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4 A MEDICINA NA GRÉCIA CLÁSSICA O médico deve descrever a situação anterior, reconhecer a atual e predizer a futura. Esta é a arte que deve praticar. Hipócrates de Cós A estreita continuidade existente entre a filosofia pré-socrática e a narrativa mítica grega pôde ser demarcada, nas páginas precedentes, à luz de uma série de elementos esboçados nos poemas homéricos e hesiódicos, os quais se fizeram recorrentes nos fragmentos dos pensadores originários. 1 Assim foi possível, em concordância com F. M. Cornford e opostamente a J. Burnet, declinar em admitir a tese do “milagre” grego, ou seja, negar peremptoriamente a orfandade do Espírito. Compondo uma imagem modelar, estabeleceram-se as conexões mito-filosofia como no âmbito de uma relação mãe-filho: ainda que o pensamento filosófico represente a adoção de uma nova atitude diante da realidade sendo, portanto, distinto da narrativa mítica ele foi gerado no cerne de uma cultura na qual o mito ainda cumpria a função de trazer luz à densidade do real. Esta é apenas uma das múltiplas perspectivas que se colocam. Em uma sociedade tão versátil e dinâmica como a helênica, pode-se interrogar se aquilo que não se tornou demonstrável em relação à filosofia ruptura inconciliável com o mito , foi de fato realizado no esteio de outro campo do saber. O problema que se põe seria formulável, da seguinte forma: há uma forma de conhecer que não tenha sua origem na verdade revelada, eximindo-se assim da 1 Foram examinados fragmentos de Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia, além de excertos doxográficos sobre Tales de Mileto.

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A MEDICINA NA GRÉCIA CLÁSSICA

O médico deve descrever a situação anterior, reconhecer aatual e predizer a futura. Esta é a arte que deve praticar.

Hipócrates de Cós

A estreita continuidade existente entre a filosofia pré-socrática e a

narrativa mítica grega pôde ser demarcada, nas páginas precedentes, à luz de uma

série de elementos esboçados nos poemas homéricos e hesiódicos, os quais se

fizeram recorrentes nos fragmentos dos pensadores originários.1 Assim foi

possível, em concordância com F. M. Cornford e opostamente a J. Burnet,

declinar em admitir a tese do “milagre” grego, ou seja, negar peremptoriamente a

orfandade do Espírito. Compondo uma imagem modelar, estabeleceram-se as

conexões mito-filosofia como no âmbito de uma relação mãe-filho: ainda que o

pensamento filosófico represente a adoção de uma nova atitude diante da

realidade sendo, portanto, distinto da narrativa mítica ele foi gerado no

cerne de uma cultura na qual o mito ainda cumpria a função de trazer luz à

densidade do real.

Esta é apenas uma das múltiplas perspectivas que se colocam. Em uma

sociedade tão versátil e dinâmica como a helênica, pode-se interrogar se aquilo

que não se tornou demonstrável em relação à filosofia ruptura inconciliável

com o mito , foi de fato realizado no esteio de outro campo do saber. O

problema que se põe seria formulável, da seguinte forma: há uma forma de

conhecer que não tenha sua origem na verdade revelada, eximindo-se assim da

1 Foram examinados fragmentos de Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Heráclito deÉfeso e Parmênides de Eléia, além de excertos doxográficos sobre Tales de Mileto.

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contextura dogmática? A História2 ou a Medicina poderiam ser chamadas a

ocupar esta lacuna. Neste sentido, F. M. Cornford, em seu Principium

Sapientiae,3 argumentou que a medicina hipocrática foi justamente quem cumpriu

este papel, por ter sido construída sobre sólida base empírica. No âmago desta

análise é efetuada uma virulenta crítica à idéia de filosofia fundada na observação

e experimentação como o descrito em relação ao fragmento 100 de

Empédocles de Agrigento4 defendida por J. Burnet, reiterando-se o caráter

inspirado presente na aurora da filosofia. O que se pretende, nas páginas

vindouras, é verificar a existência de elementos, no pensamento pré-socrático,

oriundos da observação tomando como exemplo o filósofo Empédocles ,

além de discutir o alcance da natureza empírica da medicina praticada e

ensinada pelos médicos da Grécia clássica.

4.1. A Questão do “Empirismo” de Empédocles de Agrigento

O filósofo Empédocles de Agrigento viveu e escreveu no século V (por

volta de 495-435 a.C.), na Sicília, tendo sido o único cidadão natural de um estado

dório a alcançar lugar de destaque na filosofia.5 Desempenhou também

importantes papéis políticos em sua cidade, mas foi na medicina, assim como na

filosofia, que Empédocles realmente se destacou, sendo considerado o fundador

da escola médica italiana, cuja existência se estendeu até após os dias de Platão.6

2 Em Principium Sapientiae, F. M. Cornford faz o seguinte comentário sobre a História: “temos umexemplo flagrante de observação e registro por parte dos Gregos, no campo da medicina, nadescrição feita por Tucídides, contemporâneo de Hipócrates, da grande peste de Atenas.” Cf.CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: As Origens do Pensamento Filosófico Grego. Tradução deMaria Manuela Rocheta dos Santos. 3a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. pp. 11-12. Ogrifo é nosso.3 CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., op. cit.4 Relativo à descrição do mecanismo da respiração em analogia ao funcionamento da clepsidra(kleyuvdraς).5 Cf. BURNET, J. O Despertar da Filosofia Grega. Tradução de Mauro Gama. São Paulo: EditoraSiciliano, 1994. p. 162.6 Sobre isto relata J. Burnet: “Para Galeno, Empédocles de Agrigento foi o fundador da escola demedicina italiana, a qual se encontrava no mesmo nível das escolas de Cós e Cnidos: Galeno, Meth.Med. I. 1 h!rizon d aujtoi~ς (as escolas de Cós e Cnidos) (...) kaiV oiJ ejk th~ς ’Italivaς ijatroiv,Filistivwn te kaiV ’Empedoklh~ς kaiV Pausanivaς kaiV oiJ touvtwn eJtai~roi. Filistão era

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Seus fragmentos que restaram cento e quarenta e oito ao todo referem-se a

duas obras: Da Natureza (PeriV fuvsewς) e Purificações (KaqarmoiV), as quais

continham juntas cerca de cinco mil versos.

Empédocles desenvolveu relevantes idéias sobre a fisiologia, em especial

no que se refere às sensações, as quais possuem certa aproximação com Diógenes

de Apolônia7 e Demócrito de Abdera,8 ainda que suas explicações se pautassem

na existência de poros (povroi) subjacentes à capacidade de perceber, como

assinalou Teofrasto no seu De Sensu:

Empédocles apresenta a mesma teoria acerca de todos os

sentidos, ao sustentar que a percepção surge quando

alguma coisa se ajusta aos poros de cada um dos sentidos.

É por isso que um sentido não pode julgar os objetos do

outro, visto os poros de uns serem demasiado largos, e de

outros demasiado estreitos para o objeto percebido, de tal

modo que algumas coisas passam a direito através deles

contemporâneo e amigo de Platão. Pausânias é o discípulo ao qual Empédocles dedicou o poema.”Cf. BURNET, J. op. cit., p. 165.7 Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-socráticos: História Crítica comSeleção de Textos. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1994. pp. 476-477.8 Alexandre de sensu 56, 12 ei!dwla gavr tina oJmoiovmorfa ajpoV tw~n oJrwmevnwn sunecw~ςajporrevonta kaiV ejmpivptonta th~/ o!yei tou~ oJra~n hj/tiw~nto. toiou~toi deV h^san oiJ periVLeuvkippon kaiV Dhmovkriton... [Eles atribuíram vista a certas imagens do mesmo formato que oobjeto, que estavam continuamente afluir dos objetos da visão e a colidir com os olhos. Esta era aopinião da escola de Leucipo e Demócrito...]. Sobre este fragmento, comentam G.S. Kirk, J.E. Raven eM. Schofield: “Leucipo tinha evidentemente adotado a teoria de Empédocles, segundo a qual eflúvios,agora descritos como imagens, ei!dwla, são emitidos pelos objetos e afetam os órgãos dos sentidos.”Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., pp. 452-453. A teoria da sensação deDemócrito é comentada igualmente por C. Galeno, consoante o apontado por P.-M. Morel: Galenopropôs uma imagem contrastada. No Tratado da Experiência Medica o filósofo de Abdera éapresentado como uma autoridade exemplar para o empirismo médico. O testemunho de Galenoconfirma que Demócrito admite o valor da evidência empírica, sem para no entanto, que estaenargeia constitua o ponto de partida de uma inferência indutiva capaz de conduzir ao conhecimentodos princípios. No entanto, quando Galeno aborda a física democrítica, não é feita pequenareferência a qualquer uma explicação fisiológica do processo cognitivo. De fato, os argumentos dosdois elementos tendem a mostrar que o atomismo fracassa para explicar a sensação No entanto, nestetratado, Galeno não acusa Demócrito de incoerência: seu ceticismo não é a conseqüência de suateoria física. Contra Epicuro, o ceticismo de Demócrito exprime a verdade do atomismo. Cf. MOREL,P.-M. Démocrite et la Recherche des Causes. Paris: Klincksieck, 1996. p. 390.

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sem lhes tocar, ao passo que outras não são capazes

sequer de entrar.9

Segundo a tradição, esta é a primeira explicação pormenorizada das

sensações formulada por um filósofo grego. Isto se compõe, muito

provavelmente, com fato de Empédocles entabular, em seu pensamento, uma

genuína defesa dos sentidos, os quais são capazes de produzir um conhecimento

verdadeiro, tese oposta à defendida por Parmênides.10 Ao homem é possível a

percepção graças aos poros dos sentidos, capazes de captar as emanações

produzidas pelos mais distintos objetos11, como o exposto em seu fragmento 89.12

Esta concepção da existência de poros tem participação em outros aspectos da

fisiologia empedocliana, como a respiração, discutida no fragmento 100:

Assim todas as coisas inspiram e expiram. Todos são

providos de canais de carne, pobres de sangue, sobre

toda a superfície do corpo; e em suas extremidades, a

superfície extrema da pele é perfurada por muitos poros,

de modo a reterem o sangue, permitindo contudo a livre

passagem de ar. E quando o fino sangue se afasta (dos

poros), penetra neles impetuosamente o ar, para deles

ser expirado novamente quando o sangue retorna; assim

9 Teofrasto de sensu 7 (DK 31 A 86) ’Empedoklh~ς deV periV aJpasw~n (sc. aijsqhvsewn) oJmoivwς levgeikaiV fesi tw~/ ejnarmovttein eijς touVς povrouς touVς eJkavsthς aijsqavnesqai• dioV kaiV ouj duvnasqaitaV ajllhvlwn krivnein, o@ti tw~n meVn eujruvteroiv pw~ς, tw~n deV stenwvteroi oiJ povroi proVς toVaijsqhtovn, wJς taV meVn oujc aJptovmena dieutonei~n taV d’ o@lwς eijselqei~n ouj duvnasqai. Cf. KIRK,G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 324.10 De acordo com G.S. Kirk, J.E. Raven e M. Schofield “Empédocles lamenta a compreensão humanaextremamente limitada das coisas que a maioria dos homens alcança através dos sentidos, maspromete que uma utilização inteligente de toda a evidência sensorial acessível aos mortais, apoiadana sua própria intuição, nos há de clarificar cada uma das coisas (posição que vai contra aspretensões de Parmênides).” Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., pp. 298-299.Neste mesmo sentido comenta J. Burnet: “Bem no início de seu poema, Empédocles fala com irritaçãodaqueles que declaravam ter encontrado o todo (fr. 2). Ele até chama isso de ‘loucura’ (fr. 4). Não hádúvida de que está pensando em Parmênides. Sua posição, no entanto, não é cética. Apenas desaprovaa tentativa de construção de uma teoria do universo de uma hora para a outra, em vez de entendercada coisa com que deparamos ‘no aspecto em que ela é clara’ (fr. 4). E isso significa que nãodevemos, como Parmênides, recusar o concurso dos sentidos.” Cf. BURNET, J. op. cit., p. 186.11 Cf. BARNES, J. Filósofos Pré-socráticos. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Editora MartinsFontes, 1997. p. 211.

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como quando uma menina brinca com uma clepsidra de

brilhante bronze: enquanto conservar sua graciosa mão

sobre a boca (da clepsidra) e mergulhá-la no macio corpo

da água prateada, não entrará água no vasilhame, pois o

peso do ar comprimido contra os estreitos orifícios o

impedirá, até que (a moça) liberte a corrente de ar

comprimida; então, deixa o ar um espaço vazio, que é

ocupado em igual medida pela água (...).13

No trecho acima citado no Da Respiração de Aristóteles é exposto o

complexo mecanismo de respiração proposto por Empédocles, para quem o ar

era, em verdade, uma substância. Neste processo, o filósofo de Agrigento defende

que o ar quente expelido pela boca é substituído no interior do corpo por ar fresco

aspirado pelos poros presentes na pele da caixa torácica. Estes poros, em um

momento posterior, liberam o ar aquecido, possibilitando a entrada de novo ar

pela cavidade oral; desse modo, tem-se um movimento cíclico de entrada e saída

de ar, o qual é promovido pelo “calor do fogo interno”.

12 gnouvς, o@ti pavntwn eijsiVn ajporroaiv, o@ss’ ejgevnonto... [Sabendo que de tudo o que surgiudecorrem emanações]. Cf. BORNHEIM, G.A. Os Filósofos Pré-socráticos. 13a edição. São Paulo:Editora Cultrix, 1999. p. 76.13 w%de d’ ajnapnei~ pavnta kaiV ejkpnei~• pa~si livfaimoisarkw~n suvriggeς puvmaton kataV sw~ma tevtantai,kaiv sfin ejpiV stomivoiς pukinai~ς tevtrhntai a!loxinrJinw~n e!scata tevrqra diamperevς, w@ste fovnon mevnkeuvqein, aijqevri d’ eujporivhn diovdoisi tetmh~sqai.e#nqen e#peiq’ oJpovtan meVn ajpai?xhi tevren ai%ma,aijqhVr paglavzwn katai?ssetai oi!dmati mavgrwi,eu^te d’ ajnaqrwviskhi, pavlin ejkpnevei, w@sper o@tan pai~ςkleyuvdrhi paivzousa dieipetevoς calkoi~o eute meVn aujlou~ porqmoVn ejp’ eujeidei~ ceriV qei~saeijς u@datoς bavpthisi tevren devmaς ajrgufevoio,oujdeiVς a!ggosd’ o!mbroς ejsevrcetai, ajllav min ei!rgeiajevroς o!gkoς e!swqe peswVn ejpiV trhvmata puknav,eijsovk, ajpostegavshi pukinoVn rJovon• aujtaVr e!peitapneuvmatoς ejlleivpontoς ejsevrcetai ai!simon [email protected]$ς d’ au!twς, o@q’ u@dwr meVn e!chi kataV bevnqea calkou~porqmou~ cwsqevntoς brotevwi croi< hjdeV povroio, aijqeVr d’ ejktoVς e!sw lelihmevno" o!mbron ejruvkei,ajmfi puvla" hjqmoi~o dushcevoς a!kra kratuvnwn,Cf. BORNHEIM, G.A., op. cit., p. 77. O grifo é nosso.

