S.M.,

um narrador criado pela autora, se prepara para

contar a história de Macabéa, uma datilógrafa nor-

destina, que tenta ganhar a vida no Rio de Janeiro. O

livro acaba contendo tanto a história do narrador

como a da personagem, mas destaca significativa-

mente o processo de construção da obra.

A personagem é concebida como um exemplo de

insignificância e falta de glamour. Sonha, de forma

pueril, em ser artista de cinema e ouve, encantada,

em um radinho que mantém sob o travesseiro, anún-

cios que não entende na Rádio Relógio. Depois de

ser despedida, conhece o metalúrgico Olímpico de

Jesus, também nordestino, ambicioso para se inte-

grar à realidade do Sul e tornar-se deputado. Embo-

ra não conseguissem estabelecer um diálogo efetivo,

tornaram-se namorados. Logo, porém, ele reconhe-

ce a incompetência e feiura de Macabéa, trocando-a

por Glória, uma amiga dela.

Aconselhada pela própria Glória, Macabéa pro-

cura uma cartomante, que resolve animar a moça

com a perspectiva de um futuro sorridente, profeti-

zando que a nordestina encontraria um estrangeiro

alourado de “olhos azuis ou verdes ou castanhos ou

pretos”, muito rico e com quem se casaria. Macabéa

que “nunca tinha tido coragem de ter esperança”, sai

feliz da consulta, pois “a cartomante lhe decretara

sentença de vida”. Na sequência, ao atravessar a rua

distraidamente, é atropelada por um automóvel

Mercedes. Várias pessoas observam a moribunda, o

que ainda não acontecera enquanto vivia. Alguém

coloca uma vela acesa junto ao seu corpo. Desta ma-

neira, Macabéa alcança, com a própria morte, a sua

hora de maior destaque, sua hora de estrela.

Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma

filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar

espaço. No espelho distraidamente examinou as manchas

do rosto. Em Alagoas chamavam-se “panos”, diziam que

vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada

de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o par-

dacento. Ela toda era um pouco encardida pois raramente

se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de

combinação1. Uma colega de quarto não sabia como avi-

sar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia,

ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada

nela era iridescente2, embora a pele do rosto entre as man-

chas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava.

Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.

Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha

aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a

vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

1. Roupa íntima feminina que, numa só peça, faz as vezes de saia e de corpete.

2. Cujas cores são as do arco-íris ou que reflete essas cores.

A apresentação de Macabéa em seu aspecto físico

mais simples está diretamente relacionada à existên-

cia de Rodrigo S.M. Sem meias palavras, o narrador

revela as fragilidades da nordestina que não se lava-

va, cobria as manchas da pele com pó branco e não

se importava com nada. Era apenas café frio.

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54TERCEIRÃO 8 LITERATURA

1. (UEL-PR – Adaptada) A questão a seguir refere-se à pas-

sagem transcrita do conto “Feliz aniversário” (Laços de

família, 1960), de Clarice Lispector (1920 -1977).

Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniver-sariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de to-dos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisne-tos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração. Rodri-go, com aquela carinha dura, viril e despenteada, cadê

Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido

naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um

homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniver-

sariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?!

como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles se-

res opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela,

a forte, que casara em hora e tempo devidos com um

bom homem a quem, obediente e independente, res-

peitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe

pagara os partos, lhe honrara os resguardos. O tronco

fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos,

sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como

pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos fracos, sem

austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns

comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os

com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotove-

lando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com

força insuspeita cuspiu no chão.

LISPECTOR, Clarice. Feliz aniversário. In: Laços de família.28. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 78-79.

A problemática da terceira idade é o tema principal do

conto “Feliz aniversário”. Na história, sentada à cabeceira

da mesa preparada para a comemoração de seu octogé-

simo nono aniversário, D. Anita:

� a) vê, horrorizada, sua descendência constituída por se-

res mesquinhos.

b) lembra-se, saudosa, da época em que seu marido era

vivo e com ele dividia as dificuldades cotidianas.

c) contempla seu neto, Rodrigo, a trazer-lhe ao presente

a imagem do falecido marido quando jovem.

d) rememora, com rancor, sua vida de mulher, seja enquan-

to esposa, seja enquanto mãe, mostrando-se indignada

com a atual falta de afeto de filhos, netos e bisnetos.

e) mistura presente e passado, deixando emergir a sau-

dade que há tempo domina seu cotidiano.

2. Em A hora da estrela, o narrador apresenta a seguinte

reflexão: "Pois na hora da morte a pessoa se torna bri-

lhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada

um e é quando como no canto coral se ouvem agudos

sibilantes". Com base nela, explique:

a) Por que o romance leva esse título?

Porque narra a história de Macabéa, que sonhava em

se tornar uma estrela de cinema. O clímax da obra é

a morte da protagonista, o que, segundo o narrador,

pode ser considerado um instante de glória, a hora

em que todos nos tornamos estrelas.

b) Por que é irônica a relação entre o título e a história

de Macabéa?

Toda a história de Macabéa é marcada pela falta de

brilho e por sua insignificância. Ao contrário de seus

sonhos pueris, a protagonista não desperta a aten-

ção e nem o interesse de ninguém. Ela é, assim, o

oposto do glamour indicado no título. Nessa oposi-

ção é que reside a ironia.

3. (Fuvest-SP)

Será que eu enriqueceria este relato se usasse al-

guns difíceis termos técnicos? Mas aí é que está: esta

história não tem nenhuma técnica, nem de estilo,

ela é ao deus-dará. Eu que também não mancharia

por nada deste mundo com palavras brilhantes e fal-

sas uma vida parca como a da datilógrafa. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela.

Em A hora da estrela, o narrador questiona-se quanto ao

modo e, até, à possibilidade de narrar a história. De acor-

do com o trecho acima, isso deriva do fato de ser ele um

narrador:

a) iniciante, que não domina as técnicas necessárias ao

relato literário.

b) pós-moderno, para quem as preocupações de estilo

são ultrapassadas.

c) impessoal, que aspira a um grau de objetividade má-

xima no relato.

d) objetivo, que se preocupa apenas com a precisão

técnica do relato.

� e) autocrítico que percebe a inadequação de um estilo

sofisticado para narrar a vida popular.

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55LITERATURA TERCEIRÃO 8

TAREFA MÍNIMA

t� Leia o texto da aula.

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 1 a 3.

TAREFA COMPLEMENTAR

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 4 a 6.

1 Construtivismo

Contraposição de dissonâncias, de Theo Van Doesburg, 1924.

O Construtivismo foi uma proposta artística surgida

logo após a difusão das vanguardas europeias do início

do século XX. Trata-se da radicalização de algumas

propostas vanguardistas, na direção de uma pintura

geométrica e antifigurativa que resultaria na Arte Abs-

trata. Os construtivistas buscavam aplicar à sua arte o

mesmo rigor técnico empregado por engenheiros e

arquitetos em suas obras. Em João Cabral de Melo Ne-

to, o construtivismo se manifesta no racionalismo de

uma poesia avessa a qualquer expansão sentimental.

João Cabral de Melo Neto

(1920 -1999) nasceu no Reci-

fe (Pernambuco), onde fez os

estudos primários. Transferiu-

-se para o Rio de Janeiro nos

anos 1940, período em que

publica seus primeiros livros,

mesma época em que inicia

sua carreira diplomática, que o leva a países como Ingla-

terra, França, Suíça, Portugal e, por diversas vezes, Espa-

nha, cuja cultura deixou marcas profundas em sua arte.

Aposentou-se em 1990 e faleceu no Rio de Janeiro.

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2 O “poeta engenheiro”

“[...] a maior influência que sofri foi a de Le Cor-

busier. Aprendi com ele que se podia fazer uma arte

não com o mórbido, mas com o são, não com o es-

pontâneo, mas com o construído. [...] A partir de ‘O

engenheiro’, optei pela luz em detrimento da treva e

da morbidez.”Entrevista a Antônio Carlos Secchin. In: João Cabral, a poesia do

menos. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985, p. 301.

Essas palavras de João Cabral sintetizam aspec-

tos fundamentais de sua obra. A referência ao arqui-

teto suíço Le Corbusier (1887 -1965) e a reafirmação

de uma arte feita “com o construído”, isto é, de forma

planejada, indicam o racionalismo da poesia cabrali-

na. De fato, o poeta declarou certa vez que buscava

“o predomínio da inteligência sobre o instinto”. Com

isso, pretendia estabelecer o primado da lucidez na

abordagem do mundo, mostrando os objetos em sua

pureza conceitual, desprovida de qualquer arroubo

subjetivo.

Esse rigor na elaboração formal do poema, além

do fato de começar a publicar nos anos 1940, permi-

tiu uma aproximação um tanto apressada com a

Geração de 45. Mas o poeta revelou desde logo que

sua preocupação ia muito além da forma. Sua con-

cepção da construção poética – que lhe fez merece-

dor do apelido de poeta engenheiro – incluía a

sensibilidade à flor da pele, com os olhos atentos

voltados para o mundo à sua volta.

O engenheiro

A luz, o Sol, o ar livre

envolvem o sonho do engenheiro.

O engenheiro sonha coisas claras:

superfícies, tênis, um copo de água.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

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56TERCEIRÃO 8 LITERATURA

O lápis, o esquadro, o papel;

o desenho, o projeto, o número:

o engenheiro pensa o mundo justo,

mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos

ao edifício. A cidade diária,

como um jornal que todos liam,

ganhava um pulmão de cimento e vidro.)

A água, o vento, a claridade

de um lado o rio, no alto as nuvens,

situavam na natureza o edifício

crescendo de suas forças simples.MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Nas duas primeiras estrofes, o poema trata mais

diretamente da figura do engenheiro. A expressão

“mundo justo” (verso 7) diz respeito à precisão geo-

métrica e à exatidão matemática com que o enge-

nheiro pensa e concebe as coisas que cria. Nas

duas estrofes seguintes, o poeta se insere no texto

(“nós subíamos”), para sugerir que seu trabalho

artístico consiste em retirar da “natureza” as “coi-

sas simples”, isto é, exatas, precisas, claras, trans-

parentes.

3 A palavra-pedra

O título do primeiro livro de João Cabral, Pedra

do sono, publicado em 1942, já traz a imagem da pe-

dra, que acompanharia toda a sua obra. Nele, a ex-

pressão sono remete ao Surrealismo que marcaria o

início da carreira do poeta. Com o tempo, a atmosfe-

ra onírica seria abandonada, restando a contundên-

cia da palavra agressiva e impactante, feita para

despertar e nunca para anestesiar.

Em 1966, ao publicar o livro A educação pela pe-

dra, João Cabral oferece uma síntese de seu projeto

poético:

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, frequentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão

(de dentro para fora, e pré-didática).

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

e se lecionasse, não ensinaria nada;

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

uma pedra de nascença, entranha a alma.MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

A reflexão sobre a pedra conduz o poeta a um

aprendizado sobre a própria arte, em seu esforço de

apreensão da realidade concreta. A “voz inenfática”

sugere a impessoalidade de sua poesia, que rejeita o

sentimentalismo. A “resistência” da pedra corres-

ponde à força que deve ter a palavra poética, para

resistir a tudo que tenta torná-la fluida, fraca, sopo-

rífera. Mas a principal lição da pedra é a de “econo-

mia”: seu “adensar-se compacta” indica o caminho

de uma linguagem concisa, seca, que será a pedra de

toque da arte cabralina.

4 Do Nordeste à Espanha

João Cabral manteve em sua vida – e em sua obra

– duas paixões: a terra natal e a condição de viajante

imposta por suas atividades diplomáticas. A aparen-

te incompatibilidade entre esses dois amores o levou

a revelar, certa vez, que gostaria de que Pernambuco

se tornasse independente do Brasil, para que ele

pudesse servir ali como embaixador, satisfazendo

seus dois desejos díspares.

A verdade, porém, é que João Cabral conseguiu

unir o Nordeste às culturas que conheceu, principal-

mente a espanhola, apreendida nas experiências vi-

vidas quando morou em Barcelona, Sevilha e Madri.

Morte e vida severina (1954 -1955), por exemplo, é

inspirada em autos medievais ibéricos. E em muitos

outros momentos de sua obra João Cabral presta

homenagem explícita à Espanha.

Lições de Sevilha

Tenho Sevilha em minha cama,

eis que Sevilha se fez carne,

eis-me habitando Sevilha

como é impossível de habitar-se.

Nada há em volta que me lembre

a Sevilha cartão-postal,

a que é turístico-anedótica,

a que é museu e catedral.

Esta é a Sevilha trianera*,

Sevilha fundo de quintal,

Sevilha de lençol secando,

a que é corriqueira e normal.

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57LITERATURA TERCEIRÃO 8

É a Sevilha que há nos seus poços,

se há poço ou não, pouco importa;

a Sevilha que dá às sevilhanas

lições de Sevilha, de fora.MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

* Referência a Triana, tradicional bairro sevilhano.

Mais uma vez, o poeta se dispõe a aprender com

o mundo. Aqui, as lições são dadas pela cidade espa-

nhola de Sevilha. No entanto, assim como em “A

educação pela pedra” a lição era dada “para quem

soletrá-la”, isto é, para quem se dispusesse ao apren-

dizado, aqui também se exige concentração para o

que só pode ser observado com atenção, por estar

além da paisagem convencional (“Sevilha cartão-

-postal”, “turístico-anedótica”), nos “poços” da cida-

de, isto é, nas suas entranhas.

5 Metalinguagem

Os poemas transcritos até aqui evidenciam um

traço fundamental da poética de João Cabral: a ten-

dência a refletir sobre a arte. Esse interesse o condu-

ziria para além de seus próprios versos, como

mostram os textos que escreveu a respeito do artista

plástico espanhol Joan Miró (1893 -1983).

Em João Cabral, o exercício da metalinguagem

funcionou como reforço da inclusão de sua poesia no

mundo e no tempo. Seus versos rejeitam o isolamen-

to da torre de marfim, o distanciamento social, e

buscam decididamente a comunicação, o contato

com o leitor. O esforço para corresponder a esse de-

sejo vale a pena, pois a poesia de João Cabral trans-

mite ao leitor as lições que aprende: jamais voltar-se

para o superficial, preferindo sempre a imersão ver-

tical, para captar o que permanece, o que resiste –

exatamente como a pedra.

O estilo enxuto da poesia de João Cabral, que

buscava evitar o sentimentalismo, tinha suas raízes

na obra do escritor Graciliano Ramos, cuja herança

o poeta reconhecia explicitamente.

Graciliano Ramos:

Falo somente com o que falo:

com as mesmas vinte palavras

girando ao redor do sol

que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,

resto de janta abaianada,

que fica na lâmina e cega

seu gosto de cicatriz clara.

Falo somente do que falo:

do seco e de suas paisagens,

Nordeste, debaixo de um sol

ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,

cresta o simplesmente folhagem,

folha prolixa1, folharada,

onde possa esconder-se na fraude.

Falo somente por quem falo:

por quem existe nesses climas

condicionados pelo sol,

pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes

de tantas condições caatinga

em que só cabe cultivar

o que é sinônimo de míngua.

Falo somente para quem falo:

quem padece sono de morto

e precisa de um despertador

acre2, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,

a contrapelo3, imperioso,

e bate nas pálpebras como

se bate numa porta a socos.

MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

1. Que usa palavras em demasia.

2. Que tem sabor amargo, ácido, azedo.

3. Desfavorável, adverso.

Os dois-pontos que se seguem ao nome de Graci-

liano Ramos, no título do poema, insinuam que os

versos se dirigem ao escritor, reproduzem uma fala

sua ou, ainda, servem para defini-lo. Seja como for,

o poeta afirma uma mesma coisa: ao falar do outro,

está também falando de si mesmo. O poeta alinha

aqui quatro fatores que condicionam tanto sua fala

poética quanto a prosa de Graciliano: “com o que

falo” (estrofes 1 e 2) sugere a linguagem que busca a

precisão expressiva e que evita o excesso dispensá-

vel; “do que falo” (estrofes 3 e 4) indica uma temática

mais forte nos dois autores, a da seca; “por quem

falo” (estrofes 5 e 6) explicita a disposição de traduzir

a alma sertaneja; “para quem falo” (estrofes 7 e 8)

escancara a necessidade de denunciar as mazelas

sociais para comover (e mover) quem entra em con-

tato com a obra dos dois escritores.

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58TERCEIRÃO 8 LITERATURA

6 Morte e vida severina (1954 -1955)

Morte e vida severina tem como subtítulo: Auto

de natal pernambucano. Auto por se tratar de uma

peça de teatro curta (apenas um ato), e escrita em

versos, seguindo uma tradição ibérica de origem

medieval; natal por fazer referência a um nascimen-

to; e, finalmente, pernambucano por ter Pernam-

buco como cenário. Os versos curtos remetem ainda

aos textos teatrais da Idade Média, como os do por-

tuguês Gil Vicente.

Nos anos 1960, a peça foi encenada por um grupo

de jovens atores do Tuca (Teatro da Universidade Ca-

tólica de São Paulo) com uma novidade: os versos de

João Cabral foram musicados por um compositor ini-

ciante, Chico Buarque de Hollanda. O título da peça

chama a atenção ao promover uma curiosa inversão

entre vida e morte, colocando esta última em primeiro

lugar. O enredo da peça explica essa mudança. Além

disso, a expressão severina é neologismo, um nome

próprio transformado em adjetivo. Esse procedimento

sugere que a personagem em torno do qual girará o

auto, o retirante Severino, funciona como síntese de

todos aqueles que migram para as cidades, fugindo às

dificuldades da seca nordestina.

O retirante explica ao leitor quem é e a que vai

– O meu nome é Severino

não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,

já finados Zacarias,

vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas,

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia

[...]MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Com essa fala inicial, Severino se apresenta aos

leitores/espectadores. Note-se que, ao fazê-lo, tenta

se particularizar, mas acaba por demonstrar que,

como ele, existem muitos outros: “Somos muitos

Severinos / iguais em tudo na vida”. A partir desse

ponto, ele traça um perfil dos nordestinos submeti-

dos às dificuldades de sobrevivência que acaba por

levar à “velhice antes dos trinta”.

Fugindo da seca, Severino busca a vida. Porém,

trava, ao longo de sua jornada, uma sucessão de en-

contros com a morte: um defunto que é conduzido ao

cemitério; mulheres que choram a morte de um mora-

dor local; o desaparecimento do próprio rio que ele

segue em sua jornada rumo ao litoral, e que também é

vítima da seca; e, ainda, o funeral de um lavrador.

Assiste ao enterro de um lavrador de eito1 e ouve o que

dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério

– Esta cova em que estás

com palmos medida

é a conta menor

que tiraste em vida.

– É de bom tamanho,

nem largo nem fundo,

é a parte que te cabe

deste latifúndio.

– Não é cova grande,

é cova medida,

é a terra que querias

ver dividida.

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59LITERATURA TERCEIRÃO 8

– É uma cova grande

para teu pouco defunto,

mas estarás mais ancho2

que estavas no mundo.

– É uma cova grande

para teu defunto parco3,

porém mais que no mundo

te sentirás largo.

– É uma cova grande

para tua carne pouca,

mas a terra dada

não se abre a boca.MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

1. Trabalho de limpeza de uma plantação.

2. Largo, espaçoso.

3. Minguado, escasso, magro.

O trecho transcrito reafirma a luta pela terra que

marca a vida do sertanejo nordestino. É sugerido aqui

que a seca é apenas um dos fatores a expulsá-lo de seu

ambiente. A exploração do latifúndio e a batalha desi-

gual que ele trava contra os grandes proprietários aca-

bam também por fazer dele uma vítima: seja com a

morte, seja com o abandono do lugar. O trecho traz a

nota do humor amargo, ácido, que está presente na lin-

guagem da peça, na ironia da situação do lavrador que,

morto, recebe finalmente a terra pela qual tanto lutou.

O embate entre a vida buscada e a morte encontra-

da continua até mesmo no destino final do retirante, a

cidade do Recife. Ao descobrir que as perspectivas de

vida, ali, são igualmente nulas, Severino oscila entre

manter-se vivo e entregar-se à morte. José, um mestre

carpina (isto é, carpinteiro) tenta demovê-lo da opção

pela morte, apresentando como argumento a reafir-

mação da vida representada pelo nascimento de seu

filho, que acaba de ocorrer. Depois de celebrar a che-

gada da criança, o mestre carpina se dirige a Severino.

O carpina fala com o retirante que esteve de fora,

sem tomar parte em nada

Severino retirante,

deixe agora que lhe diga:

eu não sei bem a resposta

da pergunta que fazia,

se não vale mais saltar

fora da ponte e da vida;

nem conheço essa resposta,

se quer mesmo que lhe diga;

é difícil defender,

só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é

esta que vê, severina;

mas se responder não pude

à pergunta que fazia,

ela, a vida, a respondeu,

com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida severina.MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Essa é a fala final da peça, e nela se explicita a luta

entre o desespero, representado pela dúvida do reti-

rante diante das possibilidades da vida e da morte, e a

esperança, consubstanciada no recém-nascido. O nas-

cimento (que explica a classificação da peça como um

auto de natal) justifica a inversão do título: depois de

tantos encontros com a morte, finalmente Severino

encontra a vida. A cena transmite uma mensagem de

esperança: a possibilidade de vitória da resistência

contra a persistência da morte.

