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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGSTICA

VARIEDADES LINGSTICAS EM CONTATO Portugus Angolano, Portugus Brasileiro e Portugus Moambicano

Tese apresentada ao Departamento de Lingstica para a obteno do ttulo de livre-docente, na rea de Lingstica Africana.

MARGARIDA MARIA TADDONI PETTER

So Paulo 2008

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Para meus meninos, Nelson e Danilo.

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Agradecimentos

Para chegar a este momento de minha carreira contei com o apoio de muitos professores, colegas, amigos, familiares e funcionrios. Agradeo a todos a colaborao e o incentivo que me deram. Pela leitura atenta de minha tese, sou especialmente agradecida aos professores Emilio Bonvini e Jos Luiz Fiorin. Ao Nelson e ao Danilo, agradeo o carinho e a compreenso de tantas ausncias.

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Sumrio Resumo.................................................................................................................................vi Abstract................................................................................................................................vii Introduo..............................................................................................................................8 Captulo I- Histria do Contato.........................................................................................15 1. Primeiros contatos.............................................................................................................15 1.1. Portugueses na frica: a descoberta da diversidade lingstica....................15 1.2. Africanos em Portugal: primeiros registros do contato lingstico...............19 2. Portugueses e africanos no Brasil.....................................................................................24 2.1. As lnguas do Brasil colnia.........................................................................28 2.2. Portugus e lnguas africanas depois da independncia...............................34 3. O retorno frica.............................................................................................................36 3.1. Portugueses em Angola.................................................................................36 3.2. Portugueses em Moambique........................................................................41 4. Angola, Brasil e Moambique: um colonizador e situaes diversas de colonizao......44 Captulo II- O contato lingstico: abordagens tericas...............................................48 1. Thomason & Kaufman (1988)..........................................................................................49 2. Van Coetsem (1988, 2000)...............................................................................................56 3. Myers-Scotton (2002).......................................................................................................57 4. Em sntese.........................................................................................................................65 Captulo III- O lxico compartilhado................................................................................71 1. Metodologia da pesquisa...................................................................................................72 1.1. Sobre o Portugus Angolano.......................................................................72 1.2. Sobre o Portugus Moambicano................................................................73 1.3. Sobre o Portugus Brasileiro.......................................................................73 2. Vocabulrio especializado, vocabulrio comum e vocabulrio bsico.............................75 2.1. O Vocabulrio bsico......................................................................................77 3. O Vocabulrio Comum de origem africana......................................................................81 3.1. Cotejo da lista com o portugus de Angola....................................................83 3.1.1. Categoria 1...................................................................................................83 3.1.2. Categoria 2...................................................................................................84 3.1.3. Categoria 3...................................................................................................84 3.2. Cotejo da lista com o portugus de Moambique..........................................84 3.3. Em sntese.......................................................................................................85 4. A formao do lxico nas variedades angolana, brasileira e moambicana de portugus 87 4.1. Emprstimo.....................................................................................................88 4.1.1. Portugus Angolano / Portugus Brasileiro.................................................88 4

4.1.2. Portugus Moambicano / Portugus Brasileiro..........................................91 4.2. Processos morfolgicos de criao lexical....................................................101 4.2.1. Em Portugus Angolano.............................................................................101 4.2.2. Em Portugus Moambicano......................................................................109 4.2.3. Em Portugus Brasileiro.............................................................................113 5. Em sntese.......................................................................................................................114 Captulo IV- O lxico no modelo de Myers-Scotton....................................................116 1. O modelo dos 4-M (quatro morfemas).........................................................................116 1.1. Morfemas conceptualmente ativados..........................................................116 1.2. Morfemas no ativados conceptualmente...................................................131 1.2.1. Morfemas gramaticais posteriores ponte..................................................132 1.2.2. Morfemas gramaticais posteriores exteriores...........................................133 2. Em sntese....................................................................................................................145 3. O Modelo do Nvel Abstrato........................................................................................147 3.1. A estrutura lxico-conceptual......................................................................150 3.2. A estrutura predicado-argumento................................................................154 3.3. Modelos de realizao morfolgica..............................................................165 4. Em sntese......................................................................................................................182 Concluso.......................................................................................................................187 Referncias bibliogrficas............................................................................................195

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RESUMO

Este trabalho focaliza as variedades de portugus formadas na frica e no Brasil, chamando ateno para o fato de que as diferentes situaes de contato, em pocas diversas, mas envolvendo o portugus e um conjunto de lnguas muito prximas, as do grupo banto, produziram alguns resultados semelhantes nos nveis lexical e morfossinttico, que nos permitem defender a existncia de um continuum afro-brasileiro de portugus. A lngua portuguesa chegou primeiro frica e quando aportou na Amrica j trazia marcas do contato com lnguas africanas. Por outro lado, o portugus que foi para Angola e Moambique, no sculo XIX, j estava marcado pela convivncia brasileira de trs sculos. A proposta aqui defendida concorda com teorias que vem a mudana lingstica como um resultado da aquisio da linguagem: durante esse processo fatores externos, como o acesso a dados lingsticos divergentes, podem atuar fazendo emergir gramticas concorrentes. Como demonstra a teoria de Myers-Scotton aqui explorada, so os mesmos processos cognitivos que atuam na aquisio de lnguas em contexto de L1 e de L2, em situao de contato lingstico. O modelo dos quatro morfemas (4-M) explicitou quando e como os morfemas so adquiridos, em qualquer ambiente; a diferena vai se manifestar no grau e no na qualidade dos fenmenos. Desse fato decorre uma aquisio precoce dos morfemas de contedo (lxico) e mais tardia dos morfemas gramaticais posteriores, marcas de concordncia, principalmente, nas situaes de L2. Observa-se que, embora os morfemas do nvel de superfcie os de contedo, os gramaticais precoces e os gramaticais posteriores exteriores venham do portugus europeu, parte da estrutura abstrata vem de outras lnguas, as bantas nos casos especficos, configurando uma situao de convergncia.

Palavras-chave: contato de lnguas; portugus angolano; portugus brasileiro; portugus moambicano; lnguas bantas.

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ABSTRACT

This work focalises the varieties of Portuguese developed in Africa and in Brazil, emphasizing that different contact situations in different periods, involving Portuguese and some languages of the Bantu group, produced similar results in lexical and morphosyntactic levels. This is evidence in favor of the existence of an Afro-Brazilian continuum of Portuguese. Portuguese was first taken to Africa and, when brought to South-America, it already showed the signs of contact with African languages. The Portuguese which was taken to Angola and Mozambique in the XIXth century was already marked by three centuries of use in a Brazilian environment. The idea supported in this work is in accordance with theories which see linguistic change as a result of language acquisition: during the language acquisition process, external factors, such as the access to divergent linguistic data, can bring into action contradictory grammars. Myers-Scotton demonstrates that both L1 and L2 acquistions follow the same cognitive processes in a contact situation. The four morpheme - model (4-M model) explains when and how morphemes are acquired, in any environment. The differences between L1 and L2 morpheme acquisiton is a matter of degree not the quality of the phenomena involved. From this, follows the fact that there is an early acquisition of morphemes of content (lexicon) and a late acquisition of grammatical morphemes, agreement markers, especially in L2 situations. We observe that although surface morphemes those of content, the early grammatical markers and the external posterior grammatical markers come from European Portuguese, and part of the abstract structure comes from other languages, the Bantu languages in specific cases, establishing a convergence situation.

Key words: Language contact; Angolan Portuguese; Brazilian Portuguese; Mozambican Portuguese; Bantu Languages.

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Kiakudikila, kiazanga O que se mistura, separa

INTRODUO

Tratar de variedades lingsticas transplantadas, como o portugus brasileiro (PB), envolve considerar o fato histrico do contato, por si s complexo e multifacetado. No caso especfico da lngua portuguesa, implica tambm levar em conta que, alm do Brasil, outras regies, na frica (Guin-Bissau, Cabo Verde, So Tom e Prncipe, Angola e Moambique) e na sia (Macau, Goa e Timor Leste), vivenciaram uma situao semelhante de contato de que resultaram outras variedades de portugus, que podem ser designadas como variedades no nativas, variedades de segunda lngua, variedades de interlngua ou variedades institucionalizadas, ou seja, lnguas que se distinguem por ter uma longa histria de aculturao em novos contextos culturais e geogrficos (Kachru, 1986: 19). No Brasil, a maior parte dos estudos sobre a caracterizao do PB desenvolve-se dentro de uma metodologia contrastiva, em que a identidade deste evidenciada em comparao com o portugus europeu (PE), tanto de um ponto de vista sincrnico quanto diacrnico. Alguns estudos de sociolingstica observam a semelhana da morfossintaxe do PB e das lnguas crioulas de base portuguesa. Evidncias lingsticas relevantes apiam as anlises nas duas direes. inegvel, como demonstram os trabalhos publicados, que o PB difere nos nveis fontico-fonolgico e sinttico, sobretudo, do PE; por outro lado so notveis as semelhanas encontradas na concordncia de gnero e nmero do sintagma nominal dos crioulos de Guin-Bissau, Cabo Verde, So Tom e Prncipe e a variao identificada nesses mesmos contextos em variedades no-padro do PB (Baxter, 1992, 1998; Baxter e Lucchesi, 1997; Lucchesi, 2000). Essas anlises, embora pertinentes, so parciais, pois deixam de situar o PB num conjunto maior o dos pases de fala portuguesa. Uma anlise exaustiva sobre a identidade do PB deveria situar-se no mbito desse conjunto. No uma tarefa fcil, mas precisa ser cumprida. Trabalhos feitos em Angola e Moambique sobre o portugus local tambm seguem a metodologia de comparar a variedade sob anlise ao portugus europeu: destacam-se as 8

particularidades, os desvios, os erros, sempre considerando o PE como a forma padro (cf. sobre Angola: Chavagne, 2005 e Inverno, 2005; sobre Moambique: Laban, 1999;

Gonalves e Stroud, 1998, 2000, 2002; Stroud e Gonalves, 1997, 1997a, entre outros). Esses estudos distinguem-se dos brasileiros, no entanto, pelo fato de mencionar, mesmo que em alguns momentos apenas da anlise, o portugus brasileiro, e no citar os crioulos portugueses nem outras variedades de portugus africano. As variedades angolana (PA) e moambicana (PM) do portugus compartilham o fato de no se terem desenvolvido como lnguas crioulas, o que as distingue das dos demais pases lusfonos da frica e aproxima-as do Brasil. Alm desse aspecto, em Angola e em Moambique so faladas lnguas africanas do grupo banto, aquelas que eram faladas por grande contingente de indivduos transplantados pelo trfico para o Brasil. Se o PA, o PB e o PM divergem do PE, como atestam os trabalhos publicados, cabe confrontar essas variedades de portugus e investigar em que aspectos elas se aproximam e em que aspectos elas se distinguem. Com o objetivo de contribuir para essa pesquisa, este trabalho busca verificar a hiptese mais forte que se pode formular sobre as situaes particulares de contato lingstico que se produziram em Angola, no Brasil e em Moambique: foi o contato com as lnguas bantas que promoveu as semelhanas entre as variedades sob anlise. Dentro desse escopo, as hipteses da crioulizao (Baxter, 1992, 1998) e da continuidade da deriva secular" vinda da Europa (Tarallo, 1993; Naro, 1981; Naro e Scherre, 1993; Naro e Scherre, 2007), constantemente discutidas nos estudos sobre a formao do PB, no sero abordadas. Considera-se, aqui, que o portugus brasileiro no se constituiu dentro de um quadro de crioulizao, pois no h documentos nem evidncias de que tenha havido uma comunidade de fala crioula no Brasil. Aceita-se que houve uma certa manuteno da deriva romnica, concordando, no entanto, com a ressalva de Thomason e Kaufman quando afirmam que a a presena de traos herdados no sempre explicada adequadamente s pelo fato de se indicar sua origem gentica, pois a manuteno ou a inovao podem ser motivadas por fatores externos. Um exemplo bastante instrutivo o caso dos sistemas de flexo nominal de muitas lnguas balto-eslavas que parecem ter sido reestruturados a partir do modelo do proto-indo-europeu, mas que devem ter permanecido