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Todo o mecanismo é comparado a um artefato da época, a clepsidra

(kleyuvdraς), utilizada para servir vinho e outros líquidos. Este contexto a

associação explícita, no texto, com fato corriqueiramente observado dá

sustentação para J. Burnet, entre outros argumentos, afirmar que havia

experimentação entre os gregos e, posto isto, defender uma teoria empírica do

conhecimento para os filósofos pré-socráticos, na “esteira” de suas elucubrações

acerca de Empédocles.14 Para este autor, o fato de os primeiros filósofos terem

como principal preocupação as questões relativas à fuvsiς, significaria um

verdadeiro “marcador” de que estes pensadores poderiam ter desenvolvido suas

idéias a partir de observações e testagens da natureza, ou seja, a partir da

experiência. Sobre isso fala J. Burnet:

Se pudermos apontar os casos em que indiscutivelmente

se usou o método da experimentação e da observação, é

legítimo supormos que outros houve dos quais nada

sabemos por não terem interessado aos compiladores de

quem estamos dependentes.15

Este comentário conduz à possibilidade de o pensamento filosófico,

usando como modelo o fragmento 100 de Empédocles, ter sido desenvolvido

ou fomentado a partir da observação e da experimentação, a uma posterior

formulação de conceitos sobre o real, consoante o analisado no capítulo anterior.

Compreende-se que Empédocles toma uma concepção sua acerca da respiração

baseada na substancialidade do ar e na existência de poros na superfície do corpo

e, no momento a seguir, estabelece uma analogia com o funcionamento da

clepsidra, como se quisesse fundamentar o conceito já proposto através de

elementos obtidos pela observação. É fato que o filósofo chega à conclusão de que

o ar realmente consiste em uma certa substância não sendo o vazio , uma vez

que a sua saída do vasilhame é seguida, ato contínuo, pela entrada de água sai

14 Cf. discussão acima, entabulada no capítulo 2.15 Citado em CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., p. 5.

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A Medicina na Grécia Clássica 128

uma substância que é “substituída” por outra , mas sua formulação é a priori,

ou seja, a leitura atenta do fragmento dá idéia de que a observação é posterior ao

conceito já estabelecido.

Ademais, outro ponto conflitante em relação à tese de J. Burnet de um

conhecimento filosófico oriundo da experiência, é o fato desta hipótese de

“fisiologia respiratória” não ter sido testada (por exemplo, pela imersão em uma

banheira), nem para sua refutação, nem tampouco para sua comprovação. Seria de

se esperar, em um contexto de observação e experimentação como o postulado

por J. Burnet , que o modelo tivesse sido posto à prova. Ou o teria sido e não se

teve posterior “acesso” a estes resultados? Provavelmente não, pois quase cem

anos mais tarde, Platão utilizaria a mesma idéia de Empédocles em seus diálogos,

tratando da fisiologia respiratória no Timeu e da visão no Mênon:

Voltemos a considerar o fenômeno da respiração, para

estudar as causas que o deixaram como presentemente

se encontra. É o seguinte: Uma vez que não há nada

vazio, em que possa penetrar algum corpo em

movimento, e que o ar respirado nos vem de fora, é

evidente para todos que esse ar não entra no vazio, mas

expulsa de seu lugar o ar circunjacente. Por sua vez, o ar

assim impelido empurra seu vizinho, e como

conseqüência dessa necessidade forçosa, todo o ar se

desloca em círculo até atingir de novo o ponto de onde se

inicia a respiração, aí penetra e ocupa o lugar deixado

pelo ar expirado, o que ocorre simultaneamente à

maneira do movimento de uma roda, visto não haver

vazio em parte alguma. Consequentemente, sempre que

o peito e o pulmão jogam para fora o ar, enchem-se

com ar que envolve o corpo, o qual passa através das

carnes porosas, em seu movimento rotativo; e o oposto:

quando esse ar é rejeitado e atravessa o corpo, empurra

para o interior do corpo o ar inspirado pelas passagens

da boca e das narinas.16

16 Pavlin deV toV th~ς ajnapnoh~ς i!dwmen pavqoς, ai%ς crwvmenon aijtivaiς toiou~ton gevgonenoi%ovnper taV nu~n ejstin. %Wd’ oun. ’EpeidhV kenovn oujdevn ejstin eijς o@ tw~n feromevnwn duvnait’

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Sócrates: Não é verdade que falais de certas emanações

dos seres, segundo <a teoria de> Empédocles?

Mênon: Certamente.

Sócrates: E também de poros, para os quais e através

dos quais correm as emanações?

Mênon: Perfeitamente.

Sócrates: E, dentre as emanações, <não dizeis que>

algumas se adaptam a alguns dos poros, enquanto

outras são menores ou maiores?

Mênon: É assim.

Sócrates: E há também, não é?, algo que dás o nome de

visão.

Mênon: Há.

Sócrates: A partir disso tudo então, “atende ao que digo”,

<como> diz Píndaro. A cor é pois uma emanação de

figuras de dimensão proporcionadas à visão e <assim>

perceptível.

Mênon: Parece-me, Sócrates, teres dado, com esta, uma

excelente resposta.

Sócrates: É que talvez tenha sido dada da maneira que te

é habitual; e ao mesmo tempo, creio, percebes que serias

capaz de, a partir dela, dizer também o que é o som, bem

como o odor e muitas outras dentre as coisas deste tipo.

Mênon: Decididamente.17

a#n eijselqei~n ti, toV deV pneu~ma fevretai par’ hJmw~n e!xw, toV metaV tou~to h#dh pantiV dh~lon wJςoujk eijς kenovn, ajllaV toV plhsivon ejk th~ς e@draς wjqei~• toV d’ wjqouvmenon ejxelauvnei toV plhsivonajeiv, kaiV kataV tauvthn thVn ajnavgkhn pa~n perielaunovmenon eijς thVn e@dran o@qen ejxh~lqen toVpneu~ma, eijsioVn ejkei~se kaiV ajnaplhrou~n aujthVn sunevpetai tw~/ pneuvmati, kaiV tou~to a@ma pa~noi%on trocou~ periagomevnou givgnetai diaV toV kenoVn mhdeVn einai. DioV dhV toV tw~n sthqw~n kaiVtoV tou~ pleuvmonoς e!xw meqieVn toV pneu~ma pavlin uJpov tou~ periV toV sw~ma ajevroς, ei!sw diaVmanw~n tw~n sarkw~n duomevnou kaiV perielaunomevnou, givgnetai plh~reς• au^qiς deVajpotrepovmenoς oJ ajhVr kaiV diaV tou~ swvmatoς e!xw ijwVn ei!sw thVn ajnapnohVn periwqei~ kataV thVntou~ stovmatoς kaiV thVn tw~n mukthvrwn divodon.Cf. PLATÃO. Timeu., p. 98 (passo 79 b-c). O grifo é nosso.17 S. Oujkou~n levgete ajporroavς tinaς tw~n o!ntwn kataV ’Empedokleva; M. Efovdra ge. S. KaiV povrouς eijς ou$ς kaiV dij w%n aiJ ajporroaiV poreuvontai; M. Pavnu ge.

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A Medicina na Grécia Clássica 130

As mesmas bases conceituais originárias do pensamento de Empédocles

teoria dos povroi encontram-se alinhavadas nos dois textos platônicos. O fato é

que a idéia empedocliana resistiu ao tempo, não havendo quaisquer indícios, por

mínimos que sejam, capazes de corroborar com a hipótese de que tenham sido

empregados experimentos comprobatórios da fisiologia respiratória. Francis M.

Cornford faz aguda crítica neste sentido:

Ora esta teoria [dos poros] podia ter sido posta à prova

por qualquer pessoa que se sentasse em uma banheira,

com água até o pescoço, e verificasse se havia bolhas de

ar a passar através da água para dentro do peito, ou

deste para fora, quando respirava. Por que razão

ninguém procedeu a esta simples experiência antes de

afirmar dogmaticamente que é assim que respiramos?

Parece certo que ninguém o fez, nem para provar, nem

para refutar a doutrina.18

Torna-se, assim, pouco provável que o filósofo de Agrigento tenha

formulado suas explicações para a função respiratória tomando como base a

observação e/ou experimentação. Em verdade, suas afirmações no livro Da

Natureza (fragmentos de 1 a 111) são tão dogmáticas quanto nas Purificações

(fragmentos 112 a 148), o que pode ser entendido se a primeira obra for

S. KaiV tw~n ajporrow~n taVς meVn aJrmovttein ejnivoiς tw~n povrwn, taVς deV ejlavttouς h# meivzouςei^nai; M. !Esti tau~ta. S. Oujkou~n kaiV o!yin kalei~ς ti; M. !Egwge. S. ’Ek touvtwn dhV ‘suvneς o@ toi levgw’, e!fh Pivndaroς• e!stin gaVr crova ajporrohV schmavtwno!yei suvmmetroς kaiV aijsqhtovς. M. !Aristav moi dokei~ς, w Swvkrateς, tauvthn thVn ajpovkrisin eijrhkevnai. S. !Iswς gaVr soi kataV sunhvqeian ei!rhtai• kaiV a@ma, oi^mai, ejnnoei~ς o@ti e!coiς a#n ejx aujth~ς eijpei~n kaiV fwnhVn o@ ejsti, kaiV ojsmhVn kaiV a!lla pollaV tw~n toiouvtwn. M. Pavnu meVn oun.Cf. PLATÃO. Mênon. Texto estabelecido e anotado por John Burnet. Tradução de Maura Iglésias. Riode Janeiro: Editora da PUC-Rio / Edições Loyola, 2001. pp. 36-37 (72 c-e).18 Cf. CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., p. 9. O grifo é nosso.

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A Medicina na Grécia Clássica 131

contemplada à luz da filosofia revelada de Parmênides19 e a segunda como um

poema com forte inspiração em Hesíodo.20

Deste modo, vê-se que a tentativa de imputar uma origem “empírica” às

concepções de Empédocles e, por extensão, também aos primeiros filósofos

, mostra-se cerceada por sérios problemas de interpretação se não mesmo

tornada impossível isto por conta da natureza das questões com os quais

lidavam os primeiros pensadores. Neste aspecto, é radicalmente díspar o

estabelecimento de uma interrogação sobre o real um problema filosófico

em relação ao enfermo que “bate a porta” com uma dor para ser controlada

uma questão médica. A ordem das indagações filosóficas pré-socráticas não

comportavam uma resolução alicerçada na experiência afinal, como ter uma

experiência de toV a[peiron de Anaximandro de Mileto? Nesta medida, a medicina

grega contemporânea século V a.C. parece estar bem mais próxima de um

saber cujo método tem base na observação, na experiência e, até mesmo, na

experimentação.

4.2. Hipócrates e A Medicina na Grécia

A Medicina grega se constituiu como tevcnh (arte) por volta do século V

a.C., o que se tornou possível graças a nova perspectiva adotada pela escola

hipocrática. Até então, aqueles que atuavam como médicos eram conhecidos

19 De acordo com G.S. Kirk, J.E. Raven e M. Schofield: “Os fragmentos do Da Natureza mostram que,em matéria de metafísica e cosmologia, ele [Empédocles] escreveu com uma profunda preocupaçãocom o pensamento de Parmênides, tanto no que negou quanto no que asseverou; ecos verbais deParmênides e alusões a essa mesma obra são, em conformidade, freqüentes nos versos deEmpédocles. Não é, pois, de surpreender que ele adotasse os mesmos processos verbais que opensador mais antigo, e que, como ele, reivindicasse a autoridade didática tradicionalmente ligada àpoesia épica.” Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 296. O grifo é nosso. Nosentido de filosofia revelada comenta F. M. Cornford: “A filosofia de Empédocles, quer queiramos,quer não, é animada e iluminada de dentro por este dom profético e poético de visão, ainda que aqui,como acontece noutros lugares, as Musas estejam às vezes a contar uma história falsa que apenas seassemelha à verdade.” Cf. CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., p. 200.20 Novamente é reportado o trabalho de G.S. Kirk, J.E. Raven e M. Schofield: “(...) a temática não-parmenidiana das Purificações a queda do homem e as práticas necessárias à sua reabilitação énaturalmente adequada a um tratamento épico ao estilo de Hesíodo, a qual Empédocles muito deveuneste poema.” Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 296. O grifo é nosso.

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A Medicina na Grécia Clássica 132

como asclepíades21 descendentes de ’Asklhpiovς (Asclépio), o deus da

medicina , os quais empregavam procedimentos mágicos visando restabelecer a

saúde dos enfermos. Uma das mais antigas referências à atuação do médico entre

os helenos é encontrada na Ilíada:

Um médico avantaja-se a muitos guerreiros,

Extraindo flechas, espargindo ungüentos fármacos.22

Em linhas gerais, são distinguíveis quatro grandes escolas médicas na

Grécia clássica: duas que já se encontravam consolidadas no final do século VI

a.C. (1) os representantes da Magna Grécia (escola de medicina italiana), e (2)

o grupo de Cirene (situada no norte da África) e duas localizadas na Ásia

Menor e que chegaram ao apogeu por volta século V a.C. (3) os médicos de

Cós e (4) os integrantes de Cnidos.23 Para o escopo da abordagem em curso, o

grande diferencial será o delineamento das características principais constitutivas

da Escola de Cós; sem embargo, sempre que necessário, aspectos conflitantes

desta em relação às demais escolas serão pontuados.

Poder-se-ia dizer que, em uma dada perspectiva, que a questão hipocrática

é assemelhada à questão homérica,24 uma vez que muito tem sido discutido sobre

a impossibilidade de um único autor médico antigo chamado Hipócrates ser o

genitor de toda a obra o Corpus Hippocraticum. Este conjunto é composto por

cerca de sessenta tratados alguns em vários livros que variam amplamente

nos assuntos abordados embriologia, fisiologia, patologia geral, patologia de

21 Cf. GIL, L. La medicina en el período pretécnico de la cultura griega. IN: LAÍN ENTRALGO, P.História Universal de la Medicina. Barcelona: Salvat Editores, 1972. Tomo I. p. 288. Na verdade,mesmo no século V os médicos continuaram a ser conhecidos com tal denominação por exemplo,os partícipes da escola hipocrática eram chamados asclepíades de Cós.22 ijhtroVς gaVr ajnhVr pollw~n ajntavxioς a!llwn ijouvς t’ ejktavmnein ejpiv t’ h!pia favrmaka pavssein. Cf. HOMERO. Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Mandarim, 2001. p. 435.23 Cf. LLOYD, G.E.R. Hippocratic Writings. Translated by J. Chadwick and W. N. Mann. London:Penguin Books, 1983. p. 14.24 Sobre isto P. Vidal-Naquet coloca: “Já se sonhou bastante e às vezes até se delirou sobre opoeta cego. Existiu um Homero, dois Homeros e até, como alguns pensaram, uma multidão deHomeros?” Cf. VIDAL-NAQUET, P. O Mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.p. 14.

