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Texto nº 1 - FLICK, Uwe, (2005) - Métodos Qualitativos na Investigação Científica, Lisboa, Monitor, pp. 1-13 1 A INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA: IMPORTÂNCIA, HISTÓRIA, CARACTERÍSTICAS A investigação qualitativa vai-se firmando no campo das Ciências Sociais e da Psicologia. Dispõe hoje de uma grande variedade de métodos, cada um dos quais parte de premissas diferentes e prossegue diferentes objetivos. Cada um deles tem por base uma ideia específica do seu objeto. Mas os métodos qualitativos não podem ser encarados como independentes do processo de investigação e da questão a estudar. De facto, estão diretamente enraizados no processo de investigação, pelo que serão melhor descritos e compreendidos na ótica desse processo. É por isso que a apresentação dos diferentes passos do processo de investigação qualitativa constitui a perspetiva central deste livro: os procedimentos fundamentais de colheita e interpretação dos dados e de estabelecimento e apresentação dos resultados serão enquadrados numa perspetiva de processo. O leitor terá, assim, a visão panorâmica da investigação qualitativa, das alternativas metodológicas concretas e das suas aplicações, limites e finalidades, o que o habilitará a escolher a estratégia metodológica mais apropriada às questões e problemas da sua pesquisa. 1.1 - IMPORTÂNCIA DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA A investigação qualitativa é particularmente importante para o estudo das relações sociais, dada a pluralidade dos universos de vida. Esta pluralidade traduz-se em expressões-chave como a “nova obscuridade” (Habermas 1996), a crescente “individualização dos modos de vida e padrões biográficos” (Beck 1992) e a dissolução das “velhas” desigualdades sociais no seio da nova diversidade dos ambientes, subculturas, estilos e modos de viver (Hradil 1992). Esta pluralidade exige uma nova sensibilidade para o estudo empírico das questões. Os defensores do pós-modernismo têm argumentado que a época das grandes narrativas e teorias está ultrapassada; o que agora se exige são narrativas limitadas no tempo, no espaço e na situação. Faca a multiplicidade dos estilos de vida e dos padrões de interpretação na sociedade moderna e pós- moderna, ganha hoje nova importância e novas aplicações a frase de Herbert Blumer: “A posição de partida do cientista social e do psicólogo é sempre a mesma, na prática: a falta de familiaridade com o que esta a acontecer na dimensão da vida escolhida para o estudo” (1969, p.33). A acelerada mudança social e a consequente diversidade dos universos de vida confrontam cada vez mais os cientistas com novos contextos sociais e novas perspetivas. Estas são para eles ma novidade tao grande que as metodologias

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Texto nº 1 - FLICK, Uwe, (2005) - Métodos Qualitativos na Investigação

Científica, Lisboa, Monitor, pp. 1-13

1

A INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA: IMPORTÂNCIA, HISTÓRIA,

CARACTERÍSTICAS

A investigação qualitativa vai-se firmando no campo das Ciências Sociais e da

Psicologia. Dispõe hoje de uma grande variedade de métodos, cada um dos

quais parte de premissas diferentes e prossegue diferentes objetivos. Cada um

deles tem por base uma ideia específica do seu objeto. Mas os métodos

qualitativos não podem ser encarados como independentes do processo de

investigação e da questão a estudar. De facto, estão diretamente enraizados no

processo de investigação, pelo que serão melhor descritos e compreendidos na

ótica desse processo. É por isso que a apresentação dos diferentes passos do

processo de investigação qualitativa constitui a perspetiva central deste livro: os

procedimentos fundamentais de colheita e interpretação dos dados e de

estabelecimento e apresentação dos resultados serão enquadrados numa

perspetiva de processo. O leitor terá, assim, a visão panorâmica da investigação

qualitativa, das alternativas metodológicas concretas e das suas aplicações,

limites e finalidades, o que o habilitará a escolher a estratégia metodológica

mais apropriada às questões e problemas da sua pesquisa.

1.1 - IMPORTÂNCIA DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA

A investigação qualitativa é particularmente importante para o estudo das

relações sociais, dada a pluralidade dos universos de vida. Esta pluralidade

traduz-se em expressões-chave como a “nova obscuridade” (Habermas 1996), a

crescente “individualização dos modos de vida e padrões biográficos” (Beck

1992) e a dissolução das “velhas” desigualdades sociais no seio da nova

diversidade dos ambientes, subculturas, estilos e modos de viver (Hradil 1992).

Esta pluralidade exige uma nova sensibilidade para o estudo empírico das

questões. Os defensores do pós-modernismo têm argumentado que a época das

grandes narrativas e teorias está ultrapassada; o que agora se exige são

narrativas limitadas no tempo, no espaço e na situação. Faca a multiplicidade

dos estilos de vida e dos padrões de interpretação na sociedade moderna e pós-

moderna, ganha hoje nova importância e novas aplicações a frase de Herbert

Blumer: “A posição de partida do cientista social e do psicólogo é sempre a

mesma, na prática: a falta de familiaridade com o que esta a acontecer na

dimensão da vida escolhida para o estudo” (1969, p.33).

A acelerada mudança social e a consequente diversidade dos universos de vida

confrontam cada vez mais os cientistas com novos contextos sociais e novas

perspetivas. Estas são para eles ma novidade tao grande que as metodologias

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dedutivas tradicionais – derivar dos modelos teóricos as questões e hipóteses da

investigação e submetê-las ao teste dos resultados empíricos – fracassam na

diferenciação dos assuntos. A investigação é, por isso, cada vez mais forcada a

recorrer a estratégias indutivas: em vez de partir das teorias para o teste

empírico, o que se exige são “conceitos sensibilizadores” para abordar os

contextos sociais que se quer estudar. Ao contrário, porem, de um mal-

entendido generalizado, estes contextos sensibilizadores são influenciados pelo

conhecimento teórico existente. Mas neste caso as teorias resultam os estudos

empíricos. O conhecimento e a prática são estudados na qualidade de

conhecimento e pratica locais (Geertz 1983).

A investigação em Psicologia, em particular, é frequentemente acusada de

irrelevante para a vida quotidiana, por não se dedicar suficientemente a uma

descrição exata dos factos relativos a um caso (Dörner 1983). O estudo dos

significados subjetivos e da experiencia e pratica quotidianas é tao fundamental

como a analise das narrativas (Bruner 1991; Sarbin 1996) e discursos (Harré

1998).

1.2 - OS LIMITES DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA: UM PONTO DE

PARTIDA

Tradicionalmente, a Psicologia e as Ciências Sociais tomaram como modelo a

exatidão das Ciências da Natureza, dando atenção especial ao desenvolvimento

de métodos quantitativos e padronizados. Foram definidos princípios

orientadores da investigação e do seu planeamento, tendo em vista os seguintes

objetivos: isolar claramente causas e efeitos, operacionalizar adequadamente as

relações teóricas, medir e quantificar os fenómenos, conceber planos de

investigação que permitam a generalização dos resultados, formular leis gerais.

São escolhidas, por exemplo, amostras aleatórias da população, para garantir a

sua representatividade; as proposições gerais são formuladas com a maior

independência possível em relação aos casos concretos que se estudaram; os

fenómenos observados são classificados em termos de frequência e distribuição.

As situações em que os fenómenos e as relações estudadas ocorrem são

controladas até ao limite do possível, a fim de determinar com o máximo de

clareza as relações causais e a sua validade. Os estudos são desenhados por

forma a excluir, na medida do possível, a influência do investigador

(entrevistador, observador, etc.). Estas medidas deveriam assegurar a

objetividade do estudo, já que são em larga medida eliminadas tanto a visão

subjetiva do investigador como as dos sujeitos do estudo. Foram formulados

padrões gerais obrigatórios para a realização e avaliação da pesquisa empírica

nas Ciências Sociais; e procedimentos como a construção de questionários, a

elaboração dos planos de pesquisa, a análise estatística dos dados, ganharam

um refinamento crescente.