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sob a influncia conservadora do substrato uraliano, cujas lnguas possuem os mais elaborados sistemas de casos do mundo (1988: 58). Este trabalho pretende focalizar as variedades de portugus formadas na frica e no Brasil, chamando ateno para o fato de que as diferentes situaes de contato, em pocas diversas, mas envolvendo o portugus e um conjunto de lnguas muito prximas, as do grupo banto, produziram alguns resultados semelhantes nos nveis lexical e morfossinttico, que nos permitem defender a existncia de um continuum afro-brasileiro de portugus. O nvel fontico-fonolgico no ser abordado, por solicitar uma investigao independente, que parta de dados coletados adequadamente, conforme uma proposta terico-metodolgica definida. Cite-se apenas um dos aspectos que aproxima as trs variedades de portugus, o vocalismo. Tanto no portugus de Angola (PA), quanto no portugus de Moambique (PM) e no PB as vogais, tnicas ou tonas, so bem articuladas e h epntese de vogais (i ou e) para desfazer encontros consonantais: peneu, rtimo, pissiquiatria. Pode-se admitir que a tendncia a estabelecer o modelo silbico CV (consoante-vogal) decorra do contato com as lnguas bantas, que tm esse padro silbico. A questo controversa, no entanto, quando se constata que a estrutura CV o cnone universal. Por outro lado, convm lembrar que a epntese voclica para desfazer um grupo consonantal ficou estigmatizada no PB como marca de fala de negro, como aponta Alkmim em trabalho sobre esteretipos da fala de negro (2002: 393). Mesmo considerando que no existam entidades homogneas identificveis como portugus africano, portugus moambicano, portugus angolano ou portugus brasileiro, a histria do contato e os aspectos lingsticos comuns a essas variedades autorizam-nos a levantar a hiptese desse continuum, que deriva de uma origem comum: a expanso da lngua portuguesa num contexto de colonizao. Assim como o continuum de lnguas romnicas, o continuum dessas variedades de portugus resulta de uma mistura de lnguas locais com uma lngua dominadora comum. No caso da expanso do latim, essa mistura no s uniu as variedades lingsticas derivadas desse contato reconhecidas hoje como lnguas romnicas , mas tambm as separou em diferentes lnguas. Dessa forma, a frase do quimbundo kiakudikila, kiazanga, o que se mistura, separa, parece resumir perfeitamente a situao de contato lingstico.

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O aparente paradoxo o que se mistura, separa enunciado, em quimbundo kiakudikila, kiazanga , por uma personagem do conto de Luandino Vieira Estria de famlia (Dona Antnia de Sousa Neto) (2004 [1981]). O conto narra um almoo de noivado, em que aparecem personagens de diversas origens e cores: angolanos mestios, angolanos negros, branco de alma preta, brasileiro mulato, brasileira branca, jornalista angolense mulato, cafuso-fulo, entre outros. A frase instigante ocorre quando se decide o que preparar para a festa:

As todas abboras, verdadeiras e falsas, as de mapupo at, quando ningum que lembrava sementes de muteta e foi um grito e bater de palmas. As dinhanguas, orgulhosas, e suas folhas: di-kimbuango, riscada, a que d supimpa quizaca; di-kasdio, alegria das crianas queimando os dedos nas brasas das cinzas para lhes tirarem, assada que ; a amelanciada di-kimbuatata, a dos guisados. E dinhungos, ferrenhos do funje, carssimos mas que d para tudo. Muteta dela com ovos e carne... s Kaveia recusou contra nga Mabunda e venceu porm: que o almoo devia de seguir a linha do simples, no funguissar. Kiakudikila, kiazanga... sabedorias (2004: 60)1.

No conto, a expresso sbia transcende a referncia culinria (qumica) e torna-se, modalizada, a sntese da narrativa, pois o que se mistura povos e culturas tambm pode separar-se. Logo no incio o narrador avisara: O almoo, esse que era-de-pedido, virou lio etnograstrolgica (sic) para brasileiro ver (2004: 57). Esse espectador brasileiro representado no conto por dois personagens: um jornalista mulato e sua mulher branca, pernambucana. A posio mais externa e distante do brasileiro reiterada noutro momento, num comentrio do narrador sobre o discurso do pai da noiva: erguendo ao lado dos maravilhados olhos de seus hspedes, toda a cpula da comunidade afro-luso-brasileira (2004: 65, grifo nosso). O luso , assim, o elo que estabelece a comunicao entre a fricaDefinies dadas por Luandino Vieira, in: Lourentinho Dona Antnia de Sousa Neto & eu ( 1981). Lisboa: Ed. 70: 79). Mapupo espcie de abbora semi-selvagem pouco utilizada na cozinha; dinhangua a abbora vulgar, forma de cabaa, a mais correntemente usada na culinria; di-kambuango abbora grande, riscada de branco; quizaca esparregado feito com folhas que so maceradas com azeite; di-kasdio abbora pequena que se assa nas cinzas; di-kambuatata qualidade de abbora; dinhungos espcie de abbora que se usa nos cozinhados; funje massa cozida de farinha, denominada fuba, geralmente de milho, massambala, massango, mandioca ou batata-doce. Acompanha vrias iguarias. Pelo seu poder de saciedade, entra diariamente nas refeies das pessoas de recursos mais escassos. Muteta almndegas de pevides de abbora; funguissar misturar; kiakudikika, kiazanga o que se mistura, separa.1

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e o Brasil. Nesse sentido, a lngua portuguesa tornou-se uma lngua de contato, em Angola, Moambique e Brasil. Cabe reconhecer que h uma ecologia lingstica particular a cada um dos trs pases, evidenciada pelo multilingismo dos falantes africanos, usurios de lnguas do grupo banto (LB), pela diversidade das lnguas em presena no Brasil (lnguas africanas, lnguas indgenas e de imigrantes); pelo momento histrico distinto do contato e recontato com o portugus (sculo XVI e final do sculo XIX em Angola e Moambique, quando realmente se deu a colonizao portuguesa). Desse contexto decorre um estatuto lingstico especfico para a lngua portuguesa em cada territrio onde ela falada, que no impede, no entanto, a existncia de um continuum entre as variedades lingsticas selecionadas. A realidade lingstica luso-afro-brasileira constitui uma hiperlngua, conceito que, segundo Auroux (1997, 1998) designa um espao-tempo estruturado por indivduos que, em ambientes ocupados por sujeitos e artefatos (que podem tambm ser instrumentos lingsticos, como gramticas e dicionrios), podem compreender-se. De acordo com o mesmo autor, a hiperlngua pode ser estvel ou instvel, podendo ser idntica ou no nos locais onde se manifesta (1998: 115). Assim, na constituio de novos espaos para a comunicao, vida e histria dos homens, produzem-se novas estruturas locais da hiperlngua (Auroux, 1998: 119), como nos contextos africanos (Angola e Moambique) e brasileiro. de notar que esses novos ambientes, apesar da distncia e da diversidade natural, no chegam a provocar a incomunicabilidade. A constatao desse fato motiva esta investigao, que parte do princpio de que fatores lingsticos e sociais podem explicar tal situao. Inicia-se a exposio pela histria do contato, tema do primeiro captulo, onde se abordam: - a cronologia do contato do portugus europeu com as lnguas africanas do grupo banto, sobretudo, que ocorreu: (i) primeiramente na frica, com a chegada de Diogo Co embocadura do rio Zaire, em 1482, e a relao privilegiada que Portugal estabeleceu com o Reino do Congo; (ii) posteriormente, com a chegada dos portugueses ao Brasil e a vinda dos escravos das regies de Congo, Angola e Moambique atuais e (iii) um novo contato, mais tardio, quando os portugueses, no sculo XIX, vo colonizar Angola e Moambique;

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- a comunicao entre Brasil e Angola, desde o final do sculo XVI, quando os braslicos passam a negociar diretamente com a frica, desmontando o mito do comrcio triangular; quando, na expresso de Luiz Felipe de Alencastro, surge um espao aterritorial, um arquiplago lusfono composto dos enclaves da Amrica portuguesa e das feitorias de Angola (2000: 9); - as relaes atuais entre Brasil, Angola e Moambique, os intercmbios comerciais e a comunicao pela mdia (televiso, principalmente). O quadro terico da lingstica de contato, apresentado no segundo captulo, fornece os princpios em que se fundamenta esta tese e indica a metodologia adotada. Considera-se o contato do ponto de vista social e individual, ou seja, observa-se o fenmeno da difuso e o fenmeno individual da transmisso. Parte-se da viso sciohistrica do contato tal como foi enunciada por Thomason e Kaufman (1988): a histria das lnguas o fator primordial na determinao do resultado lingstico do contato (1988: 35). A seguir, exploram-se as abordagens de fatores lingsticos internos formuladas por Van Coetsem (2000) e Myers-Scotton (2002). Van Coetsem distingue dois tipos de influncia interlingstica (emprstimo e imposio) e reconhece que todas as lnguas em contato exercem agentividade, tanto a lngua receptora (o portugus, no caso) quanto a(s) lngua(s) fonte(s) (as lnguas africanas). Para Myers-Scotton o contexto social influencia as escolhas dentro de um conjunto de opes estruturais, mas no determina esse conjunto, de tal sorte que um mesmo conjunto de princpios e processos explica qualquer fenmeno de contato lingstico. A autora elabora o modelo da lngua matriz, o MLF (Matrix Language Frame), que formado pela lngua matriz e pela lngua encaixada (embedded). A lngua matriz participa com a estrutura morfossinttica e a lngua encaixada aparece como a outra lngua do contato. Acompanham esse modelo, dois outros, o dos 4-M e o do nvel abstrato. De acordo com o modelo dos quatro morfemas (4-M), os morfemas de contedo (content morphemes), o lxico, so os primeiros a ser emprestados. De acordo com o modelo de nvel abstrato, a estrutura lxico-conceptual (traos semnticos e pragmticos) tem maior probabilidade de mudar. A constatao de que o lxico o ponto de convergncia do contato lingstico orienta a anlise. No terceiro captulo apresenta-se a metodologia da pesquisa e investiga-se o vocabulrio bsico e o de origem africana compartilhado pelas variedades africanas e

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americana de portugus. A integrao morfossinttica do lxico no PA, PB e PM analisada no quarto e ltimo captulo, sob a prespectiva do modelo terico de MyersScotton, que considera o lxico como fonte de projees que ligam as intenes do falante s formas de superfcie. Sob esse ponto de vista, as diferenas nos modelos estruturais de fenmenos de contato dependem das diferenas da natureza da linguagem e das lnguas que participam do contato. Dessa forma, fatos esparsos (concordncia, regncia verbal, pronomes tonos) observados no PA, PB e PM so analisados no mbito de um quadro geral, unitrio.