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A Medicina na Grécia Clássica 133

condições particulares, ginecologia, diagnóstico, prognóstico, tratamento,

prevenção e aspectos éticos , bem como no estilo de escrita adotado.25 Estas

diferenças algumas das quais marcantes dão a idéia de que, quase

inequivocamente, os textos médicos do Corpus tenham sido escritos por várias

mãos, sob a égide do mestre de Cós.26 Sem embargo, estima-se que alguns dos

textos do Corpus possam ter sido redigidos por médicos da escola de Cnidos.27

O trabalho de Hipócrates abriu uma nova e ampla fronteira para o

desenvolvimento da medicina. Com o objetivo de facilitar a análise da medicina

grega clássica, pode-se distinguir duas instâncias preponderantes: a doutrina e o

método. O estatuto de ambos é distinto: enquanto aquela, como se verá, consiste

em importante herdeira da filosofia pré-socrática, este pressupõe a observação do

enfermo, possuindo assim uma natureza claramente empírica. O método de

observação clínica permanece útil e válido até os dias de hoje, com grande

relevância na prática clínica,28 o mesmo não ocorrendo, no entanto, com a

doutrina hipocrática, a qual, apesar de sua beleza, tornou-se obsoleta com o passar

dos anos e a evolução do conhecimento.29 As implicações relativas a esta

distinção serão analisadas a seguir.

4.3. O Método de Observação Clínica

Antes de se enveredar nas discussões sobre o método da medicina

hipocrática, é necessário que este seja conceitualmente delimitado. O método

pode ser entendido como um certo caminho a ser percorrido de maneira

25 Cf. LLOYD, G.E.R. Hippocratic Writings., pp. 9-10.26 Esta última idéia é praticamente unânime entre os autores. Cf. FRIAS, I. M. Platão Leitor deHipócrates. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2001. p. 7.27 Cf. LLOYD, G.E.R. Hippocratic Writings., p. 10.28 Cf. VIEIRA ROMEIRO, J. Vieira Romeiro Semiologia Médica. 12a edição atualizada pelo Prof.Affonso Berardinelli Tarantino. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1980. 2 volumes.29 O debate sobre evolução ou progresso do conhecimento científico tornou-se um ponto alto nosdebates epistemológicos do século XX. Sem embargo, uma incursão sobre este debate o qual, por sisó, traria subsídios para se escrever várias obras não será levada a cabo por fugir ao escopo geral dainvestigação.

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A Medicina na Grécia Clássica 134

premeditada e refletida30, sendo necessário para isto a adoção de determinadas

regras,31 com vistas à obtenção de um fim, como o elaborado por R. Descartes:

Não recearei, porém, dizer que julgo haver tido muita sorte

de me haver achado desde a juventude em certos

caminhos que me levaram a considerações e a máximas a

partir das quais formei um método pelo qual me parece ter

modo de aumentar gradualmente o meu conhecimento e de

o elevar pouco a pouco àquele ponto mais alto a que a

mediocridade do meu espírito e a curta duração da minha

vida consentirão que chegue.32

Um pouco mais adiante nesta primeira parte do Discurso do Método, R.

Descartes faz nova referência da relação entre método e caminho, colocando o

primeiro como guia em relação a este último:

Assim, não é meu propósito ensinar aqui o método que

deve cada um seguir para bem guiar a sua razão, mas tão-

só fazer ver de que modo procurei guiar a minha.33

O caminho a ser percorrido relaciona-se ao fim a ser obtido por

exemplo, o alcance da verdade como em R. Descartes , mas também aos

“meios” empregados durante o processo. Assim é possível a utilização de métodos

analíticos, sintéticos, dedutivos e indutivos, entre outros.34

30 O método pode ser igualmente conceituado como resultado “dos processos habituais de um espíritoou de um grupo de espíritos, processos que se podem observar e definir por indução, quer para emseguida os praticar mais seguramente, quer para os criticar e mostrar a sua invalidade. ”Cf.LALANDE, A. Vocabulaire Tecnique et Critique de la Philosophie. 14a ed. Paris: PressesUniversitaires de France, 1983. p. 456. O grifo é do autor.31 FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofía. Barcelona: Ariel, 1994. p. 2217.32 DESCARTES, R. Discurso do Método. Tradução de Fernando Melro. Rio de Janeiro: EditoraEuropa América, 1977. p. 20. O grifo é nosso.33 DESCARTES, R., op. cit., p. 21. O grifo é nosso.34 Para J. Ferrater Mora “... pode se falar dos seguintes métodos: (1) Método por definição; (2) Métodopor demonstração ainda que, segundo vimos, a demonstração mesma não seja propriamente ummétodo ; (3) Método dialético; (4) Método transcendental; (5) Método intuitivo; (6) Métodofenomenológico; (7) Método semiótico e, em geral, ‘método lingüístico’; (8) Método axiomático ouformal; (9) Método indutivo.” Cf. FERRATER MORA, J. p. 2219.

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A Medicina na Grécia Clássica 135

O método (oJdovς) empregado na escola médica de Cós é indutivo, podendo

ser descrito como de observação clínica, o que já traz implícita a textura de seu

mister: o uso dos sentidos. A maneira como procede o médico hipocrático, do

ponto de vista metodológico, se estrutura em torno da obtenção de informações

relativas ao enfermo, valendo-se para isto da descrição das queixas e dos fatores

correlatos importantes clima, antecedentes mórbidos, e outros associado à

busca de indícios na avaliação meticulosa do paciente. Assim, pois, têm-se a

história clínica hoje denominada anamnese35 e o exame clínico. No

primeiro caso a história do enfermo é fundamental que o interrogatório,

sobre os diferentes aspectos do doente, seja o mais abrangente possível,

atentando-se especialmente à cronologia e às características dos sintomas36 e

sinais.37 Em relação ao exame clínico, é premente que o indivíduo seja avaliado

como um todo, utilizando-se para isto os cinco sentidos, ou seja, é necessária uma

sólida confiança nas percepções, sem a qual a prática do médico (i*atrovς) torna-

se extremamente prejudicada, senão completamente impossibilitada:

Nas doenças agudas, o médico deve conduzir sua

investigação da seguinte maneira. Primeiro, ele deve

examinar a face do paciente, comparando-a com as faces

de pessoas saudáveis e, especialmente, deve verificar se

35 A ajnavmnhsiς (anamnese) poderia ser traduzida de forma mais acertada como recordação, memória.A rememoração, consoante ao discutido anteriormente — capítulos 1 e 2 —, é uma instância primaz danarrativa mítica. No caso dos aedos gregos a recordação (ajnavmnhsiς) está relacionada à participaçãodas Musas (Mou~sai). Sem embargo, no pensamento de Platão, a perspectiva é deslocada de umâmbito extrínseco a revelação das musas para a intimidade daquele que conhece, ou seja,consiste em um atributo da alma imortal. Uma passagem exemplar acerca desta questão é encontradano Mênon, conforme o excerto a seguir: @Ate oun hJ yuchV ajqavnatovς te ousa kaiV pollavkiςgegonui~a, kaiV eJwrakui~a kaiV taV ejnqavde kaiV taV ejn @Aidou kaiV pavnta crhvmata, oujk e!stin o@tiouj memavqhken• w@ste oujdeVn qaumastoVn kaiV periV ajreth~ς kaiV periV a!llwn oi%ovn t’ ei^nai aujthVnajnamnhsqh>nai, a@ ge kaiV provteron hJpivstato. [Sendo então a alma imortal e tendo nascido muitasvezes, e tendo visto tanto as coisas <que estão> aqui quanto as <que estão> no Hades, enfim todas ascoisas, não há o que não tenha aprendido; de modo que não é nada de admirar, tanto com respeito àvirtude quanto ao demais, ser possível a ela rememorar aquelas coisas justamente que já antesconhecia]. Cf. PLATÃO. Mênon (81 c)., pp. 50-53.36 Sintoma “é uma sensação subjetiva anormal sentida pelo paciente e não visualizada peloexaminador. Exemplos: dor, má digestão, tontura, náusea, dormência. ” Cf. PORTO, C.C. SemiologiaMédica. 4a edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. p. 14.

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A Medicina na Grécia Clássica 136

ela se assemelha à sua própria aparência usual. Tal

semelhança será o melhor sinal, enquanto a desigualdade

será considerada um mais perigoso sinal. Tal como o

seguinte: nariz afilado, olhos encovados, têmporas fundas,

orelhas frias e com os lóbulos dobrados para fora, a pele

sobre a face dura e tensa e ressecada, de cor amarela ou

negra.38

A descrição é minuciosa, tornando-se perceptível o emprego da visão e do

tato, principalmente. Sem embargo, os médicos hipocráticos praticavam a ausculta

dos pulmões pela aplicação do ouvido diretamente sobre a caixa torácica ,

tomavam o pulso, percebiam os odores das excreções, das feridas e do hálito do

enfermo, e, eventualmente, utilizavam o paladar também como instrumento para a

análise.39 Poder-se-ia dizer que o exame clínico de um médico grego antigo se

constituía em uma verdadeira “festa” dos sentidos. Neste mesmo movimento pôde

Empédocles de Agrigento, que como se viu era médico e filósofo, comentar:

Vamos, observa com todas as tuas faculdades como cada

coisa é clara, sem confiar mais na vista que no ouvido, nem

no ouvido ruidoso acima dos esclarecimentos da língua,

nem recuses crédito a nenhum dos outros membros

[órgãos, partes do corpo], por qualquer caminho há uma

passagem para a compreensão, mas apreende cada coisa

por onde ela é clara.40

37 Sinal “é um dado objetivo que pode ser notado pelo examinador pela inspeção, palpação,percussão, ausculta ou evidenciado através de meios subsidiários. Exemplo: tosse, vômito, edema,cianose, presença de sangue na urina.” Cf. PORTO, C.C. op. cit., p. 14.38 Skevptesqai deV crhV w%de ejn toi~sin ojxevsi noshvmasin• prw~ton meVn toV provswton tou~nosevontoς, eij o@moiovn ejsti toi~si tw~n uJgiainovntwn, mavlisqa deV, eij aujtoV eJwutw~/• ou@tw gaVr a#nei!n a!riston, toV deV ejnantiwvtaton tou~ oJmoivou deinovtaton. ei!n d’ a#n toV toiovnde• rJiVς ojxei~a,ojfqalmoiV koi~loi, krovtafoi sumpeptwkovteς, w^ta yucraV kaiV sunestalmevna kaiV oiJ loboiV tw~nw!twn ajpestrammevnoi kaiV toV devrma toV periV toV provswpon sklhroVn kaiV peritetamevnon kaiVkarfalevon ejovn• kaiV toV crw~ma tou~ suvmpantoς proswvpou clwroVn h# mevlan ejovn. Cf.HIPPOCRATES. Prognostic. II. With an english translation by W. H. S. Jones. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1992. pp. 8-9.39 É amplamente conhecido na História da Medicina o fato de alguns clínicos “provarem” a urina dospacientes, como mais um recurso para o estabelecimento do diagnóstico de diabetes mellitus nestecaso, a urina se tornava adocicada.40 Fr. 3, verso 9, Sexto adv. math. VII, 125: ajll’ a!g’ a!qrei pavsh/ palavmh/, ph~/ dh~lon e@kaston,

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A Medicina na Grécia Clássica 137

Um aspecto importante refere-se à atenção cuidadosa ao conjunto de

alterações apresentados pelo enfermo durante a evolução do processo mórbido, ou

seja, como as manifestações clínicas se arrumam no tempo.41 São memoráveis

algumas descrições clínicas presentes no Corpus Hippocraticum, como as

encontradas nos livros Epidemias I e III, dos quais é transcrito o caso a seguir:

Caso XI

A esposa de Dromeades, após dar à luz à filha, com tudo se

dando normalmente, começou no segundo dia a apresentar

calafrios e febre súbita. No primeiro dia ela sentira dor na

região do hipocôndrio, náuseas, calafrios, inquietação e nos

dias seguintes insônia. A respiração era larga, rara,

interrompida como por uma inspiração.

Segundo dia com calafrios. Funcionamento intestinal

fisiológico. Urina leve, branca, turva, como urina que fica em

deposição por um longo tempo e então é agitada. Não havia

depósitos. Sem sono à noite.

Terceiro dia. Próximo ao meio-dia apresentou calafrio, febre

súbita, urina similar à descrição anterior; dor no hipocôndrio,

náusea, insônia e desconforto à noite; surgiram suores frios

sobre todo o corpo, mas a paciente rapidamente recuperou

a temperatura.

Quarto dia. Discreto alivio da dor no hipocôndrio; peso

doloroso na cabeça, algo comatosa, com discreta epistaxe;

língua seca, sede, urina escassa e rala e oleosa; momentos

de sono.

mhvte tin’ o!yin e!cwn pivstei plevon h# kat’ ajkouhVn h# ajkohVn ejpivdoupon uJpeVr tranwvmata glwvsshς, mhvte ti tw~n a!llwn, oJpovsh/ povroς ejstiV noh~sai, guivwn pivstin e!ruke, novei d’ h~/ dh~lon e@kaston. Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit. p. 298 [DIELS, H. Die fragmente dervorsokratiker. 7a ed. Berlim: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1954].41 Aqui pode ser demarcada uma diferença considerada importante entre os médicos hipocráticos daescola de Cós e os representantes do grupo de Cnidos: enquanto os primeiros preocupavam-se emcoletar informações sobre os sinais e sintomas, valorizando-os todos, tanto em suas apresentaçõesquanto em seu ordenamento temporal, os médicos cnidinos voltam-se prioritariamente para a unidadeda doença, desconsiderando alguns achados clínicos que não se “encaixam” adequadamente namoléstia em questão. Uma boa discussão acerca deste problema pode ser encontrado no argument

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A Medicina na Grécia Clássica 138

Quinto dia. Sede, náusea, urina similar, sem funcionamento

intestinal; ao meio-dia apresentou delirium seguido por

episódios rápidos de lucidez; comatosa, com calafrios;

dormiu à noite; permaneceu delirante.