Durante muito tempo, a investigação psicológica usou quase exclusivamente

planos experimentais, que produziram grande quantidade de dados e

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resultados, os quais serviram para testar e demonstrar relações psicológicas

entre variáveis, e as suas condições de validade. Pelas razoes acima referidas, a

investigação social empírica baseou-se durante um longo período em inquéritos

padronizados, com o objetivo de documentar e analisar a frequência e

distribuição dos fenómenos sociais na população – certas atitudes, por exemplo.

Os padrões e procedimentos da investigação quantitativa eram cada vez menos

examinados em profundidade, para esclarecer em relação a que objetos e

problemas eram ou não apropriados. Quando se avaliam globalmente as

pesquisas feitas e orientadas para aqueles objetivos, os resultados revelam-se

bastantes negativos. Existe um grande desencanto em relação aos ideais de

objetividade: já há algum tempo que Max Weber (1919) proclamou como tarefa

da Ciência a “desmistificação do mundo”. Mais recentemente, Bonss e

Hartmann (1985) propuseram a crescente desmistificação da Ciência, dos seus

métodos e das suas descobertas. No caso das Ciências Sociais, o baixo nível de

aplicabilidade e de articulação dos resultados é considerado um indicador disso

mesmo. As descobertas da investigação social, conseguiram penetrar menos do

que se pensava – e sobretudo de maneira muito diferente – nos contextos da

política e do quotidiano. A “investigação utilitária” (Beck e Bonss 1989)

demonstrou que as descobertas científicas não são transferidas para a prática

politica e institucional tanto quanto era de esperar. Quando são aproveitadas,

são obviamente reinterpretadas e utilizadas de forma parcelar. A Ciência

deixou de produzir “verdades absolutas”, prontas a ser adotadas acriticamente:

oferece, antes, meios de interpretação limitados, com um alcance maior que as

teorias do dia-a-dia, e que podem ser flexivelmente utilizadas na prática (1989,

p.31).

Tornou-se igualmente evidente que os resultados das Ciências Sociais

raramente são percebidos e utilizados no dia-a-dia, porque, no intuito de

cumprir as exigências metodológicas, as pesquisas e os seus resultados estão

frequentemente muito longe das preocupações e problemas quotidianos. Por

outro lado, as analises, da prática da investigação mostraram que grande parte

dos ideais de objetividade almejados não podem ser cumpridos. Mau grado

todos os controles metodológicos, a investigação e os seus resultados são

inevitavelmente influenciados pelos interesses e bases sociais e culturais dos

que nela participam. Estes fatores influenciam a formulação das questões e

hipóteses da investigação, assim como a interpretação dos dados e das relações.

Finalmente, a desmistificação proposta por Bonss e Hartmann tem

consequências para a forma de conhecimento que a Psicologia e as Ciências

Socias podem propor-se atingir e, principalmente, são capazes de produzir:

“Aceitando a desmistificação dos ideais objetivistas, não mais se pode partir

irrefletidamente da noção de que há afirmações objetivamente verdadeiras. O

que nos resta é a possibilidade de afirmações relacionadas com os sujeitos e as

situações, que tem de ser estabelecidas por um conceito de conhecimento

sociologicamente articulado” (1985, p. 21). A sólida fundamentação empírica

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destas afirmações relativas a situações e sujeitos é um objetivo que se pode

atingir com a investigação qualitativa.

1.3 - TRAÇOS ESSENCIAIS DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA

As ideias centrais orientadoras da investigação qualitativa são diferentes das da

investigação quantitativa. Os seus traços essenciais (Caixa 1.1) são a correta

escolha de métodos e teorias apropriados; o reconhecimento e análise de

diferentes perspetivas; a reflexão do investigador sobre a investigação, como

parte do processo de produção do saber; a variedade dos métodos e

perspetivas.

Adequação dos métodos e teorias

No seu influente trabalho sobre a investigação empírica, Bortz 51984, pp15-16)

sugere, por exemplo, que se deve controlar o “ajustamento das ideias à

investigação” e escolher apenas aquelas que podem ser estudadas

empiricamente. Para ele, as seguintes ideias são expressamente alheias aquele

desiderato:

As ideias para investigação... com conteúdo filosófico (por exemplo,... o

significado da vida) e as investigações que lidam com conceitos imprecisos... o

estudo de pessoas em situações de exceção (por exemplo, o problema

psicológico dos anões)... Finalmente, o estudo do peso causal de fatores

isolados, que na verdade só são efetivos em combinação com outros fatores de

influência.

É óbvio que tem sentido ponderar se uma questão a investigar pode ou não ser

empiricamente estudada (veja-se o Capitulo 5); mas, para Bortz, o critério que

determina o objetivo da investigação é a possibilidade de os métodos

disponíveis (mais do que isso, aceites) poderem ser utilizados no estudo.

Podem encontrar-se pessoas e situações excecionais, mas podem não ser em

número suficiente para constituir uma amostra que justifique um estudo

quantitativo e a generalização dos resultados. Que a maior parte dos fenómenos

não pode de facto ser explicada isoladamente é um resultado da complexidade

do real e dos próprios fenómenos.

Se todos os estudos empíricos fossem planeados exclusivamente em obediência

ao modelo rígido das relações de causa e efeito, todos os objetos complexos

teriam de ser excluídos. É esta a primeira solução para o problema da análise de

causas com múltiplas facetas, aduzidas por Bortz. A segunda solução é incluir

Caixa 1.1 – características da investigação qualitativa: lista preliminar Adequação dos métodos e teorias Perspetivas dos participantes na sua diversidade Reflexão do investigador sobre o estudo Variedade de métodos e perspetivas na investigação qualitativa

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as condições do contexto nos planos de pesquisa quantitativa complexa por

exemplo, análises modo nível: Saldern 1986) e explicar os modelos complexos

nos planos estatistico e empirico. A necessária abstração metodológica torna

mais difícil a reintrodução dos resultados nas situações quotidianas estudadas.

Mas desta maneira não se resolve o problema fundamental – a investigação só

consegue colocar em evidencia o que já esta contido no modelo de realidade

subjacente.

A terceira via para resolver o problema é a sugerida pela investigação

qualitativa: adotar métodos tao abertos que se ajustem à complexidade do

objeto estudado. Neste caso é o objeto a estudar, e não o contrário, o fator

determinante da escolha do método. Os objetos não são reduzidos a simples

variáveis, são estudados na sua complexidade e inteireza, integrados no seu

contexto quotidiano. Os campos de estudo não são situações artificiais de

laboratório, mas interações e praticas dos sujeitos na vida quotidiana. É assim,

particularmente, que as pessoas e situações excecionais são frequentemente

estudadas (veja-se o Capitulo 7). Para estarem à altura da diversidade da vida

quotidiana, os métodos são caracterizados pela abertura face aos seus objetos de

estudo, abertura assegurada de diferentes maneiras (vejam-se os Capítulos 8 a

17). Mais do que testar teorias já bem conhecidas (teorias anteriormente

formuladas, por exemplo), o objetivo da investigação é descobrir teorias novas,

empiricamente enraizadas. De igual modo, a validade do estudo é estabelecida

com referência ao objeto estudado, não obedecendo exclusivamente a critérios

académicos abstratos, como na investigação quantitativa. Em vez disso, a

investigação qualitativa tem como critérios centrais a fundamentação dos

resultados obtidos no material empírico, e uma escolha e aplicação de métodos

adequados ao objeto de estudo. A relevância dos resultados obtidos e a reflexão

sobre os procedimentos são critérios adicionais (veja-se o Capitulo 18).

As perspetivas dos participantes na sua diversidade

As doenças mentais oferecem-nos a ocasião de explicitar uma outra dimensão

da investigação qualitativa. Os estudos epidemiológicos mostraram a

frequência da esquizofrenia na população e, além disso, o modo como a sua

distribuição varia: distúrbios mentais graves como a esquizofrenia têm uma

ocorrência muito maior nas classes sociais mais baixas que nas mais

favorecidas. Essa correlação foi descoberta nos anos 50 por Hollingshead e

Redlich (1958) e repetidamente confirmadas desde então. Mas o sentido da

correlação não pode ser clarificado: são as condições das classes sociais que

favorecem a ocorrência e a irrupção das doenças mentais ou são as pessoas com

problemas mentais que se deixam resvalar para as classes sociais mais baixas

(veja-se Keupp 1982)? Estes dados também não dizem nada sobre o que

significa viver com uma doença mental. Não só não clarificam o significado de

doença mental (ou de saúde) para aqueles a quem diz respeito, como não

captam a diversidade das perspetivas da doença, no seu contexto. Qual é o

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significado da esquizofrenia para o paciente e para os seus familiares? Como

lidam no contexto da sua vida com a doença as diferentes pessoas envolvidas?