TEXTO PARA A QUESTÃO 1

1

5

10

15

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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60TERCEIRÃO 8 LITERATURA

1. Assinale a alternativa INCORRETA sobre o poema anterior:

a) Na primeira estrofe, as rimas são formadas pela repeti-

ção de uma mesma palavra, alternada em singular/plu-

ral; essa alternância já convoca o tema da união a partir

de um canto que é individual, mas que se coletiviza.

b) Na segunda estrofe, temos rimas consoantes, contando

ainda com a exploração da homofonia entre “todos” e

“toldos”; as rimas finais em “ão”, propositadamente po-

bres, contribuem para criar a imagem do balão inflado.

c) Trata-se de uma apologia da comunhão, aqui alegori-

zada na imagem dos galos que, com seus gritos anun-

ciadores do sol, parecem tecer a manhã, até construir

um toldo formado pelo cruzamento dos cantos.

d) Os versos 3 a 10 formam um único período, como a

representar um espaço para fazer caber todos os ga-

los, promovendo a incorporação formal do tema da

solidariedade.

� e) A primeira estrofe apresenta o elogio da ação indivi-

dual, e a segunda indica a reação dos seguidores,

formando um grupo coeso em torno do indivíduo; o

poema pode ser interpretado, assim, como uma ale-

goria da liderança política.

2. (ENCCEJA)

E se somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina,

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.

As repetições de palavras e de estruturas presentes nes-

te trecho de Morte e vida severina são recursos expressi-

vos que pretendem mostrar que:

a) a vida no sertão nordestino é diferente de pessoa

para pessoa.

b) Severino conhece muitas pessoas com o mesmo no-

me que o seu.

c) há muitas mulheres com o nome de Severina no ser-

tão nordestino.

� d) a fome e a miséria atingem muitos habitantes do

sertão nordestino.

3. (Fuvest-SP)

Mas não senti diferença

entre o Agreste e a Caatinga,

e entre a Caatinga e aqui a Mata

a diferença é a mais mínima.

Está apenas em que a terra

é por aqui mais macia;

está apenas no pavio,

ou melhor, na lamparina:

pois é igual o querosene

que em toda parte ilumina,

e quer nesta terra gorda

quer na serra, de caliça,

a vida arte sempre com

a mesma chama mortiça.MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina.

Neste excerto, o retirante, já chegado à Zona da Mata,

reflete sobre suas experiências, reconhecendo uma dife-

rença e uma semelhança entre as regiões que conhece-

ra ao longo de sua viagem. Considerando o excerto no

contexto da obra a que pertence,

a) explique sucintamente em que consistem a diferença

e a semelhança reconhecidas pelo retirante.

O retirante se refere à Zona da Mata qualificando-a

como terra “mais macia” e “terra gorda”, contras-

tando com a secura e a magreza associadas à Caa-

tinga. No entanto, há, sob essas diferenças, uma

forte identidade na mesma condição “severina”, isto

é, nas mesmas dificuldades enfrentadas pelos habi-

tantes dos dois espaços.

b) Depois de chegar ao Recife, o retirante mudará subs-

tancialmente o julgamento que expressa neste excer-

to? Justifique brevemente sua resposta.

Não. Ao chegar ao Recife, o retirante encontrará a

mesma falta de esperança e de perspectiva que já

conhecia e enfrentava desde o início de sua viagem.

TAREFA MÍNIMA

t� Leia o texto da aula.

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 1 e 2.

TAREFA COMPLEMENTAR

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 3 a 5.

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61LITERATURA TERCEIRÃO 8

1 Concretismo

Continuidade, de Max Bill, 1986.

O escultor suíço Max Bill (1908 -1994) é tido como

um dos mais influentes designers do século XX, conhe-

cido também por ser um artista que abraçou o conceito

de arte concreta que se desenvolveu na Europa a partir

da década de 1930, em oposição às propostas de arte

abstrata. A escultura acima é uma das muitas criadas

pelo artista que trabalham variações da ideia do infini-

to, representada ali por intermédio da indeterminação

do início e do fim da figura, o que sugere um movimen-

to contínuo.

Com a proposta de buscar a pureza e o rigor for-

mal na ordem harmônica do universo, Max Bill foi

muito influenciado pelas ideias da escola Bauhaus (a

mais importante expressão do Modernismo no de-

sign e na arquitetura) e defendia em seu trabalho que

a matemática é o meio mais eficiente para o conheci-

mento da realidade objetiva e que uma obra plástica

deve ser ordenada pela geometria e pela clareza da

forma.

A vertente literária da arte concreta teve início no

Brasil em 1956. A Exposição Nacional de Arte Concre-

ta, ocorrida em São Paulo, ficou marcada como o lan-

çamento da poesia concreta brasileira.

2 A poesia concreta no Brasil

Os jovens intelectuais paulistas – Augusto de Cam-

pos (1931), Décio Pignatari (1927 -2012) e Haroldo de

Campos (1929 -2003) – já buscavam possibilidades re-

novadoras para a poesia desde o lançamento, em 1952,

da revista Noigandres (palavra tirada de um texto do

poeta norte-americano Ezra Pound).

Em pleno apogeu desenvolvimentista de São

Paulo, os autores propunham uma expressão artísti-

ca que significasse uma reação à poesia intimista e

estetizante dos anos 1940. A poesia concreta buscava

levar às últimas consequências certos processos es-

truturais que marcaram o Futurismo, o Dadaísmo e,

em parte, o Surrealismo. A grande inspiração, po-

rém, era o poeta Oswald de Andrade, principalmen-

te pela economia linguística de seus poemas-pílula

que marcaram época na década de 1920.

O cerne das propostas dos concretistas é a supera-

ção do verso como unidade rítmico-formal, procu-

rando estruturar o texto poético a partir de seu

suporte, sendo ele a página do livro em branco ou

não. Além disso, o concretismo na poesia gerou uma

série de inovações que contribuíram para o desenvol-

vimento de uma nova maneira de se pensar poesia.

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Décio Pignatari entre os irmãos Campos (Augusto e Haroldo): os primei-

ros componentes do grupo concretista brasileiro.

3 As inovações propostas pela poesiaconcreta

Para o crítico Alfredo Bosi, os concretistas têm

como ponto de partida de sua poética o simbolista

francês Mallarmé, que teria sido o autor do primeiro

poema em que a comunicação não se faz no nível do

tema, mas no da própria estrutura verbo-visual. De-

pois disso, nomes como Maiakovski (poeta russo),

Marinetti (idealizador do futurismo italiano), além de

Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e

João Cabral de Melo Neto, também teriam sido im-

portantes no desenvolvimento das inovações da poe-

sia concreta.

POESIA CONCRETA

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62TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Inovação semântica

Há, no poema concreto, a busca pela comunica-

ção visual, não verbal, imediata. O poema funciona

como um ideograma que possui um significado nele

mesmo.

Psiu!

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CAMPOS, Augusto de. Psiu!. In: Viva Vaia –

Poesia 1949 -1979. São Paulo: Brasiliense, 1986.

A proposta gráfica do poema – associada à leitura

das palavras que cercam os lábios vermelhos –

transmite a ideia de circularidade e intenso movi-

mento. Os termos sobrepostos com diferentes tipos

e tamanhos de letras dão a impressão de vida e ba-

rulho. O título sugere um chamado “psiu!” e tudo

parece atrair a atenção do interlocutor. Outra leitura

possível é que a vida, sugerida pelo vermelho da

boca, é oprimida por tanta informação e notícia. As-

sim, o “psiu” pode ser entendido como um alerta

para que a vida não se esvaia completamente.

Inovação sintática

Os tradicionais laços sintáticos (preposições, con-

junções e pronomes, por exemplo) são eliminados

do texto, o que gera uma poesia objetiva, composta

principalmente de substantivos e verbos.

Pós-Tudo, poema concreto de Augusto de Campos.

A partir dos verbos mudar e querer, Augusto de

Campos constrói um texto que aborda a questão do

desejo da mudança e a perplexidade frente ao novo,

que se percebe diferente e não sabe exatamente como

agir. Importante observar a ambiguidade da palavra

final: ao mesmo tempo em que sugere silêncio e imo-

bilidade frente à novidade, também pode ser a conju-

gação do verbo mudar em primeira pessoa, o que

indica a continuidade da mudança.

Inovação lexical

O poema concreto utiliza neologismos frequente-

mente, explorando muitas vezes também a força ex-

pressiva de palavras oriundas de outros idiomas

(estrangeirismos) e termos técnicos (tecnicismos).

durassolado solumano

petrificado corpumano

amargamado fardumano

agrusurado servumano

capitalienado gadumano

massamorfado desumanoJosé Lino Grunewald

Composto quase totalmente com palavras criadas

por justaposição, o poema propõe uma reflexão sobre

o peso da vida marcada pelo trabalho e pela alienação

política. O termo humano é várias vezes transforma-

do, percorrendo uma trajetória que vai de “corpuma-

no” até “desumano”, substantivos que ganham mais

força e sentido pela aproximação de neologismos co-

mo “servumano” e “capitalienado”.

Inovação morfológica

A desintegração das palavras, separando sufixos,

prefixos e radicais, também é um procedimento co-

mum nos poemas concretos, o que propõe uma nova

leitura da palavra como unidade de significado e,

consequentemente, das ideias expressas no texto.

Epitáfio para um banqueiro

n e g ó c i oe g o

ó c i oc i o

0José Paulo Paes

Considerando o significado da palavra epitáfio

(algo que se escreve sobre um túmulo) compreende-

-se que o poema faz uma síntese da vida de um ban-

queiro. Tendo o negócio como motivação principal,

a palavra do primeiro verso é desmembrada para

compor os outros versos e, por isso, é chamada de

palavra-valise. Dentro dela encontram-se o ego, o

ócio e o cio que terminam compondo uma operação

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63LITERATURA TERCEIRÃO 8

aritmética que tem zero (0) como resultado, o que

aponta para a conclusão de que a vida do banqueiro

acabou completamente anulada.

Inovação fonética

A formação de jogos sonoros por meio de figuras

de repetição como aliterações e assonâncias também

é uma constante.

Patacoada

A pata empata a pata

porque cada pata

tem um par de patas

e um par de patas

um par de pares de patas.

Agora, se se engata

pata a pata

cada pata de um par de pares de patas,

a coisa nunca mais desata

e fica mais chata

do que pata de pataJosé Paulo Paes

O poema é marcado pela assonância da vogal a e

pela repetição da palavra pata. Além disso, a consoan-

te t também é repetida em palavras como empata,

engata, desata e chata, o que atribui ao texto uma

sonoridade muito particular. Trata-se de um exemplo

de poesia para crianças e sua leitura rápida também

vale como um divertido exercício de trava-língua.

Inovação tipográfica

Uma das propostas mais radicais do grupo con-

cretista é a abolição do verso, trabalhando com a

utilização dos espaços brancos como parte constitu-

tiva dos textos. O poema concreto funciona como

uma obra de arte visual e, na maioria das vezes,

prescinde, inclusive, de sinais de pontuação.

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os

Eis os amantes

Eis os amantes, poema concreto de Augusto de Campos.

O texto faz parte de um grupo de poemas do au-

tor intitulado “poetamenos”, em que a relação entre

as cores primárias e secundárias é a base da estrutu-

ração dos textos. Neste poema, em especial, as cores

azul (primária) e laranja (complementar) represen-

tam a figura do poeta e da amada. Como o poema

está alinhado a partir do centro da página, pode-se

dizer que os amantes possuem um eixo de força cen-

tral e que o texto se estrutura, espacial e cromatica-

mente, na fusão dos dois elementos. Mais uma vez

aparecem aqui as palavras-valise que contribuem

para a sensação de fusão entre as palavras e entre os

amantes.

TEXTO PARA AS QUESTÕES 1 E 2

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Pluvial, poema concreto de Augusto de Campos.

1. Em sua fase ortodoxa, a vanguarda brasileira postulou

uma poética rigorosa, na qual o poema deveria ser cons-

truído de forma sintético-ideogrâmica. A realização des-

sa inovadora poética se deu pela utilização do branco da

página como constituinte ativo do poema e pela estru-

turação dos poemas por meio das formas geométricas.

Explique como a proposta formal contribui para a com-

preensão do sentido do texto.

O fato de a palavra pluvial aparecer na parte superior

do texto escrita verticalmente sugere o movimento da

chuva que, ao cair, transforma-se na palavra fluvial,

representada na horizontal a partir do meio do poema.

A forma final do texto, com a união das duas palavras,

representa a transformação da água das chuvas em

rios que posteriormente evaporam e voltam a se tornar

chuva.

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64TERCEIRÃO 8 LITERATURA

2. À parte a inovação tipográfica, que propõe a eliminação

do verso, aponte outra característica inovadora da poe-

sia concreta que se materializa neste texto. Explique.

O fato de o poema ser composto apenas pelos adjetivos

pluvial e fluvial já pode ser compreendido como uma ino-

vação. Não há verbos nem sinais de pontuação no

texto. A síntese absoluta é mais um dos pressupostos

a partir dos quais se constroem poemas concretos.

3. (Enem) O poema a seguir pertence à poesia concreta bra-

sileira. O termo latino de seu título significa "epitalâmio",

poema ou canto em homenagem aos que se casam.

Considerando que símbolos e sinais são utilizados geral-

mente para demonstrações objetivas, ao serem incorpo-

rados no poema "Epithalamium – II", tais símbolos:

� a) adquirem novo potencial de significação.

b) eliminam a subjetividade do poema.

c) opõem-se ao tema principal do poema.

d) invertem seu sentido original.

e) tornam-se confusos e equivocados.

1 A Bossa Nova

O projeto desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek (1956 -1961) buscou modernizar a indústria

brasileira. O Brasil foi varrido por uma sede do novo, que se manifestaria também em algumas designações de

movimentos artísticos da época, como o Cinema Novo, a Nova Arquitetura e a Bossa Nova.

A Bossa Nova foi o resultado do encontro de três artistas: o poeta Vinicius de Moraes, o compositor Tom

Jobim e o violonista João Gilberto. Três virtuoses que estavam igualmente abertos para influências diversas

– como o jazz norte-americano e a tradição musical brasileira. João Gilberto deu voz à delicadeza das com-

posições de Tom e Vinicius, com uma execução vocal suave, minimalista, quase em sussurro, que seria a

marca registrada da Bossa Nova.

O primeiro álbum de João Gilberto, Chega de saudade, de 1959, trazia uma das músicas mais emblemáti-

cas do movimento, “Desafinado”.

ANOS 1960 MÚSICA E ARTES PLÁSTICAS

TAREFA MÍNIMA

t� Leia o texto da aula.

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 1 e 2.

TAREFA COMPLEMENTAR

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 3 e 4.

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65LITERATURA TERCEIRÃO 8

Desafinado

Tom Jobim / Newton Mendonça

Se você disser que eu desafino amor

Saiba que isto em mim provoca imensa dor

Só privilegiados têm o ouvido igual ao seu

Eu possuo apenas o que Deus me deu

Se você insiste em classificar

Meu comportamento de antimusical

Eu mesmo mentindo devo argumentar

Que isto é Bossa Nova que isto é muito natural

O que você não sabe nem sequer pressente

É que os desafinados também têm um coração

Fotografei você na minha Rolley-Flex*

Revelou-se a sua enorme ingratidão

Só não poderá falar assim do meu amor

Este é o maior que você pode encontrar

Você com a sua música esqueceu o principal

Que no peito dos desafinados

No fundo do peito bate calado

Que no peito dos desafinados também bate um coraçãoJoão Gilberto. Chega de saudade. LP Odeon, 1959.

* Marca de máquina fotográfica da época.

Na canção, o emissor reclama do desprezo da

amada: colocada como um dos “privilegiados” que

possui ouvido capaz de perceber a afinação, a moça

não consegue perceber que o que ela toma por “com-

portamento antimusical” é, na verdade, a proclama-

ção de um novo estilo, marcado pela naturalidade

(“Isto é Bossa Nova, isto é muito natural”), entendida

como o instrumento ideal para expressar a sincerida-

de do sentimento (“no peito dos desafinados também

bate um coração”). O novo estilo nada tem de desafi-

nado, ao contrário do que pensa a ouvinte que o des-

preza: trata-se de uma elaboração melódica sofisticada.

2 Os Festivais da Canção

Edu Lobo vence o Festival de 1967 com “Ponteio”.

O advento da televisão trouxe modificações profun-

das na difusão da música brasileira. Os Festivais da

Canção veiculados por emissoras como a Excelsior e a

Record tornaram-se oportunidades de extravasamento

juvenil, tanto de artistas como do público, no momento

em que o país vivia o forte cerceamento das liberdades

civis provocado pela ação dos militares que assumiram

o governo após o golpe de 1964.

A composição vencedora do III Festival da Música

Popular Brasileira, em 1967, transmitido pela TV Record,

de São Paulo, foi “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam.

Ponteio*

Edu Lobo / Capinam

Era um, era dois, era cem

Era o mundo chegando e ninguém

Que soubesse que eu sou violeiro

Que me desse ou amor ou dinheiro

Era um, era dois, era cem

Vieram pra me perguntar:

“Ô, você, de onde vai, de onde vem?

Diga logo o que tem pra contar”

Parado no meio do mundo

Senti chegar meu momento

Olhei pro mundo e nem via

Nem sombra, nem sol, nem vento

Quem me dera agora

Eu tivesse a viola pra cantar

Quem me dera agora

Eu tivesse a viola pra cantar

Era um dia, era claro, quase meio

Era um canto calado sem ponteio

Violência, viola, violeiro

Era morte em redor, mundo inteiro

Era um dia, era claro, quase meio

Tinha um que jurou me quebrar

Mas não lembro de dor nem receio

Só sabia das ondas do mar

Jogaram a viola no mundo

Mas fui lá no fundo buscar

Se eu tomo a viola ponteio

Meu canto não posso parar, não

Quem me dera agora

Eu tivesse a viola pra cantar

Quem me dera agora

Eu tivesse a viola pra cantar

Era um, era dois, era cem

Era um dia, era claro, quase meio

Encerrar meu cantar já convém

Prometendo um novo ponteio

Certo dia que sei por inteiro

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66TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Eu espero não vá demorar

Este dia estou certo que vem

Digo logo o que vim pra buscar

Correndo no meio do mundo

Não deixo a viola de lado

Vou ver o tempo mudado

E um novo lugar pra cantarIn: 3o Festival da Música Popular Brasileira. LP Philips, 1967.

* Ato de tocar instrumento de corda.

Em “Ponteio”, o cantador insiste em entoar seu

canto, a despeito do ambiente desfavorável (“Era

morte em redor, mundo inteiro”) e das ameaças que

recebe (“Tinha um que jurou me quebrar”). Em seu

gesto de resistência (“Meu canto não posso parar”)

está a esperança da chegada do tempo de liberdade

(“Este dia estou certo que vem”), que deverá ser um

“tempo mudado”, isto é, diferente daquele que se

vive – clara referência à situação política do país na-

quele momento.

3 MPB

Chico Buarque (segundo à direita) e o conjunto vocal MPB 4.

Nos anos 1940, a expressão música popular

brasileira designava a produção musical de raízes

populares. Já nos anos 1960, o termo passou a ser

sintetizado na sigla MPB e associado a uma postura

de defesa do patrimônio cultural genuinamente bra-

sileiro, contra o que se considerava uma invasão de

guitarras elétricas e sonoridades oriundas do rock

americano ou inglês.

Embora não tenha se envolvido diretamente nes-

se ataque aos instrumentos modernos, o compositor

Chico Buarque se transformou, ao longo do tempo,

em um dos principais ícones da chamada MPB. A

canção “Roda viva”, terceiro lugar no Festival de 1967

(o mesmo de “Ponteio”), foi um de seus grandes su-

cessos na época.

Roda-viva

Chico Buarque

Tem dias que a gente se senteComo quem partiu ou morreuA gente estancou de repenteOu foi o mundo então que cresceuA gente quer ter voz ativaNo nosso destino mandarMas eis que chega a roda-vivaE carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-giganteRodamoinho, roda piãoO tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração

A gente vai contra a correnteAté não poder resistirNa volta do barco é que senteO quanto deixou de cumprirFaz tempo que a gente cultivaA mais linda roseira que háMas eis que chega a roda-vivaE carrega a roseira pra lá

Roda mundo…

A roda da saia, a mulataNão quer mais rodar, não senhorNão posso fazer serenataA roda de samba acabouA gente toma a iniciativaViola na rua, a cantarMas eis que chega a roda-vivaE carrega a viola pra lá

Roda mundo...

O samba, a viola, a roseiraUm dia a fogueira queimouFoi tudo ilusão passageiraQue a brisa primeira levouNo peito a saudade cativaFaz força pro tempo pararMas eis que chega a roda-vivaE carrega a saudade pra lá

Roda mundo...Chico Buarque de Hollanda – volume 3. RGE Discos, 1968.