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CAPTULO I HISTRIA DO CONTATO

necessrio retroceder ao incio do sculo XV para compreender a histria do encontro da lngua portuguesa com as lnguas africanas. Esse contato foi uma conseqncia natural da explorao da frica pelos portugueses e provocou efeitos lingsticos inesperados nos que dele participaram. No imaginavam aqueles aventureiros que iriam descobrir a diversidade lingstica africana, como tambm no poderiam vislumbrar, naquele momento, a possibilidade de expanso da lngua portuguesa, na frica e na ainda pouco conhecida Amrica. A verdade que o encontro do portugus com as lnguas africanas, iniciado na frica, continuaria em Portugal, prolongar-se-ia no Brasil, voltaria para o continente africano, onde perdura at hoje. Para relatar essa histria cumpre seguir a cronologia dos fatos, que pode ser dividida em trs grandes momentos: o primeiro, com os portugueses na frica e os africanos em Portugal, nos sculos XV e XVI; o segundo, com os portugueses e os africanos no Brasil, incluindo a relao privilegiada entre o Brasil e Angola, estabelecida no sculo XVII; o terceiro, na frica, com a efetiva colonizao portuguesa do continente, no sculo XIX. Na atualidade, o contato entre africanos e brasileiros realiza-se, sobretudo, por meio da comunicao difundida pela mdia.

1. Primeiros contatos 1.1. Portugueses na frica: a descoberta da diversidade lingstica

A explorao da frica pelos portugueses, no incio do sculo XV, alm de promover o contato do portugus com muitas lnguas africanas, produziu um resultado no previsto: a descoberta da diversidade lingstica do continente. Emilio Bonvini, em artigo sobre a historiografia das lnguas africanas (1996), ao mesmo tempo em que informa como os portugueses estiveram presentes nos primrdios da histria do conhecimento das lnguas africanas (do sculo XVI ao XVIII), explica como e onde se deram os primeiros contatos

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do portugus com as lnguas africanas (LAs). Segundo Bonvini (1996: 129-134), a empreitada lusitana teria durado setenta anos de 1430 a 1500 e teria permitido descobrir numerosos povos africanos, dentre os quais os habitantes do reino do Congo, com quem os portugueses viriam a estabelecer um contato importante. De 1418 a 1433, as viagens se efetuaram na direo das ilhas, Madeira em 1420 e Aores, em 1431. De 1430 a 1480, a explorao continuou de forma espordica, mas depois se intensificou sob o comando de Ferno Gomes e por meio das viagens de Diogo Co, que reconheceu o rio Zaire em 1482 e seguiu pela costa at 22 de latitude sul em 1485, e de Bartolomeu Dias que chegou a aproximadamente 500 km a leste do cabo da Boa Esperana. Enfim, Vasco da Gama descobriu a rota martima das ndias, atingindo Calicute em 18 de maio de 1498 (Bonvini, 1996:130). A estratgia de abordagem do continente pelos portugueses teve de conformar-se s condies impostas pelas surpresas reveladas pelos contatos lingsticos que exigiram respostas prticas para resolver o impasse da comunicao. As primeiras expedies de reconhecimento da costa ocidental da frica levavam apenas intrpretes rabes, pois imaginava-se que os habitantes mais ao sul da frica do norte tambm pertencessem ao mundo rabe e islmico. No entanto, em 1441, durante as expedies de Nuno Tristo e Anto Gonalves, para regies entre os atuais Marrocos e Senegal, conforme relato de G. E. de Zurara (1960: 83, apud Bovini, 1996: 130) a comunicao se revelou impossvel, pois eles no falavam rabe, mas berbere (identificao que a lngua recebeu mais tarde). Depois desse primeiro fracasso, os portugueses promoveram uma verdadeira poltica lingstica, baseada essencialmente no ensino de portugus aos cativos e numa estrutura permanente de traduo/interpretao. Para tanto, instalou-se em Lisboa uma estratgia de interpretariado e de ensino do portugus aos africanos. Na frica, a procura de intrpretes foi revelando progressivamente uma geografia lingstica com base na diversidade das lnguas e num comparatismo emprico (Bonvini, 1996: 130). A estrutura de interpretariado foi implantada durante a explorao do pas dos Negros (Senegal, costa da Senegmbia, arquiplago de Cabo Verde, costa da Guin) at o Cabo das Trs Pontas (1446-1462), momento em que se comeava a ter informaes sobre o ouro e os escravos. O veneziano Alvise Cadamosto, historiador e membro da expedio de 1455-56 ao rio Grande (Guin portuguesa) aponta (Navegaes 1954: 112, apud

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Bonvini, 1996: 131) a nova estratgia colocada em ao: a partir de ento os intrpretes eram escolhidos entre os escravos de alguns senhores africanos que os emprestavam aos portugueses para que eles aprendessem a lngua portuguesa e eram trocados por um outro escravo que estava no barco; quando um desses intrpretes conseguia conquistar outros quatro escravos para os seus senhores, eles eram alforriados (Bonvini, 1996.: 131-132). Esses intrpretes trusiman < truchement, em francs < tirdjiman, em rabe eram mais comumente designados como mestre de lngua, ou simplesmente lngua. Na eventualidade de os lnguas no conseguirem comunicar-se com os habitantes das novas terras invadidas, havia uma ordem real para que os trusimans no avanassem mais, mas que tentassem levar, voluntariamente ou fora, alguns negros desse local para que eles pudessem ir para Lisboa e confrontar-se com os inmeros intrpretes negros que se encontravam em Portugal, ou ensin-los a falar portugus. Bonvini destaca o relato de Cadamosto sobre um africano chegado a Lisboa que, depois de falar com muitos negros, conseguiu comunicar-se com uma escrava, no numa das lnguas maternas de cada um, mas numa terceira lngua conhecida pelos dois. Esse fato nos informa sobre o bilingismo africano e nos revela o modo de operar da poltica lingstica dos portugueses: deveria haver em Lisboa uma amostra representativa dos falantes das diferentes lnguas faladas nos territrios atingidos pelos portugueses, onde, provavelmente, os portugueses, antes de iniciar as novas viagens, selecionavam os intrpretes que deveriam assegurar a comunicao com as populaes autctones. Isso nos leva a supor que, pouco a pouco, se constitua um conhecimento areal das diferentes lnguas encontradas. A geografia lingstica ia-se constituindo ao mesmo tempo em que funcionava a instituio do interpretariado (Bonvini, 1996: 132). Um fato importante ocorreu na frica austral, com a chegada foz do rio Zaire, em 1483, no Congo. Por meio de marinheiros portugueses, Diogo Co enviou uma mensagem de paz e amizade e um rico presente ao rei, Nzinga Kuwu, que ficava na capital. Como a embaixada portuguesa demorasse a retornar, Diogo Co levou como refns vrios chefes locais da provncia de Soyo que tinham-se habituado a visitar o barco sem qualquer receio. Dois anos depois, ele retorna com os mesmos refns, entusiasmados com a civilizao europia e dispostos a fazer uma boa divulgao do que haviam visto em Lisboa e prontos a propor ao rei do Congo a converso religio crist (Bonvini, 1996: 132-133). Esse foi um 17

passo decisivo para a instalao dos portugueses na frica; a partir de ento se instalou um verdadeiro protetorado no Congo e ficou garantida a ida de numerosos africanos para Lisboa, a fim de aprenderem a lngua portuguesa nas escolas e retornarem para auxiliar a implantao dos portugueses na frica. No tardou para que a escolarizao fosse feita no prprio reino do Congo, com o ensino do latim, portugus e quicongo (Bonvini, 1996: 133). Outro acontecimento que revela o conhecimento da realidade lingstica africana ocorreu durante a viagem de Vasco da Gama, que deixara Lisboa com dois intrpretes a bordo: Martim Afonso, que havia aprendido quicongo, depois de uma longa estada no Congo, e um cristo degredado, que falava rabe e hebraico, para servir aos contatos posteriores, com os povos do Oriente. O fato de no levarem nenhum falante das lnguas da frica Ocidental revela que os portugueses j sabiam que estes no poderiam ser teis na comunicao com os povos do sul da frica. O nico fato lingstico que os surpreendeu nesta expedio se deu quando aportaram na ilha de Santa Helena e encontraram pessoas que pareciam soluar quando falavam; com certeza eram os falantes das lnguas do tronco Coissan, com cliques (estalidos), com quem Martim Afonso no pde comunicar-se. No entanto, quando a expedio estava na costa oriental, Martim Afonso pde comunicarse com os habitantes de uma aldeia, que falavam uma lngua diferente mas bastante prxima do quicongo. Como assinala Bonvini (1996: 133), involuntariamente, com a viagem s ndias os portugueses desvenderam a diferena fundamental entre as lnguas situadas na parte ocidental da frica austral lnguas do tronco Coissan e as outras lnguas at ento conhecidas e a proximidade lingstica entre as lnguas faladas mais ao norte das duas costas da frica, hoje conhecidas como pertencentes a um s grupo, o banto. Tomando por base um comparatismo pragmtico, em que semelhanas e diferenas se alternavam, os portugueses foram desvendando uma geografia lingstica que os estudos posteriores iriam nomear e precisar (Bonvini, 1996: 133-134). Mas as conseqncias das incurses portuguesas na frica foram alm da descoberta das diferenas lingsticas do continente. Importa ressaltar que do contato resultou o estabelecimento de uma relao privilegiada com o antigo reino do Congo e, do

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ponto de vista lingstico, a lngua portuguesa deixou marcas nas lnguas africanas 2 , perceptveis nos emprstimos do portugus encontrados em muitas delas.