O que é que no decurso da vida do paciente levou ao surto da doença, e o que é

que q transformou em doença cronica? Qual foi a influência das diferentes

instituições que cuidaram do paciente ao longo da sua vida? A que ideias,

objetivos e rotinas obedeceram no tratamento do caso?

Numa questão como a da doença mental, a investigação qualitativa concentra-

se neste tipo de questões (para uma visão de conjunto, consulte-se Flick 1995b).

Ela parte dos significados individuais e sociais do objeto, e evidencia a

diversidade das perspetivas sobre ele (do paciente, dos familiares e dos

técnicos); estuda as práticas e o saber dos participantes; e analisa as interações

sobre a doença mental e os modos de a enfrentar num determinado espaço. As

inter-relações são descritas no contexto específico do caso e explicadas em

relação a ele. A investigação qualitativa considera que existem no campo pontos

de vista e práticas diferentes, devidas a diferentes perspetivas dos sujeitos e dos

seus enquadramentos sociais.

Reflexão do investigador sobre a investigação

Ao contrário da investigação quantitativa, os métodos qualitativos encaram a

interação do investigador com o campo e os seus membros como parte explícita

da produção do saber, em lugar de a excluírem a todo o custo, como variável

interveniente. A subjetividade do investigador e dos sujeitos estudados faz

parte do processo de investigação. As reflexões do investigador sobre as suas

ações e observações no terreno, as suas impressões, irritações, sentimentos, etc.,

constituem dados de pleno direito, fazendo parte da interpretação e ficando

documentados no diário da investigação e nos protocolos do contexto (veja-se o

Capítulo 14).

Variedade de abordagens e métodos na investigação qualitativa

A investigação qualitativa não se baseia numa conceção teórica e metodológica

unitária. A sua prática e as suas análises são caracterizadas por diversas

abordagens teóricas e respetivos métodos. As opiniões de cada sujeito são o

ponto de partida; uma segunda linha de investigação estuda a construção e

desenvolvimento das interações, enquanto a terceira procura reconstituir as

estruturas do espaço social e o significado latente das práticas (para mais

pormenores, veja-se o próximo capítulo. Esta variedade de perspetivas resulta

de diferentes linhas de evolução na historia da investigação qualitativa, as quais

se desenvolveram parcialmente em paralelo, parcialmente de forma sequencial.

1.4 - HISTÓRIA DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA

Nesta obra apenas poderemos delinear um breve e rápido panorama da história

da investigação qualitativa, embora os métodos qualitativos tenham larga

tradição na Psicologia e nas Ciências Sociais. Na Psicologia, Wilhelm Wundt

(1900-1920) usou métodos de descrição e compreensão (verstehen) na sua

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Psicologia Popular, em simultâneo com métodos experimentais na Psicologia

Geral. Mais ou menos na mesma altura, irrompeu na Sociologia alemã a

polemica entre uma conceção de tendência monográfica na ciência, orientada

para a inferência e os estudos de caso, e uma perspetiva empírica e estatística

(Bonss 1982, p.106). Durante muito tempo, até aos anos 40, os métodos

biográficos e os estudos de caso e os métodos descritivos constituíram a espinha

dorsal da Sociologia americana, um facto demonstrado pela importância do

estudo de Thomas Zaniecky. O Camponês Polaco na Europa e na América (1918-20)

e mais genericamente pela influência da Escola de Sociologia de Chicago.

No entanto, à medida que ambas as ciências se firmavam, as abordagens

“duras”, experimentais, padronizadas e quantificadas, foram-se afirmando face

às estratégias “maleáveis”, compreensivas, abertas e qualitativo-descritivas. Foi

preciso esperar pelos anos 60 para a crítica da investigação social padronizada e

quantitativa se tornar de novo saliente na Sociologia americana (Cicourel 1964;

Glaser e Strauss 1967). Esta crítica chegou nos anos 70 ao debate científico

alemão, e acabou por conduzir ao renascimento da investigação qualitativa nas

Ciências Sociais e também, com algum atraso, na Psicologia (Jüttermann 1985).

Os desenvolvimentos e debates nos EUA e na Alemanha não só aconteceram

em épocas distintas, como são pautados por diferentes fases.

Desenvolvimentos no espaço da língua alemã

Na Alemanha, foi Jürgen Habermas (1967) o primeiro a reconhecer que “se

estava a desenvolver na Sociologia americana uma tradição e um debate

diferentes” em termos de pesquisa, associado a nomes como Goffman,

Garfinkel e Cicourel. Após a tradução da Metodologia Critica de Cicourel

(1964), varias foram as coletâneas que incluíram o contributo dos debates

americanos (Arbeitsgruppe Bielefelder Soziologen 1973; Bühl 1972; Gerds 1979;

Hopf e Weingarten 1979; Steinert 1973; Weingarten et al. 1976). Elas

disponibilizaram para o debate em língua alemã textos fundamentais da

Etnometodologia e do Interacionismo Simbólico. No mesmo período, o modelo

do processo de pesquisa criado por Glaser e Strauss (1967) despertou

considerável atenção (por exemplo em Hoffmann-Riem 1980; Hopf e

Weingarten 1979; Kleining 1982). O debate é motivado pelo desejo de tratar o

objeto da investigação de uma forma mais ajustada do que a exequível na

investigação quantitativa, como demonstra a defesa do “princípio de abertura”

por Hoffmann-Riem. Kleining (1982, p.233) arguiu que é imprescindível

considerar a compreensão do objeto uma questão previa ate ao fim da

investigação, porque só no final desta o objeto se manifesta nas suas

verdadeiras cores. De igual modo, o debate acerca da “Sociologia naturalista”

(Schatzmann e Strauss 1973) e dos seus métodos é orientado por uma hipótese

similar, inicialmente implícita, mas tornada explicita mais tarde: praticar o

princípio da abertura e as regras que Kleining propõe (por exemplo, adiar

qualquer formulação teórica do objeto da investigação) poupa ao investigador o

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erro de criar um objeto de estudo resultante apenas dos métodos utilizados

para o estudar. Pelo contrário, torna-se possível captar, em primeira mão, a vida

quotidiana, e voltar a fazê-lo, tal qual ela se manifesta em cada caso (Grathof

1978, citado em Hoffmann-Riem 1980, p. 362, que termina o seu artigo com esta

citação).

No final dos anos 70, iniciou-se na Alemanha um debate amplo e mais original,

menos confinado a traduções de textos americanos: incidiu sobre a entrevista e

suas aplicações (Hopf 1978; Kohli 1978) a sua interpretação (Mühlefeld et al.

1981) e questões metodológicas (Kleining 1982), e estimulou uma extensa

investigação (veja-se Flick et al. 1985; 2002, para uma revisão). A questão típica

deste período foi formulada por Küchler (1980): deverá “esta tendência ser

encarada como simples moda ou como um novo começo?”

No início dos anos 80, surgiram e foram amplamente discutidos dois métodos

originais que se revelaram cruciais no impulsionar deste desenvolvimento: a

entrevista narrativa de Schütze (1977; veja-se também Riemann e Schütze 1987)

e a hermenêutica objetiva de Oevermann et al. (1979). Os dois métodos já não

eram uma importação de realizações americanas, como era o caso da

observação participante ou da entrevista orientada por guião ou da entrevista

focalizada (veja-se Hopf 1978); e ambos estimularam uma extensa prática de

investigação (principalmente na pesquisa biográfica: para uma revisão veja-se

Bertaux 1981, Kohli e Robert 1984; Krüger e Marotzki 1994, para as entrevistas).