Originalmente, a música foi composta para a peça

homônima, escrita pelo próprio compositor, que nar-

rava a história de um cantor popular engolido pelos

meios de comunicação de massa que então se instala-

vam no país. No entanto, o alcance da música se am-

plia, tratando da angústia do indivíduo que não con-

segue ter nas mãos as rédeas do próprio destino.

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67LITERATURA TERCEIRÃO 8

4 Música de protesto

Geraldo Vandré.

Alguns representantes da Bossa Nova, como Car-

los Lyra, defendiam um envolvimento maior do mo-

vimento com as questões sociais. Após o golpe

militar de 1964, essa tendência se acentuou no meio

musical, fazendo surgir um conjunto de canções que

tinham como aspecto comum a temática social e a

expressão de revolta contra a opressão.

O maior representante dessa corrente foi Geraldo

Vandré, autor da música que se tornaria um verda-

deiro hino da resistência ao golpe de 1964 no âmbito

da música popular, “Pra não dizer que não falei das

flores”, mais conhecida como “Caminhando”.

Pra não dizer que não falei das flores

Geraldo Vandré

Caminhando e cantando e seguindo a canção

Somos todos iguais, braços dados ou não

Nas escolas, nas ruas, campos, construções

Caminhando e cantando e seguindo a canção

Vem, vamos embora, que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Pelos campos há fome em grandes plantações

Pelas ruas marchando indecisos cordões

Ainda fazem da flor seu mais forte refrão

E acreditam nas flores vencendo o canhão

Há soldados armados, amados ou não

Quase todos perdidos de armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição

De morrer pela pátria e viver sem razão

Nas escolas, nas ruas, campos, construções

Somos todos soldados armados ou não

Caminhando e cantando e seguindo a canção

Somos todos iguais, braços dados ou não

Os amores na mente, as flores no chão

A certeza na frente, a história na mão

Aprendendo e ensinando uma nova lição

In: A era dos festivais – CD que acompanha o livro A era dos festivais, de Zuza Homem de Mello. São Paulo: Editora 34, 2003.

Não por acaso, Vandré se tornou um dos principais

alvos das perseguições militares na classe artística.

“Caminhando” se coloca como uma convocação geral

dirigida a estudantes (“escolas”), trabalhadores rurais

(“campos”) e urbanos (“construções”) e, enfim, a todos

os que protestam “nas ruas”. O motivo da convocação

é explicitado: “quem sabe faz a hora, não espera acon-

tecer” – brado de revolta e estímulo à ação transforma-

dora. Uma transformação que se pretende inevitável, já

que quem a promove tem “a certeza na frente, a histó-

ria na mão”. A referência aos militares é feita com iro-

nia e força: “Nos quartéis lhes ensinam uma antiga

lição / De morrer pela pátria e viver sem razão”.

5 Jovem Guarda

A televisão tam-

bém foi palco do sur-

gimento de outro fe-

nômeno de massa, a

Jovem Guarda, de Ro-

berto Carlos e seu par-

ceiro Erasmo Carlos.

Fundando-se em uma

vertente do rock deno-

minada iê-iê-iê, surgi-

da a partir do pop eu-

ropeu (inglês e italia-

no), o movimento obteve sucesso consagrador, prin-

cipalmente após o lançamento de “Quero que vá tu-

do pro inferno”, no programa Jovem Guarda, da TV

Record, em 1965.

Quero que vá tudo pro infernoRoberto Carlos / Erasmo Carlos

De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar

Se você não vem e eu estou a lhe esperar

Só tenho você em meu pensamento

E a sua ausência é todo o meu tormento

Quero que você me aqueça nesse inverno

E que tudo o mais vá pro inferno

De que vale a minha boa vida de playboy

Se entro no meu carro e a solidão me dói

Onde quer que eu ande tudo é tão triste

Não me interessa o que de mais existe

Quero que você me aqueça nesse inverno

E que tudo o mais vá pro inferno

Não suporto mais você longe de mim

Quero até morrer do que viver assim

Só quero que você me aqueça nesse inverno

E que tudo o mais vá pro infernoRoberto Carlos, Jovem Guarda. LP CBS, 1965.

Roberto Carlos.

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68TERCEIRÃO 8 LITERATURA

A canção exemplifica a simplicidade das músicas

da Jovem Guarda, elaboradas a partir de conceitos

básicos facilmente assimiláveis; no caso, trata-se do

conquistador que se rende ao amor verdadeiro. Do

ponto de vista formal, também há o recurso a luga-

res-comuns do vocabulário de matriz romântica,

como “céu azul” e “sol sempre a brilhar”.

6 Tropicalismo

Capa do disco Tropicalia ou panis et circencis.

Oriundos dos Festivais, mas percorrendo um cami-

nho alternativo independente, os baianos Caetano Ve-

loso e Gilberto Gil fundaram o movimento tropicalista,

de que faziam parte artistas como Gal Costa, Tom Zé e

os componentes da banda Os mutantes (Rita Lee e os

irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias). O Tropicalismo

retomava a perspectiva da Antropofagia do modernista

Oswald de Andrade para realizar, em palcos e apresen-

tações repletas de simbologia e efeitos plásticos e dra-

máticos, a união entre a informação estrangeira do rock

e a busca da expressão moderna da brasilidade.

Tropicália

Caetano Veloso

Sobre a cabeça os aviões

Sob os meus pés, os caminhões

Aponta contra os chapadões, meu nariz

Eu organizo o movimento

Eu oriento o Carnaval

Eu inauguro o monumento no planalto central

Do país

Viva a bossa, sa, sa

Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça

O monumento é de papel crepom e prata

Os olhos verdes da mulata

A cabeleira esconde atrás da verde mata

O luar do sertão

O monumento não tem porta

A entrada é uma rua antiga, estreita e torta

E no joelho uma criança sorridente, feia e morta,Estende a mãoViva a mata, ta, taViva a mulata, ta, ta, ta, ta

No pátio interno há uma piscinaCom água azul de AmaralinaCoqueiro, brisa e fala nordestina e faróisNa mão direita tem uma roseiraAutenticando eterna primaveraE no jardim os urubus passeiam a tarde inteiraEntre os girassóisViva Maria, ia, iaViva a Bahia, ia, ia, ia, ia

No pulso esquerdo o bang-bangEm suas veias corre muito pouco sangueMas seu coraçãoBalança a um samba de tamborimEmite acordes dissonantes

Pelos cinco mil alto-falantes

Senhoras e senhores, ele põe os olhos grandes

Sobre mim

Viva Iracema, ma, ma

Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma

Domingo é o fino da bossa

Segunda-feira está na fossa

Terça-feira vai à roça

Porém, o monumento é bem moderno

Não disse nada do modelo do meu terno

Que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Viva a banda, da, da

Carmen Miranda, da, da, da da, da da daCaetano Veloso. Philips, 1990 (remasterização do LP de 1967).

“Tropicália” apresenta uma imagem do Brasil em

que a tradição e o arcaico (“palhoça”, “fala nordestina”)

se juntam ao moderno (“aviões”, “caminhões”, “pisci-

na”, “faróis”). A letra da canção abre a possibilidade

para uma leitura política. A “mão direita” figura o po-

der que, sob a máscara da pureza (sugerida na referên-

cia a uma cantiga infantil: “Na mão direita tem uma

roseira / Que dá flor na primavera"), esconde o trágico

e o grotesco (“E nos jardins os urubus passeiam a tarde

inteira entre os girassóis”). No “pulso esquerdo”, o

“bang-bang” pode ser uma referência à luta armada

conduzida por setores mais radicais, cuja fragilidade é

indicada no “pulso”, que contrasta com a força associa-

da à direita, que usa a “mão”. A despeito de sua moder-

nidade (“o monumento é bem moderno”), o país é visto

de maneira negativa, pessimista, sem possibilidade de

redenção – o que vem sugerido por imagens como:

“urubus”, “criança sorridente, feia e morta”.

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69LITERATURA TERCEIRÃO 8

7 Artes plásticas nos anos 1960

Nas artes plásticas, os anos 1960 marcam o início

da chamada era pós-moderna. Uma das principais

características desse momento artístico é a exploração

dos mais diversos elementos materiais para a criação

artística. Isso é o que torna categorias consagradas

como “pintura” ou “escultura” imprecisas quando se

tenta definir a arte contemporânea. Uma das maiores

influências desse período foi a chamada Pop Art, que

levou os artistas a se apropriarem livremente de ima-

gens e ideias advindas das modernas formas de comu-

nicação, como a televisão, a publicidade, os jornais e

as revistas em quadrinhos. A intenção é produzir uma

arte cada vez mais próxima do grande público. Nesse

sentido, o abstracionismo que predominou nos anos

1950 perde força em favor de uma retomada da figu-

ração, em propostas contestadoras intimamente anco-

radas na realidade histórica nacional.

Um dos marcos da arte do período foi a mostra

Nova Objetividade Brasileira, ocorrida em abril de

1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

(MAM-RJ), que reuniu diversas vertentes da vanguar-

da brasileira. A proposta mais importante era a busca

de soluções autenticamente nacionais, superando a

ideia do chamado “quadro de cavalete” para invocar o

espectador a participar intensamente da obra de arte,

de maneira não apenas visual, mas de uma forma que

envolvesse toda a sua corporalidade. É o que se verifi-

ca na obra Adoração, apresentada a seguir:

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Adoração (Altar para Roberto Carlos). Catraca

de ferro, veludo, montagem de imagens reli-

giosas, tela pintada e neon, 1966.

Nessa obra, Nelson Leirner se apropria de ele-

mentos religiosos e populares de modo a questionar

a relação do público com os seus ídolos. A imagem

de Roberto Carlos – ícone da música jovem nos anos

1960 – é apresentada com os contornos em lâmpadas

neon, em meio a imagens religiosas. Tudo isso em

um ambiente introspectivo, cercado por cortinas.

Contudo, para entrar nesse espaço de “adoração”, é

necessário passar por uma catraca, objeto que con-

trola a acesso de pessoas, mediante pagamento. Isso

sugere o interesse mercantil no culto às celebridades.

Hélio Oiticica e a Tropicália

Hélio Oiticica (1937 -1980)

foi um dos mais influentes

artistas dos anos 1960. Suas

obras exploravam o que ele

chamava de antiarte, pois

buscavam desmistificar o

conceito de arte como algo

afastado do mundo real e

cotidiano. Para isso, o artista

esperava que os espectado-

res tivessem uma participa-

ção ativa na construção do significado de suas obras,

abandonando a posição de observação contemplati-

va para vivenciar a obra de arte numa experiência

multissensorial, seja penetrando-a – no caso dos

ambientes –, seja vestindo-a, como no caso dos seus

famosos parangolés, espécie de capas coloridas

com inscrições de poesias.

Oiticica foi um artista polêmico. Ele expunha suas

convicções de maneira criativa, sempre despertando a

curiosidade e a reflexão do público. Fascinado pelo

Carnaval carioca, o artista mergulhou na cultura do

samba e dos morros da cidade. Em 1965, foi expulso

de uma exposição de Arte Moderna e, em represália,

trouxe membros da escola de samba Mangueira –ves-

tidos com parangolés – para protestar em frente ao

Museu de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro. Em

1968, em plena época de endurecimento das repres-

sões na ditadura, Oiticica chocou a opinião púbica

nacional com o estandarte “Seja Marginal, Seja Herói”.

Tropicália, de Hélio Oiticica, 1967.

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Hélio Oiticica.

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70TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Tropicália é uma instalação (ambiente artístico

criado em galerias ou museus) apresentada pela pri-

meira vez em 1967. Uma espécie de labirinto, com

areia e pedras pelo chão, que remetia aos becos e

ruelas das favelas cariocas. Nas passagens penetrá-

veis de Tropicália havia diversas referências à cultura

tropical brasileira, como araras, plantas, pedras, so-

noridades típicas. Segundo o seu criador, tratava-se

de um ambiente que “ruidosamente apresenta ima-

gens”. Caetano Veloso compôs uma canção com o

mesmo nome da obra de Oiticica, que acabou por

dar nome ao movimento “Tropicalismo”.

Lygia Clark e a dessacralização da arte

A artista mineira Lygia Clark (1920 -1988), depois

de participar do movimento concretista, seguiu um

caminho menos racionalista da produção artística. A

superação dos papéis preestabelecidos entre produ-

tor/obra/espectador é uma das bases de seu experi-

mentalismo. Assim como Oiticica, a artista incentivava

a arte a se tornar uma vivência de apropriação não

apenas de caráter intelectual, mas, também, física.

Para isso, criou, por exemplo, esculturas livremente

moldáveis, de maneira a que cada espectador pudes-

se fazer, a partir de sua própria vontade e inspiração,

formas novas.

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Obra mole, de Lygia Clark.

Para Lygia, a inovação deve ser um elemento

constituinte do objeto artístico. A artista criava for-

mas em materiais maleáveis e as pendurava em es-

cadas ou paredes. A imprevisibilidade da forma final

fazia parte do jogo criativo. Outra de suas composi-

ções explorava formas rígidas unidas por dobradi-

ças. O espectador podia manipulá-las como bem

entendesse, criando um jogo de invenção que diluía

o conceito de autor na obra de arte.

Dois nomes paralelos na arte dos anos 1960:

Tomie Ohtake e Frans Krajcberg

Embora os nomes de Tomie Ohtake e Frans Krajc-

berg não sejam associados imediatamente à arte dos

anos 1960 – talvez porque continuem ativos até os dias

de hoje –, seus trabalhos desenvolveram característi-

cas próprias que merecem ser aqui lembradas.

Tomie Ohtake

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A razão sobre a emoção: Tomie Ohtake.

Tomie Ohtake nasceu no Japão em 1913 e naturali-

zou-se brasileira nos anos 1940. Seu trabalho segue um

caminho muito particular no quadro da arte da década

de 1960, recusando a figuração e as referências ao mun-

do real ao explorar o abstracionismo em profundos estu-

dos de forma e de cor. A artista também se notabilizou

pela construção de grandes esculturas, que hoje enri-

quecem o espaço público de várias cidades brasileiras.

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Sem título, 1968.

Ohtake explora a cor e as formas em seu estado

puro, sem nenhuma intenção figurativa. A aparente

simplicidade de suas telas esconde pensamentos com-

plexos e um domínio paciente da linha e das várias

camadas de cores – o que faz lembrar a arte oriental da

caligrafia. Diz a pintora: “Eu nunca pintei com o emo-

cional. Sempre pintei mais friamente. É sempre colo-

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71LITERATURA TERCEIRÃO 8

cando camada, camada, camada. Colocando muitas

cores, camada, camada até chegar onde eu quero. O

gesto era bem mais calmo, caía sempre sobre a tela e

seguia uma direção que era mais mental”. Muitas de

suas obras nem sequer apresentam títulos, numa recu-

sa à palavra, que indica a predominância da imagem

sobre qualquer outro tipo de discurso.

A consciência revoltada do planeta: Frans Krajcberg

O polonês Frans Krajcberg nasceu em 1921. Com

27 anos, transferiu-se para o Brasil após perder a

família em campos de concentração durante a Se-

gunda Guerra Mundial. Seu trabalho esteve desde

sempre ligado à defesa e preservação da natureza,

mesmo quando o discurso ecológico não estava tão

em voga como nos dias de hoje. Para Krajcberg, a

natureza não funciona apenas como tema, mas como

matéria-prima de seu processo criativo: o artista

busca materiais calcinados depois de queimados e

os reaproveita, incorporando neles cores e formas.

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Floração, de Krajcberg,

1968, feita a partir

de relevo em flores e

madeira pintada.

Em depoimentos, Frans Krajcberg afirma que a

terrível experiência da guerra o desiludiu dos seres

humanos, o que o levou a buscar refúgio em am-

bientes naturais. Mas o contato com ecossistemas

brasileiros apresentou outra faceta terrível da ação

humana na Terra: o desmatamento e as queimadas.

A recolha de troncos queimados de madeira e o seu

reaproveitamento artístico fez de Krajcberg um dos

artistas mais expressivos e atuantes do cenário cul-

tural brasileiro. Seu empenho e valor artístico são

reconhecidos internacionalmente.

1. (Fuvest-SP) Leia os seguintes versos de “Alegria, alegria”,

de Caetano Veloso, e, em seguida, os dois comentários

em que os autores explicam por que essa canção é uma

de suas prediletas.

Alegria, alegria

Caminhando contra o vento

Sem lenço e sem documento

No sol de quase dezembro

Eu vou

O Sol1 se reparte em crimes

Espaçonaves, guerrilhas,

Em Cardinales2 bonitas

Eu vou

Em caras de presidentes

Em grandes beijos de amor

Em dentes, pernas, bandeiras

Bomba e Brigitte Bardot3

[...]

Ela pensa em casamento

E eu nunca mais fui à escola

Sem lenço e sem documento

Eu vou

Eu tomo uma coca-cola

Ela pensa em casamento

Uma canção me consola

Eu vou

Por entre fotos e nomes

Sem livros e sem fuzil

Sem fome, sem telefone

No coração do BrasilCaetano Veloso. In: <www.caetanoveloso.com.br>.

1. Jornal de vanguarda, à época.

2. Referência a Claudia Cardinale, atriz italiana.

3. Famosa atriz francesa.

I. “A linguagem era nova, cheia de referências visuais,

e tudo estava ali, combinando temas que nem

sempre precisam combinar: despreocupação, en-

gajamento político, tecnologia, lirismo...” (Laura de

Mello e Souza. Adaptado.)

a) Transcreva um verso que ilustre, de modo mais ex-

pressivo, o que está destacado nesse comentário.

Justifique sua escolha.

O verso “Espaçonaves, guerrilhas” reúne os dois ele-

mentos destacados no comentário, isto é, tecnolo-

gia (“espaçonaves”: referência à corrida espacial que

então se iniciava) e política (“guerrilhas”: uma das

estratégias de luta contra o regime militar instaura-

do em 1964).

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72TERCEIRÃO 8 LITERATURA

II. “A canção era importante pela força mágica de afir-

mar a potência criativa da vida em meio à fragmenta-

ção do mundo”. (Jurandir Freire Costa. Adaptado.)

b) Transcreva um verso que exemplifique, de modo

mais evidente, o que está destacado nesse comentá-

rio. Justifique sua escolha.

Os versos que evidenciam mais fortemente a visão

fragmentada são: “Em dentes, pernas, bandeiras” e

“Bomba e Brigitte Bardot”. Neles, misturam-se a

referência erótica (“dentes”, “pernas” e “Brigitte

Bardot”) e política (“bandeiras” – evidência do na-

cionalismo engendrado pelo golpe de 1964 – e “bom-

bas” – referência, no plano externo, à corrida arma-

mentista e, no interno, ao enfrentamento do regime

pelas ações da guerrilha armada).

2. (Fuvest-SP)

[...]

Num tempo

Página infeliz da nossa história

Passagem desbotada na memória

Das nossas novas gerações

Dormia

A nossa pátria mãe tão distraída

Sem perceber que era subtraída

Em tenebrosas transações

[...]“Vai passar”, de Chico Buarque e Francis Hime.

a) É correto afirmar que o verbo dormia tem uma cono-

tação positiva, tendo em vista o contexto em que ele

ocorre? Justifique sua resposta.

Não. Dormia tem conotação negativa no trecho, já

que serve para denunciar a distração da “nossa pá-

tria mãe”, incapaz de perceber a ocorrência de “tene-

brosas transações”.

b) Identifique, nos três últimos versos, um recurso ex-

pressivo sonoro e indique o efeito de sentido que ele

produz. Não considere a rima “distraída” / “subtraída”.

A aliteração da consoante /s/ sugere a atmosfera

de surdina em que ocorrem as “tenebrosas transa-

ções”. Além disso, a repetição da consoante /t/ su-

gere a agressividade própria do regime autoritário

que dominava o país no tempo da canção.

IMAGEM E TEXTO PARA A QUESTÃO 3

Bandeira-poema Seja marginal, seja herói, de Hélio Oiticica, 1968.

A arte contemporânea é intervenção crítica na cul-

tura, convidando a uma experiência de subversão – e,

eventualmente, de reflexão sobre o sujeito e o mundo

[...].RIVERA, Tania. A criação crítica: Oiticica com Lacan. Disponível em:

<www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-i-ano-ii/artigos-tematicos/ar-tem1-oiticica-com-lacan.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2013.

3. Considerando o comentário crítico anterior, de que ma-

neira a obra “Seja marginal, seja herói” pode ser conside-

rada uma “experiência de subversão” no contexto social

brasileiro do final dos anos 1960?

Certamente a obra de Oiticica proporcionava essa “ex-

periência de subversão”. Propõe-se uma “intervenção

crítica” na sociedade, pois Oiticica considera o marginal

(entendido como um sujeito delinquente, um “fora da

lei”) um herói, ou seja, um modelo de comportamento.

Tal mensagem “subversiva” é acentuada ainda pela cor

vermelha do estandarte, o que seria facilmente asso-

ciado à cor do comunismo, no período da Guerra Fria.

TAREFA MÍNIMA

t� Leia o texto da aula.

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 1 e 2.

TAREFA COMPLEMENTAR

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 3 e 4.