1. 2. Africanos em Portugal: primeiros registros do contato lingstico Como conseqncia da expanso portuguesa, numerosos negros africanos foram para Lisboa, desde 1441, para servir como escravos. A presena africana foi mais notada nos sculos XVI e XVII, quando 10.000 escravos negros, aprendendo e falando portugus de um modo particular, no deixaram de ser notadas, a ponto de sua fala ser designada, na poca, como lngua de preto. Dessa variedade lingstica s temos registros literrios, em peas de teatro cmicas: Cancioneiro de Resende (sculo XV), O pranto do Clrigo (1516) de Henrique Mota, O Clrigo da Beira, Frgoa damor (1524) e Nau damores (1527), de Gil Vicente. Pode-se afirmar que estas obras constituem os primeiros registros sobre a fala do negro, considerado, na poca, incapaz de aprender corretamente o portugus. Essa lngua de preto foi objeto de descries e anlises de Carolina Michalis de Vasconcelos (1923), W. Geise (1932), Leite de Vasconcelos (1933), Paul Teyssier (1959) e A. J. Naro (1978). So muito semelhantes os traos lingsticos dessas representaes da expresso do negro em lngua portuguesa, a ponto de levarem Teyssier a concluir que Gil Vicente no foi o criador da lngua de preto em portugus, nem foi o primeiro a tirar dela efeitos cmicos (1959: 230). Teyssier caracteriza a lngua de preto retratada por Gil Vicente, como sendo um portugus com(...) sintaxe infantil e morfologia elementar: os infinitivos dos verbos substituem todas as pessoas, todos os modos e todos os tempos; as regras de concordncia no so respeitadas, a mim empregado no lugar de eu, estar no lugar de ser3 (1959:229).

Na pea Frgoa damor, representada em vora, em 1524, durante o casamento por procurao de D. Joo III e D. Catarina, h um personagem negro que se apresenta dianteSobre o tema, ver Willy Bal, 1979. (...) syntaxe enfantine et la morphologie lmentaire : les infinitifs des verbes remplacent toutes les personnes, tous les modes et tous les temps ; les rgles daccord ne sont pas respectes, a mim est employ au lieu deu, estar au lieu de ser.3 2

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de Cupido, na forja do amor. Como este tinha a tarefa de atender os pedidos de transformao das pessoas insatisfeitas com sua forma fsica, o negro lhe pede para tornarse branco, com nariz e beio delgado. Seu desejo foi atendido, fica branco, mas no perde sua linguagem. A resposta indignada do negro, abaixo transcrita, ilustra algumas caractersticas da lngua de preto ao mesmo tempo em que desvela o preconceito contra essa fala4:J mo minha branco estae, e aqui perna branco he. Mas a mi fal Guinae Se a mi negro falae, a mi branco para qu? Se fala meu he negregado e nam fal portugaas, para que m martelado? Minha mo j esta branca, E aqui a minha perna est branca. Mas eu falo Guin. Se eu falo negro, de que me serve ser branco (pera qu?) Se meu falar negregado e no falo portugus, pera que fui martelado?

(apud Teysssier, 1959: 234) Observando as caractersticas da linguagem dos personagens negros de Gil Vicente, Teyssier identifica os mesmos traos encontrados no Cancioneiro Geral: negligncia de flexo verbal, desobedincia s regras de concordncia, omisso de artigo. Nota, no entanto, que em Gil Vicente h uma diferena importante: seu texto registra as formas que correspondem a modos de falar muito particulares e de modo algum desordenados. A preocupao com a escrita, tanto por por parte do autor, quanto por parte dos copistas e dos impressores, propiciou a transmisso cuidadosa do texto vicentino, segundo Teyssier. As particularidades apontadas por esse estudioso referem-se a traos fonticos, dentre os quais podem ser citados os seguintes: - debilidade das consoantes finais: queda do r, s, l. Ex: pod < poder; vamo < vamos; Purutug < Portugal; - passagem de r a d. Ex: riabo < diabo; - debilidade dos grupos consonantais, resolvida pela insero de uma vogal. Ex: Furunando < Fernando;4

Na coluna da direita Teyssier traduz a lngua de preto para o portugus da poca.

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- reduo de ditongos. Ex: dexa < deixa; poco < pouco; - reduo das consoantes molhadas a iode. Ex: oyo < olho; moyer < mulher; sendo que depois de i o iode desaparece. Ex: mior < melhor; fio < filho (Teyssier, 1959: 243- 249). Teyssier acredita que essa lngua retrata ou evoca, em grandes linhas, a fala real dos escravos negros que se encontravam em grande nmero em Portugal, na poca de Gil Vicente. Comenta que esse fato poderia induzir a uma explicao das caractersticas desse jargo por meio da ao do substrato das lnguas africanas utilizadas originalmente pelos escravos. No entanto, o autor logo descarta essa hiptese, visto que os negros provinham de regies diversas e falavam lnguas variadas e, sobretudo, porque as lnguas de substrato devem ter evoludo consideravelmente desde o incio do sculo XVI, o que tornaria temerrio tentar comprovar a origem africana das particularidades da lngua de preto. Outro elemento importante destacado pelo estudioso da linguagem vicentina: no se encontra nos textos de Gil Vicente estudados nenhuma forma de origem africana:nenhum desses termos que, como moleque ou quitute, penetraram em grande quantidade no portugus do Brasil. Na base do vocabulrio dos negros vicentinos s h o autntico portugus5 (1959: 248).

O autor sugere a necessidade de um estudo comparativo dessa lngua com os dialetos crioulos do portugus, tanto africanos como brasileiros6, pois h muitos aspectos comuns a essas variedades lingsticas (1959: 248). A concluso a que chega sobre a lngua de preto encerra uma avaliao coerente:

Em suma, tem-se a impresso de que os escravos africanos, cujas lnguas primitivas podiam ser muito diversas, tinham constitudo em Portugual uma espcie de sabir comum7 (1959: 249).

"[Dautre part, on ne relve dans nos textes] aucun mot ni aucune forme dorigine africaine, aucun de ces termes qui comme moleque ou quitute ont pntr en foule dans le portugais du Brsil. A la base du vocabulaire des ngres vicentins il ny a rien dautre que de lauthentique portugais". 6 As observaes de Teyssier sobre o PB baseiam-se nas obras de Mendona (1933) e Raimundo (1933), conforme est na nota 1, p. 249, da obra analisada. 7 "Bref, on a limpression que les esclaves africains, dont les langues primitives pouvaient tre trs diverses, avaient constitu au Portugal une sorte de sabir commun".

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A obra de Gil Vicente, como todo texto literrio, no reflete, mas recria o mundo real. Assim sendo, no se pode dizer que a fala do africano que o autor reproduz seja cpia fiel da realidade, mas o fato de ser to sistemtica, como constata Teyssier, a anotao de certos traos lingsticos leva a crer que o portugus falado pelos negros da poca se distinguia por muitas dessas marcas. Cumpre reconhecer que muitas dessas caractersticas fonticas persistem no portugus falado no Brasil e na frica, mesmo que algumas delas se mantenham apenas em registros no padro, como a reduo das consoantes molhadas a iode. Se a expresso em portugus do negro africano se destacava pelas transformaes da morfossintaxe e da fontica da LP, sem transferncia de itens lexicais das LAs, como ressalta Teyssier, a LP do sculo XVI j incorporara termos de origem africana, como atesta o levantamento de Bonvini (2002). Nas Dcadas de Joo de Barros foram localizados vrios termos de origem africana: na 1a Dcada (1552) os termos banzeiro (fol. 27, col.1), fulo (fol. 66, col. 2), furna (fol. 11 col. 1) e mozimos (fol. 193, col. 3); na 3a Dcada (1563) os termos ganda (fol. 53. col. 3), inhame (fol. 255, col. 3), moxma (fol. 70, col. 4) e muxama (fol. 67, col. 4) (2002: 149). No sculo XVIII, possvel estabelecer um primeiro inventrio desses emprstimos no dicionrio de Bluteau (1712), onde se encontram 91 termos, dos quais 15 o autor estima serem originrios de Angola (bumba, candonga, candongueiro, catinga, macaco, maracut, moxinga, mubango, palav, pombeiro, qugila, quiminha, quiseco, quitumbata), outros 7 termos como serem atestados no Brasil (beiju ~ beij, cacimbas, macuma, maribonda, mazombo ~ muzombo, mocamaos e molque) e 4 termos como tendo uma origem castelhana (cogot, mochila, mondongo, mondongueira), mas que figuram hoje entre os termos considerados como originrios de lnguas africanas (Bonvini, 2002: 150). Com relao ao portugus falado em Angola, a documentao mais extensa e testemunha ao mesmo tempo a extenso e a consolidao de um processo de recurso ao emprstimo das lnguas africanas pelo portugus, realizado em Angola (Bonvini, 2002: 151). Segundo Bonvini (2002: 151), importa considerar quatro registros. O primeiro, de B. Heintze (1985: 114-130), reuniu uma importante documentao referente aos vocbulos

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africanos atestados nos textos relativos a Angola do perodo de 1622-1635. Sua pesquisa aponta 105 termos, dos quais 16 somente esto registrados no Brasil (cf. Ferreira, Novo Aurlio-Sculo XXI): casimba, fuba, ganga, infuca, libambo, macota, macuta, malafo (marafa, marafo), *moleca, moleque, *pombeiro, querimbo (carimbo), quilombo, quitanda, senzala, tanga e zimbo, dos quais 2 (casimba e moleque) foram reconhecidos como tais por Bluteau (1712). O segundo trabalho o de A. de Oliveira Cadornega (1680 : 611-622), que comporta um nmero significativo de termos (161) emprestados das lnguas africanas. So, na maioria, termos do vocabulrio militar. Desses, 15 so igualmente atestados no Brasil, s vezes sob uma forma aproximativa: ambundo, banzar, calunga, casima, fuba, ganga, gonges, libambos, makaia, macotas, mucama, pombeiro, quilombo, quitanda, zombi. Os termos novos em relao aos precedentes so: ambundo, banzar, calunga, gonges, makaia e zombi. Nenhum termo militar, no entanto, chegou ao Brasil (Bonvini, 2002: 151). A obra de G. A. Cavazzi (1687, 2: 469-482) constitui o terceiro documento que convm levar em considerao. Ela comporta um vocabulrio muito extenso 349 termos e foi escrita em italiano. Trata-se de um vocabulrio com temas muito variados (botnica, zoologia, dados etnogrficos e histricos), onde predomina, entretanto, a terminologia da religio tradicional. Dentre esses, somente 16 termos coincidem, com algumas variantes, com os que so atestados no Brasil: bad, bolo, cacimbas, calunga, fuba, ganga, ganga-ia-nzumba, libata, macota, marimba, moringa, mulemba, quijila, quilombo, zambi-a-mpungu, e zimbo (Bonvini, 2002: 151). O ltimo texto que importa considerar o de E. A. Silva Corra (1782). Foi escrito por um brasileiro que viveu em Angola. O levantamento sistemtico dos termos utilizados foi efetuado por Oliveira (1983 : 273-291). H 89 termos, com 20 termos atestados no Brasil: alo, calhambola, cubata, entanga, fuba, ganga, libata, libambo, macotas, macuta, milongo, mucambas, pango, pumbeiros, quilombo, quitanda, quitandeira, sanzala, tungas, zimbo (Bonvini, 2002: 152). A lngua portuguesa modificou-se, portanto, logo aps os primeiros contatos com as lnguas da frica, como demonstrou a documentao disponvel sobre a lngua de preto e os registros lexicais do passado. Quando utilizada pelos negros como segunda lngua sofreu

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transformaes morfossintticas e fonticas; quando expresso de uma comunidade de falantes nativos, apropriou-se de termos que nomeavam referentes novos e que passaram a se tornar necessrios comunicao aps os contatos com o continente africano.