Sexto dia. De manhã apresentou calafrios, rapidamente

recuperando o calor; suores por todo o corpo, extremidades

frias; delirante, respiração rara e profunda. Após episódio de

convulsão iniciada pela cabeça, progrediu para o óbito.42

Os dados obtidos nas avaliações clínicas são minuciosamente registrados

em seus aspectos de maior relevância — observe-se acima a riqueza de detalhes

—, de modo cronologicamente organizado, de forma a permitir que sejam

construídos os dois procedimentos cruciais do método hipocrático: o diagnóstico

(diagnwstikoVn) e o prognóstico (prognwstikoVn),43 os quais são elaborados, em

grande medida, pela experiência adquirida em casos prévios similares — como na

evolução acima descrita. Um e outro são intimamente afins, com o diagnóstico

referindo-se à identificação da condição expressa nos sinais e sintomas presentes

escrito por É. Littré em HIPÓCRATRES. Do Regime nas Doenças Agudas. Introduction, traduction etnotes par Émile Littré. Paris: Baillière, 1839-1861. Tome II. p. 202.42 iav. ThVn Dromeavdew gunai~ka qugatevra tekou~san kaiV tw~n a!llwn pavntwn genomevnwn kataVlovgon deuteraivhn ejou~san rJi~goς e!laben• puretoVς ojxuvς. h!rxato deV ponei~n th~/ prwvth/ periVuJpocovndrion• ajswvdhς, frikwvdhς, ajluvousa kaiV taVς eJcomevnaς oujc u@pnwse. pneu~ma ajraiovn,mevga, aujtivka ajnespasmevnon. deutevrh~/ ajf’ h%ς ejrrivgwsen, ajpoV koilivhς kalw~ς kovpranadih~lqen• ou^ra paceva, leukav, qolerav, oi%a givnetai ejk tw~n kaqistamevnwn, o@tan ajnataracqh~/keivmena crovnon poluvn• ouj kaqivstato. nuvkta oujk ejkoimhvqh. trivth/ periV mevson hJmevrhςejperrivgwse, puretoVς ojxuvς, oura o@moia, uJpocondrivou povnoς, ajswvdhς, nuvkta dusfovrwς, oujkejkoimhvqh• i@drwse di’ o@lou yucrw~/, tacuV deV pavlin ajneqermavnqh. tetavrth/ periV uJpocovndrionsmikraV ejkoufivsqh, kefalh~ς deV bavroς met’ ojduvnhς• uJpekarwvqh• smikraV ajpoV rJinw~n e!staxe•

glw~ssa ejpivxhroς• diywvdeς• oura smikraV leptaV ejlaiwvdea• smikraV ejkoimhvqh. pevmpth/diywvdhς, ajswvdhς, oura o@moia, ajpoV koilivhς oujdevn, periV deV mevson hJmevrhς pollaV parevkrousekaiV pavlin tacuV smikraV katenovei• ajnistamevnh uJpekarwvqh, yuvxiς smikrav, nuktoVς ejkoimhvqh,parevkrousen. e@kth/ prwiV ejperrivgwsen, tacuV dieqermavnqh, i@drwse di’ o@lou• a!krea yucrav,parevkrousen, pneu~ma mevga, ajraiovn• met’ olivgon spasmoiV ajpoV kefalh~ς h#rxanto, tacuVajpevqanen. Cf. HIPPOCRATES. Epidemics I. With na english translation by W. H. S. Jones.Cambridge: Harvard University Press, 1992. pp. 204-207.43 De acordo com I. M. Frias “A medicina grega da época clássica emprega dois procedimentos deinvestigação clínica: o diagnóstico e o prognóstico. O primeiro relaciona-se com a nosologia, isto é,seu objetivo é reconhecer a entidade nosológica que se encontra por trás dos sinais e sintomas. Osegundo diz respeito a uma atitude médica que procura deduzir da observação clínica as regras sobreo curso da sintomatologia.” Cf. FRIAS, I.M. A idéia de tempo na medicina hipocrática. Comunicação

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A Medicina na Grécia Clássica 139

no enfermo, enquanto o prognóstico refere-se à história natural do adoecimento,

ou seja, ao curso que este irá tomar, na dependência dos diversos fatores e dos

achados clínicos que estejam implicados. É assim pois que, nos Aforismos,

pode ter sido descrito que:

Dejeções alvinas escuras, da cor de sangue, que

ocorrem espontaneamente com ou sem a presença de

febre são um mau sinal, e quanto mais perniciosas e

numerosas as cores, pior. Quando causadas por um

purgante o sinal é melhor, e este também não é um mal

sinal quando os matizes escuros [das fezes] são

numerosos.44

Nos casos de icterícia, é um mau sinal quando o fígado

fica endurecido.45

Sempre que ocorrem mudanças no corpo, por exemplo se

ele fica alternadamente frio e quente, ou se ocorre uma

mudança na coloração da pele, esse é um sinal de moléstia

prolongada.46

No primeiro e segundo trechos o termo grifado, sinal, é um indicativo da

importância de se ver, observar, as alterações apresentadas pelo enfermo como

a mencionada utilização da visão e do tato, os quais tornam possível antever o

desfecho. No terceiro excerto, o encontro de determinadas alterações as

mudanças no corpo é preditor de que a enfermidade se arrastará por um longo

Apresentada no Colóquio Tempo: Debates Provocados do Grupo de Física Teórica José Leite Lopes.Petrópolis, Centro de Cultura Raul de Leoni, dezembro de 2002. p. 3.44 ‘Upocwrhvmata mevlana oJkoi~on ai%ma, ajpoV tautomavtou ijovnta, kaiV suVn puretw~/, kaiV a!neupuretou~, kavkista• kaiV oJkovsw/ a#n crwvmata pleivw kaiV ponhrovtera h/, ma~llon kavkion• suVnfarmavkw/ deV a!meinon, kaiV oJkovsw/ a#n pleivw crwvmata h/, ouj ponhrovn. Cf. HIPÓCRATES.Aforismos. IV. Comentários de Carlos Brunini. 1a edição. São Paulo: Editora Typus, 1998. p. 108. Ogrifo é nosso.45 ’En toi~sin ijkterikoi~si toV h%par sklhroVn genevsqai, ponhrovn. HIPÓCRATES. Aforismos.VI., p 142. O grifo é nosso.46 KaiV o@kou ejn o@lw/ tw~/ swvmati metabolaiv, kaiV h#n toV sw~ma yuvchtai, h# auqiς qermaivnhtai, h#crw~ma e@teron ejx eJtevrou givnhtai, mh~koς nouvsou shmaivnei. Cf. HIPÓCRATES. Aforismos. IV.,p. 111.

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A Medicina na Grécia Clássica 140

tempo. Deste forma se constitui o prognóstico. Coligindo as informações, o

clínico torna-se capaz de predizer os momentos críticos do mal, sua duração e a

maior possibilidade de um desfecho favorável ou do óbito. Um clássico da

medicina brasileira, escrito por J. Vieira Romeiro na primeira metade do século

passado, esclarece que o prognóstico47

tem por fim prever a evolução e o término das doenças,

bem como as desordens que, determinadas pelos

processos mórbidos, podem subsistir.48

Depende igualmente do diagnóstico e do prognóstico a terapêutica a ser

instituída para um dado doente, de acordo com o tratado Do Regime nas Doenças

Agudas.49 Assim, de uma avaliação correta dos elementos que permitem

prognosticar sinais, sintomas, características climáticas locais, estação do ano,

e outros , estabelecer-se-á o tratamento mais pertinente para um dado caso.50

Sem embargo, o próprio Hipócrates adverte sobre as limitações do prognóstico,

como no seguinte excerto:

47 A despeito de ter sido utilizado um texto da medicina contemporânea para se traçar o contexto doprognóstico na medicina hipocrática, é mister que se diferencie as relações entre este e o diagnósticonestes dois momentos da história da medicina, consoante o bem demarcado por I. M. Frias “Naatualidade, o prognóstico deriva do diagnóstico. Para um médico hipocrático, no entanto, emitir umjuízo diagnóstico é ao mesmo tempo prognosticar, tais procedimentos estão associados.” Cf. FRIAS,I.M. A idéia de tempo na medicina hipocrática., p. 348 Cf. VIEIRA ROMEIRO, J. Vieira Romeiro Semiologia Médica. 12a edição atualizada pelo Prof.Affonso Berardinelli Tarantino. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1980. Volume 1. p. 3.49 Cf. HIPÓCRATES. Do Regime nas Doenças Agudas. Introduction, traduction et notes par ÉmileLittré. Paris: Baillière, 1839-1861. Tome II.50 As condutas terapêuticas são bastante variáveis nos tratados hipocráticos, o que se deve,provavelmente, à diversidade dos autores. De um modo geral, os médicos hipocráticos acreditavam nopoder curativo da própria fuvsiς e, por conta disto, muitas vezes evitavam intervenções na histórianatural das enfermidades. Para isto eram prescritos, quando estritamente necessário, ar puro, banhos desol, uma dieta adequada, sangrias moderadas, misturas de mel com água ou mel com vinagre,ginástica, massagens, purgativos suaves e eméticos. Em relação a estes dois últimos — purgativos eeméticos — o sentido básico era “eliminar” — ou seja, extrair — os humores excessivos através dasfezes, vômitos, urina e suores, o que era conhecido como catarse; com esta finalidade eram usados,geralmente, o heréboro negro (purgante) e o heréboro branco (emético). Outros componentesempregados incluiam: enxofre, chumbo, água do mar, mandrágora, coriandro, ópio, beladona, salsa,meimendro, loureiro, lótus, incenso, heréboro, aipo, azeite, linho, cebola silvestre, cortiça e raiz degranado, manjericão, farinha de trigo, vinho, vinagre frio e quente, leite de cabra, de vaca e dejumenta, além do alcatrão, empregado como antisséptico no tratamento de feridas infectadas. Cf.HIPÓCRATES. Aforismos. Comentários, p. 50-52.

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A Medicina na Grécia Clássica 141

Em moléstias agudas, não é aconselhável prognosticar a

morte ou a recuperação.51

É forçoso reconhecer que este tipo de previsão só é possível pelo

comportamento similar que uma entidade nosológica adquire nos diferentes

indivíduos, apesar da variabilidade que pode estar presente, na dependência da

constituição orgânica daquele que padece, a diavqesiς.52 Ainda que os médicos

hipocráticos não reconheçam a existência de uma doença “em si” na verdade

existem doentes53 , há algo que é subjacente e recorrente no modo

segundo o qual as distintas condições atingem o homem. Deste modo, como o

bem pontuado por P. Laín Entralgo, os médicos hipocráticos procuravam

distinguir e descrever os modos típicos de adoecer.54 Neste sentido, claramente,

como na medicina contemporânea, a doença é uma abstração.

O prognóstico pode trazer também informações sobre aspectos prévios da

doença alguns dos quais, inclusive, olvidados pelo paciente compondo

assim um todo para a moléstia em questão.55 É possível conhecer o curso de um

dado mal a partir da avaliação judiciosa dos achados clínicos, sobretudo porque

casos semelhantes puderam ser identificados, acompanhados e investigados. O

método é completamente indutivo: dos sinais e sintomas pode ser arregimentado

um todo correspondente ao homem enfermo; a partir da identificação de

51 Tw~n ojxevwn noshmavtwn ouj pavmpan ajsfaleveς aiJ proagoreuvsieς, ou!te tou~ qanavtou, ou!teth~ς uJgieivhς. Cf. HIPÓCRATES. Aforismos., p. 85.52 diavqesiς (diáthesis) pode ser traduzido como constituição ou disposição íntima do corpo de umadada pessoa, quer na saúde quer na moléstia. Cf. LITTRÉ, É. Dictionnaire de Médecine. 21 ed. Paris:Baillière, 1908.53 Para I. M. Frias “Como sustenta o autor do tratado sobre o Prognóstico, certos conjuntos de sinais esintomas constituem uma síndrome que é observada em quadros clínicos com evolução similar notempo. O que importa é o estabelecimento de um juízo prospectivo sobre tal evolução. Não o nome dadoença, mas as características dos conjuntos sindrômicos, seu desenvolvimento no tempo astransformações que apresentam na maioria dos ‘casos’ observados.” Cf. FRIAS, I. M. Platão Leitorde Hipócrates., p. 15. De modo similar esclarece M. Grmek: “Os médicos hipocráticos estudam etratam os doentes e não as doenças. Eles estão bem conscientes que as doenças não existem comoseres mas somente como ferramentas intelectuais permitindo compreender certas regularidades dosprocessos naturais.” Cf. GRMEK, M. La pratique médicale. IN: GOUREVITCH, D. Hippocrate: del’art médical. Traduction d’ Émile Littré. Paris: Le Livre de Poche, 1994. p. 51.54 Cf. LAÍN ENTRALGO, P. La Medicina Hipocrática. Madrid: Alianza Editorial, 1987. p. 411.55 Cf. FRIAS, I. M. Platão Leitor de Hipócrates., pp. 9-10.

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A Medicina na Grécia Clássica 142

“padrões” recorrentes de adoecimento dos particulares é possível a

elaboração de uma nosografia e mais, a construção de uma nosologia.56 Deste

modo, parte-se do particular para o geral, na busca da unidade a entidade

nosológica , como o realizado nas belas descrições nos Livros I e III das

Epidemias, nos quais surgem termos para nomear as doenças como, por

exemplo, fqivsiς.57 Assim:

DOENÇA

Enfermo Enfermo Enfermo Enfermo

REPERTÓRIO DE SINAIS E SINTOMAS

O processo indutivo cujo ponto de partida é a “coleta” de informações,

utilizando-se para isto os sentidos, a arregimentação das mesmas em um grupo

sindrômico presente nos enfermos e a articulação das similaridades apresentadas

por estes e que se repetem em uma dada condição é, em sua intimidade, a

constituição de um saber cuja base é eminentemente empírica. Deste modo, em

seu trabalho Platão Leitor de Hipócrates, I. M. Frias pôde estabelecer que:

56 Como já dito, os médicos de Cós compreendem a moléstia como uma entidade abstrata, que sópossui uma inserção no real enquanto processo mórbido no indivíduo. Este problema é alinhavado porP. Laín Entralgo no livro La Medicina Hipocrática: “a descrição clínica dos asclepíades de Cós foicomumente mais patográfica que nosográfca, mais atenta à realidade individual do caso estudado queao ‘a priori’ de um esquema tipificador escolarmente transmitido e aprendido. As histórias clínicasdas Epidemias I e III são provas incontestáveis desta básica disposição mental do médico. (...) Omédico de Cós reconhece, pois, a existência real destes ‘modos típicos’ de adoecer, e só condena osabusos dos velhos cnidinos na enumeração distintiva de sua diversidade.” Cf. LAÍN ENTRALGO, P.La Medicina Hipocrática. Madrid: Alianza Editorial, 1987. pp. 411-412.

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A Medicina na Grécia Clássica 143

A razão de ser do método é, então, facultar ao médico um

“olhar sinóptico” que frente ao emaranhado de dados

fornecidos pela observação clínica encontre a “unidade de

doença” de que fala Littré.58

Trata-se de um movimento intelectual que leva da parte ao todo. É

exatamente este “salto” a mutação conceitual de passar dos particulares para o

geral que, para Aristóteles, configura a tevcnh (arte):

A arte aparece quando, de um complexo de noções

experimentadas, se exprime um único juízo universal dos

[casos] semelhantes.59

Podem parecer claro aos olhos de hoje século XXI os problemas

levantados na utilização do método indutivo empregado pela medicina

hipocrática, mormente após as virulentas críticas de alguns filósofos modernos,

como no caso do ceticismo de D. Hume na Investigação sobre o Entendimento

Humano, ao comentar a idéia de causalidade:

Quando olhamos para os objetos ao nosso redor e

consideramos as operações das causas, não somos jamais

capazes de identificar, em nenhum caso singular, nenhum

poder ou conexão necessária, nenhuma qualidade que ligue

o efeito à causa e torne o primeiro uma conseqüência

infalível da segunda. De fato, tudo o que descobrimos é que

o efeito realmente se segue à causa. O impulso da primeira

bola de bilhar é acompanhado do movimento da segunda, e

isso é tudo o que é dado a nossos sentidos externos. (...) e

tudo o que a experiência nos ensina é como um

acontecimento segue-se constantemente a outro, sem nos

instruir acerca da conexão oculta que os mantém ligados e

os torna inseparáveis. (...) Mas filósofos, que levam seu

57 fqivsiς é traduzido como consumpção; o termo tísica (tuberculose), daí deriva. Cf. LITTRÉ, É.Dictionnaire de Médecine. 21 ed. Paris: Baillière, 1908.58 Cf. FRIAS, I. M. Platão Leitor de Hipócrates., p. 17.

