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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CLA – CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA - DOUTORADO O SAXOFONE DE NIVALDO ORNELAS E SEUS ARREDORES: INVESTIGAÇÃO E ANÁLISE DE CARACTERÍSTICAS MUSICAIS HÍBRIDAS EM SUA OBRA E INTERPRETAÇÃO BERNARDO VESCOVI FABRIS RIO DE JANEIRO, 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CLA – CENTRO DE LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA - DOUTORADO

O SAXOFONE DE NIVALDO ORNELAS E SEUS ARREDORES: INVESTIGAÇÃO E ANÁLISE DE CARACTERÍSTICAS MUSICAIS

HÍBRIDAS EM SUA OBRA E INTERPRETAÇÃO

BERNARDO VESCOVI FABRIS

RIO DE JANEIRO, 2010

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O SAXOFONE DE NIVALDO ORNELAS E SEUS ARREDORES: INVESTIGAÇÃO E ANÁLISE DE CARACTERÍSTICAS MUSICAIS

HÍBRIDAS EM SUA OBRA E INTERPRETAÇÃO

por

BERNARDO VESCOVI FABRIS

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor, sob orientação do Professor Dr. Luiz Otávio Rendeiro Corrêa Braga.

RIO DE JANEIRO, 2010

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Catalogado na fonte por Isabel Grau Autorizo a cópia da minha tese “O Saxofone de Nivaldo Ornelas e Seus Arredores: Investigação e Análise de Características Musicais Híbridas em Sua Obra e Interpretação”, para fins didáticos.

..............................................................................................

Fabris, Bernardo Vescovi. F797 O saxofone de Nivaldo Ornelas e seus arredores : investigação e análise de características musicais híbridas em sua obra e inter- pretação / Bernardo Vescovi Fabris, 2010. 297f. + 2CD-ROM Orientador: Luiz Otávio Rendeiro Corrêa Braga. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

1. Ornelas, Nivaldo, 1941-. 2. Música popular – Brasil – Histó- ria e critica. 3. Música instrumental – Brasil. 4. Saxofone. 5. Hidri-

dismo (Arte). 5. Música – Análise, apreciação. 6. Música - Inter- pretação (Fraseado, dinâmica, etc.). 7. Improvisão (Música). I. Braga, Luiz Otávio Rendeiro Corrêa. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Letras e Artes. Curso de Doutorado em Música. III. Título.

CDD – 780.420981

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O SAXOFONE DE NIVALDO ORNELAS E SEUS ARREDORES: INVESTIGAÇÃO E ANÁLISE DE CARACTERÍSTICAS MUSICAIS

HÍBRIDAS EM SUA OBRA E INTERPRETAÇÃO

Dedico este trabalho à minha esposa e meus filhos.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha esposa, Cristiane de Almeida Peretti, por todo apoio,

paciência, companheirismo e amor devotados. A meus filhos Vicente Peretti Fabris e Manuela

Peretti Fabris, por virem ao mundo no momento em que eu mais precisei de esperança e

alegria, e por reafirmarem esses sentimentos constantemente em minha vida. A toda minha

família, meu pai Valério Antonio Fabris, minha mãe, Tânia Maria Vescovi, minha irmã, Paula

Vescovi Fabris, à Margarida de Almeida; à minha família carioca, meus tios Antonio Carlos

Campos e Sônia Isabel Fabris Campos; meus primos Lígia e seu marido Guilherme; Vítor;

Antonio e João Pedro; à Gracinha e logicamente, ao Togo, por sempre me receberem com

profundo entusiasmo e carinho em sua casa, me adotando e tendo vivido cada momento destes

últimos anos de maneira tão intensa.

A Nivaldo Ornelas, por sua imensa generosidade, disponibilidade e talento,

possibilitando que esta tese se tornasse um sonho viável. Ao meu orientador, Luiz Otávio

Braga, por sua contribuição intelectual, amizade e confiança; à Lúcia Barrenechea, a quem

recebi as primeiras orientações e a quem, sem dúvida alguma, devo boa parte dos avanços aqui

obtidos; bem como aos demais membros da banca Antonio Rafael Carvalho dos Santos;

Marcos Vinício Nogueira e Nadge Naira Álvares Breide pela imensa competência e

comentários preciosos para o melhoramento deste estudo. Agradeço também aos professores

do PPGM com os quais pude conviver, Laura Rónai; Naílson de Almeida Simões; Elizaberth

Travassos; Carole Gubernikoff; Sílvio Augusto Mehry; Luiz Paulo Sampaio, Martha Ulhôa e

Maurício Freire (UFMG). Aos funcionários da secretaria do PPGM, em nome especialmente

do sr. Aristides, bem como a Gilson pela arregimentação dos equipamentos necessários para a

realização do recital e defesa. Aos colegas doutorandos, pelas ricas conversas e os prolíficos

almoços no Círculo Militar. Aos colegas do Departamento de Música da Universidade Federal

de Ouro Preto, pela compreensão e apoio para que eu pudesse encerrar minha pesquisa.

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Agradeço ainda aos músicos que participaram e contribuíram com extrema

generosidade e talento para a realização do recital de defesa, são eles Alexandre Souza;

Augusto Mattoso, Vítor Gonçalves e Di Stéffano. A Fábio Adour da Camara pelo auxílio nas

transcrições para violão em Ninfas e pela recomendadíssima bibliografia. A Néstor Lombida

Hunt, por seus conselhos musicais e de vida. A Afonso Cláudio de Figueiredo e Marco Túlio

de Paula Pinto pelas indicações de músicos e ao acesso a partituras do autor, fundamentais

para o encaminhamento dessa empreitada. A Dílson Florêncio, pelas sempre prestativas e

lúcidas colocações. A todos os companheiros de música com os quais nos últimos quinze anos

tenho convivido e exercido o ofício musical. A todos, meus sinceros agradecimentos.

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Caminho por uma rua Que passa em muitos países

Se não me vêem, eu vejo E saúdo velhos amigos

Trecho do poema Canção Amiga de Carlos Drummond de Andrade

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FABRIS, Bernardo Vescovi; O Saxofone de Nivaldo Ornelas e Seus Arredores: investigação e análise de características musicais híbridas em sua obra e interpretação. 2010. (Doutorado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

RESUMO

Este estudo é dedicado à investigação e análise de características musicais híbridas presentes em composições e solos improvisados realizados pelo saxofonista Nivaldo Ornelas, identificadas através do procedimento de transcrição musical. São discutidos aspectos da formação musical do saxofonista e das referências cruzadas representadas pelos universos rural, suburbano e urbano da cidade de Belo Horizonte e arredores, avaliando suas implicações nos processos criativo e interpretativo do autor sob a luz da teoria da hibridação cultural proposta por Nestor Garcia Canclini. São ainda ponderadas as estratégias utilizadas pelo intéprete com fins para o desenvolvimento técnico-musical no saxofone, demonstrando sua contribuição tanto para a modalidade música instrumental quanto para a consolidação do saxofone moderno brasileiro.

Plavras-chave: Nivaldo Ornelas -Hibridação -Música Instrumental - Saxofone

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FABRIS, Bernardo Vescovi; The Saxophone of Nivaldo Ornelas and its Surroundings: imvestigation and analysis of hybrid musical characteristics in his work and performance. 2010. PhD Thesis (Doutorado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

ABSTRACT

This study aims to investigate and analyse hybrid musical features present in compositions and improvised solos performed by the Brazilian saxophonist Nivaldo Ornelas, identified through the musical transcription procedure. This text discusses Nivaldo Ornelas’ musical origins and the crossovered musical references of his work represented by the rural, suburban and urban universes of the city of Belo Horizonte and its surroundings, evaluating its consequences trough both creative and performing processes observed under the theory of cultural hybridization proposed by Néstor Garcia Canclini. This study also argues the strategies used by the interpreter for developing technical musical skills on the saxophone, demonstrating his contribution both for the Brazilian jazz musical modality as for the consolidation of the Brazilian modern saxophone.

Key-words: Nivaldo Ornelas – Hybridization – Brazilian Jazz - Saxophone

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SUMÁRIO

Página LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS.......................................................................................xii

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................01

CAPÍTULO I – CARREIRA E DISCOGRAFIA......................................................................12 1.1Início de Carreira 1.2A Dicotomia Auctor / Lector e o Desenvolvimento da Carreira de Autor 1.3 Das Trilogias

1.3.1 Portal dos Anjos (1978) 1.3.2 À Tarde (1982) 1.3.3 Colheita do Trigo (1990) 1.3.4 Arredores (1998) 1.3.5 Fogo e Ouro (2009)

CAPÍTULO II – ANÁLISES.....................................................................................................42 2.1 Nos Arredores da Cidade: A Nova Lima Inglesa 2.2 Nova Suíssa, Sábado à Tarde: A Canção Sem Palavras 2.3 O Rock Novo de Nivaldo Ornelas 2.4 Ninfas: O Encontro dos Opostos

CAPÍTULO III - ASPECTOS TÉCNICO-INTERPRETATIVOS EM NIVALDO ORNELAS..............................................................................................................................111

3.1 O Híbrido na Prática do Saxofone: Questões Técnicas e de Idiomatismo 3.1.1 As Escolas de Saxofone e Aspectos Estilísticos de Sonoridade

3.1.1.1 A Sonoridade do Saxofone na Música Brasileira 3.1.2 Da Articulação no Saxofone em Ornelas

3.2 Escolhas Rítmico-Melódicas em Improvisos de Nivaldo Ornelas

CONSIDERAÇÕESFINAIS....................................................................................................169

REFERÊNCIAS.......................................................................................................................172

ANEXOS.................................................................................................................................177

ANEXO 1 (Transcrições)

1. Grade de Nova Lima Inglesa

2. Grade de Rock Novo

3. Grade de Nova Suíssa, Sábado à Tarde

4. Grade de Ninfas

5. Leadsheet de Nova Lima Inglesa

6. Leadsheet de Rock Novo

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7. Leadsheet de Nova Suíssa, Sábado à Tarde

8. Leadsheet de Ninfas

9. Solo em Nova Lima Inglesa

10. Solo em Rock Novo

11. Solo em Ninfas

12. Solo em Bons Amigos

13. Solo em Cuerpo y Alma

14. Solo em Forró em Santo André

15. Solo em From the Lonely Afternoons

16. Solo em Ponta de Areia

17. Solo em Vôo dos Urubus

ANEXO 2 – CD com transcrições de entrevistas (Arquivo PDF)

ANEXO 3-CD de exemplos musicais

Faixa 1 – Nova Lima Inglesa

Faixa 2 – Nova Suissa, Sábado à Tarde

Faixa 3 – Rock Novo

Faixa 4 – Ninfas

Faixa 5 – Bons Amigos

Faixa 6 – Cuerpo y Alma

Faixa 7 – Forró em Santo André

Faixa 8 – From the Lonely Afternoons

Faixa 9 – Ponta de Areia

Faixa 10 – Vôo dos Urubus

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LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

Pg. Exemplo musical 1:. Início de Fé Cega, Faca Amolada, partes de voz e saxofone soprano realizado por Nivaldo Ornelas.

20

Exemplo musical 2:. c. 1- 4, Primeiro membro de frase do tema principal da seção A

54

Exemplo musical 3:.c. 5-9, Segundo membro de frase da seção A

54

Exemplo musical 4:. Melodia de Calix Bento transcrita a partir da versão presente no disco Geraes de Milton Nascimento, 1976.

55

Exemplo musical 5:. Melodia de Acorda Nego do Congado do Jatobá

56

Exemplo musical 6:. c. 14-17, Seção B de Nova Lima Inglesa com o uso da técnica de marcha harmônica

56

Exemplo musical 7: Simulação de marcha harmônica seguindo o modelo apresentado em Nova Lima Inglesa

57

Exemplo musical 8: . Mesmo trecho citado anteriormente, mas agora com a indicação da harmonia do trecho.

57

Exemplo musical 9: c, 17-21, Seção B de Nova Lima Inglesa

58

Exemplo musical 10: Disposição dos acordes de G/B e A7/C# utilizados em Nova Lima Inglesa

59

Exemplo musical 11: Disposição do acorde de G/B no braço do violão

60

Exemplo musical 12: Disposição do acorde de A7/C# no braço do violão

60

Exemplo musical 13: Disposição das notas nas afinações para viola de 10 cordas Cebolão e Rio Abaixo, respectivamente.

61

Exemplo musical 14. Trecho de acompanhamento de chocalho e caixa em Folia do Sul de Minas

63

Exemplo musical 15. c. 26-27, Figuras de colcheias pontuadas seguidas de semicolcheias no tema de Nova Lima Inglesa

64

Exemplo musical 16. c. 28 -30, síncopes e figuras de colcheia pontuada e semicolcheia em Nova Lima Inglesa

64

Exemplo musical 17. c. 2- 13, Seção A do tema: Exposição.

64

Exemplo musical 18. c. 24-35, Seção A' do tema: Re-exposição.

65

Exemplo musical 19: c. 66-68, Trecho da terceira Ponte realizada pela flauta e 65

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instrumentos harmônicos e que precede a seção de chorus em Nova Lima Inglesa. Exemplo musical 20. Acompanhamento de viola realizado no mesmo trecho exposto no exemplo 19 durante ponte em Nova Lima Inglesa

65

Exemplo musical 21: Trecho da Toada de Entrada da Folia do Mestre Célio de Rio Pomba, recolhida por Marcelo de Castro Lopes, linhas de cavaquinho e viola.

66

Exemplo musical 22: Levada de bateria realizada por Robertinho Silva em ponte de Nova Lima Inglesa, c 66-67.

66

Exemplo musical 23: Seção de caixas em Quero Agradecer Sua Mesa Santa – Marcha Dobrada – Recolhida por Glaura Lucas.

66

Exemplo musical 24: Livre adaptação do toque de caixas em Quero Agradecer Sua Mesa Santa para compasso ternário simples

67

Exemplo musical 25: c.21-24: Primeira ponte entre a exposição e reexposição do tema de Nova Lima Inglesa.

67

Exemplo musical 26: c.45-50: Segunda ponte presente em Nova Lima Inglesa.

68

Exemplo musical 27: c. 45-47: Desenvolvimento da ponte.

68

Exemplo musical 28: c. 47-50: Repetição de motivo da primeira ponte.

68

Exemplo musical 29: Melodia de Amo-te Muito de João Chaves, possivelmente composta durante os anos 1950.

73

Exemplo musical 30: A Ti Flor do Céu, de Teodomiro Pereira e Modesto Ferreira, outra composição do cancioneiro das Serestas em Minas Gerais da primeira metade do século XX.

74

Exemplo musical 31: O Peixe Vivo, do folclore mineiro e famosa em todo Brasil por ter sido uma das canções favoritas de JK.

74

Exemplo musical 32. c. 1-4 de Nova Suissa Sábado à Tarde, partes de saxofone tenor e piano, com realização o baixo na mão esquerda.

75

Exemplo Musical 33: Primeiros 4 compassos de Nova Suissa, Sábado à Tarde apresentando cifragem do autor.

76

Exemplo musical 34: c. 26-29 Exposição do tema da Seção B realizada pelo coro em Nova Suissa Sábado à Tarde

77

Exemplo musical 35: c.35-39 Re-Exposição do tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde realizado ao Saxofone Tenor.

77

Exemplo musical 36: Linhas de Piano e Baixo durante tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde

78

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Exemplo musical 37: Exemplo de acompanhamento da modinha para o violão de 7 cordas segundo Luiz Otávio Braga.

78

Exemplo musical 38: Ostinato reduzido da modinha, resultando na polca brasileira.

79

Exemplo musical 39: Através da ligadura da semínima com a primeira colcheia do segundo tempo obtêm-se o ostinato tipo de habanera.

79

Exemplo musical 40: Baixo arpejado utilizado na Habanera.

79

Exemplo musical 41: Trecho de Tú, Habanera composta por Eduardo Sánchez de Fuentes.

80

Exemplo musical 42: c.27-30: linha de baixo de Nova Suissa Sábado à tarde, os compassos 29 e 30 apresentam um desenho próximo ao do tradição das ditas serestas.

80

Exemplo musical 43: Realização do baixo de Nova Suissa, Sábado À Tarde com variação da linha de baixo próxima à realização sugerida por Luiz Otávio Braga no violão de 7 cordas.

81

Exemplo musical 44: c.35-39, Tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde.

82

Exemplo musical 45: c.39 – 43 Variação do Tema da Seção B de Nova Suíssa Sábado à Tarde.

82

Exemplo musical 46: c. 45-53. Primeiros 9 compassos da terceira variação estendida da Seção B, desta vez com variações melódica e harmônica.

82

Exemplo musical 47:.c.32-35, Dobra da linha de Vozes e Piano em Ponte de Nova Suissa, Sábado À Tarde.

84

Exemplo musical 48: c. 9-16: exposição do tema de Rock Novo, a melodia é toda baseada nas notas fá sustenido e lá, respectivamente terça e quinta do acorde de D.

91

Exemplo musical 49: c. 33 – 36: notas Si Bemol, décimas terceiras menores do acorde de D7(b13)

91

Exemplo musical 50: c.25-28, Uso do modo Dórico em Rock Novo. .

92

Exemplo musical 51: Ostinato Rítmico Simplificado realizado por Alex Acuña em Birdland: vale ressaltar que a linha de bumbo (voz inferior) é realizada com bastante liberdade rítmica que neste exemplo é apenas ilustrado.

94

Exemplo musical 52: Ostinato realizado pelo baterista Rubinho na seção A de Rock Novo.

94

Exemplo musical 53: Ostinato realizado pelo baterista Rubinho na seção B de Rock Novo.

94

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xv

Exemplo musical 54: Riff de saxofones alto e tenor realizados por Julian “Cannonball” Adderley e John Coltrane no disco de Miles Davis Kimd of Blue durante a música All Blues .

95

Exemplo musical 55: Riff de Rock Novo presente no disco Colheita do Trigo na parte de teclado realizada por Pierre Luc.

95

Exemplo musical 56: c.1-4 do tema da seção A1 de Ninfas.

101

Exemplo musical 57: c. 5-8: Primeira Variação do tema da seção A de Ninfas transposto meio tom acima.

101

Exemplo musical 58: c. 9-14: Primeiros seis compassos da segunda variação do tema da seção A de Ninfas, desta vez com variação temática a partir do compasso 10.

101

Exemplo musical 59: Uso do diminuto auxiliar em Super-Homem a Canção de Gilberto Gil.

102

Exemplo musical 60: Exemplo dado ao diminuto auxiliar por Chediak.

103

Exemplo musical 61: Exemplo de diminuto auxiliar com sugestão de correção

103

Exemplo musical 62: Escala de Mi Bemol Menor Harmônica com o sétimo grau aumentado, nota ré natural.

104

Exemplo musical 63: Trecho de Eu Te Amo de Antonio Carlos Jobim. Note-se o uso melódico de sétimas maiores sobre acordes maiores com sétima menor.

105

Exemplo musical 64: c.47 – 48 de Ninfas, primeiro motivo da seção B tocado por Nivaldo Ornelas no Saxofone Tenor.

107

Exemplo musical 65: Anacruse do tema de Harlem Nocturne de Earle Hagen.

107

Exemplo musical 66: Primeiros 5 compassos de In A Sentimental Mood de Duke Ellington.

108

Exemplo musical 67: Trecho inicial de Uma Opinião, composição de Nivaldo Ornelas. Note-se a forte presença de pitch bends, glissandos e vibratos no que poderia ser uma referência a características interpretativas alusivas ao estilo de Johnny Hodges.

118

Exemplo musical 68: c. 73 -78, Trecho de solo de Nova Lima Inglesa no qual o intérprete utiliza articulações de língua e notas ligadas.

132

Exemplo musical 69: c. 82-86, Outro fragmento do solo de Ornelas em Nova Lima Inglesa: Uso de articulação de língua em diferentes combinações rítmicas.

132

Exemplo musical 70: Trecho de solo de Ornelas no saxofone tenor em From The 132

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Lonely Afternoons presente no disco Diamond Land (1986). Exemplo musical 71: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas no saxofone soprano realizado na música Bons Amigos.

134

Exemplo musical 72: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas na música From the Lonely Afternoons no disco Diamond Land de Toninho Horta.

134

Exemplo musical 73: Uso de ghost notes em trecho de solo de John Coltrane na música Moment’s Notice, do disco Blue Train de 1957.

135

Exemplo musical 74: c. 85 – 86 de Ninfas, note-se uso de notas acentuadas, tenutos e staccato.

136

Exemplo musical 75: Uso de vibratos por Ornelas na música Nova Lima Inglesa, gravação de 1990.

137

Exemplo musical 76: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas no saxofone tenor durante a música Forró em Santo André, presente no disco Montreaux Jazz Festival e Hermeto Pascoal: note-se o uso de notas longas sem a aplicação de vibtratos .

137

Exemplo musical 77: Uso de subtone na gravação de Bons Amogos, de 1980.

138

Exemplo musical 78: Uso de subtone, notas fá do c. 47 e c.49, em Ninfas, gravação realizada em 1978.

138

Exemplo musical 79: Outro uso de subtone na música Ninfas. Nota mi c.53.

138

Exemplo musical 80: Identificação de pitch bends na gravação de Ninfas.

139

Exemplo musical 81: Uso de apojaturas ascendentes durante solo de Nivaldo Ornelas em Forró em Santo André .

139

Exemplo musical 82: Realização de mordente ascendente e de tempo irregular em Bons Amigos.

140

Exemplo musical 83: Ornamentos em Nova Suissa Sábado à Tarde gravada em 1982. Da esquerda para a direita; o primeiro se refere a um grupeto escrito, por apresentar maior regularidade rítmica, o segundo se trata de um mordente ascendente e o último uma apojatura ascendente.

140

Exemplo musical 84: Trecho da música Baião de Luiz Gonzaga e Hunberto Teixeira.

142

Exemplo musical 85: Uso de padrão melódico arpejado no modo mixolídioem improviso de Nivaldo Ornelas durante a música Rock Novo.

142

Exemplo musical 86: Melodia do tema de Rock Novo, seção A.

143

Exemplo musical 87: c. 115-118: trecho do solo de Ornelas sobre o acorde de F

143

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Exemplo musical 88: c. 115 – 116: primeiro membro de frase e c. 117-118: segundo membro de frase

143

Exemplo musical 89: c 21 – 24: trecho da melodia de Rock Novo, seção B’.

143

Exemplo musical 90.c. 119 – 122: desenvolvimento melódico do trecho sobre acorde de Fm.

143

Exemplo musical 91: a) c.119: primeiro membro de frase.

143

__________________b) c. 120: segundo membro de frase.

144

__________________c) c. 121: terceiro membro de frase.

144

Exemplo musical 92: c. 121 – 124: desenvolvimento melódico em duas frases de dois compassos.

144

Exemplo musical 93: a) c. 121 – 122: frase pergunta,.

144

__________________b) c. 123-124: frase resposta

144

Exemplo musical 94: a) . 115 – 116: primeira variação do tema.

144

__________________b) c. 119: variação do “novo tema” com redução rítmica da melodia e modulação

145

__________________c) c. 123-124: desenvolvimento da variação melódica

145

Exemplo musical 95: Introdução de saxofone soprano da música Cuerpo y Alma.

145

Exermplo musical 96: c. 1-2: primeiro membro de frase da introdução de Cuerpo y Alma.

146

Exemplo musical 97: c. 38-40: desenvolvimento melódico a partir do motivo da introdução durante o chorus realizado no saxofone soprano.

146

Exemplo musical 98: c. 3-5: segundo membro de frase da introdução de Cuerpo y Alma.

146

Exemplo musical 99: Desenvolvimento melódico do segundo membro de frase da introdução durante solo de Ornelas.

146

Exemplo musical 100: Intervalos de quarta entre as notas Mi e Si no primeiro membro de frase do solo de Cuerpo y Alma.

147

Exemplo musical 101: Intervalo de quartas entre as notas sol e ré com desenvolvimento melódico no segundo membro de frase do solo de Cuerpo y Alma.

147

Exemplo musical 102: Trecho arpejado no solo de Rock Novo (1990). 147

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xviii

Exemplo musical 103: Trecho arpejado no solo de Cuerpo y Alma (1997).

147

Exemplo musical 104: 2º trecho com arpejos no desfecho do solo de Cuerpo y Alma.

147

Exemplo musical 105: Uso de padrão rítmico-melódico em improviso de Nivaldo Ornelas na música From the Lonely Afternoons.

148

Exemplo musical 106: Melodia cifrada de Ponta de Areia de Milton Nascimento

148

Exemplo musical 107: Identificação de notas repetidas da melodia de Ponta de Areia (sistema superior) no solo de saxofone soprano (sistema inferior) durante o 1º chorus do improviso de Nivaldo Ornelas.

148

Exemplo musical 108: Nota lá natural na escala diatônica de Si bemol maior durante solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia.

149

Exemplo musical 109: Nota lá natural sobre o acorde de Bb9, sétima maior do acorde em passagem do solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia.

149

Exemplo musical 110: Última frase do solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia com o uso de outras notas que não da escala pentatônica de Si bemol.

149

Exemplo musical 111: Primeira frase de Bons Amigos de Toninho Horta e Ronaldo Bastos

150

Exemplo musical 112: c. 1-4 do improviso de Nivaldo Ornelas em Bons Amigos, note-se o uso de notas do tema no solo além da preservação do contorno melódico.

150

Exemplo musical 113: Frase de Nivaldo Ornelas em II-V-I presente no solo de Bons Amigos

151

Exemplo musical 114: Frase sobre movimento cadencial de II-V-I durante solo de Ornelas em Bons Amigos.

152

Exemplo musical 115: Simulação de exercício baseado no método Imoprovisation for Saxophone a partir de padrão melódico de Nivaldo Ornelas.

153

Exemplo musical 116: Primeiro chorus do improviso de John Coltrane para Mr. Day, gravação de 1960: Note-se que o músico começa a improvisar antes mesmo do fim do chorus do tema.

156

Exemplo musical 117: Primeiro chorus do improviso de Nivaldo Ornelas para Mr. Day, gravação realizada ao vivo em 2010.

156

Exemplo musical 118: Ghost Notes em terças menores ascendentes na realização de John Coltrane.

157

Exemplo musical 119: Uso de ghost notes em terças menores ascendentes durante solo de Nivaldo Ornelas

157

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xix

Exemplo musical 120: Escala de fá sustenido mixolídio ascendente iniciada na nota lá sustenido em solo de John Coltrane.

157

Exemplo musical 121: Escala de fá sustenido mixolídio descendente iniciada na nota dó sustenido em solo de Nivaldo Ornelas.

157

Exemplo musical 122: Sextas (décimas terceiras) menores em solo de John Coltrane.

157

Exemplo musical 123: c. 11, sexta menor, nota ré natural, sobre o acorde de F#7 durante improviso de Ornelas.

157

Exemplo musical 124: Padrão rítmico melódico utilizado por Ornelas no início de seu solo.

158

Exemplo musical 125: Outro padrão aplicado no solo de Ornelas na realização de Mr. Day.

158

Exemplo musical 126: Seção A da música Vôo dos Urubus de Toninho Horta

160

Exemplo musical 127: Seção inicial do improviso de Nivaldo Ornelas sobre Vôo dos Urubus, note-se o uso de notas longas e a preocupação na construção melódica como numa variação.

160

Exemplo musical 128: Frase inicial do improviso de Nivaldo Ornelas em Forró em Santo André.

161

Exemplo Musical 129: Desenvolvimento melódico da primeira frase apresentada em solo sobre a música Forró em Santo André.

162

Exemplo musical 130: Desenvolvimento rítmico-melódico em quiálteras durante solo de Forró em Santo André.

162

Exemplo musical 131: c. 34-35: Nova organização melódica com ênfase na nota dó e uma organização de pergunta e resposta

162

Exemplo musical 132: c. 38-46, frase com aplicação de novas estruturas melódicas.

163

Exemplo musical 133: Uso de overtones durante solo de Ornleas em Forró em Santo André.

165

Exemplo musical 134: c. 114 uso de recurso de aleatoriedade rítmico-melódica através de superagudos do saxofone tenor durante solo de Forró em Santo André.

168

Exemplo musical 135: Aplicação de recurso de false fingerings por Nivaldo Ornelas.

168

Page 21: 301LISE DE CARACT)

INTRODUÇÃO

O universo musical brasileiro é de certa forma, marcado pela questão da identidade e

constituído por um quadro diversificado de referências musicais. Essa característica constitutiva da

música brasileira, onde existe sincronicamente, a busca por uma identidade e a fragmentação

cultural do país, paradoxalmente negligenciou durante algum tempo determinadas manifestações

musicais urbanas de características híbridas e que contemplassem referências consideradas

estrangeiras, principalmente norte-americanas, supostamente não relacionadas à tradição da música

brasileira.

No caso dos instrumentistas, alguns dos instrumentos por eles utilizados em formações com

tais características “estrangeiras”; como a bateria, a guitarra elétrica, o baixo elétrico, o piano

elétrico e sintetizadores, além do saxofone, ficaram de certo modo estigmatizados por não serem

considerados parte desta tradição.

Em relação ao saxofone, este instrumento antes de ser associado a gêneros musicais

nacionais é imediatamente referido ao universo do jazz, apesar de haver no Brasil uma tradição,

principalmente de chorões, iniciado por Viriato Figueira e Anacleto de Medeiros, passando por

Ratinho, Luiz Americano, Paschoal de Barros, Sandoval Dias, K-Ximbinho, Zé Bodega, Paulo

Moura e o próprio Pixinguinha, que imprimiram um fazer musical brasileiro ao instrumento. Isto

sem falar nas orquestras de Frevo, indissociáveis da presença dos saxofones, ou das bandas civis e

militares que no Brasil tem o saxofone incorporado às suas formações há mais de um século. Há

ainda uma tradição que se refere à música de concerto e que não pode ser negada, onde o

instrumento em questão é privilegiado por compositores como Villa-Lobos, Radamés Gnattali,

Ronaldo Miranda, Marlos Nobre, Almeida Prado, dentre outros, tanto em formações camerísticas

quanto como instrumento solista em peças orquestrais. Estes universos musicais certamente

contribuíram para a consolidação do instrumento frente a diversas faces da produção musical

nacional.

O entendimento destes processos tem sido objeto de investigação dentro da academia, como

Page 22: 301LISE DE CARACT)

2

exposto nos recentes trabalhos realizados; O Saxofone no Choro, de Rafael Henrique Soares

Velloso, onde o autor realiza importante trabalho de investigação sobre a história do saxofone no

Brasil, especialmente a partir de músicos de choro, como citados anteriormente, além de tratar da

difusão do instrumento em novas formações instrumentais surgidas a partir dos anos 1920; outro

trabalho é Desculpe, Foi Engano: o saxofone de Aurino Ferreira num choro de Guerra-Peixe, de

Chico Sá, onde o autor além de desenvolver uma profunda pesquisa sobre a história do saxofone e

seus usos frente a escolas do instrumento, estabelece uma relação destas com a maneira de se tocar

o instrumento no Brasil, trazendo a tona dois nomes de vulto para o desenvolvimento do

instrumento no país, sendo eles o do saxofonista Aurino Ferreira e do compositor e arranjador

Guerra-Peixe. Em Tarde de Chuva, Dissertação de Mestrado de Daniela Spielmann, a autora trata

da música do saxofonista Paulo Moura; além dos trabalhos acerca do saxofonista Victor Assis

Brasil, Improvisação em Victor Assis Brasil, de Fernando Trocado Maurity e Pro Zeca de Leonardo

Barreto Linhares, sobre características de hibridação entre o gênero baião e o estilo de jazz bebop

na música Pro Zeca do mesmo autor. Vale também ser ressaltada a Tese, Improvisação no Saxofone:

a prática da improvisação melódica na música instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados

do século XX, de Afonso Claudio Segundo de Figueiredo, trabalho no qual o autor estabelece uma

genealogia das práticas de improvisação dentro do gênero por ele denominado música instrumental,

ou brazilian jazz, na cidade do Rio de Janeiro, trazendo importantes depoimentos de músicos,

especialmente saxofonistas, envolvidos com essa prática. O trabalho também revela importantes

aspectos técnicos e estilísticos aplicados ao saxofone. Já no campo da música de concerto podem

ser citados os trabalhos O Saxofone na Música de Radamés Gnattali de Marco Túlio de Paula Pinto

e O Saxofone na Música de Câmara de Heitor Villa-Lobos, Dissertação de Carlos Alberto Marques

Soares.

Mesmo em um cenário de suposta horizontalidade estética, ou seja, quando este fazer

musical brasileiro está relacionado aos saxofonistas do choro, por exemplo, há entre eles enormes

diferenças estilísticas, que variam conforme as referências particulares de cada fazer, mas que ao

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3

mesmo tempo conservam entre si aspectos de similaridade, entendidos aqui como aspectos

idiomáticos do saxofone frente a um repertório de música brasileira. Estes aspectos idiomáticos são

identificados por Thomas Cardoso, utilizando citação do Dicionário Harvard de Música como:

Idiomático. Sobre uma peça musical, explorando as potencialidades particulares de um instrumento ou voz para o qual é intencionado. Essas potencialidades podem incluir timbres, registros, e meios de articulação assim como combinação de alturas que são mais facilmente produzidas em um instrumento do que em outro.(...) O surgimento do virtuoso (...) no século XIX é associado com uma escrita crescentemente idiomática,inclusive em músicas que não são difíceis tecnicamente. (Cardoso, 2006, p. 12)

Ainda em citação a Cardoso em seu trabalho relativo à obra do violonista Guinga, este

afirma:

Este dicionário define idiomatismo como o uso das potencialidades próprias do instrumento, colocando-o como sua principal característica. Podemos igualmente reparar como a idéia de idiomatismo, segundo esta definição e em seu uso tradicional, refere-se a uma escrita idiomática para um instrumento (como vemos nas últimas palavras da citação). Ora, sabemos que Guinga não escreve suas músicas. Conseqüentemente, não podemos falar em uma escrita idiomática no caso deste compositor. Estamos falando, no entanto, de uma construção idiomática de suas peças: apesar de não se tratar de uma técnica de escrita, vemos em Guinga o uso composicional do violão no ato de criação, quando explora ao máximo as potencialidades do instrumento. É neste sentido que usaremos este termo ao longo deste trabalho. (Cardoso, 2006, p.12)

Ressaltando-se o uso e a distinção entre as expressões escrita idiomática e construção

idiomática, estas duas definições identificadas pelo autor também podem ser relacionadas às

questões de composição do saxofonista Nivaldo Ornelas já que este não compõe suas músicas

diretamente no saxofone. Para tanto, Nivaldo as realiza com o auxílio de um instrumento

harmônico, normalmente o violão ou o piano, sendo que boa parte de suas composições podem ser

identificadas como melodias acompanhadas, no estilo das canções, e que tem no saxofone um

veículo para a realização dessas melodias.

Portanto, identificar o idiomatismo do saxofone analisando apenas suas composições torna-

se um trabalho pouco elucidativo, haja vista que não há uma escrita prévia para o instrumento

durante o processo composicional. Assim sendo, a questão idiomática do instrumento pode ser mais

bem observada analisando solos improvisados realizados pelo músico, identificados aqui com

aquilo que Cardoso chama de construção idiomática. A construção desses improvisos e as decisões

técnico-interpretativas ali presentes são sugestionadas pelas próprias características do instrumento,

inclinações e limitações provocadas por sua constituição física, morfológica, tais como digitações

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4

(características de mecanismo), extensão, timbre, natureza das articulações e recursos dramáticos

(vibratos, pitch bends, glissandos e ornamentações).

Outros indícios a serem observados na realização dos solos do músico em questão estão

ligados as suas escolhas rítmico-melódicas e seus aspectos de similitude ou distinção com

características de outros saxofonistas, músicos e correntes estéticas de seu circuito de referências,

sejam do jazz, da música brasileira ou de outras práticas musicais.

Iniciamos a proposição do idiomatismo do saxofone na música brasileira creditando suas

características aos conflitos gerados por essas referências fragmentadas, entre o nacional, o regional

e o estrangeiro, ou do urbano e do rural ou ainda entre o antigo e o contemporâneo (ou moderno).

Dentro destes dialogismos1, surge o híbrido como idioma corrente. A teoria de Hibridação Cultural

que utilizamos durante o texto é extraída do livro Culturas Híbridas: estratégias para se entrar e

sair da modernidade de Néstor García Canclini, onde o autor se refere a ela da seguinte maneira:

(...) “entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que

existam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (Canclini,

2001, p. XIX): Onde o autor ainda adverte: “Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas

foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras”.

Essas estruturas discretas podem ser relacionadas, em música popular, a distintas práticas de

performance aplicadas durante a realização de determinado gênero ou estilo musical. A transposição

dessas práticas entre diferentes gêneros musicais pode ocorrer em diversos níveis, podendo ser

identificada quando o intérprete infere determinada realização não usual àquela prática musical.

Como exemplos, podem ser citadas as performances dos saxofonistas Stan Getz e Canonball

Adderley quando estes tocam música brasileira com músicos brasileiros de maneira jazzística; ou,

no uso de materiais musicais constitutivos das próprias composições e arranjos, como tratamentos

harmônicos, instrumentação, linhas de baixo, forma, dentre outros.

1 O uso do termo dialogismo é referenciado dentro do contexto de intertextualidade de Mikhail Bakhtin, apud

BRAGA (2002, p 07): “O dialogismo cultural de Bakhtin, traduz-se na idéia de intertextualidade, e nesse sentido, urge atentar para todas as séries que entram num texto, seja esse texto verbal ou não verbal, erudito ou popular. As séries: a fala cotidiana, à cultura popular, à tradição literária e artística, etc. (...). Na perspectiva bakhtiniana, de que lançamos mão, o dialogismo opera em qualquer contexto cultural.”

Page 25: 301LISE DE CARACT)

5

Em meio a esses diversos gêneros e estilos musicais hibridados, ou seja, que sofrem ou

sofreram essa série diversa de interferências em suas estruturas discretas, a identificação musical de

Nivaldo Ornelas está relacionada a uma modalidade musical conhecida em seu meio de origem

como música instrumental ou jazz brasileiro, que começou a ser desenvolvido a partir do início da

década de 1960 no Brasil, gerado através da disseminação da bossa nova e do jazz instrumental,

identificado por Acácio Piedade (2003) como: “a música instrumental exibe uma configuração

estável como gênero da música popular brasileira, embora seja parte do jazz global principalmente

pelo espírito de liberdade de criação e improvisação” (apud Bastos, 2006, p.2).

Discordando do termo gênero musical utilizado pelo autor, optamos pelo uso do termo

modalidade, por acreditar que música instrumental se trata de uma maneira de se fazer música

popular e não de um gênero constituído, ou seja, por estarem contidos dentro desta modalidade

gêneros diversos de música popular, tais como o samba, o baião, o choro, o jazz ou mesmo o rock.

Destacamos como principal aspecto de distinção a não presença de cantores em suas

formações, apesar de poder haver o uso de voz em música instrumental, ou mesmo se houver letra

nas composições o foco de sua realização é voltado para as relações e jogos musicais entre os

instrumentos2. Seu surgimento está fortemente relacionado ao cenário musical urbano dos anos

1960 e influenciou toda uma geração de músicos:

Ao mesmo tempo em que a bossa nova se tornava conhecida no mundo, toda uma geração de instrumentistas influenciados pelo jazz se envolvia com este gênero no Brasil. Estes instrumentistas formaram grupos que tocavam um repertório de bossa nova e jazz instrumental, sendo que muitos eram na formação clássica jazzística de trio (piano, contrabaixo e bateria), como o Tamba Trio, Zimbo Trio, Milton Banana Trio, Jongo Trio, Bossa Três, Sambalanço, e outras formações, como o Quarteto Novo (de Hermeto Pascoal), samba-jazz e os Copa 5. (Bastos, Piedade, 2006, p.934-935)

Na citação acima, vale ser ressaltado o nome do Quarteto Novo, grupo que apesar de ter sido

contemporâneo à maioria dos outros ali listados parece ter sido equivocadamente incluído como

representante desta estética de música instrumental que primava por um repertório calcado tão

somente na bossa nova e no jazz. O grupo formado pelos músicos Hermeto Pascoal, flauta e piano;

2 “Portanto, mesmo na instrumentalidade da MI é possível o uso da voz, ainda que quase sempre como uma parte

instrumental, mas também ocorrendo que uma canção (com letra, evidentemente) seja entendida como uma peça musical na concepção da MI.”(BASTOS; PIEDADE, 2006, p.932).

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6

Théo de Barros, violão; Airto Moreira, percussão e Heraldo do Monte, viola caipira, teve seu único

disco lançado em 1967 e ao nosso entender lançou uma nova luz sobre esta modalidade

instrumental. Neste novo contexto, especificamente abordado pelo Quarteto, outros gêneros de

música popular, principalmente àqueles ligados à música nordestina como o baião e a toada,

passaram a fazer parte de suas realizações, além da instrumentação e dos arranjos que destoam da

referência de grupos estadunidenses baseados no piano, baixo acústico e bateria.

A fim de contextualizar o surgimento da nova modalidade instrumental, Piedade continua

sua explanação:

(..,)é neste universo instrumental da bossa nova que surge a MI [música instrumental]. O jazz brasileiro cresce apoiando-se, portanto, menos no choro e mais na bossa nova, aí destacando o encontro entre a bossa e o jazz norte-americano. O encontro real entre Stan Getz e João Gilberto simboliza um diálogo entre as musicalidades da bossa nova e do jazz norte americano que é, para este autor, uma característica fundamental da música instrumental brasileira. (Piedade, 1997, 1999, 2003)

No desenrolar desse processo surgem figuras de músicos como Nivaldo Ornelas, objeto

deste estudo e representante de um tipo de linguagem ou idioma que imbrica práticas musicais

diversas em combinações até mesmo inusitadas em um conjunto de realizações ligadas a

composições, arranjos e a características de performance híbridas.

Mais para os anos 1970, os primeiros passos dados em direção à formação desta prática foi

se inclinando para uma produção mais cosmopolita e menos dicotômica, entre nacional e

estrangeiro, já dialogando com uma infinidade de referências musicais. O trabalho de Nivaldo

Ornelas se identifica com esta geração de músicos envolvidos nos desdobramentos desta

modalidade, nem tão inclinada às características do choro e nem às da bossa nova, como cita

Connell (2002, p. 95 apud Campos, 2006, p.12) em trabalho sobre a obra do compositor alagoano

Hermeto Pascoal.

No início dos anos 70 várias transformações resultaram no aparecimento de um novo tipo de música instrumental no Brasil, que não derivava apenas do choro e da bossa-nova, mas também de uma ampla gama de gêneros brasileiros e sons internacionais. Aliada aos desenvolvimentos cosmopolitas da MPB (música popular brasileira), a mídia da música instrumental e sua presença cultural foram sendo construídas ao longo da década, estimuladas por eventos como o ressurgimento do choro, a renovada popularidade da gafieira, o Movimento Black Rio, festivais tanto de choro quanto de jazz, além do crescente apoio do estado e de instituições.

No presente estudo, também buscamos fazer um levantamento da biografia de Nivaldo

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7

Ornelas, abordado no Capítulo I, onde além de descrever os caminhos percorridos pelo músico

desde o seu primeiro contato com a música, seja no âmbito da instrução formal ou informal,

passando por sua consolidação profissional entre os anos 1960 e 1970 além de identificar os campos

de atuação do saxofonista. Para tanto, foram utilizados dados colhidos tanto em entrevistas

realizadas pessoalmente com ele, quanto através de matérias de jornais e revistas recolhidas

fundamentalmente da agência O Globo, informações que foram expostas a conceitos propostos por

Pierre Bourdieu no texto “O Mercado de Bens Simbólicos” in “A Economia das Trocas

Simbólicas”, onde, a partir daí, também são listados alguns dados de sua discografia e produção

como intérprete, compositor e arranjador.

No Capítulo II são apresentadas análises de gravações frente ao campo de composições

autorais de Ornelas, sendo quatro as gravações analisadas nessa seção: 1) Nova Lima Inglesa,

incluída nos discos Colheita do Trigo de 1990 e Fogo e Ouro, lançado em 2009; 2); Nova Suissa

Sábado À Tarde, do disco À Tarde lançado em 1982; 3); Rock Novo, também incluída no disco de

carreira Colheita do Trigo de 1990; e 4) Ninfas, do disco Portal dos Anjos de 1978. As análises

referentes a estas gravações autorais são pontuadas e conduzidas pela lógica urbanística de Belo

Horizonte, cidade natal do autor e recorrência de suas referências musicais, onde os mundos de sua

infância, juventude e idade adulta se sobrepõem e entrecruzam, criando um ambiente sonoro

favorável à identificação de elementos musicais híbridos. As estruturas referentes à harmonia,

forma, instrumentação, caráter, dentre outros, são identificados e justificados a partir das referências

pessoais de sua formação e atuação profissional. Como arcabouço teórico para a identificação e

argumentação das ocorrências musicais híbridas percebidas é utilizado uma variedade importante de

publicações, entre dissertações, teses e livros, dentre os quais podem ser citados: Jazz Styles: history

& analysis, de Mark C. Griley, importante trabalho sobre características musicais do jazz, seus

diversos estilos, fusões, principais intérpretes, compositores e arranjadores; outra fonte utilizada é

História Social do Jazz de Eric Hobsbawn, livro dedicado também ao jazz, mas de cunho mais

histórico do que técnico aqui utilizado complementarmente ao trabalho de Gridley.

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8

The Cognition of Basic Musical Structures de David Temperley, é um trabalho no qual o

autor busca organizar modelos de apreensão musical através de programas computacionais,

estabelecendo modelos de escolha divididos em vários níveis de organização musical, tais como

estrutura métrica (Metrical structure), estrutura de frase melódica (Melodic phrase structure),

estrutura contrapontística (Contrapuntal structure), entre outros. Os dados considerados no trabalho

de Temperley e aplicados nesta tese se referem à identificação de estruturas harmônicas (Harmonic

structure) do gênero Rock, delimitadas pelo autor e utilizadas especificamente na análise da

composição Rock Novo, de Nivaldo Ornelas. Também é utilizada a tese de doutorado de Fábio

Adour da Camara intitulada Sobre Harmonia: uma proposta de perfil conceitual, utilizada neste

estudo com vistas para discussões de análise harmônica na música Ninfas de Ornelas.

Relativo às estruturas musicais angariadas na tradição da música brasileira, são utilizados

primordialmente os trabalhos Os sons do Rosário: um estudo etnomusicológico do congado mineiro

– Arturos e Jatobá, de Glaura Lucas, tese de doutorado sobre os congados Arturos e Jatobá de

Minas Gerais com vasto registro de repertório; é também utilizada a dissertação de mestrado de

Marcelo de Castro Lopes, A Folia do Mestre Célio em Rio Pomba: uma perspectiva

etinomusicológica, trabalho dedicado à investigação do auto conhecido por Folia de Reis em Minas

Gerais. Relativo às características do desenvolvimento dos paradigmas da música popular urbana no

Brasil, foram extraídos exemplos e modelos de acompanhamentos no violão do método O Violão de

7 Cordas de Luiz Otávio Braga, além de exemplos do próprio cancioneiro popular dos diversos

gêneros considerados como cruzamentos possíveis na obra de Ornelas. Os conceitos extraídos

desses estudos são entrecruzados com informações sobre a cidade de Belo Horizonte, boa parte

delas referendadas no livro Cultura e Comunicação: nas avenidas de contorno de Belo Horizonte e

La Plata, de José Márcio Barros, além de conceitos de definições das características dos autos

populares tratados nas análises transcritos advindos do Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da

Câmara Cascudo e das características musicais esclarecidas através da consulta a verbetes do

dicionário New Grove Dictionary of Music and Musicians.

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9

Esse referencial teórico nos deu fundamentação necessária para a identificação, distinção e

análise de materiais musicais de diversas genealogias dentro do universo da música popular numa

série de identificações que têm por objetivo a observação do conjunto de ações e da validade do

fenômeno de hibridação proposto, caracterizando esta abordagem como um estudo analítico

descritivo e comparativo.

No Capítulo III são apresentados outros sete registros nos quais são analisados os solos

realizados pelo, nesse caso, intérprete, Nivaldo Ornelas, sendo eles: Ponta de Areia, composição de

Milton Nascimento que integra o disco Minas de 1975; Cuerpo y Alma do compositor uruguaio

Eduardo Mateo, incluída no disco Nascimento de Milton Nascimento de 1997; Forró em Santo

André de Hermeto Pascoal do disco Montreux Jazz Festival de 1979; Vôo dos Urubus e Bons

Amigos, ambas as composições de Toninho Horta, sendo esta em parceria com Ronaldo Bastos,

ambas extraídas do disco homônimo do compositor lançado em 1980; From The Lonely Afternoons,

música de Milton Nascimento presente no disco Diamond Land de Toninho Horta, disco de 1986 e

a gravação realizada em vídeo do blues Mr. Day do saxofonista estadunidense John Coltrane,

disponibilizado em formato digital em circulação na internet, gravado pelo quarteto de Nivaldo

Ornelas em apresentação ao vivo durante o Festival de Jazz do Rio de Janeiro, realizado na Sala

Baden Powell no dia 30 de janeiro de 2010.

A partir desses registros sonoros foram elaboradas transcrições editadas em formato de uma

partitura guia conhecida pelo termo inglês leadsheet, sendo apresentada a grafia das ocorrências

harmônicas através de cifras, além da linha do saxofone, foco principal das análises do Capítulo III.

Para as quatro composições de Ornelas presentes no Capítulo II, procurou-se elaborar uma

transcrição mais completa que abarcasse de maneira integral as realizações de todos os instrumentos

envolvidos nos registros sonoros. Esse tipo de transcrição, conhecida como transcrição nota a nota,

possibilita de forma mais contundente a identificação dos elementos harmônicos, rítmicos,

melódicos e estruturais, e de seus vínculos, de onde podem ser observados os diversos cruzamentos

das referências utilizadas, seja nas linhas de condução rítmica, na instrumentação ou nas escolhas de

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10

características harmônicas. A aplicação e viabilidade desse modelo de transcrição dentro das

realizações em música popular e especificamente em relação às gravações aqui listadas, são

discutidas ao longo do Capítulo II.

Os exemplos musicais utilizados no decorrer das análises foram escolhidos em

conformidade com a relevância das ocorrências de possíveis estruturas musicais hibridizadas, não

tendo sido um fato importante, por exemplo, a freqüência com que ocorrem dentro daquela obra,

mas sim, o dado de distinção e raridade identificadas nos recortes musicais escolhidos, atribuindo

um caráter analítico qualitativo tanto aos dados coletados em suas composições quanto das

ocorrências técnicas e escolhas interpretativas utilizadas pelo músico.

