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A EXPERIÊNCIA DO CUIDADO DE SI NO PENSAMENTO TARDIO DE MICHEL FOUCAULT E SUA REALIZAÇÃO COMO FORMAÇÃO HUMANA: UMA VIA ALTERNATIVA PARA REPENSAR A EDUCAÇÃO NA ATUALIDADE COUTINHO, Viviane de Moura PEIXOTO, Maria Socorro Liberal Núcleo de Educação e Espiritualidade (PPGE/UFPE) Agências financiadoras: REUNI e FACEPE Introdução É fato em nossa modernidade a negligência em se desenvolver pesquisas e práticas que abordem diretamente os processos relativos à formação humana. Pois, como ressalta Ferreira (2007), em nossa cultura, a educação tem se reduzido, quase que exclusivamente, à sua dimensão cognitivo-racional como se a racionalidade esgotasse “por si mesma todas as facetas do fenômeno humano” (p. 142). Ou seja, a educação moderna tem privilegiado projetos que visam ao desenvolvimento do exercício de papéis sociais pelos jovens no interior da sociedade, oferecendo cursos e atividades que os habilite ao mercado de trabalho. Todavia, ao chamarmos atenção para esse fenômeno não estamos simplesmente descartando essas possibilidades de exercício da educação, mas apontando que quando aquela se resume apenas aos propósitos utilitaristas produz nos estudantes

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A EXPERIÊNCIA DO CUIDADO DE SI NO PENSAMENTO TARDIO DE

MICHEL FOUCAULT E SUA REALIZAÇÃO COMO FORMAÇÃO HUMANA:

UMA VIA ALTERNATIVA PARA REPENSAR A EDUCAÇÃO NA

ATUALIDADE

COUTINHO, Viviane de Moura

PEIXOTO, Maria Socorro Liberal

Núcleo de Educação e Espiritualidade (PPGE/UFPE)

Agências financiadoras: REUNI e FACEPE

Introdução

É fato em nossa modernidade a negligência em se desenvolver pesquisas e

práticas que abordem diretamente os processos relativos à formação humana. Pois,

como ressalta Ferreira (2007), em nossa cultura, a educação tem se reduzido, quase que

exclusivamente, à sua dimensão cognitivo-racional como se a racionalidade esgotasse

“por si mesma todas as facetas do fenômeno humano” (p. 142). Ou seja, a educação

moderna tem privilegiado projetos que visam ao desenvolvimento do exercício de

papéis sociais pelos jovens no interior da sociedade, oferecendo cursos e atividades que

os habilite ao mercado de trabalho. Todavia, ao chamarmos atenção para esse fenômeno

não estamos simplesmente descartando essas possibilidades de exercício da educação,

mas apontando que quando aquela se resume apenas aos propósitos utilitaristas produz

nos estudantes uma relação descontextualizada com o seu processo formativo. Com

isso, a educação deixa de se relacionar à vida mesma, apartando os conhecimentos das

vivências e saberes articulados ao longo da existência dos sujeitos. Assim,

Essa forma de pensar e organizar os processos educacionais tem levado crianças, adolescentes e jovens a lidarem com a realidade de forma descontextualizada, o que tem repercussões diretas na maneira como elas compreendem e se relacionam com as experiências de suas próprias vidas. Compreende-se, portanto, que o modelo de educação instaurado desde a modernidade, influenciado pela racionalidade científica, associa a formação ao desenvolvimento do sujeito epistêmico (FERREIRA, 2007, p. 143).

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Sob este cenário, utilizaremos como base de reflexão para as nossas

problematizações a tematização do cuidado de si, do chamado “último Foucault”, pois a

mesma “permite colocar a questão da individualidade e coletividade de que somos

capazes, bem como das relações que elas supõem com formas especificas de

conhecimento e auto-conhecimento” (FERRREIA, 2007, p. 144).

Assim, apontamos como objetivo principal da pesquisa em andamento,

investigar as atividades de escrita e escuta desenvolvidas no curso de Educadores

Holísticos, no Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA),

situado na região metropolitana do Recife (na comunidade do Coque), visando

apreender indícios que apontem para uma experiência de cuidado de si.

Nosso pressuposto é que o pensamento tardio de Michel Foucault a respeito do

cuidado de si permite vislumbrar uma via alternativa para os modelos educativos

propagados e praticados na atualidade. O filósofo francês Paul-Michel Foucault (1926-

1984) é considerado um dos grandes pensadores do século XX, tanto pela maneira

inquietante de problematizar seus estudos quanto pelo caráter transgressor de suas

análises acerca dos modos pelos quais os indivíduos, dentro de uma teia intricada de

saber-poder, tornam-se sujeitos. Nascido em uma família tradicional de médicos,

Foucault frustra as expectativas paternas ao interessar-se por história e filosofia.

Entretanto, sua mãe o apoia em seu objetivo e ele termina por ingressar na Escola

Normal Superior francesa, após contatos intensos com Jean Hyppolite, professor do

Collège de France que lhe apresenta as obras de Hegel.