A influência destas metodologias sobre a discussão global dos métodos

qualitativos é pelo menos tão importante como os resultados que permitiram

obter.

Em meados dos anos 80, as questões da validade e da generalização dos

resultados dos métodos qualitativos atraíram ampla atenção (veja-se por

exemplo Flick, 1987; Gerhardt 1985; Legewie 1987), discutindo-se ao mesmo

tempo as questões a elas associadas, como a apresentação e a transparência dos

resultados. O volume e principalmente a natureza não estruturada dos dados

exigiram também na investigação qualitativa a utilização do computador

(Fielding e Lee, 1981; Kelle 1985, 2002; Richards e Richards 1998; Weitzman e

Miles, 1995). Finalmente, publicaram-se os primeiros manuais ou introduções

resultantes dos debates realizados no espaço linguístico alemão (por exemplo,

Bohnsack 1999; Lamneck, 1988, 1989; Spöhring, 1989).

O debate nos Estados Unidos da América

Denzin e Lincoln (2002b, pp. 12-18) enumeram fases diferentes das

apresentadas acima para o espaço de língua alemã. Definem “sete momentos na

investigação qualitativa”.

O período tradicional estende-se desde o começo do século vinte até à Segunda

Guerra Mundial. Está relacionado com a investigação de Malinowski (1916), na

Etnografia, e com a Escola de Chicago, na Sociologia. Durante este período, a

investigação qualitativa estava interessada no outro, no estranho, no

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estrangeiro, e na sua descrição e interpretação mais ou menos objetivas. As

culturas estrangeiras eram o objetivo da Etnografia; o da Sociologia eram os

situados nas franjas marginais, os excluídos da própria sociedade.

A fase modernista dura até aos anos 70, sendo marcada pela tentativa de

formalização da investigação qualitativa. Foram-se publicando nos Estados

Unidos cada vez mais manuais com este objetivo, e esta atitude na investigação

ainda hoje perdura na obra de Glaser e Strauss (1967), Strauss (1987) e Strauss e

Corbin (1990), assim como em Miles e Huberman (1994).

Os acontecimentos ocorridos até meados dos anos 80 são caracterizados pela

Confusão dos géneros (Geertz 1983). Coexistem lado a lado vários modelos

teóricos e explicações dos objetos e métodos que os investigadores podem

escolher, contrapor uns aos outros ou combinar: o interacionismo simbólico, a

etnometodologia, a fenomenologia, a semiótica, ou o feminismo são alguns

destes “paradigmas alternativos” (veja-se também Guba 1990; Jacob 1987).

A meio da década de 80, a crise da representação, debatida até então na

inteligência artificial (Winograd e Flores, 1986) e na etnografia (Clifford e

Marcus 1986) tem um impacto global sobre a investigação qualitativa,

transformando o processo de apresentação do conhecimento e dos resultados

numa componente substancial do processo de investigação. E este processo

atrai per se mais atenção. A investigação qualitativa torna-se um processo

contínuo de construção de versões da realidade. A versão apresentada por um

sujeito numa entrevista pode não corresponder à versão dada a outro

investigador numa outra questão da investigação. O investigador que interpreta

esta entrevista e a apresenta como parte dos seus resultados produz uma nova

versão do conjunto. Diferentes leitores do livro, artigo ou relatório, fazem

interpretações diferentes da versão do investigador; e isso conduz a emergência

de novas versões do acontecimento. Desempenham nisto um papel importante

os interesses particulares trazidos para a leitura deste caso. Neste contexto, a

avaliação da investigação e dos seus resultados, torna-se um tema central nas

interrogações metodológicas: está ligada ao problema de saber se os critérios

tradicionais continuam válidos ou se é necessário procurar critérios alternativos

na investigação qualitativa.

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A situação atual é descrita por Denzin e Lincoln como quinto momento: as

narrativas substituíram as teorias ou então são as teorias que são lidas como

narrativas. Mas agora ouvimos falar do fim das grandes narrativas – como

acontece no pós-modernismo em geral: a tónica desloca-se para as narrativas e

teorias que se ajustam às situações e problemas específicos, históricos e

localmente delimitados. O que caracteriza a situação atual – sexto momento – é a

escrita pós-experimental que liga as questões da investigação qualitativa às

políticas democráticas; e o sétimo momento é o futuro da investigação qualitativa.

Comparando as duas linhas de desenvolvimento (Quadro 1.1), encontra-se na

Alemanha uma crescente consolidação metodológica, complementada pela

concentração nas questões de procedimentos, numa crescente prática de

investigação.

Nos Estados Unidos, por outro lado, os desenvolvimentos recentes são

caracterizados pela tendência a questionar de novo ou mais a fundo as

aparentes certezas oferecidas pelos diversos métodos: são vincados o papel da

apresentação no processo de pesquisa, a crise da representação, a relatividade

do material apresentado; e isso secundarizou nitidamente as tentativas de

formalizar e canonizar os métodos. A aplicação “correta” dos procedimentos de

entrevista ou da interpretação tem menos peso que as “práticas e políticas de

interpretação” (Denzin 2000). Desta forma, a investigação qualitativa

transforma-se – ou vincula-se ainda mais fortemente – numa atitude específica,

baseada na abertura e na reflexão do investigador.

Quadro 1.1 – Fases na História da Investigação Qualitativa Alemanha Estados Unidos

Primeiros estudos (fim do século XIX, princípio do século XX); Fase de importação (início da década de 70); Início dos debates originais (finais de 1970); Desenvolvimento de métodos originais (1970-80); Consolidação, questões de procedimentos (finais do anos 80); Prática de investigação (1990).

Período tradicional (1900-1945); Fase modernista (1945-1970); Confusão de géneros (até meados dos anos 80); Crise de representação (depois de 1980); 5º Momento (anos 90); 6º Momento (escrita pós-experimental); 7º Momento (o futuro).

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1.5 - A APRESENTAÇÃO PROCESSUAL, UMA LINHA ORIENTADORA

NO CAMPO DOS MÉTODOS QUALITATIVOS

Propósitos da apresentação nesta obra

No período histórico delineado, apareceram variados métodos, que se

caracterizam por diferentes metas e pontos de partida. Diferem entre si no

entendimento do objeto de estudo, e cada um deles dá o seu contributo

particular para o debate global sobre a investigação qualitativa e o seu

desenvolvimento futuro. Em lugar de se discutirem isoladamente os métodos

qualitativos, parece melhor debatê-los no quadro do processo de investigação,

assente em três bases: a experiência resultante da sua aplicação a estudos

empíricos; a experiencia do seu ensino a estudantes; a experiência do treino de

investigadores nos projetos em curso. Esta obra pretende fazer essa

apresentação processual. Primeiro dá uma visão de conjunto, para fundamentar

a seleção de métodos específicos de coleta e interpretação dos dados. Em

segundo lugar, esta visão de conjunto permite verificar em que medida um

determinado método se ajusta às outras componentes do processo de

investigação: em que medida o método de interpretação escolhido (Capítulo 17)

se ajusta ao método de coleta de dados (Capítulos 11 e 13) e ao processo de

pesquisa planeado (Capítulo 4) ou à estratégia seguida na amostragem

(Capítulo 7). Para aprofundar estas considerações e para a aplicação dos vários

métodos, é necessário consultar os textos originais; por isso, no final de cada

capítulo apresentam-se sugestões de leitura e referências das obras mais

importantes.

O procedimento seguido na apresentação

O ponto de partida da apresentação, nesta obra, é a ideia de que, antes de mais,

a investigação qualitativa trabalha sobre textos. Os métodos de coleta da

informação – entrevistas ou observações – produzem dados que são

transformados em textos, por meio da sua transcrição e registo. Os métodos de

interpretação têm estes textos como ponto de partida. Vias diferentes

aproximam-nos ou afastam-nos dos textos situados no núcleo da investigação.