Conjuntamente com a edição dessas transcrições, é também apresentada, em anexo a esta

tese, a edição exclusivamente das linhas de saxofone realizadas por Nivaldo Ornelas contendo o

maior número possível de indicações referentes aos aspectos interpretativos de suas realizações,

sejam estas de ordem de articulação e fraseado ou de recursos dramáticos3 tais como glissandos,

pitch bends (portamentos) e vibratos, características importantíssimas para a delimitação do

idiomatismo do saxofone brasileiro voltado para a prática em música instrumental. Os

procedimentos utilizados pelo intérprete são apresentados durante o derradeiro capítulo, sendo

validado através da experiência pessoal do músico revelados tanto pelas gravações já citadas quanto

por entrevistas realizadas entre os anos de 2009 e 2010 e que permeiam todo o texto. Ainda sobre as

questões técnicas, são avaliados os pontos de vista do músico sob a luz de teorias propostas pelo

tubista e educador estadunidense Arnold Jacobs, nos textos Also Sprach Arnold Jacobs: A

Developmental Guide for Brass Wind Musicians (2006), organizado por Bruce Nelson e Arnold

Jacobs: Song and Wind (2006) escrito por Brian Frederiksen. Outra fonte preponderante nas

discussões deste último capítulo é fundamentada no livro Dveloping a Personal Saxophone Sound

3 O termo recursos dramáticos é uma tradução livre para a expressão dramatic devices, encontrada em publicações que

tratam de transcrições de solos de músicos de jazz e que se refere ao uso de toda ordem de características interpretativas empregadas na prática instgrumental, tais como vibratos, pitch bends (portamentos) e suas variantes (scoop, fall, etc.), glissandos, tipos de articulação, digitações alternativas, harmônicos, dentre outros. Como exemplo, pode ser consultada a série Giants of Jazz editada pela CPP/Belwin, INC., dos Estados Unidos durante os anos 1980 e que traz, dentre alguns de seus títulos, músicos como Miles Davis, John Coltrane e Julian “Cannonball” Adderley.

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11

(1994), escrito pelo saxofonista e também educador David Liebman, além do artigo científico de

Naílson Simões (2001, p. 18-43), A Escola de Trompete de Boston e Sua Influência no Brasil,

publicada na revista Debates da UNIRIO. Os pontos citados e argumentados a partir desta

bibliografia são também discutidos levando-se em consideração o discurso do próprio Nivaldo

Ornelas e do empirismo destas realizações que constituem a práxis do estudo musical voltado para a

música popular realizada no Brasil.

Esse conjunto de ações visa abordar de maneira plural as realizações de Nivaldo Ornelas nos

campos da produção musical, seja voltada para a composição ou de sua performance como

saxofonista na modalidade musical conhecida como música instrumental de modo a revelar as

várias facetas do fenômeno de hibridação cultural dentro das atividades musicais realizadas pelo

compositor e intérprete mineiro.

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12

CAPÍTULO I – CARREIRA E DISCOGRAFIA

1.1 Início da Carreira.

A tradição musical do saxofonista, flautista, arranjador e compositor Nivaldo Ornelas esta

ligada à geração de compositores e músicos mineiros que iniciaram sua carreira na década de 1960.

Nascido em Belo Horizonte em 22 de abril de 1941 na Vila Marinho, hoje bairro Nova Suissa, o

músico recebeu instrução formal em música através de aulas realizadas na Escola de Formação

Musical, que segundo Ornelas, fora fundada por Villa-Lobos durante o governo Vargas, durante a

década de 19504. A referida Escola funcionava no 1º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais,

localizada na Praça Floriano Peixoto, no bairro de Santa Efigênia na capital mineira. A instituição,

além de assegurar uma sólida formação musical a seus alunos, também era promessa para que

muitos jovens pudessem seguir carreira dentro dela. As aulas na Escola, como Ornelas se refere,

restringiam-se, a princípio, à teoria musical e solfejo, disciplinas que possibilitaram que o garoto,

então com aproximadamente 11 anos de idade, desenvolvesse uma boa noção dos fundamentos em

música, condição que o incentivou a continuar estudando. Posteriormente, foi aluno do clarinetista

Ney Perrella ao ingressar no Conservatório Mineiro de Música, que a partir de 1962 se

transformaria na Escola de Música da UFMG, e anos mais tarde, já durante os anos 1970, teve aulas

com o compositor belga naturalizado brasileiro Arthur Bosmans (1908-1991), que viera para o

Brasil durante os anos 1940 e após passagem pelo Rio de Janeiro fixou residência em Belo

Horizonte. Com Bosmans, Nivaldo Ornelas aprendeu de tudo um pouco, suas aulas eram encontros

nos quais o professor passava horas tocando piano e contando histórias.

Paralelamente à instrução formal, sua vida cotidiana no bairro Nova Suissa lhe

proporcionava um leque variado de atividades musicais que apontavam, sobremaneira, para os

universos da música popular e folclórica. Dentro de casa podia ouvir seus pais, Alcides Ornelas e

Estela Lima de Ornelas tocando e cantando um repertório de Serestas; nas ruas, as Folias e

Congados e nas Igrejas a música sacra, tocada e ouvida principalmente em épocas de festividades

4 Cabe pntuar que as décadas são contabilizadas a partir do ano 1, ou seja, a década de 1950, indicada, é contabilizada a

partir de 1951 indo até 1960, exckuindo-se o ano de 1950, este, último ano da década anterior, 1940.

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13

do calendário católico, como durante a semana santa, ou mesmo em suas atividades ordinárias

durante os fins de semana. Estas referências serviriam como pilares para a sua carreira musical,

principalmente ligada a sua produção autoral, como percebemos através de citações contidas em um

de seus discos, o Arredores, lançado em 1998:

(...)logo depois do Natal, a Folia de Reis do Vandico e do Jair da Sanfona saía pelas ruas de Nova Suíssa. No princípio dos anos 70 participei com eles dos movimentos de folia e congada, que eram constantes por lá. Com suas roupas coloridas, o grupo levava sua música, seu canto e sua fé até a Vila São Domingos, um povoado situado logo depois do bairro Jardim América. (...)lembra os saraus lá em casa – música e poesia. Minha mãe cantando, meu pai ao violão, e a gente ouvindo e sonhando(...) (...)a atmosfera renascentista no interior da igreja do Convento Bom Pastor, no alto da Nova Suíssa. Muita fé e mistério.

Do período compreendido entre o final da década de 1950 ao início da de 1960, Nivaldo

Ornelas estava às voltas com várias atividades ligadas à música e vinha se preparando para iniciar

uma carreira como solista de música erudita. Nessa época já se apresentava tocando clarinete em

eventos, participando de orquestras e dos bailes, a exemplo dos que havia por toda a capital mineira

em lugares como o Automóvel Clube ou em dancings, como o Montanhês Danças. Foi nessa época

que Célio Balona, músico que liderava um dos principais grupos de baile da cidade sugeriu que

Ornelas tocasse saxofone, de modo a contemplar de maneira mais apropriada o repertório que

estava em voga naqueles anos, constituído, mormente de sambas-canção e boleros. A idéia a

princípio não agradou muito a Ornelas, mas, com o crescente interesse do músico pelo jazz, em

especial pela obra do saxofonista estadunidense John Coltrane, foi adotada.

Já lidando com o repertório de jazz, em 1964 Ornelas participa da idealização e fundação do

Bar Boate Berimbau, juntamente com Antonio Morais, o Bolão e um grupo de músicos. O bar que

funcionava aos moldes de um clube de jazz foi o primeiro lugar onde Nivaldo Ornelas pôde se

apresentar periodicamente como saxofonista dedicado a um repertório exclusivamente de música

instrumental a reboque dos conjuntos de jazz americanos bem como dos grupos brasileiros de bossa

nova instrumental e samba jazz, como os surgidos no Beco das Garrafas no Rio de Janeiro, e que

proliferavam à época em várias cidades do país. Em relação a estas referências musicais, Nivaldo

Ornelas cita alguns dos principais grupos e artistas que naquele tempo serviram de vitrine para ele e

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seus contemporâneos (informação verbal):

Nivaldo – Tamba Trio, Os Cariocas, Sérgio Mendes... Deixa eu lembrar mais, Paulo Moura, Edison Machado: É Samba Novo, eu tenho ele aí. E jazz era Art Blakey e Jazz Messengers, Monk & Coltrane, começamos a ouvir Miles Davis também e um disco do Bill Evans com Sinfônica, tocando música erudita improvisada. Isso rodava. E todos os discos, esse o Bituca era apaixonado e eu também, do Miles com Gil Evans, ali foi o nosso grande professor de harmonia foi aquilo ali. 5

O Berimbau Clube era certamente o ponto de encontro dos músicos instrumentistas daquele

tempo, tendo se tornado um lugar de convergência e uma referência em meio ao cenário musical

ainda acanhado da cidade, como afirma o próprio Ornelas em outro trecho da mesma entrevista

anteriormente citada (informação verbal):

Nivaldo – Bom, mas, fechando o parênteses: Berimbau. Aí a gente arrumou esse Berimbau lá, através do Antônio Morais que era um cara ágil, realizador assim, né? Nós músicos, todo mundo de boca aberta, né? E, aí teve esse lugar que virou um ponto de encontro mesmo, é muito interessante, durou um ano no máximo, mas foi fulminante o negócio.

Bernardo – Ficava numa daquelas sobrelojas ali, não é? Nivaldo – Isso, exatamente. Bernardo – Eu li numa matéria do Estado de Minas.

Nivaldo - O Maletta era o seguinte: Em baixo, no lado de fora tinha o Pelicano, que a turma desse povo docinema ficava ali, pra você ver como é interessante; lá dentro, no andar de baixo tinha o Lua Nova dosjornalistas, meus irmãos frequentavam lá. Lua Nova. Em cima tinha o Sagarana, que era o bar dosescritores, o pessoal do cachimbo, a turma do cachimbo. No mesmo andar assim, aí tinha o Berimbau, que era de música, e era interessante. Quando ia gente, músicos em Belo Horizonte, iam lá no Berimbau, ficavam sabendo.6

Na citação acima Nivaldo Ornelas se refere ao Edifício Archângelo Maletta, que nos anos

1960 era o lugar de encontro, não só dos músicos, mas de toda intelectualidade e boemia belo-

horizontina, e sobre este período do Berimbau Clube Ornelas fala da importância do lugar, que

apesar de sua vida efêmera, tendo funcionado por pouco mais de um ano, possibilitou encontros e

experimentações dos músicos que ali puderam fazer música instrumental, como, além do próprio

Nivaldo Ornelas, Paulo Braga, Helvius Villela, Pascoal Meirelles, Wagner Tiso e Milton

Nascimento (informação verbal):

Nivaldo - (...) Muito bem, aí o Berimbau realmente foi, começou a dar frutos aquilo, muito rápido, sabe? E o pessoal começou a criar umas coisas, aí apareceu, já no final do Berimbau apareceu o Bituca mais o Wagner, vieram de fora e trouxeram mais um outro elemento, tal, o Bituca com aquela onda dele meio Úú, né? A gente não deixava ele cantar, isso não podia, com letra não. No Berimbau não podia, letra...canário não entrava(...)E aí começou a tocar baixo acústico e tudo, o irmão do Toninho, o Paulinho, emprestou um baixo pra ele. A verdade é que o negócio floresceu, entendeu? Floresceu mesmo, assim.7

5 Entrevista realizada em 17 de abril de 2009 6 Idem 7 Idem

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O Berimbau Clube apesar de ter sido um lugar voltado para a música instrumental,

preferencialmente o jazz e a bossa, que apesar de privilegiar os standards desses gêneros musicais,

surgiu também como possível laboratório de experiências musicais para os músicos que por ali

passaram, tanto para Nivaldo Ornelas quanto pra Milton Nascimento e outros. Em seu livro Os

Sonhos Não Envelhecem, Márcio Borges, um dos principais parceiros de Milton Nascimento, cita o

Berimbau Clube da seguinte maneira:

Inaugurado exatamente na noite do golpe: 31 de março de 64, por Antonio Morais, o Bolão, a casa era especializada em jazz e ficava na sobreloja do Edifício Archângelo Maletta. O Maletta era o reduto dos notívagos e boêmios de Beagá. Ali funcionavam, espalhados pelos corredores do térreo e da sobreloja, dezenas de bares, restaurantes e inferninhos. Durante o dia apresentava um movimento comercial recatado, digno de suas livrarias e escritórios de representações, lojas de armarinho. Um de seus blocos era residencial, com entrada à parte, à noite, porém, as galerias do edifício eram invadidas por hordas e clãs de artistas, músicos, jornalistas, prostitutas e bêbados de variados escalões que ocupavam todas as mesas disponíveis no local. Quem pisava no Maletta depois das seis tinha uma reputação a zelar. Ou a perder, mais frequentemente. (Borges, 1999, p. 45)

Após o fechamento do Berimbau Clube, Nivaldo Ornelas forma no ano de 1967, juntamente

com o baterista Paulo Braga, o pianista Jairo Moura e o baixista Tibério César o Quarteto

Contemporâneo. O grupo era identificado com o Free Jazz realizado por músicos como Ornette

Coleman (1930-), Eric Dolphy (1928-1964), Albert Ayler (1936-1970) e mesmo John Coltrane

(1926-1967), que se aproximou do estilo mais para o final de sua carreira, já nos anos 1960. O

Quarteto Contemporâneo era, portanto, um grupo que se afinava com uma estética voltada para a

vanguarda do jazz e da música instrumental na época, uma busca de liberdade criativa que também

marcaria a carreira do saxofonista em outros trabalhos que realizaria futuramente:

Nivaldo – É, mas quando terminou o Berimbau, no ano de 67, mais ou menos, já tinha um tempo, tinha acabado o Berimbau há muito tempo, eu o Paulinho Braga, um pianista chamado Jairo Moura e o Tibério César, baixista, a gente começou a tocar na rádio, essa Rádio Guarani, que era à tarde ali na Avenida...

Bernardo – Assis Chateaubriant. Nivaldo – Isso. E tinha um estúdio lá e a gente passava tardes e tardes, eu lembro, tocando, só improviso. Na época a gente ouvia Eric Dolphy, ouvia meio free-jazz, é...Coltrane no Village Vanguard, aquelas coisas mais free mesmo, Eric Dolphy, Ornette Coleman.

As marcas deixadas pelo Quarteto Contemporâneo e pelo, como diz o próprio Ornelas,

conceito de sua proposta, podem ser percebidos em parte da produção musical de Ornelas, seja em

discos de carreira ou em solos do músico em participações de outros trabalhos, como durante a

música Hoje é Dia de El Rey, de Milton Nascimento e Márcio Borges, presente no disco Milagre

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dos Peixes de 1973, onde o saxofonista utiliza parcialmente esta estética free. Outro exemplo do uso

de recursos desse estilo pode ser encontrado no disco Montreaux Jazz Festival de Hermeto Pascoal

de 1979 e que será pormenorizado no Capítulo III desta tese, através da observação das

características técnico-interpretativas aplicadas ao saxofone, presentes na música Forró em Santo

André. As referências do free jazz citadas por Ornelas podem ser identificadas com parte de sua

produção musical também de discos do autor como Viagem Ao Oco do Toco gravado em 1988, mas,

somente lançado no ano de 2005, disco gravado em duo com o tecladista André Dequech e que faz

referência ao Quarteto Contemporâneo onde a proposta estilística do Free Jazz pode ser percebida

em uma abordagem de música brasileira e de relação íntima à sua produção. Segundo Mark Gridley

o free jazz consiste em:

Free Jazz é o nome de uma atitude para improvisação difundida por Ornette Coleman (1930) e Cecil Taylor (1929). O termo deriva da observação que performances desse estilo são frequentemente ausentes de progressões de acordes pré-determinadas. Um modelo para grande parte dessa música é um disco de 1960 de Coleman intitulado Free Jazz. A música ali contida consiste em uma improvisação simultânea e coletiva de duas bandas intentando permanecer livre de armadura de clave, melodia, progressões de acordes e tempo previamente determinados..8 (Gridley, 1986, p.226)

Portanto, o free jazz caracteriza-se por ser não somente um estilo, mas uma maneira de

abordar as seções de improviso, uma postura tomada pelo músico improvisador, ou pelos músicos

do grupo, quando de realizações coletivas durante uma performance.

Após o Quarteto Contemporâneo Ornelas se vê numa espécie de dilema vivendo em Belo

Horizonte, já que os trabalhos como músico não lhe garantia a sobrevivência, os honorários

necessários para que pudesse se sustentar. Nesse período, final dos sessenta, o músico teve, por

exemplo, de trabalhar como bancário, já que o insipiente mercado musical mineiro não estava

preparado para a produção, circulação e consumo de música, quiçá de música instrumental, o que

impulsionava a derrocada de artistas, das mais variadas atividades, a se trasladarem para os

principais centros artísticos e econômicos da época: Rio de Janeiro e São Paulo. A convite de Paulo

8 Free jazz is the name of an approach to improvisation made common by Ornette Coleman (b.1930) and Cecil Taylor (b.1929). The term derives from the observation that performances of this style are often free of preset chord progressions. A model for much of this music is a 1960 Coleman album called Free Jazz. Its music consists of simultaneous collective improvisation by two bands attempting to remain free of preset key, melody, chord progressions, and meter.

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Moura, Nivaldo Ornelas se muda para o Rio de Janeiro em 1971 com o propósito de fazer parte da

Banda Jovem do músico, juntamente com Márcio Montarroyos, Cláudio Roditi, Pascoal Meirelles e

Osmar Milito. Este convite é tido pelo saxofonista como o empurrão que faltava para que ele

tomasse confiança em se mudar para a capital fluminense de modo a tentar melhor sorte no centro

musical mais importante do Brasil daquele tempo. No ano seguinte, desta vez a convite de Hermeto

Pascoal, a quem conheceu em 1968, muda-se para São Paulo para participar de sua banda e com ele

passa também a tocar saxofone soprano e flauta em dó. Apesar da notoriedade suscitada pela

participação no grupo do músico alagoano, as dificuldades financeiras e a adaptação difícil à vida

no Rio e em São Paulo fizeram com que Ornelas voltasse a Belo Horizonte ainda durante o ano de

1972, mudança que o músico considerou fundamental para recarregar a bateria e aprofundar-se no

estudo do saxofone, refugiando-se na casa de sua família no bairro da Nova Suissa.

A agitação musical e artística que Belo Horizonte viveu durante os anos 1960, provocada,

por exemplo, pelo Berimbau Clube e por outras iniciativas, possibilitou novos encontros entre

instrumentistas, compositores e letristas. Como figura aglutinadora das ações destes agentes estava

Milton Nascimento, que teve como primeiros parceiros os letristas Márcio Borges, já citado, e

Fernando Brant, mas que passou, a partir de então, a mediar e servir de modelo para que outros

músicos compartilhassem suas experiências, idéias, opiniões, gostos e a fazer música juntos em

permanente relacionamento, criando um corpo de produção musical fortemente associada a um

perfil estético de identidade da música popular urbana feita em Minas Gerais. A expressão Clube da

Esquina, utilizada talvez em função da música composta por Milton Nascimento e pelos irmãos

Borges, Lô e Márcio, lançada no disco Milton de 1970, está também associada ao título de dois

discos homônimos, o primeiro lançado em 1972 por Milton Nascimento e Lô Borges, e o segundo,

Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento lançado em 1978. Esta questão é tratada por Thais

Nunes em seu trabalho A Sonoridade Específica do Clube da Esquina:

A expressão Clube da Esquina passou a ser usada, no final dos anos 1970, para se referir a um grupo de compositores, sobretudo cancionistas, na sua maioria mineiros, poetas e instrumentistas que produziram um vasto repertório musical, principalmente na década de 1970 no Brasil. Tal expressão, ampla em si, também dátítulo a duas canções (CLUBE DA ESQUINA e CLUBE DA ESQUINA N/2) e dois discos duplos, de títulos homônimos aos das canções, lançados respectivamente nos anos 1972

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e 1978. A expressão, podendo se referira cinco sujeitos (grupo, duas músicas e dois discos), põe em questão qual seria o título dessa pesquisa. Qual dos cinco seria o seu objeto central? Para esclarecer esta ambiguidade faz-se necessário refazer o caminho percorrido para a escolha. (Nunes, 2005, p.03)

A expressão Clube da Esquina, como colocado por Nunes, é tratada no meio jornalístico, de

modo geral, como movimento musical. Este termo a nosso ver carece de problematização, já que em

um primeiro momento o Clube se revela muito mais como um ideário de uma geração talentosa de

músicos, arranjadores, letristas e instrumentistas que se afinavam do que propriamente algum tipo

de movimento que tenha uma espécie de proposta estética ligada a uma ortodoxia de realizações,

contendo estatutos, manifestos ou mesmo cartas de intenção. Movimentos como estes no Brasil são

reconhecíveis como, por exemplo, com o Música Viva, ou se transposto para o terreno da música

popular, os Centros Populares de Cultura (CPCs), criados no início dos anos 1960 e associados à

UNE e que tiveram no seu Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura as diretrizes do

movimento que teve o sociólogo Carlos Estevam Martins, filiado à época ao ISEB, como o seu

primeiro diretor. Portanto, Nivaldo Ornelas pode ser considerado um colaborador indireto do

chamado Clube da Esquina, isto pelo fato do músico ter feito parte do convívio daquela geração de

músicos que atuou a partir do início dos anos 1960 em Belo Horizonte.

Durante essa curta estada na capital mineira, em 1972, recebe convite de Milton Nascimento

para juntamente com Wagner Tiso, Toninho Horta, Luiz Alves e Robertinho Silva formar o “novo”

grupo Som Imaginário e acompanhá-lo na gravação de seu próximo disco, Milagre dos Peixes, de

1973. Milton já era conhecido no meio musical nacional, muito em função de Travessia, música que

defendera no festival da canção de 1969, mas também da já consistente carreira que empreendera no

Rio de Janeiro com repercussão nacional, sendo o Som Imaginário o grupo que o acompanhava

desde o disco Milton de 1970. O fato é relatado por Nivaldo Ornelas durante entrevista concedida

em abril de 2009 (informação verbal).

Nivaldo – (...)O Milton. Tava de bigode, falou: E aí tudo bem? – Tudo bem. Falou: Eu to fazendo umas coisas novas aqui, vamos tocar um pouco aí e tal. Falei: Vão bora. Eu tava...

Bernardo – E ele já tinha passado pelo Festival da Canção, já tava morando no Rio... Nivaldo – Já, já era conhecido, já era conhecido. E aí nós ficamos tocando aí ele compôs uma música lá, aí eu lembrei que eu tinha uma música chamada: Terezinha de Jesus, em cinco por quatro, que era música do folclore, ele adorava e a gente ficava tocando isso lá. E eu tinha um negócio de hino, eu gostava de fazer variações em cima de hinos. Esses hinos, Hino da Bandeira.

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Bernardo – Você tem um disco, o Reciclagem. Nivaldo – Foi tudo em cima daquilo, isso. Tocava esses hinos e ele ficava maravilhado: Nossa, Que Beleza! Passamos a tarde lá e ele falou pra mim. Aí nos fomos pra um boteco lá do outro lado da rua, tomamos uma pinga eu e o Bituca, ele tomou uma pinga e eu tomei uma pinga, e eu falei: Como é que pode? Você tomar uma pinga? Hoje eu não bebo nem cerveja. E ficamos conversando e ele falou: É, eu quero reunir a nosso turma num ritmo novo e eu não to conseguindo colocar nosso som, e a minha harmonia – Não sei por que ele falou isso - não é sofisticada e eu preciso de gente que entenda do assunto, não to conseguindo, os caras tão pensando que é uma coisa e é outra, eu preciso de você do Wagner e do Toninho, e tal, e eu quero chamar o Robertinho e o Luiz Alves, Robertinho Silva e Luiz Alves, porque eles tem a força, eu quero fazer esse Som Imaginário aí, eu quero diferente, você topa voltar pro Rio, né? Eu falei pra ele: Não ta nos meus planos voltar pro Rio agora não, eu to aqui, tá bom aqui. Ele falou: Mas vai ser bom lá, vamos nessa, eu quero fazer um show com orquestra e tal. Falei: Com orquestra? Como é que é isso? Tudo o que eu ganhar. Ele investiu nele mesmo, isso foi foda, isso é demais. – Tudo que eu, eu assinei um contrato com a Odeon, tudo que eu fosse ganhar vai ser investido na orquestra, eu vou pagar a orquestra. Falei: Mas nós vamos pagar também? Ele disse: Vocês não, vocês fazem o seu acerto com eles lá, o Wagner faz que ele já ta lá mesmo, e, mas o meu eu vou investir. - Demais, né?

Neste trabalho, fazemos questão de esclarecer e limitar a contribuição de Nivaldo Ornelas à

paisagem sonora do Clube como ligada tão somente ao grupo de músicos que, inicialmente,

formaram o Som Imaginário e não aos discos duplos de 1972 e 1978, pois Ornelas não participou

da gravação destes. Cabe, pois, pontificar que o Som Imaginário, grupo que acompanhava Milton

Nascimento, foi responsável pela “sonoridade” de alguns dos principais discos de Milton. O termo

“sonoridade” aqui empregado se refere à interferência musical inferida pelo grupo tanto na maneira

de tocar dos músicos que constituíam o Som Imaginário quanto nas ideias musicais adotadas nos

arranjos presentes nos discos de Milton Nascimento, haja vista que boa parte destes arranjos sofria

estas interferências dos músicos à medida que eram tocados, uma prática muito comum nas

realizações do repertório de jazz e que se revela fundamental no entendimento de parte das obras de

Milton Nascimento, mais particularmente de alguns dos discos da primeira metade da década de

1970, sendo eles: Milagre dos Peixes de 1973; Milagre dos Peixes Ao Vivo, 1974 – este com

referência clara ao grupo Som Imaginário - além de Minas, de 1975. Como exemplo, pode ser

citada a gravação de Fé Cega, Faca Amolada, composição de Milton Nascimento e Fernando Brant

que abre o disco Minas, onde o contracanto de saxofone soprano realizado por Ornelas torna-se

praticamente parte da composição:

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Exemplo musical 1. Início de Fé Cega, Faca Amolada, partes de voz e saxofone soprano realizado por Nivaldo Ornelas

Nivaldo Ornelas está ligado à boa parte da produção de Milton Nascimento e a de alguns

dos compositores que participaram dos discos Clube da Esquina, citem-se: Wagner Tiso, Toninho

Horta e Tavinho Moura e não dos discos Clube da Esquina, de 1972 e 1978. De um modo geral,

fica muito difícil estabelecer uma unidade na produção destes agentes, esta planificação estética

parece funcionar mais como um recurso de mercado, uma invenção.

Figura 1. O Som Imaginário Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Wagner Tiso, Novelli e Paulo Braga em intervalo do ensaio para o disco Minas de 1975. (BORGES, 1999)

A imagem da esquina como um lugar de encontro dentro do território citadino tende a uma

compreensão do Clube como uma reunião para o intercâmbio de idéias, experiências, referências

distintas e de cooperação mútua para a realização de sua música. Este espírito gregário talvez tenha

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sido a espinha dorsal na qual o Clube se desenvolveu e a característica fundamental do trabalho de

seus integrantes e colaboradores, como Nivaldo Ornelas. Essa impressão sobre um espírito de

coletividade é reforçada pelas palavras de Lô Borges em depoimento contido no documentário

Milton Nascimento - A Sede do Peixe lançado em 1998. Diz ele (informação verbal):

Essa história de Clube da Esquina tem um pouco a ver com isso, né: o começo, os encontros da gente né,o que ficou meio conhecido como Clube da Esquina esses encontros realmente do pessoal, de uma geração de Belo Horizonte. Agora, esses encontros sempre aconteceram, acho que Clube da Esquina é uma história assim, que sempre existiu, né

Concomitantemente à produção ao lado do grupo Som Imaginário e de Milton Nascimento,

Ornelas ainda tocou e gravou, durante os anos 1970, com uma série de músicos, servindo como

músico de estúdio – atuando tanto como solista quanto em naipes de sopros – tendo gravado discos

com, além de seus pares mais próximos, citem-se: Wagner Tiso, Pascoal Meirelles, Robertinho

Silva e Toninho Horta, e com outros ícones da chamada música instrumental, casos de Egberto

Gismonti, com o qual gravou, durante os setenta, os discos Academia de Danças de 1974 e

Corações Futuristas de 1976 (incluindo outros tantos durante a década seguinte), Paulo Moura no

disco Confusão Urbana, Suburbana e Rural de 1976 e já no final da década com Hermeto Pascoal,

no Montreaux Jazz Festival de 1979, já citado, e Airto Moreira em Touching You, Touching Me,

também em 1979; além dos nomes mais importantes da MPB daqueles anos como: Ivan Lins

(Quem Sou Eu?, 1972); Edu Lobo (Caminho das Águas, 1976); Luiz Gonzaga Júnior (Começaria

Tudo Outra Vez..., 1976); Fagner (Orós, 1977); Belchior (Coração Selvagem, 1977); Gilberto Gil

(Refavela, 1977), Zé Ramalho (A Peleja do Diabo Com O Dano do Céu, 1979), dentre outros. Estas

aparições puderam consagrar ainda mais o trabalho do músico como um dos mais proeminentes

dentre os saxofonistas brasileiros, mas Ornelas ainda tinha como objetivo a realização do seu

próprio trabalho, uma produção autoral que levasse seu timbre, sua assinatura.

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2. A Dicotomia Auctor / Lector e o Desenvolvimento da Carreira de Autor:

Em entrevista concedida à jornalista Ana Maria Bahiana para O Globo em 1977, Nivaldo

Ornelas descreve os processos que antecedem a gravação de seu primeiro disco solo, Portal dos

Anjos, lançado em 1978 pela Polygram, numa série com o nome de Música Popular Brasileira

Contemporânea (MPBC).

Seu reconhecimento no meio musical, tanto para produtores quanto para a crítica estava

ligado aos trabalhos que já havia realizado com importantes nomes da chamada MPB dos anos 70:

Fagner, Belchior, Ivan Lins e Milton Nascimento, que com este último, havia participado, até então,

de três registros fonográficos. Outros trabalhos, realizados, por exemplo, com Hermeto Pascoal no

ano de 1973 e com Egberto Gismonti, referiam-se também a trabalhos como músico acompanhante,

apesar de serem dedicados a um público consumidor específico, no caso, consumidores de música

instrumental.

Nessa mesma reportagem do jornal O Globo de fevereiro de 1977, Nivaldo Ornelas se

posiciona em relação ao seu trabalho realizado como músico contratado de nomes de fama da MPB

com a seguinte declaração: “Eu não acho ruim trabalhar com cantores. É uma certeza, uma

segurança”. Fica claro, nesta afirmação de Ornelas, que o fato de trabalhar como músico de estúdio

de “estrelas” da MPB é uma questão de sobrevivência, o fato deste tipo de trabalho ser uma

segurança demonstra o caráter de ofício que a função de músico de estúdio representava para o

saxofonista. Mais a frente, na mesma reportagem, em oposição à função de músico de estúdio,

Nivaldo continua sua declaração revelando o desejo de desenvolver uma carreira como solista, um

trabalho que mostrasse um lado mais íntimo de sua ligação com a música: “Agora, esse ano, eu

estou reservando mais pra mim, sabe? Vou fazer mais o que eu quero, o meu trabalho que eu estou

há um tempão pra fazer”.

Estas duas faces da produção musical de Nivaldo Ornelas dão indícios de que o

desenvolvimento do compositor não caminha necessariamente lado a lado com o do instrumentista,

sendo as duas funções encaradas de maneiras distintas pelo músico: ”(...) as duas coisas, compor e

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tocar, sempre foram distintas para mim, bem separadas. Não sei, mas tenho a impressão que isso de

tocar saxofone foi uma coisa que eu aprendi, foi uma habilidade, um treino”.

O ato de tocar pode tornar-se por vezes um ato mecânico, um treino, esta declaração revela o

alto grau de especificidade que o instrumentista deve desenvolver para ser inserido neste mercado,

no caso, o de músico de estúdio. O fato pode ser relacionado com a seguinte citação de Pierre

Bourdieu:

(...)A história recente de um modo de expressão, como por exemplo a música, extrai o princípio de sua evolução da busca de soluções técnicas para problemas fundamentalmente técnicos, estritamente reservados a profissionais dotados de uma formação altamente especializada, e aparece como realização do processo de refinamento que tem início desde o momento em que a música popular é submetida à manipulação erudita de um corpo de profissionais (Bourdieu, 1998, p. 114)

A citação acima se refere ao campo de produção erudita, mas pode ser comparada ao caso do

universo musical de Nivaldo Ornelas devido ao alto grau de refinamento atingido pela música

instrumental brasileira através da manipulação de elementos de práticas musicais originais da

música popular, realizada por instrumentistas, compositores ou arranjadores com formações

diversas, mas que passaram por algum grau de instrução formal, seja ela advinda da música de

concerto, do jazz ou de outras práticas.

Diferentemente da atuação do músico como instrumentista de apoio, o processo de

composição e o surgimento do compositor são descritos da seguinte maneira pelo próprio Nivaldo

Ornelas:

Aí por, 72, 73, as coisas que eu compunha começaram a sair inteiramente diferentes do que eu tocava. Eu nem tinha controle sobre isso. Eu compunha uma coisa muito mais emocional, muito mais ligada ao meu passado, às lembranças de garoto, àquela minha formação toda.

Fica claro então, que se por um lado, o ofício de saxofonista é uma prática mecânica,

racional e adquirida por intermédio da repetição, o lado de compositor é a expressão intuitiva do

depositário musical que o artista apreendera durante toda a sua vida, e com isto, evidenciam a busca

pela individualidade, originalidade e distinção. Características estas relacionadas a um campo de

produção autônoma. Esta distinção entre as duas práticas pode ser relacionada com os termos de

oposição lector, referente ao intérprete, àquele que empresta a sua musicalidade para iluminar a

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obra de um outro autor; e auctor, no caso o compositor, o mestre criador, onde estas práticas

representam respectivamente a atuação do músico junto à produção da indústria cultural9 e a sua

produção, como criador, está ligado à organização de um campo autônomo, ou em autonomização,

como o campo de produção erudita10.

Apesar do aparente antagonismo das duas práticas, estas não se anulam, mas se auxiliam

mutuamente, conforme podemos perceber através de trecho da mesma matéria citada anteriormente,

publicada pelo jornal O Globo em 14 de setembro de 1977, quando esta se refere ao disco Milagre

dos Peixes de Milton Nascimento:

(...)uma virada e tanto em sua carreira e do músico, que praticamente estreava de verdade no Rio e em São Paulo. E seu trabalho constante como instrumentista – embora cada vez mais dissociado do de compositor – acabaria por lhe dar as primeiras chances de uma carreira mais desimpedida, autônoma.

O fato de Nivaldo Ornelas ser cada vez mais reconhecido por seus pares como um músico

importante, o credenciava para que pudesse passar do estágio de simples acompanhante, por mais

extraordinário que fosse, para mestre criador, um aval concedido por dois meios distintos de

legitimação e consagração, o meio musical e o da crítica, estabelecendo, portanto, um vínculo

através de cooptação11, corroborada pelas premiações que recebera no caso de disco Portal dos

Anjos através do prêmio Villa-Lobos no ano de 1979.

Estes traços de constituição de um campo de produção autônoma são encontrados na

produção de Nivaldo Ornelas de maneira restrita, já que a modalidade música instrumental, mesmo

apresentando características de autonomização, como, por exemplo, a busca por traços de

originalidade e formação de mercado consumidor, está subordinada ao campo da música popular de

um modo geral, já que para que os agentes produtores de música instrumental possam realizar sua 9 “Especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais destinado a não-produtores de bens culturais (o

grande público)” (Bourdieu, 1998 p.105) 10

“Sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens), objetivamente destinados (ao menos a curto prazo) a um grupo de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais”. (Bourdieu, 1998 p. 105) 11“Todas as formas de reconhecimento – prêmio, recompensas e honras, eleições para uma academia, uma universidade, um comitê científico, convite para um congresso ou para uma universidade, publicação em uma revista científica ou através de uma editora consagrada, presença em antologias de trechos escolhidos, menções nos trabalhos dos contemporâneos, nas obras de História da arte ou da ciência, citações nas enciclopédias e nos dicionários, etc. não passam de formas diversas de cooptação cujo valor depende da posição dos cooptantes na hierarquia da consagração.” (Bourdieu, 1998 p. 119)

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produção, eles necessitam dos meios de legitimação e consagração disponibilizados pelo campo

autônomo constituído pela música popular, no caso a música popular brasileira. Esse ponto de vista

é tratado por Néstor Garcia Canclini, onde o autor revela uma série de números de vendagens de

livros na América Latina, comprovando que os autores de arte precisam realizar outras atividades

para se sustentarem, criando com isso um cruzamento não só entre práticas do mesmo campo, mas

de campos distintos, hibridando inclusive um mercado aparentemente estável: “Por isso, conclui, no

Brasil não se produz uma distinção clara, como nas sociedades européias, entre a cultura artística e

o mercado massivo, nem suas contradições adotam uma forma tão antagônica” (Canclini, 2003, p.

68).

Em 1982, Nivaldo lança seu segundo disco de carreira À Tarde. Lançamento que jornal

Folha de São Paulo cobriu da seguinte maneira: “A seguir, com o máster na mão, Nivaldo

percorreu as gravadoras oferecendo seu trabalho, um itinerário bastante conhecido dos músicos

instrumentistas independentes”. Sem conseguir sucesso com selos independentes no Brasil, Nivaldo

Ornelas ofereceu o máster da gravação do seu segundo disco À Tarde, realizado entre novembro e

maio de 1981 no Rio de Janeiro, para uma gravadora francesa, aproveitando uma excursão àquele

país: “O pessoal da Syracuse assistiu aos shows, gostou, dei-lhes a fita, e há pouco tempo fiquei

sabendo que o LP estava prestes a sair”. Dentro da mesma matéria, há uma citação ao encarte do

disco À Tarde: “Mais do que o instrumentista, impõe-se aqui o compositor, saxofonista e flautista,

Nivaldo Ornelas tem um fraseado e uma sonoridade pessoais, e improvisa como um jazzman”. E o

jornalista João Marcos Coelho complementa:

Como é impossível não evocar , ao escutar o toque de Nivaldo no tenor, as gravações de baladas lentas de Coltrane no final dos anos 50 (com Garland e Chambers, para a Prestige). O vocabulário da música improvisada sem dúvida remete, de um ou de outro modo, inevitavelmente, ao jazz.

Esta referência ao jazz nunca foi negada por Ornelas, pelo contrário, o músico sempre fez

questão de reverenciar os cânones do gênero, mas o músico também reivindica a originalidade e

autenticidade da produção musical aqui realizada: “Temos uma música instrumental única, rica,

fruto de nossa cultura musical forte, que não pode nem deve ser rotulada como jazz”.

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O relato anterior evoca pelo menos uma das características de legitimação por parte do

corpo de produtores/consumidores de música instrumental no Brasil, como a “influência” do jazz,

mas que ao mesmo tempo procura se diferenciar da produção de seu país de origem, os EUA, ao

identificar traços de originalidade, “gerador de um tipo de raridade”, como exposto por Pierre

Bourdieu:

(... )embora o campo de produção erudita possa nunca estar dominado por uma ortodoxia, está sempre às voltas com a questão da ortodoxia, ou seja, com a questão dos critérios que definem o exercício legítimo de um tipo determinado de prática intelectual ou artística. (Bourdieu, 1998, p. 109)

O terceiro disco de carreira de Ornelas, Viagem Através de Um Sonho, é lançado no ano de

1983 e recebe críticas rasas dos veículos de comunicação, sendo encontradas matérias no jornal O

Globo e na revista Veja, que ressalta as características de originalidade de Nivaldo quando diz que

ele não imita os padrões musicais de músicos americanos, além de dar a seguinte declaração: “(...)O

resultado é um disco vibrante, acessível a qualquer ouvinte e não apenas a outros músicos capazes

de decifrar sutilezas técnicas”.

Os adjetivos vibrante e acessível demonstram certo grau de intolerância por parte da crítica

brasileira em repúdio à linguagem altamente especializada que as vanguardas musicais, sejam elas

do campo da música erudita ou do jazz, desenvolveram durante o século XX. Esta necessidade de

“facilidade” de assimilação, exposto na crítica da revista Veja, tende a ser encarada como uma

maneira de romper com a pretensa ortodoxia da produção de música instrumental no Brasil,

incentivando o público não cultivado a se inserir como consumidores deste tipo de produção.

A preocupação em se democratizar a produção de música instrumental também é

compartilhada pelo próprio Nivaldo Ornelas, como registra a matéria do Jornal do Brasil de 15 de

julho de 1993, em referência à apresentação do músico durante o projeto Menu Musical, no prédio

do MEC, centro do Rio de Janeiro:

Em plena agitação do Centro, uma platéia de advogados, aposentados, executivos, secretárias e boys aproveitava pra relaxar. “Vim de uma audiência, parei para me abastecer de coisas boas”, explicou o advogado Cláudio Oliveira de 46 anos. “A gente também se alimenta de música”, disse o contínuo Evandro de Moura, 23. “Esse é o verdadeiro público”, resumiu Ornellas.

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O verdadeiro público então, não se restringe aos seus pares músicos, mas se refere ao

grande público. Uma idéia que se aproxima de outra declaração do músico, desta vez para o jornal

O Estado de São Paulo, publicado em 1990, quando diz: Não se pode separar a música

instrumental do resto da música brasileira, esta demanda pela aceitação do trabalho desenvolvido

com fins para música instrumental não se limita a ser uma reivindicação de gênero, da tradição da

música popular brasileira, mas também uma reivindicação de público consumidor, buscando

expandir sua popularidade.

Apesar da crítica pouco efusiva em relação ao lançamento de Viagem Através de Um Sonho,

o disco foi premiado. Segundo Bourdieu, premiações de críticos são uma maneira de legitimação e

consagração da produção de determinado artista, como aconteceu no caso de Ornelas, descrito por

José Domingos Rafaelli para o jornal O Globo em 27 de julho de 1988:

Ganhador dos troféus Villa-Lobos (melhor disco instrumental de 79), (prêmio da associação brasileira de produtores de discos), Chiquinha Gonzaga (com o disco “Viagem Através de um Sonho”), premiado pela Associação Paulista de Críticos de Artes (como melhor instrumentista de 1983), entre muitos outros...

Entre os anos de 1984 e 1989, Nivaldo Ornelas lança dois outros discos, Som e Fantasia, ao

lado do pianista Marcos Resende; e Concerto Planeta Terra, projeto conjunto do músico ao lado de

Nelson Ayres, Márcio Montarroyos e Toninho Horta. Em comemoração aos 10 anos de lançamento

de seu primeiro disco, e consequentemente de sua carreira autônoma, o jornal O Globo noticia o

disco Portal dos Anjos como um pilar em sua carreira, conforme a citação:

A Séria MPBC e os shows da Funarte foram o marco inicial de um movimento de valorização e reconhecimento da música instrumental no Brasil. Ao longo dos últimos dez anos, o gênero consolidou seu público, como provam os vários festivais de música instrumental e os novos espaços criados para shows.

Apesar da lacuna a respeito dos lançamentos anteriores, o sexto disco de carreira do músico,

Colheita do Trigo, foi bem recebido pela imprensa, como na crítica assinada pelo jornalista Carlos

Calado para o jornal Folha de São Paulo de 04 de abril de 1990, onde este reforça as características

de autonomia e maturidade musical atingidos por Nivaldo: “Ornelas chegou àquele estado ideal, em

que pode exibir ao máximo toda sua técnica e sensibilidade nos próprios temas e arranjos que

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escreve”; o crítico também reafirma a “influência” do jazz americano na música do saxofonista:

Mesmo que o jazz tenha desempenhado um papel importante em sua formação (o sax furioso de John Coltrane o influenciou diretamente). Ornelas já definiu sua personalidade há muito tempo. Desde a faixa-título, que abre o disco, suas composições revelam melodias originais com arranjos que optam pelo lirismo.

A importância do saxofonista John Coltrane, sempre declarada por Ornelas, é exposta de maneira

flagrante quando o músico presta homenagem ao saxofonista americano em show no Rio de

Janeiro, conforme expõe a matéria do Jornal do Brasil de 20 de setembro de 1990:

JB – Por que homenagem especial a John Coltrane? Nivaldo – Ele tocava sax tenor, o mesmo instrumento que eu toco. Foi o meu inspirador, eu tocava clarineta e troquei de instrumento por causa dele e da música dele. No próximo dia 23, se não me engano, ele completaria 63 anos se fosse vivo. Coltrane gravou seu primeiro disco solo em 59 e eu li em uma revista especializada que estão comemorando nos EUA 30 anos da sua carreira solo. Pensei em fazer uma homenagem tocando quatro clássicos dele: Giant Steps, Mister PC, Central Park West e Naima. Vou mostrar o Coltrane compositor, mas vou tocar a música dele como eu acho que ela é, a atmosfera dele através de mim, que sou um músico brasileiro.

A referência do jazz americano transita no discurso de Nivaldo Ornelas como um tipo de

escola pela qual os músicos brasileiros tiveram de passar, e no caso específico dele, funcionou como

uma forma de desenvolver a técnica no instrumento:

Foi uma coisa que eu aprendi ouvindo muito jazz, né, que todo instrumentista tem uma marca muito forte de jazz, e eu quando comecei a frequentar o meio musical de Belo Horizonte era só o que se ouvia, e eu me liguei logo, fiquei ligado nisso muito tempo.

Esse processo de aprendizagem, mesmo que não tenha sido realizado dentro de uma

academia ou conservatório, tem a sua tradição na prática da oralidade, e funciona, assim como nos

métodos mais ortodoxos, como uma maneira de inculcação dos processos e características de

legitimação de um campo de produção autônoma, o que o distancia da inteligibilidade imediata do

grande público, como demonstra Pierre Bourdieu:

(...)enquanto que a recepção dos produtos do sistema da indústria cultural é mais ou menos independente do nível de instrução dos receptores (uma vez que tal sistema tende a ajustar-se à demanda), as obras de arte erudita derivam sua raridade propriamente cultural e, por esta via, sua função de distinção social, da raridade dos instrumentos destinados a seu deciframento, vale dizer, da distribuição desigual das condições de aquisição da disposição propriamente estética que exigem e do código necessário à decodificação (por, exemplo, através do acesso às instituições escolares especialmente organizadas com o fim de inculcá-la), e também das disposições para adquirir tal código (por exemplo, fazer parte de uma família cultivada). (Bourdieu, 1998, p.117)

Ao mesmo tempo em que a música realizada por Nivaldo Ornelas não é necessariamente

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produzida para a grande massa de consumidores, também não o é restrita a um círculo de pares-

produtores. Isto se torna claro quando tomamos os números de vendagens de alguns dos seus

discos, como os segundo e terceiro, À Tarde e Viagem Através de Um Sonho, respectivamente, como

apresentada em matéria do jornal O Estado de São Paulo, publicada no dia 29 de março de 1990 e

assinada por João Luiz Albuquerque:

O segundo foi A Tarde (1982)(...)Vendeu umas dez mil cópias e ainda hoje é encontrado nos lojas francesas. Depois, foi o independente Viagem Através de um Sonho, em 84. Vendi mais de 15 mil exemplares nos meus shows, e ele se pagou admiravelmente bem.

Ou ainda como revela outra reportagem, também do jornal no O Estado de São Paulo

publicada no mesmo ano de 1990, onde Nivaldo dá os números de vendagem do seu disco mais

recente à época, Colheita do Trigo:

Para Nivaldo Ornelas, o disco Colheita do Trigo – que vendeu 2000 exemplares em um mês – representa uma virada em sua carreira, já que encontrou uma gravadora disposta a “vender” e não a sucumbir ao preconceito de que música instrumental é feita apenas para “músicos”. Para comprovar sua tese, ele lembra que, no tempo de Pixinguinha e Jacob do Bandolim, a proporção entre música instrumental e a cantada era de 60 a 40%.

Como solução para a autonomia e sustentabilidade da produção longe das grandes editoras e

gravadoras, Ornelas é categórico:

Meu conselho: gravem seus discos independentes para vender nos shows. Em 85, na Ariola, gravei Sonho e Fantasia, lançado no mundo inteiro e uma das faixas acabou na novela Transas e Caretas. Participei ainda do disco Planeta Terra, patrocinado pela IBM, onde, num lado inteiro, regi uma orquestra sinfônica tocando uma composição minha.

Para Nivaldo Ornelas, portanto, a produção autônoma não só da música, mas de sua

divulgação foi fundamental para que o músico pudesse desenvolver uma carreira sólida como líder

de seu próprio trabalho, o que não impediu que o músico continuasse como profissional de estúdios,

emprestando o seu som para diversas gravações tanto de compositores da música instrumental,

como nomes já conhecidos da música popular brasileira como Edu Lobo e Dorival Caymmi, e

continuando a ser Milton Nascimento o artista com o qual mais gravou, totalizando 10 discos.

Outros cinco discos solo de Nivaldo Ornelas foram lançados a partir de 1997: As Canções de

Milton Nascimento, ao lado do pianista, tecladista e produtor musical Ricardo Leão; Arredores de

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1998, vencedor do Prêmio Sharp de melhor disco instrumental daquele ano; Aquarelas, A Música de

Ary Barroso, disco de Nivaldo Ornelas ao lado do guitarrista Juarez Moreira (1996); Viagem em

Direção ao Oco do Toco de 2007 e Fogo e Ouro, lançado em 2009.

3. Das Trilogias:

Erigida sua carreira autônoma, Nivaldo Ornelas tem se dedicado, desde então, a uma grande

variedade de realizações em música, seja como músico contratado – como exposto anteriormente –

seja como autor e intérprete de música instrumental, de trilhas sonoras, além de produzir, arranjar e

compor para formações de música de câmara, um trabalho ao qual vem se dedicando desde o início

dos oitenta e que, principalmente durante os últimos anos, tem se intensificado e tomando boa parte

da atenção do músico, como ele mesmo afirma (informação verbal):

Nivaldo – É, com certeza, com certeza, agora, eu tenho minha parte de composição um pouco descolada desse efeito mineiro aí, que talvez você não conheça. Um deles é a parte de música de câmera, câmara.

Bernardo – De música escrita. Nivaldo – Esse é o material maior que eu tenho na vida, esses discos que eu tenho é um sexto, um décimo, comecei em 82, então 26 anos, 27 anos, que são peças pra... falando peças parece que é alguma coisa do outro mundo, não é não, mas, é verdadeiro. De repente você vai olhar aqui e falar: Isso aqui é uma porcaria, né? Os outros vão embrulhar pão com isso aí. Mas tudo bem, está aí. Ou então, o cara vai embrulhar pão e aí o cara solfeja e diz: Poxa, mas isso aqui é bom, hem? Caramba! Mas aí já foi, né?