Devido a sua morte, seu projeto mais ambicioso fica inacabado: A história da

sexualidade. O primeiro dos três volumes foi publicado em 1976 com o título A vontade

de saber, tratando do processo pelo qual, durante o período da Idade moderna, a vida

natural dos indivíduos é incluída “nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a

política se transforma em biopolítica” (AGAMBEN, 2010, p. 28). Após um intervalo de

oito anos, publica em 1984, um pouco antes de sua morte, os dois últimos volumes da

série, intitulados, respectivamente, O uso dos prazeres e O cuidado de si. Nessas obras,

Foucault buscou examinar como os antigos gregos e romanos, mediante regras e

condutas estabelecidas naquelas sociedades, constituíam-se enquanto sujeitos de desejo.

Contudo, é importante ressaltar que não se tratava de realizar

uma história dos comportamentos e das práticas, nem mesmo de uma história das idéias antigas relativas à sexualidade. Trata-se simplesmente de reencontrar e de examinar os discursos a partir dos

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quais os indivíduos compreendiam e governavam sua experiência sexual (PRADEAU, 2008, p. 131-132).

No livro Foucault & a Educação, Veiga-Neto (2007) apresenta uma passagem

dita por Pierre Bourdieu sobre o pensador francês: “A obra de Foucault é uma longa

exploração da transgressão, da ultrapassagem do limite social, que se liga

indissoluvelmente ao saber e ao poder” (VEIGA-NETO, 2007, p.15). E é no interior

dessa “ultrapassagem do limite social” que Foucault, um pensador que recusava

qualquer rotulação de seu pensamento, realiza, no início da década de 1980, um

deslocamento surpreendente em suas pesquisas e porque não dizer, em sua própria

maneira de estar no mundo. Se em suas pesquisas da década de 1960, o filósofo

anunciava a “morte do sujeito”, em meados da década de 1970, com a publicação do

primeiro volume da História da sexualidade – A vontade da saber (1976) e do curso Em

defesa da sociedade (1975-1976), no Collège de France, Foucault realiza um balanço

crítico de suas próprias investigações em torno dos saberes desqualificados pela ciência,

ancorando, dessa vez, suas pesquisas no binômio saber-poder, o que levará segundo

Candiotto (2001) a um novo deslocamento em suas pesquisas, quando em seus últimos

escritos e entrevistas ele nos aponta que “o que se trata não é tanto a compreensão das

relações de poder por meio dos micro-poderes, mas principalmente o nexo que as

mesmas estabelecem com a constituição do sujeito” (p.28).

Assim, ele redescobre a filosofia antiga, e as relações que os seus sujeitos

estabeleciam, não com algo exterior, mas uma relação consigo mesmo, ou seja, sujeito

se auto-constituindo por ele próprio. Contudo, vale ressaltar que

o que lhe interessa nessa filosofia [antiga], no entanto, não são as doutrinas, não é a teoria, não são os elementos de conhecimento, mas o que ele chama de “técnicas de subjetivação”. Isto é: ele encontra na sabedoria antiga procedimentos pelos quais o sujeito é convidado a se construir a si próprio, como se a própria vida devesse ser para cada um de nós um material que fosse preciso trabalhar e moldar. A filosofia se entende neste caso como o empreendimento pelo qual cada um é convidado a dar uma forma à sua liberdade e, consequentemente, a se inventar. Passamos então do tema da produção do sujeito pelas máquinas cegas ao da autoprodução do sujeito por ele mesmo (GROS, 2010, p. 179).

Nesse deslocamento efetuado por Foucault em seus últimos anos de trabalho no

Collège de France e no interior do projeto da História da sexualidade, fica evidente que

esses estudos tinham como proposta “uma nova economia das relações de poder por

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meio do uso das ‘formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um

ponto de partida’” (CANDIOTTO, 2001, p. 28).

Destarte, a noção de cuidado de si é o que embasará as pesquisas e análises de

Foucault a partir do uso dos prazeres e o cuidado de si, em que:

Estes escritos tratam da luta interior contra a forma como o poder na sociedade ocidental tem caracterizado o indivíduo, marcando-o com uma identidade, tornando-o sujeito. Mas, para Foucault o que importa não são tais identidades atribuídas pela sociedade disciplinar, e sim como nessa sociedade deu-se a constituição dos modos de existência ou estilos de vida específicos (CANDIOTTO, 2001, p. 29).

Assim, o trabalho está organizado da seguinte maneira. Em um primeiro

momento, abordamos a experiência educativa na modernidade, destacando a concepção

de sujeito unitário oriundo dos ideais iluministas de racionalidade, autonomia e

emancipação. Nesse mesmo movimento, destacamos brevemente a crise produzida pela

não realização desses ideais e consequentemente os impasses gerados nas propostas

educativas.

