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  • Scientia Traductionis, n.13, 2013 http://dx.doi.org/10.5007/1980-4237.2013n13p197

    DOSSI A QUADRATURA DO CRCULO: TRADUO DA (E PARA A) POESIA CHINESA

    RAQUEL ABI-SMARA

    se disse que traduzir poesia chinesa para um idioma ociden-

    tal seria algo to impossvel como a quadratura do crculo1 (Campos, 1995: 235). Assim escreve Haroldo de Campos, um

    dos mais brilhantes intelectuais brasileiros, e, sem dvida alguma, um dos mais

    criativos tradutores do sculo XX, ao lado de Ezra Pound e de Augusto de

    Campos. da essncia mesma da traduo de poesia, prossegue, o estatuto da impossibilidade. Para quem aborda a arte de traduzir poesia sob a categoria

    da criao, essa superlativao das dificuldades que lhe so intrnsecas s pode

    acrescer-lhe, na medida proporcional, o fascnio (idem). No aleatrio o incio deste dossi com as palavras de Haroldo. A

    clareira aberta por esse poeta-inventor, ao traduzir a poesia chinesa para o por-

    tugus, jamais poder ser ignorada pelos tradutores que buscam, por caminhos

    criativos, lidar com a impossibilidade da transformao do crculo em quadrado,

    dos caracteres chineses em escrita fonolgica, da poesia chinesa em idiomas in-

    do-europeus. Se a geometria tradicional euclidiana esbarra nessa impossibili-

    dade de trans-posio do crculo ao quadrado e do quadrado ao crculo, a arte da

    traduo criativa de Haroldo de Campos oferece uma espcie de caminho topo-

    lgico para a quadratura do crculo. Se imaginarmos que um crculo traado so-

    bre uma folha/superfcie elstica pode ser transformado num quadrado, desde

    que essa superfcie aceite golpes precisos de deformaes, e que ainda assim o

    crculo consegue preservar propriedades qualitativas que lhe so invariveis,

    essa a arte da traduo de Haroldo. Ou pensemos ainda numa outra imagem, ca-

    ra aos estudos da geometria no-euclidiana: a fita de Moebius, em que um ponto

    qualquer nela traado consegue estar simultaneamente dentro e fora dessa estru-

    1 Haroldo de Campos refere-se comparao feita por Siegfried Behrsing, citada por W.

    McNaughton, Ezra Pound et la Littrature Chinoise. In: Revista de Cultura (RC). N. 25 (II

    srie). Instituto Cultural de Macau: 1995. A publicao na RC consiste de duas partes extradas

    dos seguintes livros de Haroldo: CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provvel. So

    Paulo, Perspectiva, 1969, p. 121-7; CAMPOS, Haroldo de. A operao do texto. So Paulo:

    Perspectiva, 1976, p. 141-2, 146.

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    tura, por assim dizer, matemtica. Parece comparvel a poemas traduzidos por

    Haroldo, que por vezes chega a interpolar estrategicamente pictogramas do o-riginal no texto em portugus2 (Campos, 2009:22), numa espcie de traduo ao avesso, com espelhamentos e esquemas paralelsticos, em termos grficos,

    sonoros, semiticos e semnticos, entre dois sistemas de escrita nem um pouco

    familiares entre si.

    nesse caminho de poeta-inventor, em busca constante da quadradura do crculo, com muito conhecimento da tradio e da matria potica, tanto em lngua portuguesa quanto em lngua chinesa, que trilha Ricardo Portugal, ao a-

    presentar sua antologia de poemas clssicos chineses da Dinastia Tang (618-

    907), traduzidos em parceria com Tan Xiao. Como se ver na mostra de poemas

    apresentados neste dossi, h no somente um olhar atento para as tradies po-

    ticas nas lnguas de sada e de chegada, como tambm uma escuta apurada da

    poesia dessas tradies. Os recursos da poesia clssica de lngua portuguesa tais

    como as inverses sintticas, o metro decassilbico etc certamente contribuem

    para abrigar o poema clssico chins na lngua portuguesa, o que se consegue

    com bastante flexibilidade e, sobretudo, solues criativas. A forma, seja visual

    ou acstica, tratada nesses poemas traduzidos com merecida ateno: no possvel realizar uma traduo potica que recupere minimamente o ori-ginal

    apenas com a reproduo do contedo, sem conscincia de linguagem em rela-

    o forma, adverte Ricardo Portugal. Se a metfora da quadratura do crculo vlida tambm para o cami-

    nho inverso, da traduo da poesia de um idioma ocidental para o idioma chi-

    ns, vamos buscar saber por meio de anlises e reflexes tericas de escritores,

    poetas e estudiosos chineses. essa a proposta de Jlio Jatob, no artigo Poe-sia e (in)traduzibilidade na lngua chinesa, onde vai apresentar brevemente quatro autores chineses significativos para a histria da traduo da poesia sino-

    ocidental, para alm de Yan Fu, cuja proposta de traduo potica, conforme

    discute Jlio, tem como base a trplice questo fidelidade/fluidez/elegncia, que ficou consagrada nos estudos da traduo na China como xin da ya

    (xin=fidelidade; da=fluidez; ya= elegncia). A lngua chinesa, matria prima pa-

    ra a escrita da poesia, no poderia tambm deixar de ser aqui analisada. Afinal,

    o que a lngua (ou as lnguas) chinesa(s)? Pode-se falar de uma lngua nica

    chinesa ou seria prefervel se pensar no chins como uma famlia de lnguas?

    Essa reflexo faz Jlio Jatob em seu artigo.