Nesta tese escolhemos um recorte das tantas atividades realizadas por Ornelas, sendo que,

fundamentalmente, nos dedicamos à identificação dos aspectos híbridos musicais presentes em suas

realizações como saxofonista e como autor inserido no contexto da música instrumental através de

sua produção fonográfica. Da totalidade de seus 11 discos, foram escolhidos como objeto desta tese

cinco em especial, que segundo o autor, integram duas trilogias, sendo que a segunda delas, até o

momento, está inacabada (informação verbal):

Nivaldo – Essa trilogia é “Portal dos Anjos”, “À Tarde” e “Colheita do Trigo”, é a primeira trilogia. Bernardo – É a primeira trilogia, portanto, tem mais uma outra, Nivaldo – É, tem a outra que começou com “Arredores”, Bernardo – Ah, ela ta em curso, Nivaldo – “Fogo e Ouro” e falta mais um. Eu tenho que fazer.

E sobre o mote da trilogia, o músico afirma (Ornelas, 2007):

A trilogia é um painel sonoro da minha infância e adolescência em Belo Horizonte, Minas Gerais.

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Impressões que ficaram gravadas definitivamente e viraram músicas. Coincidentemente, alguns artistas que participaram do trabalho – como Helvius Vilela, Wagner Tiso, Paulo Braga e Jamil Joanes – são desse tempo e, como eu, vivenciaram aquela época tão rica de um outro Brasil.

Vale ressaltar o uso do termo trilogia pelo autor, que etimologicamente pode se referir a uma

peça científica ou literária dividida em três partes, ou a um conjunto de três obras ligadas entre si

por um tema comum, como nos romances indianistas de José de Alencar, Iracema, Ubirajara e O

Guarani, que se ligam pelo tema, assim como as trilogias de Ornelas, que apesar de pensados neste

conjunto de obras, os discos também podem ser compreendidos como obras fechadas, autônomas,

referindo-se umas às outras por aquilo que o autor chama de painel sonoro de Minas Gerais. Dentre

os cinco discos já lançados, talvez seja o disco Arredores de 1998 que traz de maneira mais

declarada estas referências já nos títulos das músicas, como Folia do Jatobá, alusão ao Congado

que passava pelo bairro da Nova Suissa ou Bonde Amarelo, em referência aos bondes que

circularam em Belo Horizonte até o início dos anos 1960, e ainda Bom Pastor (a mais bela canção),

que durante a juventude do músico tratava-se de um asilo situado no alto do bairro natal de Ornelas,

hoje transformado em escola (informação verbal).

Nivaldo – Ali, a Nova Suissa era o seguinte. Em cima tem o Asilo Bom Pastor, você chegou a ver, não?

Bernardo – Que é uma escola hoje. Nivaldo – Onde é um colégio. Ali tinha uma missão alemã, que o...[sic] Sabe o que os padres faziam? Trazia todo aquele material de música de Bach e pá, pá, pá. Ensinavam as irmãs ali, as freiras, com órgão e tudo então era original, então era uma maravilha. Aquela missa cantada deles com aquele coro feminino, a missa de Fauré12.Aquilo matava, e eu criança, meu Deus do Céu, dava uma tristeza, vontade de chorar, mas era bonito pra caramba, então, ouvi isso.

Essas referências a símbolos de sua juventude em Minas Gerais não ocorrem somente neste

disco, mas em todos os discos de ambas as trilogias, outros temas como As Minas de Morro Velho,

Nova Suissa, Sábado à Tarde, Rua Genebra e Nova Lima Inglesa, por exemplo, também se referem

aos lugares de ligação afetiva do músico, referências de sua história.

Nesta seção, apresentaremos características de cada um destes cinco discos de carreira do

autor, e no Capítulo II são apresentadas análises de quatro composições presentes na primeira das

trilogias conceituais, sendo elas Nova Lima Inglesa do disco Colheita do Trigo de 1990; Nova

12 É possível que Ornelas estivesse se referindo ao Réquiem de Fauré.

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Suíssa, Sábado à Tarde do disco À Tarde lançado em 1982; Rock Novo outra composição presente

no disco Colheita do Trigo e por fim, Ninfas, música presente no disco de estréia do músico, Portal

dos Anjos de 1978 e inédito, até o momento, em CD.

3.1 Portal dos Anjos (1978):

Figura 2. Capa do LP Portal dos Anjos de 1978

Entre o final dos anos 1970 e o início da década seguinte foi lançada pela gravadora Philips

no Brasil uma série de discos intitulada MPBC (Música Popular Brasileira Contemporânea). Essa

coleção pôde lançar nomes ainda pouco conhecidos na produção de música instrumental daquelas

décadas. Músicos como Djalma Corrêa, Robertinho Silva, Nelson Ayres, Aécio Flávio, ou ainda

Túlio Mourão, puderam ser mais bem divulgados ao público consumidor de discos como

compositores dessa modalidade musical.

Nivaldo Ornelas se lançou na, hoje ainda, insipiente indústria de música instrumental no

Brasil através dessa série da Philips. Em seu disco de estréia, o músico contou com a participação

de uma infinidade de “parceiros”, colegas de profissão, sendo que boa parte deles o acompanhava

desde os tempos do Edifício Archângelo Maletta. Dentre os músicos que participaram da gravação

do disco estão: os pianistas Hélvius Villela e Wagner Tiso; o violonista e guitarrista Toninho Horta;

os bateristas e percussionistas Pascoal Meirelles, Paulinho Braga, Robertinho Silva, Chacal, Chico

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Batera e Ubiratan; Jamil Joanes, no baixo elétrico; Luís Alves no baixo acústico; Márcio

Montarroyos no trompete e flugellhorn, além de um naipe de flautas que contava com: Mauro

Senise, Zé Carlos, Cacau, Raul Mascarenhas, Ricardo Pontes e Jairo Lara, este último, saxofonista e

flautista residente em Belo Horizonte e parceiro de Ornelas na música Cidadela, incluída no

referido disco. Incluem-se também participações de quarteto de cordas composto por José Alves e

Aizik nos violinos; Frederick na viola e Watson Clis, seu antigo colega da Escola de Formação

Musical de Belo Horizonte, no violoncelo, além de coros infantil e adulto misto sob regência de

Jacques Morelenbaum.

Portal dos Anjos foi vencedor do prêmio Villa-Lobos do ano de 1978, dado pela Associação

Brasileira dos Produtores de Disco. O álbum apresenta oito músicas inéditas e todas, composições

do músico, sendo que três delas em parcerias: As Minas de Morro Velho, composta juntamente com

Cid Ornellas, seu irmão; Portal dos Anjos, com Roberto Fabel e Cidadela, já citada, juntamente

com Jairo Lara. O disco inicia com As Minas de Morro Velho, uma referência à mina de ouro

localizada na cidade de Nova Lima, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte e local onde

Ornelas passava férias durante a infância; seguem-se Portal dos Anjos; Arqueiro do Rei e Ninfas,

que encerra o lado A. No lado B consta a seguinte ordem: Querubins e Serafins; Sorrisos de Uma

Criança; Cidadela e O Que Há de Mais Sagrado.

Nesse disco de estréia podemos perceber, tanto pelo título do disco, Portal dos Anjos, quanto

por boa parte dos títulos das composições, uma recorrência a uma temática religiosa, mística,

sobrenatural, onde figuras de anjos, querubins, serafins, ninfas e o sagrado compõem um cenário

onírico indicando uma produção possivelmente voltada para a sua intimidade, seu lado intuitivo e

contemplativo. Esta estética, aliás, pode ter surpreendido boa parte dos ouvintes que

acompanhavam anteriormente o trabalho de Ornelas, já que como característica fundamental desse

trabalho - e veremos uma recorrência dessa postura na descrição dos próximos quatro discos - o

músico não propõe um disco do virtuose saxofonista, mas sim, do compositor e arranjador no qual a

sua participação como instrumentista é colocar-se como um músico a mais o lado dos demais. Essa

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postura diferencia enormemente aquilo que o músico até então vinha fazendo como participante no

trabalho de outros artistas, bem como do automatismo e mecanicismo dos arranjos e composições

de encomenda. Quanto à opinião pessoal do autor em relação ao seu disco de estréia, ele comenta:

Bernardo – o “Portal dos Anjos”. Nivaldo – É. Eu gosto muito. Eu gosto do conceito dele. Que é meio um painel de Minas Gerais pra mim, do que eu vivi, né? Um painel mesmo, vai de A a Z aquilo ali, né? Sabe? Aqueles sons de criança, de música religiosa, de congado, de ã...Aquilo tudo eu vivi, eu não pesquisei aquilo, porque tem o sujeito que pesquisa, né?

Ornelas nos revela, na citação, sua relação com as práticas musicais de seu bairro, os laços

vicinais que constituíram o dito painel sonoro do lugar em que foi criado, tendo tido uma

experienciado essas práticas como um nativo dessas realizações, fosse integrando o cortejo do

Congado do Jatobá, que passava pelo seu bairro natal, ou nas Folias tocando sanfona, bem como ao

presenciar seus pais tocando e cantando um repertório identificado com o das serestas, ou ainda

como ouvinte dos coros do Covento Bom Pastor. Portal dos Anjos, como idealizado pelo autor, trata

dessas referências e do olhar pessoal do músico sobre essas impressões.

3.2 À Tarde (1982):

Figura 3. Capa do LP e CD À Tarde, de 1982.

Lançado em 1982 pelo selo independente francês Syracouse, À tarde foi gravado no Rio de

Janeiro entre novembro de 1980 e maio de 1981 e inédito no Brasil até seu recente lançamento em

CD, em 2007, em uma compilação dupla juntamente com outro disco de carreira de Ornelas,

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Viagem Através de Um Sonho de 1983, mas que segundo o autor, não faz parte das Trilogias citadas.

À Tarde é o segundo disco de carreira de Ornelas e o segundo disco da primeira das trilogias

temáticas do autor, sendo que o CD conta com 10 faixas, sendo uma delas, João Rosa, uma faixa

extra, presente somente nessa nova edição. A referida música é uma canção com letra de Murilo

Antunes e foi trilha sonora do filme homônimo de Helvécio Ratton, ganhador do Festival de

Brasília de 1984. As outras músicas do disco são: Nova Suissa, Sábado à Tarde; composição de

Ornelas que é um dos objetos de investigação desta tese, que tem em seu título a referência ao seu

bairro natal, a Nova Suissa; Cactus vem em seguida. Nessa composição, Ornelas explica no encarte

do disco que desenvolveu o tema sobre ao compasso de 7/4 como uma referência ao trabalho do

pianista Dave Brubeck (1920 -); um dos principais ícones do jazz nos tempos do Berimbau Clube,

reconhecido principalmente através do disco Time Out, de 1959, no qual eram utilizados compassos

não usuais ao jazz até então, como 5/4, 12/8 e o 7/4 já mencionado. A terceira faixa é Viagem

Através de Um Sonho I; e também conforme explicação presente no encarte do CD À Tarde, foi

composta dentro do estúdio, demonstrando um espírito colaborativo presente no trabalho do músico

e representante, talvez, de uma práxis comum aos músicos de música instrumental principalmente

daquela geração, onde as figuras de compositor, arranjador e instrumentista se misturam e a relação

entre produto e processo, ou seja, entre o resultado da obra musical e de sua performance estão

intimamente ligados. O título dessa música veio a ser utilizado como o nome de outro disco de

Ornelas, lançado em 1983. Amanhecendo é a quarta faixa, composta em parceria com o pianista

Marcos Resende; completam o disco as faixas Lascívia; Los Angeles; Viagem Através de Um Sonho

II; Entardecer, composição de Joseph Engel e Variações Sobre Sorrisos de Uma Criança, uma

releitura do tema Sorrisos de Uma Criança composta por Ornelas e presente em seu disco de

estréia: Portal dos Anjos.

Uma série de músicos participou das gravações de À Tarde, alguns deles já havia participado

das gravações de seu disco de estréia, como os pianistas Wagner Tiso e Hélvius Vilela, bem como o

baterista Paulo Braga, o baixista Jamil Joanes e os flautistas e saxofonistas Ricardo Pontes e Mauro

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Senise, mas em sua maioria, Ornelas convidou outros músicos para fazerem parte do álbum, casos

de: Alex Malheiros, contrabaixo; Grupo Viva Voz, os pianistas e tecladistas: Marcos Resende,

André Dequech, Edu Mello e Souza e Reynaldo Arias; Paulo Guimarães na flauta, os guitarristas

Luizinho Maia e Ricardo Silveira, os percussionistas Cidinho, Bolão e Márcio; além do

violoncelista Cid Ornellas, irmão de Nivaldo.

3.3 Colheita do Trigo (1990):

Figura 4. Capa do LP Colheita do Trigo de 1990.

Plantado o gérmen da música instrumental nos idos dos anos 1960 no Berimbau Clube,

Nivaldo Ornelas colhe os frutos de um trabalho autoral iniciado em 1978 com o lançamento de

Portal dos Anjos. De características multifacetadas, o disco Colheita do Trigo, lançado em 1990,

encerra a primeira de duas trilogias, esta iniciada com o disco Portal dos Anjos (1978), seguido de

À Tarde (1982); e a segunda, ainda não concluída, foi iniciada em 1998 com o disco Arredores,

seguido de Fogo e Ouro de 2009.

O título do disco e da música Colheita do Trigo gravado em 1990, remete a um símbolo

profundamente ligado à história da humanidade, que é o de se plantar e colher o trigo, símbolo de

alimento, do corpo e da alma, no mundo judaico-cristão. Esta referência imagética da colheita pode

ser relacionada ao processo de amadurecimento do músico, Nivaldo Ornelas, onde a ideia criada em

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torno deste ciclo se refere a algo que foi plantado, regado, adubado, cuidado, até que é chegado o

momento de sua colheita, que também traz em si uma imagem da comunidade do espírito gregário e

colaborativo do fazer musical, principalmente em práticas ligadas à música instrumental e ao jazz.

Como metáfora ao tema proposto, podemos aludir o título do disco de Ornelas ao jargão

nesta terra em se plantando tudo dá numa referência ao processo de hibridação e o terreno fértil

para o plantio no Brasil, afinal de contas, mesmo o trigo não sendo um grão natural do país, planta-

se e produz-se trigo no Brasil, bem como um sem número de árvores frutíferas que podem parecer

tão brasileiras, como as bananeiras, as mangueiras ou os coqueiros, mas que são plantas exóticas à

flora nacional. Assim também ocorre com estes gêneros musicais que há séculos tem suas sementes

jogadas em meio à efervescência cultural nacional e germinam de maneira muito própria o híbrido

em nossa música, desde a polca às marchas militares, passando pelo jazz e gêneros musicais

contemporâneos, como afirma o próprio Canclini, ao se referir às primeiras investidas de Mendel na

botânica:

Desde que, em 1870, Mendel mostrou o enriquecimento produzido por cruzamentos genéticos em botânica, abundam as hibridações férteis para aproveitar características de células de plantas diferentes e melhorar seu crescimento, resistência, qualidade, assim como o valor econômico e nutritivo de alimentos derivados delas.

(Canclini, 1997, p. XXI)

Neste LP, Nivaldo Ornelas apresenta oito composições de sua autoria, sendo o disco iniciado

com a música título, Colheita do Trigo, de composição do autor em parceria com André Dequech,

seguindo no lado A do fonograma, encontram-se as músicas Sentimentos Não Revelados, com

participação de Milton Nascimento; Nova Lima Inglesa e Sorriso de Criança, música anteriormente

presente no seu disco de estreia Portal dos Anjos e aqui regravada. O lado B do LP inicia com Rock

Novo, seguida de Adeus à Infância, composição do tecladista Pierre Luc Vallet, seguida de Cello

Romanceado e 12 de Outubro, ambas as composições de Ornelas.

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38

3.4 Arredores (1998):

Figura 4. Capa do CD Arredores

Exatamente vinte anos após o lançamento de seu primeiro disco autoral, Nivaldo Ornelas

revisita a temática anteriormente instaurada através de uma segunda trilogia sobre o que o autor

chama de paisagem sonora de Minas Gerais. Arredores é o oitavo disco de carreira do autor e foi

vencedor do Prêmio Sharp de 1998, o disco, em seu encarte, apresenta uma boa descrição das

músicas sob o olhar de seu compositor. Nele, Ornelas volta a abordar tematicamente ícones de sua

infância e juventude em Belo Horizonte. O próprio nome das músicas evidencia esse tipo de

retórica, casos de Folia do Jatobá, Celeste Império e São Domingos do Congado, referências aos

cortejos das Folias e Congados que circundavam seu bairro, a Nova Suissa, e adjacências. As

imagens da cidade e de seus hábitos permeiam o disco que foi gravado em Belo Horizonte e contou

com músicos que fundamentalmente atuam ou atuavam na capital mineira naquela época, dentre

eles: André Dequech, piano e teclado; Belo Lopes, violão; Ivan Corrêa, baixo; Lincoln Cheib,

bateria; Odlavin Salenro, acordeão; Sérgio Silva, percussão; Wilson Lopes, viola de 10 cordas e

violão; Mário Castelo, percussão e Ricardo Cheib, percussão, excedem a esta regra Mayo Ângelo

Ornelas, seu filho, tocando cavaquinho e Nailor “Proveta” Azevedo no clarinete. Participam

também do disco como convidados: Maurício Tizumba, Paula Santoro, Sérgio Santos, Vanessa

Falabella, Vânia Bastos, Cid Ornellas, Juarez Moreira e Kiko Mitre.

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39

Essa preocupação em convidar músicos mineiros para participar das gravações de Arredores,

além de ter gravado o disco em Belo Horizonte, parece ter sido intencionalmente realizada com fins

para diferenciar as chamadas trilogias do resto de sua produção, sendo esta intimamente relacionada

com a sua história pregressa em Minas, tendo na expressão “arredores” utilizada como título deste

trabalho uma citação às cercanias da cidade, dos subúrbios e das cidades da região metropolitana da

capital, locais de seu convívio. O título desse disco, também alegoriza bem a produção em música

instrumental por ele realizada, já que são percebidas diversas referências não usuais à produção

ordinária nessa modalidade, como dos congados, folias, modinhas, canções, inferências que

parecem fazer com que o autor lide com características fronteiriças das realizações nessa

modalidade, confrontando seus limites e dialogando com o que está ao redor dela, tendo como um

de seus produtos realizações híbridas dos materiais musicais utilizados.

3.5 Fogo e Ouro (2009):

Figura 5. Capa do CD Fogo e Ouro: 2009.

Dando continuidade à sua segunda trilogia temática, Ornelas lança em maio de 2009 o disco

Fogo e Ouro, lançamento independente e que teve como músicos participantes os pianistas e

tecladistas Delia Fischer, Hélvius Vilela, Mú Carvalho, Ricardo Leão e André Dequech; os

violonistas e guitarristas Juarez Moreira, Luis Brasil e Luis Meira; os baixistas Kiko Mitre e

Marcelo Camargo Mariano; os bateristas e percussionistas Esdra Ferreira (Neném), Sérgo Silva,

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40

Adriano Trindade, Cláudio Infante e Sidinho Moreira; os cantores Carla Villar, Patrícia Vilches, Ana

Zingone, Paulinho Soledade, Ana Zinger e Cid Ornellas. Participaram ainda, Mayo Ângelo Ornelas,

no cavaquinho e banjo, e os saxofonistas Ricardo Serpa, saxofone soprano, Henrique Band,

saxofones soprano e barítono e Cléber Alves, saxofones soprano e tenor.

Das composições presentes no disco, todas são composições de Ornelas, exceto Rua Java e

Diminuto, de Helvius Vilela, e Invenção nº1 de J.S.Bach. Esta peça, escrita inicialmente para

instrumentos de teclado, é realizada na flauta solo e serve como introdução a outro tema de Ornelas

intitulado Barra-Ponto. O disco começa com uma regravação de Nova Lima Inglesa, música

registrada inicialmente no disco Colheita do Trigo de 1990, seguem-se Rua Java, já citada, música

de Helvius Vilela desenvolvida sobre, basicamente, os compasso de 5/4 e 6/8, com Ornelas tocando

saxofone soprano e que reveza a melodia da música com os vocais de Patrícia Vilches; na sequência

do disco estão Maracajú e D’Areia, ambas as composições de Ornelas. Outras referências a Belo

Horizonte e especificamente ao bairro da Nova Suissa aparecem em outros títulos, como em Rua

Genebra e Rua Zurique, que juntamente com a Rua Java, cita ruas do bairro natal de Ornelas. Em

seguida é apresentada Fogo e Ouro, composição dividida em três movimentos intitulados O Clarão,

O Brilho e A Força. O primeiro movimento, O Clarão, é apresentado como uma introdução à

música, mas já revelando o tema a ser desenvolvido, realizado pelo saxofonista Ricardo Serpa no

soprano. O Brilho começa com o desenvolvimento do tema anteriormente apresentado, onde é

entoado por Cid Ornellas, que é logo seguido por A Força, último desenvolvimento temático, desta

vez sobre um compasso de 7/4.

Constam ainda Preludir, Diminuto, um samba de Helvius Vilela, e encerrando o disco, a

Invenção nº1 de Bach seguida de Barra-Ponto. Quanto à peça de Bach, no contexto da performance

de Ornelas esta parece se revelar muito mais como um estudo voltado para o desenvolvimento

técnico da flauta transversal. Ornelas diz ter entrado em contato com o repertório do compositor do

barroco alemão ainda no período que tocava com Hermeto Pascoal no início dos ’70 em São Paulo

(informação verbal):

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41

Nivaldo – Toco tudo de cor porque estudei. Mesmo. Lá atrás quando eu tocava com o Hermeto, eu estudei isso. E eu tenho uma gravação hoje e tem 40 dias que eu não pego na minha flauta. É muito. Eu tenho gravina hoje.

Bernardo – É, né? Isso seria ... parte do seu estudo contínuo? Tocar Bach, por exemplo? Nivaldo – É, passei a vida fazendo isso. Depois passava pro sax.

Na versão aqui apresentada, a Invenção bachiana aparece acompanhada de uma levada de

folia, que segundo consta no encarte do CD, foi desenvolvida por Sérgio Silva e Esdra Ferreira,

provavelmente dentro do estúdio, e que serviu de ponto de partida para que Ornelas aplicasse e

desenvolvesse suas idéias.

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42

CAPÍTULO II – ANÁLISES

O capítulo que aqui iniciamos busca expor uma série de análises referentes a quatro

composições de Nivaldo Ornelas distribuídas em três de seus discos de carreira, a primeira de duas

trilogias temáticas desenvolvidas pelo autor que tratam do painel sonoro de Minas Gerais. Os

apontamentos aqui realizados trancendem a lógica retilínea e planificada dos grandes modelos

analíticos e buscam trazer à tona analogias, justificações e comparações dos fenômenos musicais

selecionados a partir de uma série de referências para a sua observação, evitando-se, nesse percurso

analítico, apresentar de maneira meramente descritiva, determinados recortes musicais dispostos

através de fórmulas analíticas pré-determinadas, mesmo estando a grande maioria dessas

observações atreladas a procedimentos e ao léxico utilizado na análise com vistas para a música

popular, mais propriamente do jazz e da música brasileira. Essas discussões também foram cruzadas

com a própria literatura musical dos universos que permeiam as referências de Ornelas,

estabelecendo um elo entre os estudos em música com a teoria de hibridação cultural apontada por

Canclini, como sugere o autor:

É necessário demolir esta divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente: a história da arte e a literatura que se ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva. Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam estes pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente. (Canclini, 2001, p.19):

As análises aqui dispostas buscam, de maneira específica, tratar do fenômeno de hibridação

em seu viés musical através da identificação das estruturas discretas que o constituem, onde são

identificadas questões de estruturação e organização dessas realizações, sejam referentes à forma,

uso de materiais harmônicos, instrumentação, seções rítmicas, além das próprias questões

interpretativas, propondo estabelecer uma abordagem metodológica intermodal, como contido na

citação, das ciências sociais nômades, sendo utilizadas fontes teóricas de diferentes linhas

investigativas dentro da musicologia para abordar o tema e as composições analisadas de maneira

não hierarquizada, mas horizontalmente e obliquamente.

Haja vista que boa parte da música realizada pela modalidade musical conhecida por música

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instrumental carece sobremaneira de registros escritos de suas realizações, é imprescindível que

para a apreensão dos elementos musicais que as constituem, lancemos mão do procedimento

conhecido por transcrição musical, extraídos, nesse caso, a partir de seus registros sonoros contidos

em discos. A primeira distinção importante a ser feita sobre o termo transcrição musical decorre de

atribuições distintas da expressão. Segundo o New Grove Dictionary os Music and Musicians em

seu verbete sobre o termo, este é tido como uma subcategoria de notação sendo utilizada como um

recurso de escrita para a adaptação de peças para outras formações instrumentais que não às de

origem, como por exemplo, a redução da grade de orquestra para uma parte de piano ou ainda a

notação de uma peça escrita no formato de tablatura para o pentagrama. Diferentemente da

aplicação do termo transcrição musical citada neste parágrafo, utilizamos nesta tese a aplicação do

referido termo mais próxima de sua herança etnomusicológica: Na transcrição etnomusicológica, a

música é escrita a partir de uma performance ao vivo ou de um registro gravado, ou é transferida

do som para uma tipo de registro gráfico a partir de meios elétricos ou mecânicos.

Segundo Ribeiro (apud Maranesi, 2007, p.02) este tipo de prática se instaurou em

conformidade tanto junto dos etnomusicólogos quanto dos praticantes de música popular:

(...) a transcrição, que tem a ver com a escrita de sons musicais, há muito tem sido considerada um requisito universalmente aplicado na metodologia etnomusicológica. Este método provê informações objetivamente quantificáveis e analisáveis, que forneceram uma base sólida para a etnomusicologia validar-se como disciplina científica.

Uma partitura de música popular, seja ela da música instrumental brasileira ou de jazz,

consta normalmente de um pentagrama único onde se encontram grafadas a melodia da música

juntamente da cifragem de seus acordes, e, quando houver, a letra da canção. Esta partitura é

conhecida genericamente pelo termo inglês leadsheet13 (partitura guia), onde tanto a melodia da

música quanto a sua harmonização podem sofrer importantes alterações a cada nova realização.

Para que tenhamos um retrato mais fiel das realizações musicais contidas nas gravações aqui

consideradas, a maneira mais coerente e ampla de realizar a grafia do gênero é através da chamada

13

Leadsheet, o tipo de partitura mais comum na música popular, geralmente inclui apenas a melodia e os acordes simplificados na forma de cifras e, algumas vezes, detalhes rítmicos (“convenções”) ou de instrumentação (Fabris, Borém, p.05, 2005)

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transcrição nota a nota do registro gravado, como afirma Elenice Maranesi:

Situação semelhante pode ser vista também no campo da música popular, onde as transcrições são tradicionalmente utilizadas, em particular nos campos do ensino e da prática performática. Neste terreno, o conceito de transcrição é entendido como o registro, em notação musical tradicional, de performances executadas em gravações ou em apresentações ao vivo. Na maioria das vezes, o formato adotado para essa finalidade, é o da transcrição literal, conhecida no meio editorial popular como transcrição "nota a nota”, aquela que registra minuciosamente, através da escrita musical clássica, todos os parâmetros musicais básicos nas peças transcritas. (Maranesi, 2005, p.02)

As edições de transcrições de solos de músicos de jazz nos Estados Unidos é algo que pode

ser considerado corriqueiro, já que iniciativas dessa ordem são praticadas desde pelo menos os anos

1960, e se tornaram importantes ferramentas para a consolidação e difusão dos estudos em jazz,

como cita Gimenes:

Também de 1962 é a associação com a editora The Richmond Organization, que controla a maioria de suas composições originais. Judy Bell, o editor da TRO envolvido com as publicações de Evans, comenta que ele era cuidadoso sobre como as transcrições deveriam ser feitas e que eram publicadas unicamente com a sua aprovação. Muitos dos arranjos para piano foram escritos pelo próprio Evans. (Gimenes, p. 19, 2003)

No Brasil, mesmo ainda não sendo habitual a publicação de transcrições de improvisos, ou

de realizações em música popular, a prática da transcrição é algo que está intimamente ligada ao

estudo do jazz, e da música popular de um modo geral pelos músicos brasileiros, como na

experiência do próprio Nivaldo Ornelas, que sempre lançou mão dessa técnica para o seu

desenvolvimento musical, como podemos observar na declaração do músico no trecho de entrevista

realizada em abril de 2009 e transcrito a seguir (informação verbal):

Bernardo – E ensaio? Então rolava muita música, os ensaios deviam ser longos. Eram encontros musicais?

Nivaldo – Eram encontros. Não tinha ensaio. Bernardo – Ficavam tocando? E improvisava? Nivaldo – Tirando do disco, né? Ia pra casa de não sei quem tirar o disco. Bernardo – Tirar o disco.

Estudos recentes sobre a música popular e suas características de ensino e aprendizagem têm

buscado demonstrar a validade da prática de se tirar de ouvido como um procedimento analítico e

de desenvolvimento do conhecimento musical, prática esta já consagrada e legitimada pelos

músicos de música popular, tanto do jazz, quanto da MPB, rock e do pop, como observado, por

exemplo, na declaração de Ornelas, supracitada, bem como em trecho da tese de doutorado Sobre

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Harmonia: Uma Proposta de Perfil Conceitual de Fábio Adour da Camara:

Nos últimos anos, essa forma de aprendizado vem recebendo especial destaque em diversos trabalhos que se dedicam à Música Popular e às diversas maneiras de aprendê-la. O “tirar de ouvido” foi muito enfatizado, por exemplo, por Heloísa Feichas em sua tese de doutorado, “Formal and Informal Music Learning in Brazilian Higher Education” (2006), trabalho que anteriormente citamos e que, por sua vez, se fundamenta no importante “How Popular Musicians Learn: A Way Ahead For Music Education” (2002) de Lucy Green. (Camara, 2009, p.55)

Mesmo podendo ser considerado o meio mais coerente para se grafar o fenômeno musical

em música popular, a escrita é tão somente uma ferramenta na qual nos apoiamos para que

lancemos mão de métodos de análise tradicionais, baseados na observação das representações

gráficas de sua realização, ainda sendo a fonte sonora – gravações ou realizações ao vivo – o

material insubstituível para um entendimento global deste tipo de prática, já que, diferentemente das

composições em música erudita, boa parte das decisões realizadas pelos intérpretes em música

popular não é prevista na partitura, que, grosso modo, são de melodias cifradas e certamente, suas

performances não são feitas com o intuito de serem notadas em partitura, e mesmo quando escritas,

o grau de simbiose entre composição e a interpretação é tamanha que a escrita tradicional - em

pentagrama - limita sobremaneira tanto o registro de dados rítmicos, principalmente quando os

intérpretes lidam com um alto grau de liberdade interpretativa, características inerentes à realização

em música popular e que estão intimamente ligadas, por exemplo, a rallentandos, cedendos,

accellerando, características estas relativas à agógica14, bem como nos usos dos artifícios

dramáticos tais como vibratos, glissandos e portamentos, ou quando adentramos as questões das

variáveis que delimitam a chamada sonoridade, ainda sem falar nas minúcias e meneios das

infinitas formas de articulação. Antevendo essas limitações, é recomendável que o leitor acompanhe

as transcrições e suas análises apresentadas nesta tese concomitantemente à audição das gravações

aqui citadas (que se encontram anexadas em formato de CD de áudio).

Outro agravante em relação à transcrição musical em música popular - relativo

fundamentalmente às gravações realizadas em estúdio a partir dos anos 1960 - se refere às

14

Segundo o Grove Dictionary of Music and Musicians, o termo agógica se refere a: Uma qualificação de expressão e particularmente acentuação e acento. A qualificação concerne em variações de duração além de intensidade e de dinâmica. A qualification of Expression and particularly Accentuation and Accent. The qualification is concerned with variations of duration rather than of dynamic level..

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características da gravação em overdub. Esta técnica de gravação foi possível a partir de

incrementos técnicos advindos principalmente do desenvolvimento da gravação multipistas, em

canais separados. Nela, diferentemente das gravações ao vivo, realizadas em tempo real, pode-se

gravar instrumento a instrumento separadamente, de modo a fazer uma montagem de várias

performances simultaneamente, sobrepondo uma série de realizações. Depois de gravadas, as várias

linhas instrumentais são submetidas a uma mixagem, onde estes sons são misturados e como

produto tem-se a realização de uma música que, bem da verdade, nunca foi de fato tocada. As

gravações presentes neste estudo são, em sua maioria, realizações dessa natureza, onde há uma

sobreposição de performances, por vezes do mesmo músico, e que principalmente no caso dos

instrumentos harmônicos, são dificilmente distinguíveis separadamente, e em alguns momentos

soam simplesmente como uma grande massa sonora. Essa característica dificulta, e em alguns

momentos até inviabiliza, o sucesso do transcritor que se vê obrigado a simplificar a grafia de

determinados voicings15 indicando apenas a cifra dos acordes e, se tanto, os ritmos ali presentes. As

gravações em estúdio são também argumentadas pelo musicólogo Nicholas Cook, que em seu texto

Entre o processo e o produto: música e/enquanto performance declara:

Mas é no caso das gravações que produto e processo se entrelaçam mais extremadamente. A gravação (um produto comercial) afigura-se como traço de uma performance (um processo), mas, na realidade, consiste geralmente de um produto composto de vários takes, e do processamento do som, em diferentes graus de elaboração - em outras palavras, não é propriamente um traço, mas sim a representação de uma performance que, na realidade, nunca existiu. E, à medida que as gravações cada vez mais substituem as performances ao vivo como paradigma para a existência da música, chegamos mais perto da “nova realidade sonora” de Chion, que citei acima como sendo a mais pura forma de música enquanto processo. Todavia, o ponto de vista de Chion é que não há mais uma distinção entre apresentação e representação, o que significa que faria igual sentido descrever a gravação como sendo a forma mais pura de música enquanto produto. Levado a este limite, o conceito de performance, na personificação da tradição da MEO, perde sua substância. Processo e produto, assim, não se configuram tanto como opções alternativas, mas como fossem complementares do trançado que chamamos de performance.

(Cook, 2006, p.14)

A discussão do autor gira em torno do entendimento da relação entre texto musical,

identificado por Cook como script, justificando o fato de que há uma negociação entre a notação da

obra e sua realização com um grupo de músicos; e a interpretação – performance – da mesma,

sugerindo que a realização musical se dá em uma instância entre os dois preceitos. A discussão

15 O termo voicing se refere à maneira como as notas constituintes de um acorde são dispostas em um instrumento

harmônico, incluindo inversões de baixo e suas conduções.

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instaurada por Cook não será aqui objeto de especulação, mas a citação anterior é utilizada no

sentido simplesmente de justificar a análise de gravações em estúdio, compreendendo-as como um

outro tipo de fenômeno, mas igualmente válido. No caso de Nivaldo Ornelas, o fato das gravações

de suas músicas terem sido realizadas por ele, exercendo assim as funções de compositor e

intérprete, além de ter sido mediador da realização dos outros músicos do grupo, haja vista que a

tradição da música instrumental prevê grande liberdade para todos os músicos envolvidos durante

sua performance, podendo o entendimento da prática de improvisar ser estendida para diferentes

níveis além dos solos. Nesse sentido, a realização em música popular de um modo geral é

conseqüência de um processo altamente colaborativo, mesmo quando realizado em estúdio nos

moldes de uma gravação multipistas, como discutido anteriormente. Néstor Garcia Canclini

também trata do assunto ao falar sobre o espírito de coletividade presente nas realizações musicais:

Desde que as tecnologias mais avançadas intervêm criativamente no registro e reprodução da arte, a fronteira entre produtores e colaboradores se torna mais incerta: o engenheiro de som efetua as montagens de instrumentos gravados em lugares separados, manipula e hierarquiza eletronicamente sons produzidos por músicos de diversas qualidades. Ainda que Becker sustente que o artista pode ser definido como “a pessoa que desempenha a atividade central sem a qual o trabalho não seria arte”, dedica o maior espaço de sua obra a examinar como o sentido dos fenômenos artísticos são construídos num “mundo de arte” relativamente autônomo, não pela singularidade de criadores excepcionais, mas sim pelos acordos gerados entre muitos participantes. (Canclini, 2001, p. 38-39)

De todo modo o que se busca com estas análises é a validação do fenômeno de hibridação

anteriormente proposto, sendo assim, estas são realizadas de modo a apontar recortes dos usos de

elementos a princípio conflitantes em uma estética musical relacionada à modalidade de música

instrumental sem seguir necessariamente uma cartilha analítica, onde o mesmo modelo analítico

seria supostamente replicado para cada uma das quatro composições. Muito mais do que apontar

estas reiterações, mesmo que ocasionalmente isto ocorra, estas análises se prestam a identificar o

que há de exceção nestes usos, apresentando recortes pertinentes do fenômeno proposto frente a

uma multiplicidade de referências musicais em um repertório que visa ser abrangente em distintos

estilos e períodos e representativo da produção do autor em questão.

Especificamente em relação à Ornelas, as referências musicais por ele assumidas ou

percebidas apontam para maneiras e tipos de cruzamentos tais como os experimentados no Clube da

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Esquina. No caso dele, o lugar de onde veio, o bairro da Nova Suissa em Belo Horizonte, é um

retrato deste tipo de imbricação16. Meio urbano, meio rural, nem tanto ao centro da cidade e nem tão

distante dela, o subúrbio pode ser considerado uma esquina redimensionada, onde as referências do

mundo urbano, como seus modismos, a valorização dos bens de consumo, e até os estrangeirismos

do mundo globalizado, convivem com a presença inequívoca das referências do interior, do Brasil

rural, onde a religiosidade e a família (ou comunidade) constituem os pilares das relações sociais

representadas, por exemplo, pela Igreja ou por ritos e festividades populares como as Folias ou

Ternos de Reis17 e o Congado18, bem como práticas de música popular ligadas às Serestas19 e às

cantigas de roda, mas que se contrapõem e complementam com as informações estrangeiras,

globalizadas, da cultura de massa, no caso de Ornelas, do jazz e do rock.

Relativo aos autos das Folias e Congados, estes não se restringem à música ali presente, mas

a um rito que envolve um cortejo rigorosamente organizado, baseado em uma tradição que não será

16

Nova Suissa, escrito assim mesmo, com dois esses, diferentemente de Suiça, grafia também aceita para o bairro, mas que tem na referência de seu nome a Baleira Suissa, tradicional loja de doces, já extinta, e que se localizava na Rua da Bahia, centro da cidade e polo da boemia belo-horizontina de até meados do século XX. O terreno do atual bairro pertencia ao dono da doceria, que loteou a área, nos arredores do plano urbanístico original de Belo Horizonte.A partir dos anos 1920 surgiram as primeiras casas, e antes mesmo de sua urbanização o bairro já se punha de pé. O período de forte desenvolvimento do local ocorreu durante o governo de Juscelino Kubitschek, nos anos 1940, quando JK foi prefeito da capital mineira, período da construção da Pampulha e da implantação da Escola Técnica Federal de Minas Gerais na Nova Suissa, impulso decisivo na constituição do novo bairro. Nessa época, entre os anos 1940 e 1950, infância de Ornelas, o bairro de subúrbio ainda era um esboço do que é hoje.

17 O auto conhecido por Folia, pode ser identificado basicamente como Folia do Divino (em referência ao Divino Espírito Santo) ou à Folia de Reis (Santos Reis Magos), sendo esta segunda também identificada por Terno de Reis, o qual é referido por Luis da Câmara Cascudo (2008, p. 675) como: Folguedo pertencente ao ciclo natalino, introduzido pelos portugueses e encontrado em todo o Brasil, com suas variantes regionais. É constituído por grupos exclusivamente masculinos de músicos e cantadores que percorrem as ruas das cidades, os sítios e fazendas, geralmente entre 20 de dezembro e 6 de janeiro, comemorando o nascimento de Cristo e cantando em louvor do Deus Menino. Faz parte desse roteiro a visita às casas, de acordo com um andamento previamente determinado, que consta de chegada, pedido de licença (para entrar), agradecimento (pela esmola ou comida recebida) e despedida.

18 Para uma melhor compreensão e delimitação do termo Congado, utilizo aqui o termo tal qual LUCAS (1999, p.7): As particularidades e as transformações ao longo do tempo acabaram levando a diferenças de uso e sentido envolvendo os termos Congos, Congados e Reinados. Mário de Andrade lembrou que Congos, Congada ou Congado, Cucumbi e Maracatu eram originalmente uma mesma coisa, todos nascidos dos cortejos de coroação de reis. Na década de trinta, Andrade apresentou vários argumentos para demonstrar que Congos e Congadas representavam a mesma manifestação, embora comente que Câmara Cascudo, em 1929, já alertava para que os Congos não fossem confundidos com a Congada sulista. Conforme observam Gomes & Pereira, no Norte e no Nordeste, Congos designa a totalidade do auto. Em Minas Gerais hoje, Congo refere-se a um dos grupos, ou guardas, de devoção a Nossa Senhora do Rosário e outros santos. Candombe, Moçambique, Vilão, Catopês e Caboclos são outras guardas que festejam o rosário de Maria nesse estado. Em Belo Horizonte, Congado tornou-se o termo coletivo mais abrangente que designa a festa religiosa em que participam as guardas acima, estejam elas reunidas ou não em Irmandades.

19 Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira: erudita, folclórica e popular (p. 724); seresta se refere a: nome surgido no séc. XX, no Rio de Janeiro, para rebatizar a mais antiga tradição de cantoria popular das cidades: a serenata.

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aqui objeto de discussão, mas de constatação, e que será mais bem problematizado ao longo da

pesquisa. As músicas realizadas nas Folias e Congadas estão inscritas no universo das

manifestações musicais do interior do Brasil, e que tem relações com o homem do campo,

encarnado na figura do caipira, definida assim por José Roberto Zan:

Esse tipo humano, conhecido como caipira, estava ligado a um modo de vida baseado na pequena produção de subsistência que Antonio Cândido definiu como sociedade de “mínimos vitais” (Candido, 1964). Os sítios formavam unidades sociais caracterizadas por relações de parentesco e de solidariedade vicinal, um tipo de “habitat” disperso denominado de “bairro rural” (Queiroz, 1973). Uma complexa ritualística associada a práticas festivas e religiosas, em geral vinculadas ao universo do chamado “catolicismo rústico”, garantia a reprodução da sociabilidade dos bairros. A música era um dos elementos fundamentais desse universo. (Zan, 2004, p.02)

Ainda segundo o autor, os processos de industrialização e modernização que o Brasil sofreu

durante o século XX praticamente acabaram com este tipo de relação que proliferou desde o século

XVII nas “regiões de população rarefeita do centro-sul do Brasil, mais precisamente no Estado de

São Paulo, sul de Minas Gerais, sul de Goiás e sudeste do Mato Grosso do Sul”. Musicalmente, o

autor se refere às suas características da seguinte maneira:

As matrizes musicais do repertório acima referido eram partes integrantes da cultura desse segmento social. A toada, o toque de viola que acompanha as danças catira e cururu, a música das Folias de Reis e do Divino e a moda-de-viola eram estilos musicais que não se dissociavam das práticas lúdico-religiosas da cultura desses pequenos sitiantes (Martins, 1974:25). (Zan, 2004, p.02)

Num primeiro momento, o autor aponta que estas referências musicais estavam ligadas ao

mundo ibérico e ameríndio e seria a partir do século XVIII, com a disseminação das monoculturas

de cana-de-açúcar e posteriormente, as de café, que elementos da cultura afro-brasileira se

somariam a esta construção “A partir de então, elementos da cultura afro-brasileira mesclaram-se às

manifestações do mundo caipira e se expressam nas configurações do congado, da dança de

moçambique e do samba-rural” (Zan, 2004, p.02).

A presença da cultura do interior na história de Nivaldo Ornelas se dá principalmente pela

sua relação com os Congados e Folias, como revelado neste trecho de entrevista cedida em março

de 2009 (informação verbal):

Nivaldo - Tinha, perto da minha casa tinha o Vila São Domingos que tinha Congado, e do outro lado onde tem um aeroporto, não sei se tem ainda, tinha um aeroporto, no Carlos Prates.

Bernardo – Tem no Carlos Prates, é. Nivaldo – Isso, ali chamava Vila Celeste Império ali, eu tenho até uma música. Bernardo – Tem, no “Arredores”, não é?

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Nivaldo – É tirado dali. Dali vinham as Congadas. Bernardo – E tem o São Domingos do Congado também.

Nivaldo – Pois é, tudo em cima, o “Arredores” é o “Portal do Anjos” mais contemporâneo. E, na verdade eu vivi nessa atmosfera, e ali na Nova Suissa ao lado da minha casa tinha a Folia de Reis do seu João Máximo e eu tocava acordeom com eles. Tocava no meio, entrei no meio dos caras. Eu ia com gravador, é muito bom, e as fitas são todas cassete. Eu queria ver o som dos caras falando, aquele som mineiro, bem,

Bernardo – Umhum. Nivaldo - Né? Então vivi muito isso, vivi intensamente isso. A presença do subúrbio, da periferia, ou seja, desta idéia de um lugar de passagem e

cruzamento entre o moderno e o tradicional, do futuro e do passado, está presente na obra do

saxofonista apontando para o que Néstor García Canclini chama de hibridação cultural sendo aqui

observada a partir das quatro composições de Ornelas citadas anteriormente e que estão contidas em

parte de suas trilogias. São discorridas impressões das análises das partituras constituídas a partir do

processo de transcrição musical a que foram submetidas, sendo ponderados aspectos harmônicos,

formais, melódicos e de performance no sentido de se identificar ocorrências que justifiquem e que

apontem para os usos análogos à teoria de Canclini. Para cada uma dessas análises, buscamos

confrontar usos distintos das várias referências do autor, tendo como pano de fundo a cidade de

Belo Horizonte e sua lógica urbanística, caminhando do interior para a capital, do rural ao urbano,

passando pelo subúrbio, o cinturão dos bairros operários que circunda o centro da cidade, sendo

sugestionadas as utilizações de características musicais híbridas na obra de Ornelas dentro do

recorte de sua produção na modalidade música instrumental, identificando usos entre as realizações

musicais dos auto das Folias de Reis, dos Congados, bem como da construção musical ligada ao

universo da canção e das Serestas, da música sacra, além de características do rock e do jazz, já

citados.

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51

2.1. Nos Arredores da Cidade: A Nova Lima Inglesa:

Através do procedimento de transcrição musical, buscamos identificar características

musicais tanto do Congado Mineiro quanto da Folia de Reis ou de outras manifestações musicais

ligadas à cultura do interior do país conjugadas à música instrumental a partir do registro sonoro de

Nova Lima Inglesa presente no disco Colheita do Trigo, de 1990. Nesta gravação os músicos

participantes foram: Nivaldo Ornelas no saxofone soprano, tenor e flautas; Túlio Mourão nos

teclados; João Batista no baixo; Robertinho Silva na bateria e percussão; Tavito na viola de 12

cordas; Nélson Faria na guitarra; Ubiratan Silva na percussão e Eveline Hecker e Patrícia Regadas

nos vocais.

Nova Lima é hoje uma das cidades que compõem a região metropolitana de Belo Horizonte.

Foi batizada em homenagem ao, talvez, seu filho mais ilustre, Augusto de Lima, que nascera na

ainda Congonhas de Sabará, distrito da atual cidade de Sabará. Mais tarde, ao emancipar-se, tornou-

se Vila Nova de Lima e por fim, em 1923, ao se tornar município recebeu o atual nome. Já o

adjetivo inglesa agregado ao nome da composição de Nivaldo Ornelas não é parte do nome da

cidade, trata-se de uma referência à presença de ingleses naquela região desde meados do século

XIX devido à implementação da mineradora Saint John Del Rey, empresa que explorava ouro

naquelas terras, principalmente na mina de Morro Velho, outro local desta paisagem que dá nome a

uma das músicas do saxofonista. Em lugares como este os rituais conhecidos por Folias e Congados

“constituem uma das mais importantes expressões da religiosidade e da cultura afro-brasileira em

Minas Gerais”, como afirma Glaura Lucas (1999), havendo alguns traços marcantes da música

realizada nestes autos:

. de função religiosa, sendo parte orgânica da condução dos rituais; . que se formou dentro de um contexto religioso estabelecido a partir de condições específicas de contatos culturais entre africanos e europeus no Brasil – os europeus reafirmando a imposição do catolicismo aos negros e estes o reinterpretando à luz de seu sistema de crenças e cosmovisão, que inclui o culto aos ancestrais – e que, em Minas Gerais, desenvolveu-se sob a influência das Irmandades religiosas durante o período escravista;

. que ainda hoje se vincula amplamente a populações negras, não sendo, no entanto, exclusiva a elas; . que reconta, através de seus sons, textos e gestos, a história dos antepassados escravizados; . que se mantém por transmissão oral; e . que se realiza com a participação de todos os integrantes da comunidade, cada qual dentro de sua especialidade possível, e conforme sua habilidade.

(Lucas, 1999, p.16)

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Apesar do estudo de Lucas ter sido direcionado às questões rítmicas da realização musical

do ritual, principalmente ao toques de caixa e outros instrumentos de percussão, o mesmo trabalho

pode nos dar indícios também de outras características de sua construção musical. Dentro deste

cenário, várias manifestações populares, como as vistas anteriormente, são frequentes no município,

principalmente na Festa do Rosário onde grupos de Congado saem às ruas durante todo o mês de

outubro, além das Folias de Reis que tomam a cidade em janeiro. A música Nova Lima Inglesa

preserva ares deste tipo de música hibridados a características da modalidade musical identificada

anteriormente por música instrumental.

Relativo à forma da música pode se dizer que Nova Lima Inglesa está no entendimento da

melodia acompanhada, sua estrutura baseia-se em uma seção A de 12 compassos, uma seção B de 4

compassos e uma seção C de outros 4 compassos, somando-se 20 compassos. No arranjo presente

no disco Colheita do Trigo a música começa com uma introdução de teclado em tempo livre e logo

depois é apresentado o tema da música durante as seções A e B, realizadas pelo saxofone soprano,

teclado, baixo e intervenções de guitarra. Na seção C da exposição do tema entra a bateria e

consequentemente a pulsação adquire regularidade métrica em oposição ao tempo rubatado da

introdução e da primeira parte do tema. Entre a exposição e a re-exposição do tema surge uma ponte

de 3 compassos e após a re-exposição é inserida uma nova seção, uma outra ponte, agora com 6

compassos, como um desenvolvimento daquela que havia aparecido anteriormente. Esta nova ponte

precede o desenvolvimento do tema com 16 compassos e uma terceira ponte, desta vez com 8

compassos conduz para o solo de saxofone soprano.

Durante os solos, Nivaldo Ornelas toca sobre um encadeamento harmônico composto pelos

acordes de Bm e F#m (i e v graus do campo harmônico de Si Menor Natural) durante 4 compassos,

depois repete este mesmo padrão um tom acima, com os acordes de C#m e G#m (i e v graus do

campo harmônico de Dó Sustenido Menor Natural) por mais 4 compassos, e em seguida volta para

o campo harmônico de Si Menor Natural em outros 4 compassos. A seção de improviso termina

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com 4 compassos de bateria solo realizando uma levada20 próxima a um dos toques do Maracatu21

só que em compasso ternário simples (ao invés do quaternário comum à música do referido auto

pernambucano). A última apresentação do tema é incompleta, sendo apresentadas as seções B e C,

como se fossem refrões, e por fim uma Coda de 4 compassos22.