Em um segundo momento, apresentamos o que compreendemos por cuidado de

si no interior das chaves analíticas do pensamento tardio de Foucault. Por fim,

discutimos a metodologia a ser utilizada em nossa pesquisa que se encontra em

andamento no âmbito da pós-graduação e as considerações/impressões finais do que

propomos problematizar ao longo do artigo.

A experiência educativa na modernidade e a sua crise: em busca de uma via

alternativa para repensar a formação humana

Não é fato recente a forma desastrosa como a maioria das pessoas tem lidado

umas com as outras em suas relações sociais. Os laços de convivência estão cada vez

mais frágeis, de modo que estamos envoltos na manutenção do conforto e segurança de

nosso próprio mundo particular, em detrimento do cultivo de relações altruístas e de

atenção ao próximo. Encontramos essa fragilidade nas relações que estabelecemos com

os nossos vizinhos, muitas vezes marcada pela desconfiança; em nosso ambiente de

trabalho, caracterizado pela competitividade acirrada entre funcionários e insegurança

quanto à manutenção do emprego; nas escolas, vemos alunos violentos, impacientes e,

muitas vezes, canalizando toda essa insatisfação e falta de sentido para os estudos em

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atos agressivos direcionados a si mesmos e aos outros. No interior desse cenário social

desalentador:

está a sensação de que as instituições modernas – tais como os vários aparelhos estatais, a pesquisa científica e a educação escolarizada – estão cada vez mais limitadas para dar soluções a médio e longo prazos para esses problemas. No caso da escola moderna, a situação se apresenta como paradoxal na medida em que entram em conflito duas situações. De um lado, é dessa instituição que, ao longo da Modernidade, se esperou o cumprimento da tarefa de habilitar o maior número de pessoas ao uso da razão e, assim, transformá-las em cidadãos livres. De outro lado, crescem as acusações de que não só a escola moderna não conseguiu atingir essa tarefa, mas, pior, tem contribuído decisivamente para manter e aprofundar as divisões entre ricos e pobres, opressores e oprimidos, dominadores e dominados (VEIGA-NETO, 1995, p. 9).

Assim, antes de adentrarmos na crise da forma-escola que expressa uma das

dimensões do que vem sendo denominado de crise do sujeito faz-se necessário

problematizar o que se convencionou qualificar de modernidade. Segundo Hall, Held &

McLennan apud Deacon & Parker (2002, p. 97), compreendemos por Modernidade:

[...] um agrupamento dinâmico de desenvolvimentos conceituais, práticos e institucionais, associados com a tradição iluminista de pensamento secular, materialista, racionalista e individualista; a separação formal entre o “privado” e o “público”; a emergência de um sistema mundial de nações-estados; uma ordem econômica capitalista expansionista, baseada na propriedade privada [...] o crescimento de imensos sistemas administrativos e burocráticos [...] tal como a escola.

Sob este horizonte, o projeto da modernidade buscou o pleno desenvolvimento

dessas instituições, ancorando-se na racionalidade científica e no crescimento da

industrialização capitalista em várias partes do mundo para a sua efetivação. E nesse

contexto, emerge uma concepção de sujeito essencial e a-histórico. Conforme Birchal

(2007, p. 17) “o sujeito será aquele em torno do qual - por cuja força - o mundo se

dispõe como representação”.

Ele tem: autoposição de si: o sujeito dá a si mesmo a certeza de sua existência a partir do ato de pensar, como consciência de si e primeira certeza na ordem das razões; certeza de si: o sujeito se coloca como consciência certa de si mesma, presença de si a si; fundamento: o sujeito é fundamento do conhecimento, pois a certeza de si é a primeira verdade e traz nela os critérios da verdade; racionalidade: o sujeito se define como puro pensamento, excluindo as esferas do corpo e da sensibilidade. A razão, por sua vez, é compreendida como uma atividade de representação, é ela afinal quem ordena a realidade representada; substancialidade: o sujeito se pensa a si mesmo como substância, res cogitans (grifo do autor). A substancialidade implica a

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unidade, por um lado, e a auto-suficiência, por outro [...] (BIRCHAL, 2007, p. 17, grifo nosso).

Em contrapartida, ao lado desse sujeito possuidor de um núcleo estável,

centrado, unificado e dotado de capacidades de razão e consciência (Hall, 2005), na

atualidade, discute-se a dissolução desse mesmo sujeito, produzindo uma sensação

embaraçosa de crise que se expressa nos próprios modelos de educação. Paul Ricoeur

(apud Birchal, 2007), traz-nos a metáfora das flores que são cortadas em suas raízes

para nos falar sobre os valores propagados no mundo contemporâneo, que não

encontram mais o seu solo fundante no modelo de homem racional e autônomo

inaugurado pelos modernos, causando a crise manifesta na modernidade.