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A Medicina na Grécia Clássica 144

exame um pouco mais longe, percebem imediatamente que,

mesmo nos acontecimentos mais familiares, a energia de

causa é tão ininteligível quanto nos mais inusitados, e que

apenas aprendemos pela experiência a conjunção

freqüente de objetos, sem sermos jamais capazes de

compreender algo como uma conexão entre eles.60

A causalidade seria assim, para D. Hume, uma expressão do modo a partir

do qual o ser humano articula as informações provindas de sua experiência do

real, sem que nada possa ser afirmado em relação à sua existência. O que aqui

entra em jogo é o sentimento de crença — acreditar que o anterior e o posterior

são ligados por um “fio”, a causalidade. Neste sentido, as ciências da natureza são

irracionais em sua raiz, uma vez que é a crença o seu sustentáculo. Na textura do

processo indutivo inerente ao método hipocrático, o agudo problema que se

coloca é exatamente o de se passar do particular para o geral, ou seja, a não

possibilidade de se firmar, de forma peremptória, uma lei ou unidade com

base nas informações obtidas, em separado, pelos sentidos. Toda ilação constituir-

se-ía, em última análise, em uma formulação também dogmática e sustentada pelo

simples hábito de se ver desta ou daquela forma. Assim poder-se-ia dizer que a

identificação de quadros nosológicos representaria uma forma de perceber

possível, diante da multiplicidade de sinais e sintomas relativos ao(s) paciente

(s).61

É digno de nota se comentar que a medicina de hoje, de certo modo, ainda

trabalha assim. Durante a avaliação de um dado enfermo, procede-se ao inventário

59 givgnetai deV tevcnh o@tan ejk pollw~n th~ς ejmpeirivaς ejnnohmavtwn miva kaqovlou gevnhtai periVtw~n oJmoivwn uJpovlhyiς. Cf. ARISTOTLE. Metaphysics. English translation by Hugh Tredennick.Cambridge: Harvard University Press, 1996. passo 981 a5.60 Cf. HUME, D. Investigação Sobre o Entendimento Humano. 1a edição. Tradução de José Oscar deAlmeida Marques. São Paulo: Editora Unesp, 1999. pp. 88-97. O grifo é do autor.61 Na verdade, o objetivo ao se “evocar” Hume é mais relacionado à questão de se apontar uma dasmais claras fragilidades do método indutivo, do que de se entabular toda a discussão sobre osdiferentes aspectos deste problema, temática que poderia ser suficiente para se escrever váriosvolumes. O aprofundamento destas indagações pode ser obtido em ROSSI, P. A Ciência e a Filosofiados Modernos. São Paulo: Editora Unesp, 1992. e SMITH, P. O Ceticismo de Hume. São Paulo:Editora Loyola, 1995.

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A Medicina na Grécia Clássica 145

dos sintomas pela anamnese e dos sinais pelo exame físico ,

organizando-os em síndromes,62 as quais demandam a investigação de sua(s)

causa(s) a(s) etiologia(s) , correspondentes às doenças. O método é, neste

aspecto, indutivo, sendo essencialmente o mesmo empregado pelos médicos

hipocráticos na Grécia clássica.

Esta organização torna a medicina da Escola de Cós tributária de um sólido

método empírico63 pois, sem a utilização da percepção, não há possibilidade de se

coletar os dados que serão articulados, permitindo o diagnóstico/prognóstico e o

tratamento. Pode-se demarcar, então, claramente, que a apreensão pelos sentidos é

primaz, consoante ao ensinado por Pablo Neruda em seu belíssimo poema:

Não sei, e não me digas, tu não sabes.

Ninguém sabe dessas coisas.

Aproximando os meus sentidos todos

da tua pele em luz (...).64

A despeito destas considerações gerais, seria pouco produtivo entender a

medicina hipocrática como saber calcado, tão somente, em base empírica. Havia,

neste âmbito, toda uma fundamentação doutrinária que visava, em última

instância, à explicação fisiopatológica do processo saúde-doença, empregando

formulações que escapavam à pura e simples observação dos pacientes.65 Para que

se compreenda a disjunção entre as duas formulações empírica e especulativa

62 A síndrome é entendida como “um conjunto de sinais e sintomas que se apresentam para definiruma entidade mórbida que pode, entretanto, ser produzida por causas muito diversas: síndrome deestenose do piloro, síndrome de irritação meningéia, síndrome de insuficiência hepática, etc.” Cf.VIEIRA ROMEIRO, J. op. cit., Volume 1. p. 3.63 SIQUEIRA-BATISTA, R. Revelação versus empirismo: filosofia e medicina na Grécia antiga. IN:Anais da II Semana dos Alunos da Pós-graduação em Filosofia (SAF) da Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 2002. p. ___.64 “No sé, no me lo digas, no lo sabes. Nadie sabe estas cosas. Pero acercando todos mis sentidos a la luz de tu piel (...)” Cf. NERUDA, P. Os Versos do Capitão. Tradução de Thiago de Mello. 3a edição. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1997. pp. 140-14165 Isto, contudo, não era unânime entre os tratados. Como se verá adiante, o autor Da Medicina Antigafaz críticas severas a esta postura.

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A Medicina na Grécia Clássica 146

é mister que se examinem alguns aspectos doutrinários da medicina de

Hipócrates.

4.4. As Doutrinas Médicas na Grécia Clássica

Se foi possível enquadrar o método clínico de Hipócrates em um bojo

eminentemente empírico, o mesmo não pode ser feito em relação às doutrinas66

médicas. Estas não são oriundas da observação minuciosa dos casos clínicos,

sendo, na verdade, muito mais um fruto da atitude especulativa dos médicos

helênicos. Especialmente nesta interface do saber médico grego, torna-se

perceptível uma decisiva influência da filosofia pré-socrática, como o distinguido

por vários comentadores:

a fisiologia pré-socrática foi (...) a arkhé ou “princípio” da

medicina hipocrática, nos dois sentidos principais que a

palavra arkhé teve para os gregos: o sentido de começo e o

de fundamento.67

Inúmeros trabalhos têm trazido luz sobre o assunto, enfatizando tanto as

influências que a filosofia teria sofrido da medicina grega68, quanto as que,

oriundas da filosofia sobretudo a pré-socrática , tiveram participação

importante na “construção” do pensamento médico. Sobre este último aspecto, W.

Jaeger relata que:

66 Como doutrina utilizar-se-á a definição de A. Lalande: “corpo de verdades organizadas, solidárias efreqüentemente ligadas à ação.” Cf. LALANDE, A. Vocabulaire Tecnique et Critique de laPhilosophie. 14a ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1983. p. 244.67 LAÍN ENTRALGO, P. La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica. Barcelona:Anthropos, 1987. p. 168.68 Como no caso do engendramento de aspectos da medicina hipocrática na filosofia de Platão, nopasso 270c-d do Fedro de Platão: yuch~ς oun fuvsin ajxivw" lovgou katanoh~sai oi!ei dunatoVnei^nai a!neu th~ς tou~ o@lou fuvsewς. Eij meVn ‘Ippokravtei ge tw~/ tw~n ’Asklhpiadw~n dei~ tipiqevsqai, oujdeV periV swvmatoς a!neu th~ς meqovdou tauvthς. [“Sócrates – Mas a natureza da alma,pensas que seja possível de a conceber de uma maneira que vale ser mencionada, independente danatureza do todo? Fedro – (...) Se é em Hipócrates que é preciso crer, ele que é um Asclepíade, não sepode mesmo tratar do corpo sem recorrer a este método”]. Cf. PLATON. Phèdre. Texte établi ettraduit par Léon Robin. Paris: Belles Lettres, 1944. T. IV, 3re partie, passo 270c. Ver também FRIAS,I. M. Platão leitor de Hipócrates., pp. 87-110.

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A Medicina na Grécia Clássica 147

Em todo o lado e em todas as épocas houve médicos, mas

a Medicina grega só se tornou uma arte consciente e

metódica sob a ação da filosofia jônica da natureza. (...) A

Medicina jamais teria conseguido chegar a ciência, sem as

investigações dos primeiros filósofos jônicos da natureza,

que procuravam uma explicação natural para todos os

fenômenos (...).69

Em verdade, a nascente medicina está intimamente inserida na vida geral

do Espírito grego, imprimindo suas marcas e acolhendo elementos outros da

sociedade em um movimento de múltiplas vias. Reforçando o contexto desta

mútua influência filosofia-medicina, pode-se novamente recorrer a W. Jaeger:

Durante o séc. V começam a deslocar-se as relações entre

a filosofia da natureza e a Medicina: os filósofos assimilam

no seu pensamento conhecimentos de Medicina,

especialmente de fisiologia, como Anaxágoras ou Diógenes

de Apolônia, ou são simultaneamente filósofos e médicos,

como sucede com Alcméon, Empédocles e Hípon. (...) por

sua vez, esta fusão de interesses não deixa de repercutir

sobre os médicos, que agora tomam, em parte, as teorias

físicas dos filósofos para base de suas próprias doutrinas,

como se pode ver em algumas das chamadas obras

hipocráticas.70

A questão da inserção pré-socrática no repertório doutrinário da medicina

hipocrática se torna bastante perceptível no âmbito dos problemas relativos à

fuvsiς (physis)71, a qual representa o cerne das preocupações especulativas dos

69 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. 3a edição. SãoPaulo: Martins Fontes, 1995. p. 1003-1004.70 JAEGER, W. op. cit., p. 1008. O grifo é nosso.71 A palavra grega fuvsiς (physis) é traduzida, de forma muito simplista e rudimentar, como Natureza.Etimologicamente, physis é formado pelo sufixo sis e pela raiz verbal phy. Na voz ativa a palavrasignifica produzir e na voz média, crescer. Acredita-se que o termo se origina a partir de característicasdo reino vegetal, estendendo-se mais tarde o significado do verbo a ponto de assumir uma amplidãomáxima. Para W. Jaeger, na Paidéia, “a palavra abarca também a fonte originária de todas as coisas,aquilo a partir do qual se desenvolvem e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento;em outras palavras, a realidade subjacente às coisas de nossa experiência”. Deste modo, a palavra

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A Medicina na Grécia Clássica 148

primeiros filósofos de Mileto. Aqui se torna extremamente marcante a influência

pré-socrática da idéia de uma natureza do cosmo (fuvsiς tou` pantovς) no conceito

de natureza do homem (fuvsiς tou` ajnqrwvpou). As transformações percebidas na

fuvsiς são capazes de imprimir profundos reflexos na natureza humana; ademais,

têm de ser consideradas as leis que norteiam estas transformações e o próprio

movimento da fuvsiς como liames capazes de possibilitar o entendimento da

dinâmica própria do organismo humano. Nesta perspectiva, a totalidade

representada pela fuvsiς teria nítida preeminência sobre o estado de harmonia

desta natureza humana, relacionando-se com a perpetuação da saúde ou com o

processo de adoecer:

Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder

assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do

ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas

diferem radicalmente quanto à sua essência específica e

quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos

quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos

os homens e continuando pelos característicos de cada

região. Deve-se ter presentes também os efeitos dos

diversos gêneros de águas. (...) Quando um médico chegar

a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar,

antes de mais nada, a posição que ela ocupa em relação às

várias correntes de ar e ao curso do Sol... assim como

anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo...

Se conhecer o que diz respeito à mudança das estações e

do clima, e o nascimento e o ocaso dos astros... conhecerá

antecipadamente a qualidade do ano... Pode ser que

alguém julgue isto demasiadamente orientado para a

ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se

alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode

contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança

physis indica aquilo que por si brota, emerge, surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento,pondo-se no manifesto. A physis é tudo o que existe, nada existe que não seja fuvsiς. Paraaprofundamento dessa discussão ver BORNHEIM, G.A. Os Filósofos Pré-socráticos. 13a edição. SãoPaulo: Editora Cultrix, 1999. p. 7.

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A Medicina na Grécia Clássica 149

nas doenças do homem está relacionada com a mudança

do clima.72

Percebe-se uma nítida relação entre o macrocosmo a fuvsiς em sua

completude e o microcosmo fuvsiς tou` ajnqrwvpou de modo que a

primeira é capaz de imprimir modificações na segunda, tanto no estado de saúde

quanto de doença. Articulação similar pode ser apreciada em Platão, como no

Timeu,73 obra na qual há uma íntima relação entre o homem e o cosmo,

especialmente no que se refere à alma, uma vez que a alma humana foi construída

a partir das “sobras” utilizadas na preparação da alma do mundo:

Havendo assim falado, retomou a cratera em que antes

misturara e fundira a alma do mundo, e nela deitou o que

sobrara dos primeiros ingredientes, misturando-os quase da

mesma maneira, porém sem que estes tivessem a pureza

72 ’IhtrikhVn o@stiς bouvletai ojrqw~ς zhtei~n, tavde crhV poiei~n• prw~ton meVn ejnqumei~sqai taVςw@raς tou~ e!teoς, o@ ti duvnatai ajpergavzesqai eJkavsth• ouj gaVr ejoivkasin ajllhvloisin oujdevn,ajllaV poluV diafevrousin aujtaiv te ejf’ eJwutevwn kaiV ejn th~/si metabolh~/sin• e!peita deV taVpneuvmata taV qermav te kaiV taV yucrav, mavlista meVn taV koinaV pa~sin ajnqrwvpoisin, e!peita deVkaiV taV ejn eJkavsth/ cwvrh/ ejpicwvria ejovnta. dei~ deV kaiV tw~n uJdavtwn ejnqumei~sqai taVς dunavmiaς•

w@sper gaVr ejn tw~/ stovmati diaferousi kaiV ejn tw~/ staqmew~/, ou@tw kaiV hJ duvnamiς diafevreipoluV eJkavstou. w@ste ejς poVlin ejpeidaVn ajfivkhtaiv tiς, h%ς a!peirovς ejsti, diafrontivsai crhV thVnqevsin aujth~ς, o@kwς kei~tai kaiV proVς taV pneuvmata kaiV proVς taVς ajnatolaVς tou~ hJlivon. ouj gaVrtwujtoV duvnatai h@tiς proVς borevhn kei~tai kaiV h@tiς proVς novton oujd’ h@tiς proVς h@lionanivsconta oujd’ h@tiς proVς duvnonta. tau~ta deV crhV ejnqumei~sqai wJς kavllista kaiV tw~n uJdavtwnpevri wJς e!cousi, kaiV povteron eJlwvdesi crevontai kaiV malqakoi~sin h# sklhroi~siv te kaiV ejkmetewvrwn kaiV petrwdevwn ei!te aJlukoi~si kaiV ajteravmnoisin• kaiV thVn gh~n, povteron yilhv tekaiV a!nudroς h# dasei~a kaiV e!fudroς kaiV ei!te e!gkoilovς ejsti kaiV pnighrhV ei!te metewvroς kaiVyucrhv• kaiV thVn divaitan tw~n ajnqrwvpwn, oJkoivh/ h@dontai, povteron filopovtai kaiV ajristhtaiVkaiV ajtalaivpwroi h# filogumnastaiV te kaiV filovponoi kaiV ejdwdoiV kaiV a!potoi. Cf.HIPPOCRATES. Airs Waters Places. With an english translation by W. H. S. Jones. Cambridge:Harvard University Press, 1992. pp. 70-73.73 Um relevante comentário de I. M. Frias dá a medida desta questão: “Segundo o relato do Timeu há,portanto, uma estreita relação entre o homem e o cosmo. Ou seja, há uma ligação vital entre anatureza humana e a natureza universal, entre microcosmo e macrocosmo. Ambos são seres vivos,ambos possuem alma e corpo, ambos se movem.” Cf. FRIAS, I. Medicina e Filosofia na GréciaClássica e o Conceito de Melancolia: Um estudo da relação corpo-alma sob o ponto de vista dobinômio saúde-doença. Tese [Doutorado] em Filosofia. Rio de Janeiro: Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, 2002. p. 84.