Tabela 1. Tabela com estrutura formal de Nova Lima Inglesa

Seções Número de Compassos Introdução de Teclado Seção A 12 (c. 2-13) Seção B 4 (c. 14-17) Seção C 4 (c. 18-21) Ponte 3 (c. 22-24) Seção A' 12 (c. 24-35) Seção B' 4 (c. 36 - 39) Seção C' 6 (c. 40 - 45) Ponte 6 (c. 45 - 50) Variação do tema 16 (c. 51-66) Ponte 8 (c. 66-73) Solo de saxofone soprano 15 (c. 74-88) Solo de bateria e percussão 5 (c. 89-93) Seção B'' 4 (c. 94-97) Seção C'' 6 (c. 98-103) Coda 4 (c. 103 - 106)

Em primeiro lugar chamam a atenção o tratamento harmônico da composição e sua

instrumentação. Quanto ao primeiro aspecto, são utilizados basicamente três acordes em seu tema,

além de algumas inversões destes, sendo os acordes os de D (tônica), A (dominante) e G

(subdominante). No exemplo a seguir, podemos perceber os usos harmônicos empregados por

Nivaldo Ornelas:

20 Levada é uma designação coloquial que se refere aos ostinatos rítmicos de diferentes gêneros ou estilos musicais, diz-

se levada de samba, levada de bossa nova, levada de baião, etc... 21 Segundo Luiz da Câmara Cascuro, Maracatu se refere a (2008, p.361): Grupo carnavalesco pernambucano, com

pequena orquestra de percussão, tambores, chocalhos, gonguê (agogô dos candomblés baianos e macumbas cariocas), que percorre as ruas cantando e dançando sem coreografia especial. Respondem em coro ao tirador de loas, solista. Sempre foi composto de negros em sua maioria. É visível vestígio dos séquitos negros que acompanham os reis de congos, eleitos pelos escravos, para a coroação nas igrejas e posterior batuque no adro, homenageando a padroeira ou Nossa Senhora do Rosário. Perdida a tradição sagrada, o grupo convergiu para o Carnaval, conservando elementos distintos de qualquer outro cordão na espécie. Diz-se sempre nação, sinônimo popular de grande grupo heterogêneo, e os títulos tem sabor primitivo: Nação de Porto Rico, Nação de Cambinda Velha, Nação do Elefante, Nação do Leão Coroado. À frente vão rei e rainha, príncipes, damas, embaixadores, dançadoras (vestidas de baianas) e indígenas com enduapes e cocares emplumados. Não há enredo. Trata-se de um desfile no ritmo dos tambores reboantes.

22 Vide anexo.

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Exemplo musical 2. c. 1- 4, Primeiro membro de frase do tema principal da seção A

Exemplo musical 3.c. 5-9, Segundo membro de frase da seção A

A primeira frase do tema de Nova Lima Inglesa pode ser dividida nestes dois membros de

frase, notadamente no tom de Ré Maior onde no segundo membro de frase a ordem do primeiro

compasso é invertida, ao invés de uma subdominante têm-se um acorde de dominante A7/C# indo

para um acorde de subdominante e esta função perdura até o terceiro compasso do segundo membro

de frase, onde o acorde de G é submetido à inversão de sétima, e caminhando em grau conjunto

chega ao acorde de Em7, o que enarmonicamente poderia ser chamado de um acorde de sol maior

com a sexta no baixo, mas que ali se torna segundo grau, e o acorde de A7 o quinto, caracterizando

assim uma cadência ii7-V7 do campo harmônico de Ré Maior.

Como marca do tratamento harmônico deste trecho, e que também pode ser aludida a toda a

composição, é que em sua grande maioria a harmonia ocorre com a utilização de acordes maiores

perfeitos, um tratamento harmônico comum às manifestações populares realizadas no interior do

Brasil e em especial em Minas Gerais, como vemos abaixo em trecho extraído da música Calix

Bento, recolhida por Tavinho Moura a partir de autos de Folias de Reis, conforme depoimento do

próprio Tavinho Moura para o documentário Milton Nascimento: A Sede do Peixe de 1997:

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Exemplo musical 4. Melodia de Calix Bento transcrita a partir da versão presente no disco Geraes de Milton Nascimento, 1976.

Em Calix Bento, a harmonia se mantém basicamente entre os acordes de dominante e tônica

de Ré Maior, excedendo o uso de dominante individual da subdominante D7 indo para a

subdominante G. Em gravação realizada por Milton Nascimento desta música, presente no disco

Geraes de 1976, o arranjo, além de ter sido realizado no tom de Mi Bemol Maior também apresenta

uma linha de contraponto de baixo transcrita no exemplo acima para o tom de Ré Maior (a fim de

facilitar a comparação com Nova Lima Inglesa). Se analisada do ponto de vista dos blocos de

acordes, as inversões de G para G/F# e deste para o acorde de A/E representam tão somente notas

de passagem no baixo, onde ocorrem paralelismos de três oitavas consecutivas. Esta passagem se

assemelha a um trecho harmônico de Nova Lima Inglesa, mas, que no lugar do acorde de A/E

aparece o de Em7.

A utilização de acordes maiores perfeitos como estrutura básica da harmonia de canções é

passível de ser encontrada em várias manifestações musicais rurais brasileiras, outro exemplo é

extraído de um Dobrado do Congado do Jatobá intitulado Acorda Nego, o exemplo foi extraído de

estudo realizado por Glaura Lucas, transcrito por ela e por mim harmonizado. A transcrição é de

uma das músicas tocadas no auto religioso do Congado que passa pelo bairro natal de Ornelas em

Belo Horizonte (Lucas, 1999, Volume II, p.44 ):

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Exemplo musical 5. Melodia de Acorda Nego do Congado do Jatobá

Vale ressaltar a utilização da melodia em graus conjuntos, muito em função desse repertório

ser todo cantado, característica também utilizada em Nova Lima Inglesa e que dá ao tema contornos

de canção.

A seção B de Nova Lima Inglesa é marcada pelo aparecimento de uma alteração melódica do

quarto grau aumentado que a princípio tende para um entendimento de oscilação ao modo Lídio,

mas que acaba por não se confirmar. Bem da verdade, o tratamento dado ao trecho supõe o uso de

uma espécie de marcha harmônica, com movimentos cadenciais do I para o V graus:

Exemplo musical 6. c. 13-16, Seção B de Nova Lima Inglesa com o aparecimento da nota sol sustenido no c. 13.

Marchas harmônicas são modelos melódicos e/ou harmônicos que geram reproduções

sugerindo modulações passageiras, como no caso deste trecho de Nova Lima Inglesa, onde o

primeiro e segundo compassos são transpostos um tom abaixo, mantendo-se os mesmos intervalos

melódicos além de sua organização rítmica. No caso do uso dado por Nivaldo Ornelas, ele realiza

um marcha harmônica interrompida cessando o padrão já na primeira modulação, no que seria um

acorde de Dó Maior. Proponho aqui a realização de uma simulação de caráter demonstrativo de uma

marcha harmônica desenvolvendo o motivo da seção B de Nova Lima Inglesa, preservando suas

relações melódicas e rítmicas e sugerindo uma harmonia que inclui um acorde de tônica para o

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primeiro compasso e outro da dominante da próxima tonalidade no compasso seguinte, além de

sugerir uma condução de baixo cromática, próxima à realização da gravação de Nova Lima Inglesa.

Com a marcha completa, tem-se uma escala hexatônica, de tons inteiros, saindo do tom de D,

passando por C, Bb, Ab, F# e E, até que se volte para o tom original, como demonstrado no

exemplo a seguir:

Exemplo musical 7. Simulação de marcha harmônica seguindo o modelo apresentado em Nova Lima Inglesa

Diferentemente da marcha indicada no exemplo acima, as notas alteradas do tema original

de Nova Lima Inglesa surgem como terças maiores de dominantes secundárias realizadas na

gravação e indicadas por Ornelas em seu manuscrito, mas que nem sempre podem ser percebidas

com clareza nessa versão em estúdio da música, isso se dá pela intensa sobreposição de realizações

de instrumentos harmônicos e pela liberdade interpretativa dos músicos que a realizaram, havendo

por vezes uma mera intenção de tocar esses acordes e em outras até a supressão deles. Para uma

melhor identificação dessa ocorrência, segue o trecho tal qual cifrado pelo autor:

Exemplo musical 8. Mesmo trecho citado anteriormente, mas agora com a indicação da harmonia do trecho.

A percepção das realizações das dominantes secundárias E/D e D/C é pouco clara no

registro da música já que soam como extenções harmônicas dos acordes iniciais de cada tonalidade,

muito em função de preservarem o baixo dos acordes anteriormente dispostos, D e C (cifrado como

Am/C), respectivamente, soando como intervalos de nona; décima primeira aumentada e décima

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terceira desses acordes. Fenômeno semelhante ocorre com o acorde de Am/C (c.14), que pela

tendência do modelo replicado referido à marcha harmônica – como exposto anteriormente – induz

o ouvinte a perceber o acorde como um C6, já que o modelo inicialmente apresentado no compasso

13 apresenta um acorde maior, de todo modo, a função de tônica aí está preservada, o que corrobora

o entendimento da marcha harmônica.

Na seção C do tema, Ornelas faz uso de uma divisão da melodia no que poderia ser

considerado como pergunta e resposta. Procurando investigar mais profundamente sobre a possível

origem dessa característica, deparamo-nos com a possibilidade do uso referencial das características

musicais do Congado, onde a pergunta da melodia é realizada por uma voz solo e a resposta em

coro, como citado por Lucas:

A música é constante em todas as etapas rituais. Compõe-se de cânticos que se desenvolvem na forma solo/coro, acompanhados pelos instrumentos, nos quais são executados padrões rítmicos para cada guarda. Poucos são os cantos que não se acompanham pelos instrumentos. Dentre eles, há os que os congadeiros chamam de embaixadas, através das quais, os capitães homenageiam, por exemplo, seus reis e rainhas. (Lucas, 1999, p.18)

Em Nova Lima Inglesa podemos observar como se comporta a melodia do tema, distribuída

na instrumentação citada no exemplo a seguir e que nos remete alusivamente às funções de solista e

coro identificadas nos autos do Congado por Lucas numa relação de pergunta e resposta entre essas

duas instâncias.

Exemplo musical 9. c, 17-21, Seção B de Nova Lima Inglesa

É importante chamar a atenção para o fato da melodia de pergunta ser realizada pela flauta,

instrumento que mesmo não comum às tradições populares da Folia de Reis e do Congado, remete a

uma tradição de música popular brasileira, e a resposta da melodia é, em um primeiro momento

realizado pela guitarra elétrica com distorção, tocada por Nélson Faria, além de vozes, e que no

decorrer da música soma-se o saxofone tenor ao coro. É como se a tradição perguntasse e os sinais

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híbridos da modernidade respondessem.

O traço de distinção real da harmonia utilizada por Ornelas nesta composição é o

distanciamento em relação à harmonia normalmente utilizada na modalidade música instrumental,

que tem seus laços de ligação com aqueles acordes utilizados principalmente na bossa nova e no

jazz, onde são recorrentes os usos de extensões harmônicas e substituições de acordes. Nivaldo fala

da experiência prática deste desajuste na performance de músicos do metier da música instrumental

quando se deparam com este tipo de repertório (informação verbal):

(...) Mas nem sempre eu consigo juntar as duas coisas, e muitas vezes eu evito de tocar as minhas músicas porque os caras estão tão...quem faz harmonia ta tão no conceito de jazz e de...dessa outra música, que não encaixa. Aquilo é...a harmonia do Nova Lima Inglesa, por exemplo, Nova Granada, tem que saber, tem que ter paciência. - Não tem sétima aí não cara! Não tem nona aumentada aí não meu filho! Isso é assim mesmo, pode ficar tranquilo, pode fazer, esse Ré Maior é Ré Maior mesmo, não tenha medo. Uma vez o Túlio Mourão falou: Eu posso botar uma setimazinha aqui? Eu falei: - Não. Não pode não. Então eu evito muito ir por aí pra tocar, a não ser que seja meu grupo. O cara fala: Por quê que você não ta tocando seu trabalho? Eu falo: Pois é mas, tem motivos pra isso, porque é quase que macular o negócio, né? Pra mim isso é sagrado pôxa, e não dá pra misturar.

Bernardo – Faz parte da sonoridade, né? Nivaldo – É. É um outro jeito de tocar. Quando eu vou tocar com o Wagner, por exemplo, com os pianistas com os quais eu convivi, fica fácil, porque o cara conhece a linguagem, e, é isso.

Ressalto aqui as expressões jeito de tocar e linguagem utilizadas por Ornelas, qualidades

fortemente atreladas ao entendimento de estilo, que em música popular determina, por exemplo, os

procedimentos utilizados em sua realização, como os tipos de extensões (ou tensões) harmônicas, a

disposição das vozes nos acordes (voicings), além da realização de linhas de contraponto.

Estes procedimentos também podem servir de instrumento de especulação em relação ao

processo de composição de Ornelas, onde podemos perceber indícios do entendimento idiomático

do instrumento harmônico que ele utiliza durante o seu processo criativo, neste caso, o violão, que é

revelado de maneira flagrante em passagens, por exemplo, que envolvem os acordes de G/B e

A7/C#. Neste caso, ocorre uma replicação de fôrma do acorde, como mostra o exemplo a seguir:

Exemplo musical 10. Disposição dos acordes de G/B e A7/C# utilizados em Nova Lima Inglesa

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Na sua realização ao violão, referente à disposição do acorde G/B tem-se as notas si (quinta

corda, segunda casa); sol, (corda 3 solta); nota ré (segunda corda, terceira casa) e nota sol (primeira

corda, terceira casa). Para se obter o acorde de A7/C# basta que se repita o padrão do acorde

anterior duas casas a frente, mantendo-se a corda sol solta, o que vai ocasionar na sétima menor do

acorde. Há aí, portanto, um entendimento fortemente tendenciado ao uso idiomático do violão no

desenvolvimento das soluções harmônicas encontradas em Nova Lima Inglesa.

Exemplo musical 11. Disposição do acorde de G/B no braço do violão

Exemplo musical 12. Disposição do acorde de A7/C# no braço do violão

Somado a este aspecto, a instrumentação mescla instrumentos característicos da música

instrumental, como a bateria, contrabaixo elétrico, guitarra elétrica, teclados, saxofone e flauta; a

instrumentos de coloratura regional, como o suso de alguns tipos de percussão e a presença da

viola, aqui, gravada por Tavito na viola de 12 cordas, mas que tem a sua tipicidade na música dita

rural encarnada na viola de 10 cordas, chamada também viola caipira.

A própria tonalidade da música, Ré Maior valoriza o uso da viola na composição pelo tipo

de afinação usada. As duas afinações mais tradicionais utilizadas na música brasileira para este

instrumento são conhecidas como Cebolão e Rio Abaixo, em relação a esta última Josemar Vital Jr.

a expõe em artigo sobre o Estudo nº5 para violão de Radamés Gnattali, explicitando a relação da

peça com a música caipira (VITAL JR., 2008, p. 231): “A nova escordatura indicada é a seguinte:

ré, sol, ré, sol, si, ré (lê-se da sexta para a primeira corda). Essa relação é exatamente a de uma das

afinações tradicionais da viola caipira, chamada Rio-Abaixo”.

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Exemplo musical 13. Disposição das notas nas afinações para viola de 10 cordas Cebolão e Rio Abaixo, respectivamente.

Relacionando a afinação com a viola, que apresenta cinco pares de cordas ao invés de seis

simples - e seis pares de cordas duplas no caso da viola de 12 cordas - a afinação acima referida

deve-se iniciar na 5ª corda da viola na nota Sol; enquanto que para a afinação chamada Cebolão,

usada normalmente em Mi ou Ré Maior, a disposição é a seguinte: lá, ré, fá sustenido, lá, ré. Para

qualquer uma das afinações, as sequências de acordes maiores perfeitos são um traço do

idiomatismo da viola e, por conseguinte, do repertório realizado por ela.

Outro aspecto que chama a atenção é o compasso da música, não o binário simples, das

marchas dos Congados e das Toadas das Folias, ou ainda dos binários compostos, dos toques

conhecidos por Moçambique, mas o uso do ternário simples, o que, a princípio, vai contra o

entendimento das características tanto do auto afro-brasileiro – ao menos dos registros transcritos

por Glaura Lucas referente aos Congados dos Arturos e Jatobás - quanto das folias, mas que nos dá

outros indícios de possíveis referências, por exemplo, a danças européias.

Confrontando este problema, ocorreu a possibilidade de que a referida música possa ter

características musicais para além das dos Congados e Folias, já que durante os autos os compassos

mais encontrados são os binários simples ou compostos, cabendo, portanto, referências da música

do meio rural “não sacralizadas”, ou seja, que não necessariamente integrem autos religiosos, ou

ritos de fé onde, neste caso, ritmos ternários são bastante comuns, como afirma Marcelo Lopes em

dissertação sobre a Folia de Mestre Célio em Rio Pomba, Minas Gerais, quando ao descrever o

perfil de Seu Joaquim, folião que integra a Folia de Mestre Célio, revela sua relação com a música

fora do período das Folias, o autor confirma: “Tocam músicas que remetem a um universo rural

bem conhecido da maior parte deles. Tocam para si mesmos. Calangos, valsas e mazurcas integram

o repertório, em sua maior parte baseado em gravações de música caipira” (Lopes, 2007, p. 01).

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Saindo das referências estritamente rurais, há também uma identificação do compasso

ternário simples não somente na produção musical de Ornelas, mas também na de boa parte de seus

pares composiotores de música popular, seja de música instrumental ou vocal, e que se identificam

com o circuito musical de Belo Horizonte e daqueles que se reconhecem sob a insígnia do Clube da

Esquina. A referência do ¾ para esses autores tende a apresentar-se como um traço de distinção

dentro da produção da música popular brasileira como um todo, um fato extremamente intrigante e

que permeia a produção desses agentes. Para um melhor esclarecimento do fato, tomemos como

exemplo a obra de Milton Nascimento a partir de alguns dos discos lançados pelo músico durante os

anos 1970, conjunto de gravações que representa em muito a produção do autor e de alguns de seus

parceiros. Utilizemos como parâmetro os seguintes discos: Milton (1970); Clube da Esquina

(1972); Milagre dos Peixes (1973); Milagre dos Peixes Ao Vivo (1974); Minas (1975); Geraes

(1976) e Clube da Esquina 2 (1978).

Do conjunto das 98 músicas contidas nesses 7 títulos - incluindo algumas regravações -

foram identificadas 16 composições que se estabelecem majoritariamente dentro do compasso

ternário, ous seja, pouco mais de 16 por cento do total de composições da série de discos

selecionados. Apesar de minoritária, em comparação ao compasso quaternário, a presença do

compasso ternário é marcatne pelas obras que as representam, como Cravo e Canela, San Vicente e

Milagre dos Peixes, todas, composições proeminetes e expressivas dentro da obra do autor. Há,

além disso, uma caracetrística que une parte dessas músicas de divisão ternária com uma estática

próxima a da música sul-americana, especificamente do mundo hispanófono, lembrando, por

exemplo, que Milton Nascimento desenvolveu trabalhos de vulto juntamente com a cantora

argentina Mercedes Sosa (1935-2009), como na gravação de Volver a los 17, música da compositora

chilena Violeta Parra (1917-1967), presente no disco Geraes de 1976, além de ter lançado um disco

ao lado de Sosa e León Gieco (1951-), intitulado Corazón Anericano, lançado em 1986. Nessas

músicas ditas de referência hispano-sul-americanas, há realizações, principalmente rítmicas e de

linhas de baixo, que apontam para possíveis referências de caracteríscas de alguns dos gêneros

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ternários que compõem essa paisagem sonora, talvez das valsas venezuelanas, ou das guarânias

paraguaias, bem como na diversidade de gêneros musicais andinos, referências que vão do Chile ao

Equador e que são, em parte, ternários.

Um traço marcante dessas realizações se refere a uma intencionalidade rítmica que privilegia

o tereceiro tempo em função dos outros dois tempos dentro do mesmo compasso, diferentemente,

por exemplo, das valsas, cujo tempo forte é o primeiro ou das mazurcas, que tem no segundo tempo

a sua marcação. A metricidade ternária com o terceiro tempo forte é compartilhada como a

composição Nova Lima Inglesa, de Ornelas, e pode ser identificada em outras composições dessa

geração de compositores mineiros, como Beto Guedes (1951-) e Toninho Horta (1948-), que intitula

esse “gênero” ternário próprio de Minas como valsa mineira.

Na gravação de Nova Lima Inglesa de Nivaldo Ornelas a levada da bateria, realizada por

Robertinho Silva, é realizada acentuando-se esse terceiro tempo do compasso ternário simples. Da

divisão rítmica da melodia podemos identificar a recorrência de células rítmicas como a colcheia

pontuada seguida de semicolcheia e a figura da síncope. Estas células são frequentes tanto nas

divisões melódicas quanto acompanhamentos de Congados e Folias:

Exemplo musical 14. Trecho de acompanhamento de chocalho e caixa em Folia do Sul de Minas

Em outro registro da mesma música, presente no disco Fogo e Ouro de 2009, a seção rítmica

conta com, dentre outros instrumentos de percussão, o patangome, instrumento muito utilizado nos

autos do Congado do Jatobá e que consiste em uma cabaça preenchida com feijões e que realiza um

ostinato rítmico baseado numa acentuação quialterada, dando um caráter polirítmico, comum à

tradição do Congado e presente a esta realização.

Na melodia de Nova Lima Inglesa pode ser percebido o uso de figuras rítmicas tais como as

descritas anteriormente, principalmente no que se refere às linhas de caixa:

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Exemplo musical 15. c. 26-27, Figuras de colcheias pontuadas seguidas de semicolcheias no tema de Nova Lima Inglesa

Exemplo musical 16. c. 28 -30, síncopes e figuras de colcheia pontuada e semicolcheia em Nova Lima Inglesa

Cabe aqui uma comparação entre dois momentos do tema, a exposição que chamarei aqui de

seção A e a re-exposição, seção A'. A diferença entre as duas é que da primeira vez o tema é tocado

de maneira livre, em tempo quase rubato, sem a presença da bateria e percussão, enquanto que da

segunda vez, a metricidade é alterada com o aparecimento da seção rítmica (bateria e percussão)

durante arranjo da música, a melodia então ganha novos contornos com o advento de figuras de

síncope (semicolcheia, colcheia, semicolcheia) e de figuras contendo colcheias pontuadas

acompanhadas de semicolcheias, ambas as figuras recorrentes nos autos de Congado e Folia, bem

como no entendimento da música dita rural como um todo:

Exemplo musical 17. c. 1- 12, Seção A do tema: Exposição, conforme disposto na partitura guia da composição presente em anexo.

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Exemplo musical 18. c. 23-34, Seção A' do tema: Re-exposição, conforme disposto na partitura guia da música.

O ritmo harmônico reforça algumas figuras rítmicas utilizadas em linhas melódicas ou em

pontes como no exemplo abaixo onde a flauta realiza a melodia junto com os instrumentos

harmônicos.

Exemplo musical 19: c. 66-68, Trecho da terceira Ponte realizada pela flauta e instrumentos harmônicos e que precede a seção de chorus em Nova Lima Inglesa.

Exemplo musical 20. Acompanhamento de viola realizado no mesmo trecho exposto no exemplo 19 durante ponte em Nova Lima Inglesa

Comparativamente a realização rítmica demonstrada nos exemplos 16 e 17, citamos um

exemplo musical de um toque de viola recollhida por Marcelo de Castro Lopes e presente em sua

dissertação de mestrado A Folia do Mestre Célio em Rio Pomba: uma perspectiva

etinomusicológica. Note-se a presença marcante de figuras rítmicas coincidentes com o

acompanhamento de viola em Nova Lima Inglesa (exemplo musical 20) tanto na linha de

cavaquinho (sistema superior) quanto na condução da viola (sistema inferior), conforme o exemplo

a seguir:

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66

Exemplo musical 21. Trecho da Toada de Entrada da Folia do Mestre Célio de Rio Pomba, recolhida por Marcelo de Castro Lopes, linhas de cavaquinho e viola.

Relacionando o trecho com seu uso frente aos instrumentos de percussão, principalmente a

bateria gravada por Robertinho Silva, ele aplica a seguinte levada durante o trecho anteriormente

citado:

Exemplo musical 22. Levada de bateria realizada por Robertinho Silva em ponte de Nova Lima Inglesa, c 66-67.

Em transcrição realizada por Glaura Lucas da Marcha Dobrada Quero Agradecer Sua Mesa

Santa do Congado do Jatobá,da região metropolitana de Belo Horizonte, anteriormente citado, as

caixas (de cima para baixo, caixa contraguia e caixas guia) realizam ao seguinte desenho rítmico:

Exemplo musical 23. Seção de caixas em Quero Agradecer Sua Mesa Santa – Marcha Dobrada – Recolhida por Glaura Lucas.

Ao adaptarmos o ritmo acima do compasso binário simples para o ternário simples, os

desenhos rítmicos das caixas se comportariam da seguinte maneira:

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67

Exemplo musical 24. Livre adaptação do toque de caixas em Quero Agradecer Sua Mesa Santa para compasso ternário simples

O forte grau de semelhança entre o toque das caixas guia, principalmente, e o desenho de

chimbau realizado por Robertinho Silva revela a intencionalidade do compositor frente a aplicação

de elementos das tradições musicais apontadas anteriormente, intencionalidade esta que pode ser

relacionada ao conceito de habitus que no entendimento de Pierre Bourdieu (1983) (apud Setton,

p.62) funciona como:

(…) um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas.

A estilização, nesse sentido, é reveladora do processo e das semelhanças entre si, onde

Ornelas, neste caso através da interpretação de Robertinho Silva, acrescentou uma célula de duas

colcheias ao tempo excedente, terceiro tempo do compasso, preservando a natureza do toque e

citando-o sem copiá-lo literalmente.

Outro dado revelador do processo de composição e arranjo de Ornelas reside no tratamento

que o autor dá às seções chamadas de Ponte, estas pontuam as mudanças entre seções ocorridas

durante a música e apresentam um desenvolvimento temático interno, principalmente entre as duas

primeiras Pontes como podemos perceber abaixo:

Exemplo musical 25. c.21-24: Primeira ponte entre a exposição e reexposição d tema de Nova Lima Inglesa

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Exemplo musical 26. c.45-50: Segunda ponte presente em Nova Lima Inglesa

Esta segunda ponte se comporta como o desenvolvimento da primeira, podendo ser

subdividida em dois membros de frase, onde o segundo é uma repetição da primeira ponte:

Exemplo musical 27. C. 45-47: Desenvolvimento da ponte

Exemplo musical 28. c. 47-50: Repetição de motivo da primeira ponte

Já a segunda Ponte, exemplo musical 26 (p.65) preserva características do primeiro membro

de frase da primeira Ponte, exemplo musical 25 (p.65), ou seja, os compassos 45 a 47 da segunda

Ponte são iguais à primeira Ponte apresentada na música, portanto é perceptível que o

desenvolvimento temático entre estas seções se enlaça pela repetição de características de inovação

apresentadas no desenvolvimento anterior.

Das características citadas, ficam claras as referências à música do interior do Brasil, de suas

caracterizações, não folclorizantes, em um repertório da modalidade música instrumental, sejam da

Folia de Reis ou do Congado, de qualquer modo, percebe-se em Ornelas a interferência de maneiras

distintas de se encarar a modalidade musical em questão, fundamentada não mais nas referências

apenas do jazz e da bossa nova, mas na multiplicidade de estruturas e características recortadas que

compõem um universo particular do autor, como cita Nétor Garcia Canclini:

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69

As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e portanto desaparece a possibilidade de ser culto conhecendo o repertório das “grandes obras”, ou ser popular porque se domina o sentido dos objetos e mensagens produzidos por objetos produzidos por uma comunidade mais ou menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe). Agora essas coleções renovam sua composição e sua hierarquia com as modas, entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário pode fazer a sua própria coleção. (Canclini, 2003, p.304)

Saindo da região metropolitana de Belo Horizonte em direção à capital, vislumbramos um

cinturão que circunda o plano urbanístico original da metrópole. Surgido praticamente em

simultaneidade com a construção da nova capital mineira, o subúrbio revela traços de sobreposições

temporais que marcam profundamente a obra de Nivaldo Ornelas, em especial o seu bairro natal a

Nova Suissa.

2. Nova Suissa, Sábado à Tarde: A Canção Sem Palavras.

Transpondo o olhar para fora dos limites originais do planejamento urbanístico da cidade de

Belo Horizonte, nos deparamos com a sua área suburbana23. Localizado na região oeste da cidade, o

bairro da Nova Suissa, diferentemente da área urbana da cidade, cresceu de maneira orgânica, quase

que espontaneamente, em contraste com a ortodoxia do plano central da cidade, como exposto por

Barros:

O planejamento retilíneo, a monumentalidade dos espaços, os equipamentos públicos e os investimentos limitam-se, contudo, à área urbana da nova capital. As áreas suburbana e rural se desenvolveriam através de um geometrismo menos evidente, por meio de vias tortuosas e irregulares adaptadas à topografia acidentada, e coerentes com a perspectiva excludente do projeto conservador de modernização. Belo Horizonte nasce dividida em duas: a cidade do poder e seus funcionários, e a cidade de trabalhadores, que, bem ao contrário, sedesenvolverá espontaneamente. (Barros, 2006, p.125)

Foram essas condições de tortuosidade e sua localização urbanística que, em parte,

possibilitaram os encontros e as mediações necessárias para que distintas realidades sociais se

confrontassem, dialogassem e compartilhassem valores e modos de vida diversos num mesmo

território, onde todos os tipos de gente, postos lado a lado, geraram (e geram) conflitos e

23

Fundada em 1897, Belo Horizonte foi uma das primeiras cidades latino-americanas a ser concebida com um plano urbanístico planejado baseado em um perfil higienizador e segregacionista, atribuído ao ideal da então recente república. O engenheiro responsável pela obra, Aarão Reis, projetou uma cidade capaz de abrigar cerca de 200 mil habitantes e que separava, através de uma avenida de contorno, a área urbana - planejada, racional, cartesiana - do mundo suburbano e rural, posto para fora dos limites citadinos, estes, representantes do mundo pré-moderno e colonial, indesejados para o perfil modernizador da nova capital.

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possibilidades para a realização do híbrido. De um lado, a meticulosidade e pretensa assepsia social

através da modernização e organização do espaço público tendo como estratégia a implantação de

um plano diretor para a nova capital idealizado a partir de modelos urbanísticos europeus. De outro,

as referências pregressas do Brasil Império, de sua herança colonial, oligárquica, rural e pré-

moderna. É nesse espaço, constituído por uma morfologia urbana - ou suburbana - típica, divisória

de duas temporalidades, que cresce Nivaldo Ornelas. De família de músicos amadores, o autor e

instrumentista revela em sua obra os diversos elementos deste caleidoscópio cultural, aqui

representado em sua vertente musical.

Gravada em 1982, a música que faz referência a seu bairro, Nova Suissa, Sábado à Tarde,

está presente no disco À Tarde, lançado pela gravadora francesa Syracouse e inédito no Brasil até

seu lançamento em CD no ano de 2007. A música, que abre o disco, foi gravada com Nivaldo

Ornelas no saxofone tenor, Wagner Tiso no piano e órgão, Alex Malheiros no baixo elétrico, além

do grupo vocal Viva Voz. Antes de adentrarmos em suas características especificamente musicais,

cabe aqui uma reflexão sobre o caráter da composição que foi assim definida pelo seu autor em

entrevista concedida em abril de 2009 (informação verbal):

Bernardo – Então quando eu perguntei a respeito da música que se fazia na sua casa, etc. e da coisa da Seresta, eu vejo muito esse universo da canção na sua música,

Nivaldo – Tem muito é. Melodia. Bernardo – A coisa, “Nova Suissa, Sábado à Tarde”, aquele tema, por exemplo, tem algo de religioso, mas tem muita coisa de seresteiro naquilo. Nivaldo – Bucólico, e outra coisa, “Nova Suissa Sábado à Tarde” i cara, a Nova Suissa era muito triste, quer dizer, bucólico mesmo, alegria nunca. Uma vez a minha mãe falou pra mim: Meu filho isso ta muito bonito, mas ta muito triste. Ai meu Deus! Dá vontade de chorar. Eu falei: Pois é, mas eu vivi isso, eu tenho que por isso pra fora primeiro, depois eu vou fazer alegre, eu falei pra ela. Eu tenho que fazer isso agora, isso ta aqui dentro, como é que eu faço? Eu preciso me livrar disso, e eu ainda não me livrei ainda não, ainda falta, falta mais um.

Ao ser indagado sobre a referida composição, Ornelas a identifica como bucólica, referindo-

se não somente a respeito da composição, mas ao bairro, como ele mesmo diz: “a Nova Suissa era

muito triste, quer dizer, bucólico mesmo, alegria nunca”. Se lançarmos mão ao entendimento do

significado deste adjetivo, encontramos em seu verbete características como: “pertencente ou

relativo à vida e aos costumes do campo e dos pastores; campestre, pastoril”, ou ainda “simples,

singelo, puro, ingênuo”. Apesar de haver, em uma impressão generalizada, características musicais

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que se refiram a estes adjetivos, talvez o termo bucólico tenha sido utilizado numa acepção distinta

de seu significado já que o termo não é sinonímico de tristeza, como evidencia o grifo. Cabe a nós,

portanto, buscar relacionar o termo usado pelo autor com a intenção a ele dada em sua composição,

que traz a marca implícita de um caráter solene e indicativo realmente de tristeza, mas de uma

tristeza macambúzia, envolta por um sentimento velado, recolhido, podendo ser atribuídos os

adjetivos quaresmal ou mesmo melancólico ao invés do referido bucólico.

Há a indicação, também na citação anterior, daquilo que Ornelas entende como a busca da

melodia. A maneira com que o músico constrói essa melodia é reveladora de, possivelmente,

referências ancestrais, apoiadas em práticas musicais comuns de seu bairro identificadas com a

canção, como a Seresta ou Serenata e as canções litúrgicas das Igrejas. Em Minas Gerais e

especificamente nos subúrbios de Belo Horizonte, principalmente até meados do século XX, eram

comuns os grupos de seresta, talvez a primeira grande manifestação de identificação da música

popular urbana feita no estado, isto antes do chamado Clube da Esquina, assim como a referência

da música sacra, ambas as práticas comuns ao mundo urbano, mas que pouco a pouco foram se

tornando praticamente exclusivas das populações urbanas do interior do Brasil. As serestas e

serenatas eram presenças constantes na casa e no cotidiano de Nivaldo Ornelas, como revelado pelo

autor em entrevista em abril de 2009 (informação verbal):

Nivaldo – Os meus pais tinham um grupo de seresta, chamava Revivendo o Passado, que era muito bom. Eles eram os artistas da minha família, eram eles.

Bernardo – O Revivendo o Passado já existia quando você era menino? Nivaldo – Já. Bernardo – Era um grupo permanente?

Nivaldo – É, e eles, inclusive atraiam multidões, nunca vi, uma coisa muito popular demais assim, bem, fácil, e era bem feito, entendeu? Eu dava umas canjas com eles de vez em quando e eu me sentia um peixe fora d'água.

Bernardo – Você se lembra o quê de repertório que constava? Nivaldo – Música cantada, aquele repertório de Roberto Carlos, meio seresta, meio aquelas músicas dor de cotovelo, é esse repertório aí.

Bernardo – Anos 30, 40, por aí? Nivaldo – 50. E um chorinho de vez em quando, aí eu tocava, eu toco uns chorinhos com o meu pai lá, mas eu me sentia um peixe fora d'água porque não era minha onda, não sou do choro, não sou disso, engraçado né? Nasci nisso e não sou disso. Demais, né? Não sou mesmo. Outro dia até fui no Clube do Choro, toquei alguns choros lá e tal que eu aprendi nessa época. Espinha de Bacalhau, não sei o que. Eu toco porque ficou, né? Mas eu não desenvolvi isso.

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A referência a Roberto Carlos citada por Ornelas é, certamente, posterior ao período da

infância do autor, já que estamos falando das décadas de 1940 a 1950. Por especulação podemos

supor que como o próprio nome do grupo sugere o Revivendo o Passado interpretasse um repertório

de musicas antigas, baseado na tradição da modinha e do samba-canção, repertório este identificado

com o universo da já citada seresta e que é assim definido no Dicionário Cravo Albin da Música

Popular Brasileira em sua versão online:

O mesmo que serenata. Segundo Luciano Gallet, a seresta é o choro, com a mesma formação instrumental, ou diversa - acompanhando um cantor solista popular. As serestas, hoje em dia em decadência nos grandes centros, foram o regalo da geração passada; e realizavam-se nas ruas, nas praias, especialmente em noite de luar.

Na ancestralidade do repertório constituinte das serestas e serenatas, temos necessariamente

de nos remeter à modinha, gênero musical luso-brasileiro que em sua vertente popular teve como

primeiro nome de vulto no Brasil o mulato Domingos Caldas Barbosa que há mais de 250 anos fora

responsável pela difusão desse repertório tanto no Brasil quanto em Portugal. Mário de Andrade

expõe suas impressões sobre a modinha em sua vertente seresteira da seguinte maneira:

Modinha – À medida que esta desaparece ou vive mais desatendida dos seresteiros, vais sendo porém substituída pelo samba canção, que é realmente uma modinha nova, de caráter novo, mas canção lírica solista, apenas com uma rítmica fixa de samba, em que porém a agógica já não é mais realmente coreográfica, mas de canção lírica. Ora isso é uma evolução lógica, por assim dizer, fatal. A modinha - de-salão passada pra sempre ritmos importados, não da criação imediata nacional. O samba canção é a nacionalização definitiva da modinha. (Andrade, 2004, p. 234)

A citação nos revela que a modinha antecedeu o samba-canção no repertório das serestas, e

que na verdade, o samba-canção é uma extensão dessa estética de canções sentimentais, entendidas

como de dor de cotovelo por Nivaldo Ornelas, idéia também compartilhada por José Ramos

Tinhorão:

No plano da nascente música popular urbana dirigida a camadas sociais mais amplas, que começavam a formar-se, esse movimento de interesse romântico dos eruditos pelas manifestações consideradas “do povo” iria resultar no aparecimento da modinha seresteira, o que se daria através do casamento da linguagem rebuscada dos grandes poetas, nas letras, com a sonoridade mestiça dos choros que traduziam para as camadas médias os novos ritmos dançantes importados da Europa, na música. (Tinhorão, 1998, p.129)

Portanto, a adoção da modinha tanto pelas camadas médias da população quanto pelos

eruditos novecentistas foram os fatores responsáveis pela efetiva difusão dessa prática que

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contribuiu para delimitar e consolidar as características da canção popular sentimental brasileira,

que teve seu apogeu nas primeiras décadas do século XX

Resta acrescentar que a modinha, hoje denominada popularmente seresta, nos botequins e nas churrascarias de subúrbio, onde se refugiou, reveste também o ritmo do fox-canção brasileiro, tão divulgado nas décadas de 1930 e 1940. Nessas serestas, quase nunca deixam de ser cantados, ao lado de "Chão de estrelas" (Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, 1937), "Lábios que beijei" (J. Cascata e Leonel Azevedo, 1937) ou de sambas de Ary Barroso, Noel Rosa e Lupicínio Rodrigues, os fox-canção "Nada além" (Custódio Mesquita e Mário Lago, 1938), "Renúncia" (Roberto Martins e Mário Rossi, 1942) ou "Mulher" (Custódio Mesquita e Sadi Cabral, 1940). (Albin, Dicionário on-line)

Ao repertório contido na citação, podemos acrescentar músicas que fazem parte de um

vocabulário mais regional e que certamente faziam parte do cotidiano musical dos Ornelas, como

Amo-te Muito, do compositor montes-clarense João Chaves, A Ti Flor do Céu, de Teodomiro Alves

Pereira e Modesto A. Ferreira; sem falar nas cantigas de roda herdadas do folclore mineiro como o

Peixe Vivo (exemplificadas na próxima página), ou ainda o hino não oficial do Estado, Oh! Minas

Gerais, esta, uma adaptação da valsa italiana Vieni Sul Mar e gravada por Nivaldo Ornelas em

versão instrumental no disco Arredores de 1998. Também é comum a esses grupos a interpretação

de choros, como exposto por Nivaldo Ornelas, especialmente os do tipo choro-canção, citem-se:

Carinhoso de Pixinguinha e Flor Amorosa de Joaquim Callado.

Exemplo musical 29. Melodia de Amo-te Muito de João Chaves, possivelmente composta durante os anos 1950.

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Exemplo musical 30. A Ti Flor do Céu, de Teodomiro Pereira e Modesto Ferreira, outra composição do cancioneiro das Serestas em Minas Gerais da primeira metade do século XX.

Exemplo musical 31. O Peixe Vivo, do folclore mineiro e famosa em todo Brasil por ter sido uma das canções favoritas de JK.

O aspecto de canção que está sendo creditado ao caráter de Nova Suíssa Sábado à Tarde

pode ser estendido a um outro tipo de produção musical realizada por Ornelas, que além de se

inscrever no universo da música instrumental também tem realizações ligadas à produção das

canções letradas, como na música João Rosa, do autor em parceria com Murilo Antunes, música

constituinte da trilha do filme homônimo de Helvécio Ratton, premiado no festival de cinema de

Brasília em 1984 e incluída como faixa bônus no relançamento em CD do álbum À Tarde lançado

em 2007. Parte dessa produção de canções também pode ser vista em CD produzido por Nivaldo

Ornelas e lançado em 2007 pela cantora Margareth Reali intitulado Um Trem Para o Sonho, onde a

cantora gravou apenas canções de Ornelas letradas por Murilo Antunes, Tavinho Moura, Ana

Buarque de Hollanda além de letra do próprio Ornelas.

Em dados gerais, Nova Suissa, Sábado à Tarde é dividida basicamente em duas grandes

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seções que funcionam de maneira praticamente independentes, podendo a primeira seção ser

compreendida do compasso 1 ao 26; e a segunda, do compasso 27 ao 61, incluída uma Coda do

compasso 62 ao 69. A música pode ser percebida e grafada em compasso quaternário simples (4/4)

ou binário simples (2/2), com exceção da Coda onde se optou por sua grafia em 2/4 devido a

questões de sua constituição fraseológica. A tonalidade da primeira seção da música tende ao Sol

Maior, enquanto que a segunda ao seu relativo, Mi Menor, sendo que no início da peça a harmonia

realizada pelo piano não deixa bem claro os acordes em questão, acontecimento flagrado já no

primeiro compasso da peça onde o contrabaixo realiza uma linha descendente com passagens

cromáticas e o piano esboça alguns acordes arpejados, sem efetivamente completá-los:

Exemplo musical 32. c. 1-4 de Nova Suissa Sábado à Tarde, partes de saxofone tenor e piano, com realização o baixo na mão esquerda..

A impressão que se tem é que aos poucos a harmonia da música vai tomando forma, como

que tateando notas deste campo harmônico que inicialmente parece ser o de Sol Maior, já que as

inclinações anteriores são mais bem definidas em sua tônica relativa e especificamente nesse trecho

a resolução se dá sobre a região de subdominante, Dó Maior. No primeiro compasso é muito difícil

identificar o acorde inicial, já que temos as notas mi natural no baixo, com as notas fá sustenido, si

natural e mi natural, reforçado pela nota fá sustenido da melodia, numa distribuição harmônica de

organização quartal. Já no acorde seguinte, ainda no mesmo compasso, o deslocamento do baixo

para a nota ré sustenido pode indicar um acorde de B/D#, seguindo nos compassos seguintes para

no que poderia ser cifrado como os acordes de G7M/D, C#m7(11), C7M(#11), Am11/C e C7M.

Dessa primeira sequencia de acordes nota-se os seus usos muito mais ligados aos coloridos

harmônicos e condução das três “linhas melódicas”, considerando que o piano realiza durante boa

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parte da música acordes arpejados, tendendo a um tratamento melódico desses acordes. Essa relação

pode ser notada, por exemplo, entre a melodia realizada pelo saxofone tenor e o baixo durante a

realização de Nova Suissa, Sábado à Tarde. Relativo a esse tipo de pensamento que privilegia a

escrita horizontal das linhas instrumentais, Nivaldo Ornelas relata seu ponto de vista em entrevista

por ele concedida em abril de 2009 (informação verbal):

Nivaldo – A harmonia de jazz ou da música erudita contemporânea ela começa aí, passa por Bach, pela...

Bernardo – Umhum. Nivaldo – Essa harmonia é vertical, depois passa por Bach que é horizontal. É assim ó. Bernardo – Umhum.

Nivaldo - A harmonia vertical são acordes parados, tum, tum, tum. A harmonia vertical, é... horizontal não tem acordes ela tem melodias que se, né?

Bernardo – O punctus contra punctus. Nivaldo – É, isso aí eu estudei bastante comigo mesmo, me ajudou muito a escrever então eu falei: Caramba! O grande segredo da escrita é horizontal, esse é o segredo, são melodias, eu toco instrumento de melodia, então eu já tenho um dado, nós temos né?

Bernardo – Umhum. Nivaldo – Eu tenho um dado a meu favor. Apesar de parecer uma harmonia pouco usual, a performance de Wagner Tiso para a parte de

piano, na verdade, se dá de modo a “mascarar” alguns desses acordes, ao mesmo tempo

escondendo notas de suas tríades de origem e valorizando as extensões harmônicas. Ao nos

depararmos como a cifra escrita pelo próprio autor para o trecho notamos que, bem da verdade, a

harmonia implícita na performance e explicitada na cifragem original da peça é muito mais simples

e usual do que a análise de sua transcrição, principalmente do que a linha de piano nos revela. A

seqüência harmônica escrita por Ornelas para os quatro primeiros compassos da música é a

seguinte: Em9, Em9/D#, Em/D, Em/C#, C7M, D/G (apesar de na gravação haver um baixo pedal na

nota dó natural) e C7M, como demonstra o exemplo musical 33, disposto a seguir.

Exemplo Musical 33: Primeiros 4 compassos de Nova Suissa, Sábado à Tarde apresentando cifragem do autor.

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A partir da cifragem é perceptível a intenção do autor em relizar um baixo cromático

partindo da nota mi natural, fundamnetal da tonalidade da música (Mi Menor), até a nota dó natural.

Esse caminho cromático da linha de baixo tendencía a audição a ouvir outros acordes,

principalmente nos casos do Em9/D#, onde se omitida a fundamental, nota mi natural, o resultado é

o de um acorde de B/D# e outro de Em/C#, resultando em um acorde de C#m(b5)7, de modo que,

acrescidas essas características, Wagner Tiso ao mesmo tempo em que acrescenta outras notas

comuns as escalas dos acordes anteriormente citados , omite outras notas chave para a identificação

dos acordes tal qual previstos.

A segunda seção da música é iniciada pelo coro misto que apresenta este segundo tema, logo

em seguida há a repetição deste, mas agora entoado pelo saxofone que infere pequenas mudanças

interpretativas, nuances de divisão da melodia. Por sua vez, o coro realiza uma condução harmônica

como fundo, tendo em ambas as realizações o acompanhamento do piano e do contrabaixo elétrico

como demonstram os exemplos a seguir:

Exemplo musical 34. c. 26-29 Exposição do tema da Seção B realizada pelo coro em Nova Suissa Sábado à Tarde.

Exemplo musical 35. c. 35-39 Re-Exposição do tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde realizado ao Saxofone Tenor.

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Outro fato que não deve ser omitido é a linha de piano realizada por Wagner Tiso, que entre

blocos de acordes e passagens fraseadas dialoga com a linha de baixo caracterizada por figuras de

semínimas pontuadas seguidas de colcheias, ostinato preponderante nesta peça e que aparece tanto

na linha de baixo quanto na linha melódica da seção B:

Exemplo musical 36. Linhas de Piano e Baixo durante tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde

Ritmicamente, a condução dita de seresta é realizada, mormente, pelos violões, onde por

tradição desenvolveram essas linhas de condução de baixaria a partir de referências da polca e da

habanera. A polca no século XIX, segundo Bruno Kieffer (apud Braga, p.15, 2002), diferentemente

do seu entendimento atual, era tocada em andamento lento e como ostinato apresenta, em um

compasso binário simples (2/4), uma figura com colcheia seguida de duas semicolcheias e outra

com duas colcheias. Com o desenvolvimento da prática, o baixo de habanera passou a influir na

realização deste formante transformando-o, como sugere Luiz Otávio Braga em seu método O

Violão de 7 Cordas – teoria e prática como acompanhamento para a modinha:

A fórmula seguinte se presta ao acompanhamento de grande variedade de modinhas, bem como se aplica às serestas. Cabe bem lembrar que essas formas de acompanhamento da modinha ligam-se à polca e ao schottish, se bem observado. (BRAGA, 2002, p.18)

Exemplo musical 37. Exemplo de acompanhamento da modinha para o violão de 7 cordas segundo Luiz Otávio Braga.

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O exemplo anterior, se reduzido a um único ostinato rítmico poderia ser escrito da seguinte

maneira (escrito no compasso quaternário simples de Nova Suissa, Sábado à Tarde):

Exemplo musical 38. Ostinato reduzido da modinha, resultando na polca brasileira.

Exemplo musical 39. Através da ligadura da semínima com a primeira colcheia do segundo tempo obtêm-se o ostinato tipo de habanera

Vê-se, portanto, uma genealogia da polca ligada diretamente à realização da modinha e

consequentemente das chamadas serestas. Da realização do ostinato indicado de habanera,

devemos ponderar para a seguinte característica: Quando realizado dentro do gênero cubano, o

ostinato acima representado - que pode ser tocado tanto pelo baixo quanto pela mão esquerda do

piano - vem frequentemente acompanhado pelo arpejo do acorde ao qual se refere, ocorre com certa

rotina que o intervalo entre a última semínima do ostinato e a semínima pontuada de sua repetição

apresente um salto de quarta justa ascendente, ou seja, num movimento de V – I:

Exemplo musical 40. Baixo arpejado utilizado na Habanera

Podemos comprovar o uso do ostinato também em acompanhamentos de piano, como na

partitura de Tú, composição de Eduardo Sánchez de Fuentes. Vale notar os saltos de terça maior

ascendente do baixo entre os acordes de F e C7/E, e o salto de quinta justa descendente entre os

acordes de C7 e F, corriqueiros na prática do gênero cubano:

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Exemplo musical 41. Trecho de Tú, Habanera composta por Eduardo Sánchez de Fuentes.