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73LITERATURA TERCEIRÃO 8

1 Breve histórico do cinema brasileiro no início do século XX

A produção do cinema nacional iniciou-se nos

anos 1930, mas efetivou-se nos anos 1950, com a im-

plantação de grandes estúdios de produção cinema-

tográfica que acompanhou a euforia de uma ideologia

nacional-desenvolvimentista que acreditava na possi-

bilidade de crescimento do cinema nacional. O ritmo

de produção do cinema brasileiro atingiu então um

esquema industrial, principalmente em São Paulo, em

filmes que valorizavam manifestações de cunho fol-

clórico, como O cangaceiro (1953), por exemplo.

Ainda no início da década de 1950, algumas ideias

com potencial transformador começaram a ganhar

força nos meios de produção cinematográfica. O cine-

asta Nelson Pereira dos Santos defendia uma produ-

ção voltada para a reflexão em torno da realidade

nacional.

Nelson Pereira dos Santos

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Nelson Pereira dos Santos (1928) é o primeiro ci-

neasta brasileiro a ocupar uma cadeira na Academia

Brasileira de Letras.

Iniciou um processo de transformação do cinema

brasileiro desde seu primeiro longa-metragem, Rio 40

graus, de 1955, que apresentava a vida difícil nas fave-

las cariocas em contraste com a futilidade da zona sul.

É o responsável pela criação de um dos filmes mais

premiados de todo o cinema nacional, considerado

uma obra-prima: Vidas secas, finalizado em 1963,

adaptação do romance de Graciliano Ramos.

Glauber Rocha

Baiano de Vitória da Con-

quista, Glauber Rocha (1939-

-1981) fundou, ao lado de

seus amigos, em 1956, a

Coo pe rativa Cinematográfi-

ca Yemanjá, e era visto pela

ditadura militar como um

elemento subversivo. Reali-

zou três filmes fundamentais

para a história do cinema nacional, nos quais uma

crítica social feroz se alia a uma forma de filmar que

pretendia cortar radicalmente com o estilo america-

no: Deus e o Diabo na terra do sol (1964), Terra em

transe (1967) e O dragão da maldade contra o Santo

Guerreiro (1969).

Embora Glauber tenha sido um cineasta contro-

vertido e incompreendido no seu tempo, tornou-se

internacionalmente conhecido pelos prêmios que

conquistou: o de Crítica, do Festival de Cannes; o Luis

Buñuel, na Espanha; o Melhor filme, do Locarno In-

ternational Film Festival; e o Golfinho de Ouro de

melhor filme do ano, no Rio de Janeiro, todos por

Terra em transe.

ANOS 1960 CINEMA E TEATRO

Cartaz do filme O Ébrio,

de Gilda de Abreu (1946).

Pôster do filme O descobrimento do

Brasil, de Humberto Mauro (1937).

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Cartaz do filme Orfeo Negro

(ou Orfeo do Carnaval),

de Marcel Camus (1958).© D

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74TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Há alguns momentos históricos em que certos

acontecimentos parecem convergir conveniente-

mente para o desenvolvimento de novas tendências

e manifestações artísticas, que reflitam a maneira de

pensar de determinado período. O movimento do

Cinema Novo, por exemplo, propunha uma fuga dos

padrões luxuosos de produção norte-americanos,

com a adoção do lema “uma câmera na mão e uma

ideia na cabeça”. Além disso, adotava uma postura

crítica diante da situação política brasileira.

Três obras de temática marcadamente rural, que

abordavam especificamente a pobreza da região

Nordeste, Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos),

Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha) e Os

fuzis (Ruy Guerra), são os primeiros títulos do Cine-

ma Novo, produzidos até o golpe militar de 1964.

Com o golpe de 1964, ficou cada vez mais difícil

discutir explicitamente a realidade política e social do

Brasil. O Cinema Novo passou então a desenvolver

uma tendência autocrítica e metalinguística que colo-

cava em foco sua própria atuação como agente social

de uma classe média urbana, cuja atuação política

começa a ser focalizada de forma crítica. Alguns

exemplos dessa tendência são filmes como O desafio

(Paulo Cesar Saraceni, 1965), O bravo guerreiro (Gus-

tavo Dahl, 1969) e Macunaíma (Joaquim Pedro de

Andrade, 1969).

É, porém, Terra em transe, de Glauber Rocha, o

exemplo mais significativo do Cinema Novo depois

do golpe de 1964. Com uma narrativa completamen-

te fragmentada, o filme trata de uma revisão crítica

dos acontecimentos anteriores ao golpe. No enredo,

Eldorado é um país imaginário onde os interesses do

povo são manipulados por políticos demagogos. O

filme faz críticas em relação à esquerda e ao populis-

mo da política brasileira, anterior ao golpe onde

operários e camponeses aparecem como massa de

manobra, pois só podiam agir quando o espaço po-

lítico lhes era oferecido de maneira paternalista.

Leia a seguir um trecho do roteiro da obra de

maior destaque de Glauber Rocha:

Terra em transe

LAMARTINE

(Lamartine se exalta, o Cardeal a seu lado.)

— Precisamos fundar novas cidades, abrir grandes

estradas, construir escolas! Os detratores não sabem que

Juscelino fez o mais importante Governo do Brasil: cons-

truiu Brasília, desfraldou a bandeira do nacionalismo, Três

Marias, Furnas – a força do desenvolvimento, a aurora do

nacionalismo nasceu deste homem cujos erros tinham a

mesma grandeza de seus acertos... Precisamos de trezentas

cidades no Amazonas, precisamos restaurar o espírito dos

bandeirantes, o espírito do Pe. Antônio Vieira!

As vacas começam a berrar. Os vaqueiros cercam as

vacas, montando nos seus cavalos. Começa um aboio Jor-

dan e o Piloto levam Lamartine para o helicóptero. Bisquê

idem. Silvino observa ao fundo. Sanfonas, movimento – di-

vertem-se. Paulo sente calor, alheio àquilo, bebe cerveja.

Ouve o barulho do helicóptero. O helicóptero sobe, Silvi-

no olha, Bisquê vem ao fundo, corre em direção a Silvino.

BISQUÊ

— Grande homem, o Dr. Lamartine!

O Embaixador fixa Silvino, assustado. Silvino o abraça.

O barulho do helicóptero.

SILVINO

— O senhor vai servir onde agora?

BISQUÊ

— Gostaria de servir no México...

2 O Cinema Novo no Brasil

Rio, 40 graus, de Nelson Pe-

reira dos Santos, 1955. Vidas secas, de Nelson Pereira

dos Santos, 1963. Terra em transe, de Glauber Rocha,

1967.

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75LITERATURA TERCEIRÃO 8

SILVINO

— Qual sua posição política?

BISQUÊ

— Um liberal conservador, ou melhor, um conservador

liberal...

Silvino dá uma bruta gargalhada e bate na barriga do

Embaixador. O helicóptero neste momento passa sobre

eles, levanta o vento e espalha o ruído. Bisquê foi por terra,

sob o vento, tenta se compor, Silvino sorri, Paulo entra em

campo com o copo de cerveja, Silvino grita.

SILVINO

— Embaixador, pra se subir no Governo Federal é pre-

ciso ser de esquerda. Comunista não, veja bem... De es-

querda!

CAM sobe com música. TRAV aéreo. Os vaqueiros

cercam a boiada que se movimenta. O americano, no

jipe, descreve um círculo, buzinando gritando como um

cowboy. CAM afasta-se, estoura uma música carnavales-

ca. CORTE.

Sequência 6

TRAV. DESCONTÍNUO. Mulheres fantasiadas dançan-

do histéricas. Estamos num baile de Carnaval, num Clube

pequeno. Animação. Uma mulher loura dá um longo beijo

em Paulo. Paulo fantasiado simplesmente, de marinheiro,

afasta-se, um pouco bêbado e se dirige ao bar. Confusão

generalizada. Consegue disputar um uísque. Subitamente

atacam Paulo de lança-perfume e gritos e beijos. São Mari-

na e Álvaro. Paulo, feliz com a descoberta, os beija.

TRAVS DESCONTÍNUOS. Corre o Carnaval. Paulo,

Marina e Álvaro se divertem, felizes. Detalhes de um prés-

tito, clima de sonho. Sucedem-se os préstitos, trombetas. A

Escola de Samba desfila, insólita e agressiva. Oscilam ban-

deiras. Estoura o Baile do Municipal. São sequências rápi-

das e fortes, dando a passagem de tempo do Carnaval.

TRAV LATERAL, veloz, passa levando Paulo, Marina e

Álvaro, alegres, confundem-se com outros foliões, cresce.

ROCHA, Glauber. Terra em transe (primeiro tratamento). In: Roteiros do Terceiro Mundo. Organização: Orlando Senna.

Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1985.

Não é difícil perceber o caráter fragmentário do ro-

teiro de Glauber Rocha, na medida em que as falas não

constituem exatamente um diálogo linear e Lamartine

fala sozinho e Silvino e Bisquê parecem não se enten-

der. Além disso, há a presença da ironia na resposta de

Bisquê, que não quer se posicionar politicamente e

simplesmente se declara um liberal conservador ou um

conservador liberal, expressões que não esclarecem

nada. As rubricas que fazem menção a um rebanho de

vacas, ao calor, a helicópteros e ao Carnaval sugerem

uma grande movimentação que aproxima o urbano e o

rural, os homens e as vacas, como se todos fossem sem-

pre sujeitos à manipulação de alguém.

3 O papel do teatro

Montagem de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, encenado

pelo grupo Os comediantes.

É consenso absoluto entre críticos e estudiosos do

teatro no Brasil que Vestido de noiva, de Nelson Ro-

drigues, é o marco do moderno teatro brasileiro. A

encenação realizada pelo grupo Os comediantes, em

1943, dirigida pelo encenador polonês Ziembinski, en-

traria para a história das artes dramáticas do país. Divi-

dindo o palco em três planos (memória, alucinação e

realidade), o espetáculo acompanhava o delírio de Alaí-

de, uma mulher casada com Pedro, por sua vez desejado

pela irmã dela: Lúcia. A protagonista, após sofrer um

atropelamento, se encontra em sua alucinação com a

lendária prostituta Madame Clessi, que a ajuda a re-

constituir sua trajetória até aquele ponto da vida.

Foi necessário algum tempo para que novos dra-

maturgos da mesma importância de Nelson Rodrigues

surgissem na cena brasileira depois do fenômeno Ves-

tido de noiva. Com o olhar voltado para o universo das

fazendas e da família tradicional do interior do Brasil, o

paulista Jorge Andrade desenvolveu sua dramatur-

gia. A peça A moratória estreou em 1954 e também se

tornou um marco no trabalho de análise da formação

da sociedade paulista e brasileira, focalizando a deca-

dência dos valores patriarcais no Brasil, principalmen-

te durante o período do ciclo do café.

4 O teatro brasileiro da década de 1960 – movimentos e artistas

Muitas manifestações diferentes marcavam o de-

senvolvimento do teatro brasileiro no início dos anos

1960: novos dramaturgos, diretores que propunham

uma nova visão de encenação, grupos que inovaram

a expressão teatral, tanto como arte quanto como ato

político. Nessa cena, dois grupos e seus trabalhos no

período se destacaram significativamente.

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76TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Teatro de Arena

Fundado em São Paulo

no ano de 1953, o Teatro

de Arena transformou-se,

em pouquíssimo tempo,

em sinônimo de teatro en-

gajado e comprometido

com questões políticas e

sociais. Realizando suas

apresentações em peque-

nos clubes, fábricas e sa-

lões, o grupo conseguiu

ter seu próprio teatro no final de 1954, uma pequena

sala localizada à rua Teodoro Baima, no centro da cida-

de, onde se localiza até hoje.

Augusto Boal, diretor teatral recém-chegado de

uma temporada em Nova York, uniu-se ao grupo

para apresentar o método de interpretação realista

do russo Stanislavski, que aprendera nos Estados

Unidos. Foi o trabalho com o encenador que acabou

por dar à companhia um caráter de esquerda que

possibilitou o desenvolvimento do método do Tea-

tro do Oprimido, em que o público pode participar

do espetáculo, abordando e buscando compreender

melhor seus conflitos internos e relacionais por meio

do teatro. A participação de dramaturgos como

Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho

foi responsável por grandes sucessos da companhia

como Eles não usam black tie (1958) e Chapetuba

Futebol Clube (1959).

Foi, porém, em 1965, que o grupo encontrou uma

maneira muito particular de expressar suas ideias

acerca do cenário político brasileiro e da história do

Brasil, criando o conhecido sistema “coringa”, no

qual todos os atores se revezam para representar

todas as personagens. O sucesso estrondoso de Are-

na conta Zumbi (1965) se repete em Arena conta Tira-

dentes (1967), ambos realizados pela parceria de

sucesso entre Guarnieri e Augusto Boal.

Teatro Oficina

Criado no diretório acadêmico XI de Agosto da

Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o Tea-

tro Oficina se profissionalizou em 1961, quando ad-

quiriu o Teatro Novos Comediantes, onde funciona

até hoje.

Em 1964, durante o golpe militar, estava em car-

taz a montagem realista Os pequenos burgueses, de

Máximo Gorki. Depois de um incêndio em 1966, o

grupo fez remontagens de antigos sucessos para

levantar fundos para a reconstrução do teatro até

alcançar grande notoriedade e reconhecimento in-

ternacional em 1967, com a montagem do texto de

Oswald de Andrade, O rei da vela.

As montagens de Galileu Galilei em 1968 e Na

selva das cidades, em 1969, ambas de Bertolt Brecht,

coroam esse movimento ascensional e são conside-

radas perfeitas recriações brasileiras do universo do

autor alemão.

Entre tantos artistas e estudiosos de teatro surgi-

dos no período, dois dramaturgos merecem desta-

que especial: Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo

Vianna Filho, também conhecido como Vianinha.

Oduvaldo Vianna Filho

Filho de Oduvaldo Vianna, também figura impor-

tante do teatro brasileiro, Vianinha (1936 -1974) es-

treou como dramaturgo em 1959, ao escrever

Chapetuba Futebol Clube. Participou como ator do fil-

me Cinco vezes favela em 1962, importante represen-

tante do Cinema Novo e, junto de Armando Costa,

criou e dirigiu, na Rede Globo de Televisão, uma das

séries humorísticas de maior sucesso na TV brasilei-

ra: A grande família, que voltaria a ser apresentada

na mesma emissora. Sua peça mais elogiada pela

crítica é Rasga coração, que ele terminou de escrever

poucos dias antes de falecer, vitimado por um cân-

cer pulmonar, com apenas 38 anos de idade.

Gianfrancesco Guarnieri

Gianfrancesco Guar-

nieri (1934 -2006) foi cria-

do em São Paulo, cidade

onde chegou de Milão

com a família no início

dos anos 1950. Foi líder

estudantil desde a ado-

lescência e começou a

fazer teatro amador com

Oduvaldo Vianna Filho,

com quem criou, em 1955, o Teatro Paulista do Estu-

dante, que, no ano seguinte, uniu-se ao Teatro de

Arena.

Sua peça de estreia, como dramaturgo, foi Eles

não usam black tie, em 1958, pelo Teatro de Arena. A

peça, dirigida por José Renato, contou com um elen-

co de grandes talentos que começavam a despontar

no teatro brasileiro. Programada para encerrar o

trabalho do grupo, que vivia uma crise financeira,

alcançou sucesso imenso, sendo um dos marcos da

renovação do teatro brasileiro da época.

Ao longo de sua jornada, Guarnieri escreveu ou-

tros textos importantes, como Gimba e A semente, e

participou de montagens fora do Teatro de Arena

O diretor Augusto Boal (1931 -2009).

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77LITERATURA TERCEIRÃO 8

com Maria Della Costa e também no Teatro Brasilei-

ro de Comédia, TBC, até retornar como ator e como

autor em sucessos emblemáticos na história do gru-

po como Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta

Tiradentes (1967), textos em que utiliza uma lingua-

gem metafórica e alegórica devido ao complicado

panorama político do momento.

Gianfrancesco também se tornou um ator conhe-

cido na televisão brasileira, tendo atuado em séries e

inúmeras telenovelas.

Eles não usam black tie – os operários em cena no tea-

tro brasileiro

Primeira peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles

não usam black tie, de 1958, foi muito importante na

revisão da forma de se fazer teatro no final da década

de 1950, que influenciaria toda a dramaturgia dos

anos 1960. No lugar de cenários grandiosos e figuri-

nos luxuosos, ficaram apenas os elementos de cena

indispensáveis. Ao invés de personagens ricas e no-

bres, operários e moradores do morro tomaram o

palco. Pela primeira vez, conflitos básicos da realida-

de operária brasileira ganhavam espaço na drama-

turgia nacional.

A ação da peça se desenrola em uma favela, nos

anos 1950, e tem como tema a greve de uma indústria

em que trabalhavam juntos pai (Otávio) e filho (Tião).

O mote principal do texto é o choque entre os dois,

com posições ideológicas opostas, diante da situação

de greve. O pai tem um espírito sonhador e idealista,

tendo exercido várias lideranças e sofrido algumas

prisões, o que o tornou um dos principais membros

do movimento grevista. Já o filho, criado na cidade

com os padrinhos, nunca conviveu com esse mundo

de luta e reivindicação da classe operária.

Depois de adulto e morando no morro com os

pais, Tião vive um dos maiores conflitos de sua vida.

Não quer aderir à greve, pois acha que essa é uma

luta inglória, sem resultados para a classe, e preten-

de se casar com Maria, moça simples, porém deter-

minada e leal ao seu povo, que está esperando um

filho seu. No momento da greve, Tião está mais

preocupado com o seu futuro do que com a luta de

seus companheiros, que considera utópica.

Leia a seguir o trecho final da obra.

TIÃO (a Otávio)

Eu queria conversá com o senhor!

OTÁVIO

Comigo?

TIÃO (firme)

É.

OTÁVIO

Minha gente, vocês querem dá um pulo lá fora; esse

rapaz quer conversá comigo.

ROMANA

Eu preciso mesmo recolhê a roupa!

JOÃO

Já vou indo, então. Até logo, seu Otávio, e parabéns!

OTÁVIO

Obrigado! (Saem. Tião e Otávio ficam a sós.) Bem,

pode falá.

TIÃO

Papai…

OTÁVIO

Me desculpe, mas seu pai ainda não chegou. Ele deixou

um recado comigo, mandou dizê pra você que ficou muito

admirado, que se enganou. E pediu pra você tomá outro

rumo, porque essa não é casa de fura-greve!

TIÃO

Eu vinha me despedir e dizer só uma coisa: não foi por

covardia!

OTÁVIO

Seu pai me falou sobre isso. Ele também procura acre-

ditá que num foi por covardia. Ele acha que você até que

teve peito. Furou a greve e disse pra todo mundo, não fez

segredo. Não fez como o Jesuíno que furou a greve saben-

do que tava errado. Ele acha, o seu pai, que você é ainda

mais filho da mãe! Que você é um traidô dos seus compa-

nheiro e da sua classe, mas um traidô que pensa que tá cer-

to! Não um traidô por covardia, um traidô por convicção!

TIÃO

Eu queria que o senhor desse um recado a meu pai…

OTÁVIO

Vá dizendo.

TIÃO

Que o filho dele não é um “filho da mãe”. Que o filho

dele gosta de sua gente, mas que o filho dele tinha um

problema e quis resolvê esse problema de maneira mais

segura. Que o filho é um homem que quer bem!

OTÁVIO

Seu pai vai ficá irritado com esse recado, mas eu digo.

Seu pai tem outro recado pra você. Seu pai acha que a

culpa de pensá desse jeito não é sua só. Seu pai acha que

tem culpa...

TIÃO

Diga a meu pai que ele não tem culpa nenhuma.

OTÁVIO (perdendo o controle)

Se eu te tivesse educado mais firme, se te tivesse mos-

trado melhor o que é a vida, tu não pensaria em não ter

confiança na tua gente…

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78TERCEIRÃO 8 LITERATURA

TIÃO

Meu pai não tem culpa. Ele fez o que devia. O proble-

ma é que eu não podia arriscá nada. Preferi tê o desprezo

de meu pessoal pra poder querer bem, como eu quero que-

rer, a tá arriscando a vê minha mulhé sofrê como minha

mãe sofre, como todo mundo nesse morro sofre!

OTÁVIO

Seu pai acha que ele tem culpa!

TIÃO

Tem culpa de nada, pai!

OTÁVIO (num rompante)

E deixa ele acreditá nisso, senão ele vai sofrê muito

mais. Vai achar que o filho dele caiu na merda sozinho.

Vai achar que o filho dele é safado de nascença. (Acal-

ma-se repentinamente.) Seu pai manda mais um recado.

Diz que você não precisa aparecê mais. E deseja boa

sorte pra você.

TIÃO

Diga a ele que vai ser assim. Não foi por covardia e

não me arrependo de nada. Até um dia. (Encaminha-se

para a porta.)

OTÁVIO (dirigindo-se ao quarto dos fundos)

Tua mãe, talvez, vai querê falá contigo. Até um dia!

(Tião pega uma sacola que deve estar debaixo de um

móvel e coloca seus objetos. Camisas que estão entre as

trouxas de roupa, escova de dentes etc.)