Essa crise presente nos modelos educativos propagados na modernidade seria

produto da não efetivação dos ideais iluministas de sujeito, racionalidade e autonomia –

tão caros ao Esclarecimento,

Nesse contexto, a crise é geradora de impasses no interior das propostas

educativas, pois o que vivenciamos em nossa modernidade é a busca da educação em

atender às necessidades do mercado capitalista, em detrimento de uma formação do

homem, aos moldes do Esclarecimento. Em grande medida, o campo educacional –

precisamente a escolarização formal - ancora-se em pedagogias de cunho

mercadológico e naquelas empenhadas na busca pelo homem “perdido” no interior de si

mesmo: na educação “religiosa; tradicional; liberal; centrada-na-criança [...] fascista;

nacionalista [...] educação para a libertação; construtivista [...] pedagogia crítica”

(DEACON & PARKER, 2002, p. 98). Pois, como ressaltam esses autores, apesar das

diferenças existentes entre esses modelos educacionais no que tange às metodologias

empregadas em sala de aula, bem como as ideologias proferidas, todas se ancoram em

um modelo de homem racional, essencial. Em suma:

[...] essa multiplicidade de discursos educacionais baseia-se num núcleo de práticas e pressupostos ortodoxos próprios da modernidade e derivados da fé iluminista na capacidade da razão para iluminar, transformar e melhorar a natureza e a sociedade. Em obediência a essa fé, os discursos educacionais supõem sujeitos unitários e autoconscientemente engajados numa busca racional da verdade e dos limites de uma realidade que pode ser descoberta (Idem).

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os quais constituíram historicamente o cerne de nosso imaginário social, problematizando a emergência do homem face à sua imaturidade autoinduzida e instalando a formação autônoma do sujeito no âmago do projeto social e epistemológico da modernidade (FREITAS, 2010, p. 168).

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No eixo dessas críticas está o pensamento pós-estruturalista. O mesmo se

caracteriza por uma recusa ao modelo de sujeito e sociedade cunhado pelo iluminismo.

Ao contrário da fé iluminista, o que, tanto os pós-estruturalistas quanto os pós-

modernos têm a nos oferecer são fulgurações (VEIGA-NETO, 1995, p. 11). Isso quer

dizer que o pensamento pós-estruturalista, diferentemente do projeto iluminista, não

está ancorado na criação de verdades absolutas sobre quem deva ser o sujeito, o

conhecimento/o sujeito do conhecimento, e em nosso caso específico a educação. Eles

buscam uma superação das metanarrativas propagadas na sociedade, especialmente na

educação que se tornou um solo fértil para a sua emersão. Nas palavras de Silva (2002,

p. 248):

Isso indica que o pensamento pós-estruturalista, tomando como inspiração as

reflexões geradas por Foucault (Silva, 2002), recusa um modelo de educação que busca

uma resolução absoluta às suas questões, mediante discursos salvacionistas de como

deve ser a sociedade e o sujeito. Entretanto, “que se coloca em seu lugar?” (p. 249).

Esse modelo de pensamento não busca preencher as lacunas deixadas pelo modelo

iluminista de razão e sujeito, mas antes

Pois, caso os mesmos buscassem uma saída segura às questões advindas do

campo educacional, cairiam justamente na crítica que direcionam aos discursos

modernistas em educação.

Curiosamente, sob este mesmo cenário, mas caminhando na contra-corrente,

Jorge Larrosa em sua conferência intitulada Notas sobre a experiência e o saber de

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onde mais as metanarrativas são tão onipresentes e tão “necessárias”? Em que outro local o sujeito e a consciência são tão centrais e tão centrados? Em que outro campo os aspectos regulativos e de governo (no sentido foucaultiano) são tão evidentes? Haverá uma outra área em que os princípios humanistas da autonomia do sujeito e os essencialismos correspondentes sejam tão cultivados? Existirá um outro campo, além da educação, em que os binarismos como opressão/libertação, opressores/oprimidos, tão castigados por uma certa ala do pós-estruturalismo, circulem tão livremente e definam tão claramente? E onde a “Razão” preside tão soberana e constitui um fundamento tão importante? [...]

enfatizar precisamente o caráter transgressivo e subversivo de uma tal perspectiva [...] em que começa por questionar e interrogar esses discursos, desestabilizando-os em sua inclinação a fixá-los numa posição única que, afinal, se mostrará ilusória

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experiência (2002), propõe uma outra possibilidade mais existencial e mais estética de

pensar a educação, mediante o par experiência/sentido. Dentro dessa perspectiva, a

palavra experiência significa “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca [...]”

(LARROSA, 2002, p. 21). Ou seja, a mesma não possui o mesmo caráter dado pelo

cartesianismo, ao ser utilizada como sinônimo de método científico. Pelo contrário, o

tipo de experiência que o autor advoga confere sentido à vida do homem.

Entretanto, o mesmo autor nos aponta para uma pobreza de experiência1 em

nossa sociedade, que para ele seria causada por quatro fenômenos: excesso de

informação, excesso de opinião, falta de tempo e excesso de trabalho. Conforme

Larrosa:

O sujeito moderno, além de ser um sujeito informado que opina, além de estar permanentemente agitado e em movimento, é um ser que trabalha, quer dizer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo “natural” quanto o mundo “social” e “humano”, tanto a “natureza externa” quanto a “natureza interna” segundo seu saber, seu poder e sua vontade [...] crê que pode fazer tudo o que se propõe [...] tudo é pretexto para sua atividade [...] E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece (2002, p. 24, grifos do autor).