O processo de investigação qualitativa, pode ser muito sumariamente

representado como um caminhar da teoria para o texto e deste de novo para a

teoria. A intersecção dos dois caminhos traduz-se na coleta de dados verbais ou

visuais e na sua interpretação, no âmbito de um determinado plano de

pesquisa. No caminho da teoria para o texto, há uma posição teórica implícita em

cada método que se aplica. Podem distinguir-se diversas posições teóricas que

tradicionalmente, mas também mais recentemente, determinaram o campo da

investigação qualitativa; mas todas apresentam alguns traços comuns (Capítulo

2). Um deles afirma que, além de utilizar textos como material empírico, a

investigação qualitativa ocupa-se das construções da realidade e das suas

próprias, mas particularmente aquelas com que se depara no terreno ou nos

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sujeitos estudados. O Capítulo 3 ilustra com mais pormenor estas construções

do texto e da realidade.

Antes de chegar pela primeira vez ao material empírico, uma certa forma de

entender o processo de investigação – como linear ou interligado (Capítulo 4) –

é transformado em plano de pesquisa. É igualmente formulada a questão da

investigação (Capítulo 5) e procura-se encontrar uma resposta para o problema

do acesso ao terreno e aos sujeitos a incluir no estudo (Capítulo 6). É utilizada

uma estratégia específica de amostragem de casos ou de grupos (Capítulo 7).

A investigação qualitativa trata fundamentalmente de dois tipos de dados:

verbais, coligidos em entrevistas semiestruturadas (Capítulo 8) ou narrativas

(Capítulo 9). Por vezes utilizam-se grupos em vez de indivíduos (debates e

entrevistas de grupo, grupos focalizados e narrativas conjuntas: Capítulo 10).

No Capítulo 11, comparam-se as alternativas metodológicas de coleta de dados

verbais, e são apresentados critérios para a escolha segura de um método

determinado. Como segundo grande conjunto, os dados visuais resultam da

aplicação de vários métodos de observação, desde a observação participante até

à etnografia e à análise de fotografias e filmes (Capítulo 12). Estes dados são de

novo comparados, com base nos critérios utilizados para a escolha de um

método específico e para avaliação dessa escolha (Capítulo 13).

No passo seguinte, transformam-se os dados verbais e visuais em texto, pelo

seu registo e transcrição. A investigação inicia então a segunda parte da jornada

do texto à teoria. Registar os dados não é só fazer o seu registo neutral. É um

passo essencial na construção da realidade (Capítulo 14). A interpretação dos

dados é orientada quer para a codificação e categorização (Capítulo 15) quer

para a análise das estruturas sequenciais do texto (Capítulo 16). A comparação

dos principais métodos utilizados nas duas estratégias de interpretação dos

textos fornece uma indicação útil para decidir que método específico utilizar

(Capítulo 17). O enraizamento da investigação qualitativa (Capítulo 18) implica

o investigador em questões como o estabelecimento da validade e da adequação

do processo de pesquisa e dos dados produzidos. A alternativa é aplicar os

critérios tradicionais (viabilidade, fiabilidade), ou elaborar novos critérios. Foi

nesse contexto que os modos de redação da investigação qualitativa – suas

estratégias e resultados – mereceram grande atenção (Capítulo 19).

Na parte final desta obra discutem-se as perspetivas atuais e futuras da

investigação qualitativa. Torna-se cada vez mais importante o uso de

computadores (Capítulo 20). A forma de conjugar a investigação qualitativa e

quantitativa continua a ser um problema à procura de uma solução adequada

Capítulo 21). Além dos critérios, a questão da qualidade da investigação

qualitativa (Capítulo 22) relaciona-se com a indicação ou utilização de conceitos

e estratégias de gestão da qualidade e da avaliação e processos, como novos

caminhos para a fundamentação da investigação qualitativa.

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1.6 - A INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA NOS FINAIS DA

MODERNIDADE

No início desta introdução, foram referidas algumas alterações de potenciais

objetos da investigação qualitativa, para colocar em evidência a importância

desta. Adicionalmente, a maior necessidade de nos orientarmos para a

investigação qualitativa pode ser derivada de diagnósticos recentes das

ciências, em geral. Na discussão dos “agentes ocultos da modernidade”,

Toulmin (1990) explica em pormenor porque razões considera disfuncionais as

ciências modernas. E como caminhos para a Filosofia e a ciência em geral e,

portanto, para a investigação funcional empírica, enumera quatro tendências:

O regresso à oralidade, que se manifesta na tendência a formular teorias e a

realizar estudos empíricos, na Filosofia, na Linguística, na Literatura e nas

Ciências Sociais, nas narrativas, na linguagem e na comunicação.

No regresso ao particular, manifesto na formulação de teorias e na condução de

estudos empíricos, orientados “não só para questões universais e abstratas, mas

para tratar de problemas concretos, específicos, que não surgem de forma geral,

mas ocorrem em tipos específicos de situações” (1990, p. 190).

O regresso ao local, que encontra a sua expressão no reencontro com o estudo

dos sistemas de conhecimento, práticas e experiências, no contexto das

tradições (locais) e modos de viver em que se enraízam, em vez de assumir e

procurar testar a sua validade universal.

O regresso ao conceito de oportunidade, presente na necessidade de situar os

problemas estudados, e as soluções a propor, no seu contexto histórico ou

temporal, descrevendo-os nesse contexto e explicando-os com base nele.

A investigação qualitativa está vocacionada para a análise de casos concretos,

nas suas particularidade de tempo e de espaço, partindo das manifestações e

atividades das pessoas nos seus contextos próprios. A investigação qualitativa

pode, por isso, definir caminhos para a Psicologia e as Ciências Sociais, dando

expressão concreta às tendências enunciadas por Toulmin, transformando-as

em programas de pesquisa, mas mantendo a necessária flexibilidade, em

relação aos seus objetos e atividades.

Como construções à escala humana, os nossos procedimentos intelectuais e

sociais só farão o que nos é necessário no futuro, se tivermos o cuidado de

evitar uma estabilidade excessiva e os mantivermos preparados para se

adaptarem a funções e situações imprevistas ou mesmo imprevisíveis (1990,

p.186).

Nas páginas que se seguem serão delineadas sugestões e métodos concretos

para a utilização deste tipo de programas de pesquisa.

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Texto nº 2 - FLICK, Uwe, (2005) - Métodos Qualitativos na Investigação

Científica, Lisboa, Monitor, pp. 17-28

2

POSIÇÕES TEÓRICAS

PERSPETIVAS DE INVESTIGAÇÃO NO CAMPO DA INVESTIGAÇÃO

QUALITATIVA

O tema da investigação qualitativa engloba diferentes perspetivas de

investigação: diferentes nas hipóteses teóricas, no modo de entender o seu

objeto e na sua perspetiva metodológica. No geral, estas abordagens orientam-

se para três posições fundamentais: a tradição do interacionismo simbólico,

preocupado com os significados subjetivos e as atribuições individuais de

sentido; a etnometodologia, interessada nas rotinas do quotidiano e na sua

criação; e as posições estruturalistas ou psicanalíticas, que exploram os

processos do inconsciente psicológico ou social. É possível distinguir as

abordagens que focam “o ponto de vista do sujeito” (Bergold e Flick 1987) das

que procuram descrever determinados ambientes (do quotidiano,

institucionais, ou mais genericamente sociais), como, por exemplo, Hildenbrand

(1983). Encontramos também estratégias interessadas em saber como é

produzida a ordem social (por exemplo, as analises etnometodológicas da

linguagem) ou orientadas para a reconstituição das “estruturas de

profundidade, geradoras da ação e do significado”, da Psicanálise e da

Hermenêutica objetiva (Lüders e Reichertz 1986).

Todas estas perspetivas conceptualizam o modo como os sujeitos – com as suas

experiencias, ações, intenções – se relacionam com o contexto em que de

diversas formas são estudados.

2.1 - INTERACIONISMO SIMBÓLICO: O SIGNIFICADO SUBJETIVO

Para esta primeira perspetiva, o ponto de partida empírico é o significado que

os sujeitos atribuem às suas atividades e ao seu contexto, uma focagem ligada à

tradição do interacionismo simbólico.