GUARNIERI, Gianfrancesco. Eles não usam black tie. In: O melhor teatro – Gianfrancesco Guarnieri. Seleção Décio de Almeida Prado.

São Paulo: Global, 1986.

A grande qualidade do trabalho de Gianfrancesco

Guarnieri pode ser facilmente percebida neste trecho da

peça. A discussão entre o filho e o pai, que fala de si mes-

mo na terceira pessoa, é recheada de lirismo e profundi-

dade que transcendem a questão política debatida. A

despedida entre os dois, que percebem a impossibilida-

de de continuar a dividir a mesma casa, é capaz de arran-

car lágrimas da plateia sem ser piegas ou exagerada.

1. O Cinema Novo e o movimento de renovação teatral lide-

rado pelo Teatro de Arena e pelo Grupo Oficina foram ex-

pressões artísticas, com objetivos e características comuns,

afinadas com o contexto brasileiro das décadas de 1950 e

1960 do século passado. Entre as características desses

movimentos culturais, NÃO se inclui a:

� a) vinculação a grandes estúdios cinematográficos e a

companhias teatrais já estabelecidas.

b) concepção da obra de arte como meio de conscientiza-

ção política, influenciada por tendências de esquerda.

c) crítica à realidade brasileira, aos seus problemas e con-

tradições, com forte conteúdo social.

d) realização de produções de custos reduzidos, caracteriza-

das pelo uso de novas linguagens e inovações cênicas.

e) descoberta de novos talentos tanto na dramaturgia co-

mo na direção de cinema e teatro no Brasil.

2. Todas as características listadas abaixo estão relacionadas

ao movimento do Cinema Novo, EXCETO:

a) a preocupação em pensar o Brasil subdesenvolvido.

b) o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica

própria.

c) a prática de um cinema de autor.

� d) o aproveitamento de pressupostos criados pelo cinema

americano do período.

e) as produções simples e orçamentos relativamente baixos.

3. (Enem)

Teatro do Oprimido é um método teatral que

sistematiza exercícios, jogos e técnicas teatrais ela-

boradas pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal,

recentemente falecido, que visa à desmecanização

física e intelectual de seus praticantes. Partindo do

princípio de que a linguagem teatral não deve ser

diferenciada da que é usada cotidianamente pelo

cidadão comum (oprimido), ele propõe condições

práticas para que o oprimido se aproprie dos meios

do fazer teatral e, assim, amplie suas possibilidades

de expressão. Nesse sentido, todos podem desen-

volver essa linguagem e, consequentemente, fazer

teatro. Trata-se de um teatro em que o espectador

é convidado a substituir o protagonista e mudar a

condução ou mesmo o fim da história, conforme o

olhar interpretativo e contextualizado do receptor.

Companhia Teatro do Oprimido. Disponível em: <www.ctorio.org.br>. Acesso em: 1o jul. 2009 . Adaptado.

Considerando-se as características do Teatro do Oprimido

apresentadas, conclui-se que:

a) esse modelo teatral é um método tradicional de fazer

teatro que usa, nas suas ações cênicas, a linguagem

rebuscada e hermética falada normalmente pelo ci-

dadão comum.

b) a forma de recepção desse modelo teatral se destaca

pela separação entre atores e público, na qual os ato-

res representam seus personagens e a plateia assiste

passivamente ao espetáculo.

� c) sua linguagem teatral pode ser democratizada e

apropriada pelo cidadão comum, no sentido de pro-

porcionar-lhe autonomia crítica para compreensão e

interpretação do mundo em que vive.

d) o convite ao espectador para substituir o protagonis-

ta e mudar o fim da história evidencia que a proposta

de Boal se aproxima das regras do teatro tradicional

para a preparação de atores.

e) a metodologia teatral do Teatro do Oprimido segue a

concepção do teatro clássico aristotélico, que visa à

desautomação física e intelectual de seus praticantes.

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79LITERATURA TERCEIRÃO 8

4. (Ufscar-SP) Uma peça de grande importância para o teatro brasileiro é Eles não usam black tie, escrita por Gianfrancesco

Guarnieri em 1955, e montada pela primeira vez em 1958 pelo Teatro de Arena de São Paulo. É correto afirmar que a

importância da peça deve-se ao fato de:

a) inaugurar o Teatro de Arena como espaço de mobilização contra o poder instituído.

b) salientar o papel da burguesia urbana no desenvolvimento econômico nacional.

� c) ter ressaltado uma dramaturgia de cunho social, que punha em cena a classe operária.

d) mostrar a decadência da aristocracia rural diante do desenvolvimento social nas cidades.

e) incorporar uma estética norte-americana na dramaturgia do teatro brasileiro.

TAREFA MÍNIMA

t� Leia o texto da aula.

Caderno de Exercícios

t� Faça o exercício 1.

TAREFA COMPLEMENTAR

Caderno de Exercícios

t� Faça o exercício 2.

LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA PROSA

1 As marcas da ditadura

Oposição ao golpe de 1964.

A repressão que se se-

guiu ao golpe civil-militar

de 1964 atingiu iniciativas

de difusão cultural, como as

mantidas pela União Nacio-

nal dos Estudantes (UNE).

A instituição organizava os

Centros Populares de Cul-

tura (CPC), que defendiam

um projeto de conscientiza-

ção política das classes po-

pulares por intermédio da

arte. Ainda em 1964, a UNE

seria declarada ilegal.

A despeito dessa agressão inicial, muitas mani-

festações contrárias ao golpe foram toleradas nos

primeiros anos. Assim, algumas obras que atacavam

diretamente o autoritarismo militar puderam vir à

luz. Foi o caso do livro Quarup, de Antonio Callado,

publicado em 1967.

Nando se aproximou. Olhou pela janela. Não tinha

ninguém, mas no quadro-negro se lia:

Arara

Vovô vê a arara

ele vê a arara

ele vê o dedo

As grandes palavras majestosas tinham desapareci-

do das paredes onde antes explodiam com uma dureza

de arte nova: TIJOLO, ENXADA, JANGADA. No canto

onde se pendurava um cartaz com o emblema das Na-

ções Unidas havia agora outro de um homem com um

boné de operário russo, botas tintas de sangue, andando

em cima do mapa do Brasil com uma foice e um mar-

telo. [...] Mas viu de longe o mastro com a bandeira

subindo feito uma flor de ouro e verde [...]. Já bem perto

procurou na base o único azulejo diferente, a inscrição

em letras verdes no ladrilho branco: Terra do Centro

Geográfico do Brasil. À memória de Levindo, amigo dos

camponeses. O azulejo tinha sido arrancado. Tapando

o buraco, apoiada contra a base do monumento, uma

tábua quadrada, provisória, com os dizeres: Terra do

Centro Geográfico do Brasil. Viva a Revolução, 31 de

Março de 1964. Sem olhar para os lados, sem pensar

em nada, concentrado a fundo no que fazia, Nando

Antonio Carlos Callado (1917-

-1997) foi um jornalista e escri-

tor brasileiro, cujas obras refle-

tiam a situação política do país.

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80TERCEIRÃO 8 LITERATURA

abriu a braguilha das calças e mijou pausadamente em

cima da placa.

CALLADO, Antonio. Quarup. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

Quarup acompanha a trajetória do Padre Nando,

desde seus dilemas íntimos em torno da vocação reli-

giosa, que o levam à experiência sexual, até o envolvi-

mento com as questões sociais, que o conduz à opção

pela luta armada contra o regime que assassinara o

líder camponês Levindo. Na cultura indígena, a ex-

pressão quarup designa a celebração da morte de

um guerreiro. A festividade que marca o evento asso-

cia morte e vida. Da mesma maneira, o romance, por

intermédio da trajetória de Nando, tenta aproximar a

morte de projetos populares com a possibilidade de

retomá-los na luta social. No trecho, ocorre o contras-

te entre a posição oficial (no cartaz de alfabetização,

de cunho alienante, e nos símbolos nacionais explora-

dos de forma a construir a apologia da Revolução de

64) e aquela assumida por Nando, de agressiva repul-

sa ao novo regime.

Em dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institu-

cional no 5 (AI-5), que fechou o Congresso e concedeu

ao governo poderes de perseguição e censura. A partir

de 1974, pressões populares impuseram aos militares a

necessidade de fazer concessões no sentido da abertu-

ra política. Foi um processo demorado e oscilante,

marcado por ações dos setores mais radicais do gover-

no, como a tortura e o assassinato do jornalista Vladi-

mir Herzog (1975) e do operário Manuel Fiel Filho

(1976) e o frustrado atentado à bomba contra a celebra-

ção do Dia do Trabalhador, no Rio de Janeiro, em 1981.

A anistia aos exilados, promulgada em 1979, trouxe

de volta ao Brasil boa parte dos que haviam sido per-

seguidos durante a ditadura. Alguns deles publicaram

então uma série de relatos autobiográficos que forne-

cem um quadro vivo e dra-

mático dos anos mais

terríveis da ditadura. Um

exemplo importante é O que

é isso, companheiro (1979),

de Fernando Gabeira.

O Capitão Albernaz bateu furiosamente na mesa, man-

dou que me sentasse e fez um pequeno discurso. Os ou-

tros se colocaram em torno de mim enquanto ele ia falan-

do que era muito burro, muito muito burro, de forma que

com ele não adiantava conversa pois não ouviria nada a

não ser as respostas às perguntas que fariam. Onde esta-

va Salgado? Não sabia, não sabia onde estava ninguém.

Capitão Albernaz bateu de novo na mesa e Raul, um po-

licial que funcionava na sua equipe, exibiu o telefone de

campanha e disse que iria falar com Fidel Castro. Ligaram

os fios na minha mão e começaram a dar choques e per-

guntar por pessoas. [...] Minha reação diante dos primeiros

choques foi uma reação de homem civilizado, creio: fi-

quei perplexo em ver que aquilo existia e que havia pesso-

as que o empregavam. Claro que já sabia disso por outros

caminhos, mas agora estava vendo e era o mesmo que ver

crianças arrancando as pernas de um passarinho. Como é

que isto era possível em gente daquela idade? Enquanto

pensava, ia tomando novos choques e quando passaram

os fios para a ponta da orelha realmente deixei de pensar

em outra coisa, exceto na necessidade de não deixar que

minha cabeça se partisse. Cada vez que davam o choque,

tinha uma profunda sensação de dilaceramento, da cabe-

ça se partindo em duas, e acreditava que podia fazer algu-

ma coisa com o corpo para mantê-la intacta.

GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro?. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.

O depoimento chocante das torturas sofridas pe-

los que eram aprisionados expunha a face mais co-

varde do regime militar. O estilo simples e direto do

narrador estabelece uma empatia forte com o leitor.

Além disso, o distanciamento temporal faz com que,

paralelamente aos relatos, tenhamos o desenvolvi-

mento de reflexões a respeito de temas políticos e

sociais que iam além do episódio relatado.

2 A temática da violência

Com o fim da censura, algumas obras que haviam

sido proibidas foram enfim publicadas. O volume de

contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, foi reco-

lhido por ação da censura em 1975, e o escritor só

conseguiu a liberação catorze anos depois. Nele,

Rubem explorava um tema que se tornaria sua mar-

ca registrada: a violência urbana.

José Rubem Fonseca (1925) formou-se em Direito e exer-

ceu diversas atividades antes de se dedicar plenamente à

literatura, tornando-se um dos autores mais lidos do país.

Fernando Paulo Nagle Gabeira (1941)

era jornalista quando se envolveu com

o movimento armado que pretendia

derrubar a ditadura. Preso e exilado em

1970, retornou ao Brasil com a anistia.© D

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81LITERATURA TERCEIRÃO 8

Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia

que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça

você acha em passear de carro toda as noites, também

aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu

é que cada vez me apego menos aos bem materiais, mi-

nha mulher respondeu.

[...] Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só per-

cebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som

da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a

mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas per-

nas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfei-

to, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões,

dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como

um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os

pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o

meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos.

Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da

mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de

um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio. FONSECA, Rubem. Passeio noturno (parte I). In: Feliz ano novo.

2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Nos contos de Rubem Fonseca, a banalização da

violência, muitas vezes cometida por pessoas co-

muns, é utilizada para acentuar a barbárie presente

na civilização moderna. No trecho transcrito, um

homem se dedica a uma estranha diversão: atropelar

pessoas nas ruas. A frieza do narrador-personagem

se manifesta nos detalhes que fornece do atropela-

mento. O escritor inova ainda no estilo, ao retirar do

texto as marcas gráficas próprias do discurso direto.

3 O conto

Desde os anos 1970, quando o país viveu o chama-

do boom do conto, a narrativa curta manteve apelo

considerável junto ao público leitor, projetando nomes

como os de Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles,

Dalton Trevisan, Luis Fernando Verissimo, Moacyr

Scliar, Domingos Pellegrini, entre muitos outros.

– O primeiro marido tem dinheiro de sobra. E ela,

uma vida regalada. Até o cara ser preso como traficante.

O segundo marido ganha bem, mas judia dela. Arras-

ta pelo cabelo, morde, tira sangue. O terceiro, sargento

reformado, é manso e quieto. Só que bebe até cair. In-

ternando-o na clínica, ela recebe uma pequena pensão.

Logo se amiga com o tipo mais novo. Não se droga,

não fuma, não bate, não bebe. Mas também não trabalha.

Daí ela visita o marido no asilo: “Deus te mandou, minha

santa. Você meio me buscar”. Com dó, leva-o para casa e

vivem os três da mesma pensão. O amante não está feliz,

tem de dar banho e fazer a barba no sargento.TREVISAN, Dalton. Conto 98. In: Pico na veia.

Rio de Janeiro: Record, 2002.

Dalton Trevisan se destaca entre os praticantes do

gênero no Brasil por seu constante esforço minimalis-

ta, com o enxugamento da narrativa, reduzida aos

seus elementos essenciais. O leitor consegue apreen-

der todos os fatos envolvidos no conto transcrito

apenas com os dois parágrafos que compõe o texto. O

discurso direto (primeiro parágrafo) sugere a trans-

missão oral que faz lembrar a maledicência da fofoca.

O estilo do narrador (segundo parágrafo) incorpora

alguns procedimentos próprios dessa oralidade – co-

mo o que se verifica em “fazer a barba no sargento”.

4 A literatura fantástica

O Surrealismo, surgido nos anos 1920, trouxe a

corrente artística da literatura fantástica, na qual acon-

tecimentos inusitados eram narrados de forma a lhes

conferir completa naturalidade. A América Latina foi

um terreno fértil para obras desse tipo, como mostram

os romances Cem anos de solidão (1967), do colombia-

no Gabriel García Márquez, e O púcaro búlgaro (1964),

do brasileiro Campos de Carvalho.

Entre nós, o escritor mais conhecido nesse terre-

no foi Murilo Rubião, com contos que mostram per-

sonagens com coti-

dianos banais repen-

tinamente quebrados

por circunstâncias in-

sólitas.

Os primeiros dragões que apareceram na cidade mui-

to sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam

precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irre-

mediavelmente comprometida pelas absurdas discussões

surgidas com a chegada deles ao lugar.

Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral

fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdês-

semos em contraditórias suposições sobre o país e raça a

que poderiam pertencer.

A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário.

Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e mei-

ga, não passavam de enviados do demônio, não me permi-

tiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa

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o Murilo Eugênio Rubião (1916-

-1991), jornalista e escritor,

exerceu grande influência na

vertente surrealista da literatu-

ra brasileira.

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82TERCEIRÃO 8 LITERATURA

velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia

penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se

alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de

dragões, “coisa asiática, de importação europeia”. Um leitor

de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial

feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo

benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.RUBIÃO, Murilo. Os dragões. In: O pirotécnico Zacarias.

17. ed. São Paulo: Ática, 1995.

Uma das marcas da literatura fantástica é a inversão

de expectativas. No trecho transcrito, o absurdo do apa-

recimento de dragões em uma cidade abre a narrativa

de forma natural, sem nenhum questionamento prévio.

O que o narrador considera “absurdas” são, na verdade,

as “discussões surgidas com a chegada” dos dragões, e

não a presença deles em si. O olhar inusitado lançado

sobre a realidade acaba por levantar questionamento

em torno do que se considera normal ou natural.

Dois nomes consagrados

Entre os autores brasileiros em atividade, muitos

são aqueles que mereceriam uma referência. Lygia

Fagundes Telles (Conspiração de nuvens, 2007) e Nel-

son Oliveira (Poeira – demônios e maldições, 2010),

entre muitos outros, mantêm o nível de suas obras, já

contando com uma carreira sólida e uma legião de

leitores. Chico Buarque, reconhecido principalmente

como compositor, mostra a mesma perícia no trata-

mento da prosa, desde Estorvo (1991).

Para representar essa produção, vamos tratar aqui

de dois autores que vêm obtendo especial atenção por

parte da crítica especializada, que os colocam entre os

grandes nomes da literatura brasileira dos últimos

tempos: Raduan Nassar e Milton Hatoum.

Raduan Nassar (1935) escreveu pouco – apenas o suficiente para evidenciar

a importância de sua obra. Em 1984, o escritor declarou que abandonava a

literatura, recolhendo-se para seu sítio, no interior de São Paulo.

E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela

já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir

o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí

da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim

que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sen-

tamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos

voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se

pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me

perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disper-

so, continuei distante e quieto, o pensamento solto na

vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistên-

cia da pergunta que respondi “você já jantou?” e como

ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem

pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da

geladeira, fui até a pia e passei uma água nele, depois

fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida

ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movi-

mento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que

não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que

comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o

que ia me restando na mão, fazendo um empenho simu-

lado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como

os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não

desgrudavam da minha boca, e sabendo que por baixo

do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sa-

bendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto

mais indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando

acabei de comer o tomate eu a deixei ali na cozinha e

fui pegar o rádio que estava na estante lá da sala, e sem

voltar pra cozinha a gente se encontrou de novo no cor-

redor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos

na penumbra do quarto.NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. 5. ed.

São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Um copo de cólera narra um encontro amoroso

permeado de desencontros. O amor é experimenta-

do com forte sensualidade, mas um acontecimento

banal – o aparecimento de saúvas no sítio onde estão

– deflagra acessos de raiva e de acusações mútuas. O

trecho transcrito relata os primeiros momentos do

encontro, mas é notável como o narrador consegue

sugerir o clima de tensão que domina a relação do

casal, esperando apenas o momento da explosão.

Milton Hatoum (1952) aparece constantemente na lista dos grandes es-

critores brasileiros em atividade.

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83LITERATURA TERCEIRÃO 8

A viagem terminou num lugar que seria exagero cha-

mar de cidade. Por convenção ou comodidade, seus ha-

bitantes teimavam em situá-lo no Brasil; ali, nos confins

da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em

nomear fronteira um horizonte infinito de árvores; na-

quele lugar nebuloso e desconhecido para quase todos

os brasileiros, um tio meu, Hanna, combateu pelo Bra-

são da República Brasileira; alcançou a patente de co-

ronel das Forças Armadas, embora no Monte Líbano se

dedicasse à criação de carneiros e ao comércio de frutas

nas cidades litorâneas do sul; nunca soubemos o porquê

de sua vinda ao Brasil, mas quando líamos suas cartas,

que demoravam meses para chegar às nossas mãos, fi-

cávamos estarrecidos e maravilhados. Relatavam epide-

mias devastadoras, crueldades executadas com requinte

por homens que veneravam a lua, inúmeras batalhas tin-

gidas com as cores do crepúsculo, homens que degusta-

vam a carne de seus semelhantes como se saboreassem

rabo de carneiro, palácios com jardins esplêndidos, do-

tados de paredes inclinadas e rasgadas por janelas ogi-

vais que apontavam para o poente, onde repousava a

lua de ramadã.HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989.

Ausente de Manaus por vinte anos, uma mulher

retorna à cidade para visitar a família adotiva que a

havia acolhido na infância. Presenciando as mortes

de alguns parentes, resolve escrever a um irmão,

para comunicá-las e, em suas cartas, resgata as ex-

periências vividas ali. Pode-se notar a presença de

certos traços biográficos de Hatoum, como a am-

bientação em Manaus, sua cidade natal, e a ascen-

dência libanesa. No entanto, a visão que se tem ali é

a de um certo Oriente, o que sugere a predominância

da visão subjetiva da personagem que narra. Além

disso, trata-se, acima de tudo, de um relato, com

marcas de expressão que resgatam as tradições de

uma cultura profundamente oral.

A voz da marginalidade

A temática da malandragem está presente na lite-

ratura brasileira desde Memórias de um sargento de

milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em meados

do século XIX. Com o passar do tempo, essa imagem

assumiria contornos dramáticos. Muitos escritores

dos anos 1970, por exemplo, cuja liberdade de ex-

pressão era cerceada pela ação da censura oficial,

recorreram a narrativas baseadas em fatos – eram os

chamados romances-reportagem. A marginalida-

de está presente neles, mas sem as cores leves do

romantismo: a história de uma menina encontrada

morta é narrada em Aracelli, meu amor, enquanto a

trajetória de um bandido é o tema de Lúcio Flávio, o

passageiro da agonia – ambos romances de José

Louzeiro publicados na década de 1970.