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A Medicina na Grécia Clássica 150

originária; ficaram dois ou três graus abaixo [a alma humana

imortal].74

Torna-se diáfano que as mudanças ocorridas na fuvsiς têm impacto sobre o

estado de saúde — ou doença — do ser humano. Estes apontamentos referentes às

ligações entre a natureza humana e o cosmo são deslindadas em várias partes do

Corpus, em especial no tratado Ares, Águas e Lugares e na seção III dos

Aforismos,75 nos quais são apresentadas importantes relações entre a medicina, a

astronomia e as condições climáticas.

Outro repertório teórico no qual a influência pré-socrática torna-se vívida é

aquele que tem como base a harmonia dos quatro humores como pressuposto à

saúde. Este equilíbrio dos humores remete à interação das quatro raízes76 no

pensamento de Empédocles de Agrigento, explicação utilizada também por

Platão, no Timeu, conforme o apontado por C. Galeno.77 Os quatro humores

componentes do corpo humano são o sangue (ai%ma), flegma (flevgma), bile

74 Tau~t’ eipe, kaiV pavlin ejpiV toVn provteron krath~ra, ejn w~/ thVn tou~ pantoVς yuchVn kerannuVςe!misgen, taV tw~n provsqen uJpovloipa katecei~to mivsgwn trovpon mevn tina toVn aujtovn, ajkhvratadeV oujkevti kataV taujtaV wJsauvtwς, ajlla deuvtera kaiV trivta. Cf. PLATÃO. Timeu. Tradução deCarlos Alberto Nunes. Belém: Editora da Universidade Federal do Pará, 1977. p. 58 (passo 41 d-e).75 Dois dos aforismos hipocráticos que ilustram bem esta questão são os número 1 e 16 da III seção: AiJmetabolaiV tw~n wJrevwn mavlista tivktousi noshvmata, kaiV ejn th~/sin w@rh/sin aiJ megavlaimetallagaiV h# yuvxioς h# qavlyioς, kaiV ta!lla kataV lovgon ou@twς. [Em geral, as mudanças deestação provocam moléstias, e o mesmo acontece quando grandes mudanças ocorrem dentro damesma estação, seja para o calor ou para o frio.]; Noshvmata deV ejn meVn th~/sin ejpombrivh/sin wJς taVpollaV givneqai, puretoiv te makroiv, kaiV koilivhς rJuvsieς, kaiV sepedovneς, kaiV ejpivlhptoi, kaiVajpovplhktoi, kaiV kunavgcai• ejn deV toi~sin aujcmoi~si, fqinavdeς, ojfqalmivai, ajrqrivtideς,straggourivai, kaiV dusenterivai. [As moléstias mais freqüentes nas estações chuvosas são: febresprolongadas, diarréias, necrose, epilepsia, qpoplexia e amigdalite; e nos anos secos: moléstiasdebilitantes, conjuntivite, artrite e estrangúria.]. Cf. HIPÓCRATES. Aforismos. VI., pp. 95-96.76 Fr. 6, Écio I, 3, 20 tevssara gaVr pavntwn rJizwvmata prw~ton a!kone•

ZeuVς ajrghVς @Hrh te ferevsbioς hjd’ ’AidwneuVς Nh~stivς q’ h$ dakruvoiς tevggei krouvnwma brovteion. [Escuta, em primeiro lugar, as quatro raízes de todas as coisas: Zeus resplandecente, Hera doadora de vida, Edoneu e Nestis, que com suas lágrimas inunda as fontes dos mortais].

Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M. op. cit., pp. 299-300.77 Em uma de suas obras, o médico grego Cláudio Galeno estabelece relações entre os humores e oselementos primordiais: a bile negra relacionar-se-ia à terra (fria e seca), a bile amarela ao fogo (quentee seca), o flegma à água (fria e úmida). Cf. PIGEAUD, J. L’ Humeur des Anciens. Nouvelle Revue de

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A Medicina na Grécia Clássica 151

amarela (colhv xanqovς) e bile negra (colhv melainovς), os quais devem se manter

em equilíbrio para que se estabeleça e se perpetue o estado denominado saúde. O

autor de A Natureza do Homem afirma que:

O corpo do homem é constituído por sangue, flegma, bile

amarela e bile negra; estes fazem a natureza de seu corpo

e através deles se sente dor ou se tem saúde. Ele goza de

saúde perfeita quando estes elementos são devidamente

proporcionais em composição, poder e volume e quando

eles estão perfeitamente misturados, juntos.78

A mistura, a proporção e a quantidade dos humores são determinantes da

sanidade física do homem. Nas situações em que há predomínio de um dos

humores sobre os demais o que geralmente se dá em um determinado local do

corpo79 , o processo patológico se instala, levando ao adoecimento do

indivíduo.80 É interessante pontuar a semelhança desta idéia com o conteúdo

expresso no fragmento subsistente de Anaximandro de Mileto:

... uma outra natureza apeiron, de onde provêm todos os

céus e mundos neles contidos. E a fonte da geração das

coisas que existem é aquela em que a destruição também

se verifica “segundo a necessidade; pois pagam castigo e

Psychanalyse, 32, p. 51-69, 1985 (pp. 62-63)., citando GALENO, C. Des Doctrines d’Hippocrate et dePlaton.78 ToV deV sw~ma tou~ ajnqrwvpou e!cei ejn eJwutw~/ ai%ma kaiV flevgma kaiV colhVn xanqhVn kaiVmevlainan, kaiV tau~t’ ejstiVn aujtw~/ hJ fuvsiς tou~ swvmatoς, kaiV diaV tau~ta ajlgei~ kaiV uJgiaivnei.uJgiaivnei meVn oun mavlista, o@tan metrivwς e!ch/ tau~ta th~ς proVς a!llhla krhvsioς kaiV dunavmioςkaiV tou~ plhvqeoς, kaiV mavlista memigmevna h/• Cf. HIPPOCRATES. Nature of Man. With na englishtranslation by W. H. S. Jones. Cambridge: Harvard University Press, 1992. pp. 10-11.79 De acordo com I. M. Frias “A doença, pelo contrário, resulta do isolamento de um dos humores emalgum sítio orgânico. Tanto o lugar deixado por tal humor quanto o seu novo sítio de localização setornarão doentes: um por falta e o outro por excesso.” Cf. FRIAS, I. M. Platão Leitor de Hipócrates.,pp. 10-11.80 Mas não é apenas este o “mecanismo” de adoecimento relacionado as alterações humorais. Oshumores no estado “cru” seriam deletérios ao indivíduo. Deste modo, mudanças qualitativas doshumores em um mecanismo chamado pelos médicos hipocráticos de cocção (à semelhança dorealizado com os alimentos) teriam um efeito decisivo em amainar a nocividade destes aoorganismo. Cf. HIPÓCRATES. Epidemias. Introduction, traduction et notes par Émile Littré. Paris:Baillière, 1839-1861. Tome II. Também em A Natureza do Homem é comentado: ajlgei~ deV o@tantouvtwn ti e!lasson h# pleVon h/ h# cwrisqh~/ ejn tw~/ swvmati kaiV mhV kekrhmevnon h/ toi~sisuvmpasin. [Dor é sentida quando um desses elementos está em falta ou excesso ou isolado no corposem composição com os outros.]. Cf. HIPÓCRATES. Nature of Man., pp. 10-13.

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A Medicina na Grécia Clássica 152

retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo

com o decreto do Tempo”, sendo assim que ele se exprime,

em termos assaz poéticos.81

Consoante o discutido no capítulo 2, o predomínio de uma das instâncias

contrárias que emergem de toV a[peiron, leva à premência em se expiar a injustiça,

“de acordo com o decreto do Tempo”.82 A “injustiça” de qualquer dos humores

também gera um desequilíbrio, manifesto como doença. Isto se apõe ao

reconhecimento da existência de dois conceitos bastante presentes nas explicações

dos fenômenos fisiológicos e patológicos na medicina hipocrática: a isomoiria e a

compensação (timwriva). O primeiro termo refere-se à idéia de que uma igualdade

de “forças”, sem predomínio violento de uma sobre as outras, traz a harmonia

necessária à perpetuação da saúde. A timwriva relacionar-se-ia à idéia de que o

estabelecimento de uma doença seria conseqüente a uma espécie de compensação

ou reparação, indenização desencadeada pelo predomínio de uma força

ou elemento sobre os demais. Sobre a relação do uso de timwriva com a

filosofia da natureza, esclarece W. Jager:

Galeno e Erotiano S.V. timwrevousa explicam-na como

bohvqeia, e bohqein, e certamente com razão, muito embora

a conexão com conceitos provenientes da antiga filosofia da

natureza, tais como divkh, tivsiς e ajmoibhv, surja com grande

clareza: a causalidade no campo da natureza estende-se

por analogia com a idéia jurídica, como remuneração.83

81 Simplício in Phys. 24, 17 ... ejtevran tinaV fuvsin a[peiron, ejx h%ς a@pantaς givnesqai touVςou*ranouVς caiV touVς e*n au*toiς kovsmouς. ejx w%n deV hJ gevnesivς ejsti toi~ς ou^si, kaiV thvn fqoraVneijς tau~ta givnestai ‘kataV toV crewvn• didovnai gaVr aujtaV divkhn kaiV tivsin ajllhvloiς th~ςajdikivaς kataV thVn tou~ krovnou tavxin’, poihtikwtevroiς ou@twς ojnovmasin aujtaV levgwn. Cf.KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., pp. 117.82 Para G.S. Kirk, J.E. Raven e M. Schofield “O constante intercâmbio entre substâncias contrárias éexplicado por Anaximandro numa metáfora legalista derivada da sociedade humana: a prevalência deuma substância à custa do seu contrário é ‘injustiça’, e a reação verifica-se através da aplicação docastigo, com a restauração da igualdade de algo mais que igualdade, porquanto o prevaricadorfica, também, privado de parte da sua substância original.” Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E.,SCHOFIELD, M., op. cit., p. 119.83 JAEGER, W. op. cit., p. 1005.

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A Medicina na Grécia Clássica 153

Disto se depreende que a cura pode ser alcançada com o restabelecimento

da harmonia (aJrmoniva), no que pode se perceber também a influência do filósofo

pré-socrático Pitágoras de Samos:

Em seguida, voltando-se do macrocosmo da Natureza

para o microcosmo da alma e do corpo humano,

Pitágoras viu que a perfeição do corpo sua beleza,

força e saúde depende de uma harmonia de

elementos materiais; e, de sua época em diante, a teoria

e a prática da medicina grega foram, em grande parte,

regidas pelo princípio de que a cura é a restauração de

um equilíbrio ou uma proporção perturbados pela doença.

O mesmo princípio era aplicado à bondade ou “virtude”

da alma, cuja saúde é perturbada pelos vícios do excesso

e da deficiência. O aperfeiçoamento da alma é a

restauração da harmonia do cosmo humano. Os

desordenados movimentos da paixão e dos desejos

físicos precisam ser controlados e afinados em

Sophrosyne temperança, autocontrole, justeza e

sabedoria.84

Esta mesma disposição priorizando a harmonia pode ser encontrada em

outro filósofo-médico, Alcmeão de Crótona, pré-socrático considerado afim ao

pensamento pitagórico.85 Elaborou importantes doutrinas médicas,86 com destaque

às suas idéias sobre a saúde como ijsonomiva (isonomia), cujo estatuto refere-se

claramente ao pensamento de Anaximandro.87 Écio, um compilador

provavelmente do século II d.C., comenta acerca de Alcmeão:

84 Cf. CORNFORD, F.M. Antes e Depois de Sócrates. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 61-62.85 Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 357.86 Alcmeão de Crótona é considerado o criador da doutrina do cérebro como centro do sensório,constituindo o órgão principal de compilação das sensações. Cf. BURNET, J. op. cit., p. 160.87 John Burnet traz relevante comentário sobre a participação das concepções de Anaximandro nopensamento de Alcmeão: “A teoria de Alcméon sobre a saúde como ‘isonomia’ é ao mesmo tempo aque mais claramente o liga aos primeiros pesquisadores como Anaximandro e também a que teve amaior influência no desenvolvimento subseqüente da filosofia. Ele observou, primeiramente, que ‘amaioria das coisas humanas eram duas’, e com isso queria dizer que o homem era composto do calore do frio, do úmido e do seco, e do restante dos opostos. A doença era justamente a monarquia dequalquer um destes — a mesma coisa que Anaximandro chamara ‘injustiça’ —, enquanto a saúde era

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A Medicina na Grécia Clássica 154

Alcmeão afirma que o mantenedor da saúde é a “igualdade

de direitos” dos poderes, do úmido e do seco, do frio e do

quente, do amargo e do doce, e dos restantes, ao passo

que a “monarquia” de um deles é a causa da doença; é que

a monarquia de qualquer deles é destrutiva. A enfermidade

sobrevem diretamente por excesso de calor ou de frio,

indiretamente por excesso ou carência de nutrição; e o seu

centro é o sangue ou a medula ou o cérebro. Ela surge por

vezes nestes centros a partir de causas externas, de certas

umidades ou do ambiente ou da fadiga ou do

constrangimento ou de causas similares. A saúde, por outro

lado, é a mistura proporcionada das qualidades.88

O mote é basicamente o mesmo: o estado de saúde tem como prerrogativa

o equilíbrio ou proporção dos poderes, estabelecendo-se a enfermidade

quando há corrupção das harmônicas relações, com ocorrência de uma monarkiva,

predomínio de uma ajrchv sobre as demais. A linguagem, em muito, parece fazer

referência ao fragmento de Anaximandro, tanto em relação à ajrchv, quanto em

pagar “castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça” no caso, com o

alto preço de sobrevir a moléstia e, eventualmente, a morte.89

o estabelecimento, no corpo, de um governo livre e com leis igualitárias. Esta era a princiipaldoutrina da escola siciliana de medicina, e na seqüência teremos de considerar sua influência nodesenvolvimento do pitagorismo. Tomada juntamente com a teoria dos ‘poros’, é da maiorimportância para a ciência ulterior.” Cf. BURNET, J. op. cit., p. 161. O grifo é nosso.88 Écio V, 30, 1 (DK 24 B 4) ’Alkmaivwn th~ς uJgieivaς ei^nai sunektikhVn thVn ‘ijsonomivan’ tw~ndunavmewn, uJgrou~, xhrou~, yucrou~, qermou~, pikrou~, glukevoς kaiV tw~n loipw~n, thVn d’ ejnaujtoi~ς ‘monarcivan’ novsou poihtikhvn• fqoropoioVn gaVr eJkatevrou monarkivan. kaiV novsonsumpivptein wJς meVn uJf’ ou% uJperbolh~/ qermovthtoς h# yucrovthtoς, wJς deV ejx ou% diaV plh~qoςtrofh~ς h# e!ndeian, wJς d’ ejn oi%ς h# <periV Diels> ai%ma h# mueloVn h# ejgkevfalon. ejggivnesqai deVtouvtoiς poteV kajk tw~n e!xwqen aijtiw~n, uJdavtwn poiw~n h# cwvraς h# kovpwn h# ajnavgkhς h# tw~ntouvtoiς paraplhsiven. thVn d’ uJgiveian thVn suvmmetron tw~n poiw~n kra~sin. Cf. KIRK, G.S.,RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 271. O grifo é nosso.89 Pertence também a Alcmeão um importante fragmento que procura explicar a mortalidade dohomem: Alcmeão fr. 2, [Aristóteles] Problemata XVII, 3, 916 a 33 touVς ajvqrwvpouς fhsiVn’Alkmaivwn diaV tou~to ajpovllusqai, o@ti ouj duvnantai thVn ajrchVn tw~/ tevlei prosavyai. [Alcmeãodiz que os homens morrem pela simples razão de não poderem juntar o começo ao fim]. Este trecho dámargem a uma série de interpretações como a de G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield queargumentam que, no âmbito de uma mesma vida, “uma pessoa não pode transformar-se de velho emcriança (‘não pode juntar o começo ao fim’)” e, desta feita, o envelhecimento e o passamento sãoinexoráveis. Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 365. Também M. Eliade

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A Medicina na Grécia Clássica 155

Outro filósofo que externou preocupações com a medicina e a fisiologia foi

o pré-socrático Diógenes de Apolônia.90 Ao que tudo indica escreveu apenas um

livro ainda que sobre este fato não haja concordância entre os autores91 , o

qual, entre outros assuntos, trata da natureza do homem. Diógenes afirmava que o

ar origina todas as coisas, consoante a opinião de Teofrasto:

Diógenes de Apolônia, quase o mais novo dos que se

ocuparam destes assuntos (i.e. estudos físicos), escreveu,

na sua maioria, de uma forma eclética, na esteira de

Anaxágoras, em uns assuntos, e de Leucipo, em outros.