Não é difícil perceber que esses elementos fazem parte do modelo societário

capitalista no qual vivemos. Ou seja, nossa sociedade nos impossibilita dar um espaço

para parar e pensar no que estamos fazendo de nossas próprias vidas, pois, para a

emersão dessa experiência significativa, necessitamos desacelerar o nosso motor

existencial, que se encontra ligado a um cruel automatismo.

Requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar [...] parar para sentir, sentir mais devagar [...] suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza [...] (idem).

Todavia, quantos de nós estamos dispostos a pagar um preço tão alto? Pois bem,

é nesse cenário que emerge o sujeito da experiência. Como bem nos lembra Larrosa

(idem), esse sujeito não é aquele do excesso de informação, de opinião; muito menos

aquele dotado de capacidade de julgar. Seria muito mais:

1 Para um aprofundamento, Walter Benjamin In: Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet.

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[...] algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos [...] o sujeito da experiência é, sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos (LARROSA, 2002, p. 24).

Nesse sentido, as reflexões empreendidas por Larrosa (2002) a respeito de como

ocorre no interior das práticas pedagógicas uma experiência do sujeito consigo mesmo,

que ele denomina a “experiência que a pessoa tem de si mesma, a experiência de si” (p.

37), aproxima-se das pesquisas empreendidas por Foucault em sua “fase tardia” quando

o filósofo retoma à filosofia antiga a fim de compreender a maneira pela qual os seus

sujeitos realizavam a experiência de si mesmos – mediante o preceito ético do cuidado

de si. Nessa perspectiva, o sujeito emerge na dependência da experiência, uma vez que

ele é histórico e contingente. Ou seja:

Em seus últimos trabalhos, Michel Foucault declara que o foco de suas

investigações é o sujeito.

Dessa forma, ele analisa a maneira pela qual os seres humanos se tornam

sujeitos, mediante jogos de verdade (FOUCAULT, 2006, p.195). Jogos entendidos

como lutas em torno do estatuto da verdade. Esse seu interesse pelas relações de poder o

transporta a pesquisar as sociedades antigas, saber como os sujeitos das mesmas

problematizavam a si mesmos. Conforme Foucault (2006), essa problematização se

encontrava no campo das artes da existência, “compreendidas como as práticas

racionais e voluntárias pelas quais os homens [...] buscam transformar-se, modificar-se

em seu ser singular [...]” (FOUCAULT, 2006, p. 199).

Nesse contexto, vislumbramos uma possibilidade outra de pensarmos o sujeito, a

sociedade e a educação - compreendida aqui enquanto formação humana - no registro

do cuidado de si foucaultiano.

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a experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma singular, finita, imanente, contingente (LARROSA, 2002, p. 25, grifos do autor).

Gostaria de dizer que, antes de mais nada, qual foi a meta de meu trabalho durante os últimos vinte anos. Não consistiu em analisar os fenômenos do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo, pelo contrário, consistiu em criar uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura [...] (FOUCAULT Apud VEIGA-NETO, 1995, p. 35).

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A experiência do cuidado de si no pensamento tardio de Michel Foucault

Michel Foucault apresenta uma via alternativa para revermos o modelo de

sujeito, sociedade e educação desenvolvidos e praticados na modernidade, que é o

cuidado de si (2008). Assim, compreende-se por cuidado de si a atitude que o sujeito

estabelece consigo mesmo no propósito de alcançar a verdade acerca de sua própria

natureza, caracterizando um exercício ético e espiritual, uma vez que o indivíduo se

coloca a pensar, a trabalhar, a se preocupar consigo utilizando como meio práticas de si.

O cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência. (FOUCAULT, 2004, p. 11).

Na obra A hermenêutica do sujeito Foucault (2004) tenta reconstruir a história

da cultura greco-romana no tocante a relação entre o sujeito e a verdade, através de

asceses2/práticas de si. Nesse contexto, ele também nos chama atenção para o fato de

que em nossa modernidade houve uma inversão do cuidado de si para o conhecimento

de si. Essa alteração seria produto do momento cartesiano3, Ou seja, com o advento da

racionalidade ocidental moderna, o preceito ético do cuidado de si foi ofuscado pelo

preceito délfico do conhecimento de si, em que o acesso à verdade se daria apenas via

cogito, e não mediante um trabalho intenso e ético sobre si mesmo. Esse eclipse da

espiritualidade em nossa modernidade (Freitas, 2010), em que o acesso à verdade se dá

por um ato de conhecimento racional, exclui do sujeito o exercício de uma atitude ética,

“privilegiando as regras de formação do método ou a estrutura do objeto a ser

conhecido” (FREITAS, 2010, p.63). De modo que podemos ter acesso ao real por um

ato meramente racional, filosófico e não mediante uma ascese, uma atitude ética e

espiritual por si mesmo. Em que, compreende-se por filosofia:

2 De modo geral, compreendemos por ascese (ou áskesis), a maneira pela qual o sujeito realiza um trabalho de si para consigo, “transformação progressiva de si para consigo em que se é o próprio responsável por um longo labor [...], tornando-se “capaz de verdade” (2004, p. 20)”. É a transformação de si mesmo, através de certas práticas e procedimentos espirituais, em sujeito moral. 3 Esse fenômeno atuaria em duas frentes: primeiro, requalificando filosoficamente o conhecimento de si, com o seu estatuto de acesso à verdade apenas mediante conhecimento racional, e segundo, excluindo o cuidado de si do pensamento filosófico moderno (Hermenêutica do sujeito, 2004).

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[...] esta forma de pensamento que se interroga, não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do falso [...] creio que poderíamos chamar de “espiritualidade” o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existências, etc; que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade (FOUCAULT, 2004, p. 190).

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Posto isto, para termos acesso ao real é preciso uma transformação, uma

conversão do olhar, de modo que ao cuidarmos de nós mesmos, alteramos nosso estado

de ser e estar no mundo, algo que o método racional-cartesiano não é capaz de produzir

(2004). Por isso, o cuidado de si constitui-se como um princípio formativo por

excelência, uma vez que nos possibilita pensar a educação a partir do que ela possui de

mais fundamental e próprio, o seu caráter de liberdade e de felicidade à existência

humana, habilitando as pessoas a superarem os seus automatismos cognitivos,

emocionais e sócio-culturais.

A ética do cuidado de si sinaliza um esforço de ressignificação do papel da formação humana, partindo-se da premissa que a subsunção do princípio do cuidado de si contribuiu para gerar uma visão multidimensional do sujeito, o que tem implicações diretas para o campo educacional e, mais especificamente, para a formação de novas gerações (FERREIRA, 2007, p. 144).

Processos de subjetivação e o cuidado de si como estética da existência

Antes de adentramos nos pormenores das práticas de si investigadas por Michel

Foucault, faz-se necessário que compreendamos, embora sucintamente, a sua trajetória

analítica, na qual são descritas e analisadas as relações que os indivíduos estabelecem

com os sistemas societários e como estes produzem o que viemos denominar de sujeito

moderno, em suas inúmeras facetas, para então, compreendermos o deslocamento

efetuado por Foucault, ao sair da analítica do poder para a analítica de si.

Destarte, na genealogia, o filósofo tenta compreender como o sujeito se

constitui enquanto tal, por meio de relações de saber/poder. Uma vez que ele não

considerava o poder algo negativo. As relações de poder estariam no seio das

sociedades, pois, aonde encontramos indivíduos, também encontramos o poder se

manifestando de alguma maneira. Tendo isto em mente, o interesse de Foucault passa a

ser o poder enquanto elemento capaz de explicar como os saberes são produzidos no

interior das sociedades.

Nessa perspectiva, Foucault analisa as transformações que certas ‘instituições

passaram ao longo de um período que vai do Antigo Regime à Modernidade4, buscando

compreender o que se convencionou chamar de Artes de governar – caracterizando as

4 Período que corresponde ao fim do Renascimento à Idade Moderna.

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práticas pastorais de governo (originários do período pré-cristão e cristão)5 até uma

governamentalidade de Estado (também denominada processos de

governamentalização)6.

Sobre esse ponto, Agamben (2010), chama atenção para o fato de que, com

advento da biopolítica enquanto novo regime de poder da máquina estatal houve tanto a

possibilidade de um avanço nos estudos no campo das ciências humanas e sociais,

quanto “a simultânea possibilidade de proteger a vida e de autorizar seu holocausto”

(Idem, p. 11). Com o advento do Estado governamentalizado7, surgem novas técnicas

de normalização (disciplinar e biopolítica) dos sujeitos, como forma de controle do

corpo e da alma. Resultando “daí uma espécie de animalização do homem posta em

prática através das mais sofisticadas técnicas políticas” (AGAMBEN, 2010, p. 11).

Antes, o governo que era de homens para homens ganha um novo sentido e

ação, direcionado para a população, gerido e acionado pelo Estado. Ainda a respeito da

manifestação biopolítica na sociedade moderna, Agamben (2010, p. 11), elucida que:

O desenvolvimento e o triunfo do capitalismo não teria sido possível, nesta perspectiva, sem o controle disciplinar efetuado pelo novo biopoder, que criou para si, por assim dizer, através de uma série de tecnologias apropriadas, os ‘corpos dóceis’ de que necessitava.