2. Portugueses e africanos no Brasil A deportao de africanos para o Brasil comeou pouco depois da chegada dos portugueses. O trfico negreiro, iniciado j em 1502, converteu-se num empreendimento econmico to lucrativo que se prolongou at 1860, quando foi extinto. Foram feitas aproximadamente 12 mil viagens dos portos africanos ao Brasil, para vender, ao longo de trs sculos, cerca de 4 milhes de escravos aqui chegados vivos (Alencastro, 2000: 85). Essa migrao forada distribuiu-se em quatro grandes ciclos de importao (Mattoso, 1982: 22-23): a) no sculo XVI, o ciclo da Guin, trazendo escravos sudaneses, originrios da frica situada ao norte do Equador; b) no sculo XVII, o ciclo do Congo e de Angola, que trouxe para o Brasil os negros bantos; c) no sculo XVIII, o ciclo da costa de Mina, que trouxe novamente os sudaneses; a partir de meados do sculo XVIII, esse ciclo se desdobra para dar origem a um ciclo propriamente baiano, o ciclo da baa do Benim; d) no sculo XIX, chegam escravos de todas as regies, com uma predominncia de negros provenientes de Angola ou de Moambique. Associadas a esses ciclos esto razes econmicas: cultivo de cana-de-acar e de tabaco, nos sculos XVI e XVII; explorao das minas de ouro e de diamantes, como tambm cultivo do algodo, do arroz e da colheita de especiarias, no sculo XVIII; cultivo do caf, no sculo XIX. Deve-se assinalar que o final de um ciclo no significa a interrupo da chegada de negros da regio que domina no ciclo precedente. Sendo assim, a separao deve ser considerada vlida em suas grandes linhas, mesmo porque a poltica de Portugal foi sempre a de promover a mistura das diferentes etnias africanas, para impedir a concentrao de africanos de mesma origem numa mesma capitania.

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Entre 1502 e 1860, mais de 9 milhes e meio de africanos sero transportados para as Amricas. O Brasil recebeu cerca de 38% desse total, de acordo com estimativa de Curtin (1969). A Costa da Mina e Angola foram, at meados do sculo XVIII, as principais fontes abastecedoras dos nossos principais centros compradores de cativos da Amrica portuguesa: Salvador, Rio de Janeiro, Recife e So Lus, citados na ordem de importncia. A relao privilegiada entre os portos de Angola e do Rio de Janeiro aparecem em todas as estimativas sobre o trfico, entre a segunda metade so sculo XVIII e a primeira metade do XIX. Segundo Rodrigues, tambm apoiado em dados de Curtin, vieram de Angola 70% dos escravos importados pelo Brasil no sculo XVIII (2005: 29). As regies de provenincia dos escravos correspondem a duas reas lingsticas: oeste-africana e austral. As lnguas transplantadas foram, possivelmente, as seguintes (Bonvini, 2008: 30-1): a) da rea oeste-africana, caracterizada pelo maior nmero de lnguas, tipologicamente muito diversificadas8: -Tronco nigero-congols: atlntica: fula (fulfulde), uolofe, manjaco, balanta; mand (sobretudo, o mandinga): bambara, maninca, dila; gur: subfamilia gurnsi; cu (subgrupo gbe): eve, fon, gen, aja (designadas pelo termo jeje no Brasil); ijide: ij; benu-congolesa: defide: falares iorubs designados no Brasil pelo termo nag-queto; edide: edo; nupide: nupe (tapa); ibide: ibo; cross-River: efique, ibbio. -Tronco afro-asitico: chdica: hau.Os nomes dos grupos lingsticos esto em negrito e as denominaes das lnguas encontram-se em itlico. Todas essas denominaes foram adaptadas grafia do portugus.8

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-Tronco nilo-saariano: saariana: canri. b) da rea austral, essencialmente do subgrupo banto limitada costa oeste (atuais Congo, Repblica Democrtica do Congo e Angola) e somente mais tarde estendendo-se costa leste (Moambique) , caracterizada por um nmero muito reduzido de lnguas, tipologicamente homogneas, mas faladas pelo maior nmero de cativos: H.10 congo (quicongo): quissolongo, quissicongo (quissangala), quizombo, quissundi (falada pelos bacongos, numa zona correspondente ao antigo reino do Congo) e quivli, iuoio (fiote), quiombe (faladas em Cabinda e em Loango); H.20 quimbundo (falada pelos ambundos, na regio central de Angola, correspondendo ao antigo reino de Ndongo), quissama, quindongo; H. 30 iaca-holo: iaca, imbangala, chinji; K.10 chcue: uchcue, ochinganguela, chilucazi, luena (luvale); L. 30 luba: chiluba-cassai (lulua); L. 50 lunda: chilunda, urunda; P. 30 macua: omacua; R.10 umbundo (falado pelos ovimbundos na regio de Benguela, em Angola): umbundo, olunianeca; R. 20 cuaniama, indonga: ochicuaniama, cuambi; R. 30 herero: ochiherero. As lnguas africanas no chegaram ao Brasil com o mesmo estatuto lingstico de que dispunham no seu continente de origem, pois o tipo de trfico adotado pelos portugueses promoveu uma seleo e adaptao entre as lnguas. Durante todo o sculo XVI os portugueses detinham o monoplio do trfico, do porto de Arguim, as ilhas de Cabo Verde, ao forte de So Jorge da Mina (at 1637) passando pela ilha de So Tom, que ser para os portugueses o primeiro grande centro de redistribuio de escravos levados de terra firme. Nos sculos XVII e XVIII Angola que desempenhar o papel de centralizador, por

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meio de dois reinos negros, que prosperaro entre 1670 e 1750, um ao norte, o reino Ndongo (cujo ttulo ngl, dado aos chefes deste reino, serviu para forjar o termo Angola para designar o conjunto do pas) e que ser o maior reservatrio de homens negros para o trfico brasileiro (Mattoso, 1982: 27); o outro ao sul, o reino de Benguela. Durante esse perodo, a iniciativa privada vai assumindo progressivamente o trfico no sculo XVIII j h companhias instaladas no Brasil de tal sorte que chega a estabelecer um comrcio direto entre o Brasil e a frica, evitando assim a etapa europia do esquema clssico de comrcio triangular utilizado pelos outros pases colonizadores. Essa nova poltica resultou da iniciativa brasileira de Salvador Correia de S e Benavides (1602-1686) de reconquistar Angola expulsando os holandeses do porto de Luanda em 1648. Mas, na realidade, desde 1559 os portugueses estabelecidos no Brasil faziam por conta prpria o abastecimento de mo-de-obra escrava para suas terras brasileiras (Bonvini e Petter, 1998: 73). Alencastro confirma que a brasilianizao do trfico ocorreu a partir de meados do sculo XVII. Desde essa poca os interesses luso-brasileiros, ou braslicos termo que passou a usar-se na poca para designar o colonato da Amrica portuguesa , cristalizam-se nas reas escravistas sul-americanas e nos portos africanos. No sculo XVIII, quando as estatsticas passam a ser mais acuradas, verifica-se que apenas 15% dos navios entrados no porto de Luanda vinham da Metrpole. Todo o resto saa do Rio de Janeiro, Bahia e Recife (2000: 28). A regularidade atmosfrica e martima da navegao leste-oeste, caracterizada por correntezas e ventos complementares, contribuiu para que a rota do trfico se realizasse preferencialmente nos mares do Atlntico sul. O fato de ser mais fcil sair de qualquer porto do Brasil para Luanda ou para a Costa da Mina tambm colaborou para evitar o trfico de indgenas, na cabotagem norte-sul. Essa facilidade de comunicao, que concorria para a no escravizao do ndio, no passou despercebida a Vieira; no Sermo XXVII, do Rosrio, pregado numa confraria de escravos, ele a considera como uma especial misericrdia de Nossa Senhora do Rosrio, pois permitia a transmigrao dos angolanos que seriam, assim, levados Amrica portuguesa para se salvarem do paganismo africano (Alencastro, 2000: 63).

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O fato histrico fundamental, tema da obra de Alencastro, que a colonizao portuguesa, fundada no escravismo, deu lugar a um espao econmico e social bipolar, englobando uma zona de produo escravista situada no litoral da Amrica do Sul e uma zona de reproduo de escravos, centrada em Angola (2000: 29). Esse contexto proporcionou condio favorvel para comprovar o postulado enunciado na guerra antiholandesa: Angola sustenta o Brasil, o qual sustenta Portugal (Alencastro, 2000: 247). Esse relacionamento vital das duas colnias portuguesas no Atlntico fornece argumentos para a tese defendida pelo historiador na obra em tela: o Brasil se formou fora do Brasil, no como prolongamento da Europa, mas como participante de um sistema de explorao colonial singular em ao no Atlntico sul (2000: 9). As evidncias da histria permitem extrapolar para o terreno da lngua a tese de Alencastro: o PB tambm se formou no convvio com as lnguas do centro-sul da frica, sem negar, contudo, a matriz portuguesa, nem os contatos primeiros e constantes com as lnguas indgenas, nem os contatos posteriores com lnguas da frica Ocidental. O testemunho lingstico do intenso contato com Angola est fartamente documentado nos inventrios lexicais de termos de origem africana no PB: a grande maioria dos emprstimos atestados proveniente de lnguas angolanas (cf. Castro, 2001; Alkmim e Petter, 2008).

2.1. As lnguas do Brasil colnia Diversos relatos histricos testemunham ter havido uma superioridade dos falantes aloglotas, durante os sculos XVI e XVII, e indicam que, ao longo do sculo XVIII, manifestou-se uma tendncia para inverter essa situao. Explica-se, comumente, essa mudana pela atuao de dois fatores: o crescimento da populao e a deciso do Marqus de Pombal, aps a expulso dos jesutas, de tornar o ensino de portugus obrigatrio. A atitude de Pombal teria encerrado um longo perodo de domnio jesutico, favorecedor das lnguas gerais de origem indgena e principal agente da educao, visto que a Companhia de Jesus possua vrias escolas, dedicadas formao de clrigos e leigos. Com o propsito da catequese dos gentios, os jesutas procuraram descrever, publicar e ensinar aos seus novios no apenas lnguas indgenas, mas tambm se dedicaram ao estudo de uma lngua africana, o quimbundo. Assim, em 1697, a Companhia 28