    E o que dizer da traduo da poesia contempornea? A lngua chinesa,

    como afirma Franois Cheng, ser metamorfoseada, () como o mostrar, um milhar de anos mais tarde, cerca de 1920, a morte do wen yan lngua escrita an-tiga e a sua substituio pelo bai hua, lngua moderna, que conduzir a poesia a outras aventuras (Cheng, 1995:15). Se a poesia tradicional chinesa de formas rigorosas, como por exemplo o lshi, traz em sua bagagem de dificuldades a se-

    rem transportadas para outro idioma questes como o complexo contraponto to-

    nal, o paralelismo entre dsticos de versos, a elipse dos pronomes pessoais, a

    oposio entre palavras plenas e palavras vazias etc, o que di-zer da poesia con-

    2 CAMPOS, Haroldo de. Escrito sobre jade. Poesia clssica chinesa reimaginada por Haroldo

    de Campos. So Paulo: Ateli Editorial, 2009. Conferir o poema de Li Po, Bebendo solitrio sob a lua (Entre flores), traduzido por Haroldo com a utilizao da estratgia de interpolao mencionada. O poema encontra-se na pgina 71 desse livro.

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    tempornea? Em entrevista para este dossi, o poeta Yao Feng (pseudnimo de

    Yao Jingming), um dos mais prestigiados tradutores de poesia de lngua portu-

    guesa para o chins, falar um pouco de sua vasta experincia como poeta-

    tradutor de poesia e como acadmico-especialista em reflexes sobre traduo

    potica. Sua experincia inclui reflexes sobre traduo de poesia clssica chi-

    nesa para o portugus, traduo de poetas modernos e contemporneos de ln-

    gua portuguesa para o chins, e tambm a traduo, ainda que em menor escala,

    de poemas chineses contemporneos para a lngua portuguesa. Ao final da en-

    trevista, Yao nos brinda um poema de um de seus poetas preferidos, Carlos

    Drummond de Andrade. Yao reimagina Carlos: o mundo grande em chins. E tambm do time dos mais laureados tradutores de poemas ocidentais

    para o chins, temos, de Laurence Wong (pseudnimo de Huang Guobin), o ar-

    tigo Traduzindo a imagstica de Shakespeare para o pblico chins com refe-rncia a Hamlet e as suas verses em chins e em lnguas europeias, traduzido do ingls por Gustavo Althoff. Fala-se muito da exuberncia de imagens e met-

    foras na poesia chinesa, possibilitadas por caracteristicas prprias dos caracteres

    chineses. Laurence faz o caminho contrrio, parte de textos teatrais de Shakes-

    peare que traduziu para o chins e constata que os dilogos em Hamlet, em sua

    maioria, so compostos por uma sequncia de metforas, de modo possivelmen-

    te to amplo e rico como na poesia tradicional chinesa. Laurence discute a ques-

    to das imagens e da metfora em Shakespeare, destacando categorias de ima-

    gens que contribuem, como ferramentas indispensveis, para a prtica reflexiva

    da traduo de poesia. (Assinala tambm caractersticas rtmicas da poesia chi-

    nesa contempornea, marcadas por pausas, por exemplo, e no mais por tons e

    contrapontos tonais, como nos poemas clssicos). Outro aspecto relevante des-

    tacado por Laurence nesse artigo o fato de que os versos de Hamlet, ao serem

    traduzidos para o chins, devem ser pensados como versos a serem lidos em voz

    alta, a serem representados nos palcos, em cenas dramticas, e no lidos silen-

    ciosa e individualmente, o que determina, e muito, o resultado de sua dinmica.

    Vale destacar aqui que Huang Guobin considerado na China um dos melhores

    tradutores de Dante Alighieri. Traduziu a Divina Comdia para o chins, admi-

    ravelmente toda em terza rima, como no poema original de Dante.

    O artigo Entre idiomas ocidentais e o chins: o imprio dos significa-dos na traduo de poesia, a exemplo de Mao Dun, discute uma tendncia na traduo da poesia ocidental para o chins (e vice-versa), desde o incio dessas

    tradues na China, que ocorreram na dcada de 1920, logo aps o Movimento

    4 de Maio (1919). Essa tendncia consiste no privilgio do sentido ou dos signi-

    ficados sobre a forma e, principalmente, sobre a unidade forma-sentido do poe-

    ma. Mao Dun foi um escritor e intelectual de grande influncia para a revoluo

    literria na China. Apesar de defender a traduo parcial de um poema, a tradu-

    o por sentido, ou, como bem define Antoine Berman, em sua perspectiva da

    filosofia da traduo, a traduo platnica, Mao Dun tem uma viso ampla e

    mesmo polissistmica da traduo de poesia (e de literatura, de modo geral). Dun tem plena conscincia da influncia e do poder de transformao que uma

    literatura pode ter sobre outra, ou que uma cultura pode ter sobre outra, por

    meio da traduo da literatura.

    Em arremedo a retas paralelas que, ficcionalmente ou no, se vo en-

    contrar no infinito, os artigos desse dossi apresentam um paralelismo em suas

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    reflexes, e coincidem em um ponto comum: a necessidade infinita de se conti-

    nuar a pensar a quadratura do crculo em todos os aspectos possveis, presen-tes no ofcio intuitivo e consciente do verso, e do anverso, como numa fita de

    Moebius, em que dentro e fora no se separam, assim como sentido e forma,

    que no se devem separar, para que a traduo platnica no seja nesse contexto

    um imperativo categrico.

    Raquel Abi-Smara

    [email protected]

    Profa. Dra., Universidade de Macau