Ultrapassando esses dispositivos de controle há outro exercício do poder

investigado por Foucault, porém, este de natureza muito mais sofisticada que os

anteriores, que é o cuidado de si. Esse trata de uma relação que o sujeito estabelece

consigo mesmo que geraria uma transfiguração e modificação de si, em que o indivíduo

“se constitui, se molda como sujeito moral” (PRADEAU, 2008, p. 135) caracterizada

como estética da existência (Idem). Assim,

5 AMADOR, Pedro Augusto de Queiroz, na dissertação intitulada As formas de governo da juventude na contemporaneidade: um estudo sobre a “Rede Coque Vive”. UFPE, 2010.6 Idem7 “O conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito tempo, para a preeminência, desse tipo de poder que podemos chamar de “governo” sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo (...) o desenvolvimento de toda uma série de saberes (...)” (FOUCAULT, 2008b, p. 143-144).

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a constituição dos processos de subjetivação, tal como refletidos nos trabalhos finais de Foucault, permitem uma investigação original dos processos de formação humana como experiência, ou seja, um processo do qual um sujeito participa ativamente. Por meio de técnicas de si, Foucault localiza a experiência formativa em um tipo de entrelaçamento diverso daquele em que a subjetividade aparece apenas como uma derivada das relações da sabre/poder [...] (FREITAS; NUNES & SILVA, 2010, p. 13).

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Nesse contexto, a preocupação consigo mesmo longe de ser uma atitude egocêntrica,

configura-se como uma prática social intensiva, tomando a forma de “estruturas mais ou

menos institucionalizadas” (FOUCAULT, 2002, p. 57); não se caracterizando, assim,

em exercícios solitários, mas em autênticas práticas sociais.

Para os propósitos específicos do nosso trabalho importa ressaltar que essa

preocupação com o si exige inúmeras técnicas ou asceses. Na tradição do cuidado de si

a escrita pessoal, por exemplo, possui amplo destaque, de modo que as pessoas

tomavam notas sobre si próprias, das atividades que realizavam durante o dia: “tomar

notas sobre as leituras, as conversas, as reflexões que ouvimos ou que fazemos com nós

mesmos; conservar cadernos de apontamentos sobre assuntos importantes...”

(FOUCAULT, 2004, p. 607), tudo isso configura uma importante e movimentada

atividade formativa. Conforme Candiotto (2008), essas escritas de si – denominadas

hypomnémata – serviam como guia de conduta:

A escrita de si assume uma função reflexivo-formativa evidente. Era um meio

pessoal de refletir sobre as ações realizadas durante o dia, sobre os objetivos alcançados.

Escreve-se, assim, acerca de suas próprias inquietações morais e intelectuais, da

condição de sua saúde. A finalidade última sendo sempre transformar a alma daquele

que escreve, permitindo realizar um exame de consciência das ações e enriquecendo a

experiência da pessoa com ela mesma e com os outros indivíduos.

Outro procedimento bastante enfatizado nas práticas relativas ao cuidado de si é

chamado escuta ativa. Bastante difundida no mundo antigo (FOUCAULT, 2008), a

escuta ativa se caracteriza por um modelo pedagógico, uma vez que era construído

mediante a relação do mestre com o seu discípulo.

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A escrita é, assim, um elemento de exercício, e um elemento de exercício que traz a vantagem de ter dois usos possíveis e simultâneos. Uso, em certo sentido, para nós mesmos. É escrevendo que, precisamente, que assimilamos a própria coisa na qual se pensa. Nós a ajudamos a implantar-se na alma, a implantar-se no corpo, a tornar-se como que uma espécie de hábito, ou em todo caso virtualidade física [...] escrevemos após a leitura a fim de podermos reler, relar para nós mesmos assim incorporamos o discurso verdadeiro que ouvimos da boca de um outro ou que lemos sob o nome de um outro. Uso para nós; mas certamente a escrita é também um uso para os outros (FOUCAULT, 2004, p. 432-433).

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Embora a característica desse exame fosse o silêncio dos ouvintes, a escuta

consistia em o professor transmitir ensinamentos (denominados lógoi) valiosos para a

transformação interior de seus discípulos, de modo que esses discursos fossem

subjetivados pelos aprendizes. Era uma escuta ativa, de modo que o ouvinte dispendia

muita atenção no propósito de refletir sobre aquilo que estava ouvindo, visando adquirir

algo que ainda não possuía. Sobre isto, Foucault (1994) nos diz que nessa prática de si o

discípulo deveria ouvir em silêncio. Esta escuta de si era condição para a aquisição da

verdade pelo sujeito.

E finalmente, existe a técnica estóica para o exame de si mesmo, denominada

Askêsis. A mesma tem como alvo preparar o indivíduo para a assimilação da verdade de

sua própria realidade; sendo, conforme Foucault (2004) um conjunto de práticas que

possibilita ao homem assimilar a verdade, transformando-a em princípio de ação para a

sua existência, de auxílio para eventos futuros; se ele, realmente assimilou os discursos

necessários para saber lidar com determinadas situações, caso as mesmas se

materializem em sua vida. Dentro desse escopo de ajudar o homem a preparar-se para

eventuais acontecimentos, surge a Meletê – palavra grega que significa meditação –

uma meditação que permite ao sujeito refletir como este reagiria caso se deparasse com

uma situação semelhante àquela a qual meditou. “Imaginar como se articulam diversos

acontecimentos possíveis a fim de experimentar de qual maneira se reagiria: essa é a

meditação” (FOUCAULT, 1994, p.14).