de Jesus publicou em Lisboa o estudo de Pedro Dias, sacerdote jesuta da Bahia, a Arte da lingoa de Angola, oeferecida a Virgem Senhora N. do Rosario, My e Senhora dos mesmos Pretos. grande a importncia desse trabalho, pois, alm de ser a primeira descrio gramatical do quimbundo, uma prova histrica do emprego de uma lngua africana no Brasil no sculo XVII. Do ponto de vista lingstico, esse texto contm observaes que permitem mostrar o olhar que um falante do portugus dessa poca lanava sobre uma lngua africana tipologicamente diferente da sua ao mesmo tempo em que registra o portugus utilizado nos meios cultos, no sculo XVII no Brasil (Bonvini, 2008: 33-34). No sculo XVIII temos outro testemunho do uso de uma lngua africana no Brasil, desta vez na regio das minas, em Vila Rica de Ouro Preto. o manuscrito sobre a chamada lngua geral da mina, redigido por Antonio da Costa Peixoto, de que temos uma primeira verso datada de 1731 e conservada na Biblioteca Nacional de Lisboa (n 3052 do Fundo Geral). Dez anos depois, em 1741, o mesmo autor fez uma segunda verso sob o ttulo Obra nova de Lingoa g.al de mina, traduzida, ao nosso Igdioma por Antonio da Costa Peixoto, Naciognal do Rn.o de Portugal, da Provincia de Entre Douro e Minho, do concelho de Filgr.as , completada por um prlogo de duas pginas suplementares e de uma advertncia final. Essa verso est conservada na Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de vora (Cdice CXVI/1-14b) (Bonvini, 2008: 39-45). Trata-se de um manual destinado aos senhores de escravos, para que pudessem comunicar-se com os escravos. Esse texto apresenta um interesse particular, porque desvela uma situao at ento indita: no espao reduzido do quadriltero mineiro Vila Rica, Vila do Carmo, Sabar, Rio dos Montes, por causa da necessidade de explorar intensivamente ouro e diamantes, descobertos no sculo XVIII, houve uma concentrao macia de cerca de 100.000 escravos em mdia por ano. Eles eram originrios da costa do Benim - chamada Mina e situada, grosso modo, entre Gana e a Nigria e renovados regularmente durante um perodo de uns 40 a 50 anos (Bonvini, 2008: 39). A segunda verso desse texto, a de 1741, s foi publicada em 1945, em Lisboa por Lus Silveira, sob o ttulo Obra nova de Lngua geral de Mina de Antnio da Costa Peixoto (Silveira, 1945), acompanhado de um importante comentrio filolgico de Edmundo

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Correia Lopes, intitulado Os trabalhos de Costa Peixoto e a lngua evoe no Brasil (p. 4566, apud Bonvini, 2008: 39). A partir do comentrio de Correia Lopes, pode-se inferir que essa lngua geral de mina era falada por africanos originrios da frica ocidental, de uma regio onde se falam lnguas hoje denominadas do grupo gbe. Impossvel determinar, pelo estudo do manuscrito, qual dessas lnguas seria, no s porque elas so fortemente aparentadas mas tambm porque essa lngua pode ter-se transformado pelo contato com o portugus. Para o propsito deste estudo, cabe destacar o fato de que uma variedade lingstica de origem africana foi falada numa regio do Brasil em que havia grande concentrao de escravos. Outras lnguas africanas podem tambm ter sido utilizadas nos quilombos, como uma das formas de comunicao empregadas pelos habitantes desses locais, que tambm acolhiam ndios e brancos foragidos. Dessas lnguas, no entanto, no se tm testemunhos. Embora a poltica pombalina tivesse destrudo a estrutura montada pela Companhia de Jesus no Brasil, no se pode atribuir a ela somente a responsabilidade pela implantao progressiva da lngua portuguesa a partir de 1759. Vrios fatores devem ter atuado, considerando-se o poder relativo de um decreto em favor do uso de uma lngua: a grande dificuldade de levar escolas a todas as povoaes espalhadas pelo Brasil e o fato de os aloglotas, ndios e africanos, estarem excludos do acesso educao formal. Villalta lembra com clareza qual era a importncia da educao para o povo negro escravo:

Para a imensa populao negra escrava, educar-se significava assimilar-se, passar de boal isto , de um estado de trnsito limitado prpria cultura, sem ter domnio da lngua portuguesa, sendo capaz apenas de comunicar-se primariamente com outrem para ladino uma situao de maior integrao na sociedade colonial e na nova cultura. Entre os ndios escravizados, fenmeno similar deve ter ocorrido (1997: 353, apud Barbosa, 1999: 56).

As relaes de trabalho estabelecidas entre os negros escravos e os senhores, de extrema assimetria, tambm constituram fator preponderante para a expanso do uso e domnio da lngua portuguesa, como demonstra o estudo feito por Alkmim (no prelo) a

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partir de trabalhos de historiadores sobre a sociedade do engenho na Bahia. Segundo a autora:

Nessa ordem de idias, poderamos levantar a hiptese de que o sucesso da ordem social baseada na escravido no Brasil, isto , seu funcionamento e rentabilidade, foi secundado por um bem sucedido processo de aculturao lingstica dos escravos africanos. Caberia ainda considerar que, para alm do mundo da produo aucareira (e mesmo da produo da lavoura de subsistncia), os escravos participavam de todas (ou da quase totalidade) as esferas do cotidiano dos senhores e brancos livres em geral, sob a forma de prestao de servios de toda ordem. O portugus, lngua do senhor branco, dominador com tudo que essa condio implicava poderia, assim, ser visto, como o cdigo que se imps, desde o incio, diversidade das lnguas e dos povos africanos trazidos como escravos para o Brasil.

importante destacar que foi no sculo XIX que o portugus se implantou em Angola e Moambique, num momento em que essa lngua j se afastara sensivelmente do portugus brasileiro, pois, como informa Bechara, entre outros fatos dignos de nota demarca o sculo XVIII um maior afastamento lingstico entre o portugus europeu e o portugus do Brasil (1995: 39). Dentre os aspectos que distinguem o portugus falado no Brasil no sculo XVIII e XIX destaca-se o uso da forma nominal do gerndio em locues verbais com estar + gerndio, enquanto em Portugal a forma inovadora a + infinitivo j se instalara. Barbosa (1999) demonstra, com base no estudo de 24 documentos encontrados no Arquivo Histrico Ultramarino de Lisboa e cerca de 90 cartas localizadas na Biblioteca Nacional de Lisboa, que foi no final do sculo XVIII que se consolidou em Portugal o uso da construo a+ infinitivo (infinitivo gerundivo) em substituio da forma nominal de gerndio,. Um texto de outro tipo tambm comprova o uso do gerndio naqueles contextos; trata-se do manuscrito, j mencionado, da Lngua geral de mina de Antnio da Costa Peixoto, produzido em 1741[1731], em Ouro Preto, e editado em 1945 em Lisboa. Como j foi dito, era um manual de ensino de lngua, para que os senhores pudessem compreender seus escravos. Alm de documentar a presena de lnguas africanas da frica Ocidental, do grupo gbe, no Brasil, as tradues dos enunciados da lngua de mina constituem um

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registro importante do portugus falado na poca. Observe-se nos exemplos selecionados que as tradues das expresses que denotam processo em andamento apresentam sistematicamente formas de gerndio. No h um s contexto de uso de infinitivo gerundivo.

Edfclcom = est lavando o p dnquzcom = est rachando lenha dzomhcom = est trabalhando edehuhema chlcom = est lendo edehuhemagulamcom = est escrevendo edav den = est despindo-se edav dou = est vestindo-se edm-lad = est dormindo

O uso categrico da forma do infinitivo gerundivo nas variedades africanas de portugus a nica evidncia que permite identificar uma diferena entre o portugus que chegou frica e o que veio para o Brasil.

No sculo XVIII h uma tendncia para inverter a situao dos sculos XVI e XVII de predominncia de falantes aloglotas, devido s medidas de Pombal e ao crescimento da populao. Os dados que interessariam ao lingista, como o nmero de escravos bilnges, de escravos que s falassem uma lngua africana e dos que s falavam o portugus no esto disponveis e impossvel recuper-los.

Em relao s lnguas africanas, o trabalho de Mussa (1991) apresenta dados importantes. Organizando diversas fontes da demografia histrica, Mussa demonstra que o percentual de negros brasileiros, j expostos ao portugus desde o nascimento, e de negros africanos, em relao ao nmero total da populao no Brasil, teria sido, aproximadamente, o seguinte, no quadro geral da populao brasileira:

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1538 1600 Africanos Negros brasileiros Mulatos Brancos brasileiros Europeus ndios integrados 50% 30% 20%

1601 1700 30%

1701 1800 20%

1801 1850 12%

1851 1890 2%

20% 10%

21% 19%

19% 34%

13% 42%

5% 25%

10% 22%

17% 14%

24% 17%

10%

8%

4%

2%

Tab. 1: Porcentagem de habitantes do Brasil de 1538 a 1890, Mussa (1991: 63).

A partir do sculo XVIII, h uma reduo de africanos, de indgenas e de brancos; na direo inversa h um crescimento da porcentagem de mulatos e brancos brasileiros, evidenciando um quadro de miscigenao e a presena no macia de portugueses, tornando o ambiente favorvel formao de uma variedade local de portugus. O portugus confirmara-se como o idioma veicular de todos os habitantes do Brasil a partir da segunda metade do sculo XVIII, quando a populao no branca superava a branca. Seus falantes eram na maioria negros, mestios de toda espcie e ndios, que aprenderam portugus como segunda lngua, ou num ambiente em que havia pouca presso normativa (poucas escolas). Segundo Houaiss (1985: 137) os letrados no Brasil at o sculo XVIII no ultrapassariam 0,5%. Mattos e Silva define com clareza o contexto em que se constituiu o portugus brasileiro:

certamente no entrecruzar-se de variantes localizadas menos ou mais interferidas por marcas indgenas e/ou africanas, de variantes mais gerais menos ou mais africanizadas ou menos ou mais aportuguesadas que se definem e emergem os traos caractersticos do portugus brasileiro, lngua nacional (Mattos e Silva, 2004: 22).

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2.2. Portugus e lnguas africanas depois da independncia o testemunho do mdico Nina Rodrigues, em texto escrito em 1890 e s publicado em 1932, que nos informa sobre o plurilingismo existente na segunda metade do sculo XIX, na Bahia. Seu estudo foi feito num contexto de desconcentrao econmica, em que a Bahia se despovoava de escravos. Pelo seu levantamento, Rodrigues identificou vocbulos de seis lnguas, atestados em documentos escritos e sob a forma oral, recolhidos diretamente junto a africanos ainda vivos na poca: nag ou iorub; jeje, u ou ewe; hauss; kanri (lngua dos bornus); tapa, nif ou nup; lngua dos negros gurnces, gruncis. O autor observa, no entanto, que essas lnguas sofreram muitas alteraes, devido aprendizagem do portugus por parte dos escravos (1977: 122). Coletou dados lexicais que compuseram uma lista de 122 palavras, pertencentes a cinco lnguas africanas faladas ainda correntemente na Bahia em sua poca: grunce (gurnsi), jeje (ma?) (eve-fon), hau, canri e tapa (nupe). Nina Rodrigues destaca especialmente o papel de lngua geral desempenhado na Bahia pelo nag ou iorub:

A lngua nag , de fato, muito falada na Bahia, seja por quase todos os velhos africanos das diferentes nacionalidades, seja por grande nmero de crioulos e mulatos. Quando neste Estado se afirma de uma pessoa que esta fala lngua da Costa, entende-se invariavelmente que se trata do nag. Ela possui mesmo entre ns uma certa feio literria que eu suponho no ter tido nenhuma outra lngua africana no Brasil, salvo talvez o hauss escrito em caracteres rabes pelos negros muulmis. E que muitos negros que aprenderam a ler e a escrever corretamente esta lngua em Lagos, nas escolas dos missionrios, tm estado na Bahia e aqui o tm ensinado a negros baianos que j a falavam (1977: 132).