Também ele afirma que a substância do universo é o ar

infinito e eterno, a partir do qual, quando se condensa e

rarefaz e muda nas suas disposições, surge a forma das

outras coisas. É isto o que Teofrasto refere a respeito de

Diógenes; e o livro deste, que me chegou às mãos,

intitulado Da Natureza, diz claramente que o ar é aquilo de

que todo o resto se origina.92

Diógenes é colocado na tradição milésia, como discípulo de Anaxímenes,

por ter adotado, de modo similar àquele, o ar (ajhvr) como princípio material. Sem

embargo, é consensual que seu período de vida tenha sido bem posterior ao

traça conjecturas acerca do problema de “unir o começo ao fim” sem no entanto mencionarAlcmeão , comentando que através da anamnesis (ajnavmnhsiς) é possível estabelecer umaunificação das existências passadas com a vigente, a partir da rememoração da primeira existênciaterrena que desencadeou o processo de transmigração. Com isto se perceberia o genuíno sentido que ohomem ou sua alma é imortal. Cf. ELIADE, M. Mito e realidade. Tradução de Pola Civelli. 5a

edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. p. 111.90 Cf. DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução do grego,introdução e notas de Mario da Gama Kury. – 2. Ed. – Brasília: Editora da Universidade de Brasília,1977. p. 266.91 Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., pp. 460-461.92 Teofrasto Phys. op. fr. 2 ap. Simplicium in Phys. 25, 1 (DK 64 A 5) kaiV Diogevnhς deV oJ’Apollwnivthς, scedoVn newvtatoς gegonwVς tw~n periV tau~ta scolasavntwn, taV meVn plei~stasumpeforhmevnwς gevgrafe, taV meVn kataV ’Anaxagoravn, taV deV kataV Leuvkippon levgwn• thVn deVtou~ pantoVς fuvsin ajevra kaiV ou%tovς fhsin a!peiron ei%nai kaiV ajivdion, ejx ou% puknoumevnou kaiVmanoumevnou kaiV metabavllontoς toi~ς pavqesi thVn tw~n a!llwn givnesqai morfhvn. kaiV tauta meVnQeovfrastoς iJstorei~ periV tou~ Diogevnouς, kaiV toV eijς ejmeV ejlqoVn aujtou~ suvggramma PeriVfuvsewς ejpigegrammevnon ajevra safw~ς levgei toV ejx ou% pavnta givnetai taV a!lla. Cf. KIRK, G.S.,RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., pp. 461-462.

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A Medicina na Grécia Clássica 156

filósofo de Mileto, tendo sido contemporâneo de Anaxágoras.93 Posto isto, não faz

sentido pô-lo como discípulo ou “aprendiz” de Anaxímenes, uma vez que

este já estaria morto à época do seu nascimento. O fato de Diógenes ter atribuído

ao ar o estatuto de fundamento da realidade tem grande relevância na formulação

de suas explicações fisiológicas, em especial nas questões relativas às sensações.

O ar seria responsável por todas as sensações no momento em que, provindo do

meio externo, interagisse com o ar existente nos órgãos dos sentidos, sendo

conduzido ao cérebro (ejgkevfaloς), sede para onde acorrem todas as sensações e

onde se dão os processos cognitivos, conforme a opinião de Teofrasto:

O sentido do olfato é produzido pelo ar que rodeia o

cérebro... A audição produz-se sempre que o ar, que se

encontra dentro dos ouvidos, ao ser posto em movimento

pelo ar exterior, se espalha em direção ao cérebro. A visão

ocorre, quando as coisas se refletem na pupila, e ela,

misturando-se com o ar interior, produz uma sensação. Uma

prova disto é que, se há uma inflamação das veias (i.e. as

dos olhos) não se dá a mistura com o ar interior e não se

produz a visão, apesar de existir a reflexão exatamente

como antes. O gosto chega à língua por intermédio do que é

raro e brando. Do tato ele não deu definição, nem de sua

natureza, nem de seus objetos. Mas depois disto, ele tenta

dizer qual é a causa das sensações mais exatas, e que

espécie de objetos elas têm. O olfato é mais apurado para

aqueles que têm menos ar na cabeça, pois mistura-se mais

rapidamente; e, além disso, se um homem o inspira através

de um canal mais comprido e mais estreito; não obstante,

se o olfato fosse simétrico com o ar, no que respeita à

mistura, o homem cheiraria perfeitamente...(...) O

pensamento, como se disse, é causado pelo ar puro e seco;

pois uma emanação úmida inibe a inteligência; por esta

razão, o pensamento diminui durante o sono, a embriaguez

e a saciedade.94

93 Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 459.94 Teofrasto de sensu 39 e ss. (DK 64 A 19) thVn meVn o!sfrhsin tw~/ periV toVn ejgkevfalon ajevri•...thVn d’ ajkohvn, o@tan oJ ejn toi~ς wjsiVn ajhVr kinhqeiVς uJpoV tou~ e!xw diadw~/ proVς toVn ejgkevfalon.

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A Medicina na Grécia Clássica 157

No fragmento citado, há toda uma explicação para as sensações exceto

o tato , havendo, inclusive, citação de um mecanismo fisiopatológico para a

cegueira e uma explanação sobre a acurácia do olfato. Ademais, é mencionada a

dependência do pensamento (fronei~n) em relação ao ar puro e seco, o que faz

lembrar o fragmento 118 de Heráclito de Éfeso, para quem uma alma (yuchv) seca

é mais sábia e melhor.95 A influência desta doutrina pode ser percebida nos

autores hipocráticos, em pelo menos um dos tratados, o Da Doença Sagrada:

Por este motivo, considero que o cérebro é o que mais

poder tem no homem. Pois, se estiver em sãs condições, é

o nosso intérprete das coisas que nascem por intermédio do

ar; e é o ar que dá inteligência. Os olhos e ouvidos e a

língua e as mãos e os pés fazem seja o que for que o

cérebro determine; é que há um elemento de inteligência

em todo o corpo, segundo cada parte partilha do ar, mas é o

cérebro que o transmite à compreensão. Pois, sempre que

um homem absorve a respiração, ela chega primeiro ao

cérebro, e é assim que o ar se espalha pelo resto do corpo

depois de deixar para trás a sua parte melhor no cérebro, e

tudo o que nele é inteligente e possui faculdade de ajuizar.96

thVn deV o!yin [oJra~n] ejmfainomevnwn eijς thVn kovrhn, tauvthn deV meignumevnhn tw~/ ejntoVς ajevripoiei~n ai!sqhsin• shmei~on dev• ejaVn gaVr flegmasiva gevnhtai tw~n flebw~n, ouj meivgnusqai tw~/ejntoVς oujd’ oJra~n oJmoivwς th~ς ejmfavsewς ou!shς. thVn deV geu~sin th~/ glwvtth/ diaV toV manoVn kaiVaJpalovn. periV deV aJfh~ς oujdeVn ajfwvrisen ou!te pw~ς ou!te tivnwn ejstivn. ajllaV metaV tau~tapeira~tai levgein diaV tiv sumbaivnei taVς aijsqhvseiς ajkribestevraς ei^nai kaiV tw~n poivwn.o!sfrhsin meVn oun ojxutavthn oi%ς ejlavcistoς ajhVr ejn th~/ kefalh~/• tavcista gaVr meivgnusqai• kaiVproVς touvtoiς ejaVn e@lkh/ diaV makrotevrou kaiV stenwtevrou• qa~tton gaVr ou@tw krivnesqai•

diovper e!nia tw~n zwv/wn ojsfrantikwvtera tw~n ajnqrwvpwn einai• ouj mhVn ajllaV summevtrou geou!shς th~ς ojsmh~ς tw~/ ajevri proVς thVn kra~sin mavlista a#n aijsqavnesqai toVn a!nqrwpon... (...)fronei~n d’, w@sper ejlevcqh, tw~/ ajevri kaqarw~/ kaiV xhrw~ • kwluvein gaVr thVn ijkmavda toVn nou~n•

dioV kaiV ejn toi~ς u@pnoiς kaiV ejn tai~ς mevqaiς kaiV ejn tai~ς plhsmonai~~ς h%tton fronei~n• Cf.KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., pp. 472-473.95 Fr. 118, Estobeu Anth. III, 5, 8 au!h yuchV sofwtavth kaiV ajrivsth. [Uma alma seca é mais sábia emelhor.] Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 211.96 [Hipócrates] de morbo sacro 16 (DK 64 C 3 a) kataV tau~ta nomivzw toVn ejgkevfalon duvnamine!cein pleivsthn ejn tw~/ ajnqrwvpw/. ou%toς gaVr hJmi~n ejsti tw~n ajpoV tou~ hjevroς ginomevnwneJrmhneuVς h#n uJgiaivnwn tugcavnh/• thVn deV frovnhsin oJ ajhVr parevcetai. oiJ d’ ojfqalmoiV kaiV taVw%ta kaiV hJ glw~ssa kaiV aiJ cei~reς kaiV oiJ povdeς, oi%a a#n oJ ejgkevfaloς ginwvskh/, toiau~taprhvssousi• givnetai gaVr ejn a@panti tw~/ swvmati th~ς fronhvsiovς ti, wJς a#n metevch/ tou~ hjevroς,

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A Medicina na Grécia Clássica 158

À semelhança de Diógenes, o médico pré-socrático atribui ao ar o

princípio capaz de promover o pensamento este originando-se no cérebro97 ,

demarcando, uma vez mais e claramente, a influência filosófica na medicina de

Cós. Em vários aspectos, o repertório doutrinário da medicina praticada e

ensinada por Hipócrates sorveu na fonte dos pensadores pré-socráticos.

A distinção entre doutrina e método é bastante útil para os propósitos

presentemente arrolados. Entretanto, é necessário reconhecer que esta separação

não deve ser tomada como definitiva, tratando-se muito mais de um artifício para

a compreensão do saber médico na Grécia clássica.98 Veja-se a descrição presente

no Tratado Dos Humores:

Nos acometimentos do ventre, purgação; evacuações

baixas, com cólica, que são gordurosas, não compostas,

espumosas, quentes, em mordida, de coloração variando

entre o verde e o cinza, com fragmentos, pus ou sangue,

sem ar, com muitos ingredientes ou não, secas, não

cozidas, cozidas, dessecadas, a natureza da parte líquida,

observando o conforto ou desconforto do paciente antes do

início, e também que convém não ser impedida. Cocção,

descendo dos humores baixos, elevam os humores citados,

fluem do ventre, a cera nos ouvidos. Orgasmo, abertura,

vazio, morno, calafrio, com ou sem, em alguns casos mas

não em outros. Quando a causa da cólica está localizada

abaixo do umbigo ela é lenta e leve, e vice versa.99

ejς deV thVn xuvnesin oJ ejgkevgalovς ejstin oJ diaggevllwn• o@tan gaVr spavsh/ toV pneu~ma w@nqrwpoςejς eJwutovn, ejς toVn ejgkevfalon prw~ton ajfiknei~tai kaiV ou@twς ejς toV loipovn sw~ma skivdnatai oJajhVr kataleloitwVς ejn tw~/ ejgkefavlw/ eJwutou~ thVn ajkmhVn kaiV o@ ti a#n h~/ frovnimovn te kaiVgnwvmhn e!con. Cf. HIPPOCRATES. The Sacred Disease. With na english translation by W. H. S.Jones. Cambridge: Harvard University Press, 1992. pp. 172-173.97 Como se viu acima, esta idéia foi originariiamente concenida por Alcmeão de Crotona. Ao contrário,para Empédocles o coração seria a sede da consciência. Cf. BURNET, J. op. cit., p. 165.98 Método e doutrina nem sempre tem uma distinção clara, sendo por vezes tomados como sinônimos,consoante alguns autores como Platão. No Teeteto encontra-se a seguinte passagem: ... katav ge thVntou~ pavnta kinei~sqai mevqodon... [pela doutrina segundo a qual tudo se move]. Cf. PLATÃO.Teeteto. XXVIII, 183c. O grifo é nosso.99 Th~/ uJsterikh~/ kaqavrseiς, taV a!nwqen katarrhgnuvmena, kaiV strofevonta, liparav, a!krhta,ajfrwvdea, qermav, davknonta, ijwvdea, poikivla, xusmatwvdea, trugwvdea, aiJmatwvdea, a!fusa, wjmav,

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A Medicina na Grécia Clássica 159

O excerto se inicia com uma descrição minuciosa de possíveis

características a serem pesquisadas nas dejeções de um paciente com

“acometimento do ventre” mas, ao seu final, mencionam-se questões relativas à

patogênese e a etiologia causa do quadro diarreico. Trata-se de um bom

exemplo de que, apesar da separação entre doutrina e método presentemente

colocada, ambas as instâncias são indissociáveis na prática clínica dos médicos de

Cós.