A designação desta linha de investigação sociológica e sociopsicológica é da

autoria de Herbert Blumer (1938). Foca o processo de interação – ação social

caracterizada por uma orientação reciproca imediata – e a investigação destes

processos baseia-se num conceito particular de interação, que acentua o caracter

simbólico das ações sociais (Joas 1987, p. 84).

Como Joas revela, esta perspetiva enraíza-se na tradição filosófica do

pragmatismo americano. De modo geral, representa a ideia que a Escola de

Chicago faz das teorias e métodos (H.W.I. Thomas, Robert Park, Charles Horton

Cooley, George Herbert Mead) na Sociologia americana. O papel nuclear que

esta corrente tem na investigação qualitativa em geral pode ser demonstrado

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tanto no plano histórico como na atualidade: sociólogos como Anselm Strauss,

Barney Glaser, Norman K. Denzin, Howard Becker e outros referem-se

diretamente a esta corrente; e o trabalho de Blumer (1969) sobre a “postura

metodológica do interacionismo simbólico” teve um grande impacto sobre o

debate metodológico nos anos 70.

Hipóteses fundamentais

Blumer resumiu os fundamentos do interacionismo simbólico em “três

hipóteses simples”:

A primeira afirma que os seres humanos agem em relação às coisas, com base

no significado que elas têm para eles... A segunda diz que este significado

deriva, ou resulta, da interação social, entre o sujeito e os seus conhecidos. A

terceira estabelece que estes significados são manejados e modificados por meio

de um processo interpretativo que a pessoa utiliza para lidar com as coisas que

encontra (1969, p.2).

Consequentemente, o núcleo da investigação são as diferentes formas de o

individuo investir de significado os objetos, acontecimentos, experiencias, etc. A

reconstituição desses pontos de vista subjetivos torna-se o instrumento de

análise das realidades sociais.

Outra hipótese central está formulada no designado teorema de Thomas, que

constitui um outro fundamento do princípio metodológico acima referido,

Thomas.

Defende que quando uma pessoa define uma situação como real, esta torna-se

real nos seus efeitos. Este princípio metodológico fundamental do

interacionismo simbólico leva diretamente o investigador a olhar o mundo pelo

angulo do sujeito estudado (Stryker 1976, p. 259).

Partindo desta hipótese, o imperativo metodológico é reconstituir o ponto de

vista do sujeito (Bergold e Flick 1987) em diversos aspetos. O primeiro são as

teorias subjetivas de que as pessoas se servem para explicar a si próprios o

mundo ou pelo menos uma certa gama de objetos, enquanto parte desse

mundo. E assim que surge uma volumosa literatura a investigar as teorias

subjetivas sobre a saúde e a doença (veja-se por exemplo, a panorâmica

apresentada por Faltermaier 1994; Flick 1993°, sobre a educação (Dann 1990,

Groeben 1990) e sobre o aconselhamento (Flick 1992a). A segunda tem a forma

de narrativas autobiográficas, trajetórias biográficas reconstituídas do ponto de

vista dos sujeitos. Mas é igualmente importante que elas incluam contextos

locais e temporais reconstituídos de acordo com o ponto de vista do narrador

(consulte-se, para uma revisão, Bertaux 1981 e Kohli e Robert 1984).

Desenvolvimentos recentes na Sociologia: Interacionismo interpretativo

Em anos recentes, Denzin, desenvolveu uma perspetiva que parte do

interacionismo simbólico, mas integra outras alternativas e correntes mais

atuais. Encontram-se nela reflexões fenomenológicas (no seguimento de

Heidegger), formas estruturalistas de pensar (Foucault), criticas feministas e

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pós-modernas da ciência, a perspetiva das “descrições densas” (Geertz 1993) e

conceitos extraídos da literatura. Esta perspetiva é especificada e delimitada por

Denzin em dois aspetos: por um lado, só deve ser seguida, quando o

investigador pretende examinar a relação entre os problemas pessoais, por

exemplo a violência doméstica ou o alcoolismo, e as politicas e instituições

públicas criadas para enfrentar esses problemas pessoais (1989a, p.10); por

outro lado, Denzin restringe a perspetiva, quando enfatiza repetidamente que

os processos estudados têm de ser entendidos num plano biográfico e

interpretados necessariamente por esse angulo (1989a, 19-24).

Desenvolvimentos recentes na Psicologia: as teorias subjetivas como programa

de investigação

O propósito de analisar os pontos de vista subjetivos é prosseguido de forma

mais consistente no quadro da investigação sobre teorias subjetivas (Flick 1993;

Groeben 1990). Neste caso, o ponto de partida é a ideia de que, no seu dia-a-dia,

os indivíduos elaboram – como cientistas – teorias sobre a sua própria ação e

sobre o comportamento das coisas. Aplicam e testam estas teorias nas suas

atividades, revendo-as, se necessário. Nessas teorias, as hipóteses são

organizadas de forma independente, com uma estrutura de raciocínio

correspondente à estrutura das proposições nas teorias científicas (no sentido

em que são encaradas as teses teóricas; veja-se Stegmüller 1973). Este tipo de

investigação procura reconstituir aquelas teorias subjetivas. Foi elaborado com

esse fim um método específico de entrevista (veja-se o Capitulo 8 sobre a

entrevista semipadronizada). Para reconstituir as teorias subjetivas de uma

forma tao aproximada quanto possível do ponto de vista do sujeito, foram

desenvolvidos métodos especiais para validar (interactivamente) as teorias

reconstituídas (veja-se o Capitulo 18).

A orientação para o significado de objetos, atividades e acontecimentos, assim

como a concentração no ponto de vista dos sujeitos e no significado por eles

atribuídos às experiencias e acontecimentos, molda grande parte da

investigação qualitativa. Combinar a investigação orientada para o seu jeito

com o interacionismo simbólico, como é aqui o caso, só se pode fazer com

alguma reserva. A referência ao interacionismo simbólico nas investigações

recentes sobre as teorias subjetivas mantém-se geralmente a um nível pouco

explícito. Acresce que há perspetivas de investigação, provenientes da tradição

de Blumer e Denzin, mais interessadas nas interações que nas opiniões

subjetivas (por exemplo, os contributos de Denzin 1993). No entanto, nesses

estudos interacionista, continua a ser fundamental o foco no significado

subjetivo dos objetos para os participantes nas interações. No que se refere a

métodos, esta abordagem utiliza essencialmente diferentes formas de entrevista

(vejam-se os Capítulos 8 e 9) e de observação participante (veja-se o Capitulo

12).

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As duas posições – o estudo dos pontos de vista subjetivos e a fundamentação

teórica do interacionismo simbólico – é um dos polos destacados da

investigação qualitativa.

2.2 - A ETNOMETODOLOGIA: A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

SOCIAL

As limitações do interacionismo na abordagem do ponto de vista dos sujeitos

são superadas, nos planos teórico e metodológico, no quadro conceptual da

etnometodologia, uma escola fundada por Harold Garfinkel (1967).

A etnometodologia questiona o modo como as pessoas produzem a realidade

social nos seus processos de interação. Tem como preocupação central o estudo

dos métodos utilizados por elas para a produção da realidade quotidiana.

Garfinkel define assim os interesses da investigação na etnometodologia:

Os estudos etnometodológicos analisam as atividades quotidianas como

métodos com que os membros da sociedade tornam estas atividades claramente

racionais e descritíveis para todos os efeitos práticos, ou seja, “contabilizáveis”

como organização de atividades diárias comuns. A reflexão sobre esse

fenómeno é um traço singular da ação pratica, das circunstâncias concretas, do

conhecimento do senso comum sobre as estruturas sociais, e sobre o raciocínio

sociológico aplicado (1967, p. VII).

O interesse nas atividades do dia-a-dia, na sua execução – e, para alem disso, na

construção de um contexto de interação, localmente orientado, onde as

atividades são realizadas – caracteriza genericamente o programa de pesquisa

da etnometodologia. Este programa tem-se concretizado principalmente em

pesquisas empíricas de análise das conversas.