Mais romancistas que repórteres, autores como

Plínio Marcos, João Antônio e Marçal Aquino man-

tiveram a temática da marginalidade com aborda-

gem crua e direta da violência urbana, utilizando-se

muitas vezes do baixo calão para dar voz às comuni-

dades pobres das grandes cidades brasileiras. Para

esses autores, não se trata apenas de focalizar a ban-

didagem, mas de expor as condições que a geram.

Em 1997, Paulo Lins publicou Cidade de Deus, re-

tratando o cotidiano dos moradores de um dos subúr-

bios mais violentos do Rio de Janeiro. Passados quatro

anos, o paulista Reginaldo Ferreira da Silva, conheci-

do como Ferréz, lançou Capão pecado, ambientado na

periferia de São Paulo, realidade que o autor conhece

de perto. Assim, no início do século XXI, as popula-

ções marginalizadas assumem sua própria voz, fazen-

do surgir uma nova expressão literária, cujo valor

fundamental está na contundência da denúncia e no

esforço em se fazer ouvir.

Ferréz (1975) venceu todas as barreiras até se transformar em uma voz

qualificada a difundir a cultura da periferia paulistana.

Amanheceu, Rael levantou cedo, se arrumou e foi

trabalhar; logo pela manhã ouviu um monte do seu pa-

trão pela falta do dia anterior. O resto do dia foi tran-

quilo, entregou os pães nas escolas, serviu os clientes,

lavou o freezer onde se colocavam os leites e foi para

casa. Chegando lá, estranhou quando viu aquele monte

de gente, e parecia que o movimento era em frente à

sua casa. Correu, pois sabia que o povo dali só se unia

assim para falar mal dos outros, ou então pra ver mor-

to. Rael corria e preferia que se tratasse do seu primeiro

pensamento; mas não foi assim, Dida estava caído em

frente à sua casa: estava de costas, sem o par de tênis e

com uma enorme mancha de sangue nas costas. Rael se

abaixou, tocou seu rosto e começou a chorar. Sua mãe

insistiu para que ele entrasse, estava com medo de que

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84TERCEIRÃO 8 LITERATURA

o assassino achasse que Rael, por ser amigo de Dida e

Will, poderia servir de testemunha, ou então querer uma

vingança. Insistiu, insistiu, mas Rael continuava abaixa-

do chorando. Foi quando Zé Pedro, seu pai, o abraçou

por trás, o levantou e o arrastou para dentro do barraco,

sem muita resistência.

Duas horas depois a Tático Sul chegou ao local, co-

briu o corpo com um lençol pedido a uma vizinha. Fica-

ram comendo carniça por mais de seis horas quando o

IML chegou e foi logo retirando o corpo. O pessoal nem

estranhou o fato de os legistas não terem examinado o

corpo, todos por ali já estavam acostumados com o des-

caso das autoridades.FERRÉZ. Capão pecado. 2. ed. São Paulo:

Labortexto Editorial, 2000.

A proposta literária de Ferréz e seus congêneres

supõe uma identificação completa entre autor, tema

e forma. Para ele, só quem pode falar da periferia é

quem a vive cotidianamente. E a única maneira de

contar a sua história é utilizar-se da linguagem que

viceja ali, com seus palavrões e suas gírias. A criati-

vidade está nesse registro doloroso do cotidiano

marginalizado. Os nexos entre o “descaso das auto-

ridades” e a dor de Rael pela morte do amigo são

expostos no texto de forma clara, sem que isso signi-

fique uma visão simplista dos problemas sociais – e

estéticos – sugeridos ali.

Novos talentos

Em 2012, a revista Granta, publicada pela editora

Objetiva, lançou um volume com um título sugesti-

vo: Os melhores jovens escritores brasileiros. Deixan-

do de lado a parcialidade inerente ao juízo do que

seja o melhor em qualquer setor, chama a atenção,

no título, o interesse pelo jovem escritor. A juven-

tude dos autores pode ser a garantia de uma expres-

são literária renovada, arejada, cheia de vitalidade.

Para chegar ao público, essa nova geração conta

com os meios tradicionais: novas editoras surgem

como alternativas de produção literária – é o caso da

Não Editora, de Porto Alegre, responsável por títulos

como Areia nos dentes, de Antônio Xerxenesky, O

professor de botânica, de Samir Machado de Macha-

do, e Pó de parede, de Carol Bensimon – todos lan-

çados em 2008. Mas os meios eletrônicos são cada

vez mais usados: surgem blogs que lançam livre-

mente textos na rede virtual – como o Prosa caótica,

de Maira Parula.

Um autor que se firma cada vez mais como um

nome definitivo é Daniel Galera, autor de uma obra

que, mesmo em seu início, já se mostra consistente.

Daniel Galera (1979) nasceu em São Paulo, mas adotou Porto Alegre

como sua cidade. Seus livros trazem reflexões contundentes e atuais.

“Lá em Ushuaia”, ela começou, “há um museu dedica-

do aos índios que viviam na região antes da colonização

dos europeus. Museu Yámana. Por incrível que pareça,

eles não usavam roupas naquele frio horrível. Parece que

a gordura dos animais e a oleosidade natural da pele bas-

tavam. Eles dormiam ao relento e mergulhavam na água

congelante sem dar muita bola. Em algumas fotos, estão

cobertos de peles, mas na maioria estão nus. Quando os

europeus chegaram, deram roupas de presente aos índios,

achando que estavam fazendo uma boa ação. Mas a maio-

ria deles morria em pouco tempo depois de vestir essas

roupas. Os tecidos ficavam molhados e eles adoeciam

com a umidade. Mas enfim, não era disso que eu queria

falar. É que lá no museu fiquei sabendo que a língua dos

yámanas contém a palavra mais sucinta que existe. Como

era mesmo? É... mapihna... não, Mamihlapinatapai. É o

olhar que duas pessoas trocam quando cada uma fica es-

perando que a outra inicie uma coisa que as duas querem,

mas que nenhuma tem coragem de começar.” Ela o enca-

rou. “Era bom que houvesse muitas palavras sucintas des-

se tipo. Sei que essa não se encaixa exatamente no nosso

caso, mas imaginar uma palavra bem parecia que definisse

o olhar que duas pessoas trocam quando uma delas quer

iniciar algo que as duas querem, mas a outra põe tudo a

perder porque defende que não é o momento certo, que se

puderem esperar só mais um pouquinho...” Ele desviou o

olhar. “É uma pena que o português não tenha essa pala-

vra, não acha?” Ele imaginou uma palavra que descrevesse

a situação em que uma pessoa já sabe o que a outra vai

dizer, mas se cala porque é essencial que a outra o diga,

para que suas palavras tornem inquestionável a verdade

indesejada que os dois já conhecem.“ Tarde demais, Da-

nilo. A gente teve um problema de sincronia.” Ainda não

era bem isso que ele precisava ouvir. Fingiu que não tinha

entendido bem, pediu outras explicações. Só a deixaria em

paz quando dissesse nos termos mais simples, sem rodeios

nem palavras indígenas, que não o amava mais.GALERA, Daniel. Cordilheira. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008.

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85LITERATURA TERCEIRÃO 8

Cordilheira relata os desencontros amorosos de

Anita e Danilo. Os desentendimentos do casal se ma-

nifestam até mesmo no nível da linguagem: a moça se

perde entre suas recordações e o que tem para dizer

ao rapaz (“não era disso que eu queria falar”). A in-

congruência se acentua com as palavras indígenas

que ela usa, tão incompreensíveis para ele quanto os

sentimentos que nutrem um pelo outro. Além disso, a

cena transcrita pode ser entendida quase como uma

reflexão metalinguística: o que Galera e sua geração

buscam é dizer as coisas “nos termos mais simples”,

abordando temas corriqueiros, como o fim de uma

relação íntima.

Os jovens escritores – sejam eles os melhores ou

não – não precisam de rótulos e não merecem ser

encarcerados por eles. Mesmo assim, os autores se-

lecionados na edição da Granta não desmentem a

proposta da revista: João Paulo Cuenca, Antonio

Prata, Carola Saavedra e Tatiana Salem Levy, entre

outros, prenunciam grandes textos literários. Ne-

nhum deles pretende ser o novo Guimarães Rosa ou

a nova Clarice Lispector. Querem apenas ser.

Enquanto isso, a literatura brasileira continuará a

produzir autores, jovens ou não, mas – e é o que im-

porta – de talento. Não é nenhum favor colocar ao

lado desse elenco juvenil o nome mais maduro de

Evandro Affonso Ferreira, autor de obras como Gro-

gotó (2000) e Araã! (2003). Quer saber de quem se

trata? Corra atrás! Afinal, você também é jovem.

1. (Enem) Para falar e escrever bem, é preciso, além de co-

nhecer o padrão formal da Língua Portuguesa, saber

adequar o uso da linguagem ao contexto discursivo.

Para exemplificar este fato, seu professor de Língua Por-

tuguesa convida-o a ler o texto “Aí, galera”, de Luis Fer-

nando Verissimo. No texto, o autor brinca com situações

de discurso oral que fogem à expectativa do ouvinte.

Aí, galera

Jogadores de futebol podem ser vítimas de este-

reotipação. Por exemplo, você pode imaginar um

jogador de futebol dizendo “estereotipação”? E, no

entanto, por que não?

— Aí, campeão. Uma palavrinha pra galera.

— Minha saudação aos aficionados do clube e

aos demais esportistas, aqui presentes ou no recesso

dos seus lares.

— Como é?

— Aí, galera.

— Quais são as instruções do técnico?

— Nosso treinador vaticinou que, com um trabalho

de contenção coordenada, com energia otimizada, na

zona de preparação, aumentam as probabilidades de,

recuperado o esférico, concatenarmos um contragolpe

agudo com parcimônia de meios e extrema objetivi-

dade, valendo-nos da desestruturação momentânea do

sistema oposto, surpreendido pela reversão inesperada

do fluxo da ação.

— Ahn?

— É pra dividir no meio e ir pra cima pra pegá

eles sem calça.

— Certo. Você quer dizer mais alguma coisa?

— Posso dirigir uma mensagem de caráter sen-

timental, algo banal, talvez mesmo previsível e pie-

gas, a uma pessoa à qual sou ligado por razões, in-

clusive, genéticas?

— Pode.

— Uma saudação para a minha progenitora.

— Como é?

— Alô, mamãe!

— Estou vendo que você é um, um...

— Um jogador que confunde o entrevistador,

pois não corresponde à expectativa de que o atleta

seja um ser algo primitivo com dificuldade de ex-

pressão e assim sabota a estereotipação?

— Estereoquê?

— Um chato?

— Isso.Correio Braziliense, 13 maio 1998.

O texto retrata duas situações relacionadas que fogem à

expectativa do público. São elas:

a) a saudação do jogador aos fãs do clube, no início da

entrevista, e a saudação final dirigida à sua mãe.

� b) a linguagem muito formal do jogador, inadequada à

situação da entrevista, e um jogador que fala, com

desenvoltura, de modo muito rebuscado.

c) o uso da expressão “galera”, por parte do entrevistador,

e da expressão “progenitora”, por parte do jogador.

d) o desconhecimento, por parte do entrevistador, da

palavra “estereotipação”, e a fala do jogador em “é pra

dividir no meio e ir pra cima pra pegá eles sem calça”.

e) o fato de os jogadores de futebol serem vítimas de

estereotipação e o jogador entrevistado não corres-

ponder ao estereótipo.

2. (Enem)

Texto I

Logo depois transferiram para o trapiche o de-

pósito dos objetos que o trabalho do dia lhes pro-

porcionava. Estranhas coisas entraram então para o

trapiche. Não mais estranhas, porém, que aqueles

meninos, moleques de todas as cores e de idades

as mais variadas, desde os nove aos dezesseis anos,

que à noite se estendiam pelo assoalho e por debai-

xo da ponte e dormiam, indiferentes ao vento que

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86TERCEIRÃO 8 LITERATURA

circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva

que muitas vezes os lavava, mas com os olhos puxa-

dos para as luzes dos navios, com os ouvidos presos

às canções que vinham das embarcações...AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008.

Texto II

À margem esquerda do rio Belém, nos fundos do

mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro – ali

os bêbados são felizes. Curitiba os considera ani-

mais sagrados, provê as suas necessidades de cacha-

ça e pirão. No trivial contentavam-se com as sobras

do mercado.TREVISAN, Dalton. 35 noites de paixão: contos escolhidos.

Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

Sob diferentes perspectivas, os fragmentos citados são

exemplos de uma abordagem literária recorrente na lite-

ratura brasileira do século XX. Em ambos os textos,

a) a linguagem afetiva aproxima os narradores dos per-

sonagens marginalizados.

b) a ironia marca o distanciamento dos narradores em

relação aos personagens.

c) o detalhamento do cotidiano dos personagens revela

a sua origem social.

� d) o espaço onde vivem os personagens é uma das mar-

cas de sua exclusão.

e) a crítica à indiferença da sociedade pelos marginaliza-

dos é direta.

3. (Enem)

Cabeludinho

Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apre-

sentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no

Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu.

Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu.

Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino

está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de

regências verbais. Ela falava sério. Mas todo mundo

riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer

de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho

que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade

de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra fei-

ta, no meio da pelada um menino gritou: Dislimina

esse, Cabeludinho. Eu não disliminei ninguém. Mas

aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à

nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de pa-

lavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a

não gostar de palavra engavetada. Aquela que não

pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das pa-

lavras pelo que elas entoam do que pelo que elas in-

formam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com

saudade: Ai morena, não me escreve / que eu não

sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu

ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro.

BARROS, M. Memórias inventadas: a infância.São Paulo: Planeta, 2003.

No texto, o autor desenvolve uma reflexão sobre dife-

rentes possibilidades de uso da língua e sobre os senti-

dos que esses usos podem produzir, a exemplo das

expressões “voltou de ateu”, “dislimina esse” e “eu não

sei a ler”. Com essa reflexão, o autor destaca:

a) os desvios linguísticos cometidos pelos personagens

do texto.

b) a importância de certos fenômenos gramaticais para

o conhecimento da língua portuguesa.

c) a distinção clara entre a norma culta e as outras varie-

dades linguísticas.

d) o relato fiel de episódios vividos por Cabeludinho

durante as férias.

� e) a valorização da dimensão lúdica e poética presente

nos usos coloquiais da linguagem.

TAREFA MÍNIMA

t� Leia o texto da aula.

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 1 a 3.

TAREFA COMPLEMENTAR

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 4 a 6.

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87LITERATURA TERCEIRÃO 8

1 Introdução

Uma das características da arte contemporânea é

o experimentalismo. Essa postura visa explorar novas

formas de expressão artística, que incluem os mais

variados suportes. No exemplo abaixo, os grafiteiros

paulistas Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos co-

mo OsGemeos, usam a parede monumental de uma

avenida para mostrar a sua arte, que apresenta re-

quinte técnico, colorido e ambientações oníricas. Su-

as imagens estranhas, povoadas de grandes

per so nagens amarelas, já são reconhecidas interna-

cionalmente como uma das mais interessantes mani-

festações das artes plásticas brasileiras do começo do

século XXI. A aceitação do grafite como forma válida

de expressão artística atesta o pluralismo estético pre-

dominante atualmente.

A partir dos anos 1950, a poesia brasileira foi for-

temente influenciada por algumas forças motrizes: a

exploração da visualidade poética, na esteira pro-

posta pelo Concretismo; a subjetividade crítica de

Carlos Drummond de Andrade e o racionalismo da

poesia de João Cabral de Melo Neto. Mas outras

veias de expressão também se fortaleceram, adqui-

rindo relevo e influência. Vejamos algumas delas.

2 Poesia marginal

Nos anos 1970, com o acirramento da censura du-

rante a ditadura militar e a dificuldade em se publicar

um livro de poesia, poetas buscaram meios pouco or-

todoxos de divulgar a sua arte. Poemas eram reprodu-

zidos de maneira artesanal e os próprios autores

procuravam vendê-los na boemia das grandes cidades.

Esse movimento foi chamado de “poesia marginal”

devido ao seu – por vezes – voluntário distanciamento

dos círculos mais “oficiais” de circulação literária, co-

mo as universidades e as editoras. Há pouca unidade

de temas e de estilos nos poetas chamados “margi-

nais”, mas, de maneira geral, pode-se notar a transfigu-

ração poética do cotidiano, e a presença de uma

linguagem francamente coloquial.

LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA POESIA

OsGemeos. Pintura mural em um dos parques do Rose Kennedy Greenway, em Boston, Estados Unidos.

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88TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Post-mortem

Quase morrer é assim:

uma cada vez mais crescente ojeriza com a “vidinha

[literária”

de par com a imorredoura memória de certas linhas,

por exemplo,

que durante o resto de tempo que me é concedido viver

e na hora H da minha morte,

estampada na minha face esteja a legenda:

O que amas de verdade permanece, o resto é escória.

[...]

Zelar pelo deus Treme-Terra que meu coração devolveu

Não cortejar a morte.

Não perambular pelos cemitérios

nem brindar o luar patético

com caveiras repletas de vinho tinto seco

como um Byron-Castro Alves gótico e obsoleto.

Sereno e cabeça dura – testa ruda –

mirar de frente a caveira

e as tropas de vermes de prontidão

(como observo vermes dentro de um pêssego)

Mas por enquanto gargalhar da irrealidade da morte.

Gozar, gozar e gozar

a exuberância órfica* das coisas

em riba da terra

debaixo

do

céu.

SALOMÃO, Waly. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

* Relativo a Orfeu, personagem da mitologia grega associada à poesia e à música.

O poeta baiano Waly Salomão explora nesse poe-

ma os desejos de quem sobreviveu depois de ter enca-

rado a morte. Daí a ironia do título: a expressão latina

post-mortem (depois da morte) nomeia o poema de

alguém que agora decide o que vai fazer com o tempo

que lhe resta. O eu lírico se propõe a mergulhar na

“exuberância órfica das coisas”, num desejo de fruir de

maneira plena o amor e aquilo que a arte e a poesia do

mundo podem oferecer, sem preocupações com aqui-

lo que ele qualifica de “vidinha literária”.

O poeta carioca Chacal é outra das vozes mais

significativas da poesia dos anos 1970:

o poeta que há em mim

não é como o escrivão que há em ti

funcionário autárquico

o profeta que há em mim

não é como a cartomante que há em ti

cigana fulana

o panfleta* que há em mim

não é como o jornalista que há em ti

matéria paga

o pateta que há em mim

não é como o esteta que há em ti

cana a la kant

o poeta que há em mim

é como o voo no homem pressentido.

CHACAL. In: 26 poetas hoje. Org. Heloísa Buarque de Hollanda.

Rio de Janeiro: Labor, 1976.

* O termo aqui equivale a “panfletista”, ou seja, aquele que escre-ve panfletos, feitos com texto curto, violento e sensacionalista, geralmente sobre assuntos políticos, impresso em folha avulsa ou folheto, e de distribuição limitada.

O poema de Chacal (codinome de Ricardo de Car-

valho Duarte) é uma tomada de posição ante o cenário

literário dos anos 1970. O poeta quer individualizar-se

diante do mundo artístico e intelectual de seu tempo,

por isso qualifica negativamente poetas, jornalistas,

estetas. O enunciador, ao caracterizar na última estrofe

o poeta que há dentro dele, se vale de uma comparação

de caráter surrealista e elevado, acentuando a impreci-

são e leveza na sua atividade poética.

O olhar simples e pantaneiro: Manoel de Barros

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O poeta mato-grossense Manoel de Barros (1916)

explora a poesia das coisas simples e aparentemente

sem importância. Criado em intenso contato com a

natureza do Pantanal, as referências a plantas e pe-

quenos animais povoam a sua obra, marcada por

versos insólitos e fascinantes, por exemplo, “o es-

plendor da manhã não se abre com faca” ou “nossa

maçã come Eva”. A estranheza de suas expressões

demonstra uma percepção atenta sobre a realidade,

permitindo ao leitor a surpresa de ver como novo o

mundo há muito conhecido.

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89LITERATURA TERCEIRÃO 8

O catador

Um homem catava pregos no chão.

Sempre os encontrava deitados de comprido,

ou de lado,

ou de joelhos no chão.

Nunca de ponta.

Assim eles não furam mais – o homem pensava.

Eles não exercem mais a função de pregar.

São patrimônios inúteis da humanidade.

Ganharam o privilégio do abandono.

O homem passava o dia inteiro nessa função de catar

pregos enferrujados.

Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.

Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.

Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.

Garante a soberania de Ser mais do que Ter.BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo.

Rio de Janeiro: Record, 2001.

O poema pode ser considerado um verdadeiro elo-

gio da vida simples – o que, de certa maneira, retoma o

lugar-comum clássico do aurea mediocritas. O enun-

ciador demonstra que o interesse pelas coisas inúteis

esconde uma grandeza de caráter ético, já que supera

a superficialidade de uma vida orientada apenas pelo

desejo de possuir bens. O “catador”, por isso, é um

homem livre, “soberano” de si mesmo.