Hoje, o iorub no tem o mesmo uso referido por Nina Rodrigues. De um emprego generalizado na Bahia, ele passou a ter um uso restrito, como lngua ritual, utilizada nos chamados cultos afro-brasileiros, nag ou queto. Outro registro importante sobre essa lngua no Brasil o Vocabulrio Nag, um dos trabalhos apresentados por Rodolfo Garcia no Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Recife, em 1934 e publicado em 1988 na revista Estudos Brasileiros. Trata-se de um lxico que teria sido coletado por indivduo intelligente e entendido, que seria pernambucano e teria vivido na primeira 34

metade do sculo passado (1934: 21). No se faz nenhuma anlise ou comentrio alm da identificao do possvel autor do vocabulrio. uma lista de 144 termos dispostos em duas colunas, portuguez e nag, com algumas observaes grammaticaes: adjetivos numeraes, pronomes pessoaes, adjectivos demonstrativos e algumas expresses de cumprimento e frases curtas. Os vocbulos, organizados em ordem alfabtica a partir do portugus, pertencem ao vocabulrio comum e muitos deles integram o vocabulrio bsico. Encontram-se designaes para o corpo humano, para o vesturio, para os alimentos, para os nomes de parentesco, para a habitao, para objetos, para animais domsticos. No h nenhum item referente religio, exceto Deus nico, rei, senhor ou dono do co.......oba ol - orun. Muitos termos so encontrados no iorub atual, identificados em pesquisa de dicionrios atuais (Alkmim e Petter, 2008: 152). Da mesma forma, outras lnguas africanas permanecem no uso ritual, como eve, fon, presentes no candombl jeje, e lnguas bantas, como quimbundo, quicongo, umbundo, predominantes no candombl angola. Essas lnguas rituais no servem comunicao corrente entre os adeptos, mas so lnguas da liturgia, tm um emprego especial, em cnticos, enunciados e dilogos cristalizados pela prtica dos cultos. As lnguas africanas no se apresentam mais como lnguas plenas, mas revelam traos de seu longo e intenso contato com o portugus. O seu uso, alm de estar associado a grupos especficos, est vinculado a duas funes principais: ritual, nos cultos religiosos ditos afro-brasileiros e de demarcao social, como lngua secreta, utilizada em comunidades negras rurais (os quilombos atuais) constitudas por descendentes de antigos escravos, como Cafund e Tabatinga e Patrocnio (Petter, 2006: 119). O uso de lnguas africanas na verdade, um lxico de origem africana por comunidades negras rurais, com funo de demarcao social foi registrado por duas obras: uma sobre a linguagem do Cafund, em So Paulo (Vogt e Fry, 1996) e outra a respeito da linguagem da Tabatinga, em Minas Gerais (Queiroz, 1998). Em So Paulo, no h outra referncia ao uso de um lxico de origem africana, nem mesmo na regio do Vale do Ribeira, onde se situam 51 comunidades remanescentes de quilombos. Em Minas Gerais, h menes sobre situao semelhante no povoado de Milho Verde e em Capela Nova (Queiroz, 1998: 32). Vogt e Fry relatam a existncia, em Patrocnio (MG), de uma

lngua identificada como calunga, com um lxico bastante semelhante ao do Cafund,

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mas com um uso bastante distinto: ela falada por brancos e negros indistintamente (1996: 234-255).

3. O retorno frica 3.1. Portugueses em Angola At o sculo XIX, Angola era para Portugal uma grande fbrica de escravos. Somente depois da independncia brasileira, Angola passou por um estgio de transio caracterizado por um leve aumento de tentativas de povoamento e acrscimo do interesse dos portugueses pela colonizao. Durante o primeiro perodo de expanso martima e de comrcio, instala-se pouco a pouco no territrio da atual Angola, uma constelao de pontos fixos, que sero as cidades, as feitorias, as feiras, os mercados e os presdios (praas fortificadas). A atividade comercial justifica essa organizao, troca de escravos, marfim, cera e quinquilharias. O lugar ocupado pela escravido e o trfico nesta atividade central. Para dar uma idia, basta considerar algumas estatsticas: de 1575 a 1591 50.000 escravos deixam Angola, indo principalmente para Portugal ou para o Brasil; de 1759 a 1803 - 642.000 escravos deixam Angola em direo do Brasil, segundo registros coloniais. Esse comrcio s acabou com o fim do sculo XIX. Um sistema de circulao motivado pelo comrcio foi assim ativo durante quase trs sculos, tendo por passagens principais Lisboa, Cabo Verde, So Tom, Angola e Brasil. A real presena portuguesa em Angola no efetiva em toda parte e muito fraca numericamente nesse sistema, mas ela exerce uma ao cataltica em vastos territrios do interior da frica. Luanda foi fundada em 1576 pelo portugus Paulo Dias de Novais. Durante sculos pouco portugueses se fixaram na cidade. No incio do sculo XIX, menos de um dcimo do territrio era efetivamente ocupado e controlado pelos portugueses. Depois da Conferncia de Berlim (1884-1885), com a demanda de ocupao efetiva pelos pases que pediam 36

terras do interior, Portugal foi pressionado a aumentar seu esforo colonial com programas de desenvolvimento econmico. Esforos de pacificao e administrao do interior de Angola aumentaram principalmente no sculo XX. No governo de Salazar a administrao e as polticas de povoamento foram intensificadas. Desde o final do sculo XIX a populao branca de Angola aumentou constantemente. Enquanto 9 mil portugueses viviam em Angola em 1897 um crescimento enorme comparado com o nmero de 1.839 registrado no incio do sculo XIX (Bender, 1978: 64) , a populao europia cresceu de 44 mil para 172 mil, entre 1940 e 1960. A transformao de Angola numa colnia de povoamento tornou-se evidente. Por volta de 1973 a populao de origem europia tinha crescido at 600 mil. Embora ela se concentrasse na rea de Luanda e outras cidades importantes, uma densa populao branca tambm era encontrada nos povoamentos agrcolas, fazendo aumentar os contatos lingsticos entre os portugueses e angolanos (Ahlefeldt-Dehn, 1989: 2). A poltica escolar em Angola mostra que o maior interesse de Portugal era de natureza econmica. At a metade do sculo XVIII a educao ficava a cargo dos jesutas missionrios e mais tarde de padres de outras ordens religiosas. Conseqentemente o grupo de europeus mais significativo a ter contato com o interior eram os missionrios. A dissoluo de ordens religiosas em Portugal, provocada pelos regimes liberal e anticlerical em 1759 e 1834, encerraram as atividades missionrias em Angola. Somente em 1845, um ano depois de ordenar um importante decreto de centralizao educacional, os portugueses estabeleceram um sistema coordenado de educao fora de Portugal, que revivia as escolas missionrias anteriormente fechadas (Samuels, 1970: 21). reas densamente povoadas foram providas de escolas pblicas enquanto nas reas rurais a educao era assumida pelas misses crists. Muitas delas ensinavam religio nas lnguas vernculas. Mesmo depois da criao da Primeira Repblica anticatlica, em 1910, o governo portugus apoiava financeiramente as misses catlicas, consideradas como elementos de actividade civilizadora (Ferreira, 1977: 65) e exerciam um duplo papel: civilizar ou educar o africano e nacionaliz-lo, ou fazer dele um portugus leal (Wheeler e Pelisier, 1971). Apesar disso, as escolas desenvolveram-se lentamente e apenas no nvel bsico. Em 1921, pelo decreto n 77, o ensino de lnguas nativas nas misses foi proibido. A maioria das aulas era dada em portugus e todos os livros publicados em lnguas nativas tinham de conter uma traduo

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portuguesa. Dessa forma o conhecimento da lngua portuguesa espalhou-se mais rapidamente entre os africanos (Ahlefeldt-Dehn, 1989: 3). At 1961 havia dois diferentes sistemas de escola primria em Angola: um que seguia o modelo de Portugal, para europeus e assimilados, e outro de ensino rudimentar para os africanos em geral, isto , para os chamados no civilizados (Massa, 1984: 88). Segundo Samuels (1970: 4), nenhuma dicotomia do desenvolvimento histrico da educao em Angola mais clara do que aquela que existiu entre educao rural e educao urbana. Nveis mais elevados de educao s eram acessveis para os africanos que tivessem adquirido previamente o estatuto de assimilado, obtido ao mostrar habilidades de ler, escrever e falar a lngua portuguesa fluentemente, alm de ter incorporado o modo de vida europeu. A deflagrao da guerra de independncia, em 1961, provocou reformas, dentre as quais a exploso escolstica (Wheeler e Pelissier, 1971: 237), que pode ser observada pela extenso notvel da educao rural, que estimulou um crescimento substancial do nmero de portugueses falando ao povo, mesmo nas reas rurais de Angola. No entanto, considerando o papel social das lnguas africanas nas reas rurais, a poltica lingstica seguida pelos portugueses no trouxe mudanas considerveis (Ahlefeldt-Dehn, 1989: 4). Parecia no haver interesse dos portugueses numa sntese cultural. Os sintomas de uma sociedade crioulizada que poderia ser observado mesmo nas classes mais altas no incio do sculo passado em Luanda e Benguela, por exemplo, diminuram durante os 50 anos seguintes como resultado da imigrao crescente de europeus (Heimer, 1979: 51, apud Ahlefeldt-Dehn, 1989: 4). A diviso da populao angolana em assimilados e indgenas e a conseqente importncia adquirida pela cultura portuguesa, levaram descrioulizao das sociedades de Luanda e Benguela. O maior ou menor nvel de pureza cultural, que poderia ser observado na lngua, no vesturio e nos hbitos alimentares tornaram-se um ndice social notvel de estratificao entre os assimilados. No havia, portanto, condies favorveis para uma ruptura com a tradio cultural e lingstica lusitana que pudesse levar formao de uma lngua crioula de base lexical portuguesa. A sociedade angolana composta por uma variedade de grupos lingsticos, a maior parte deles falantes de lnguas bantas, embora haja no sul do pas alguns falantes de lnguas