Distintamente, na música brasileira quando da realização do referido ostinato, este não

necessariamente aparece com esta disposição arpejada, além de poder ser apresentado com uma

série de modificações Deve-se a esta hibridação, entre as linhas da polca e da habanera, e seus

desdobramentos, a formação e consolidação de praticamente toda a música popular urbana do

século XX no Brasil. Na música de Nivaldo Ornelas, o uso dado às linhas de baixo, já que congrega

as características de baixo harmônico e rítmico, não chega explicitamente a utilizar o formante que

seria característico das Serestas, mas há um desenvolvimento deste, uma variação onde é repetida a

célula de semínima pontuada seguida de colcheia, mais próxima à realização do samba-canção, já

citado, mas em outros momentos, aparece com usos compartilhados como os citados por Braga:

Exemplo musical 42. c. 27-30: linha de baixo de Nova Suissa Sábado à tarde, os compassos 29 e 30 apresentam um desenho próximo ao do tradição das ditas serestas.

Em outras passagens, há a uso de outras conduções de baixo que também se assemelham ao

exemplo dado por Braga (exemplo musical 37, p. 75), como as variações apresentadas no exemplo

musical 43, a seguir, onde a última semínima é substituída por uma pausa de semicolcheia e outras

três colcheias são tocadas em movimento tanto ascendente quanto descendente:

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Exemplo musical 43. Realização do baixo de Nova Suissa, Sábado À Tarde com variação da linha de baixo próxima à realização sugerida por Luiz Otávio Braga no violão de 7 cordas.

Quanto ao desenho melódico do tema da Seção B (exemplo musical 34, p. 74), é notório o

extremo grau de simplicidade com que Nivaldo Ornelas o constrói, onde melodia, harmonia e

tempo harmônico são estruturas praticamente indissociáveis para seu entendimento. Sobre uma

harmonia no campo harmônico de Mi menor natural, constituída dos acordes de Em, D, C, G/B, C,

A/C# e D, uma melodia insistente constituída em seus dois primeiros compassos por apenas uma

nota, a si, realizada em semínimas pontuadas seguidas de colcheias perpassa toda a estrutura

harmônica do trecho, já que os acordes se dão a cada 2 tempos em compasso quaternário, sendo a

nota si natural, inicialmente quinta justa de Em, sexta maior em D, sétima maior em C, terça maior

de G/B e voltando como sétima maior de C. A melodia só muda de altura nos dois últimos acordes,

caminhando em grau conjunto para a nota lá natural, fundamental de A/C# e resolvendo em D com

ambas as notas, si e lá, uma em cada tempo do compasso.

A partir daí, esta mesma estrutura harmônica servirá de base para uma variação melódica

(exemplo musical 46, p. 79) sendo utilizado como acorde para a volta ao tema B/D#, dominante de

Em, e no que seria, aparentemente, uma terceira repetição, a harmonia aponta outra direção,

podendo essa terceira repetição ser considerada uma variação melódica com um desenvolvimento

da harmonia para além daquela da seção B, conduzindo a música para a Coda, de modo que a re-

exposição do tema é realizada de maneira quase que imitativa somente no início dessa seção, como

exposto anteriormente, havendo assim um caráter rapsódico em sua construção. Outro fato

interessante é que as variações melódicas apresentadas não são, nesse caso, improvisadas. Estas

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82

variações são percebidas como solos, mas que apresentam forte grau de simbiose com a composição

por apresentarem grande coerência em seu desenvolvimento e um sentido de complementaridade

com o restante do material melódico apresentado.

Exemplo musical 44. c. 35-39, Tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde

Exemplo musical 45. c.39 – 43, Variação do Tema da Seção B de Nova Suíssa Sábado à Tarde

Exemplo musical 46. c. 45-53. Primeiros 9 compassos da terceira variação estendida da Seção B, desta vez com variações melódica e harmônica.

O contínuo uso de melodias em graus conjuntos alude o seu emprego à tradição das canções,

formas musicais nas quais as melodias normalmente apresentam pouca sinuosidade devido

justamente ao fato de serem cantadas. Como definição do Dicionário Grove de Música em sua

Edição Concisa, encontramos o verbete Canção que revela (1994, p.160): “Peça musical,

habitualmente curta e independente, para voz ou vozes, acompanhada ou sem acompanhamento,

sacra ou secular. Em alguns usos modernos, o termo implica música secular para uma voz”. Note-se

a definição do termo como para voz sem denotar se há ou não a presença de texto, apesar de haver

como entendimento para muitos autores, que a inclusão de texto é fundamental para que a

composição se torne realmente canção, mas por outro lado, com a consolidação deste modo de

compor, os elementos constituintes da prática puderam denotar uma forma-canção na qual a música

pôde se desvencilhar da textualidade, como nas Canções Sem Palavras, termo utilizado

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inicialmente por Mendelssohn, mas que posteriormente batizou conjuntos de obras de outros

autores como Schubert, Tchaikovsky e Fauré e que, segundo o mesmo Dicionário Grove de Música,

trata-se de uma “pequena peça para piano, de natureza lírica”. Outros termos também podem se

referir a esta forma composicional, tais como lied, chansong, ballad, umas tendendo mais para o

caráter camerístico, outras para um perfil popular ou mesmo folclórico, fato é que são estróficas,

podendo conter refrões e acima de tudo, um caráter lírico, como destacado no verbete anteriormente

citado.

O fato de ser sacra ou secular também nos é cara para esta análise, já que podem ser

vislumbradas duas linhas convergentes para a constituição referencial da composição Nova Suissa,

Sábado À Tarde como tal. Da possível referência sacra que Nivaldo Ornelas nos apresenta parte

tanto da escolha de alguns dos instrumentos utilizados, bem como no tratamento polifônico de

horizontalidade harmônica. Este duplo uso funcional da canção no Brasil, entre o sacro e o secular,

e em especial no uso das modinhas do século XVIII é exposto por José Ramos Tinhorão:

A pequena elite dos principais centros da colônia – Olinda, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, e, com a explosão urbana provocada pela corrida do ouro desde a virada do século XVII para XVIII, as várias Vilas do Recôncavo, e das minas gerais e de Cuiabá – contou sempre para seu divertimento com a música dos mestres de capela das igrejas e das charamelas palacianas. Na igreja não era raro ouvir-se cantigas (a ponto de em 1773 o bispo Frei Antônio do Desterro criticar em pastoral os músicos mineiros por achar “nas músicas que se cantavão nas festividades das igrejas muita profanidade e endecencia”) e, nas festas oficiais, incluiam-se sempre serenatas ao governador (como as realizadas em honra ao conde das Galveas em 1733, em Ouro Preto, ou do marquês do Lavradio em Salvador, em 1760). É bem verdade que se tratava em ambos os casos mais de música para ouvir do que para cantar, porque os músicos de igreja – mesmo os mulatos recrutados nas baixas camadas – não compunham suas “profanidades” em estilo popular, mas eruditamente para várias vozes, e as tais serenatas às autoridades não eram cantorias sob as janelas, mas saraus com “boas músicas, e bem vestidas figuras”,(...) (Tinhorão, 1998, p. 115)

Destas referências sacras em Nova Suissa Sábado à Tarde podem ser consideradas parte da

instrumentação utilizada, com coro e órgão, além do caráter solene da peça. Quanto ao uso desta

instrumentação específica, é fato que ela funciona mais como um recurso de timbre, já que boa

parte do coro e do órgão, que é parcimoniosamente utilizado, replica a harmonia e mesmo a

disposição dos acordes encontrados na parte de piano, quando polifônico, ou na linha melódica do

saxofone, quando em uníssono. Um exemplo desta redundância ocorre na Ponte que liga a

exposição do tema da Seção B com a reapresentação deste realizado pelo saxofone tenor.

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Exemplo musical 47. c. 32-35, Dobra da linha de Vozes e Piano em Ponte de Nova Suissa, Sábado À Tarde.

A amostragem dessas ocorrências vem corroborar a constatação de usos de diversos

materiais musicais na obra de Nivaldo Ornelas e, por conseguinte, na modalidade música

instrumental na qual o autor se insere, principalmente através de seus discos de carreira. A Nova

Suissa e as práticas musicais ligadas principalmente aos círculos familiares do músico, expressas

aqui através das Serestas e da música sacra, exemplificam algumas das reconversões24 utilizadas

por Ornelas em suas peças, mas que não se restringem apenas às referências de suas raízes

familiares e “nacionais”, ou “regionais”, mas também às referências externas, do cosmopolitismo

dos centros urbanos, da volatilidade de modismos e estrangeirismos comuns à multiplicidade da

chamada pós-modernidade, problematizado por Néstor Garcia Canclini da seguinte maneira:

Mas, ao mesmo tempo, resisti a considerar a pós-modernidade como uma etapa que substituiria a época moderna. Preferi concebê-la como um modo de problematizar as articulações que a modernidade estabeleceu com as tradições que tentou excluir ou superar. A deslocação dos patrimônios étnicos e nacionais, assim como a desterritorialização e a reconversão de saberes e costumes foram examinados como recursos para hibridar-se. (Canclini, 2001, p.XXX)

Nesse sentido, a obra do saxofonista e as realizações em música instrumental de um modo

geral estão atreladas a novas experiências de inclusão de características musicais provenientes de

práticas de certo modo rejeitadas e consideradas talvez menores, como no caso das serestas, que nas

últimas décadas do século XX foi sendo paulatinamente excluída do trato das elites culturais

24 Utilizamos o termo reconversão, tal qual citado por (Canclini, 2001, p.XVIII): Esclareçamos o significado cultural

de reconversão: este termo é utilizado para explicar as estratégias mediante as quais um pintor se converte em designer, ou as burguesias nacionais adquirem os idiomas e outras competências necessárias para reinvestir seus capitais econômicos e simbólicos em circuitos transacionais (Bourdieu). Também são encontradas estratégias de reconversão econômica e simbólica em setores populares: os migrantes camponeses que adaptam seus saberes para trabalhar e consumir na cidade ou que vinculam seu artesanato a usos modernos para interessar compradores urbanos; os operários que reformulam sua cultura de trabalho ante as novas tecnologias produtivas; os movimentos indígenas que reinserem sua demandas na política transacional ou em um discurso ecológico e aprendem a comunicá-las por rádio, televisão e internet

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brasileiras. Ornelas busca redimensionar o emprego de características musicais de gêneros como

esse em uma estética que rompe com hierarquias em busca de uma autonomia de escolhas.

3. O Rock Novo de Nivaldo Ornelas

Irrompendo os limites imaginários que protegem e cindem a urbes - Belo Horizonte - da

exterioridade dos subúrbios através do cinturão da Avenida do Contorno, as referências urbanas da

pretensa modernidade de sua região central se misturam e se contradizem com a presença das ditas

tradições rurais e regionais dos espaços públicos, como no Mercado Central, principal entreposto

comercial de Belo Horizonte de até meados do século passado e ainda importante referência da

cidade, localizado às margens da Praça Raul Soares e que é reservado ao comércio principalmente

de produtos do interior, da produção familiar de lavradores e pequenos fazendeiros. Não muito

longe dali, no interior ou nas cercanias do edifício Maletta, jovens estudantes, escritores, artistas e

intelectuais encontravam-se para compartilhar suas impressões de mundo, dos novos hábitos e da

contestação dos ditames comportamentais. Era o início dos anos 1960, a política, a literatura, o

cinema e a música, por exemplo, eram temas recorrentes dos jovens daqueles tempos e para aquela

geração em especial, a marca indelével deixada pelo rock se tornaria parte deles mesmos e de quase

todos que os sucederiam, com seus fenômenos de mercado, a revolução de comportamento, da

contracultura e o início da ruína das hegemonias estéticas e de seus cânones.

Sob essa nova perspectiva a música brasileira não poderia ficar impassível de suas

conseqüências, mudança observada nos Festivais de Música, na música de protesto, na produção da

Jovem Guarda e especialmente com a chamada Tropicália onde os estereótipos e as barreiras

estéticas de práticas musicais ligadas principalmente à música popular começaram a ser colocadas

em xeque. Dentro desse turbilhão de acontecimentos até mesmo Nivaldo Ornelas flertaria com um

gênero musical que em um primeiro momento parece conflitante à sua produção musical, mas que

através da manipulação de alguns de seus elementos é assimilada e transformada pelo

autor/intérprete em sua obra, mesmo que observada de longe, como afirma o próprio músico, ou

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seja, como um outsider dessa prática.

O processo de amadurecimento de Ornelas passou pela escuta e prática de um repertório

ligado ao rock, em especial a do grupo inglês The Beatles, como afirma o músico ao explicar como

se deu o seu aprendizado em harmonia através de um instrumento harmônico, no caso, o violão,

durante entrevista concedida em 17 de abril de 2009 (informação verbal):

Nivaldo – Marílton (Borges) é bom de harmonia, mas adora, adora madrugada. Boite é com ele mesmo, engraçado isso, mas ele é talentoso. Aí eu comecei a pegar com o Marílton. Primeiro eu peguei as músicas do Roberto Carlos, você acredita? As harmonias super simples, depois peguei tudo dos Beatles, esgotei o assunto. Tinha Falado: Esse jazz aí tá difícil, deixa pra depois. Então eu fui pelas beiradas primeiro. Falei: Que nada, essa harmonia aí não dá pra mim não. Aí peguei as coisas dos Beatles todas, bem trabalhado aquilo.

Mesmo que Ornelas não estivesse às voltas com o repertório do rock, ou seja, o gênero em

questão não fazia parte da prática musical do seu dia a dia, mas foi através desse repertório que as

primeiras referências e o entendimento de harmonia se deram, e é de se supor que, mesmo que o

músico não estivesse “preocupado” em tocar rock, marcas dessa prática foram certamente

assimiladas por ele, haja vista o grau de profundidade com que diz ter estudado o assunto.

Sob essa perspectiva, salta aos olhos em sua produção autoral a música Rock Novo, presente

inicialmente no disco Concerto Planeta Terra, de 1989, onde aparece em arranjo de Ornelas ao lado

de outras composições sob o título de Ar, e no ano seguinte a música foi gravada em seu disco

Colheita do Trigo, terceiro disco que encerra a primeira de duas trilogias temáticas do autor. A

gravação contou com os músicos Luizão Maia no baixo, Rubinho Moreira na bateria, Pierre Luc,

nos teclados, Paulinho Trompete, flugell-horn solo e Eveline Hecker nos vocais, além de Nivaldo

Ornelas no sax tenor. Em um primeiro momento chama a atenção o uso do termo rock no título da

música, o que de certa forma tendencía a escuta de seu registro na expectativa de serem percebidas

características desse gênero na gravação, mas que segundo o autor foi um equívoco, já que Rock

Novo deveria ter sido registrada como Roque Novo, em homenagem a um amigo do músico,

morador da Nova Suissa.

De todo modo, na língua portuguesa, a grafia do gênero como roque também é aceita, aliás,

esta seria a maneira aportuguesada do termo saxônio, portanto, trataremos neste tópico da

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observação de características do gênero rock na composição de Ornelas – tendo sido estas

deliberadas ou não - e suas prováveis hibridações com outros eventos contemplados dentro da

modalidade música instrumental.

Para delimitarmos o campo de investigação da música Rock Novo nos debruçamos sobre

referências harmônicas e rítmicas, principalmente, da música em questão, utilizando o livro Jazz

Styles: history and analysis de Mark C. Gridley, onde o autor identifica 9 aspectos característicos do

gênero rock. É importante salientar que as características abaixo relacionadas se referem a uma

identificação comparativa entre o rock e o jazz, gênero no qual o estudo de Gridley está

fundamentado, portanto, as proposições somente fazem sentido se observados sob esta ótica. As

características são as seguintes:

1) frases mais curtas, 2) mudanças de acordes menos frequente, 3)menor complexidade melódica, 4) menor complexidade harmônica, 5) menor uso de improvisação nos acompanhamentos, 6) grande número de repetições da mesma frase melódica, 7) repetições de progressões breves de acordes, 8) padrões rítmicos de base mais simples e

9) uma repetição pronunciada de figuras de linha de baixo, sendo a instrumentação baseada em instrumentos eletrificados. (Gridley, 1986, p. )

Genericamente, a partir de uma escuta ingênua da gravação de Rock Novo podemos

perceber alguns destes aspectos, como uma menor complexidade melódica e harmônica, além de

uma instrumentação que, mesmo parcialmente, apresenta uma disposição com instrumentos

eletrificados, no caso, teclados e baixo elétrico, além das características de menor improvisação na

linha de baixo e bateria, que realizam variações sobre levadas identificáveis com um nível de

liberdade contida, cerceada.

Em Rock Novo, a partir já desse tipo de escuta, são percebidas questões antagônicas em sua

concepção. A primeira delas diz respeito ao seu entendimento métrico, isto porque,

fraseologicamente, a melodia da música se desenvolve em uma proposição quaternária, comum ao

gênero rock, enquanto que a seção rítmica, tendo como base de sua levada o samba, e matizes de

ritmos brasileiros, infere uma cadência binária ao paradigma rítmico.

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Dentro desta dicotomia, a solução encontrada para uma grafia musical que contemplasse

este desajuste foi a escolha do compasso de 2/2, já que este pode ser lido como compasso binário ou

quaternário simples, mesmo que neste caso, as frases do tema se realizem a cada dois compassos,

ou seja, em um compasso de 4/2. Este sentido métrico dúbio já pode nos indicar que,

fraseologicamente há uma abordagem híbrida desta concepção de estrutura melódica.

Em relação especificamente à formulação dos acordes no gênero rock, David Temperley

atesta que:

É importante notar que, primeiramente, o rock é claramente um estilo harmônico, um estilo no qual a estrutura harmônica está presente. Uma peça de rock é composta por uma série de entidades harmônicas identificadas por um grupo de alturas, harmonias em rock são caracterizadas primeiramente e principalmente por acordes dispostos na fundamental, no entanto, outras informações também são importantes, tais como modos maior e menor, além de tríades e acordes com sétima. 25 (Temperley, 2001, p.253)

Referente à tonalidade da música, a relação harmônica encontrada sugere uma interação

modal, já que parte dos acordes são baseados em acordes maiores com sétima menor, o que implica

em uma harmonia no modo mixolídio, tendendo a uma resolução no acorde de G7. Por esse motivo,

ao transcrever a peça, foi adotada a armadura de Dó maior, já que Sol Mixolídio é um modo natural

extraído do campo harmônico deste tom. Esse modalismo, ainda segundo Temperley, é prática

comum nas composições do gênero:

Vários autores tem comentado sobre o caráter modal da maior parte das músicas de rock. Ao dizer que o rock é modal, nós queremos dizer que este utiliza a escala diatônica, mas com o centro tonal em posições distintas do habitual “modo maior” da música da prática comum26. Por exemplo, dada a escala de Dó Maior como a coleção de alturas, uma peça de prática comum tipicamente adotaria a nota dó como centro tonal. Uma canção de rock usando esta escala diatônica de Dó adota a nota dó também como tônica (usando o modo Jônico), ou La (usando o modo Eólio). Moore (1993, 49) notou que os modos mais comumente usadas no rock são estes quatro: o Jônico, Dórico, Mixolídio e Eólio.27

(Temperley, 2001, p258.)

25 “It is important to note, first of all, that rock is clearly an harmonic style, one in which harmonic structure is

present. A rock piece is composed by a series of harmonies-entities implied by a group of pitches; harmonies in rock are characterized first and foremost by roots, although, other information is also important, such as major/minor, and triad/seventh.”

26 O termo prática comum, “common practice”, foi amplamente utilizado por Walter Piston para se referir à música tradicional européia principalmente dos séculos XVIII e XIX.

27 “A number of authors have commented on the modal character of much rock music. By saying that rock is modal, we mean that it uses the diatonic scale, but with the tonal center at different positions in the scale than in customary “major mode” of common practice music. For example, given the C major scale as the pitch collection, a common-practice piece would typically adopt C as the tonal center. A rock song using the C diatonic scale might adopt C as tonic as well (thus using the Ionian mode), or A (the Aeolian mode). Moore (1993, 49) has noted that the most commonly used modes in rock are precisely this four: the Ionian, Dorian, Mixolydion, and Aeolian”

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Levando em consideração o enunciado anterior, vejamos como a organização harmônica da

peça se comporta em relação a possíveis modos e seus usos, sendo que o esquema

harmônico/formal da composição em questão pode ser exposto da seguinte maneira:

Tabela 2. Representação da organização formal de Rock Novo

Seção Seqüência Harmônica Número de Compassos

Seção A D 8

Seção B F 4

Seção B’ Fm 4

Seção C Fm7 – Bb/F 8

Seção D Gm7 – D7(b13) 8

Ponte / Coda G7 12

No esquema acima estão expostas as seções da música (identificadas por letras maiúsculas

em itálico); os acordes utilizados nas seções (identificados por letras maiúsculas) e o número de

compassos de cada uma das seções, ressaltando que os acordes indicados ocorrem a cada compasso

de 2/2. De um modo geral, Rock Novo está dividida em cinco grandes seções de um total de 44

compassos que se repetem, (A – (B - B’) – C – D e Coda); sendo apresentada uma pequena

introdução de 2 compassos sobre o acorde da seção A seguida da própria seção A com 8 compassos

sobre o acorde de D; uma seção B, subdividida em B e B’, sendo a primeira sobre o acorde de F (4

compassos) e a segunda sobre o acorde de Fm (outros 4 compassos); seguida da seção C de 8

compassos, sendo utilizados os acordes de Fm7 e Bb/F por compasso, ou seja, tendo em vista o

compasso binário simples utilizado na transcrição (2/2) os acordes são tocados um em cada tempo;

a seção D compreendida por 8 compassos sendo utilizados os acordes de Gm7 e D7(b13) com o

tempo harmônico igual ao da seção C. Por fim, é apresentada uma ponte sobre o acorde de G7 que

também serve como Coda.

A harmonia citada anteriormente foi escrita a partir da percepção gerada através da escuta de

seu registro sonoro e aplicada com as polarizações dos acordes e inversões apresentados, sendo que

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para Ornelas, diferentemente da cifragem aqui adotada, o seu entendimento passa pelo que ele

chama de harmonia com tríades suspensas28. Distintamente do entendimento do termo “acordes

suspensos”, que no jargão dos músicos populares se trata de um acorde com a terça maior sendo

substituída pela quarta justa, a tríade suspensa de Ornelas se refere a um baixo pedal, onde sobre ele

tríades são dispostas, podendo ou não estas tríades ter referência com o baixo ao qual se sobrepõem,

exemplifico: Um exemplo pode ser observado no trecho que compreende a seção C (vide tabela 2,

p.86), onde grafamos Fm7 e Bb/F, no entendimento do autor o primeiro acorde seria escrito como

Ab/F, ou seja, Ab com a sexta no baixo. Por ser pouco próprio para observação analítica sob este

olhar, optamos pela grafia do Fm7, mas é importante esta observação para entendermos que o autor

encara a nota fá no baixo realmente como um pedal. O entendimento dessas tríades suspensas

também pode ser estendido à seção B, onde teríamos os acordes de F e Fm com sétima, ou seja, no

entendimento de Ornelas: Am/F e Ab/F.

Da observação do esquema supracitado podemos perceber a relação do acorde de G7 com o

de D (V grau de G), na seção A, e deste com o de F (III de D) seção B. Na seção C os dois acordes

poderiam ser considerados como pertencentes ao mesmo campo harmônico, o de Mi Bemol Maior

(II e V graus), e a seção D estaria em Sol Menor. Portanto, estão aqui estabelecidas relações

reconhecíveis da prática da harmonia em rock com a peça em questão.

Enquanto que muitas canções permanecem dentro de um único modo, também é comum – talvez até normativo que canções troquem livremente entre os quatro modos comuns. Em alguns casos, uma mudança de modos ocorrerá entre seções. (Temperley, 2001, p. 258 – 259)

Sendo assim, o paradigma harmônico de Rock Novo se assemelha à descrição de Temperley,

já que Nivaldo Ornelas durante a composição trata cada seção de maneira quase independente da

anterior, restando um vínculo de progressão entre acordes através de fundamentais relacionadas

com notas da tétrade de G7 (acordes de G, D e F). Portanto, segundo o autor, as características

harmônicas do gênero rock são características de distinção deste, e que se observado em Rock Novo,

as características de tríades maiores, menores e acordes com sétima são facilmente reconhecíveis, 28 A partitura de Rock Novo que se encontra em anexo à esta tese prevê outras inversões cifradas nessa edição, mas que

podem ser entendidas como extensões harmônicas dos acordes que polarizam cada uma das seções identificadas.

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além da construção melódica que como identificada por Gridley apresenta menor complexidade:

Uma pergunta importante a se fazer sobre qualquer estilo harmônico é referente a quais graus da escala (relativos à fundamental) que são considerados como notas do acorde. (...) os sons primordiais do acorde usados na música de prática comum são 1, 5, 3, b3, e b7. No entanto, isto não é verdade para todos os estilos harmônicos. No jazz, há uma imensa variedade de notas do acorde; 2 (normalmente chamada de 9) e 6 (ou 13) são amplamente usadas, além de outras. No rock, os graus comuns de notas do acorde parecem ser mais ou menos os mesmos daqueles usados na música de prática comum. Ou seja, a maioria das notas tem uma relação de 1, 5, 3, b3, ou b7 com a respectiva fundamental, a menos que estas sejam ornamentais (seguidas de perto). (...) Há casos de adição de sextas, nonas e outras alturas usadas como notas do acorde no rock, mas tais casos ocorrem ocasionalmente na música de prática comum também.29 (Temperley, 2001, p. 256)

Pode ser notado que na melodia de Rock Novo estas características do uso de sons do acorde,

sobre uma tríade maior, como visto anteriormente:

Exemplo musical 48. c. 9-16: exposição do tema de Rock Novo, a melodia é toda baseada nas notas fá sustenido e lá, respectivamente terça e quinta do acorde de D.

Como exceções da relação da construção melódica com os paradigmas do rock, temos o uso de

extensões harmônicas30 também conhecidas pelo termo tensões harmônicas, notas estas

complementares à tríade do acorde na qual ele se realiza:

Exemplo musical 49. c. 33 – 36: notas Si Bemol, décimas terceiras menores do acorde de D7(b13)

Além do fato de termos as décimas - terceiras menores valorizadas na construção melódica deste

trecho da peça, um dado da progressão do rock fica exposto. Ainda segundo David Temperley

Assim como Moore (1992, 1995) demonstrou, as regras de progressão no rock são bem diferentes daquelas da prática comum: particularmente, a cadência V-I que serve como papel central na música

29 “An important question to ask about any harmonic style is what scale degrees (relative to the root) are permitted as

chord-tones(…) the primary chord-tones in common practice music are 1, 5, 3, b3, and b7(HPR1). However, this is not true for all harmonic styles. In jazz, there is a wider variety of chord-tones;2 (usually known as 9) and 6 (or 13) are widely used, and others as well. In rock , the common chord-tones appearto be more or less the same as in common-practice music. That is, most notes have a relationship of 1, 5, 3, b3 or b7 with the current root, unless they are ornamental(closely followed stepwise). (…) There are cases of added sixths, nineths ond other tones used as chord-tones in rock, but such cases occur occasionally in common-practice music as well.”

30 “Tensão” harmônica é uma corruptela brasileira para o termo em inglês harmonic extension. (FABRIS, BORÉM, p. 14, 2005)

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de prática comum é virtualmente ausente no rock.31 (Temperley, 2001, p.258)

Este uso dos acordes Gm7 e D7(b13) (I e V graus), durante a seção D, estabelece uma

intencionalidade tonal a uma peça que notadamente recebe um tratamento modal, tanto que a

resolução do trecho citado resolve sobre o acorde de G7.

Outro modo largamente utilizado no rock é o dórico. Seu uso é reconhecível na música Rock

Novo, como visto a seguir:

Exemplo musical 50. c.25-28, Uso do modo Dórico em Rock Novo.

Neste exemplo pode ser observado o uso dos acordes de Fm7 e Bb/F. Apesar da cifragem do

acorde de Bb/F representar uma inversão deste acorde com a quinta no baixo, a intencionalidade da

inversão está relacionada ao uso de um baixo pedal. A partir deste ponto de vista ambos acordes

podem ser considerados pertencentes ao mesmo modo, o Dórico, já que o acorde de Fm7 polariza o

trecho, podendo o acorde de Bb ser considerado uma extensão harmônica do anterior, com a

presença das notas si bemol (décima primeira justa) e ré natural (décima terceira maior), sendo esta

a nota de distinção do modo referido. Já a linha melódica do trecho não afirma e nem desmente este

uso, sendo que as notas utilizadas são lá bemol, dó natural, si bemol e fá e sobre o acorde de Bb/F

as notas utilizadas são sempre si bemol e fá.

Ritmicamente, a gravação de Rock Novo é tocada com uma levada próxima à realização do

31 “As Moore (1992, 1995) has shown, the rules of progression in rock are clearly quite different from those of

common-practice music: in particular, the V-I cadence which serves such a central role in common-practice music is virtually absent in rock.”

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samba, mas com uma linha do bumbo da bateria antecipando o primeiro tempo do compasso. Essa

realização é contestada por Ornelas, dizendo que deveria ser feita de outro modo (informação

verbal):

Nivaldo – Tava meio sambeado o Rubinho, Bernardo – Exatamente. Nivaldo – Contrariando o que eu queria. Bernardo – Ah, é? Foi contrariado? Nivaldo – Não, eu queria, mas não daquele jeito, era diferente aquilo...Eu não sei explicar bem, era entre aquilo... Bernardo – (Solfeja um ritmo) Nivaldo – Que a batida do Rock Novo, a melhor que tem é essa aqui (bate um ritmo na coxa), meio Weather Report naquilo, mas eu queria aquilo sambeado, mas ele tocou samba. Eu queria uma coisa mais moderna. Bernardo – É um samba com um bumbo adiantado. Nivaldo – Eu tenho um vídeo da TV Manchete tocando Rock Novo que eu acho que é campeão

O ostinato rítmico ao qual Ornelas diz preferir em relação ao que foi realizado pelo baterista

Rubinho é referendado no grupo estadunidense Weather Report, que teve como membros

fundadores e únicos músicos a participar de todos os discos da banda o pianista e tecladista

austríaco radicado nos Estados Unidos Joe Zawinul (1932-2007) e o saxofonista estadunidense

Wayne Shorter (1933 -), músico que participou do grupo de Miles Davis durante os sessenta e que

gravou, juntamente com Milton Nascimento, o célebre Native Dancer de 1974. O Weather Report

foi um dos precursores do chamado jazz fusion da década de 1970, estilo de jazz que contempla a

fusão de elementos, principalmente do rock e do funk ao jazz, incluindo uma instrumentação que

privilegia instrumentos eletrificados, como sintetizadores, guitarras e baixos elétricos além de um

forte apelo aos ostinatos rítmicos em backbeat32, com a acentuação da caixa da bateria nos tempos 2

e 4 de compassos quaternários simples. O ostinato rítmico demonstrado por Ornelas durante a

entrevista se assemelha à linha de bateria realizada pelo percussionista e baterista peruano Alex

Acuña (1944 -) na música Birdland, composição de Joe Zawinul presente no disco Heavy Weather

de 1977. Os exemplos a seguir demonstram, de maneira sintética, os ostinatos de Acuña para

Birdland e de Rubinho em Rock Novo

32 Backbeat é um termo inglês que se refere à aplicação de acentos em tempos fracos, muito comum às realizações no

rock.

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Exemplo musical 51. Ostinato Rítmico Simplificado realizado por Alex Acuña em Birdland: vale ressaltar que a linha

de bumbo (voz inferior) é realizada com bastante liberdade rítmica que neste exemplo é apenas ilustrado.

Exemplo musical 52. Ostinato realizado pelo baterista Rubinho na seção A de Rock Novo.

Exemplo musical 53. Ostinato realizado pelo baterista Rubinho na seção B de Rock Novo.

Cabe explicar que as vozes escritas no exemplo anterior se referem ao chimbau na voz

superior, caixa e aro na voz intermediária e bumbo na voz inferior. A comparação entre os exemplos

mostra de fato que a realização de Rock Novo difere em muito daquela de Acuña, o que demonstra

que em música popular este tipo de realização, em muito, é decidida pelo instrumentista que realiza

aquela linha, não sendo sequer escrita uma guia para o baterista, sendo as partes de percussão

precedidas de indicações do tipo, Samba ou Funk e quando muito, algumas intervenções nos moldes

de convenções ou ataques coletivos. Mais uma vez, prevalecem as referências cruzadas, ora de

estruturas musicais da música brasileira, ora de referências do jazz, como nos intermezzos do tema,

que consistem basicamente de um riff realizado pelo teclado e algumas vezes dobrados pelas vozes

ou pelos sopros sobre um acorde de G7. Um riff consiste em uma frase curta que é repetida,

normalmente por um naipe, portanto, comum às formações e Big Bands. Na música cubana,

também existem espécies de riffs, lá chamados de mambos e que foram consagrados por Perez

Prado e sua orquestra.

No caso do riff encontrado na introdução de Rock Novo, há uma similaridade estrutural que a

aproxima de All Blues, composição de Miles Davis, presente disco Kind of Blue de 1959. Em

relação a Davis, Ornelas aponta o músico norte-americano como uma de suas referências,

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principalmente em relação aos usos harmônicos, tanto para ele quanto para Milton Nascimento,

como exposto em trecho de entrevista transcrita a seguir (informação verbal):

Nivaldo – (...) esse o Bituca era apaixonado e eu também, do Miles com Gil Evans, ali foi o nosso grande professor de harmonia foi aquilo ali.

Bernardo – Qual? O Birth of the Cool? Nivaldo – Não, não. Miles e Gil Evans. Bernardo – Miles Ahead?

Nivaldo – Miles Ahead, Porgy and Bess, Quiet Nights e Sketches of Spain, esses quatro aí. O Bituca levava lá em casa pra ouvir, na minha casa era um pólo ferrado. O pessoal ia lá pra casa pra ouvir, porque lá em casa tinha ambiente pra ouvir, meus pais davam força, então, o pessoal ia pra lá. Passava tardes e tardes. Era muito interessante.

Os riffs de All Blues e de Rock Novo podem ser comparados nos exemplos a seguir:

Exemplo musical 54. Riff de saxofones alto e tenor realizados por Julian “Cannonball “Adderley e John Coltrane no disco de Miles Davis Kind of Blue durante a música All Blues.

Exemplo musical 55. Riff de Rock Novo presente no disco Colheita do Trigo na parte de teclado realizada por Pierre Luc.

A referência aqui suscitada demonstra a similaridade nos usos de materiais musicais entre a

composição de Davis e o arranjo de Ornelas, fortalecendo ainda mais o entendimento das

hibridações ocorridas entre práticas musicais diversas, seja referendado em gêneros musicais

estrangeiros, casos do rock e do jazz, ou na própria tradição da música popular brasileira:

Falar de fusões não nos deve fazer descuidar do que resiste ou se cinde. A teoria da hibridação tem que levar em conta os movimentos que a rejeitam. Não provêm somente dos fundamentalismos que se opõem aos sincretismos religiosos e à mestiçagem intercultural. Existem resistências a aceitar estas e outras formas de hibridação porque geram insegurança nas culturas e conspiram contra a sua auto-estima etnocêntrica. Também é desafiado para o pensamento moderno de tipo analítico, acostumado a separar binariamente o civilizado do selvagem, o nacional do estrangeiro, o anglo do latino. (Canclini, 2001, p.XXXII – XXXIII)

Levando-se em consideração que o campo das estruturas discretas passíveis de identificação

dos processos híbridos em Rock Novo é impressionantemente vasto, nos satisfazemos com os

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exemplos anteriormente expostos como representativos desses processos de desterritorialização e

reterritorialização de referências musicais diversas dispostas em um contexto multicultural e

transacional, mas que simultaneamente, mantêm sua identificação com o local, num processo de

hibridação que não nega a tradição e tampouco o torna um fenômeno a – histórico ou pertencente a

uma pretensa e equivocada “cultura universal”, pelo contrário, composições como o Rock Novo de

certo modo demonstra que esse tipo de realização musical tem fortes laços com o tempo e o espaço

no qual foi concebido, demonstrando que o fenômeno da hibridação gera resultados amplamente

diversos se alteradas quaisquer das variáveis envolvidas no processo. O embate entre os binômios

propostos na citação anteriormente apresentada denota os conflitos gerados pelo enfrentamento

dessas polarizações, oposições que no mundo contemporâneo são redimensionadas, rompendo com

os maniqueísmos que outrora normalizaram as relações sociais e culturais.

4. Ninfas: O Encontro dos Opostos

Esta quarta e última análise se refere à composição Ninfas lançada no primeiro disco de

Nivaldo Ornelas, Portal dos Anjos, datado de 1978. Não por acaso a referida composição foi

escolhida para encerrar esta seção de análises, já que a música apresenta de maneira contundente o

fenômeno de hibridação, já exposto e argumentado nas análises apresentadas anteriormente. O que

se pretende aqui é descrever mais um dos processos de hibridação entre práticas musicais diversas e

que constituem parte do universo sonoro do músico mineiro, um recorte representativo da produção

na chamada música instrumental.

Comecemos pelo título da música: Ninfas. Segundo Deonísio da Silva em seu dicionário

etimológico De Onde Vêm as Palavras, a palavra ninfa é radicada no latim ninpha, que por sua vez

tem origem no grego númphes e anteriormente presente no hebraico nephes, significando alma. Na

mitologia grega são seres telúricos, deusas que personificam a natureza, a terra, os rios, o oceano e

as árvores, tema recorrente na literatura musical, tal qual Syrinx, composição para flauta solo de

Claude Debussy de 1913. Nivaldo Ornelas não chega a deixar subentendida nenhuma referência à

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mitologia helênica, segundo o autor, o nome da composição foi escolhido em concordância com a

temática de seu disco de estréia, onde ele procurou dar uma conotação de algo sobrenatural e

mágico aos títulos das composições presentes nesse disco.

Ninfas apresenta uma instrumentação recorrente nas gravações autorais do músico, como

vozes, órgão, violão, guitarra, contrabaixo, percussão, bateria e saxofone. A reiteração do uso de

vozes ou coro dá a essas composições, além do caráter de canção, como exposto na análise de Nova

Suissa, Sábado à Tarde, também um entendimento de que o uso desses vocalizes ressalta uma

característica que tende a uma perspectiva intuitiva e experimental que a produção em música

instrumental - e mais fortemente quando autoral - demanda, em oposição ao automatismo, por

exemplo, das músicas de encomenda e dos arranjos comerciais, realizados normalmente através da

aplicação de fórmulas e técnicas de orquestração e harmonização, que não tem a intenção

primordial de se distinguir da produção ordinária dos arranjos já existentes, se prestando

simplesmente a “funcionar”, sem diferenciar de maneira veemente a produção de seus autores.

Músicos compositores de música popular, em geral, objetivam a criação musical

referendada, mormente por escolhas que legitimem a individualidade dos usos de materiais

musicais envolvidos na composição, e do acaso, da imprevisibilidade, num desprendimento dos

determinismos impostos pelas regras de organização musical. Caminhos estes não determinados,

mas orientados pelo compositor, sempre pronto para que o inesperado o faça uma surpresa33, de

modo que sua produção se diferencie da produção média dos demais autores, como comenta Néstor

Canclini, ao se referir à produção das vanguardas, movimento que é parcialmente compartilhado

com a produção de Ornelas.

Essa exacerbação narcisista da descontinuidade gera um novo tipo de ritual, que na verdade é uma conseqüência extrema do que as vanguardas vinham fazendo. Nós os chamaremos ritos de egresso. Dado que o máximo valor estético é a renovação incessante, para pertencer ao mundo da arte não se pode repetir o já feito, o legítimo, o compartilhado. Devem-se iniciar formas de representação não codificadas (do impressionismo ao surrealismo), inventar estruturas imprevisíveis (da arte fantástica à geométrica), e relacionar imagens que, na realidade, pertencem a cadeias semânticas diversas e que ninguém tinha associado (dos collages às performances). (Canclini, 2001, p.49)

Para alguns compositores, o ato da criação musical está intimamente ligado à idéia de

33 Citação de trecho da letra de Eu e a Brisa de Johnny Alf (1929 – 2010)

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inspiração, para outros pode ser um processo de construção paulatina, mas que em geral, lida com

elementos de experimentação e de busca pela novidade. Para Nivaldo Ornelas, diz o autor, o ato de

compor deve ser precedido de algo que renda música, uma idéia melódica ou harmônica que possa

ser desenvolvida (informação verbal):

Nivaldo – Muitas das coisas que eu fiz é porque eu ia gravar, falava: Vou fazer alguma coisa pra mim [sic] gravar. E quando eu começo vira uma coisa quase que sessão espírita. Sabe o cara que faz psicografia? Eu faço psicossom. O sujeito, a sessão espírita não fica lá e toca tambor e pá e aí começa, tem todo um ritual pra ele poder entrar naquele transe dele, aí ele psicografa ou fala ou sei lá o quê. Eu sou a mesma coisa. Depois de muitos anos eu falei: - Olha só, o meu processo é o seguinte: Quando tem uma coisa qualquer assim que rende música, aí eu sento no piano, no violão e vou fazendo, aí é que vem. Entende como é que é? Aí que vem, sem forçar. Ta ruim? Ta ruim, para. Hoje, não mais, amanhã eu retomo. Sabe como é que é? É bem natural. Procurando, mas é natural.

Em Ninfas, esse tipo de procedimento é percebido quando, por exemplo, Ornelas admite ter

composto e gravado a música no violão sem ao menos saber o nome dos acordes que tocava. Isso

não se deu porque o músico não soubesse música, pelo contrário, Ornelas tem conato com o estudo

formal em música desde seus 11 anos de idade, o que ocorre é que esse espírito de busca, de

experimentalismo é por ele extremamente valorizado durante o ato de compor, como um fazer

lúdico que auxilia o músico a sair da obviedade de caminhos musicais ordinários, dos clichês de sua

zona de conforto.

Por analogia, pode ser estabelecida uma relação a essa práxis com um lado intuitivo do

músico, algo que poderia ser relacionado à gênese etimológica que o nome ninfa nos sugere, em

oposição à lógica, ao automatismo das realizações baseadas em processos de inculcação gerados

através da construção e sedimentação do conhecimento musical. Esse conflito é representado nas

diferentes seções da composição, oposições que se complementam, um desdobramento dos híbridos

que se anunciam como o próprio significado de híbrido e sua raiz grega reforçam: “hýbris, do

descomedimento” (Brandão, 1998, p.212), podendo ser acrescentado, do destempero, excesso,

transgressão, ou seja, o híbrido se dá pelo conflito, pela discórdia, nesse caso, entre o

experimentalismo e o automatismo.

Relativo ao processo de transcrição da música através da audição de seu registro sonoro,

procedimento utilizado como ferramenta analítica em todas as composições citadas neste trabalho e

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já problematizado, pudemos nos deparar com uma questão fundamental para a compreensão

principalmente do entendimento rítmico e métrico de Ninfas, isto porque a realização denota um

compasso quaternário ora simples, ora composto. Na primeira seção da música, chamada aqui de A,

parte da instrumentação, basicamente as vozes, realizam uma divisão claramente em compasso

quaternário simples, já a harmonia realizada pelo violão indica uma divisão de três notas por tempo,

o que implicaria,, no caso de escolhida a notação em 4/4, na grafia de quiálteras para cada um dos

tempos do compasso. Admitindo-se que esta escrita poderia confundir o eventual leitor da

transcrição e mesmo os exemplos musicais a serem selecionados, optou-se por grafar as linhas de

harmonia e percussão em compasso quaternário composto, 12/8, corroborado pelo uso flagrante

dessa divisão na seção seguinte, chamada de B. Já as linhas melódicas realizadas pelas vozes e

saxofone tenor foram preservadas em suas transcrições com o compasso de 4/4 para, do mesmo

modo, facilitar a leitura da partitura da música.

Essa via de mão dupla na interpretação de compassos quaternários, entre simples e

compostos, é comum em música popular a algumas realizações da música norte americana, por

exemplo, quando precedidas do termo shuffle no cabeçalho de partituras de gêneros como o rhythm

‘n blues, a soul music, o funk além de outros correlatos principalmente de música negra cantada das

décadas entre 1960 e 1980. Quando precedida do referido termo, a música, que é escrita em

compasso quaternário simples, deve ser tocada com a intencionalidade do quaternário composto,

inferindo uma divisão próxima ao do suingue do jazz e de sua síncope característica, a das colcheias

suingadas34 (swing eights), onde as colcheias escritas na partitura não são realizadas tal qual estão

grafadas. Para cada par de colcheias devem-se ler, aproximadamente, como grupos de tercinas de

colcheias, sendo as duas primeiras notas de cada quiáltera ligadas, ou seja, cada par de colcheias no

jazz deve ser tocada com a primeira das colcheias com o valor de aproximadamente 2/3 do tempo e

a segunda 1/3 do mesmo. O possível uso desse tipo de realização será mais profundamente

discutido ao longo deste tópico e no Capítulo III desta tese.

34 Colcheias Suingadas é uma tradução livre para o termo inglês Swing Eights, realização esta relacionada com a

leitura e performance de colcheias no gênero estadunidense, onde aplicam-se diferentes valores a cada par de colcheias.

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Quanto à forma de Ninfas, o autor, Nivaldo Ornelas, expõe que em seu entendimento a

música se divide em três partes, sendo as duas primeiras o tema da música, a melodia principal, e a

terceira uma seção de solo de saxofone onde é utilizada uma estrutura harmônica distinta da seção

anterior. Apesar do posicionamento de Ornelas nesse sentido, a percepção entre as seções A e B

denota uma continuidade temática, mesmo que entre elas exista uma diferença de textura

instrumental, o que reforça a delimitação entre essas seções. A impressão que se tem é que estas

duas primeiras seções formam um grande A, subdividido em duas seções menores.

Para uma nomenclatura mais precisa, será adotada uma estruturação onde as duas primeiras

seções são compreendidas como o A da música, sendo chamadas de A1 e A2, e a terceira seção

sugerida por Ornelas será entendida como a seção B, onde em resumo sua forma pode ser

codificada como um [A1][A2][B][A2][A1’], onde na seção A1 da composição, a instrumentação é

distribuída com vozes, violão, órgão e percussão, esta simplesmente marcando o tempo do

compasso quaternário simples em semínimas. Na parte A2, a instrumentação é acrescida de guitarra

e pratos, realizando efeitos. Estas duas partes corresponderiam, portanto, à primeira seção da

música e na seção B, saem as vozes e entra o saxofone tenor como figura e a bateria é acrescida

como acompanhamento, sendo que a distribuição dos compassos na peça se dá da seguinte maneira:

Tabela 3. Tabela de seções e distribuição de compassos em Ninfas

Seção Número de Compassos

A1 1-22

A2 23-38

Ponte 39-42

A1’ 43-46

B 47-90

A2’ 91-105

A1’’ 106-111

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A harmonia da seção inicial é realizada pelo violão em arpejos de acordes onde pode ser

percebido o uso de um padrão, tanto rítmico quanto harmônico, sendo esta composição, como tantas

outras em música popular, baseada na repetição e variação. O tema da primeira seção começa com a

tríade diminuta de mi bemol, caminhando para o acorde de Ebm, permanecendo cada acorde

durante dois compassos. Este padrão é repetido por outras duas vezes, iniciando a primeira variação

com a tríade diminuta de mi conduzida para Em, e por fim, a segunda variação (terceira repetição) é

iniciada com a tríade diminuta de fá, mas ao invés de continuar com o padrão anteriormente

apresentado o autor o desenvolve, conduzindo harmonicamente a nota lá bemol para sol natural,

resultando em um G7(b13)/F, e com a condução do baixo para a nota mi, estabiliza-se em Em,

sempre utilizando o tempo harmônico de um acorde a cada dois compassos:

Exemplo musical 56. c.1-4 do tema da seção A1 de Ninfas

Exemplo musical 57. c. 5-8: Primeira Variação do tema da seção A de Ninfas transposto meio tom acima

Exemplo musical 58: c. 9-14: Primeiros seis compassos da segunda variação do tema da seção A de Ninfas, desta vez

com variação temática a partir do compasso 10

Cabe aqui comunicar que os acordes descritos no parágrafo anterior foram por mim cifrados

e para isto utilizo a cifragem mais usual na música popular brasileira atualmente e amplamente

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difundida, por exemplo, por Almir Chediak em seus songbooks, sendo que Nivaldo Ornelas,

especificamente em relação a esta música, não guardou nenhum registro da época em que foi

gravada, nem mesmo as cifras, tablaturas ou partituras que por ventura foram utilizadas, portanto, as

cifras identificadas servem apenas de referência ao material transcrito, ou como argumenta Fábio

Adour da Camara: “funcionando como uma espécie de gatilho para a memória” (Camara, 2009,

p.119) - de modo a se ter uma leitura mais dinâmica dos acontecimentos - estes sim, escritos de

maneira tradicional no pentagrama e registro gráfico mais fiel aos trechos musicais especificados.

O trecho que envolve o acorde de Ebdim, mesmo com a supressão de sua sétima diminuta, a

nota ré dobrado bemol, pode ser compreendido como um acorde apojatura de Ebm, o fato de este

estar com a sétima maior na melodia, nota ré natural, denota o uso de sétimas livres pelo

compositor, resultando no acorde Ebdim7M. O acorde diminuto apojatura é conhecido comumente

em música popular como diminuto auxiliar, como citam os métodos de harmonia de Berklee e no

Brasil, o Harmonia e Improvisação de Almir Chediak (1996, p.103), e seu uso é largamente

utilizado na música popular moderna principalmente com a resolução deste no acorde maior, como

na composição Super-Homem a Canção de Gilberto Gil:

Exemplo musical 59. Uso do diminuto auxiliar em Super-Homem a Canção de Gilberto Gil.

O que há de contraditório na amostragem desse tipo de ocorrência em métodos como os

citados anteriormente é que além de não revelarem a origem do referido acorde - se prestando

simplesmente a apontar e catalogar a ocorrência pelo seu uso - ao tratarem a condução das vozes do

diminuto auxiliar como bordaduras, deveriam grafar as notas do acorde diminuto com graus

diferentes do acorde de referência, como aparece nos exemplos do Harmony de Walter Piston

(1942), por exemplo. Como resultado dessa falsa nomenclatura, ocorre um equívoco taxionômico

do acorde em questão, usamos aqui o exemplo tal qual aparece em Chediak (1996, p. 103):

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Exemplo musical 60. Exemplo dado ao diminuto auxiliar por Chediak.