A tradição da ironia: José Paulo Paes

José Paulo Paes

(1926 -1998) iniciou a

sua trajetória poética

em 1947. Poeta dos

mais profícuos e erudi-

tos, Paes desenvolveu

sua obra dialogando

com as propostas de

vanguarda e com a tra-

dição. Um dos aspectos

mais marcantes de seu trabalho é o olhar agudo e irô-

nico a respeito da realidade. Essa percepção se mani-

festa por meio de poemas ora sintéticos – o que revela

sua filiação à corrente modernista oswaldiana – ora

extremamente visuais, como pudemos ver no poema

“Epitáfio para um banqueiro”, transcrito na aula 53,

sobre Poesia Concreta. Ao mesmo tempo, Paes domi-

na com desenvoltura o verso metrificado e rimado. O

autor foi ainda um dos nossos mais importantes tradu-

tores, vertendo para o português obras de grandes

poetas da tradição ocidental, dos mais variados idio-

mas: grego, latim, provençal, italiano, inglês, francês,

alemão, espanhol, dentre outros.

À televisão

Teu boletim meteorológico

me diz aqui e agora

se chove ou se faz sol.

Para que ir lá fora?

A comida suculenta

que pões à minha frente

como-a toda com os olhos.

Aposentei os dentes.

Nos dramalhões que encenas

há tamanho poder

de vida que eu próprio

nem me canso de viver.

Guerra, sexo, esporte

– me dás tudo, tudo.

Vou pregar minha porta:

já não preciso do mundo.

PAES, José Paulo. Prosas seguidas de odes mínimas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

O texto é uma ode à televisão. A ode é um gênero

literário que tem como origem o canto elogioso dos

poetas antigos aos vencedores dos jogos olímpicos.

Embora o poema, a princípio, devesse ser um elogio

à televisão, causa estranheza que o enunciador abdi-

que do mundo para cultivar apenas os prazeres que

o aparelho proporciona. A ironia é radical: preso aos

simulacros de uma realidade aparentemente supe-

rior, o eu lírico isola-se em sua ilusão, satisfeito como

um viciado que se afunda nos gozos de um entorpe-

cente que acabará por levá-lo à morte.

Hilda Hilst: a poesia do sublime e do baixo

Hilda Hilst (1930 -2004)

iniciou sua trajetória lite-

rária ainda ligada aos pa-

drões da poesia metafísica

da Geração de 45. Desde

os primeiros livros, a poe-

tisa abordou temas eleva-

dos como Deus, o amor e a

morte, demonstrando do-

mínio técnico e profundo

conhecimento da tradição.

Hilst também trabalhou

com temas obscenos, con-

siderados “baixos” por

boa parte da tradição crítica. É uma das poetisas

mais consagradas do século XXI. Teve sua poesia

traduzida para diversos idiomas.

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90TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Isso de mim que anseia despedida

(para perpetuar o que está sendo)

Não tem nome de amor. Nem é celeste

Ou terreno. Isso de mim é marulhoso

E tenro. Dançarino também. Isso de mim

É novo: Como quem come o que nada contém.

A impossível oquidão do ovo.

Como se um tigre

Reversivo,

Veemente de seu avesso

Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.

Como pode ser isso? Ser tenro e marulhoso

Dançarino e novo, ter nome de ninguém

E preferir ausência e desconforto

Para guardar no eterno coração do outro.HILST, Hilda. Cantares. São Paulo: Globo, 2002.

Hilst retoma, com elegância e contemporaneida-

de, o velho tema da definição do amor. A dificuldade

em nomear as contradições sentimentais já se anun-

cia nos primeiros versos. Sem ter nome adequado

para seu sentimento, o enunciador chama-o de “isso

de mim”, e o associa a imagens ligadas à delicadeza,

mas carregadas de um aspecto contraditório, estra-

nho e sempre surpreendente, como um tigre que

canta manso ou o oco de um ovo. Um dos traços mais

relevantes de “isso de mim” é a disposição ao sacrifí-

cio e sofrimento, pois força o enunciador a preferir a

dor e a ausência para guardar na eternidade o “cora-

ção do outro”.

Um lugar à parte: Paulo Leminski

O curitibano Paulo Le-

minski (1944 -1989) é um dos

poetas mais influentes deste

começo de século XXI. Unin-

do rigor técnico a uma dicção

simples e precisa, ele soube

tratar de temas cotidianos e

profundos com lirismo denso.

Vários de seus poemas são

fortemente visuais, com ritmo

leve e repletos de trocadilhos bem-humorados, que

revelam a cada momento formas surpreendentes e

significados inesperados embutidos nas palavras.

Por um lindésimo de segundo

tudo em mim

anda a mil

tudo assim

tudo por um fio

tudo feito

tudo estivesse no cio

tudo pisando macio

tudo psiu

tudo em minha volta

anda às tontas

como se as coisas

fossem todas

afinal de contas.

Transar bem todas as coisas

a Papai do Céu pertence,

fazer as luas redondas

ou me nascer paranaense.

A nós, gente, só foi dada

essa maldita capacidade,

transformar amor em nada.LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos.

São Paulo: Brasiliense, 1987.

O poema expressa bem os valores da poesia de

Leminski, como a exploração da visualidade – por

meio de uma organização inusitada dos versos na

página – e a linguagem simples e coloquial, cheia de

trocadilhos – como já se verifica no título. Sob essa

simplicidade se esconde, contudo, ecos da poesia

clássica, como a apropriação da temática do descon-

certo do mundo: o enunciador apresenta a dificuldade

de compreender profundamente as coisas, atribuindo

a Deus essa capacidade plena. Aos homens, resta-nos

a capacidade nada edificante de transformar o amor

– o mais sublime dos sentimentos – em nada.

Poesia em diálogo com o mundo pop:

Arnaldo Antunes

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Arnaldo Antunes (1960) é um artista multicultural:

além de poeta respeitado, é compositor e cantor de su-

cesso, com participação relevante no cenário da música

popular brasileira. Foi integrante do grupo de rock Ti-

tãs e segue sua trajetória musical em carreira solo com

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91LITERATURA TERCEIRÃO 8

shows e happenings no Brasil e no exterior. Sua poesia

nasce da inspiração concretista, mas, diferentemente

daquela corrente de vanguarda, busca um diálogo mais

próximo com o grande público, por meio de uma lin-

guagem clara, que sutilmente aborda temas complexos,

numa roupagem típica da arte contemporânea.

Os buracos do espelho

o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar aqui

com um olho aberto, outro acordado

no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso

mesmo que me chamem pelo nome

mesmo que admitam meu regresso

toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede

a palavra de água se dissolve

na palavra sede, a boca cede

antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira

quatro, cinco, seis da madrugada

vou ficar ali nessa cadeira

uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar agora

fui pelo abandono abandonado

aqui dentro do lado de foraArnaldo Antunes. In: <www.arnaldoantunes.com.br>.

O poema mostra o forte desejo de autorreconheci-

mento. O espelho, onde cada um de nós se reflete,

expulsou e abandonou o enunciador, que agora espe-

ra angustiadamente, “do lado de cá”, uma nova opor-

tunidade para se ver e entrar novamente em íntimo

contato consigo mesmo.

Poesia e filosofia: Antonio Cicero

O poeta carioca Antonio

Cicero (1945) conjuga em sua

poesia o rigor da tradição

com as notas seguras de

uma poesia marcadamente

contemporânea. Assim co-

mo Arnaldo Antunes, ele tra-

balha de perto com o mundo

da cultura popular, pois vá-

rios de seus poemas foram

conhecidos pelo grande pú-

blico por terem sido musica-

dos, dentre outros, por artistas como Marina Lima,

Adriana Calcanhoto e João Bosco. Antonio Cicero é

também filósofo. Sua linguagem, marcada por uma

dicção elegante e clássica, aborda temas profundos

retirados ora de uma reflexão rigorosa sobre a existên-

cia, ora de um acontecimento casual, tendo como cená-

rio a cidade do Rio de Janeiro.

Voz

Orelha, ouvido, labirinto:

Perdida em mim a voz de outro ecoa.

Minto:

Perversamente sou-a.CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

Este poema breve apresenta um elemento caro à

estética clássica: a maneira como o artista deve dialogar

com a arte que existe previamente a ele. Pode ser con-

siderado uma pequena Arte poética, no sentido de uma

exposição dos procedimentos da criação poética. No

texto, o enunciador afirma escutar uma voz que entra

física e fisiologicamente em seu corpo. A incorporação

da voz do outro não se dá, contudo, de maneira passiva,

como um eco; pelo contrário: o poeta apropria-se ativa-

mente dela, tornando-se a voz estranha que soava per-

dida em si mesmo. A paronomásia (figura de linguagem

que aproxima palavras de sons semelhantes, mas de

significados diferentes) entre os termos “soa” (do verbo

soar) e “sou-a” acentua a indefinição do que era o outro

e do que é agora o enunciador.

TEXTOS PARA A QUESTÃO 1

Digitações

A poética é uma máquina

Há um código central

Em que se digita ANULA

É a máquina do nada

Que anda ao contrário

Da sua meta

A repetição é a morte

Noutro código lateral

Digita-se ENTRA

E os cupins invadem o quartoSebastião Uchoa Leite

1. (Mack-SP) Assinale a alternativa correta.

� a) O poema traz marcas da contemporaneidade tanto na

forma escolhida pelo poeta (versos livres e brancos),

como nas imagens utilizadas.

b O texto recupera do estilo surrealista a valorização dos

aspectos técnicos de composição, como os efeitos so-

noros, por exemplo, em detrimento do conteúdo.© A

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92TERCEIRÃO 8 LITERATURA

c) A sintaxe fragmentada, apoiando-se em frases nomi-

nais, é marca do estilo “telegráfico”, muito valorizado

pelo modernista Oswald de Andrade.

d) Ao enaltecer a subjetividade do artista, o texto recupera

aspecto significativo do estilo de João Cabral de Melo

Neto, poeta da terceira fase do Modernismo brasileiro.

e) A idealização do progresso tecnológico, o uso de “pa-

lavras em liberdade” e a ausência de pontuação, confir-

mando-se, assim, tratar-se de um texto do Futurismo.

TEXTOS PARA AS QUESTÕES 2 E 3

Texto I

Corte

O dia segue normal. Arruma-se a casa. Limpa-se

em volta. Cumprimenta-se os vizinhos. Almoça-se

ao meio-dia. Ouve-se rádio à tarde. Lá pelas 5 horas,

inicia-se o sempre.MELLO, Maria Amélia. Corte. Minas Gerais, Belo Horizonte,

n. 686, ano XIV, 24 nov. 1979. Suplemento Literário, p. 9.

Texto II

Solar

Minha mãe cozinhava exatamente:

arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.

Mas cantava.PRADO, Adélia. O coração disparado. 3. ed. Rio de Janeiro:

Salamandra, 1984. p. 28.

2. (UEL-PR) Com base nos textos I e II, é correto afirmar:

a) Em ambos os textos, há referências explícitas a uma fi-

gura feminina como agente das ações mencionadas.

b) A ênfase em uma ação tipicamente feminina revela-se

com mais clareza em “Corte” através da frase “Almoça-se

ao meio-dia”.

� c) Em “Solar”, sobressai a ideia de cumplicidade entre o

sujeito lírico e a figura materna, que torna o cotidiano

doméstico menos enfadonho.

d) As autoras expõem posicionamentos feministas que

sugerem ser a subversão a melhor resposta à opressão

masculina.

e) Em “Solar”, há uma espécie de perturbação do sujeito

lírico com a inconstância da ação da figura materna.

3. (UEL-PR) Sobre o texto II, considere as afirmativas a seguir.

I. O verbo cantar remete a uma prática que contrasta

com o prosaico pouco expressivo do cotidiano.

II. Os ingredientes enumerados – arroz, feijão-roxinho e

molho de batatinhas – representam o descaso da

mãe com a família.

III. O último verso é introduzido por uma conjunção que

expressa o sentido de oposição.

IV. O texto é narrativo porque os atos de cozinhar e can-

tar são mostrados em uma sequência cronológica.

Estão corretas apenas as afirmativas:

a) I e II. d) I, II e IV.

� b) I e III. e) II, III e IV.

c) III e IV.

TAREFA MÍNIMA

t� Leia o texto da aula.

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 1 a 3.

TAREFA COMPLEMENTAR

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 4 a 7.

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93LITERATURA TERCEIRÃO 8

1 Muito além de Fernando Pessoa

Depois de um início de século vigoroso, com a

geração de artistas reunidos em torno da revista Or-

pheu, lançada em 1915, a literatura portuguesa pare-

ceu entrar em refluxo. Na verdade, o nome forte de

Fernando Pessoa funciona como ímã, impedindo,

por vezes, que se veja um cenário mais amplo. Vi-

vendo sob regime ditatorial a partir de 1926, a cultu-

ra portuguesa experimentou dois polos distintos de

manifestação. De um lado, a introspecção, marca

registrada da segunda geração do Modernismo luso,

cujo órgão de divulgação, a revista Presença, lançada

em 1927, trazia em seus primeiros números artigos

de defesa de uma literatura psicologizante. De outro

lado, o engajamento político, na etapa seguinte, a do

Neorrealismo, que teve na publicação do romance

Gaibéus, de Alves Redol, em 1939, seu ato inaugural.

No entanto, esta polarização ainda não dá conta

do panorama literário português, notadamente a

partir da segunda metade do século XX. Ele nos re-

serva boas surpresas, como a poesia surrealista de

Mário Cesariny, por exemplo, que buscou novos ca-

minhos expressivos, embora sem fugir do ambiente

político em que se encontrava. Outros nomes de

destaque na poesia foram: Sophia de Mello Breyner

Andresen, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Eugé-

nio de Andrade, David Mourão Ferreira, Herberto

Helder, E. M. de Melo e Castro, Al Berto, Nuno Júdi-

ce, entre outros.

No terreno da ficção, alguns de seus principais

representantes trilharam caminhos parecidos. Mi-

guel Torga fez do inconformismo seu principal moti-

vo, traduzindo-o em obras de caráter autobiográfico

(Diário) e utilizando ainda o recurso da fábula (como

em Bichos). Vergílio Ferreira veio do Neorrealismo,

mas logo derivou para um estilo filosófico, de teor

existencialista, tratando de sentimentos contraditó-

rios, como no romance Aparição. Trajetória seme-

lhante cumpriu José Cardoso Pires, buscando man-

ter-se distante de programas estéticos definidos,

bem como da retórica narrativa para se concentrar

no trabalho com a palavra. Agustina Bessa-Luís lan-

çou, em 1954, o romance A sibila, com o qual ganhou

lugar de destaque na ficção portuguesa do século. O

livro sintetiza algumas das qualidades da escritora,

como a sensibilidade no registro da cultura lusitana

e, acima de tudo, um notável refinamento estilístico.

Da geração seguinte, destaca-se Helder Macedo,

cujo romance Pedro e Paulo (1998) mantém a referên-

cia histórica ao tratar da trajetória de dois irmãos que

viveram sob a ditadura salazarista.

O panorama luso se amplia com nomes impor-

tantes, surgidos na virada do século XX para o XXI.

O escritor valter hugo mãe, que grafa seu nome com

as iniciais em letras minúsculas, lançou em 2006 O

remorso de Baltazar Serapião, contendo grande teor

de inovação linguística. A temática urbana é a linha-

gem em que se incluem Rui Zink e Inês Pedrosa,

enquanto a ambientação rural mostra sua força na

obra de José Riço Direitinho.

Essa ampliação é ainda maior quando se considera

os talentos surgidos em terras lusófonas, como os an-

golanos Agostinho Neto, José Luandino Vieira, Pepe-

tela, José Eduardo Agualusa e Ondjaki, o moçambicano

Carlos Cardoso e o cabo-verdiano Manuel Lopes.

LITERATURA LUSÓFONA CONTEMPORÂNEA

Capa do romance

Gaibéus, de Alves Re-

dol, cuja publicação

é tida como marco

inaugural do Neorre-

alismo português. © D

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Primeiro número da re-

vista Presença (1927).

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94TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Para representar uma produção tão ampla e im-

portante, escolhemos aprofundar o estudo dos por-

tugueses José Saramago e António Lobo Antunes e

do moçambicano Mia Couto.

José Saramago

José Saramago nasceu

na aldeia de Golegã, em

1922. De família humilde, fi-

lho de pais analfabetos, de-

dicou-se a diversas ocupa-

ções para ganhar a vida: foi

serralheiro mecânico, dese-

nhista, modesto funcionário

do serviço de saúde e da

previdência social, mas, des-

de a infância, revelara forte

interesse pela leitura, o que

o encaminhou posteriormente para o trabalho com as

palavras, como editor, tradutor e jornalista. Sempre

defendeu pontos de vista bastante pessoais e polêmi-

cos, sem se preocupar em ser agradável aos podero-

sos. Sua consagração total como escritor só viria em

1982, com a publicação de Memorial do Convento.

Desde então a obra de José Saramago tem sido muito

lida e discutida, o que fez dele o escritor contemporâ-

neo mais influente do idioma. Em 1995, Saramago foi

laureado com o prêmio Camões, um dos mais presti-

giados do mundo lusófono. Três anos depois, a acade-

mia sueca concedeu a ele o Prêmio Nobel de Literatura,

o primeiro concedido a um autor da língua portuguesa.

O prestígio não livrou Saramago de intensas polêmi-

cas. Devido ao seu livro O evangelho segundo Jesus

Cristo, foi duramente atacado por setores eclesiásticos

e por críticos que acusaram o autor – um ateu militante

– de ter feito uma leitura subjetiva e distante dos câno-

nes propostos pela Igreja. Devido às consequências

dessa polêmica, Saramago decidiu mudar-se de Portu-

gal para a ilha de Lanzarote, no arquipélago espanhol

das Canárias, próximo ao continente africano. Foi nes-

sa inóspita ilha que o escritor faleceu, no ano de 2010,

aos 87 anos.

O estilo

José Saramago criou um estilo único, em que incor-

porou o português erudito a formas e expressões tipi-

camente orais. Uma das principais marcas de sua prosa

é a maneira peculiar com que registra os diálogos de

suas personagens, por meio do uso pouco convencio-

nal dos sinais de pontuação, e da eliminação do traves-

são para indicar o discurso direto. Eis um exemplo:

O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passa-

geiro não ouvira, já abria a boca para repetir, Para onde,

mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta*, suspen-

siva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei,

soube o viajante o que queria, com tão firme convicção

como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a esco-

lha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio

só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não

sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei

onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português,

pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim

tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezesseis anos

que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai

encontrar grandes mudanças por cá, e com estas palavras

calou-se bruscamente o motorista.SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis.

Portugal: Círculo de leitores, 1986.

* Indecisa.

Nesse trecho, Ricardo Reis, o heterônimo clássico de

Fernando Pessoa, retorna a Lisboa. Recém-chegado,

apanha um táxi e conversa com o motorista. A maneira

como o diálogo é apresentado pode causar estranha-

mento. O narrador introduz as vozes das personagens

sem os tradicionais travessões. Mas isso não chega a

causar confusão: numa leitura atenta, é possível perce-

ber marcas nítidas de separação das vozes das persona-

gens e do narrador. Usa-se a vírgula seguida de uma

letra maiúscula, para indicar a troca das vozes.

Realismo fantástico

No texto anterior, José Saramago usou como per-

sonagem um poeta inventado por Fernando Pessoa.

No romance O ano da morte de Ricardo Reis, o heterô-

nimo, depois de um autoexílio no Brasil, retorna a

Lisboa, onde vai assistir ao conturbado período histó-

rico do ano de 1936, quando iniciava o período salaza-

rista. Essa mistura entre ficção e realidade foi muito

explorada pelo grande romancista. Em Memorial do

Convento, fatos e personagens históricos conhecidos

do século XVIII são entremeados a uma narrativa de

caráter fantástico, com personagens dotadas de pode-

res sobrenaturais. É o caso de Blimunda, que tinha o

estranho poder de ver as pessoas por dentro:

Que poder é esse teu, Vejo o que está dentro dos

corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o

que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo

das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco

o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a

seguir, quem me dera que o não tivesse, Porquê, Porque

o que a pele esconde nunca é bom de ver-se, Mesmo

a alma, já viste a alma, Nunca a vi, Talvez a alma não

esteja afinal dentro do corpo, Não sei, nunca a vi, Será

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95LITERATURA TERCEIRÃO 8

porque não se possa ver, Será, e agora larga-me, tira a

perna de cima de mim, que me quero levantar.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Portugal: Editorial Caminho, 1986.

O diálogo se dá entre Baltazar (conhecido como Se-

te-Sóis) e Blimunda (conhecida como Sete-Luas) pou-

co tempo depois de se conhecerem. Ambos são pobres

e suspeitos aos olhos da poderosa Inquisição. Em outro

eixo narrativo, o leitor vai conhecer o dia a dia do rei D.

João V, que, para pagar uma promessa, manda erguer

em 1717, na cidadezinha de Mafra, um convento e um

palácio monumentais financiados com o ouro que che-

gava fartamente do Brasil. Mais de 50 mil homens tra-

balharam em condições desumanas nessa construção.

O evidente contraste entre o luxo e a miséria no século

XVIII dá ao livro uma dimensão social que transcende

seus limites temporais e serve de denúncia da explora-

ção do trabalho até nos dias de hoje.