4.5. A Medicina Hipocrática: Empírica e Dogmática

O conhecimento médico da escola de Cós, como se viu, abrange duas

instâncias distintas que, entretanto, se acham reunidas no fazer clínico: o método e

a doutrina. Tornou-se claro, igualmente, que a medicina, ao contrário da filosofia

pré-socrática, se propunha a resolver problemas práticos no âmbito das relações

saúde-doença, reconhecendo homens enfermos, prognosticando sobre seus males

e prescrevendo a terapêutica adequada para cada caso. Em contraste com o

tratamento dado pelos primevos pensadores gregos — adoção de uma perspectiva

dogmática no seu fazer100 —, tornava-se essencial lançar mão dos sentidos — em

uma atitude genuinamente empírica — para a compreensão da realidade. Essa

distinção é bem pautada por F. M. Cornford nos dois excertos a seguir:

eJfqav, aua, a@ssa perirrevoi, eujforivn kaqorevwn h# dusforivhn, priVn kivndunon einai, oi%a oujdei~ pauvein. pepasmovς, katavbasiς tw~n kavtw, ejpipovlasiς tw~n a!nw, kaiV taV ejx uJsterevwn, kaiV oJejn wjsiV rJuvpoς• ojrgasmovς, a!noixiς, kevnwsiς, qavlyiς, yuvxiς, e!swqen, e!xuqen, tw~n mevn, tw~n d’ou!. o@tan h/ kavtwqen ojmfalou~ toV strevfon, braduvς, malqakoVς oJ strovfoς, ejς toujnantivon. Cf.HIPPOCRATES. Humours. With na english translation by W. H. S. Jones. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1992. pp. 66-69.100 Em contraste com a medicina, a filosofia não se propunha a deslindar questões de ordem práticaque poderiam pressupor, como ponto de partida, a observação. Ao contrário, ao que parece, há umavisceral distinção entre a natureza dos problemas com os quais tratavam estes homens e as questõesmédicas. O filósofo interroga a natureza em uma instância em que não é possível a obtenção de umaresposta observacional. Sob esta perspectiva e analisando a filosofia natural jônica, pontua F. M.Cornford: “chegamos à conclusão de que não o era de todo, mas que se tratava, sim, de uma estruturadogmática baseada em premissas a priori (...) Vimos já como essa própria razão, em que o filósofodeposita tanta confiança, tinha herdado a sua exigência na apreensão imediata e correta da verdadeda faculdade profética do sábio inspirado.” Cf. CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., p. 257. Ogrifo é nosso.

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A Medicina na Grécia Clássica 160

A medicina é e foi-o sempre uma arte prática, já

com séculos de história quando veio a ter aquilo a que

hoje poderíamos chamar um fundamento de teoria

científica O médico era o curandeiro (i*atrovς), um artífice

ao serviço do público (dhmiourgovς), um cirurgião que

trabalhava com as mãos (ceirourgovς). Lidava sempre

com o doente individual e tinha sempre diante de si,

como finalidade prática imediata, a necessidade de o

curar. Sejam quais forem as idéias preconcebidas que

possa ter quanto à natureza do corpo humano e das suas

doenças, não pode fugir à necessidade constante de

observar os sintomas de cada caso individual, de

diagnosticar o mal e de tentar descobrir o que há a fazer.

A sua reputação e os seus proventos dependem do êxito

que alcançar não como teórico mas como curandeiro.101

Assim, ao contrário do filósofo natural cuja especulação

incide sobre assuntos que estão fora do alcance da

observação, tais como a origem do mundo e o “que se

passa no céu e debaixo da terra”, o médico é obrigado a

partir da observação de casos individuais, a notar os

sintomas e a descobrir, se possível, o que é que está mal

e como dar-lhe remédio.102

Isso pode fazer supor e F. M. Cornford o faz bem que a medicina

hipocrática se constitui inicialmente enquanto conhecimento teórico advindo

diretamente de observações particulares ou seja, por um método indutivo.

Ademais, a partir da identificação de uma dada moléstia por seus sinais e

sintomas será prescrito um tratamento. Este pode ter um resultado “positivo”,

ou seja, funcionar, ou, ao contrário, não surtir o efeito esperado, sendo então

necessário uma nova abordagem curativa. Posto isso, nesta etapa, o médico pode

“experimentar” levando-se em consideração o sentido mais lato deste termo

101 CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., p. 11.102 CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., p. 59.

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A Medicina na Grécia Clássica 161

um ou outro tratamento e, a partir de sua observação e sua prática, decidir sobre

a melhor opção terapêutica para o indivíduo que apresente aquele grupo de sinais

e sintomas:

Por outro lado, se a palavra “experimentação” é usada no

seu sentido mais amplo, um médico empreendedor, no

decurso normal de sua prática clínica, experimenta um

certo remédio ou uma certa dieta num dos seus doentes,

observa os resultados e experimenta novo remédio, no

caso do primeiro falhar.103

A observação e a experimentação constituíram-se em práticas comuns e

inerentes à medicina grega do período clássico. Sem embargo, é inatacável a

presença de uma série de elementos provenientes da filosofia da natureza relativa

aos pré-socráticos, como se torna perceptível em todo o repertório doutrinário

presente em vários dos tratados hipocráticos. Poder-se-iam colocar algumas

questões como:

(1) Por acaso teriam sido os humores — e seus movimentos — tão bem

descritos no tratado Da Natureza do Homem, observados —

apreendidos com os sentidos — durante sua animação nos estados de

saúde e doença?

(2) Ou o autor da Doença Sagrada poderia ter chegado a sua tese sobre a

fisiologia cerebral intrinsecamente relacionada ao ar através da

observação?

(3) Não são estas afirmações tão inspiradas e dogmáticas quanto as

composições e disjunções das quatro raízes de Empédocles ou a idéia

de ar como ajrchv em Anaxímenes?

Estes aspectos parecem igualmente inequívocos quando se procura olha

com isenção para os textos médicos antigos, sobretudo se é levado em

consideração o conceito de método e doutrina como intimamente engendrados na

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A Medicina na Grécia Clássica 162

atividade clínica dos asclepíades de Cós. Sem embargo, dentro dos próprios

tratados hipocráticos sobressaem críticas severas à postura de alguns médicos que

tomam para si elementos importados da filosofia pré-socrática. Neste aspecto o

autor do tratado Da Medicina Antiga é mordaz e contundente:

Certos médicos e filósofos concordam que ninguém pode

conhecer medicina sendo ignorante quanto à natureza do

homem; eles que tratam pacientes devem aprender isto,

dizem. Mas a questão que levantam é para a filosofia; é da

competência daqueles que, como Empédocles, têm escrito

sobre a ciência natural e descrito o que o homem foi desde

o início e de que elementos foi originalmente constituído.

Mas minha visão é, primeiro, que tudo o que filósofos ou

médicos tenham dito ou escrito sobre a ciência natural não

se refere mais à medicina que à pintura. Entendo também

que a Medicina é a única fonte de verdadeiro conhecimento

acerca da natureza; e que ninguém pode alcançar um

conhecimento exato do que é o homem, das causas que lhe

deram origem e de tudo o resto enquanto não tiver

devidamente compreendido a medicina em si.104

O engendramento no saber médico das concepções filosóficas acaba por

tornar a medicina, em certa medida, dogmática, como o esclarecido por F. M.

Cornford:

[Hipócrates] começa a atacar os escritores e

conferencistas que ao falarem sobre a medicina

fundamentam todo o seu discurso num pressuposto ou

103 CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., p. 13.104 Levgousi dev tineς ijhtroiV kaiV sofistaiv, wJς oujk ei!n dunatoVn ijhtrikhVn eijdevnai o@stiς mhVoijden o@ tiv ejstin a!nqrwpoς. ajlla tou~to dei~ katamaqei~n toVn mevllonta ojfqw~ς qerapeuvseintouVς ajnqrwvpouς. teivnei deV aujtoi~ς oJ lovgoς ejς filosofivhn, kaqavper ’Empedoklh~ς h# a!lloi oi$periV fuvsioς gegravfasin ejx ajrch~ς o@ tiv ejstin a!ntrwpoς, kaiV o@puς ejgevneto prw~ton kaiVoJpovqen sunepavgh. ejgwV deV tou~to mevn, o@sa tiniV ei!rhtai h# sofisth~/ h# ijhtrw~/ h# gevgraptaiperiV fuvdioς, h%ssonnomivzw th~/ ijhtrikh~/ tevcnh/ proshvkein h# th~/ grafikh~/. nomivzw deV periVfuvsioς gnw~naiv ti safeVς oujdamovqen a!lloqen einai h# ejx ijhtrikh~ς• tou~to deV oi%ovn tekatamaqei~n, o@tan aujthvn tiς thVn ijhtrikhVn ojrqw~ς perilavbh/• mevcri deV touvtou pollou~ moidokei~ dei~n• levgw deV tauvthn thVn iJstorivhn eijdevnai, a!nqrwpoς tiv ejstin kaiV di’ oi@aς aijtivaς

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A Medicina na Grécia Clássica 163

postulado, afirmando que toda a doença é, em última

análise, devida a um ou dois fatores — calor, frio,

umidade, secura, ou qualquer outra coisa que lhes venha

à idéia’. Este ponto de partida dogmático leva-os a

afirmações que são manifestamente falsas; mas o seu

pior defeito é não reconhecerem que a Medicina é uma

arte com existência própria, estabelecida há longos anos,

cujo valor é reconhecido por todos aqueles que recorrem

aos seus serviços nas ocasiões mais graves e que têm

em alta conta os seus praticantes. As próprias diferenças

de capacidade e experiência entre os médicos apenas

provam que a arte está solidamente fundamentada na

investigação e na descoberta dos fatos.105

A crítica é clara: a constituição do homem, e também suas origens, são

assuntos da filosofia, não cabendo ao médico — aquele que precisa curar os

doentes — a livre elucubração teórica sobre este ou aquele aspecto. O tom é,

inclusive, de pilhéria ao se comentar sobre as idéias da ciência natural aplicadas à

natureza do homem — as quais “não se refere(m) mais à medicina que à pintura”.

Parece, também, sintomático a menção explícita a Empédocles de Agrigento,

simultaneamente médico e filósofo. Sobre a crítica dirigida à filosofia pré-

socrática pelo autor do tratado hipocrático Da Medicina Antiga, comenta P.

Pellegrin:

O tratado hipocrático Da Medicina Antiga critica a

importação na medicina do método dos filósofos pré-

socráticos, enquanto que no prefácio de seu tratado Da

Medicina, Celso, enciclopedista latino do início da era

cristã, opôs os médicos filósofos, como Pitágoras,

Empédocles ou Demócrito, a Hipócrates, “que foi o

primeiro a separar a medicina da filosofia”.106

givnetai kaiV ta!lla ajkribevwς. Cf. HIPPOCRATES. Ancient Medicine. With na english translationby W. H. S. Jones. Cambridge: Harvard University Press, 1992. pp. 52-53.105 CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., p. 50. O grifo é nosso.106 Cf. PELLEGRIN, P. Medecine. IN: BRUNSCWING, J., LLOYD, G. Le Savoir Grec. Paris:Flamarion, 1996. pp. 439-440.

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A Medicina na Grécia Clássica 164

A despeito do tom crítico em relação às importações indevidas da

medicina pela filosofia, no mesmo tratado, o autor se refere à teoria humoral107,

que como se viu tem muito provavelmente origem no pensamento pré-socrático.

Exatamente por estas menções às doutrinas relacionadas aos enunciados dos

filósofos da natureza, G. Vlastos desfere relevante crítica à argumentação

desenvolvida por F. M. Cornford em Principium Sapientiae108. Isto reforça o

conceito anteriormente exposto de que, em muitos aspectos, doutrina e método

articulam-se de forma indissociável, a despeito das particularidades de cada uma

destas faces da medicina de Hipócrates.

Mesmo com estes problemas relacionados à tese defendida por F. M.

Cornford, não é possível se esquivar dos aspectos mais relevantes de sua aguda

análise sobre a filosofia jônica inspirada e herdeira “direta” do mito109 em

contraposição à medicina grega de natureza genuinamente empírica, cujo saber se

baseava em generalizações constituídas a partir de observações individuais. Sem

embargo, o próprio F. M. Cornford não levou em consideração, no seu Principium

Sapientiae, o alcance das doutrinas utilizadas, ensinadas e escritas pelos médicos

de Cós, cujo manancial era representado, exatamente, pelas especulações

filosóficas dos originários pensadores do século VI e V a.C. Na verdade, isto não

107 diafevrousin oun touvtwn aiJ fuvsieς. diafevrosin deV kataV tou~to, o@per ejn tw~/ swvmatie!nesti polevmion turw~/ kaiV uJpoV touvtou ejgeivretaiv te kaiV kinei~tai• oi%ς oJ toiou~toς cumoVςtugcavnei pleivwn ejnewVn kaiV ma~llon ejndunasteuvwn ejn tw~/ swvmati, touvtouς ma~llon kaiVkakopaqei~n ejikovς. [Então a constituição destes homens difere, e a diferença situa-se no elemento docorpo que é hostil ao queijo, e que é excitado e estimulado à ação sob sua influência. Aqueles em queum humor deste tipo está presente em maior quantidade e com maior controle sobre o corpo,naturalmente sofrem mais severamente.]. Cf. HIPPOCRATES. Ancient Medicine., pp. 54-55.108 Em “Review of F. M. Cornford: Principium sapientiae”, G. Vlastos pontua que a tese de Cornfordsobre a descoberta e generalização do método empírico, por parte dos médicos, é uma generalizaçãoseguramente equivocada. De início mostra, por exemplo, que o tratado Da Medicina Antiga, a despeitode suas críticas a Empédocles, utiliza elementos deste pré-socrático e também de Anaxágoras para explicar o estado de saúde. Se contrapõe, igualmente, à idéia de Cornford de um conhecimentomédico oriundo da experiência em contraposição ao dogmatismo dos jônios Vlastos assegura ainexistência de elementos nos textos médicos antigos que sustentem esta colocação. Vlastos, ao longodo texto, põe-se a analisar diferentes pontos julgados equívocos, na argumentação de F. M. Cornford,propondo distintos modos de se abordar o problema. Cf. VLASTOS, G. Review of F. M. Cornford:Principium Sapientiae. IN: Furley, D. J., Allen, R. E. Studies in Presocratic Philosophy. London:Routledge & Kegan Paul, 1970. pp. 45-46.

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A Medicina na Grécia Clássica 165

constitui surpresa, uma vez que filósofos e médicos pertenciam a uma mesma

cultura, estavam inseridos no mesmo Espírito, tornando praticamente impossível

que não houvesse uma influência mútua e intensa, como a experimentada pelo

autor da Doença Sagrada em relação às concepções de Diógenes de Apolônia, ou

de Platão, um atento leitor de Hipócrates, como atesta o passo 270 c-d do

Fedro.110 Ademais, em um dado momento, tanto a filosofia pré-socrática quanto a

medicina grega clássica convergiram para um ponto em comum, a natureza do

homem, e, neste caso, as formulações teóricas se interpenetram sobremaneira,

tanto nas concepções dos filósofos, quanto nas dos médicos, quanto naquelas

elaboradas pelos médicos-filósofos — como Alcmeón de Crotona e Empédocles

de Agrigento. Neste aspecto, a medicina empírica insere-se também em uma

esfera da especulação dogmática, uma vez que os saberes são distintos,

metodologicamente, mas indeslindáveis em tantos outros pontos da questão

doutrinária. Tal qual produtos humanos que são, forjados em um âmbito radical de

incertezas, filosofia e medicina colocam-se como céu e mar unidos pelo

simultâneo horizonte, sístole e diástole de um mesmo coração...

109 CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae., 61.110 Cf. FRIAS, I. M. Platão Leitor de Hipócrates., pp. 87-110.

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