Ao grafar a sétima diminuta do acorde de Cdim como lá natural ao invés de si dobrado

bemol, ou autor na realidade escreve o acorde de Adim/C, sendo que nas demais notas ocorrem a

bemolização delas, sem caracterizar as bordaduras. Se o autor houvesse escrito as notas tais quais

bordaduras, a nomenclatura mais adequada seria a seguinte:

Exemplo musical 61. Exemplo de diminuto auxiliar com sugestão de correção

Desse modo, além de caracterizar as bordaduras, a cifragem revela a função e origem do

acorde, demonstrando ser sétimo grau de Mi Menor, tônica anti-relativa do tom de Dó Maior, dando

sentido à alcunha do diminuto auxiliar. O tema é profundamente explorado por Fábio Adour da

Camara que expõe esse problema de classificação da seguinte maneira:

A classificação “diminuto auxiliar” é empregada na análise dos encadeamentos em que o acorde de tônica se alterna com o diminuto construído sobre a nota da tônica, como no encadeamento A7M - Aº - A7M de “Super Homem – a canção” (Gilberto Gil) ou no D6 – Dº - D6 de “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso). O termo “auxiliar” provavelmente se refere ao caráter de bordadura que a tétrade diminuta adquire nesse contexto. Para facilitar a comparação, vamos transpor a progressão para o mesmo tom de “Eu sei que vou ter amar”: C7M – Cº - C7M. Segundo o paradigma expandido, o Cº está incorretamente batizado, pois remete a uma tonalidade muito distante do tom principal: Cº é VII grau de Réb Maior ou Menor. Ora, Cº também é um dos enarmônicos do D#º e a interpretação como VII de Mi Menor mais uma vez faz sentido, agora em outro contexto. Apesar do acorde de Em não aparecer, sabemos que ele é uma tônica alternativa, o anti-relativo menor da tônica maior, Ta. Assim, corrigindo a cifragem para C7M – D#º/C – C7M, podemos ver mais facilmente que uma tônica é seguida pela dominante particular de uma tônica alternativa, que resolve na tônica principal e isso dispensa a criação do conceito de “auxiliar” para elucidar a função do diminuto. 35

‘ (Camara, 2009, p. 199)

Sob esse ponto de vista, em Ninfas, o acorde Ebdim, que se encontra em um trecho

polarizado na tonalidade de Mi Bemol Menor, parece não apresentar relação com a tonalidade a

qual se sobrescreve, isto porque historicamente os acordes diminutos se originaram da alteração do

35 Grifos encontrados no texto original de Fábio Adour da Câmara.

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sétimo grau da escala menor, inicialmente no processo conhecido por musica ficta e posteriormente,

através da inserção da dominante de seus homônimos maiores, no caso de Mi Bemol Menor, através

da inserção do acorde de Bb7, tendo por consequência a adição da nota ré natural à escala,

resultando na organização escalar conhecida por escala menor harmônica:

Exemplo musical 62. Escala de Mi Bemol Menor Harmônica com o sétimo grau aumentado, nota ré natural.

Portanto, para que seja um acorde apojatura, o acorde diminuto deve ser analisado como o

sétimo grau de uma escala menor, e pela enarmonia, o Ebdim é literalmente reconhecível como

sétimo grau de Fá Bemol Menor, e não de Mi Bemol Menor, como deseja-se. Então, qual seria a

explicação mais apropriada para relacionar este acorde à tonalidade de Mi Bemol Menor? Ora, se

necessariamente o acorde de sétima diminuta sobretônica é o sétimo grau de um campo harmônico,

algum dos tons vizinhos de Mi Bemol Menor deve originá-lo, e nesse caso, por ser um tom menor, a

tonalidade mais apropriada para este empréstimo é o seu V grau, Si Bemol, já que a outra

possibilidade, pelas possíveis inversões do diminuto, seria a tonalidade de Ré Bemol Maior, sétimo

grau de Mi Bemol Menor e que tem como seu sétimo grau o acorde Cdim, opção esta descartada

pela falta de características que apontem uma inclinação para esta tonalidade. Tem-se então como

sétimo grau de Si Bemol o acorde de Adim, que em Ninfas aparece com a nota mi bemol no baixo e

superiormente, em um primeiro momento, tem sua terça omitida, substituída pela quarta, nota ré

natural, já contextualizada como terça maior de Bb7 e sétima maior de Mi Bemol Menor

Harmônico, mas que acaba por se confirmar como terça menor no primeiro tempo do segundo

compasso da música (exemplo musical 56, p.100).

A consciência quanto a uma nomenclatura e funcionalidade mais acuradas em relação a

sequências harmônicas de um modo geral é uma ferramenta importante, por exemplo, ao músico

improvisador que lida com a escolha de materiais escalares para situações específicas, como a

abordada nesta discussão, mas mesmo estando evidenciada a nomenclatura equivocada e decerto

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apressada do diminuto auxiliar, opta-se neste trabalho pela cifragem do citado acorde como uma

tríade diminuta de mi bemol, já que habitualmente o diminuto auxiliar faz parte do vocabulário de

músicos em música popular e é assim validado pela práxis.

Podemos ainda notar nessa primeira seção a relação das notas da melodia ao acorde

correspondente. Já no primeiro compasso, há uma forte tensão apresentada em seu primeiro tempo,

a nota ré natural forma uma segunda menor com o mi bemol do arpejo em questão e que vai ser

resolvida no acorde seguinte. Esse tipo de tratamento pode ser interpretado como o uso das sétimas

do acorde de forma livre, caso, por exemplo, da composição Eu Te Amo de Antonio Carlos Jobim

(1927-1994), onde o autor utiliza um caminho cromático melódico descendente sobre acordes

maiores com sétima menor nos quais são incluídas as sétimas maiores e menores na melodia:

Exemplo musical 63. Trecho de Eu Te Amo de Antonio Carlos Jobim. Note-se o uso melódico de sétimas maiores sobre acordes maiores com sétima menor.

No caso de Ninfas, o que torna mais peculiar o uso desse procedimento é exatamente o

aparecimento de uma tensão de segunda menor já no primeiro tempo do primeiro compasso,

diferentemente de Jobim, que utiliza as sétimas maiores sobre tempos fracos. Essa aplicação

melódica, diga-se, pouco usual a maior parte da produção na modalidade música instrumental,

reforça a não intencionalidade de Ornelas em harmonizar o trecho através de uma lógica funcional,

por exemplo – mesmo havendo, como demonstrado – mas a de constituir uma relação levada em

primeiro lugar pela sua própria intuição (informação verbal):

Bernardo – Nivaldo, você tava falando que você fez no violão, mas não pensou na harmonia. Nivaldo – Não. Bernardo – Como é que é esse negócio de não pensar na harmonia? Nivaldo – Sai tocando, não foi nada pensado, foi no instinto tudo. Bernardo – Intuição mesmo, Nivaldo – Foi há vinte anos atrás [sic], até mais...Saí fazendo.

A confirmação desse procedimento pode ser entendida por aquilo que Fábio Adour da

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Câmara chama de “Zona Auditiva-Instrumental”, ou seja, quando as relações harmônicas

estabelecidas são validadas através da experiência e familiaridade adquiridas pelo músico com seu

instrumento, no caso de Ornelas, pelo forte laço idiomático de Ninfas com o instrumento harmônico

no qual a música foi composta, o violão. Características de idiomatismo dessa ordem já foram

demonstradas na análise de Nova Lima Inglesa e ainda segundo Camara, o desenvolvimento da

chamada “Zona Auditiva-Instrumental” não se dá nem bibliograficamente e nem institucionalmente,

mas:

É construída socialmente, haja vista que o tipo de músico popular que mais acima citamos certamente adquire parte de seu métier composicional em situações sociais, como nos círculos de amizade, ou nas rodas de Choro e de Samba, dentre muitas outras possibilidades informais. Além disso, os dois mediadores dessa zona conceitual são ricas fontes de informações e de conhecimentos sócio-culturalmente estabelecidos: a audição só pode ser um mediador na medida em que o indivíduo trava contato com toda uma cultura sonora e assim adquire uma rede de módulos musicais de referência; cada instrumento musical, da mesma maneira, trás consigo um sem número de dados culturais, que vão desde as razões que orientam as ornamentações de sua construção, passando pela sua estrutura antropomórfica, até a linguagem musical implícita ou explícita em graus variados, mas de alguma forma guardada e registrada na afinação do instrumento, no montante de notas ou alturas disponíveis, etc. E é por essa via que o acesso ao corpo de conhecimento dessa zona conceitual se torna possível. As elaborações harmônicas, por exemplo, de um Guinga são claramente associáveis 1) ao seu instrumento – o violão – e/ou 2) ao universo sonoro que o nutriu – o do Choro, do Samba, da Bossa-Nova, do Jazz, etc... (Camara, 2009, p.84)

Em contraposição à primeira parte da composição, a segunda seção da música, chamada

aqui de B, revela de maneira flagrante a questão rítmica do compasso quaternário composto através

da realização da linha de bateria, tocada por Pascoal Meirelles (1944-), onde ele valoriza o ostinato

rítmico nos tambores do instrumento. A linha melódica parece flertar com a realização das colcheias

do jazz, citadas anteriormente, realização esta que apesar de típica do jazz pode acontecer

concomitantemente a divisões e síncopes de outros gêneros musicais de música popular, como em

realizações de samba jazz e bossa nova instrumental, difundidas principalmente durante os anos

1960, muitas vezes com a participação de solistas de jazz norte americanos interpretando música

brasileira. Apesar da suspeita desse tipo de uso, é francamente muito difícil e até leviano

afirmarmos a presença ou não das tais síncopes do jazz na realização de Ornelas. O que se pode

perceber é que pisamos no terreno movediço de realizações musicais que dialogam com materiais

hibridizados. Ainda sobre essa segunda seção, a melodia inicialmente tocada por Nivaldo Ornelas

ao saxofone tenor denota a apresentação de um novo tema, um motivo melódico que é inclusive

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variado, através de modulação, mas que gera dúvidas se é ou não um tema, já que parte dele

notadamente é improvisado.

O motivo melódico apresentado na segunda seção dura dois compassos e se assemelha à

melodia da música Harlem Nocturne, composição de Earle Hagen (1919-2008) de 1939 que foi

gravada por uma série de nomes de vulto da música norte americana dos anos 1940 e 1950 através,

principalmente, de Big Bands de Swing, como as de Stan Kenton (1911-1979), Johnny Otis (1921-)

e Duke Ellington (1899-1974), ou na versão do alto-saxofonista Earl Bostic (1913-1965). Talvez o

que se apresente aqui seja uma grande coincidência, mas de qualquer forma o tema pôde ter feito

parte dos repertórios que Nivaldo Ornelas tocava durante os anos 1960 em Belo Horizonte, tanto

nos bailes ao lado de Célio Balona quanto no Berimbau Clube, já que a composição, mesmo sendo

do repertório de jazz, foi um grande sucesso nos anos 1940 e 1950, servindo inclusive de trilha

sonora do cinema e da televisão nos Estados Unidos. A comparação entre os motivos melódicos é

indicada nos exemplos a seguir:

Exemplo musical 64. c. 47 – 48 de Ninfas, primeiro motivo da seção B tocado por Nivaldo Ornelas no Saxofone Tenor)

Exemplo musical 65. Anacruse do tema de Harlem Nocturne de Earle Hagen

Não estamos aqui afirmando que se trate de um plágio ou mesmo uma citação, mas um uso

similar do material melódico que, se creditado ao jazz, torna os usos das estruturas musicais em

Ninfas mais inclinados às proposições de materiais musicais híbridos. No decorrer da melodia,

Ornelas desenvolve variações sobre o motivo supracitado além de aplicar outras frases à seção,

indicando um tratamento como os dados aos improvisos, o que de certo modo faz sentido à forma

da música como um todo já que, mesmo a seção B apresentando uma nova harmonia em relação à

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seção A, a forma (Tema – Improviso – Tema), muito comum nas realizações tanto do jazz norte-

americano quanto da música instrumental é posto em prática, mesmo que de uma maneira não

ortodoxa, ou seja, sem realizar os chorus (seções de improviso) com a mesma estrutura harmônica

do tema. Relativo à harmonia deste trecho, a coincidência com Harlem Nocturne também se

restringe ao primeiro acorde já que Ornelas segue um movimento harmônico interno, realizando

uma condução cromática da sétima menor do acorde de Ebm, nota ré bemol, subindo meio tom para

a sétima maior, nota ré natural, e daí caminhando cromaticamente até a sexta maior, passando pelas

notas ré bemol (sétima menor) e dó natural (sexta maior) e daí para o acorde de Cb7M(13)/Eb,

sexto grau do campo harmônico de Mi Bemol Menor, chegando à dominante alterada

Bb(b9)(b13)/D. O restante da seção é modulada e estendida um tom acima, reapresentando, de

maneira variada, as polarizações apresentadas entre Ebm e Em no início da música. A realização

deste acorde de Ebm com um movimento interno cromático, diferentemente do primeiro padrão

harmônico apresentado no início de Ninfas, está fortemente vinculada à funcionalidade e é

referendada por usos anteriores da literatura musical do jazz, como no tema In A Sentimental Mood

do compositor, pianista e arranjador norte-americano Duke Ellington, reforçando a idéia da

contraposição entre intuição, exposta na Seção A da composição, e da lógica, idéia implícita na

seção B, embate proposto no início deste tópico:

Exemplo musical 66. Primeiros 5 compassos de In A Sentimental Mood de Duke Ellington.

O uso de um caminho harmônico pré-determinado para a seção de improviso é reforçado

através de declaração do autor que diz ter decidido sobre esta seção dentro do estúdio, e lá, escreveu

o encadeamento no qual realizaria seu solo (informação verbal):

Bernardo – É uma seção à parte? Nivaldo – Falei: O quê que eu vou tocar nessa música? Aí lá dentro do estúdio eu falei: Ah, vou fazer um...foi lá na hora que eu quis improvisar, e nem deu tempo de tocar direito, né?

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Ainda na chamada seção B, quando o trecho é desenvolvido no tom de Mi Menor, há um

acréscimo de 2 compassos na forma em relação ao trecho em Mi Bemol Menor, esses 2 novos

compassos são realizados através da repetição de seus dois últimos acordes, Eb7M(9) e Ebdim(7M).

Aqui, ocorre uma citação do acorde inicial de Ninfas, onde a nota ré natural, sétima maior de

Ebdim, ao invés de ser tocada na primeira voz, no caso a melodia, passa a ser tocada na parte de

guitarra de Toninho Horta, que provavelmente, tomou essa decisão de maneira autônoma. O que

ocorre de fato é que há um jogo entre elementos de figura e fundo, de modo que as seções A e B,

apesar de antagônicas, apresentam internamente características de seu vértice.

O ora aparente, ora latente antagonismo, sugere um forte contraste entre as seções A e B.

Analogamente ao embate sugerido no início desta discussão, a parte A suscitaria o lado intuitivo do

compositor, ligado à experimentação, enquanto que a seção B, pela sua verve rítmica e

relacionamento do intérprete com o seu real instrumento de trabalho, o saxofone, instrumento que o

músico escolheu para aprofundar-se tecnicamente, mecanicamente, portanto, representante da

lógica e da racionalidade, uma dualidade já apresentada anteriormente no Capítulo I no tópico

intitulado, A Dicotomia Auctor / Lector e o Desenvolvimento da Carreira de Autor levando-se em

consideração que Nivaldo Ornelas também exerce uma função de intérprete de suas próprias

composições, vivendo inclusive conflitos para realizar o papel de instrumentista de sua própria

criação (informação verbal):

Nivaldo – (...) Tem aquela música, Portal dos Anjos, sabe? (cantarola o tema de Portal dos Anjos), são aquelas brincadeiras, entendeu? E, é isso, eu vivi isso intensamente. Como não fazer isso? Agora, interessante, isso não tem nada a ver com jazz, isso é terrível. Nada, nada. E o meu universo de tocar, é isso que na verdade eu gosto de fazer, mas o outro lado me puxa muito. Às vezes eu consigo juntar. Nessa própria música tem um solo de tenor lá, que eu achei interessante que eu passei o dia inteiro tentando fazer um solo genial e falei: Desisto. Aí falei: Vou tocar o motivo da música (cantarola), e aí deu certo. Sabe? Eu fiz um solo pensando na música, na melodia, aí rolou.

A citação acima se refere à composição Portal dos Anjos, música título de seu disco de

estréia, mas que em Ninfas também pode ser percebida a realização de ações distintas e

complementares entre a sua atividade de compositor, primando pela legitimação e distinção das

escolhas e ordenamento das estruturas discretas hibridadas, presentes em suas composições, e a de

solista, intencionalmente apontando para um pensamento virtuosístico de soluções técnicas

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específicas. Dualidade evidenciada também nas melodias de ambas as seções da composição. Na

primeira, o compositor utiliza um caminho melódico cromático durante toda a seção, que é

inicialmente modulado e que posteriormente é desenvolvido durante o mesmo trecho. Na seção

seguinte Ornelas propõe saltos melódicos bem maiores, com quintas e oitavas, além de não aplicar

de maneira clara uma melodia facilmente reconhecível, apesar de haver um desenvolvimento

motívico na seção. Mas mesmo dentro desses opostos, ou seja, internamente aos movimentos

melódicos das linhas de solo, há outras conduções que contradizem os usos explicitados.

Na seção B, apesar dos movimentos sinuosos realizados pelo saxofone tenor, há um

movimento interno, harmônico, fundamentalmente realizado através do cromatismo, já exposto. Isto

nos dá indícios de usos que se contrapõem, mas que se complementam, e se entrecruzam, num

permanente jogo de forças, onde os limites dessas características se tornam fluidos, móveis, assim

como as do compositor e do intérprete ou, nas fronteiras da cidade, imageticamente delimitadas,

mas que ao serem dissipadas através do cruzamento de pessoas, hábitos e informações deixam de

segregar para se relacionarem: “A hibridação, como processo de interseção e transações, é o que

torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação e se converta em

interculturalidade” (Canclini, 2001, p. XXVI).

Para que nos aprofundemos nas discussões de outros desdobramentos a respeito dos

processos de hibridação na obra de Nivaldo Ornelas, propomos transpor a observação dos dados

apenas composicionais presentes em sua música para características interpretativas do, nesse caso,

saxofonista, através de solos por ele realizados tanto em suas criações quanto como participante do

trabalho de outros músicos. O enfoque dado no próximo capítulo pretende estender o conceito das

estruturas discretas também a essas características ligadas às suas escolhas relativas tanto aos

recursos dramáticos empregados (vibratos, portamentos, glissandos, agógica), quanto da

estruturação melódica de seus improvisos e das estratégias de estudo e desenvolvimento técnico

voltado para a prática do saxofone.

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CAPÍTULO III – ASPECTOS TÉCNICO-INTERPRETATIVOS EM NIVALDO ORNELAS

3.1. O Híbrido na Prática do Saxofone: Questões Técnicas e de Idiomatismo

A escola do saxofone surge em meados do século XIX juntamente com a consolidação do

novo instrumento constituído pelo inventor belga Adolph Sax (1814-1894) durante a década de

1840. De antemão, apesar da nítida classificação dos saxofones como pertencentes à família das

madeiras - por uma série de características que envolvem desde produção de som a qualidades da

série harmônica - a concepção de sua construção pode ser associada a um entendimento híbrido

entre um instrumento de metal e um de madeira, como presente no Grove Dictionary of Music and

Musicians em seu verbete sobre o saxofone:

(...) de acordo com J.G. Kastner como resultado de tal inspiração, deveria ter sido uma combinação, modificação e extensão de elementos familiares à construção de instrumentos de metais e madeiras: um corpo de metal que se parecesse com aquele do oficleide baixo com um sistema de chaves estendido, combinado com uma boquilha modificada, como aquela do clarinete baixo. Sax inicialmente descreveu o novo instrumento como um “novo oficleide”ou “oficleide de boquilha”, e escreveu que “era pretendido para substituir o oficleide.36

O entendimento do saxofone como um instrumento surgido a fim de substituir o oficleide, que

apesar de ser um instrumento de metal, com um bocal, apresentava chaves, também é tema de

discussão da tese de Rafael Velloso sobre o saxofone no choro:

Segundo Myers et Alli (2004), o oficleide, inventado em 1817, tornou-se rapidamente um instrumento de utilização versátil, amplamente empregado em bandas para a execução de solos ou como parte do conjunto. O instrumento, porém, foi abandonado após uma intensa reforma na formação instrumental das bandas militares, sendo substituído por instrumentos mais modernos como o saxhorn e o saxofone. Segundo o mesmo estudo, isto ocorreu, em parte, devido às dificuldades técnicas de manejo, problemas de manutenção e vulnerabilidade do instrumento. (Velloso, 2006, p.19-20)

Nessa mesma linha afirmativa, Marco Túlio de Paula Pinto, em sua dissertação intitulada O

Saxofone na Música de Radamés Gnattali, declara:

O saxofone tem uma natureza híbrida. Embora seja construído em metal, seu processo de produção do som faz com que seja mais bem classificado na família das madeiras. O instrumento utiliza-se de uma palheta simples, similar às utilizadas em clarinetes. Ao contrário destes, seu corpo tem um formato cônico, que aproxima suas características acústicas às do oboé. O seu dedilhado, bastante simplificado, é bastante semelhante ao empregado em flautas. Esse conjunto de características lhe permite uma grande gama de nuances sonoras. O instrumento une a força dos metais à agilidade dos instrumentos de madeira. (Pinto, 2005, p. 21)

36

“(...)according to J.G. Kastner as the result of sudden inspiration, should have been a combination, modification and extension of elements familiar from the construction of brass and woodwind instruments: a metal body resembling that of the bass ophicleide with an extended keywork mechanism, combined with a modified mouthpiece like that of the bass clarinet. Sax first described the new instrument as a ‘new ophicleide’ or ‘ophicleide à bec’, and wrote that it was ‘intended to replace the ophicleide”.

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O tema é também tratado na dissertação Desculpe, Foi Engano: o saxofone de Aurino

Ferreira num choro de Guerra-Peixe, onde o saxofonista Sigurd Ràscher, citado por Sá (2005. p.

10) que dá a seguinte declaração sobre o saxofone:

O saxofone, assim denominado por seu inventor, é um instrumento de metal com dezenove chaves, cujo formato é similar ao do oficleide. Sua boquilha, ao contrário da maioria dos instrumentos de metal, é similar ao do clarinete baixo. Assim o saxofone inicia um grupo novo, o dos instrumentos de metal com palheta.37

É notório, portanto, que havia uma preocupação, por parte de Sax, em construir um

instrumento com uma capacidade acústica próxima dos metais e com a fluência mecânica de um

instrumento das madeiras, o que sugere um entendimento de um instrumento de constituição e

construção híbridas, ou seja, que conjuga partes ou características de ambas as famílias de

instrumentos de sopro, mesmo que pertencendo à família das madeiras, mas que extrapola o perfil

tímbrico dos instrumentos de sua família de classificação, apresentando uma grande diversidade de

possibilidades de realizações, tanto de timbre quanto intensidade e atributos técnicos.

3.1.1 As Escolas de Saxofone e Aspectos Estilísticos de Sonoridade.

Em meio ao cenário musical europeu novecentista, o saxofone foi, a princípio, muito bem

recebido principalmente nas formações de bandas militares francesas, apesar de Sax ter

desenvolvido instrumentos tanto para o uso militar quanto para o universo sinfônico. O instrumento

recebeu grande apoio de alguns compositores de envergadura na época, sendo a mais importante

contribuição a de Hector Berlioz (1803-1869) com sua peça Chant Sacré, onde o saxofone figurava

na orquestração já no ano de 1842, antes mesmo do invento ter sido patenteado, o que só ocorreria

em 1846. Em outra passagem do verbete do New Grove Dictionary of Music amd Musicians,

podemos começar a vislumbrar qual era a estética de sonoridade esperada do instrumento tanto por

parte de seu construtor quanto de seus primeiros apoiadores:

Muitos compositores franceses e críticos de música apreciaram as oportunidades musicais oferecidas por um novo instrumento, e neste período inicial eles estavam entusiasmados em descrever suas impressões a respeito do som do saxofone; o instrumento foi louvado por sua capacidade tímbrica e a qualidade ilimitável de nuances possíveis. Foi dito que a riqueza de som do saxofone (cheio, macio,

37 Grifo do autor.

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sonoro, poderoso) o colocava fora da comparação com os outros instrumentos musicais em uso. De acordo com Kastner (Manual Geral da Música Militar, 234-5), Adolphe Sax criou:

(...) um instrumento com um som inteiramente novo – poderoso, de grande extensão, expressivo e bonito. Com sua qualidade única de sonoridade, oferece a melhor ligação possível entre as vozes mais altas da orquestra e aquelas muito fracas, ou àquelas com um timbre muito desigual (...)Unindo força e charme, ele não encobre os outros por uma das qualidades e nem se deixa encobrir pela outra – é um instrumento perfeito.

Berlioz enfatizou o som esplêndido, quase sacerdotal do registro grave, e disse que o saxofone era “a melhor voz que temos” para obras de natureza solene. 38

Tendo como parâmetro as declarações anteriormente citadas, é possível especular a respeito

do que o “novo” instrumento sugeria. Para estes primeiros ouvintes, o saxofone era um instrumento

de grande versatilidade de timbres e de riqueza de nuances e para Berlioz em especial, era ideal

para obras de natureza solene. Sob esta estética foi edificada, principalmente na França e na

Europa continental como um todo, o ensino do instrumento nos Conservatórios de Paris e Bruxelas.

Inicialmente, o próprio Adolphe Sax lecionou no Conservatório de Paris entre os anos de 1857 e

187039, mas de um modo geral, pelo fato do novo instrumento ainda não dispor de um corpo de

profissionais dedicados exclusivamente a ele, o caminho mais curto para a organização didática de

seu ensino se deu através dos professores de clarinete, pela proximidade da produção de som em

ambos os instrumentos, inclusive o notório professor de clarinete, o grego naturalizado francês

Hyacinthe Klosé (1808 -1880), escreveu os primeiros métodos para saxofone, ainda hoje editados.

Apesar da euforia inicial em torno do novo invento, com o passar do tempo o saxofone

acabou por ser pouco aproveitado por compositores de música erudita - ainda durante o século XIX

- fora principalmente dos circuitos francês e russo e com isto adquiriu pouca notoriedade frente a

outros instrumentos de sopro já consagrados. O preconceito que pairava sobre o invento de Sax é

38

[ ]'Many French composers and music critics appreciated the musical opportunities offered by a new instrument, and at this early period they were enthusiastic in describing their impressions of the sound of the saxophone; the instrument was praised for its tonal compass and the quality and boundless variety of possible nuances. It was said that the saxophone's wealth of sound (full, soft, sonorous, powerful) placed it beyond comparison with other musical instruments then in use. According to Kastner (Manuel général de musique militaire, 234–5), Adolphe Sax had created

an instrument with an entirely new sound – powerful, far-reaching, expressive and beautiful. With its unique tonal quality, it offers the best imaginable link between the very high voices of the orchestra and the very weak ones or those with a very uneven timbre … Uniting strength and charm, it does not drown out the one kind and cannot be drowned out by the other – it is a perfect instrument.

Berlioz emphasized the grand, almost priestly sound of the lower register, and said that the saxophone was ‘the finest voice we have’ for works of a solemn nature.”

39 Dado fornecido por Marco Túlio de Paula Pinto em sua dissertação (2005, p.25)

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flagrantemente percebido ao observarmos a seguinte citação de Raschèr (apud Sá, 2005, p.10-11):

O compositor Donizetti tinha ouvido Sax demonstrando seus novos instrumentos e, neste mesmo ano de 1843, decidiu usá-lo na sua ópera, Dom Sébastien, Roi de Portugal. Ele buscou um efeito tímbrico inteiramente novo usando o saxofone e o clarinete baixo. Logo se espalhou entre os músicos da ópera, a notícia de que seriam usados os instrumentos de Sax, mas ninguém se habilitou a tocá-los. Donizetti foi forçado a retirar a maioria dos novos instrumentos, mas quis manter pelo menos o clarinete baixo, e pediu a Adolphe Sax que ele próprio tocasse a parte. No primeiro ensaio, quando Sax apareceu na porta, o spalla levantou-se e disse: “Se este cavalheiro veio para tocar na orquestra eu sairei, e assim o farão todos os meus colegas!”.

Mesmo com a forte animosidade gerada por parte dos músicos da época, houve uma

produção a princípio pequena, mas importante do período que compreende o final do século XIX ao

início do século seguinte que incluiu o saxofone em suas instrumentações. Nas formações

sinfônicas pesam as orquestrações de, por exemplo, L'Arlésienne de Georges Bizet (1838-1875) que

teve sua estréia em 1872 e conta com um saxofone alto em mi bemol em sua instrumentação; o

Bolero de Maurice Ravel (1875-1937), onde são utilizados solos de saxofone soprano e tenor na

composição; Quadros de Uma Exposição de Modest Mussorgsky (1839-1881) com orquestração de

Ravel; a Sinfonia Doméstica, Op.53 de Richard Strauss (1864-1949), contendo quatro instrumentos

da família: soprano, alto, barítono e baixo; além da ópera Turandot de Giacomo Puccini (1858-

1924), escrita em 1922 e das Danças Sinfônicas op.45 de Sergei Rachmaninoff (1873-1943) de

1940, sua última composição. Estas seis obras representam, possivelmente, parte das mais

proeminentes aparições do instrumento frente a esse tipo de repertório, muito em função da

notoriedade de seus compositores, mas dentro da música de concerto o principal papel

desempenhado pelo invento de Sax foi certamente tendenciado para peças deste como solista

acompanhado por orquestra, como na Rapsódia para Saxofone Alto e Orquestra de Claude Debussy

(1862-1918), composta em 1903, no Concerto para Saxofone e Orquestra de Cordas de Alexander

Glazunov (1865-1936) ou mesmo na Fantasia para Saxofone Soprano e Orquestra de Heitor Villa-

Lobos (1887-1959), ou ainda, em realizações de música de câmara com piano, citem-se: o

Concertino da Câmara de Jacques Ibert (1890-1962) e Scaramouche de Darius Milhaud (1892-

1974), além de outras formações camerísticas, caso do Sexteto Místico de Heitor Villa-Lobos.

Outras realizações em música de câmara são fortemente inclinadas para peças em formações

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homogêneas de grupos de saxofones, especialmente quartetos. Raschèr (apud Sá, 2005, p.16), cita

ainda outras obras que ajudaram a validar o uso do saxofone na música ocidental.

Os primeiros compositores a utilizar o saxofone foram: George Kastner na sua ópera Le Dernier Roi de Juda (1844), Halevy em sua ópera Le Juif Errant (1852), e William Henry Fry da Filadélfia na sua Santa Claus Sinphony (1854) e em várias outras obras. George Bizet deu-lhe uma importante parte em sua Arlésiene que estreou em Paris em 1872. Desde então ele tem sido usado na orquestra sinfônica centenas de vezes, individualmente, em pares ou em grupos. Nós podemos ouvir em óperas, sinfonias, aberturas, etc. Thomas, D'Indy, D'Albert, Strauss, Debussy, Kodaly, e mais recentemente Ravel, Hindemith, Honegger, W. Walion, R.V. Williams,Villa-Lobos, B. Britten, Prokofiev, e muitos outros deram-lhe lugar em suas obras.

Apesar da pouca notoriedade e consagração atingida nos meios de circulação da música

erudita, criou-se em torno do instrumento uma escola de especial ortodoxia para este repertório que

teve como dois dos maiores nomes do seu ensino e performance o francês Marcel Mule (1901-

2001) e o alemão naturalizado americano Sigurd Raschèr (1907-2001), ambos músicos e

professores ativos principalmente entre as décadas de 1920 a 1960. A esta estética erudita usa-se

corriqueiramente, no Brasil, o termo Escola Francesa, onde são característicos os usos do

instrumento em uma concepção de sonoridade das madeiras. Também é própria desse estilo, a

homogeneidade de som, não só entre as diferentes regiões do mesmo instrumento, mas também

entre diferentes instrumentistas, guardando as devidas oscilações de personalidade dos intérpretes,

inerentes à prática musical.

Distintamente do repertório da “música séria”, o saxofone encontrou nos Estados Unidos, a

partir da década de 1920, terreno fértil para seu uso quantitativo frente ao repertório do jazz,

principalmente pela consolidação das formações das Big Bands. Nesse novo cenário desenvolveu-

se, muito em função das necessidades, um outro tipo de sonoridade para o instrumento, distinto

daquele lecionado nos quadros europeus. O novo perfil sonoro e estético do saxofone permitia uma

maior intensidade de volume combinada com uma sonoridade agressiva, mais apta a “casar” com os

naipes de metais dessas formações instrumentais. Essas modificações foram possíveis a partir da

interferência nos processos de manufatura das boquilhas originalmente desenhadas por Sax, bem

como de características idiomáticas aplicadas pelos músicos de jazz ao novo instrumento. Nos

Estados Unidos, o primeiro saxofonista de nome talvez tenha sido Sidney Bechet (1897-1959), que

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trocara a clarineta pelo saxofone soprano, interpretando temas do repertório de Nova Orleans no

estilo chamado Traditional, como reportado por Mark Gridley:

O clarinetista e saxofonista soprano de Nova Orleans Sidney Bechet (1897-1959) foi um dos mais respeitados músicos dos primórdios do jazz. Juntamente com Armstrong, ele foi um dos primeiros improvisadores a realizar o sentido de swing do jazz. Assim como Armstrong, ele dobrava o tempo e criava solos dramáticos. Bechet tinha uma sonoridade quente com um vibrato amplo e rápido. Era um improvisador enérgico e exigente que tocava com grande imaginação e autoridade. Morreu em 1959, tendo passado boa parte de sua carreira na França.40 (Gridley, 1988, p.75)

Refiro-me a Bechet como um dos precursores, senão o precursor do uso do saxofone no

jazz, talvez antes mesmo do jazz existir como gênero, já que Bechet viveu o seu auge como músico

justamente durante o período de consolidação desse tipo de música. O fato de ter residido boa parte

de sua vida em Paris, devido principalmente a questões de segregação racial em voga nos Estados

Unidos até meados do século XX, não ofuscou sua figura como referência para as gerações

seguintes de saxofonistas americanos, como Johnny Hodges (1906-1970) e posteriormente John

Coltrane (1926-1967), como mostra esta outra citação de Mark Gridley.

A música do saxofonista da era do swing Johnny Hodges, um discípulo de Bechet, e do saxofonista moderno John Coltrane, que fora originalmente influenciado por Hodges assim como esteve atento a Bechet, é caracterizada por entradas de solos longas e deslizantes, além de notas que aparecem precisamente no melhor momento para a máxima resolução da tensão gerada pela frase de entrada. 41 (Gridley, 1988, p.75)

Vê-se que a referência à Bechet é clara na transcrição supracitada, e não só em relação à

sonoridade, mas também ao seu estilo interpretativo e de fraseado, características estas que muitas

vezes são indissociáveis, haja vista o profundo grau de ligação estética entre essas escolhas, o que

denota um desenvolvimento de uma escola de saxofone voltada para esse repertório. Além disso, é

referenciado à Coltrane o fato dele ter ressurgido com o saxofone soprano como solista no jazz, já

que Bechet havia sido, até então, o único solista de renome neste instrumento: “Durante os anos

1960, o saxofone soprano foi ressuscitado pelo saxofonista de jazz moderno John Coltrane, sendo

40 New Orleans clarinetist and soprano saxophonist Sidney Bechet (1897-1959) was one of the most highly regarded musicians in early jazz. In addition to Armstrong, he was one of the first improvisers to display jazz swing feeling. Like Armstrong, he double-timed and created dramatic solos. Bechet had a big warm tone with a wide and rapid vibrato. He was a very energetic, hard-driving improviser who played with broad imagination and authority. He died in 1959, having spent a large part of his carrer in France. 41 The music of swing era saxophonist Johnny Hodges, a Bechet disciple, and modern saxophonist John Coltrane, who was orriginally influenced by Hodges as well as being aware of Bechet, is characterizes by long, swooping lead-ins and tones which arrive at precisely the time best suited for maximum relief of the tension generated by the lead-in.

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uma de suas músicas intitulada Blues to Bechet (Blues para Bechet)”42(Gridley, 1988, p.75).

Essa trajetória do saxofone no jazz, ilustrada pelo caminho percorrido a partir de Bechet,

passando por Hodges e chegando a Coltrane, aponta para uma consolidação de um vocabulário

jazzístico que permite que possamos perceber, mesmo que pontualmente, características de

correntes estéticas pregressas na maneira de tocar de músicos mais modernos, caso de John

Coltrane, que usa caracteríscas interpretativas de Hodges, especialmente no que se refere ao

entendimento do tempo na interpretação de baladas, além do uso de portamentos conhecidos no

meio dos músicos de jazz por smearing – que numa tradução literal significa sujando, ou,

lambuzando – como descrito por Mark Gridley:

Ele desenvolveu um modo notável de escalar de nota a nota gradulamnete e de maneira muito suave. Era quase como se seu instrumento fosse equipado com uma vara, como um trombone. Esta técnica é chamada de portamento, mas os músicos de jazz se rereferem a ela como smearing. Hodges a usou de modo a favorecer enormemente a interpretação em baladas (...) Um senso de tempo extraordinário foi crucial para o estilo de Hodges. Hodges foi um mestre na sutileza das inflexões de sonoridade, e suas síncopes eram especialmente bem encaixadas. Antes de 1942, Hodges freqüentemente aplicava dobramentos de tempo relâmpagos, assim como Sidney Bechet, sua primeira influência, mas depois da metade doa anos 1940, Hodges tendia a atrasar de modo bastante deliberado, não importanto qual fosse o andamento (...) Ele é particularmente conhecido por um enfoque romântico ao tocar baladas que permeou tanto a música americana, que inúmeros saxofonistas estão o imitando sem saberem quem foi Johnny Hodges. Ele não apenas influenciou instrumentistas pré-modernos, mas também teve forte impacto sobre músicos modernos tais como Ededie Vinson e John Coltrane. 43 (Gridley, 1988, p.118)

Ao ouvirmos Coltrane interpretar determinadas baladas, é possível notar características

interpretativas que podem ser relacionadas ao estilo de Hodeges, tais como as citadas anteriormente.

Referimo-nos às baladas já que este foi o gênero composicional no qual a marca interpretativa de

Hodges ficou mais profundamente gravada, como na gravação de Isfahan, como solista da Big Band

de Duke Ellington. Nas interpretações de Coltrane para Say It (Over and Over Again), de Frank

Loesser e Jimmy McHough, do disco Ballads de 1962, ou mesmo anteriormente, como na gravação 42

During the 1960s, the soprano sax was ressurrected by modern jazz saxophonist John Coltrane, one of whose tunes was entitled “Blues to Bechet”. 43 He developed a remarkable way of gliding from note to note very gradually and smoothly. It was almost as if his

instrument were equipped with a slide, like a trombone. This technique is called portamento, but jazz musicians generally refer to it as smearing. Hodges used it to great advantage in ballad playing.(…) An exquisite sense of timing was crucial to the Hodges style. Hodges was a master of subtlety in tonal inflections, and his syncopations were specially well timed. Pre-1942 Hodges often displayed flashy double-timing like Sidney Bechet, his primary influence, but after the mid-1940s, Hodges tended to lay back very deliberately, no matter what the tempo.(…)He is particularly known for a romantic approach to ballad playing that has so pervaded American music that countless saxophonists are imitating it without knowing who Johnny Hodges was. He not only influenced premodern players, but he also had in impact on such modern saxphonists as Eddie Vinson and John Coltrane.

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de Theme for Ernie, composição de Fred Lacy incluída no disco Soultrane de 1958, existem

características interpretativas que podem ser associadas à performance do saxofonista de Ellington,

como no uso intenso de portamentos, mesmo que estes não se dêem tão exageradamente quanto em

Hodges, e, principalmente, de um jogo agógico de fraseado que gera deslocamentos nas notas,

normalmente atrasando seus ataques, o que resulta em síncopes pontuais durante a performance

Ora, se é possível percebermos traços de Hodges em Coltrane, por dedução seria também

possível encontrarmos resquícios dessas semelhanças na interpretação de Ornelas, já que segundo o

intérprete, Coltrane fora definitivo no seu desenvolvimento musical. O que torna difícil esse tipo de

comparação é que não há em nenhum dos discos de carreira de Ornelas gravações de standards de

jazz e tampouco de baladas, tão caras para se identificar referências relacionadas a Hodges e onde

os recursos apontados anteriromente seriam melhor observados. Mas há uma interpretação em

especial de Ornelas presente no disco Viagem ao Oco do Toco, lançado em 2005, durante a peça

para saxofone tenor solo Uma Opinião, onde o intérprete aplica de maneira intensa diversos tipos de

portamentos e vibratos à sua performance improvisada, remetendo, mesmo que sutilmente, a

característas encontradas na performance de Coltrane e, por conseguinte, na deJohnny Hodges:

Exemplo Musical 67: Trecho inicial de Uma Opinião, composição de Nivaldo Ornelas. Note-se a forte presença de pitch bends, glissandos e vibratos no que poderia ser uma referência a características interpretativas alusivas ao estilo de

Johnny Hodges.

Podemos perceber, no exemplo anterior, que Ornelas já inicia seu solo com o uso de pitch

bends próximos aos que os músicos americanos chamam de scoop (pá), onde a nota é atacada de

baixo para cima, num estilo que lembra muito o de Coltrane. Nesse sentido, a interpretação de

Ornelas traz características estilísticas de Coltrane em sua realização, e, por conseguinte, dos traços

inerpretativos de Hodges, mesmo que os portamentos praticados por Hodges sejam muto mais

intensos em aplitude, aproximando-se de um glissando, característica essa que é apenas

parcialmente compartilahda com Coltrane e com Ornelas. Daniela Spielmann em sua dissertação de

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119

mestrado Tarde de Chuva, sobre a música de Paulo Moura, traz um depoimento do saxofonista que

revela como essa meneira de tocar de Hodges era encarada por seus contemporâneos no Brasil,

geração que precedeu à de Ornela, mas que norteou muitas das escolhas musicais de sua geração

(Informação verbal):

“(...) O portamento exagerado como fazia na orquestra de Duke Ellington um saxofonista chamado Johnny Hodges, aquilo ali pra música brasileira era detestável, considerava-se que aquilo fugia da nossa sensibilidade. Benny Carter não usava aquele tipo de portamento, a não ser aqueles mais leves de semitons, mas não aqueles longos como o estilo Johnny Hodges. (...) Já na clarineta quem fazia muito era o Luiz Americano, mas ele fazia com alguma reserva, quem fazia mais este tipo de coisa era o Abel Ferreira. E justamente os músicos não gostavam muito e diziam que estava imitando guitarra havaiana; eu gostava, mas aí diziam saxofone não é guitarra havaiana” (entrevista concedida por Moura à autora em 2006). (Spielmann, 2008, p. 140)

A partir da declaração de Moura podemos notar que os músicos no Brasil procuravam

reservadamente utilizar esses dados de interpretação que segundo o depoente subvertem o perfil

musical dos gêneros brasileiros, até mesmo porque havia, e há, pelo menos no posicionamento de

Ornelas, uma atitude no sentido de se distinguir dos trejeitos musicais de saxofonistas que o

precederam, em sua grande maioria imersa sob a estética dos grandes solistas das Big Bands, caso

de Hodges. Desse modo, as escolhas em Ornelas se deram de modo a inferir novas possibilidades à

interpretação no instrumento voltadas para a realização em música brasileira, mesmo quando o

músico interpreta um repertório de temas de jazz e mesmo ele estando atento aos cânones do

gênero, conhecimento que o auxilia a reconehcer essas características em sua performance e a evita-

las ou ressaltá-las deliberadamente.

De todo modo, as características interpretativas anteriormente apontadas serão mais

profundamente argumentadas no decorrer do presente Capítulo. Por hora, cabe resslatar que como

linhas mestras no entendimento didático e estético do saxofone, adotam-se estas duas escolas para

fins bem diferentes, sendo uma inclinada à música de concerto, ou erudita, e outra ao jazz e seus

desdobramentos, seja no funk, na música pop, no rock e nas realizações híbridas que conjugam

características de ambas, onde talvez, os dados de maior identificação e distinção entre as duas

práticas residam no entendimento de dois aspectos técnicos e estilísticos muito fortes: a sonoridade

e a articulação.

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120

3.1.1.1 - A Sonoridade do Saxofone na Música Brasileira:

Frente a este paradigma, o da “sonoridade”, é difícil estabelecer parâmetros para a descrição

das varáveis que o constituem. Estes aspectos são seguramente melhor identificados se expostos à

análise de ondas sonoras através de ferramentas de prospecção tais como programas de computador

que realizam a aferência de suas características frente a processos espectrográficos, procedimentos

estes que não são utilizados nesta pesquisa. O que aqui procuramos buscar são notas gerais de

características de sonoridade de ambas as escolas, anteriormente citadas, tomadas a partir de

impressões auditivas de seus usos por saxofonistas da música brasileira e, em especial, do perfil

interpretativo de Nivaldo Ornelas.

Se levarmos em conta as características de sonoridade e de interpretação das duas estéticas

anteriormente expostas e ao observarmos a maneira de tocar dos saxofonistas brasileiros,

especialmente da música popular, podemos perceber que a escola francesa e a escola americana, ou

do jazz, se alternam na história. O fato é que é associado ao uso do saxofone no choro - e por

extensão na música brasileira - mormente ao fato de Pixinguinha (1897-1973), durante a sua

excursão a Paris e 1922, ter incorporado o instrumento aos Oito Batutas e com isso ter dado início à

história de seu uso no Brasil. Contudo é negligenciada a existência anterior do invento de Sax em

terras brasileiras, sendo que por aqui o saxofone já tinha seus representantes, como Viriato Figueira

(1851-1883), tido como primeiro solista de saxofone no Brasil e Anacleto de Medeiros (1866-

1907), compositor, arranjador, regente, multi-instrumentista e que tinha predileção pelo invento de

Sax. Para estes intérpretes, certamente, o uso do saxofone não era referendado pelo jazz, até mesmo

porque no final do século XIX o instrumento ainda não fazia parte da instrumentação do gênero

americano, como evidencia Eric J. Hobsbawm em seu livro História Social do Jazz:

O saxofone entrou tarde no jazz. Os anos em que os jornalistas identificavam o jazz por seus “saxofones gemendo” foram precisamente aqueles nos quais os poucos saxofonistas de jazz que havia, tinham apenas se emancipado da tradição de clarineta de Nova Orleans. No entanto, da metade da década de 20 em diante, uma série de instrumentistas brilhantes e sensíveis começou a desenvolver uma técnica própria para o instrumento e colocaram a sua notável flexibilidade a serviço do jazz. (Hobsbown, 2007, p.135)

Infelizmente não há registros sonoros dos pioneiros do saxofone no Brasil, mas é de se supor

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que a estética de sonoridade e interpretação destes músicos passava ao largo das características ditas

jazzísticas que a música brasileira sofreria futuramente. É muito mais provável que a referência de

escola do saxofone no país tenha passado por uma estética europeia ligada à tradição das bandas

militares dos clarinetistas e dos oficleidistas. Ouvindo intérpretes do início do século XX como Luis

Americano (1900-1960), Sandoval Dias (1906-1993) ou mesmo Severino Rangel de Carvalho, o

Ratinho (1896-1972), podemos perceber traços da chamada escola francesa, mesmo frente a um

repertório de música popular, principalmente no que tange à escolha de um timbre mais amadeirado

para o instrumento, com articulações bem nítidas e pouco uso de recursos interpretativos e de

sonoridade relacionados ao jazz, como o subtone. Em contraposição, é perceptível que a escola do

jazz vicejou a partir dos anos 1940 com músicos como Zé Bodega (1923-2003), K-Ximbinho

(1917-1980) e, posteriormente, Paulo Moura (1932-2010), com uma sonoridade menos amadeirada

e com características de articulação não tão marcadas que incluem, por exemplo, notas escondidas

(ghost notes), bem como o uso de subtones, pitch bends e vibratos jazzísticos, portanto, torna-se

claro que a referência da cultura francesa do final do século XIX e início do XX tendenciou

escolhas de sonoridade e interpretação dos primeiros músicos de choro e com o passar do tempo a

referência do jazz, através principalmente das Big Bands e de seus músicos, alterou o eixo estético

para um jeito mais americano de tocar.

No caso de Nivaldo Ornelas, o músico resistiu fortemente no início da carreira em aceitar a

tocar saxofone, isto porque à época vigorava uma estética de saxofone no Brasil fortemente

inclinada à realização deste instrumento frente ao repertório de gêneros como o samba-canção e o

bolero, identificados com o universo da noite, como pode ser percebido em saxofonistas como

Moacir Silva (1940-2002), que durante dos anos 1960 lançava discos com o pseudônimo de Bob

Flemming. Nesta época, Nivaldo Ornelas tinha acabado de sair da Escola de Formação Musical em

Belo Horizonte e estava se dedicando ao clarinete com vistas para o repertório de música erudita,

logo, a associação do saxofone com esta estética e consequentemente com seu repertório eram

inevitáveis e indesejáveis pelo músico. Sobre estas primeiras impressões do saxofone Ornelas

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declara que (informação verbal):

O (Célio) Balona tinha um conjunto de baile que tocava esse povo todo aí, no conjunto do Balona, todo mundo passou pelo conjunto do Balona. O Balona foi um grande agregador desse tempo, né? Eu tocava clarinete e os caras, pô, você tem que tocar saxofone pra tocar no conjunto do Balona. Falei, saxofone? Mas nunca! Porque a ideia de saxofone era aquele som da noite, aquele som Ben Webster, como é que chama? Coleman Hawkins, e eu não era fã desse som não. Hoje eu admiro, de longe, mas também não é meu sonho de consumo, e naquela época muito menos, tava em outra.

Coleman Hawkins (1904-1969) e Ben Webster (1909 – 1973), citados na declaração, são

dois representantes do jazz realizado entre os anos 1930 e 1950, muito associados ao estilo swing e

que são referências dos primeiros grandes solistas do gênero, principalmente no saxofone tenor. A

maneira de tocar de Hawkins e Webster é marcada por um forte uso de recursos interpretativos tais

como o subtone, pitch bends, efeitos vocais chamados de growling, além de vibratos com grande

amplitude de altura e frequência. No Brasil estas características foram muito exploradas por

músicos que tocavam nas Big Bands brasileiras, como Zé Bodega e até mesmo Paulo Moura,

citados anteriormente, principalmente nas gravações deste no saxofone alto realizadas durante a

década de 1950. Nivaldo Ornelas não se adaptava a esta estética, mas uma outra referência do

saxofone no jazz o fez mudar de idéia (informação verbal):

Aí eu fui na casa do...do Balona, e o Antônio Morais, é um cara que, idealizador do Berimbau, emprestou um disco, a gente tirava disco da Embaixada Americana, não tinha como comprar, nesse tempo você não comprava um LP, não tinha loja especializada (…) Então alguém emprestou pro Balona o disco Monk & Coltrane, chamava The Prophet,(...) Aí eu ouvi aquilo e levei um susto, né? Opa, isso aí tá bom. Acheicontemporâneo o som, né? Diferente, gostei. O Coltrane tocou uma balada (…) Na verdade quando eu ouvi o Coltrane tocando essa balada. Pô que som interessante. Ele com pouco vibrato, assim aquele som...né?