Blimunda e Baltazar envolveram-se com o padre

brasileiro Bartolomeu de Gusmão – personagem que

existiu historicamente. O padre, que era um livre-

-pensador, sonhava em voar com um aparelho em

forma de ave, a “passarola”, e precisava que Blimun-

da o ajudasse a recolher as “vontades” de dentro das

pessoas. Segundo o padre, sem esse fluido etérico

seu aparelho nunca deixaria o chão.

Como se pode ver, Saramago entrelaça de maneira

sutil e convincente a mais aberta fantasia com referên-

cias precisas, renovando o gênero do romance histórico.

As grandes alegorias da modernidade

Saramago não se resume a

um escritor que resgata tem-

pos passados. Faz também

grandes alegorias do presente,

em que se esboça forte pessi-

mismo, mas em que não se

apaga a chama daquilo que há

de mais elevado na condição

humana: o amor e a arte. Bom

exemplo disso é o romance

Ensaio sobre a cegueira. Numa

cidade e num tempo impreci-

sos, alastra-se uma estranha

epidemia de cegueira, em que

os doentes só tinham a cor branca diante dos olhos,

como se estivessem mergulhados em um “mar de

leite”. Somente a mulher do médico que cuidou dos

primeiros doentes não ficou cega e, assim, pôde tes-

temunhar os mais vis horrores a que os humanos

foram rebaixados. O ditado que diz “em terra de ce-

go, quem tem um olho é rei” é gritantemente contra-

riado. A mulher do médico vivencia o absurdo de

enxergar quando todas as pessoas (da cidade, do

país, do mundo) são jogadas na bruta luta pela sobre-

vivência, numa condição de animalidade total.

O sol tinha rompido, brilhava nas poças de água forma-

das entre o lixo, via-se melhor a erva que crescia entre as

pedras da calçada. Havia mais gente fora. Como se orien-

tarão eles, perguntou-se a mulher do médico. Não se orien-

tavam, caminhavam rente aos prédios com os braços es-

tendidos para a frente, continuamente esbarravam uns nos

outros como as formigas que vão no carreiro, mas quando

tal sucedia não se ouviam protestos, nem precisavam fa-

lar, uma das famílias despegava-se da parede, avançava

ao comprido da que vinha em direção contrária, e assim

seguiam e continuavam até ao próximo encontro. De vez

em quando paravam, farejavam à entrada das lojas, a sen-

tir se vinha cheiro de comida, qualquer que fosse, depois

prosseguiam o seu caminho, viravam uma esquina, desa-

pareciam da vista, daí a pouco surgia dali outro grupo, não

traziam ar de haver encontrado o que buscavam.SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira.

São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

O narrador mostra o impressionante quadro de

desolação a que chegara a humanidade após a epide-

mia. A doença é marcada pelo branco, que é a cor as-

sociada à razão, à luz. A cegueira branca parece indicar

os exageros a que chegou a moderna sociedade racio-

nalista. O absurdo da cegueira branca se acentua pela

total ausência de explicações sobre as causas da doen-

ça ou suas possíveis curas, como a indicar que a ordem

em que nós vivemos pode também ser subvertida radi-

calmente, transformando as pessoas, sem distinção de

classe ou raça, num único conjunto de seres lutando

pela sobrevivência. Basta pensar num desastre ecoló-

gico de dimensões mundiais.

António Lobo Antunes

António Lobo Antunes

(1942) nasceu em Lisboa e

seguiu a carreira da Medici-

na, especializando-se em

Psiquiatria. Na condição de

médico, serviu em Angola

durante a guerra civil, entre

1971 e 1973, experiência que

marcaria profundamente

sua obra literária. Mesmo

mantendo a dedicação à Medicina (disse certa vez

que continuava a ir ao hospital apenas para não se

sentir maluco), Lobo Antunes é bastante reconheci-

do por sua ficção.

Cartaz do filme Ensaio sobre

a cegueira, de Fernando Mei-

relles, inspirado no romance

homônimo de José Saramago.

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96TERCEIRÃO 8 LITERATURA

Dramas humanos

Em suas obras, António Lobo Antunes aborda

preferencialmente temas relacionados à morte, à soli-

dão, à frustração, às dificuldades das relações huma-

nas. Tais dramas são ambientados na vida burguesa

de Lisboa, da qual é originário o próprio autor. Suas

influências mais evidentes são: os cinemas norte-

-americano e italiano, o ritmo do jazz e alguns escrito-

res que o encantaram na adolescência, como Céline,

Hemingway, Sartre, Camus, Júlio Verne, etc. A gran-

de presença de referências estrangeiras se deve, co-

mo ele mesmo sugere, à sua origem parte brasileira

(um avô) e parte alemã (uma avó).

Entre suas obras, contam-se: Memória de elefante

(1979), Os cus de Judas (1979), Conhecimento do inferno

(1980), O manual dos inquisidores (1988), Fado alexan-

drino (1983), O esplendor de Portugal (1997), Exortação

aos crocodilos (1999) e Não entres tão depressa nessa

noite escura (2000).

A guerra como motivo de ficção

A colonização portuguesa em Angola teve início no

final do século XV. Durante a ditadura do Estado Novo,

que se prolongou no país de 1926 a 1974, os órgãos de

repressão interna também estendiam seus tentáculos

às colônias. Muitos grupos locais de resistência ao do-

mínio lusitano foram organizados, como o Movimento

Popular Libertação de Angola (MPLA). Durante as dé-

cadas de 1960 e 1970, a manutenção da guerra colonial

minava as bases do governo autoritário, cada vez mais

frágeis. Com o fim da ditadura lusa, em 25 de abril de

1974, iniciou-se o processo de desmontagem do apara-

to colonial, e a independência de Angola foi finalmente

proclamada em 1975.

Em seus primeiros livros, publicados nos anos 1970,

António Lobo Antunes compõe um painel brutal e áci-

do da guerra angolana. As feridas ainda estavam aber-

tas entre os portugueses e esses livros se constituíram

em fontes de reflexão sobre toda a sociedade lusa.

Os cus de Judas

O romance Os cus de Judas

é a transposição ficcional de

uma experiência efetiva do au-

tor: sua participação como mé-

dico militar na guerra que

opôs o exército português à

guerrilha de Angola, então co-

lônia de Portugal. O título, pro-

positadamente chulo, sugere

algumas das linhas fundamen-

tais do romance. De um lado,

refere um lugar distante; de outro, um rebaixamento

físico e moral – a degradação provocada pela expe-

riência trágica da guerra de conquista e de coloniza-

ção. Há, ainda, um outro sentido pertinente ao enredo

da obra: entre os membros do Movimento Popular de

Libertação de Angola (MPLA), um dos grupos de

guerrilha organizados na luta pela independência, a

expressão era usada para qualificar exatamente os

traidores. Assim, o título denunciaria o estigma de

quem se sente traído por seu país, e traidor dos pró-

prios ideais.

O que fizeram do meu povo, O que fizeram de nós

sentados à espera nesta paisagem sem mar, presos por

três fieiras1 de arame farpado numa terra que nos não

pertence, a morrer de paludismo2 e de balas cujo per-

curso silvado3 se aparenta a um nervo de nylon que vi-

bra, alimentados por colunas4 aleatórias cuja chegada

depende de constantes acidentes de percurso, de em-

boscadas e de minas, lutando contra um inimigo invi-

sível, contra os dias que se não sucedem e indefinida-

mente se alongam, contra a saudade, a indignação e o

remorso, contra a espessura das trevas opacas, tal um

véu de luto, e que puxo para cima da cabeça a fim de

dormir, como na infância utilizava a bainha5 do lençol

para me defender das pupilas de fósforo azul dos meus

fantasmas.

[...] Talvez a guerra tenha ajudado a fazer de mim

o que sou hoje e que intimamente recuso: um solteirão

melancólico a quem se não telefona e cujo telefonema

ninguém espera, tossindo de tempos a tempos para se

imaginar acompanhado, e que a mulher a dias6 acabará

por encontrar sentado na cadeira de baloiço7 em cami-

sola interior8, de boca aberta, roçando os dedos roxos

no pelo cor-de-novembro da alcatifa9.ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. 19. ed. Lisboa:

Publicações Dom Quixote, 1997.

1. Fileira.

2. O mesmo que malária, doença aguda causada por parasitas.

3. Que produz som agudo.

4. Grupo de soldados.

5. Dobra de tecido.

6. Faxineira.

7. Cadeira de balanço.

8. Camiseta.

9. Tapete.

A narrativa se desenvolve como um grande mo-

nólogo do protagonista, que conversa em um bar

com uma mulher cuja fala não aparece jamais. Em

seu discurso, o narrador rememora a experiência da

guerra, cujas marcas se estendem ao presente e de-

terminam a visão cética que ele tem da vida e da so-

ciedade. No trecho, percebe-se a mistura da perspec- © D

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97LITERATURA TERCEIRÃO 8

tiva social, na referência à guerra, com o intimismo,

presente nas considerações pessoais que desenvolve.

O estilo caudaloso reproduz de forma expressiva a

angústia que toma conta do narrador em seu relato

desesperado da experiência vivida e que impregna

sua existência.

2 Literatura lusófona africana

Há um grupo de países africanos que guardaram a

língua como herança colonial e possuem uma quanti-

dade significativa de obras e autores importantes.

Esses artistas têm revelado ao mundo uma realidade

muito marcada pelas consequências das lutas san-

grentas travadas pela independência política e tam-

bém suas guerras internas oriundas desses conflitos.

Mia Couto

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Contista, poeta e romancista moçambicano.

Filho de portugueses, Mia Couto nasceu na Beira,

em Moçambique, em 1955. Cursou Medicina até o

terceiro ano, quando começou a atuar como jornalis-

ta, impulsionado pela militância na Frente de Liber-

tação de Moçambique.

Mia Couto formou-se em Biologia e trabalha atual-

mente na reserva de Inhaca, em Moçambique. Acredi-

ta que se manter ativo em diferentes profissões é uma

forma de estar aberto para o mundo.

É um dos principais escritores africanos e também

um dos mais traduzidos, comparado a Gabriel García

Márquez e Guimarães Rosa. Seu romance Terra sonâm-

bula foi considerado um dos dez melhores livros africa-

nos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio

Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007,

o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.

Um olhar sobre duas obras, de características

diferentes e complementares do escritor africano,

ajuda a perceber o estilo particular desenvolvido no

trabalho literário de Mia Couto.

Terra sonâmbula – um lugar destruído pelo colonialismo

português

É estimado que um mi-

lhão de moçambicanos te-

nham morrido na guerra

civil em consequência dos

conflitos internos posterio-

res à libertação do país em

1975. Terra sonâmbula é um

romance que trata da ne-

cessidade de reconstrução

de um local destruído pela

violência.

O menino Muidinga e o

velho Tuahir, representantes

de duas gerações, de dois tempos diferentes no mes-

mo lugar, andam juntos por uma estrada, acreditan-

do que ela possa conter alguma promessa de futuro.

Em um ônibus incendiado, que serve de abrigo

temporário aos dois, encontram, entre os corpos

carbonizados, o diário de Kindzu, que procurava os

naparamas, guerreiros tradicionais abençoados pe-

los feiticeiros. Enquanto o menino segue em busca

de suas raízes, é narrada em flashback a trajetória de

Kindzu. As duas histórias acabam por fundir-se em

uma mensagem de esperança.

Repleta de metáforas líricas, Terra sonâmbula é

uma obra otimista, na qual predominam a busca e o

sonho em meio a um lugar em que impera a morte,

a sujeira e o céu cinza. O que verdadeiramente se

procura é a identidade moçambicana.

Naquele lugar, a Guerra tinha morto a Estrada. Pelos

caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre

cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas

nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram

cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza,

esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui,

o céu se tornara impossível. E os viventes se acostuma-

ram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.

A estrada que agora se abre a nossos olhos não se

entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que

os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas

bermas1 apodrecem carros incendiados, restos de pilha-

gens. Na savana em volta, apenas os embondeiros2 con-

templam o mundo a desflorir3.

Um velho e um miúdo vão seguindo pela Estrada.

Andam bambolentos4 como se caminhar fosse seu único

serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma

parte, dando o vindo por não ter ido, à espera do adian-

te. Fogem da Guerra, dessa Guerra que contaminara

toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um

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refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a

mesma cor do caminho.COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007.

1. Passagens estreitas que separam canais, trincheiras ou fossos.

2. Árvore nativa da região tropical da África.

3. Neologismo que significa: secar, definhar, entristecer, murchar.

4. Neologismo que significa: com o corpo “bambo”, sem firmeza.

O texto pode ser considerado um bom exemplo

de prosa poética. Com claras influências de Guima-

rães Rosa, Mia Couto desenha um panorama triste e,

ao mesmo tempo lírico, da situação em que se en-

contram suas personagens. O tom que predomina

no fragmento é, apesar de tudo, esperançoso, de

encontro de um refúgio tranquilo. Os andarilhos se

confundem não apenas com a terra da estrada, mas

com o próprio país a que pertencem. É possível iden-

tificar exemplos de neologismos como bambolen-

tos, cujos significados se depreendem do contexto

em que são aplicados, contribuindo para uma rique-

za sonora que traduz de forma peculiar o universo

que descreve.

O fio das missangas

Da mesma forma que o romance Terra sonâmbu-

la, o livro de contos O fio das missangas também tem

Moçambique como cenário principal. Os textos da

obra abordam principalmente o universo feminino,

retratando mulheres condenadas ao esquecimento

ou maltratadas pelos homens que as cercam. São 29

pequenos contos em que o autor se empenha para

criar um panorama da vida, dos hábitos e da cultura

moçambicana.

Continuando a fazer uso de neologismos, aqui as

palavras inventadas funcionam também como ins-

trumento de interpretação do ambiente das narrati-

vas e ganham múltiplos significados que revelam

aspectos da alma do país. Além disso, há ainda espa-

ço para o realismo mágico e também para a explora-

ção do humor de algumas situações.

O homem cadente

Quando me vieram chamar, nem acreditei:

— É Zuzézinho! Está caindo do prédio.

E as gentes, em volta, se depressavam para o suce-

dido. Me juntei às correrias, a pergunta zaranzeando1:

o homem estava caindo? Aquele gerúndio era um des-

mando nas graves leis da gravidade: quem cai, já caiu.

Enquanto corria, meu coração se constringia2. Ante-

via meu velho amigo estatelado na calçada. Que suce-

dera para se suicidar, desabismado? Que tropeção der-

rubara a sua vida? Podia ser tudo: os tempos de hoje são

lixívia3, descolorindo os encantos.

Me aproximava do prédio e já me aranhava na mul-

tidão. Coisa de inacreditar: olhavam todos para cima.

Quando olhei os céus, ainda mais me perturbei: lá esta-

va, pairando como águia-real, o Zuzé Neto. O próprio

José Antunes Marques Neto, em artes de aeroanjo. Es-

tava caindo? Se sim, vinha mais lento que o planar do

planeta pelos céus.

Atirara-se quando? Já na noite anterior, mas o povo

só notara no sequente dia. Amontara-se logo a mundi-

dão e, num fósforo, se fabricaram explicações, episte-

mologias4. Que aquilo provinha de ele ter existência

limpa: lhe dava a requerida leveza. Fosse um político e,

com o peso da consciência, desfechava logo de focinho.

Outros se opunham: naquele estado de pelicano, o ci-

dadão fugia era de suas dívidas. Ninguém cobra no ar.

Houve até versão dedicadamente cristã. Um miro-

ne5, longilongo, vestido como se coubesse numa só

manga, bradejou apontando o firmamento:

Aquilo, meus senhores, é o novo Cristo. COUTO, Mia. O fi o das missangas.

São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

1. Neologismo que significa: rondando insistentemente.

2. Apertava em volta, diminuía o calibre.

3. Solução alcalina, detergente.

4. Teoria do conhecimento.

5. Observador, testemunha.

O narrador, nesse trecho, observa o amigo que,

numa situação insólita, permanece flutuando ao ten-

tar se jogar do alto de um edifício. O trecho exempli-

fica tanto a exploração do realismo mágico nos contos

do autor, como a presença do humor. O uso de neo-

logismos merece especial atenção, palavras como

depressavam e mundidão são usadas como repre-

sentação de uma oralidade específica e revelam a

forma de expressão das personagens, contribuindo

para apresentá-las ao leitor.

TEXTO PARA A QUESTÃO 1

No trecho a seguir, do romance Ensaio sobre a cegueira,

de José Saramago, um deficiente visual dá conta de co-

mo estava o mundo depois que todas as pessoas foram

acometidas da cegueira branca:

Os que andam em grupo, como nós, como quase

toda a gente, quando temos de procurar comida somos

obrigados a ir juntos, é a única maneira de não nos per-

dermos uns dos outros, e como vamos todos, como nin-

guém ficou a guardar a casa, o mais certo, supondo que

tínhamos conseguido dar com ela, é estar já ocupada

por outro grupo que também não tinha podido encon-

trar a sua casa, somos uma espécie de nora* às voltas,

ao princípio houve algumas lutas, mas não tardámos a

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perceber que nós, os cegos, por assim dizer, não temos

praticamente nada a que possamos chamar nosso, a

não ser o que levarmos no corpo, A solução estaria em

viver dentro duma loja de comidas, ao menos enquanto

elas durassem não seria preciso sair, Quem o fizesse, o

mínimo que lhe poderia acontecer era nunca mais ter

um minuto de sossego, digo o mínimo porque ouvi falar

do caso de uns que o tentaram, fecharam-se, trancaram

as portas, mas o que não puderam foi fazer desaparecer

o cheiro da comida, juntaram-se fora os que queriam

comer, e como os de dentro não abriram, pegou-se fogo

à loja, foi remédio santo, eu não vi, contaram-me, de

toda a maneira foi remédio santo, que eu saiba ninguém

mais se atreveu, [...]SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira.

São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

* Neste caso, a palavra nora designa um mecanismo composto de uma roda que faz girar a corda a que estão presos recipientes para tirar água de poços ou cisternas.

1. O trecho apresenta um diálogo em discurso direto. Con-

tudo, o narrador omite os verbos e sinais como traves-

sões ou aspas para indicar a alternância da fala entre os

interlocutores. Quais as marcas textuais que evidenciam

a troca das falas entre as personagens? A partir desta

constatação, localize o trecho onde a fala da primeira

personagem é interrompida por um comentário do in-

terlocutor.

As marcas textuais que evidenciam a troca de falas

entre as personagens é uma vírgula seguida de uma

palavra com inicial maiúscula. O comentário aposto à

fala da primeira personagem é “A solução estaria em

viver dentro duma loja de comidas, ao menos enquanto

elas durassem não seria preciso sair”.

2. A que condição os seres humanos são rebaixados após

a epidemia de cegueira branca?

Os seres humanos são rebaixados a uma condição de

animais lutando pela sobrevivência. Nessa fábula, os

valores que orientam a atual sociedade de consumo –

como o luxo e a sofisticação – são completamente irre-

levantes.

3. (Unicamp-SP) Leia a seguinte passagem de Os cus de

Judas, de António Lobo Antunes:

Deito um centímetro mentolado de guerra na es-

cova de dentes matinal, e cuspo no lavatório a espu-

ma verde-escura dos eucaliptos de Ninda1, a minha

barba é a floresta do Chalala2 a resistir ao napalm3

da gilete, um grande rumor de trópicos ensanguen-

tados cresce-me nas vísceras, que protestam.ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas.

Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

1. Localidade angolana.

2. Localidade angolana.

3. Substância usada na fabricação de bombas incendiárias.

Que recurso estilístico o narrador utiliza para aproximar

a guerra de seu cotidiano? Cite dois exemplos.

O narrador recorre a uma série de metáforas da guerra

que a associam com ações corriqueiras do cotidiano,

como o simples ato de se barbear relatado no trecho:

“um centímetro mentolado de guerra” (isto é, pasta de

dentes), “a espuma verde-escura dos eucaliptos de

Ninda”, “a minha barba é a floresta do Chalala”, “napalm

da gilete”. Tais metáforas criam a alegoria de uma guerra

que impregna o indivíduo, tanto em suas atitudes banais

como em sua própria constituição física, como mostra o

trecho: “um grande rumor de trópicos ensanguentados

cresce-me nas vísceras, que protestam”.

4. Uma das personagens de O fio das missangas, de Mia

Couto, era desprezada pelo marido. Assinale a opção em

que a passagem do texto NÃO caracteriza o estado de

submissão e passividade vivido por ela:

a) “Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao

leito, mas ele não me escutará. Não será essa a dife-

rença. Ele nunca me escutou.”

b) “Onde vivo não é na sombra. É por detrás do sol, onde

toda a luz há muito se pôs.”

c) “Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida. Já não

recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso.”

� d) “Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o

cesto da visita.”

e) “Como a pedra, que não tem espera nem é esperada,

fiquei sem idade.”

TAREFA MÍNIMA

t� Leia o texto da aula.

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 1 a 4.

TAREFA COMPLEMENTAR

Caderno de Exercícios

t� Faça os exercícios 5 a 8.

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