Em busca de uma experiência de cuidado de si: Notas metodológicas

Nesse contexto, o referido artigo se configura como um recorte de nosso projeto

de mestrado, o qual procura refletir acerca de uma experiência formativa realizada no

Curso de Educadores Holísticos, atividade educativa desenvolvida pelo Núcleo

Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis, organização social localizada na

comunidade do Coque (Recife/PE), buscando apreender se as ações formativas de

escrita e escuta, desencadeadas naquele curso, é capaz de potencializar uma experiência

formativa de cuidado consigo mesmo.

A referida investigação encontra-se no âmbito das chamadas pesquisas

qualitativas, uma vez que essas abordagens nos possibilita dar maior atenção à análise

dos significados que as pessoas conferem “às suas ações no meio ecológico em que

constroem suas vidas e suas relações” (CHIZZOTTI, 1998, p. 78). Dentro do

pressuposto dessa modalidade investigativa, os pesquisadores se recusam em adotar um

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modelo de pesquisa experimental (no sentido cartesiano), pois essa determina “um

padrão único de pesquisa para todas as ciências, calcado no modelo de estudo das

ciências da natureza” (idem, p. 78).

Mais especificamente, utilizaremos como norte teórico-metodológico da

investigação o olhar fenomenológico, uma vez que essa visada poderá nos auxiliar na

compreensão das relações que os sujeitos estabelecem consigo mesmos e com os outros

em seu meio, e em nosso caso específico, com o Curso de Educadores Holísticos. Pois

como enfatiza Ferreira (2007, p. 174):

Nesses termos, a fenomenologia considera que a imersão no cotidiano e o

contato com as coisas tangíveis revelam os fenômenos, o que implica que devemos

caminhar além das manifestações objetivas “para captá-los e desvelar o sentido das

impressões imediatas” (Ibidem, p. 80).

Isso não significa obviamente desconhecer a relação paradoxal de Foucault com

a tradição fenomenológica, duramente criticada por ele em vários momentos de sua obra

(NALLI, 2006). Sem dúvida, o diálogo entre Foucault e a fenomenologia é atravessado

por problematizações polêmicas e movediças (DREYFUS & RABINOW, 1984;

HABERMAS, 1990; MACHADO, 1981). No entanto, pretendemos nos situar nas

margens desse tipo de problematização, ou seja, não temos em vista nos mover no

âmbito da recepção foucaultiana da fenomenologia. Nosso propósito é mais singelo.

Considerações finais

Nesse sentido, buscamos ao longo de nosso trabalho problematizar acerca de

algumas questões investigadas por Michel Foucault em boa parte de sua vida

intelectual, precisamente no tocante aos processos de subjetivação mediados pelo

preceito ético do cuidado de si. Embora a nossa pesquisa no nível de mestrado ainda

esteja em andamento, em que seria bastante precipitado trazermos resultados

conclusivos sobre as investigações que estamos empreendendo, porém, isso não nos

isenta de gerarmos reflexões.

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Uma investigação fenomenológica trabalha com ênfase no qualitativo, com o que faz sentido para o sujeito, com o fenômeno posto em suspensão, como percebido e manifesto pela linguagem; e trabalha também com o que se apresenta como significativo ou relevante no contexto no qual a percepção e a manifestação ocorrem.

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Destarte, cremos que, diante do cenário de crise em que se encontra a educação

na atualidade, a noção de cuidado de si nos possibilita repensar a educação além de seus

automatismos e cognitivismos, os quais reduzem drasticamente as experiências que os

sujeitos têm de si mesmos aos parâmetros pré-estabelecidos socialmente. Nesse sentido,

“o cuidado de si configura-se como o imperativo categórico da educação ética. Um

imperativo coextensivo à própria vida” (FREITAS, 2010, p. 185).

Ao refletirmos a educação no interior do registro do cuidado de si emerge para o

sujeito da educação possibilidades outras de repensar a sua própria vida, “modificar a si

mesmo enquanto sujeito de suas próprias ações e realizações” (Idem). Não se tratando

Nesse sentido, partimos do pressuposto de que a experiência formativa objeto de

nossa pesquisa, compactua da experiência de cuidado de si foucaultiano, uma vez que o

curso de Educadores Holísticos tem como objetivo formativo desenvolver as

potencialidades e capacidades de seus alunos, considerando-os pessoas dotadas de

dimensões além da cognitivo-racional e capacitadas a exercer a maestria de suas

próprias vidas em busca da felicidade.

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de assumir tarefas a atividades em que se mede simplesmente a quantidade de saberes apreendidos. A educação é, antes, o que, produzindo formas de experiência de si, conduz o indivíduo a tornar-se sujeito, mediante atos concretos de resistências às formas de vida instituídas (Ibdem).

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