Músicos de jazz das gerações posteriores a Hawkins e Webster abandonaram estes

esteriótipos e partiram para outros tipos de realizações, como ocorrido com John Coltrane. A balada

que Ornelas se refere é Ruby, My Dear, composição de Thelonious Monk (1917-1982) e presente no

disco Thelonious Monk with John Coltrane gravado em 1957. Como notas gerais das características

de sonoridade de John Coltrane apontadas por Ornelas, pode-se perceber um uso mais restrito de

recursos interpretativos característicos do jazz antigo, como vibratos, ou mesmo subtones, já que

este efeito é mais contundente no registros médio e grave do instrumento e Coltrane

preferencialmente realizava as melodias em suas regiões média e aguda, regiões estas mais

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brilhantes e de vigor do saxofone tenor, o que muda de maneira veemente o seu caráter. Há também

o entendimento de que, para cada um dos sete instrumentos que compõem a família dos saxofones

há uma identidade sonora muito forte que os diferencia e individualiza. Este ponto de vista é

compartilhado por Ornelas:

E a gente tava discutindo isso que cada [um] instrumento é uma alma pôxa, você não pode, não é assim. Você tem que pensar a respeito, é ou não é? Mesmo soprano ou tenor, às vezes no show quando eu toco só tenor fica bom pra caramba, tenho que tocar soprano, ferrou. Já não é a mesma coisa, a não ser que você seja muito jeitoso, não sei, aí é uma coisa de cada um. Mas quando eu tô tocando só soprano e começa a ajeitar, ajeitou, eu pego o tenor, aí o instrumento esfria e já não vem com o mesmo som, como é uma coisa que tem que ter um nível razoável, né? Em se tratando de flauta então, nem se fala, eu fiquei impressionado com um vídeo meu da Manchete que tá um som razoável nos três, eu não sei como é que eu consegui aquilo, e comecei a perguntar, a turma lembrou, nesse período a gente fazia 2 ou 3 concertos por semana, ensaiava segunda e terça e fazia show quinta, sexta e sábado durante um ano, dois anos, aí é fácil. Desde que você pense nisso que eu te falei, né? A tá, agora é flauta, ôpa. Então, é isso aí, entendeu?

Sendo assim, mais apropriado do que falar na sonoridade do saxofone de Nivaldo Ornelas

seria falar do saxofone tenor a parte do saxofone soprano. Quando Ornelas ouviu o som de John

Coltrane houve a partir dali uma referência não só musical, mas da qualidade de timbre de saxofone

tenor que guiou o músico por muitos anos. Nesse sentido o som de Ornelas tem traços de

semelhança com o de John Coltrane, mas essa similitude pode ser estendida ao entendimento da

sonoridade do saxofone no jazz moderno como um todo, que em notas gerais pode ser considerado

um som mais “elaborado”, menos rude do que a maior parte dos saxofonistas pré-modernos.

Quanto ao saxofone soprano, apesar do instrumento ter sido usado por John Coltrane, não

parece que Ornelas tenha buscado se orientar nele como intérprete desse instrumento. Ao ouvir

Ornelas no soprano, traços daquela dita escola francesa, de música erudita, vêm à tona, isto pela

leveza de sonoridade aliado ao um timbre extremamente doce e equilibrado, herança talvez de sua

experiência como clarinetista, havendo ainda a preferência por um fraseado mais legato, exaltando

essa delicadeza dos instrumentos de madeira.

É fundamental salientar que o jazz utilizado como referência de músicos de choro por volta

dos anos quarenta, como K-Ximbinho, Zé Bodega e Paulo Moura, não é o mesmo jazz praticado e

que serve de referência para Nivaldo Ornelas e outros saxofonistas de seu tempo, como J. T.

Meirelles (1940-2008), Vitor Assis Brasil (1945-1981), Mauro Senise (1950-), Roberto Sion (1951),

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Cacau - Claudio Araujo Chamié de Queiroz (1953-), Raul Mascarenhas (1953-), dentre outros.

Portanto, há distinções estéticas tanto de sonoridade quanto nos usos de recursos técnicos e

interpretativos entre estas gerações de músicos, e essas “novas” escolhas fundamentaram o que

pode ser chamado de “saxofone moderno brasileiro”.

1.2 Da Articulação no Saxofone em Ornelas:

Diferentes práticas de articulação são distinguíveis na realização de diferentes gêneros

musicais. Por ser de ordem rítmica, a articulação diz muito a respeito da maneira de frasear do

músico e do conhecimento dele frente às características do gênero ou estilo que está interpretando.

Como visto anteriormente em relação à sonoridade, para as diferentes práticas ou estéticas

apontadas como escolas, são demandados diferentes resultados sonoros e, consequentemente,

diferentes tipos de articulação. Basicamente, a articulação é o recurso necessário para se ligar notas

ou separa-las, chamadas de legato e detaché (desligado), respectivamente. Os tipos de articulação

mais comuns são aqueles que envolvem golpes de língua e como método pedagógico costuma-se

associar o uso imagético de sílabas - sem o uso da voz - para a efetiva realização destas, como uma

maneira de visualização, por parte do estudante, do movimento e posicionamento da língua ao

desferir os ataques contra a palheta do instrumento, já que um condicionamento meramente

muscular da língua é praticamente inviável, como relata o tubista e educador Arnold Jacos (1915-

1998) no livro Arnold Jacobs: Song and Wind escrito por Brian Frederiksen:

Treinar a língua através da musculatura é difícil, senão impossível. Jacobs prefere resolver os problemas da língua através da fala, com relações consonantais e vocálicas. Por exemplo, as sílabas “oo-thu” e “kee-hoe” são utilizados para movimentos para trás e para frente. “hah” versus “ssssss” move a língua da porção mais baixa para a mais alta da boca. Para experimentar um fluxo de ar contraído, diga “tee, yee, tee, yee.” Para experimentar uma passagem de ar aberta, diga “ah, oh, ooh.”44 (Frederiksen, 2006, p.127)

Para Ornelas, o entendimento da articulação passa muito pela instrução recebida em aulas de

44 Training the tongue by musculature is difficult if not impossible. Jacobs prefers solving problems of the tongue

through speech, with consonant and vowel relationships. For example, the syllabes “oo-thu” and “kee-hoe” are used for the back and forth motion. “Hah” vs. “ssssss” move the tongue from the lower to the upper portion of the mouth. To experience a constricted air flow, say “tee, yee, tee, yee.” To experience an open airway, say “ah, oh, ooh.”

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clarinete onde o músico se refere ao uso de ponta de língua. Pela ancestralidade didática do

saxofone estar ligada ao estudo ou ensino do clarinete, as abordagens em articulação em ambos se

assemelham e na maioria dos métodos em circulação no Brasil são usadas como referências as

sílabas tu ou ta, sendo que esse tipo articulação deve incluir um som consonantal dental, que na

performance do saxofone é substituído pela porção diagonal inferior frontal da boquilha, logo na

conjunção desta com a palheta (substituindo os dentes superiores) conjugado a um fonema vocálico,

que no caso tem uma interferência no sentido de posição da língua, abertura da glote e formato da

cavidade bucal. A realização destes fonemas é de certo duvidosa já que, como afirma David

Liebman: “O problema com estes exemplos é que a linguagem é idiomática e a mesma palavra pode

ter sonoridades (pronúncias) múltiplas dependendo da região geográfica do indivíduo, bem como o

contexto e outros fatores”45 (Liebman, 1994, p.23)

Portanto, a real emissão da sílaba pelos métodos franceses seria ty ao invés de tu, com a

vogal u afrancesada, e não o u da língua portuguesa, ou ainda como exemplifica Liebman ao sugerir

EE, como pronunciado na palavra inglesa eat. A princípio a diferença pode ser pequena, mas

movimentos infinitesimais de língua ou formato e abertura da glote (garganta) podem gerar

resultados muito diferentes. Essa técnica de vogais aplicadas ao timbre do instrumento não são

muito frequentes nos instrumentos de palhetas simples (saxofones e clarinetas), mas são

amplamente utilizados, por exemplo, na flauta transversal, apesar de poderem apresentar problemas

de tensão da glote ao serem realizadas.

Havendo assim a constatação de uma emissão errônea da sílaba citada na tradição didática

do ensino do saxofone no Brasil, o fato aponta para uma lacuna entre aquilo que Ornelas ouvia na

performance dos saxofonistas de jazz e aquilo que era por ele praticado através dos métodos

adotados nas aulas de clarinete que tomou. Em ambos os casos, tanto no ataque da nota (som

consonantal) quanto na sustentação do som (som vocálico), os resultados de articulação sofrem uma

interferência importante, portanto, os fonemas não são os mesmos, bem como os resultados

45

“The problem with these examples is that language is idiomatic and the same word can have multiple soundings depending on the individual's geographical region, as well as context and other factors.”

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produzidos por eles.

Obviamente que a simples pronúncia de determinadas sílabas não resultará propriamente em

notas emitidas, há outras questões provenientes de técnicas aplicadas à respiração e emissão de

coluna de ar que permeiam a prática em um instrumento de sopro, nesse sentido, para se falar de

articulação temos de nos referir inicialmente ao som e, por conseguinte, à respiração, afirmação

compartilhada entre Arnold Jacobs Ao estudar o som, você está estudando respiração46,(Nelson,

2006, p.35) e Naílson de Almeida Simões em seu artigo A Escola de Trompete de Boston e Sua

Influência no Brasil:

A respiração, além de indispensável para todos os seres vivos, fornece a matéria-prima na arte de executar um instrumento de sopro. Nesta proposta específica podemos citar:

Na ausência de ar, não existe vibração; na ausência de vibração não existe som.

(Simões, 2001, p.21)

A respiração consiste nos movimentos de inspiração e expiração. No primeiro, ao expandir a

caixa torácica, como um fole, a pressão interna do corpo se torna menor do que a externa, fazendo

com que o ar entre nos pulmões através das cavidades, ou fossas, nasais, além da boca, insuflando-

os. Na expiração, ao diminuir o espaço interno da caixa torácica através do movimento das costelas,

a pressão do corpo aumenta expelindo o ar dos pulmões num processo de troca gasosa, essencial

para a vida e que, no caso dos músicos de sopro, é utilizado como coluna de ar na performance

instrumental.

Além dos pulmões, há um músculo, involuntário, que auxilia e possibilita os movimentos de

expansão e contração da caixa torácica (inalação e exalação), o diafragma. Há um pensamento,

diria, atávico e generalizado no meio dos músicos de sopro, ao menos das madeiras na música

popular, que costuma relacionar fortemente o desenvolvimento de sonoridade do músico com a

quantidade de ar inalado e à força abdominal empregada para, em tese, estimular o uso do

diafragma através do aumento da pressão interna na região abdominal. É necessário apontar para a

distinção entre esses conceitos, havendo a pressão de ar interna e a pressão do ar projetada para

dentro do instrumento, resultante muito mais de características de embocadura e desenvolvimento

46 By studying sound, you are studying breath

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acústico.

No primeiro caso, o entendimento de boa parte dos praticantes de instrumentos de sopro

relaciona a atividade musical à qualidade e quantidade de ar obtida através da respiração, tendo

como foco o chamado apoio do diafragma. Antes de qualquer coisa, cabe uma consideração a

respeito desse músculo e de sua função, como afirma Arnold Jacobs, em livro escrito por Bruce

Nelson Jacobs explica o funcionamento do diafragma da seguinte maneira:

O diafragma é um músculo grande que separa os pulmões dos órgãos da parte mais baixa da região abdominal. Na inalação, o diafragma se contrai e se move para baixo, dilatando os pulmões. Na exalação, o diafragma relaxa e se move para cima, encurtando os pulmões. O diafragma é o chão do peito e o teto do abdômen. 47 (Nelson, 2006, p. 37).

Figura 7:Exemplo do processo de inalação citado por Nelson, 2006, p. 37

Inalação: (1) O Diafragma se move para baixo (2) Os pulmões inflam em todas as direções (3) A cavidade oral e a garganta abrem com o som de “Ô” (4) A língua está fora do caminho com o som “Ô” (5) A abertura dos lábios não é maior do que o espaço da garganta (o diâmetro do seu dedo opositor)

Enquanto estiver fazendo exercícios de respiração e tocando, apalpe a região abdominal entre a costela e o osso do quadril para ter certeza de que a musculatura abdominal está relaxada.

47 The diaphragm is a large muscle that separates the lungs from the organs of the lower abdominal region. On inhalation, the diaphragm contracts and moves downward, lengthening the lungs. On exhalation, the diaphragm relaxes moves upward, shortening the lungs. The diaphragm is the floor of the chest and the roof of the abdomen

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Figura 8:Exemplo de exalação citado por Nelson, 2006, .37.

Exalação: (1) O diafragma se move para cima. (2) Os pulmões esvaziam em todas as direções (3) A cavidade oral e a garganta abrem com o som “RU” (4) A língua está fora do caminho com o som “RU” (5) O ar se move como vento para fora dos lábios; os lábios vibram livremente. (6) Enquanto estiver fazendo exercícios de respiração, zumbindo, e tocando, apalpe a região entre a

costela e o osso do quadril para se assegurar de que a musculatura abdominal esteja relaxada. (Nelson, 2006, p. 37).

Desse modo, o funcionamento real do diafragma vai de encontro ao entendimento, diga-se

mais uma vez, errôneo e generalizado de que, ao fazer força no abdômen o músico estaria

estimulando o uso desse músculo, pelo contrário, o diafragma é relaxado na expiração e tencionado

na inspiração, portanto o que comumente se conhece por “apoio” do diafragma é o tensionamento

da musculatura abdominal que não tem efeito algum sobre o diafragma, apenas tornam rígidos os

pares de músculos dispostos em oposição isométrica. Esse tipo de força é comum às gestantes ao

darem a luz, ou, em estímulo ao evacuar, portanto, buscar um “apoio” para o diafragma dessa

maneira torna-se um esforço desnecessário:

Muitos professores usam a frase, “sopre a partir do diafragma”, e usam o termo “apoio diafragmático”. O termo “apoio” levanta dúvidas em si mesmo. Muita gente comete o erro ao assumir que a contração muscular é o que gera o apoio. O sopro da respiração deveria ser o apoio, não o tensionamento dos músculos do corpo, mas o movimento de ar que é demandado pela embocadura ou palheta.48 (Frederiksen, 2006, p.107)

48 Many teachers use the phrase, “blow from the diaphragm”, and use the term “diaphragmatic support”. The term “support” raises questions in itself. Many people make the mistake of assuming that muscle contraction is what provides support. The blowing of the breath should be the support, not tension in the muscles of the body, but the movement of air that is required by the embochure or reed.

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Ornelas dá seu parecer em relação a como pensa sobre esse assunto ao descrever os meios

com os quais foi se familiarizando e conhecendo os mecanismos de respiração (informação verbal):

Nivaldo – O diafragma é o peixe arraia. Sabe aquele peixe arraia? Já viu, não? Ele é assim ó, ele é colado aqui, ele não é solto não, achava que ele era solto. Pedi a minha irmã a Sandra. Você conhece a Sandra minha irmã? Ela é médica. Falei: Sandra olha um diafragma lá pra mim pôxa.

E completa:

Nivaldo – Ela falou assim: Ele não é solto não ele é agarrado, ele é preso. Não é isso? Ele é, como é que fala? Móvel, mas ele não é solto no espaço não, ele é preso numas articulações aqui e ele é mais pra baixo, ele não é reto não, ele faz assim. Eu vejo cara magrinho tocando bem pra caramba aí, como é que é isso? Esse cara tá relaxadão e não pega mais ar do que precisa. Ainda tem essa, isso não resolve, mas tem hora que resolve, saxofone tenor, tem que ter ar mesmo, é ou não é? Mas não adiante fazer barulho. Aí enquanto eu estava em Belo Horizonte, 75, 74, eu já tava tocando com o Milton, eu e o Toninho Horta fomos pro festival de Ouro Preto, fomos zoar lá, fazer bagunça. Chegou lá, dona Odete Ernest, sabe quem é? Ela tava fazendo um curso de flauta.

(...) Nivaldo – Eu e o Toninho (Horta) inscrevemos no curso de flauta dela, ela falava: Você toca saxofone né? É, saxofone com flauta não sei não. Aí ela me ensinou a respirar de verdade, ela falou: Você tá fazendo barulho. Não faz barulho e quando você tiver no palco tocando lembra do diafragma, mas você relaxa ele. Tá tenso, aí não entra ar, não entra ar. Não, relaxa, pensa. Toda vez que eu tô no palco as vezes assim eu, pá. Aí ajeita. Mas demora né? Isso foi o segredo, foi o que eu estudei, foi até a dona Odete, a partir dali foi comigo mesmo, nada mais.

A realidade do músico brasileiro que se dedica à música popular, e principalmente das

gerações pioneiras da prática nessa modalidade, como o caso de Ornelas, definiram sua prática

instrumental sem uma orientação formal de seu ensino e aprendizagem, e mesmo quando havia

alguma interferência didática formal nesse processo, as noções técnicas que permeiam o universo

do mecanismo da respiração são assuntos pouco abordados e por vezes evitados pelos professores

de instrumento – é fato que mesmo hoje o tema seja negligenciado por um grande número de

profissionais, fato inclusive percebido dentro de centros acadêmicos de excelência como

universidades. O curioso é que Ornelas, à sua maneira, buscou através de outros meios uma

fundamentação teórica através de uma colcha de retalhos de referências e que, mesmo havendo

pontualmente equívocos de ordem conceitual, serviram e ainda servem como instrumento de

desenvolvimento técnico para o músico. Em entrevista concedida em maio de 2009, o músico fala

como se deu o seu contato com essas noções técnicas da prática do instrumento (informação

verbal):

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Bernardo – Mas essas coisas de embocadura, de projeção de som, de ar, articulação, esse tipo de coisa você chegou a ter alguma instrução? Nivaldo – O que aconteceu é quando eu saía em Belo Horizonte eu falei: Gente, esse povo aqui; eu ia perguntar e os caras falavam: Ah garoto, não, não tem nada disso não, não tem negócio de diafragma não, tá bom, você tá tocando bem, o quê é isso? Eu achava que eles estavam escondendo o jogo de mim, aqueles senhores lá que tocavam na noite. Aí comecei a perceber que eles não sabiam, eles tocavam porque tocavam, porque tinham talento, mas iam até um certo ponto só, dali o cara não passa. Sem informação você não anda. Aí eu entrei pro ICBEU na Rua da Bahia, pra aprender inglês, e quando vinha músico americano ia lá no hotel atrás dos caras, e assim foi. O primeiro que eu procurei foi o Frank Foster. Você se lembra do nome.

Bernardo -É um nome famoso mas eu realmente não conheço. Nivaldo - Ele foi com o Elvin Jones em Belo Horizonte, Bernardo – Inacreditável, hein? [...]

Nivaldo – Não, não era o McCoy era um outro cara, era um outro cara, Reginald Offman, era uma turma ferrada. Aí eu procurei o Frank Foster, falei que eu tava, queria desenvolver e tudo, aí ele falou assim: Toca aí, deixa eu ver. Ele falou: Você deve ter muita dor nas costas. Falei: De vez em quando eu tenho mesmo. Ele falou: Pois é, você tá com a postura tensa, pá, pá, pá, tá respirando em cima. Aí nós fomos no parque municipal, ali em Belo Horizonte, à noite, aí ele falou: Olha, você tem que aprender a respirar aqui em baixo, tem que tocar relaxado, você tá fazendo força, aí dói, assim você não vai conseguir nada não, você tem que fazer força à favor e não contra, você tá fazendo força, amassando. Nivaldo – Não é assim não, relaxa que o som vem. Se ele tiver de vir ele virá, mas pra isso você tem de fazer alguns exercícios. Aí ele me ensinou um exercício que soprava vela. Você já viu isso? Eu fiz à exaustão. Aí ele me deu um toque, falou assim: Procura um cantor lírico que você gosta do trabalho dele e aprende com ele, e eu tinha meu vizinho, Roberto Fabel, que é o cara que fez as letras do meu primeiro disco, sabe aquele? Roberto Fabel. E o Roberto era cantor lírico do Palácio das Artes, muito bom, assim, falei: Roberto, como é que é esse som? Você enche o teatro de som e eu não encho nem a metade! Ele falou: O lance tá todo aqui dentro. Aí ele me passou exercício de Yoga de respiração, aquele aqui. Sabe aquele de abrir aqui, não? (mostra a respiração intercostal) e mil outros, aí eu comecei a praticar isso com o da vela e aí desenvolvi rápido, mas, você vê, foi o que eu estudei, coisa bem elementar de instrumento de sopro foi com esse pessoal, mas valeu a vida toda.

Vê-se que Ornelas, na falta de um ensino formalizado do saxofone, buscou a sua maneira

caminhos para resolver problemas específicos de seu desenvolvimento instrumental, recorrendo a

músicos mais experientes, no caso o saxofonista americano Frank Foster (1923 -), importante

instrumentista do jazz, bem como professores de canto e aulas de Yôga. Tal comportamento é

recorrente no Brasil, já que, mesmo hoje, são poucos os centros urbanos que dispõem de professores

de saxofone realmente capacitados para difundir esse tipo de informação. Obviamente que a

situação contemporânea é muito distinta e mais favorável do que aquela vivida por Ornelas na Belo

Horizonte dos anos sessenta e setenta, mas mesmo assim, a difusão do conhecimento aplicado à

performance nos instrumentos de sopro no país ainda é marcada por uma série de crenças e

suposições sem embasamento didático. No caso de Ornelas, esses caminhos por vezes resultavam

em conceitos de certo controversos, mas em alguns momentos quando, por exemplo, o músico se

refere à respiração intercostal, seu pensamento é assertivo e compartilhado por Jacobs quando ele se

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131

refere à expansão da caixa torácica com fins para aumentar o espaço de dilatação dos pulmões, bem

como no pensamento generalizado de se tocar primando pelo relaxamento e não enrijecendo a

musculatura abdominal.

Já em relação à articulação, especificamente, o músico é categórico ao afirmar que evita ao

máximo este tipo de articulação – diga-se: de ponta de língua - certamente a experiência do músico

ao ouvir os músicos de jazz e a pronúncia por eles realizada não era compatível com a sua própria

experiência neste campo, a qual difere daquela amplamente ensinada em conservatórios e

especialmente junto ao clarinete, instrumento no qual o músico foi inicialmente instruído. Talvez

em função da escassez de material didático de jazz sobre o tema propagou-se no Brasil, e em

especial na orientação de Ornelas, um modo intuitivo para a realização deste tipo de técnica, já que

nos métodos estadunidenses de jazz são propostas outras articulações análogas a outros fonemas,

sendo o mais comum o uso do fonema doo, traduzido para o português como du, além de serem

tratadas as articulações de sopro, chamadas de breath articulation e as de meia língua, prática

comum para se usar nas swing eights ou mesmo para o uso em notas fantasma (ghost notes)49.

Bernardo – Eu pergunto esse negócio de articulação, de uso de língua, Nivaldo – Nunca usei, nunca pensei nisso,

Bernardo – Porque das coisas de saxofone é o que fica escondido, né? Então a hora você vai ver ou escutar não fica muito claro, por isso que eu te perguntei a respeito. Mas você nunca pensou nisso, foi uma coisa sempre usada... Nivaldo - Eu, na verdade, clarinete a gente usava muita ponta de língua (tacatacataca – como num stacatto duplo), né? Não é isso? Deixa eu até te mostrar aqui fazer na flauta ó. Na flauta a gente faz também ó (Faz uma sequência de golpes simples seguidos de duplos). Né, esse tipo de coisa? No sax fica brega, fica esquisito, aí eu na verdade eu procurava evitar todo esse movimento, comecei a ver a linguagem dos caras de jazz, que um lance mais natural possível, pronunciado. É a pronúncia, é a intenção, é muito mais olhar e entender do que praticar, eu fiz foi isso, não pensei nisso.

Bernardo – A sua articulação normalmente então é de sopro mesmo né? Você faz os acentos com o diafragma?

Nivaldo – As vezes com diafragma. Com o diafragma com o saxofone tem que ter muito cuidado, eu acho, porque o diafragma ele arrebenta também, né? Tá cheio de nego com hérnia aí, né? Inclusive eu. Eu fui operado de hérnia. Por causa de saxofone. Pô fiquei três meses sem tocar.”

Cabe aqui ponderar que, são observadas e avaliadas as considerações técnicas a partir das

referências e do modo de pensar de Ornelas, sem, a priori, expor nenhum juízo de valores em

relação aos seus posicionamentos e abordagens às técnicas ou a maneira mais coloquial de se

49 Para maiores informações sobre articulações no jazz ver FABRIS, BORÉM. Catita de K-Ximbinho na Interpretação

de Zé Bodega (2006).

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reportar a elas. Dizemos isto pelo fato de ter abordado com ele, no trecho da entrevista supracitada,

questões a respeito do uso do diafragma. A questão, amplamente controversa, é tratada pelo músico

à maneira que os músicos de sua geração e de seu metier tratam o tema, mesmo sabido que há,

generalizadamente, um mal entendido em relação a esta mecânica quando, por exemplo, nos

referimos à articulação com o diafragma. Esse termo é usado equivocadamente e se refere, na

verdade, à articulação de sopro (breath articulation), sem o uso de língua. O equívoco se dá porque

é impossível atacar uma nota com o uso do diafragma, pois como já exposto, o referido músculo é

tencionado na inspiração e relaxa ao se expirar, sendo fisicamente inviável a sua atuação no

processo do ataque da nota.

Embora o músico diga não ser adepto das articulações com uso de língua e tampouco pensa

no assunto, a performance do saxofonista demonstra que ela é baseada na articulação mormente em

legato, mas com a perceptível realização de golpes de língua por ele desferidos, principalmente em

trechos onde notadamente há um incremento rítmico com notas repetidas, como demonstram os

exemplos a seguir:

Exemplo musical 68: c. 73 -78, Trecho de solo de Nova Lima Inglesa no qual o intérprete utiliza articulações de língua e

notas ligadas

Exemplo musixal 69: c. 82-86, Outro fragmento do solo de Ornelas em Nova Lima Inglesa: Uso de articulação de

língua em diferentes combinações rítmicas,

Exemplo musical 70: Trecho de solo de Ornelas no saxofone tenor em From The Lonely Afternoons presente no disco Diamond Land (1986)

Mesmo Ornelas admitindo que não pense na articulação, quando nos deparamos com figuras

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de síncopes com notas repetidas é impossível conceber a realização destas linhas melódicas sem

lançar mão de algum tipo de articulação, seja esta de língua ou de sopro. No caso dos trechos

selecionados de Nova Lima Inglesa e From The Lonely Afternoons, o tipo de articulação percebida

nas gravações tende a uma compreensão de uma articulação com golpes de língua tendo o du ou da

como sílaba predominante, já que estas são realizadas de maneira mais leve a fim de deixar clara a

separação entre as notas, mas sem pronunciar um acento em nenhuma delas.

Outros tipos de articulação, provenientes, por exemplo, da prática relacionada ao gênero jazz

são perceptíveis na performance do saxofonista mineiro, como em solo realizado no saxofone

soprano durante a música Bons Amigos do guitarrista Toninho Horta, gravada em 1980. A

articulação presente no trecho selecionado se refere a um recurso interpretativo conhecido pelo

temo inglês ghost note (nota fantasma) ou dead note (nota morta). O uso desse artifício permite que

a divisão melódica em tempo mais rápido preserve a intenção swing dos solos de jazz, já que a

realização da divisão desigual entre colcheias conhecidas por swing eights não é realizável em

andamentos muito lentos ou muito rápidos. No caso de Ornelas, por não haver a realização de swing

eights ou do próprio swing do jazz tanto na composição de Horta quanto em sua interpretação, esse

tipo de realização é incorporado ao seu estilo preservando a intenção rítmica da música brasileira,

no caso uma bossa nova, tendo a divisão eqüitativa entra as colcheias, e, por conseguinte, a de suas

semicolcheias, um dado rítmico fundamental para a sua realização. Com a introdução desse recurso

o músico “esconde” algumas das notas a fim de evidenciar o acento na nota sol sustenido, ponto

culminante da frase, empregando um fraseado que tem sua origem junto aos músicos americanos de

jazz, mas que se tornou próprio da música brasileira principalmente a partir dos anos 1960, em

estilos instrumentais como o samba jazz, o samba de gafieira e em algumas realizações do choro de

músicos como Pascoal de Barros, Zé Bodega, Juarez Araújo (1930-2003) e Paulo Moura, apontando

para o uso idiomático desse recurso interpretativo voltado para o “saxofone brasileiro”.

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Exemplo musical 71: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas no saxofone soprano realizado na música Bons Amigos.

Esse desenvolvimento de articulação também é percebido na participação do saxofonista em

outro disco de Toninho Horta durante solo sobre a música From The Lonely Afternoons, composição

de Milton Nascimento presente no disco Diamond Land do guitarrista de Belo Horizonte.

Exemplo musical 72: Trecho se solo de Nivaldo Ornelas na música From the Lonely Afternoons no disco Diamond Land de Toninho Horta.

Para a realização desse tipo de articulação, o músico pode lançar mão da chamada

articulação doodl, onde a primeira nota é articulada em legato com a sílaba du, e a segunda tem a

palheta abafada pela língua, contanto que haja a emissão, menos pronunciada, dessa nota. No caso

do trecho anteriormente citado, Ornelas pode ter apenas aproximado a língua, ou estreitado a glote

para esconder as notas dó sustenido e mi marcadas no compasso 8 já que elas estão em seqüência,

inviabilizando a articulação doodl em sua totalidade. O processo para a realização tanto desse tipo

de articulação quanto de outros, não parece importante para o músico, o que realmente importa para

Ornelas é pensar no resultado que se pretende e não na maneira como fazê-lo, o seu foco está na

linguagem internalizada através de processos auditivos, conseguindo seus resultados através da

experimentação em tentativa e erro.

Portanto, como afirma o próprio Nivaldo Ornelas, nestes casos é fundamental que o músico

entre em contato com a realização musical da articulação, que este tenha contato auditivo do

fenômeno, já que os universalismos dos métodos são inviáveis, idéia também compartilhada por

David Liebman (LIEBMAN, 1994, p.23) De qualquer modo, é difícil generalizar sobre o som sem

de fato ouvi-lo.50; e amplamente difundida por Arnold Jacobs que diz:

50Althogh it is difficult to generalize about sound withou actually hearing it.

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Até no estágio mais elementar, um instrumentista muito jovem não deve estar focado em aprender a tocar o instrumento. Ao invés disso, ele deveria aprender como um instrumento deve soar. No ato de aprender o som, ele está aprendendo o instrumento. A ênfase está no aspecto criativo do fenômeno do som, o que ele quer fazer com isso – o seu produto é o som, e o que ele fará com isso em termos de frase, dinâmica, emoção. Ele tem de comunicar.51 (Frederiksen, 2006, p. 95)

Essa escuta atenta, através de gravações de ícones do jazz, como John Coltrane, saxofonista

que Ornelas mais cita como sendo uma de suas principais referências no instrumento, moldaram, até

certo ponto, o fazer do músico que aplica características de sonoridade e de articulação

possivelmente inspiradas tanto no músico americano quanto na própria linguagem e características

interpretativas do jazz como um todo. As citadas ghost notes são encontradas amplamente na

performance de Coltrane, como no solo de Moment’s Notice, composição do próprio músico

presente no disco Blue Train de 1957.

Exemplo musical 73: Uso de ghost notes em trecho de solo de John Coltrane na música Moment’s Notice, do disco Blue

Train de 1957.

Até o momento, temos nos dedicado a descrever os processos de articulação a partir do

ataque (início) das notas, mas como bem lembra Daniela Spielmann citando Schluter, o som é

constituído de três estágios, sendo eles os seguintes, conforme atesta Schluter (apud Spielmann,

2008, p. 82):

Schlueter lembra que se deve ter consciência de três estágios de sons e notas: • Começo: em geral deve-se pensar neste início com o mínimo de esforço sem forçar o ataque. Há várias polêmicas em relação ao uso da palavra “ataque”, sendo preferível o termo “inicio de nota”. Deve-se ter em mente a sílaba “dhot” (o autor dedica seu artigo ao trompete, mas neste quesito sua análise sobre sons e notas pode ser utilizada para qualquer instrumento).

• Meio: é o estágio que define o valor ou tamanho da nota (longa ou curta). • Fim: é a etapa mais importante da nota. Determina-se com ele a projeção do som e a conclusão das frases. Quanto mais bruscamente o som é cortado mais ele se projetará.

A respeito do fim das notas, estas podem ser realizadas no saxofone de duas maneiras

básicas. Ou se interrompe a emissão de ar direcionada para dentro do instrumento através do

51 Even the most elementary stage, a very young player should not be focused on learning to play the instrument. Rather, he should learn how an instrument should sound. In the act of learning the sound, he is learning the instrument. The emphasis is then on the creative aspect of the sound phenomena, what he wants to do with it-his product is sound, and what he is going to do with it in terms of phrase, dynamics, emotion. He has to communicate.

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controle de sopro, ou, cessa-se a vibração da palheta com a aplicação da língua sobre ela. A

realização destes dois tipos de interrupção do som determina o tipo de contorno das notas, seu fim,

caracterizando e distinguindo a variedade de articulações possíveis, dos mais projetadas e curtas às

mais suaves e longas, como argumenta Naílson Simões (2001) citado por Spielmann (2008, p. 83).

Segundo Simões, a língua serve como modeladora do ar que automaticamente atua na articulação musical ou nas sílabas que se fala no cotidiano, impulsionadas pela coluna de ar. A língua é responsável pela separação das notas e ajuda sensivelmente nas notas ligadas. Então trabalha-se com duas instâncias de articulação que são ligadas pelo som ou pelo silêncio. E com variáveis de dinâmica e intensidade:

• Conexão pelo Som: “Notas ligadas”. • Conexão pelo Silêncio: “Staccato”, “Tenuto” ou “Longo”, “Martellato”. A realização de notas com “conexão pelo silêncio” como expõe Simões são também

perceptíveis na performance de Ornelas, como staccatos, notas acentuadas curtas, bem como as

duas possibilidades de fim de nota realizáveis no saxofone, através do controle do sopro e com a

intervenção da língua. No exemplo a seguir, apontamos alguns desses usos presentes na

interpretação do saxofonista mineiro retirado do solo de saxofone tenor da música Ninfas de sua

autoria.

Exemplo musical 74: c. 85 – 86 de Ninfas, note-se uso de notas acentuadas, tenutos e staccato.

Outros quesitos referentes ao que chamamos aqui de recursos dramáticos também são

utilizados na performance do saxofonista, como o vibrato. Tecnicamente a sua realização no

saxofone pode se dar de duas maneiras, com o movimento dos lábios na embocadura, relaxando e

contraindo-os, resultando em um vibrato de altura, onde a afinação da nota é variada, ou através da

modulação de intensidade do sopro resultando em um vibrato de intensidade. É francamente muito

mais apropriado e comum no uso do saxofone a aplicação da primeira técnica citada, sendo a

escolha da amplitude de vibrato e de sua velocidade decisões interpretativas relacionadas ao estilo

da peça a ser executada, sendo que no jazz costuma-se associar os vibratos de maior intensidade a

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um estilo mais antigo (anterior aos anos 1950 aproximadamente), conhecido como hot e uma menor

quantidade tanto do uso quanto da intensidade dos vibratos em saxofonistas mais recentes,

associados ao estilo cool. Fato é que hoje em dia as várias tendências musicais coexistem em uma

infinidade de maneiras muito mais marcadas por escolhas individuais do que propriamente por

correntes estéticas. A fragmentação, a pluralidade e o individualismo que vivemos na sociedade

contemporânea são também perceptíveis no universo do intérprete em música popular que cada vez

mais individualiza e cria o seu campo de referências e usos.

Em Ornelas, a sua relação com a referência de sonoridade de John Coltrane marcou

profundamente suas escolhas interpretativas, como citado no início deste tópico. No caso dos

vibratos, ele os utiliza com muita parcimônia, sendo esta uma decisão consciente de Ornelas e

declaradamente referendada no estilo de Coltrane. Esses vibratos têm como característica pouca

amplitude de altura, menor freqüência rítmica e o fato de aparecerem proeminentemente no fim de

notas longas.

Exemplo musical 75: Uso de vibratos por Ornelas na música Nova Lima Inglesa, gravação de 1990.

Em outros momentos, mesmo durante a realização de notas longas, o músico não faz

nenhum uso de recurso, resultando em notas “lisas”, característica fortemente associada à estética

do saxofone moderno, realização encontrada em músicos de gerações posteriores aos anos

cinqüenta, partindo de Coltrane, e desenvolvido por outros como Wayne Shorter (1933 -), nos 1960

e Michael Brecker, (1949-2007) a partir dos ’70.

Exemplo musical 76: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas no saxofone tenor durante a música Forró em Santo André,

presente no disco Montreaux Jazz Festival e Hermeto Pascoal: note-se o uso de notas longas sem a aplicação de vibtratos.

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Quanto a outros recursos de interpretação tais como subtones52 e pitch bends

(portamentos)53, estes são pouco utilizados pelo intérprete. No caso dos subtones, suas aparições são

raríssimas nas realizações do saxofonista, e mesmo quando ocorrem, parecem preservar um pouco

da sonoridade real das notas do registro grave tanto no saxofone soprano quanto no tenor. Nos

exemplos abaixo estão indicados usos desses recursos interpretativos nas gravações de Bons

Amigos, de Toninho Horta, realizada no saxofone soprano, e no solo de saxofone tenor em Ninfas,

composição de Ornelas de seu disco de estréia, Portal dos Anjos, de 1978.

Exemplo musical 77: Uso de subtone na gravação de Bons Amigos, de 1980.

Exemplo musical 78: Uso de subtone, notas fá do c. 47 e c.49, em Ninfas, gravação realizada em 1978.

Exemplo musical 79: Outro uso de subtone na música Ninfas. Nota mi c.53.

Cabe salientar que os exemplos acima relacionados estão indicados na tonalidade dos

saxofones soprano e tenor, instrumentos transpositores em Bb. Essa escolha se dá de modo a

evidenciar a região grave e extrema grave do instrumento, regiões onde o efeito de subtone é

melhor realizável.

52 Já no registro grave e médio-grave, é muito comum o subtone, técnica típica do meio jazzístico na qual o saxofonista

relaxa o queixo e desloca a mandíbula um pouco para trás da posição normal da embocadura. A sonoridade resultante torna a região grave do instrumento mais “aveludada” e com maior flexibilidade para variar as baixas dinâmicas, tornando mais fácil a progressão do pianissimo ao mezzo-piano. Outra característica do efeito subtone é a mistura do som real do instrumento com um pouco de ar, resultando em um timbre soproso. (FABRIS, BORÉM, 2006, p. 20).

53 Este é um recurso expressivo deslizante que geralmente aparece em intervalos melódicos pequenos. Normalmente é realizado iniciando-se a nota pretendida um pouco acima ou abaixo da sua afinação real, e deslizando-se da freqüência inicial até a desejada (Fabris, Borém, 2006:20).

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Já os pitch bends aparecem com mais freqüência do que o recurso anteriormente apontado,

mas mesmo assim, de maneira sutil. Também os pitch bends podem ser realizados de duas maneiras

distintas, ou se desafina a nota através do relaxamento da embocadura – efeito que pode ser

realizado tanto no início da nota, atacando-a mais baixo do que sua afinação real, bem como no

final dela ou mesmo durante a nota, desafinando-a e restabelecendo a afinação - ou então através

das chaves do saxofone, movendo os dedos vagarosamente para se obter o efeito desejado.

Exemplo musical 80: Identificação de pitch bends na gravação de Ninfas.

No caso de Ornelas, a aplicação dos pitch bends parece ser sempre realizada através da

desafinação da nota com o uso da embocadura. O recurso de se abrir ou fechar chaves, que

inclusive pode ser utilizado para realização de glissandos, não foi percebida na performance do

saxofonista.

Outros tipos de ornamentação também são encontrados no estilo interpretativo de Ornelas,

tais como apojaturas, mordentes e grupetos, usos possíveis tanto na prática da música brasileira

quanto na do jazz, mas que tem o seu uso mais freqüente e referencial frente ao repertório de

música erudita. Estas ornamentações se distinguem da seguinte maneira: apojatura, do italiano

appoggiatura, se refere a uma nota apoiada, em grau conjunto acima ou abaixo da nota principal; o

mordente consiste na alternância rápida entre a nota principal e outra em grau conjunto acima ou

abaixo, e por fim, o grupeto, ornamento que compreende a realização de quatro notas: a nota acima

da principal, a nota principal, a nota abaixo da principal e novamente a nota principal.

Exemplo musical 81: Uso de apojaturas ascendentes durante solo de Nivaldo Ornelas em Forró em Santo André.

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Exemplo musical 82: Realização de mordente ascendente e de tempo irregular em Bons Amigos.

Exemplo musical 83: Ornamentos em Nova Suissa Sábado à Tarde gravada em 1982. Da esquerda para a direita; o primeiro se refere a um grupeto escrito, por apresentar maior regularidade rítmica, o segundo se trata de um mordente

ascendente e o último uma apojatura ascendente.

Esse conjunto de características aponta para usos do saxofone frente ao repertório da

modalidade música instrumental onde são conjugadas características diversas relacionadas num

primeiro momento à performance no jazz – principalmente a partir dos anos 1950 – bem como da

tradição da música brasileira, mas que apontam também para escolhas galgadas na autonomia e

distinção do estilo interpretativo de Ornelas como escolhas possíveis e reveladoras de sua

personalidade como instrumentista, e que, além de serem parcialmente compartilhadas por outros

saxofonistas de sua geração também servem como referência para músicos das gerações seguintes.

2. Escolhas Rítmico-Melódicas em Improvisos de Nivaldo Ornelas:

Na tradição da música instrumental, seções improvisadas, conhecidas pelo termo inglês

chorus54, tem sua relação fortemente identificada com a prática do jazz, como afirma Acácio

Piedade e Marina Bastos (PIEDADE, BASTOS, 2006): Na música instrumental, a forma do

improviso está diretamente ligada à do jazz.

Mesmo parecendo parcial, a afirmação de Piedade se restringe àquela modalidade

instrumental referida por ele como MI (música instrumental), surgida a partir dos cruzamentos entre

a bossa nova e o jazz, e não do entendimento de música instrumental tanto em seus desdobramentos

seguintes, quanto em outras práticas correlatas, já que há diversas maneiras de improvisação em 54 Chorus são seções de improvisação que ocorrem obedecendo-se a estrutura harmônica e formal da música.

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música instrumental, especialmente nos gêneros de música popular. O que se pretende aqui é

evidenciar que as práticas de improvisação caminhavam a partir dali muito mais ligadas às práticas

do jazz do que a outras já existentes, como por exemplo, a do choro.

A análise dos solos improvisados, portanto, deve servir para se identificar recorrências,

reiterações dos usos e escolhas de certas estruturas musicais (melódicas, rítmicas e harmônicas).

Materiais que dêem pistas das referências musicais do universo ao qual o intérprete se inscreve,

relacionadas ao conceito de habitus exposto anteriormente durante o Capítulo II na análise de Nova

Lima Inglesa, mas que no jargão da música instrumental podem ser identificadas como fórmulas: “a

forma e a abordagem que os solistas de jazz demonstram em relação à fórmula são pistas

importantes para o entendimento de seus estilos”. (Santiago, p.08, 2006)

Certas fórmulas podem ser reconhecidas de um solista para o outro e efetivamente posicionar o músico dentro de categorias e gêneros da tradição jazzística(...) Absorvendo a técnica dos músicos admirados e de maior experiência através da imitação, os solistas do jazz se conectam a uma tradição vastamente difundida na qual um material é passado de músico para músico. É nesse sentido que as fórmulas de um músico são um arquivo criado como uma afirmação artística, uma assinatura pessoal, dentro de uma tradição estilística escolhida. Como resultado, os improvisadores são reconhecidos não só pelo seu som (no sentido mais geral: fraseado, articulação, timbre, etc.), mas também pelas fórmulas por eles tocadas. (Santiago, p.08, 2006)

Essas fórmulas revelam características de identidade musical, ou traços individuais, que são

assim identificados por Bastos e Piedade:

No caso do jazz, as improvisações trazem à tona os diversos estilos individuais, reconhecidos pela audiência, e que por vezes fazem referências culturalmente compartilhadas muito significativas, como, por exemplo, no caso de paródias e citações. (Bastos e Piedade, 2007)

Segundo Santiago, podemos classificar genericamente os modelos de improvisos em duas

categorias: “Uma visão mais generalizada poderia classificar uma improvisação como temática ou

não-temática” (Santiago, 2008, p.07). A diferença básica entre as duas referências é que o

improviso temático teria como fundamento a melodia original da música e seu desenvolvimento,

enquanto que o modelo não temático leva em consideração as relações harmônicas e formais de

uma peça, não tendo o solo improvisado uma relação direta com a melodia da música no qual se

realiza.

Boa parte das escolhas melódicas de Nivaldo Ornelas está fundamentada na realização de

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variações a partir do tema das músicas em que sola como na sua composição Rock Novo, com isto,

o intérprete desenvolve melodicamente outras características harmônicas a partir do referencial

dado pela melodia original. Isso ocorre, por exemplo, com a utilização melódica do modo

Mixolídio, modo derivado da escala maior diatônica tendo como centro modal o seu quinto grau.

Esta ocorrência pode ser tanto compartilhada pelas práticas de rock (como visto na análise de Rock

Novo, durante o Capítulo II), como também de gêneros de música brasileira, como demonstrada na

música Baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, de 1946:

Exemplo musical 84: Trecho da música Baião de Luiz Gonzaga e Hunberto Teixeira.

O uso deste material melódico arpejado, como no exemplo acima, pode ser considerado

como um padrão melódico utilizado tanto no gênero musical baião, quanto na modalidade música

instrumental, e é também utilizado por Nivaldo Ornelas durante seu solo:

Exemplo musical 85: Uso de padrão melódico arpejado no modo mixolídioem improviso de Nivaldo Ornelas durante a música Rock Novo.

Tendo em vista a proposição do desenvolvimento melódico a partir do referencial do tema, o

fragmento acima destacado pode ser compreendido como uma das utilizações de estruturas

melódicas derivadas do motivo original. Estes novos motivos, apesar de apresentarem traços de

similaridade com o motivo inicial, se comportam quase como um “novo tema”, haja vista a unidade

melódica entre as novas estruturas e sentido lógico do solo como um todo.

No exemplo abaixo pode ser observado como Nivaldo Ornelas desenvolve melodicamente

seu solo. Ao iniciar a seção sobre o acorde de F, ele utiliza como material melódico as notas do

acorde (notas presentes no motivo inicial do tema, ex. 85), e desenvolve esta idéia em dois

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membros de frase, que chamo aqui de A e B, numa relação de pergunta e resposta (exemplos 86 e

87):

Exemplo musical 86: Melodia do tema de Rock Novo, seção A.

Exemplo musical 87: c. 115-118: trecho do solo de Ornelas sobre o acorde de F

Exemplo musical 88: c. 115 – 116: primeiro membro de frase e c. 117-118: segundo membro de frase

Na frase que se segue, agora sobre o acorde de Fm, o intérprete desenvolve o mesmo padrão

melódico sobre o novo modo, desenvolvendo melodicamente o trecho que, apesar de permanecer

contendo quatro compassos, apresenta agora três membros de frase no lugar de dois:

Exemplo musical 89: c 21 – 24: trecho da melodia de Rock Novo, seção B’.

Exemplo musical 90.c. 119 – 122: desenvolvimento melódico do trecho sobre acorde de Fm

Podendo esta frase ser subdividida da seguinte maneira:

: Exemplo musical 91a: c.119: primeiro membro de frase

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Exemplo musical 91b: c. 120: segundo membro de frase

Exemplo musical 91c: c. 121: terceiro membro de frase

O “novo tema” continua a ser desenvolvido na frase imediatamente posterior, sendo a nova

seção, também com 4 compassos, mas com duas frases em uma relação de pergunta e resposta

(exemplo musical 92), e o desmembramento desta (exemplo musical 93a e 93b):

Exemplo musical 92: c. 121 – 124: desenvolvimento melódico em duas frases de dois compassos

Exemplo musical 93a: c. 121 – 122: frase pregunta

Exemplo musical 93b: c. 123-124: frase resposta

Observando o desenvolvimento do primeiro fragmento melódico de cada uma das frases,

estes se comportam da seguinte maneira:

Exemplo musical 94a: c.115 – 116: primeira variação do tema

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145

Exemplo musical 94 b: c.119: variação do “novo tema” com redução rítmica da melodia e modulação

Exemplo musical 94c: c.123-124: desenvolvimento da variação melódica

Esse tipo de desenvolvimento fraseológico identificado com a construção idiomática do

saxofonista Nivaldo Ornelas durante a realização do solo em sua música Rock Novo reaparece em

participações do músico frente a repertórios de outros compositores, como na gravação da canção

Cuerpo y Alma do compositor uruguaio Eduardo Mateo (1940-1990), inserida no disco Nascimento

de Milton Nascimento, lançado em 1997. Nivaldo Ornelas abre o arranjo da canção realizando a

seguinte introdução no saxofone soprano:

Exemplo musical 95: Introdução de saxofone soprano da música Cuerpo y Alma

Durante seu solo o músico desenvolve os motivos apresentados anteriormente sobre a

mesma seqüência harmônica, reordenando as notas da introdução e preservando a sua

intencionalidade melódica. A primeira frase do solo de Nivaldo Ornelas pode ser dividida em dois

membros de frase, sendo o primeiro dos membros de frase desenvolvido sobre os acordes de A/C# e

de E/B, tendo como apoios melódicos as notas dó sustenido, si, sol sustenido e mi (as mesmas

utilizadas durante a introdução):

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Exermplo musical 96: c. 1-2: primeiro membro de frase da introdução de Cuerpo y Alma

Exemplo musical 97: c. 38-40: desenvolvimento melódico a partir do motivo da introdução durante o chorus realizado no saxofone soprano

O segundo membro de frase identificado se desenvolve sobre os acordes de G7 e de G7/D,

tendo como notas de referência as notas fá sustenido, mi natural e lá natural, como podem ser

observadas no exemplo a seguir:

Exemplo musical 98: c. 3-5: segundo membro de frase da introdução de Cuerpo y Alma

Exemplo musical 99: Desenvolvimento melódico do segundo membro de frase da introdução durante solo de Ornelas.

O desenvolvimento melódico do solo de Nivaldo Ornelas apresenta, em aluns momentos,

recorrências de motivos desenvolvidos pelo próprio intérprete, aplicando novos materiais melódicos

e rítmicos ao material melódico inicial. Nos exemplos que se seguem podem ser observados o uso

de fragmentos melódicos baseados em intervalos de quarta sobre trecho da introdução da música

Cuerpo y Alma:

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Exemplo musical 100: Intervalos de quarta entre as notas Mi e Si no primeiro membro de frase do solo de Cuerpo y Alma

Exemplo musical 101: Intervalo de quartas entre as notas sol e ré com desenvolvimento melódico no segundo membro

de frase do solo de Cuerpo y Alma

Por vezes fragmentos de solos distintos, como os anteriormente citados, tendem a revelar

usos similares de construções melódicas, como no exemplo abaixo, extraído da transcrição de Rock

Novo, onde Nivaldo Ornelas desenvolve melodicamente o trecho assinalado por meio de padrões

arpejados:

Exemplo musical 102: Trecho arpejado no solo de Rock Novo (1990)

Exemplo musical 103: Trecho arpejado no solo de Cuerpo y Alma (1997)

Exemplo musical 104: 2º trecho com arpejos no desfecho do solo de Cuerpo y Alma.