Hipóteses de base

Heritage condensa as premissas da etnometodologia e da análise das conversas

em três hipóteses básicas:

As interações organizam-se em estruturas,

as interações são moldadas pelo contexto, e também o renovam,

as duas propriedades são inerentes aos pormenores das interações, pelo

que nenhuma ordem desses pormenores pode ser a priori desprezado

como acidental, irrelevante ou desordenado (1985, p.1).

As hipóteses enumeradas em dois pontos nucleares: a ideia de que a interação é

produzida de modo ordenado; e de que o contexto, que é o seu enquadramento,

é produzido em simultâneo com a interação e através dela. Decidir o que é

relevante para os intervenientes na interação social só pode ser feito pela análise

dessa interação e nunca tomada a priori como certa. O foco não é colocado no

significado da interação e do seu conteúdo para os participantes, mas sim o

modo como a interação se organiza. O tema da investigação torna-se, assim, o

estudo das rotinas da vida quotidiana, mais do que os acontecimentos

marcantes, conscientemente percebidos e investidos de significado.

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Para tornar visíveis os métodos de organizar as interações, o investigador tenta

adotar uma atitude de “indiferença etnometodológica” (Garfinkel e Sacks 1970).

Deve abster-se de interpretações a priori assim como da adesão às perspetivas

dos atores ou de um deles em particular. O papel do contexto em que as

interações se desenrolam e a demonstração empírica da sua relevância para os

participantes é crucial para se compreender a perspetiva da etnometodologia

(veja-se Sacks 1992). Wolft et al. afirmam-no:

O ponto de partida fundamental de um procedimento… etnometodológico é

encarar qualquer acontecimento como resultado dos esforços produtivos dos

participantes in loco. Isto acontece não só em relação aos factos reais da

interação, por exemplo, o desenrolar das sequências de perguntas e respostas,

mas também no entendimento dos chamados macro factos, como o contexto

institucional de uma conversa (1988, p. 10)

De acordo com esta ideia, uma conversa de aconselhamento torna-se tal e

diferente de outros tipos de conversa) por meio dos esforços dos intervenientes

para evitar essa situação. O que interessa não é, pois, a definição a priori da

situação pelo investigador, mas antes o modo como a conversa se constitui em

consulta, através dos contributos dos intervenientes, na troca de palavras em

que a conversa se estrutura. Por outro lado, o contexto institucional torna-se

igualmente relevante para a conversa, construído através dos contributos dos

intervenientes. Só a prática especifica do conselheiro e do cliente fazem da

conversa uma consulta, num contexto determinado por exemplo, num “serviço

sócio psiquiátrico” (Flick 1989).

Desenvolvimentos recentes da etnometodologia nas ciências sociais: estudos do

trabalho

A investigação etnometodológica foi estreitando o seu foco, centrando-se cada

vez mais em análises crescentemente formalizadas das conversas. A partir de

1980, porém, com o “estudo do trabalho”, criou um segundo eixo de

investigação, a análise dos processos de trabalho (veja-se Bergmann 2002a;

Garfinkel 1986). Neste caso, os processos de trabalho são estudados em sentido

amplo, particularmente no contexto do trabalho científico em laboratório, ou

por exemplo, no modo como os matemáticos constroem a prova (Livingston

1986). Nestes estudos, são aplicados vários métodos para descrever tão

exatamente quanto possível os processos de trabalho, sendo a análise das

conversas apenas um deles. O objetivo amplia-se, desde o estudo das interações

até à preocupação com o “conhecimento materializado” naquelas práticas e nos

seus resultados (Bergmann 2002a). Estes estudos dão o seu contributo para o

contexto alargado da investigação recente em Sociologia do conhecimento

científico (veja-se Knorr-Cetina 1981; Knorr-Cetina e Mulkay 1983). A Sociologia

do conhecimento científico desenvolveu-se, de forma geral, no âmbito da

tradição etnometodológica.

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Desenvolvimentos recentes na Psicologia: psicologia do discurso

A partir da análise do discurso e dos estudos de laboratório, desenvolveu-se na

Psicologia Social britânica um programa de “Psicologia do Discurso” (veja-se

Edwards e Potter 1992; Harré 1998; Harré e Ster 1995; Porter e Wetherwell

1998). No seu âmbito, os fenómenos psicológicos são estudados pela análise dos

discursos relevantes sobre determinados temas: os discursos abrangem tanto as

conversas do dia-a-dia como os textos dos media, e o acento tónico é colocado

nos processos de elaboração e comunicação das mensagens. O ponto de partida

metodológico é a análise dos “repertórios interpretativos” usados pelos

intervenientes num determinado discursos para criar e confirmar uma versão

empírica da realidade. Os repertórios interpretativos são cachos de termos,

descrições e figuras de linguagem genericamente distinguíveis e agregados em

torno de metáforas e imagens vivas. Podem ser concebidos como os blocos com

que na conversação se constroem as versões dos atos, o eu e as estruturas

sociais (Potter e Wetherall 1998, p. 146). Com base nesses discursos

reconstituem-se os procedimentos e conteúdos dos processos cognitivos, assim

como são construídos e mediados os modos de entender as memórias coletivas

e sociais relativas a determinados acontecimentos (veja-se Middleton e Edwards

1990).

A perspetiva destas abordagens cinge-se à descrição do como na construção da

realidade social. As análises etnometodológicas oferecem frequentemente

descrições de uma exatidão impressionante sobre o modo de organização das

interações sociais, conseguindo assim estabelecer tipologias dos processos de

conversação. Todavia, a atribuição subjetiva dos significados é relativamente

descurada, como, por exemplo, o papel que os contextos anteriores, certas

culturas particulares, por exemplo, desempenham na construção das práticas

sociais.

2.3 - ENQUADRAMENTO CULTURAL DA REALIDADE SOCIAL E

SUBJETIVA: MODELOS ESTRUTURALISTAS

A investigação qualitativa fundamenta-se ainda num terceiro tipo de perspetiva

teórica. Esta tem uma característica comum, a que se pode dar maior ou menor

ênfase: pressupõe que os sistemas culturais de significado enquadram de certa

forma a perceção e construção da realidade subjetiva e social.

Hipóteses de base

Esta perspetiva distingue as experiências e atividades de superfície das

estruturas de profundidade da ação. A superfície é acessível ao sujeito

participante; as estruturas de profundidade não são acessíveis à reflexão

individual no dia-a-dia. A superfície está ligada às intenções e aos significados

subjetivos da ação, as estruturas de profundidade são geradoras das atividades

de superfície. Este tipo de estruturas de profundidade encontra-se nos modelos

culturais (D’Andrade 1987), nos padrões de interpretação e nas estruturas de

significado latentes (Oeverman et al. 1979), e nas estruturas latentes que se

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mantêm inconscientes, como afirma a Psicanálise (Devereux 1987; Erdheim

1984). A Psicanálise procura revelar o inconsciente tanto na sociedade como no

próprio processo de investigação. Analisar o processo de investigação e a

relação do investigador com os sujeitos observados ou entrevistados é um

instrumento para a descoberta do modo de funcionamento da “produção

societal da inconsciência” (Erdheim 1984). Para estas análises, as normas

implícitas e explícitas da ação têm uma importância especial. A hermenêutica

objetiva, escolhida aqui como exemplo das outras perspetivas referenciadas,

defende que:

Com base em normas que podem ser reconstituídas, os textos da interação

constituem as estruturas objetivas de significado. Representam as estruturas

latentes do sentido da própria interação. Estas estruturas objetivas de

significado dos textos da interação, protótipo das estruturas sociais objetivas em

geral, são uma realidade (e existem) no plano analítico (mesmo que não existam

empiricamente), a qual é independente da representação intencional concreta

do significado da interação pelos sujeitos nela participantes (Oeverman et al., p.

379).

Para reconstituir as normas e as estruturas, são vários os procedimentos

metodológicos aplicados à análise dos significados “objetivos” (isto é, não-

subjetivos) são análises linguísticas para extrapolar modelos culturais, análises

estritamente sequenciais das expressões e atividades, para revelar as suas

estruturas de significado objetivas, e “a suspensão calculada da atenção” do

investigador, no processo psicanalítico de interpretação (Devereux 1967;

Erdheim 1984).