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do tronco coissan. Com base em estudos do Instituto de Lnguas Nacionais (denominao atual do Instituto Nacional de Lnguas) sobre as dez lnguas angolanas majoritrias, o governo decidiu promover seis delas condio de lnguas nacionais (resoluo n3/87 do Conselho de Ministros, publicada em maio de 1987, apud Mingas, 2000: 55). A partir de ento, as seis lnguas selecionadas chcue, quicongo, quimbundo, ganguela, cuanhama e umbundo passariam a ser gramatizadas, isto , dotadas de gramtica, dicionrio e normas ortogrficas, recursos indispensveis para introduzi-las no ensino, para que mais tarde pudessem alcanar as esferas administrativas. O reconhecimento como lngua nacional a primeira etapa para atingir o estatuto de lngua oficial, posio que continua a ser ocupada pelo portugus. Convm destacar que a lngua portuguesa hoje, alm de idioma oficial, a primeira lngua de muitos angolanos. Essa nova situao, resultante de sua grande difuso, transformou a lngua do antigo colonizador em lngua nacional, no sentido pleno, e veicular para todos os angolanos, embora o grau de domnio no seja igual para todos (Fernandes e Ntondo, 2002: 19). O curso histrico da colonizao em Angola contribuiu para a gerao de numerosas variedades de portugus falado. Excetuando-se a populao urbana, que possui um grande nmero de angolanos monolnges, falantes de portugus, a maior parte dos angolanos multilnge e usa o portugus somente na comunicao oral. Eles adquirem o portugus sem a influncia normativa das escolas, o que os leva a utilizar um portugus simplificado que incorpora caractersticas das lnguas africanas locais (Ahlefeldt-Dehn, 1989: 5). Alm do portugus europeu padro, falado principalmente nas cidades, pode-se encontrar a linguagem dos musseques, bairros pobres de Luanda, em que o quimbundo se mescla ao portugus, sem contar muitas outras variedades mais ou menos pidginizadas de portugus, encontradas, principalmente, na rea rural. Escritores angolanos, que foram influenciados pela negritude, pelo realismo portugus e pelo modernismo brasileiro, principalmente os da gerao de 50, comearam a introduzir, na literatura angolana escrita em portugus, traos lingsticos do portugus angolanizado. Muitos deles, alm da importncia literria, tiveram papel relevante na tendncia de criar uma linguagem literria diferente da portuguesa. Com essa chamada

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linguagem da literatura, escritores angolanos intensificaram as variedades de portugus angolano falado como um instrumento de conscientizao nacional e identificao para levar adiante a criao de seu prprio padro angolano de lngua. De acordo com Margarido, a vasta produo literria angolana das ltimas dcadas engendrou ou est engendrando uma norma literria angolana, que no futuro vai influenciar as diferentes variedades de portugus angolano falado (1985: 35). Um cuidado, no entanto, deve-se ter ao considerar essa linguagem literria como cpia da lngua efetivamente falada. Os escritores, na maioria, trazem para a escrita uma lngua que eles no dominam como falantes nativos, como confessa scar Ribas, em entrevista a Laban (1991: 34). Macedo (2002) resume o sentido desse portugus angolanizado, ao afirmar que a inteno dos escritores angolanos no era a de refletir a fala exata do homem comum, mas valorizar e dignificar todas as variedades no padro de portugus usadas em Angola e que tinham sido to discriminadas no passado. Desde o final do sculo XV, a lngua portuguesa entra em contato com uma vasta populao de lngua quicongo, no reino do Congo. Do lado portugus os agentes deste contato foram, sobretudo, os missionrios e comerciantes, mas tambm funcionrios, mestres-escolas, militares e artesos. Sob o reino de Afonso I de Congo (~1506-1543), as relaes so particularmente intensas e persistiro por todo o sculo XVI. Willy Bal (1979), em estudo sobre a presena da lngua portuguesa na frica, apresenta uma lista de citaes que comprovam o emprego dessa lngua pelos africanos, no sculo XVII, em Soyo e So Salvador. Esses fragmentos de textos revelam que as crianas aprendiam o portugus e eram instrudas nessa lngua na escola; tambm indicam que o portugus era a lngua das pregaes em So Salvador e que um nmero importante de sditos do reino do Congo eram bilnges: funcionrios, padres, comerciantes, naturalmente os intrpretes e as crianas da nobreza que faziam parte de seus estudos em Portugal (apud Chavagne, 2005: 21-22). Alm da lngua portuguesa corrente na poca, Willy Bal menciona a lngua franca portuguesa, um pidgin portugus que circulou nas costas da frica a partir do sculo XVI e que seria a fonte de numerosos emprstimos de origem portuguesa que se encontram nas lnguas mais diversas da frica (Bal, 1979: 34).

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3.2. Portugueses em Moambique Vasco da Gama chega a Moambique em 1498, mas em 1850, os portugueses s ocupam uma nfima parte do territrio. De acordo com Ferreira (1977), a penetrao dos portugueses em Moambique foi muito mais difcil do que em Angola, devido forte presena islmica na regio. Segundo Ferreira, Vasco da Gama falava de um povo com uma cultura muito mais avanada do que a portuguesa e mencionava a existncia de uma elite local, principalmente suali, que vivia em cidades administradas por rabes que tinham divulgado a sua cultura e religio (1977: 55). Somente a partir de meados do sculo XVIII (1752) que a administrao moambicana passa a depender diretamente de Portugal (de 1498 a 1752 ela dependeu da ndia) e s nos finais do sculo XIX (1886) tm incio as campanhas de pacificao, atravs das quais Portugal pretende assegurar sua presena naquele territrio. Ren Plissier situa no sculo XIX o verdadeiro nascimento de Moambique, quando havia menos de 600 europeus e, na melhor das hipteses, 2.000 pessoas consideradas assimiladas (1984: 88-89). At 1890 s havia uma escola primria em todo o pas. A populao europia s aumentou realmente no sculo XX, quando passa de 5.000 pessoas em 1910 a 20.000 em 1930, 48.000 em 1950, 97.000 em 1960 e 200.000 em 1974 (Almeida, 1978-1979, apud Laban, 1999: 23). na segunda metade desse sculo, portanto, que se inicia a colonizao macia do territrio moambicano. Os portugueses vo concluir a ocupao efetiva de Moambique em 1918, data que marca o fim das campanhas militares, e na primeira metade do sculo XX que comeam a ser tomadas medidas relevantes para a difuso do portugus em todo o pas. Dentre essas, em 1930 criada a legislao que rege a relao de Portugal com suas colnias, o Acto Colonial. Nesse mesmo ano, institudo o ensino indgena, que garantia s populaes locais o acesso educao formal em portugus. Tambm se deve assinalar como fato importante da primeira metade do sculo XX o surgimento dos primeiros jornais literrios em lngua portuguesa, principalmente O africano e O brado africano, indicadores da existncia de uma elite moambicana local produtora de um discurso culto em portugus (Gonalves, 2007: 2).

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A questo da lngua portuguesa falada localmente era um tema importante para esses peridicos, como se observa num artigo publicado nO brado africano que denuncia o modo pelo qual certos colonos se dirigiam aos africanos, maltratando a lngua portuguesa:

Ora, a verdade que qualquer dialecto nativo tem a sua sintaxe e ao fazer-se a sua verso para o portugus ou para qualquer lngua civilizada encontra nestas as correspondentes figuras gramaticais. No se justifica por isso o uso destes vcios. Infelizmente esses vcios parecem ter tendncia em expandir-se e, a no ser que se lhe ponha um travo, poder-se- j antever os prejuzos de toda ordem que acarretaro na educao do indgena. H ainda a acrescentar que se esquece que, em muitos casos, o indgena j atingiu um determinado nvel mental que perante esta espcie de linguagem lhe permite tirar concluses pouco dignificantes para quem propositada e injustificadamente a usa (O brado africano, Loureno Marques, 4/7/1953, apud Laban, 1999: 26).

Durante a guerra de libertao nacional, iniciada em 1964, o movimento FRELIMO adota a lngua portuguesa para a redao de seus documentos e para a comunicao entre seus quadros. Tambm era em portugus que se ensinava nas escolas das zonas liberadas. O dirigente do movimento, Eduardo Mondlane justifica essa opo:As ocasies de conflito eram ilimitadas e ns reconhecemos que devemos fazer um esforo consciente para preservar a unidade. A forma principal que isso tomou foi a educao. Desde o princpio perseguimos a educao poltica para combater o tribalismo, o racismo e a intolerncia religiosa. O portugus foi escolhido como lngua oficial por comodidade, dado que nenhuma lngua africana de Moambique tem o uso extenso que tem, por exemplo, o suali na Tanznia. O trabalho freqentemente feito em outras lnguas, e o fato que as pessoas de regies diferentes trabalhem constantemente juntas encorajou sua aprendizagem (1979: 126, apud Laban, 1999: 27).9

Les occasions de conflit taiet illimites et nous reconnaissons que nous devions faire un effort conscient pour prserver lunit. La forme principale que cela prit fut lducation. Depuis le tout dbut, nous avons poursuivi lducation politique pour combattre le tribalisme, le racisme et lintolrance religieuse. Le portugais fut retenu comme langue officielle par commodit, tant donn quaucune langue africaine au

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Apesar de ter o estatuto de lngua oficial do pas depois da independncia, houve dissidentes que viram na adoo do portugus como lngua da unidade nacional o risco de entender que as demais lnguas so da diviso nacional, pois afastam do debate nacional as massas camponesas (Laban, 1999: 30). A questo das lnguas nacionais, como em muitos pases africanos, ainda no achou em Moambique uma soluo que as coloque em situao de igualdade ou complementaridade com a lngua oficial do antigo colonizador. Ao final dos anos 70 no existia uma comunidade de falantes de portugus plenamente estabelecida, o que equivale dizer que no estava ainda formada uma variedade nativizada desta lngua, que estivesse difundida por todo o territrio moambicano e que fosse falada por uma comunidade de adultos, com suas novas propriedades gramaticais estabilizadas. De acordo com o Censo Populacional de 1980, do total de falantes de portugus em Moambique (25,6%), para a quase totalidade (24,2%) essa lngua era uma L2. Cerca de 75% desses falantes de L2 tinham menos de 25 anos, isto , no tinham ainda atingido maturidade nesta lngua (Gonalves, 2006: 11-12). Lopes et al. informam que o influente grupo que tem o portugus como lngua materna representa 6,5% da populao com idade superior a 5 anos (800 mil moambicanos); os falantes de portugus como segunda ou terceira lngua constituem um puco mais de 4.880 milhes, representando 39,5 da populao do pas com mais de 5 anos. O II Recenseamento Geral da Populao de 1997 no apresenta dados sobre outras possibilidades de domnio de lnguas existentes no pas, como a de falantes bilnges, que adquiriram simultaneamente duas lnguas, e a de falantes para quem a segunda lngua (em termos de aquisio temporal) considerada como uma segunda primeira lngua (2002: 2). Os mesmos autores observam que outros dados, do Inqurito Nacional dos Agregados Familiares sobre Condies de Vida (1998), demonstram haver uma acentuada diferena entre o centro do pas e o sul, entre o norte e o centro litoral, e conseqentemente uma enorme diferena entre o norte e o sul no que diz respeito aos nmeros e ndices percentuais de falantes de portugus L1. Segundo esse inqurito, o portugus falado na cidade de Maputo por 17,7% da populao (depois do xichangana, 31,8% e do xironga, 26,7%) e por

Mozambique na lusage tendu qua, par exemple, le Swahili en Tanzanie. Le travail cependant est souvent poursuivi galement dans dautres langues, et le fait que des gens de rgions diffrentes travaillent constamment ensemble a encourag leur apprentissage.

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10,3% e 3,8%, respectivamente, nas Provncias de Maputo e Inhambane, contra 1,7% na Provncia de Sofala e 0,3% na Provncia de Tete. Na Provncia de Nampula falado por 0,9% da populao e, na