Esse tipo de inteligência melódica pode ser considerada uma marca do músico quando ele

utiliza as duas organizações melódicas básicas, escalas e arpejos, como ferramentas fundamentais

para a construção seu discurso musical. Estes usos reforçam inclusive os encadeamentos

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harmônicos de modo a conduzir melodicamente a harmonia da música, ainda em outros solos,

padrões semelhantes aos de arpejos também aparecem, como em From The Lonely Afternoons de

Milton Nascimento gravada por Toninho Horta em seu disco Diamond Land de 1986, onde aparece

um padrão envolvendo as notas mi, lá e si:

Exemplo musical 105: Uso de padrão rítmico-melódico em improviso de Nivaldo Ornelas na música From the Lonely Afternoons.

Tendo centralmente em seus solos a característica das variações melódicas, sob este aspecto

outras participações do saxofonista também podem ser consideradas, como na gravação de Ponta de

Areia de Milton Nascimento presente no disco Minas de 1975. Neste solo o músico utiliza

basicamente notas da escala pentatônica de Si bemol maior, se transposto para o saxofone soprano,

o tom seria o de Lá menor, ou seja, contendo somente notas naturais. Estas notas da pentatônica de

Si Bemol Maior são também utilizadas por Milton Nascimento na melodia do tema e as escolhas de

Ornelas para os dois chorus que realiza residem, mais uma vez, na variação temática da linha

melódica da composição, utilizando muitas vezes as mesmas notas da melodia original, porém,

dando outra intenção à melodia, dialogando com outras possibilidades métricas e estendendo sua

tessitura, como mostram os exemplos a seguir:

Exemplo musical 106: Melodia cifrada de Ponta de Areia de Milton Nascimento

Exemplo musical 107: Identificação de notas repetidas da melodia de Ponta de Areia (sistema superior) no solo de

saxofone soprano (sistema inferior) durante o 1º chorus do improviso de Nivaldo Ornelas.

Excepcionalmente às notas da escala pentatônica de Si bemol maior, aparecem no solo do

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saxofonista o uso da nota lá natural, sétima maior da escala diatônica de Si Bemol Maior, utilizado

primeiramente no quinto compasso de seu solo sobre os acordes de Cm7 e F4sus7, resultando nos

intervalos de sexta maio (ou décima terceira maior) e terça maior, (ou décima maior), destes,

respectivamente:

Exemplo musical 108: Nota lá natural na escala diatônica de Si bemol maior durante solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia.

Logo após esta passagem, já no compasso de número sete, o saxofonista volta a utilizar a

nota lá natural, agora sobre o acorde de tônica Bb9, resultando justamente na sétima maior do

acorde, lembrando que esta cifra não prevê a sétima maior como tensão do acorde, mas uma nona

maior adicionada à tríade maior perfeita:

Exemplo musical 109: Nota lá natural sobre o acorde de Bb9, sétima maior do acorde em passagem do solo de Nivaldo

Ornelas em Ponta de Areia.

Na última frase do seu solo, já no segundo chorus, Nivaldo Ornelas lança mão da nota mi

bemol, a nota que restava para completar a escala diatônica de Si bemol maior, sobre o acorde de

Cm7, resultado numa escala de dó dórico, mesmo tendo uma intenção tonal no solo como um todo.

O improviso termina com outras aparições da sétima maior de Bb9:

Exemplo musical 110: Última frase do solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia com o uso de outras notas que não da escala pentatônica de Si bemol.

Os usos melódicos que Nivaldo Ornelas lança mão no solo anteriormente exposto denotam

que o músico se restringiu inicialmente às notas da escala pentatônica de Si Bemol Maior, já

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utilizadas no tema de Milton Nascimento, acrescidas de seus IV e VII graus, acréscimos que

poderiam ser entendidos como pertencentes à escala diatônica de Si Bemol Maior, mas que nesse

contexto, o da harmonia modal, são entendidas melodicamente como apojaturas, notas de passagem

cujos usos devem ser percebidos frente à ambiência da harmonia modal, sendo apontada, nessa

música, a escala de Si Bemol Jônico. Mesmo estando restrito ao uso dessas sete notas, o solo

construído por Ornelas é extremamente inventivo, isto pelo fato do músico recorrer a estruturas

melódicas que funcionam, mais uma vez, como variações do tema, imprimindo uma forte relação

simbiótica aplicada à música como um todo.

Seguindo esse tipo de afirmativa, agora em solo da música Bons Amigos de Toninho Horta e

Ronaldo Bastos presente no disco homônimo do guitarrista lançado em 1980, Ornelas demonstra

mais uma vez a sua intenção frente aos chorus improvisados, como exposto em entrevista realizada

em maio de 2009 (informação verbal):

Bernardo – É porque justamente a impressão que me dá, se eu fosse avaliar o tipo de padrão melódico que você usa são escalas e arpejos.

Nivaldo – É. Bernardo – Tô muito enganado, não? Nivaldo – Eu sempre procurei melodia, nunca procurei escala nem arpejo. Eu procurei... Bernardo – Digo o uso de fragmentos disso, claro.

Nivaldo – É, pode ser. Mas eu procurei o seguinte: Fazer uma melodia dentro de uma outra melodia, nem sempre é possível, às vezes fica muito ruim, mas a minha ideia era essa.

Referente à canção Bons Amigos, Nivaldo Ornelas expõe mais uma vez esse tipo de

manipulação de estruturas rítmico-melódicas, preservando algumas notas do tema além do seu

contorno melódico:

Exemplo musical 111: Primeira frase de Bons Amigos de Toninho Horta e Ronaldo Bastos

Exemplo musical 112: c. 1-4 do improviso de Nivaldo Ornelas em Bons Amigos, note-se o uso de notas do tema no solo além da preservação do contorno melódico.

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Diferentemente da maioria das outras composições gravadas por Nivaldo Ornelas presentes

neste estudo, Bons Amigos apresenta um tipo de encadeamento muito comum ao jazz e também à

bossa nova que são os movimentos cadenciais na seqüência II-V-I. Alguns músicos de jazz têm por

rotina o estudo de padrões melódicos retirados de solos de cânones do gênero e que com seu uso

freqüente passam a fazer parte do vocabulário do músico que se dedica a este tipo de prática. Estas

frases, estudadas sobre passagens harmônicas como as citadas, são conhecidas pelo termo inglês

patterns (padrões). Se por um lado o uso de frases prontas facilita a construção de um solo, pelo

fato de estarem “debaixo do dedo”, por outro, estes improvisos podem soar como colagens de

citações de outros músicos ou mesmo pastiches dos originais. No caso de Ornelas estes usos não

são reconhecíveis, pelo contrário, o modo como o músico improvisa vai muito na contramão desse

tipo de prática, como afirma o pianista Túlio Mourão em entrevista ao jornal Estado de Minas de 18

de fevereiro de 2005: “Depois da Berklee School of Music, de Boston, que criou modismos e clichês

que acabaram por se mostrar pobres, é importante que pessoas como Nivaldo nos mostrem novos

caminhos na música instrumental”

Apesar da nítida opção de Ornelas por escolhas menos calcadas em padrões e clichés, é

possível lançarmos mão de uma prospecção no sentido de identificarmos os usos melódicos

realizados pelo saxofonista na música Bons Amigos e a efetiva comprovação que as escolhas do

músico estão alinhavadas justamente no sentido da originalidade e distinção.

No exemplo a seguir, o movimento cadencial está no campo harmônico de Si Maior, sendo

os acordes de C#m7(9) o segundo grau e o de F#7(13) o quinto grau da tonalidade. Como padrão

melódico utilizado, este está muito mais relacionado com a melodia do tema original, e mesmo se

observarmos as notas utilizadas, limitam-se às notas da escala diatônica do centro tonal de Si Maior.

Exemplo musical 113: Frase de Nivaldo Ornelas em II-V-I presente no solo de Bons Amigos

Imediatamente após a realização da frase citada, a harmonia da música segue em mais um

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movimento de II-V-I, desta vez tendo como centro tonal o campo harmônico de Lá Maior, onde o

acorde de Bm7(9) é o seu segundo grau; E7(4)(9) e E7(9) são o quinto grau, note-se que, a

diferença entre os acordes é que no primeiro houve a substituição da terça maior, nota sol sustenido,

pela quarta justa, nota lá natural, que caminha cromaticamente para a sua terça maior; e por fim

A7M(9), que é seu primeiro grau.

Exemplo musical 114: Frase sobre movimento cadencial de II-V-I durante solo de Ornelas em Bons Amigos.

Nesse caso há sim o uso de um padrão rítmico-melódico realizado por Onelas que caminha

em intervalos de terça menor, da nota ré ao sol sustenido. Mesmo dentro deste padrão, as notas

utilizadas são todas pertencentes à escala diatônica de Lá Maior, e o padrão rítmico utilizado, prima

pelo uso da síncope. Apesar do claro uso deste padrão, uma espécie de marcha melódica presente

em sua performance, não podemos afirmar que se trata de um padrão advindo do repertório de

frases de algum outro saxofonista ou mesmo de um outro músico do jazz ou da música brasileira.

Neste caso podemos dizer que o músico lança mão de seus próprios padrões, sem relacioná-los a

clichês, mas certamente são reflexos da prática instrumental do músico, do quê e como estuda além

de ser possível vislumbrar o modo como pensa e resolve musicalmente esse tipo de situação. Em

trecho de entrevista concedida em maio de 2009, Nivaldo Ornelas fala como foi o seu processo de

estudo direcionado para a improvisação e, mais especificamente, voltado para o jazz, citando o livro

de patterns de Oliver Nelson:

Bernardo – Justamente. Analisando alguns dos seus solos eu não cheguei exatamente a uma definição, a uma referência desse tipo de pattern.

Nivaldo – Mas eu fiz isso, mas aquilo ali não era o objetivo. Bernardo – A tá, entendi. Nivaldo – Aquilo era en passand. Bernardo – É pra entender o mecanismo.

Nivaldo – O livro você pega a página e virou a página, se tiver tirado já tirou, não é com o objetivo de tirar aquilo não, eu quero entender, eu quero tirar coisas que vão me dar mais coisas, mas eu procurei sempre fugir disso, não sei se passou no meu som, eu sempre procurei...um negócio aqui no Rio, gostei de muita coisa, mas os caras aqui também, por outro lado, nessa época, tinha muito de blue note, de pentatônica, aquele negócio de (pega a flauta e fraseia sobre pentatônicas com blue note) isso aqui, isso na verdade vem lá de trás, vem do Ravel, vem do Gershwin e vem da música negra dos plantadores de algodões que deu no jazz, que é isso né? (toca mais um pouco a flauta e cita o tema Moanin' de Art Blakey), então, eu fugia disso que nem o capeta da cruz, como dizem. Eu não queria

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isso, como não quero, eu achava que isso aí, isso é deles, o músico americano negro que faz isso, isso é deles, da identidade deles, do jazz americano, mas o jazz como conceito de liberdade de expressão artística envolve não só a música abrange não só a música. A pintura, as artes plásticas a literatura, tudo. Isso é da humanidade toda, e a minha ideia era essa e não essa desse som, por isso que eu fugi disso, então eu fugia do pattern da Berklee. Não, isso eu não quero não.

A partir de uma breve observação do método citado, podemos perceber que Nelson

apresenta estudos técnicos que envolvem, sobremaneira, a mecânica do saxofone através de

exercício baseados em fragmentos melódicos que são repetidos cromaticamente, sejam ascendentes

ou descendentes, abrangendo toda a extensão do saxofone55. Nesse sentido, o estudo não apresenta

os recortes de solos de improvisadores consagrados, tampouco a cifra no qual o referido padrão

deve ser tocado. Ornelas ao citar o método diz que ele mesmo, de maneira ainda rudimentar,

harmonizou os estudos e gravou, com o auxílio de um gravador de rolo, um violão e um

metrônomo, exercício por exercício produzindo uma espécie de play-along, ou seja, um

acompanhamento no qual pudesse praticar estes exercícios.

Sugerimos aqui um estudo semelhante ao de Nelson através do padrão identificado em Bons

Amigos e destacado do exemplo anterior. A organização melódica do exercício poderia se dar da

seguinte maneira:

Exemplo musical 115: Simulação de exercício baseado no método Imoprovisation for Saxophone a partir de padrão

melódico de Nivaldo Ornelas. Diferentemente da maioria dos métodos de padrões melódicos da atualidade, o método

Improvisation for Saxophone de Oliver Nelson não indica sobre qual ou quais acordes as estruturas

melódicas indicadas devam ser utilizadas. Isso abre caminho para o julgamento do intérprete quanto

ao uso que este dará em relação aos padrões melódicos sugeridos, e caminha ao encontro da ideia

55 Ou quase toda, já que, a época em que o método foi escrito, a maioria dos saxofones tinha uma extensão que ia até a

nota Fá natural, no tom transpositor, para os saxofones em Bb seria a nota Mi Bemol e para os saxofones em Eb a nota seria um Lá Bemol, tons concerto.

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que Ornelas tem deste tipo de estudo (informação verbal): “O livro você pega a página e virou a

página, se tiver tirado já tirou, não é com o objetivo de tirar aquilo não, eu quero entender, eu quero

tirar coisas que vão me dar mais coisas”, ou seja, o método funciona como uma fonte de inspiração

e aprofundamento de recursos e possibilidades técnicas, principalmente mecânicas do instrumento,

apresentando novas referências para a geração de novas realizações criadas pelo intérprete.

Dentro das estratégias de estudo em improvisação, Ornelas desenvolveu, paralelamente ao

estudo dos padrões melódicos de Nelson, outro playalong com músicas de John Coltrane, extraídas

do disco Giant Steps do músico estadunidense. Nesse disco, gravado em 1959, Coltrane

apresentava, pela primeira vez, somente composições autorais já apontando para uma realização no

chamado jazz modal, além de indícios de extrapolação da tonalidade, como na música título do

álbum, composição baseada em um encadeamento no qual três tonalidades se alternam como

centros tonais, sem haver uma inclinação clara para nenhuma delas. Músicas incluídas nesta mesma

compilação como, Mr. PC, Naima e Countdown acabaram se tornando Standards do gênero

(informação verbal):

Nivaldo – Voltei pra estudar inclusive, fiquei um ano estudando, mesmo. Aí que eu peguei o que eu sabia de violão, peguei aquele disco o Giant Steps, tirei ele todo, viu? Tudo, todas as harmonias, e...

Bernardo – E mergulhou ali. Nivaldo – Mergulhei, fiz um playback com metrônomo e violão e comecei a estudar aquilo, que eu tinha lido uma reportagem que o Coltrane pra tocar aquele trabalho ele estudou um ano, já ouviu falar sobre isso?

Bernardo – Umhum Nivaldo – Tinha um gravador AKAI. Chegou um jornalista na casa dele ele tava praticando. Se ele fez isso eu tinha que praticar 2, 3, porra. E assim eu fiz e quando eu cheguei no Rio da outra vez, 73, aí eu já tava tocando diferente.

Bernardo – Você ficou um ano em Belo Horizonte. Nivaldo – É. Do meio de 72 ao meio de 73, aí eu voltei tocando diferente mesmo, assim e tal, e o pessoal sentiu, mas mesmo assim o pessoal tava aqui e eu tava aqui, muita diferença. A gente lá acha que lá é o mundo, mas não é, sabe como é que é? Foi um cara do Maranhão me entrevistar uma vez e falou: Rádio Difusora do Maranhão falando pra o mundo. Na cabeça dele, o mundo tá ouvindo ele, né? Então é nesse conceito. Aí eu encontrei com o Hermeto num Festival da Canção, num festival qualquer, aí ele falou: Tá de pé a nossa proposta? Tô fazendo a minha banda, vâmo nessa pra São Paulo? Falei: Vão bora. Eu era recém casado, não tinha filho, morava em apartamento alugado, assim, já com móveis, e eu não tinha nada, só tinha uma televisãozinha pus debaixo do braço e fui pra São Paulo.

Ornelas diz ter se dedicado durante praticamente um ano inteiro ao estudo dessas harmonias

e da maneira de tocar de Coltrane, portanto, seria de se esperar que muito da música do saxofonista

estadunidense estivesse presente na performance do músico mineiro. Essa dedicação à música de

Coltrane também é revelada nos vários tributos que presta ao músico, shows que pontuam a carreira

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de Ornelas, como em apresentações realizadas durante o ano de 2010 juntamente com o pianista

Kiko Continentino (1969-); o contrabaixista Sérgio Barrozo (1942-) e o baterista Paulo Braga,

músico que começou a tocar com Ornelas ainda no Berimbau Clube no Edifício Maletta em Belo

Horizonte durante os anos 1960. Em um dos shows do quarteto, gravado em vídeo e disponibilizado

pela internet, Ornelas toca o blues Mr. Day, composição de John Coltrane, gravada originalmente

em 1960 e presente no disco Coltrane Plays the Blues de 1962.

Mr. Day é um blues de 12 compassos em F#, centro modal pouco usual no jazz56 e que

demonstra o caráter de estudo que a composição incita. A tonalidade é preservada por Ornelas, bem

como o arranjo da música, gravada também na formação de quarteto por Coltrane, com McCoy

Tyner (1938-); no piano; Steve Davis no contrabaixo e Elvin Jones (1927-2004) na bateria. O

andamento encontrado na gravação original fica em torno de 225 bpm tendo a semínima como

unidade de tempo, em um compasso quaternário simples. A versão de Ornelas, por ser uma versão

ao vivo, tem uma regularidade métrica mais elástica do que a versão em estúdio realizada por

Coltrane, apresentando uma leve oscilação entre 215 e 220 bpm, muito próximo de sua versão

original. O saxofonista mineiro também procura preservar o arranjo original da música que inicia

com uma condução de baixo, numa espécie de ostinato, mas que se diferencia da gravação do

saxofonista americano em relação à entrada dos outros instrumentos. Enquanto que na versão de

Coltrane a introdução se resume a dois chorus da música, sendo o primeiro somente com o baixo e

o segundo de baixo e bateria; na versão do quarteto de Ornelas a introdução se estende por quatro

chorus, o primeiro somente com o baixo, o segundo com o piano dobrando a linha de baixo e o

terceiro e quarto com a bateria, o piano tocando a harmonia da música e o baixo realizando o

ostinato inicial.

O fato de Ornelas não gravar standards de jazz em seus discos de carreira e tampouco temas

de Coltrane indica que o músico reserva esse tipo de realização a apresentações ao vivo, associando

a sua produção fonográfica às realizações autorais, mesmo quando atua como músico participante

56 O blues é uma estrutura harmônica modal baseada em acordes maiores com sétima menor, podendo conter 8, 12 ou

16 compassos.

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de trabalhos de terceiros onde a sua assinatura como instrumentista sobressai em função de um

mero tecnicismo musical. Paralelamente às realizações em discos, os shows que Ornelas realiza

apontam para um uso mais próximo de matrizes jazzísticas, como neste exemplo de Mr. Day, onde

o saxofonista demonstra a sua intimidade com o repertório e a linguagem do jazz, portanto, a

comparação entre as interpretações de Ornelas e Coltrane para a mesma música torna-se o elo entre

aquilo que o músico mineiro estudou e o que por ele é realizado nesse tipo de repertório.

Nos exemplos a seguir, podemos observar o primeiro chorus de cada saxofonista para cada

uma das versões descritas no parágrafo anterior, sendo que Coltrane a gravou no saxofone tenor,

enquanto que Ornelas escolheu o soprano para esta performance.

Exemplo musical 116: Primeiro chorus do improviso de John Coltrane para Mr. Day, gravação de 1960: Note-se que o músico começa a improvisar antes mesmo do fim do chorus do tema.

Exemplo musical 117: Primeiro chorus do improviso de Nivaldo Ornelas para Mr. Day, gravação realizada ao vivo em 2010.

É curioso observarmos que o material melódico utilizado em ambos os casos é muito

semelhante, onde há a preferência pelo uso das swing eights (colcheias suingadas) como realização

da rítmica do jazz (mesmo que apareçam pontualmente usos de colcheias equivalentes “straight”),

as ghost notes, que casualmente aparecem em intervalos de terças ascendentes, além do uso

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melódico de escalas mixolídias sobre os acordes X7; além das tensões harmônicas de sexta

(décima-terceira) menor em ambos os solos.

Exemplo musical 118: Ghost Notes em terças menores ascendentes na realização de John Coltrane.

Exemplo musical 119: Uso de ghost notes em terças menores ascendentes durante solo de Nivaldo Ornelas

Exemplo musical 120: Escala de fá sustenido mixolídio ascendente iniciada na nota lá sustenido em solo de John

Coltrane.

Exemplo musical 121: Escala de fá sustenido mixolídio descendente iniciada na nota dó sustenido em solo de Nivaldo

Ornelas.

Exemplo musical 122: Sextas (décimas terceiras) menores em solo de John Coltrane.

Exemplo musical 123: c. 11, sexta menor, nota ré natural, sobre o acorde de F#7 durante improviso de Ornelas.

Apesar de haver um grande número de semelhanças nos dois solos, os estilos interpretativos

de ambos são bastante distintos, e Ornelas, apesar de utilizar materiais musicais similares à Coltrane

durante seu improviso, emprega escolhas interpretativas calcadas em sua personalidade musical, a

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começar pela escolha do saxofone, o soprano no lugar do tenor, tocado por Coltrane, ou mesmo nos

tipos de padrões melódicos utilizados, talvez muito mais pertinentes se comparados ao método de

improvisação de Oliver Nelson, como nos exemplos abaixo selecionados, do que na coleção

particular de frases de John Coltrane.

Exemplo musical 124: Padrão rítmico melódico utilizado por Ornelas no início de seu solo.

Exemplo musical 125: Outro padrão aplicado no solo de Ornelas na realização de Mr. Day.

Mais do que perceber usos similares de materiais musicais, até mesmo porque é difícil

estabelecermos uma genealogia nos usos desses recursos, como na aplicação de ghost notes em

arpejos, que apesar de coincidentes nos chorus de ambos os saxofonistas, também são amplamente

encontrados em várias interpretações de saxofonistas do jazz de diferentes épocas e estilos, ou

mesmo no uso da escala mixolídia sobre um acorde dominante, já que esta é a escolha imediata para

a aplicação de uma estrutura escalar sobre esse tipo de acorde. Outros indícios inerpretativos, muito

mais sutis e que aparecem em ambas as realizações, são propositivos de uma estética do jazz

moderno, como a quase ausência de blue notes nas realizações de ambos, o pouco uso de vibratos,

que aparecem mais em Coltrane do que em Ornelas, além de estruturas frasais longas e envoltas em

certo lirismo interpretativo.

As escolhas identificadas no solo realizado pelo músico mineiro certamente poderiam fazer

parte de outras decisões interpretativas do saxofonista aplicadas a outros repertórios e até mesmo

em suas músicas autorais, logo, o fato de não encontrarmos alusões “Coltranianas” declaradas na

realização musical de Ornelas não se apresenta aqui como um problema, já que o posicionamento

do músico se dá no sentido de estabelecer uma produção musical direcionada a características

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estéticas individuais, tendo na música de Coltrane, e no jazz moderno como um todo, um ideário

alusivo de intenções e características a serem utilizadas e ordenadas a sua maneira (informação

verbal):

Bernardo – E quando você vai tocar com outros músicos? Você tenta se adaptar à linguagem daquele músico, ou você tentar levar isso que você tem? Nivaldo – Não, eu procuro me adaptar. Quando é em termos de improvisação não, porque improvisação é livre, você faz o que você acha que, né? Eu tenho muita dificuldade, as vezes, porque o cara as vezes quer uma coisa explosiva e eu não quero, aí a gente tem que chegar a um consenso, é ou não é?

Bernardo – Porque eu já vi você tocando Coltrane e sei que você é um músico do jazz. Nivaldo – Sou do jazz, completamente. Bernardo – E o seu trabalho instrumental não lembra o Coltrane. Nivaldo – Mas nem eu quero que lembre, isso seria uma loucura.

Bernardo – E a participação sua mesmo com improviso e solos em outros discos, e eu também não vejo o Coltrane lá. Nivaldo – Na verdade, alguém me falou uma coisa uma vez, quem é que tava falando? Que aqui no Rio o gente, agora também não faz, mas a gente sentava muito pra conversar sobre música e não fazer música, eu acho muito...tem hora que vale mais a pena do que tocar. E nós fizemos muito isso aqui, a minha turma. Conversar as coisas: Pois é esse estilo, esse jeito, isso, aquilo, harmonia, pá, pá. E tava falando das pessoas que tiram solos dos discos, que imita a gente tava na época de quem? Periquito que tava falando do Michael Brecker...Aí eu falei o seguinte: Eu acho que ele tem que fazer isso que ele ta fazendo, esse é o momento dele. Eu fiz isso com o Coltrane a vida inteira, se não tiver de ficar não fica, se tiver de ficar, fica. Vai depender da personalidade de cada um, do universo interior do sujeito. Mais do que eu batalhei o Coltrane era pra eu ser um Coltrane absoluto, e eu não sou. Como eu gostaria de, até falei. Mas, pô, tá pensando o quê? Ta pensando que é assim? E falei: Se o Periquito tiver o universo dele uma hora ele solta, desprende da nave mãe.

Bernardo – Então você passou por isso de alguma maneira. Nivaldo – Mas muito, eu queria ser um Coltranezinho, porra! Zinho não, zão. Fiz isso a exaustão, ele e outros músicos, houve uma época do Wayne Shorter, enfim, tive isso sim, tirei solos e tirei solos e solos, tinha uma certa facilidade. Eu tirava primeiro cantando e depois tocando, porque cantando não existe reservas, você já pensou nisso? Porque pra você cantar, você canta qualquer música, no instrumento tem que pegar o tom, opa, aqui ta alto, ta baixo, você já tem uma dificuldade, cantando não tem dificuldade, então eu tirava assobiando às vezes, tirei solos e solos, milhões de solos e colocava no jeito de tocar, mas, aos poucos eu fui separando disso. Não é uma loucura? Então, é isso.

A prática do solfejo e o tirar de ouvido tendo como o veículo inicial para essas realizações a

própria voz, traz a tona, novamente, a marca dos processos de estudo musical e improvisação que

permearam o início da prática de Ornelas. Outras realizações do músico como improvisador

revelam, aparentemente, uma menor relação entre a improvisação e o tema da música, como no

caso de Vôo dos Urubus, composição do guitarrista Toninho Horta, gravada em disco homônimo do

músico de 1980. O caráter de novo tema implícito na maneira de improvisar do músico continua

presente e afirma a postura de: Fazer uma melodia dentro de uma outra melodia, o que pode

decorrer numa melodia contrastante à melodia principal do trecho.

Aqui, Horta compôs uma melodia cromática em compasso ternário simples em grupos de

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quiálteras de 4 notas, ou seja, 4 tempos contra 3, um tipo de divisão bastante característica das

composições do guitarrista mineiro:

Exemplo musical 126: Seção A da música Vôo dos Urubus de Toninho Horta

Nivaldo Ornelas realiza seu solo sobre esta estrutura harmônica, e em contraposição ao

caráter agitado e dinâmico do tema, o saxofonista parece querer valorizar em seu solo um contorno

melódico mais contundente destacando o uso de notas longas em uma região aguda e superaguda

do saxofone tenor, explicitando determinados “coloridos” harmônicos:

Exemplo musical 127: Seção inicial do improviso de Nivaldo Ornelas sobre Vôo dos Urubus, note-se o uso de notas longas e a preocupação na construção melódica como numa variação.

Ao observarmos os intervalos utilizados pelo músico em seu improviso, podemos notar

neste caso uma valorização das extensões harmônicas prescritas na cifra de Vôo dos Urubus, mas

com uma condução melódica que enfatiza o uso de intervalos em graus conjuntos, de modo a tornar

o emprego dessas extensões mais natural, conduzidas pela lógica escalar. A impressão é de que

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Ornelas está solfejando as notas de seu solo, muito mais do que um cacoete técnico do instrumento,

nesse caso, o saxofone não “toca por si”, aqui o idiomatismo reside na escolha do timbre, da região

extremo aguda do saxofone tenor e em seus recursos interpretativos, tais como pitch bends e

agógica. Esse tipo de abordagem talvez seja oriunda das práticas musicais que desenvolveu em seu

início de carreira, como a sólida formação em teoria e solfejo que obteve ao ter frequentado a

Escola de Formação Musical em Belo Horizonte, ou mesmo na maneira com a qual começou a

praticar a improvisação com seus pares nos tempos do Berimbau Clube, como revela trecho de

conversa com o músico em 17 de abril de 2009 (informação verbal):

...Depois, esse Waltinho, o baterista que mora aqui no Rio, esse cara é um gênio, ele juntava os músicos e falava: eu vou ensinar vocês a improvisar, vocês estão improvisando errado, não é assim que faz não, vou ensinar. Botava o Bituca no meio, tocando violão, Bituca não improvisava, não gostava, não sei. Pegava uma música qualquer e fazia a harmonia, e cada um fazia um chorus, improvisando de boca, lálálá, cantando de qualquer jeito, o Waltinho fazia duzentos chorus, ele saía cantando e a gente ficava assim, mas como é que é isso cara? Nessa brincadeira ensinou a gente como improvisar ouvindo. Falou: Ó, ta vendo a harmonia como é, ó, pá, pá, pá. Então era uma aula, chegava a noite no Berimbau nêgo...pé.

Em outro solo, desta vez com Hermeto Pascoal na música Forró em Santo André, gravado

em 1979 em show realizado durante o Festival de Montreaux, na Suíça, como integrante da banda

do músico alagoano, o saxofonista trabalha seu solo, claramente, em contraposição ao tema de

Forró em Santo André bem como ao solo do saxofonista Cacau (Carlos de Queiroz), solo este que

precede a improvisação de Ornelas, no qual o baritonista toca com extremo virtuosismo e verve. As

seções de improviso ocorrem sobre três acordes, Eb7M, Dm7 e Cm7, diferentemente do tema da

música que tem uma harmonia muito mais movida e variada. Ao entrar em seu solo, Nivaldo

Ornelas busca contrastar o seu improviso tanto em relação ao chorus realizado por Cacau quanto

com o tema da música, reforçando o uso de notas longas na região aguda do saxofone tenor e das

extensões harmônicas de Cm7, notas ré natural (nona), fá natural (décima primeira), lá natural

(décima terceira); além da nota sol natural, quinta justa do citado acorde.

Exemplo musical 128: Frase inicial do improviso de Nivaldo Ornelas em Forró em Santo André.

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No desenrolar do improviso o saxofonista desenvolve ritmicamente as notas da melodia

inicial, construindo um discurso musical que através de repetições e variações cria um forte elo de

coerência entre essas frases musicais. No exemplo a seguir, podem ser notados o reordenamento,

tanto na disposição em que essas notas aparecem, quanto em relação à duração de cada uma delas,

sendo utilizadas as notas lá natural, fá natural, sol natural e ré natural, com a adição da nota si

bemol após a nota sol, resultando na sétima menor de Cm7.

Exemplo musical 129: Desenvolvimento melódico da primeira frase apresentada em solo sobre a música Forró em

Santo André.

Ornelas continua repetindo as tensões que valorizara no início de seu solo, empreendendo

nova divisão, dessa vez de quiálteras de semínimas, em oposição às notas de maior valor dos

compassos anteriores.

Exemplo musical 130: Desenvolvimento rítmico-melódico em quiálteras durante solo de Forró em Santo André.

Na frase seguinte, o intérprete ressalta a nota dó natural, fundamental de Cm7, acorde que polariza a

seção compreendida pelos acordes Eb7M, Dm7 e Cm7, além de contrastar e reduzir ritmicamente as

durações das notas na frase, passando de quiálteras de semínima para uma organização basicamente

em grupos de colcheias, como vemos no recorte do primeiro membro de frase do período:

Exemplo musical 131: c. 34-35: Nova organização melódica com ênfase na nota dó e uma organização de pergunta e

resposta em trecho de solo na música Forró em Santo André.

Continuando esse novo período, o intérprete responde à “pergunta” do primeiro membro de

frase e em sua resposta ao invés de realizar uma construção A-B, como seria de se supor, Ornelas

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mistura as informações da nova frase à idéia musical em quiálteras exposta anteriormente,

repetindo-a quase que literalmente, excedendo o seu quarto compasso, durante a emissão da nota fá

natural, dessa vez sem a subdivisão inicialmente apresentada, porém, introduzindo novas estruturas

melódicas como a de sextina e a escala descendente em fusas.

Exemplo musical 132: c. 38-46, frase com aplicação de novas estruturas melódicas em chorus do saxofonista sobre

Forró em Santo André.

Mais a frente dentro do mesmo solo, o intérprete busca manipular não somente as tensões

harmônicas e a rítmica no desenvolvimento melódico de seu discurso musical, mas também procura

expandir a extensão utilizada por ele alcançando a região superaguda do saxofone tenor, região que

extrapola o limite de tessitura natural do instrumento. Nessa região de harmônicos superiores,

conhecido também pelo seu termo inglês overtones, as digitações já não obedecem a lógica das suas

duas oitavas mais graves. Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo expõe as características dessa

técnica em sua tese de doutorado Improvisação no Saxofone: a prática da improvisação melódica

na Música Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX, (FIGUEIREDO, 2005,

p. 140): A tessitura do saxofone tem o limite de duas oitavas e uma quinta, indo de Bb1 a F3.

Qualquer nota mais aguda que F3 só poderá ser emitida como um overtone, ou seja, como um

harmônico de outra nota natural do instrumento.

Cabe pontuar que nos métodos de orquestração mais utilizados e que indicam as

características do saxofone, como no Tratise on Instrumentation de Hector Berlioz (1803-1869),

publicado originalmente em 1843 e mais tarde revisado e extendido por Richard Strauss (1864-

1949), quando figura a tessitura para saxofone esta aparece, para altos, tenores e barítonos57 , muito

próxima àquela indicada por Figueiredo, diferindo apenas em seu limite mais grave, escrito a partir

57 A família dos saxofnes, representada nesse tratado, indicava a extensão de seis de seus instrumentos: sopranino

(high), soprano, alto, tenor, barítono e baixo, excedendo o registro do saxofone contra-baixo pelo fato de que à época o projeto para a cosntrução do sétimo instrumento da família ainda não havia saído do papel. Quanto às tessituras dos saxofones sopranino, soprano e baixo, estas diferiam das do alto, tenor e barítono, constando dos registros de B1 a D3 para soproninos e soprano e B1 a Eb3 para o saxofone baixo.

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do B1 e não do Bb1, nota que seria incluída postriormente ao tratado do compositor francês. Essa

extensão é aceita apesar de nos instrumentos fabricados a partir dos anos 1970 já estarem incluídas

as chaves do F#3, e mais recentemente, algumas fábricas também icluem em alguns de seus

modelos recursos para o G3, ou seja, o limite de F3 se configura como (FIGUEIREDO, 2005, P.

140): o padrão mínimo estabelecido, lembrando que estas são notas de efeito, que soarão, no caso

dos saxofones transpostos em si bemol, de Ab1 a Eb 3, e nos instrumentos em mi bemol, a tessitura

será de Db1 a Ab3.

Figueiredo também revela que o uso dessa técnica foi difundido principalmente a partir dos

anos 1970 e 1980 por músicos de jazz como David Sanborn (1945-), Ernie Watts (1945-), Michael

Brecker e Jan Garbarek (1947-); já no Brasil (FIGUEIREDO, 2005, p.140): (...) Nivaldo Ornellas e

Mauro Senise utilizavam os overtones como uma parte importante do seu vocabulário desde o final

dos anos setenta, adicionando praticamente uma oitava extra à tessitura do saxofone. Embora,

como ateste Figueiredo, a difusão do uso de overtones tenha sido realizada em grande escala por

músicos dedicados à música popular a partir dos setenta, o uso desse recurso técnico foi

pioneiramente utilizado por Sigurd Ràscher pelo menos quatro décadas antes dos músicos

anteriormente citados. A região superaguda do instrumento já era explorada por intérpretes e

compositores de música erudita, tal qual o saxofonista alemão, fato percebido tanto através de peças

do gênero, como o Concerto para Saxofone e Orquestra do compositor sueco Lars Erik Larsson

(1908-1986), composta em 1932, peça dedicada a Ràscher e que prevê a utilização de uma extensão

de mais de quatro oitavas do saxofone alto, indo de Bb1 a E#4 (pela tonalidade transposta), como

pelo método escrito pelo músico intitulado Top-Tones for the Saxophone, editado em 1941 e

amplamente utilizado tanto no meio da música de concerto quanto por saxofonistas de música

popular.

Nesse método, Ràscher propõe estudos simulando um “saxofone natural”, como num tubo

único no qual são indicados exercícios para se isolar os harmônicos superiores realizados a partir

das notas mais graves do saxofone, indo de Bb1 a D1. Essa atividade prevê fundamentalmente que

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o praticante desenvolva intimidade com as notas para além da extensão natural através de sua

emissão tendo como único parâmetro o domínio da coluna de ar projetada para dentro do tubo.

Contudo, para se realizar as notas da região superaguda são necessárias também digitações próprias

e que variam para cada conjunto (combinação) de saxofone, boquilha e palheta, haja vista que as

notas das possíveis séries harmônicas do saxofone apresentam uma defasagem de afinação para

baixo à medida que essas notas vão se distanciando de sua fundamental, logo, é necessário que o

músico “encontre” uma digitação própria para compensar esses desajustes.

Ornelas fala de sua experiência ao se aventurar pela região dos superagudos, ou overtones,

do saxofone tenor a partir da década de 1970. (informação verbal):

Bernardo – E essa história dos superagudos no tenor? Nivaldo – Fui o primeiro no Brasil que fez isso. Bernardo – Eu não sei de números não, mas Nivaldo, mas é uma coisa que eu acho surpreendente. Nivaldo – Foi, no Brasil. Bernardo – Você já flertava ali o sol, sol sustenido, lá, ali era uma coisa recorrente. Nivaldo – Eu já ia no dó ó, meu Deus do Céu.

Bernardo – Ah é, o dó tem um solo no Concerto Planeta Terra de 89, mas em 78 com o Hermeto. É em 78, né? Ou 76? Em Montreaux.

Nivaldo – 79. Bernardo – 79. A região do lá ali é uma coisa assim...

Nivaldo - Eu tenho um negócio gravado meu, não sei se é desse tempo, , mas tocando superagudo mesmo assim com uma facilidade, falei: Gente como é? Da onde é que eu tirei isso? Porque ninguém fazia isso.

Bernardo – Pois é. Nivaldo – Tinham uns músicos americanos que faziam, né? Ash. Mas ninguém ouvia. Bernardo – A conta-gotas, né?

Nivaldo – É. Por exemplo, quando eu vi o Michael Brecker pela primeira vez na vida, de 78 pra 79, 30 anos atrás, lá no Palácio das Artes, que ele reclamava do som pra caramba, todo hora ele ia na mesa e falava: Pô, mas como é que é? O cara era aquele cara lá de Belo Horizonte, tá lá até hoje.

Bernardo – Quem. O Murilo? Nivaldo – É um cara lá. Aí, ele tocava que nem o Coltrane, mas ele não tocava muito superagudo, ainda, ele ia no lá assim na melhor das hipóteses. Quem eu vi tocar superagudos mesmo foi o Ernie Watts quando eu fui com o Hermeto em Montreaux. Fiquei impressionado com o Ernie Watts, pô, caramba. Cheguei aqui cheio de ideias. Uma olhada que você dá no lance, isso vale muito, quando você presta atenção, né?

Em Forró em Santo André, gravação realizada por Nivaldo Ornelas juntamente com

Hermeto Pasoal e sua banda em 1979, Ornelas chega a atingir o C4 do saxofone tenor (Bb 4, sem

transposição):

Exemplo musical 133 Uso de overtones durante solo de Ornleas em Forró em Santo André.

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Ao ser questionado como realizava tais notas nessa região, o músico atribuiu seu sucesso

nessa técnica a um talento nato e ao fato de ter estudado clarinete, instrumento de palheta simples

que apresenta proeminente extensão de praticamente quatro oitavas e que, para a região agudíssima,

usam-se diversas digitações para cada uma das notas, assim como na região super aguda do

saxofone, havendo entre elas pequenas diferenças de afinação e timbre, mas com outros padrões

para essas digitações que fogem em muito das digitações de suas outras oitavas. Esse dado comum

entre as práticas dos distintos instrumentos é sem dúvida indicativa da pré-disposição do músico em

tocar nessa região do saxofone.

Após o intérprete tocar no extremo agudo de seu saxofone tenor, seção de seu solo que

funciona como um clímax de notas longas de extrema verve e vigor, características tímbricas

próprias dos overtones, Ornelas infere características de aleatoriedade flertando com as referências

do free jazz que praticara ainda nos anos 1960 em Belo Horizonte juntamente como Quarteto

Contemporâneo. No encarte do CD Viagem Em Direção ao Oco do Toco, gravado em duo com o

pianista e tecladista André Dequech e lançado em 2005. Nivaldo Ornelas aponta essas referências e

busca delimitar o conceito de improvisação livre que permeia esse tipo de realização:

Viagem em direção ao oco do toco é o resultado de um trabalho que começou há muito tempo, no início da minha carreira. Muito mais que musical, é um trabalho conceitual. É como um pintor, que não pinta paisagens, mas o seu próprio interior, o momento em que está vivendo. No nosso caso, eu e André fizemos música como se estivéssemos conversando – nada prévio, nada ensaiado, improviso puro. Eu, particularmente, acredito que os músicos em geral, num futuro muito próximo, vão retomar este caminho. Como disse, no início de carreira eu e meus amigos já tentávamos fazer esse tipo de som. É claro que tecnicamente não era muito bom, mas o conceito era! O Quarteto Contemporâneo não gravou nenhum disco, mas lançou sementes que deram muitos frutos. No meu caso específico, ele me levou direto ao grupo do Hermeto Pascoal (Montreaux/1979) e, em seguida, ao grupo Academia de Dança do Egberto Gismonti. Ambos procuravam esta forma de tocar e acabaram encontrando com muito sucesso.

O dado do que chamamos aqui de aleatoriedade reside basicamente em uma passagem após

uma série de superagudos em notas longas, ao final dessa seção o músico realiza um glissando com

uma série de overtones do instrumento passando por várias notas sem um ordenamento preciso

desses harmônicos superiores. No exemplo exposto a seguir, o compasso de número 114,

representado pelo símbolo , se refere ao uso de notas de séries harmônicas do saxofone. Esse uso

de super agudos intercalados com glissandos, um efeito próprio de saxofonistas do free jazz como

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Eric Dolphy e Albert Ayler58, pode ser obtido ao utilizar o controle de projeção de coluna de ar com

fins para a emissão de notas da região superaguda e concomitante à emissão de uma nota

superaguda qualquer, digita-se as chaves de instrumento de maneira aleatória. O resultado sonoro é

um efeito de notas de várias alturas pouco distinguíveis, podendo-se perceber apenas nuances entre

as notas mais graves e as mais agudas. O efeito, determinante de um idiomatismo do saxofone,

apesar de ter seu uso ligado, inicialmente, ao jazz, é aplicado por Ornelas com fins para a música

brasileira, não destoando, de modo algum, da estética musical de Hermeto Pascoal, pelo contrário, o

músico consegue somar a sua intervenção a um entendimento maior de seu solo como integrante de

uma macro-estrutura.

Exemplo musical 134: c. 114 uso de recurso de aleatoriedade rítmico-melódica através de superagudos do saxofone

tenor durante solo de Forró em Santo André.

Em outra passagem o saxofonista parece utilizar um recurso que se assemelha ao que

Figueiredo chama de false fingerings “é uma técnica que consiste em utilizar uma posição

alternativa para a produção de determinadas notas no saxofone, obtendo uma mudança no timbre da

nota” (Figueiredo, 2005, p.132):. Ainda durante o solo de Forró em Santo André, Ornelas ao tocar a

nota dó natural da segunda oitava do saxofone tenor (nota transposta), realizada com o dedo médio

da mão esquerda com adição da chave de oitava acionada com o polegar da mesma mão, move as

chaves da mão direita do instrumento resultando na mudança de timbre da nota emitida.

Exemplo musical 135: Aplicação de recurso de false fingerings por Nivaldo Ornelas.

Pudemos observar a partir das referências aqui dispostas que Ornelas durante a realização

58 Para um melhor entendimento do fenômeno musical em questão recomenda-se a audição da música Ghosts de Albert

Ayler, presente no disco Spiritual Unity (1964), gravada com Albert Ayler no saxofone tenor; Gary Peacock no contrabaixo e Sunny Murray na bateria.

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dos solos como músico integrante de outros trabalhos ou mesmo quando intérprete de suas próprias

composições prima pela originalidade e distinção ao utilizar de maneira re-significada as

informações às quais se baseou para o seu desenvolvimento como instrumentista, seja através de

estudos aplicados ao jazz, como no método de padrões melódicos de Oliver Nelson ou na memória

de seus estudos de transcrição de solos do disco Giant Steps de John Coltrane. Residem no

improvisador traços do compositor, das referências da canção, da variação temática como um

recurso composicional, mas que mune o improvisador com novas ferramentas que se contrapõem à

ortodoxia e planificação dos usos melódicos (escalares e de padrões melódicos) que permeiam boa

parte da produção dos solistas dedicados à música instrumental. A distinção marcada por Nivaldo

Ornelas aponta para, acima de tudo, a figura do melodista, que tem no saxofone um veículo para a

realização musical, e que em parte determina essas escolhas, sendo o fenômeno “música” a entidade

maior dessa relação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa aqui exposta mostrou de maneira plural e ampla, várias facetas da produção

musical do saxofonista, flautista e compositor Nivaldo Ornelas através da observação do fenômeno

de hibridação cultural, sistematizado por Néstor Garcia Canclini em seu livro Culturas Híbridas, e

observado nesta pesquisa em seu viés musical, tendo como objetos dessa investida análises tanto de

composições do autor quanto de solos improvisados constituintes de uma série de realizações do

músico como intérprete participante de gravações de outros autores, sendo que todos esses agentes,

autores e intérpretes, estão ligados à produção de música popular brasileira, seja de música

instrumental ou vocal.

A relação da produção musical do saxofonista com as referências adquiridas nos tempos de

juventude vividos em Belo Horizonte foram amplamente expostas e ponderadas principalmente

através das análises de quatro composições do autor: Nova Lima Inglesa; Nova Suissa, Sábado à

Tarde; Rock Novo e Ninfas; tendo sido observados os cruzamentos decorridos do fenômeno de

hibridação, seja naquilo que Nestor Garcia Canclini chama de heterogeneidade multitemporal, onde

a presença do antigo convive com o moderno ou o perene com o fugaz, apontando para uma

produção de atemporalidade, assim como foram identificadas referências das diferentes

“espacialidades” que compõem este mosaico, tratadas tanto no âmbito dos binômios como o

conflito gerado entre o nacional e o estrangeiro, como das referências transversais representadas

pelos universos rural, suburbano e urbano, referências estas imagéticas das interpolações entre

tempo e espaço e representação alusiva às composições de Ornelas que configuram um caminho

propositivo dos lugares nos quais foram “coletadas” essas referências.

Nessas análises puderam ser observadas as características das reminiscências de sua

formação musical, principalmente vindas de sua história familiar no bairro da Nova Suíssa em Belo

Horizonte, da música tanto dos folguedos identificados genericamente por congados e folias, quanto

das serestas realizadas por seus pais em casa; ou mesmo da música religiosa – sacra - do Convento

Bom Pastor; da Escola de Formação Musical, onde aprendeu teoria e solfejo e mais tarde, seu

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primeiro instrumento, o clarinete; além, é claro, das referências de sua geração identificada com o

chamado Clube da Esquina; ou dos encontros que precederam e permearam aquela produção

musical que flertava com os estrangeirismos do rock e do jazz, embora, re-significados através da

tipicidade do olhar de seus agentes - participantes e colaboradores – que traduziram e traduzem a

idéia desses cruzamentos e diálogos revelados como um fenômeno intimamente ligado ao conceito

de hibridação musical proposto neste estudo.

Dessas referências de suas composições e interpretações foi possível identificar e categorizar

os papéis representados por Ornelas e, marcadamente, um distanciamento entre essas práticas,

embora se assemelhem no sentido da busca pela distinção de um projeto estético musical. As

práticas do autor e do intérprete, aparentemente dicotômicas, se entrelaçam e moldam o estilo

próprio do músico, estabelecendo um movimento de troca e complementaridade que, esteticamente,

se auxiliam na construção, difusão, circulação e consagração de seu trabalho. Escolhas distinguíveis

pelo lirismo, o refinamento e “economia” de idéias, sem haver desperdícios, excessos. Essas

características, aliadas à coragem necessária para empreender um projeto de estilo tão próprio e por

vezes, inusitado, acaba por resultar na assinatura de sua produção musical, que se assomam para a

realização da construção idiomática em sua música, da sua relação com o saxofone, das

potencialidades e características exclusivas do instrumento voltadas para a realização e constituição

de um saxofone brasileiro. Parte do trabalho aqui exposto foi também realizado no sentido

especulativo de perceber como se dá o processo de composição do autor, da negociação entre a

experimentação e o mecanicismo das fórmulas composicionais, embate entre o apolíneo e o

dionisíaco, mas que têm os pés fincados na tradição de suas referências primordiais.

Os caminhos percorridos pelo intérprete, o saxofonista, também foram considerados, sendo

que o entendimento de sua coleção particular de referências pôde também ser estendido ao processo

quase que auto-didático ao qual se submeteu para o aprendizado e desenvolvimento técnico de seu

principal instrumento de ofício. As referências das chamadas “escolas” de saxofone que parecem ter

se alternados em suas performances, sua identificação estética com o jazz de John Coltrane, deram

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nova vida e auxiliaram na constituição de uma estética voltada para o saxofone moderno brasileiro,

da multiplicidade, das trocas entre referências do mundo globalizado tendo o típico como o centro

de um plano panóptico a partir do qual se mira. Os resultados desse conjunto de observações nos

levam a crer que a produção musical de Nivaldo Ornelas é distinguível dentro da produção

ordinária da modalidade musical a qual se inscreve, sendo sua obra representativa dos fenômenos

de hibridação musical sugeridos, além de ter sido fundamental para que pudessemos elaborar um

quadro de como atuam os músicos instrumentistas dedicados à música instrumental no Brasil, do

seu modo de pensar, de suas estratégias de composição, de performance, de estudo e para que

pudéssemos ter a real dimensão da contribuição deste agente na formação e desenvolvimento da

modalidade musical música instrumental, decorrente das negociações e cruzamentos dinamizados

no legado de sua produção como autor e intérprete.

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ANEXOS

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