A hermenêutica objetiva, em particular, no seguimento de Oeverman et al.

(1979) concitou uma grande atenção e estimulou um importante volume de

pesquisas no espaço da língua alemã (veja-se o capítulo 16). Há, contudo, um

problema por resolver na fundamentação teórica desta abordagem: a falta de

clareza da relação entre as ações dos sujeitos e as estruturas a extrapolar

(Lüders e Reichertz 1986, p. 95), por exemplo, criticam “a metafísica das

estruturas”, quase sempre estudadas como “estruturas de ações autónomas”.

Outros problemas são a equiparação ingénua do texto com o mundo (“o mundo

como texto”, veja-se Garz 1994) e a hipótese de que, se se avançar

suficientemente na análise, chegar-se-á às estruturas geradoras das atividades,

nos casos em estudo. É uma hipótese originada nas raízes estruturalistas da

perspetivas de Oeverman.

Desenvolvimentos recentes nas ciências sociais: pós-estruturalismo

Segundo Derrida (1976), estas premissas estruturalistas foram também postas

em questão na investigação qualitativa (Denzin e Lincoln 2000, p. 1051). Os

autores interrogam-se, por exemplo, se o texto produzido para fins

interpretativos e o texto formulado em resultado da interpretação

correspondem não só aos interesses do interpretador (na pesquisa ou outros

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quaisquer) mas também aos dos sujeitos estudados, os quais constituem tema

do texto (2000, p. 1051). Nesta ótica, o texto não é nem a realidade, per se, nem

uma representação objetiva de partes dessa realidade; é antes o resultado dos

interesses quer dos que o produzem quer dos que o leem. Leitores diferentes

resolvem de maneira diferente as ambiguidades e a vagueza que todo o texto

contém, dependendo isso da perspetiva com que o abordam (Agger 1991, p.

112). Esta fundamentação torna ainda mais prementes as reservas colocadas ao

conceito de estrutura da hermenêutica objetiva de que – “entre o uso das

estruturas de superfície e de profundidade da linguagem … há um “hiato”

metodológico na hermenêutica objetiva, o qual, na melhor hipótese, apenas

pode ser fechado, se o método for tratado e ensinado como arte (Bonss 1995,

p.38; veja-se também Reichertz 1988; 2002).

Desenvolvimentos recentes na Psicologia: representações sociais

O que nas abordagens estruturalistas permanece confuso é a relação entre o

conhecimento social implícito e o conhecimento e a ação individual. Para

responder a esta questão, será necessário tomar um programa de pesquisa de

Psicologia Social sobre a “representação social” dos objetos (por exemplo,

teorias científicas sobre objetos culturais e processos de mudança: veja-se Flick

1998 para uma revisão atualizada). Um programa desses focaria o problema da

influência do conhecimento social e culturalmente partilhado, sobre as

modalidades individuais de perceção, experiencia e ação. Uma representação

social pode definir-se como:

Um sistema de valores, ideias e práticas com uma dupla função: primeira,

estabelecer uma ordem que capacite os indivíduos para se orientarem no seu

mundo material e social e o dominarem: segunda, permitir a existência de

comunicação entre os membros de uma comunidade, dotando-os de um código

para as trocas sociais em para a denominação e classificação inequívocas dos

vários aspetos do seu mundo e da sua história individual e grupal (Moscovici

1973, p. XVII).

Esta abordagem é cada vez mais utilizada como quadro teórico dos estudos

qualitativos sobre a construção social de fenómenos como a saúde e a doença

(Herzlich 1973), a loucura (Jodelet 1991) e as mudanças tecnológicas na vida

quotidiana (Flick 1995a, 1996). Também nestes estudos as normas sociais

derivadas do conhecimento social de cada assunto são estudadas, sem serem

concebidas como uma realidade sui generis. Como métodos de estudo, são

utilizadas (em Jodelet 1991, por exemplo) diversas formas de entrevista (veja-se

o capítulo 8) e de observação participante (Capítulo12).

2.4 - RIVALIDADE DOS PARADIGMAS OU TRIANGULAÇÃO DAS

PERSPECTIVAS

As diferentes perspetivas de investigação qualitativa e respetivos fundamentos

podem ser resumidas num esquema como o da Figura 2.1.

Page 22: 41038 - Métodos Qualitativos - Uwe Flick (2005) - Métodos Qualitativos na Investigação Científica, Lisboa, Monitor

A primeira perspetiva parte dos sujeitos envolvidos na situação a estudar e dos

significados que essa situação têm para eles. O contexto, as interações com os

outros intervenientes na situação e, dentro do possível, os significados sociais e

culturais, são constituídos passo a passo, a partir desses significados subjetivos.

Como se mostra no exemplo do aconselhamento, o significado e o desenrolar

do facto “aconselhamento” são reconstituídos, nesta perspetiva, a partir do

ponto de vista objetivo (uma teoria implícita do aconselhamento). Se possível,

desvenda-se de caminho o significado cultural da situação “aconselhamento”.

A segunda perspetiva parte da interação no aconselhamento, estudando-se o

discurso (de ajuda, de reflexão sobre certos problemas, etc.) Os significados

subjetivos atribuídos pelos participantes têm aqui menos interesse do que o

modo como a conversa se organiza formalmente como consulta, e como os

participantes dividem os papéis entre si. Os contextos sociais e culturais

externos à interação só se tronam importantes, como contexto, na medida em

que sejam produzidos ou continuados no interior da conversa. A terceira

perspetiva interroga-se sobre as normas implícitas ou inconscientes que podem

governar os atos explícitos em situação, e sobre as estruturas latentes ou

inconscientes que poderão gerar atividades manifestas. O foco principal incide

na correspondente cultura e nas estruturas e normas que oferece aos indivíduos

para cada situação. Os pontos de vista subjetivos e os processos de interação são

especialmente importantes como meios de exposição e reconstituição daquelas

estruturas.

Para além deste confronto, encontram-se ainda dois modos de resposta às

diferentes perspetivas. Por um lado, pode adotar-se uma posição única, com a

sua visão do fenómeno estudado, pondo criticamente de parte as outras

perspetivas. Foi um tipo de definição que determinou durante muito tempo o

debate, no espaço da língua alemã; nos debates americanos, as diferentes

posições foram formalizadas em paradigmas, que se confrontaram numa

competição de paradigmas ou mesmo em “guerras de paradigmas”. (Guba e

Lincoln 1998, p. 218).

Figura 2.1 – Perspetivas na investigação qualitativa

Estudo do sujeito A e do seu ponto de vista

análise da interação e do discurso Estudo do enquadramento cultural das práticas

Estudo do sujeito B e do seu ponto de vista

Page 23: 41038 - Métodos Qualitativos - Uwe Flick (2005) - Métodos Qualitativos na Investigação Científica, Lisboa, Monitor

Em alternativa, as diversas posições teóricas podem entender-se como vias

diferentes para o estudo do fenómeno. Cada uma delas pode ser examinada

quanto a parcela do fenómeno que explora e àquela que exclui. Entendidas

assim, as diferentes perspetivas da investigação podem ser combinadas e

complementadas umas com as outras. Esta triangulação de perspetivas (Flick

1992a; 2002a) alarga a visão do fenómeno estudado, por exemplo, pela

reconstituição do ponto de vista dos participantes e pela análise posterior do

revelado nas situações partilhadas pela interação.

2.5 - TRAÇOS COMUNS ÀS DIFERENTES POSIÇÕES

Mau grado algumas diferenças de perspetiva, as várias correntes teóricas têm

em comum os traços seguintes:

A compreensão (Verstehen) como princípio epistemológico. A investigação

qualitativa procura compreender a partir do seu interior os fenómenos e

acontecimentos estudados (Hopf 1985). O que se quer compreender é o ponto

de vista de um ou mais sujeitos, o curso das situações sociais (conversas,

discursos, processos de trabalho) e as normas sociais ou culturais relevantes

para a situação. É a transposição de3sta compreensão em temos metodológicos

que depende da posição teórica subjacente à pesquisa.

A reconstituição dos casos como ponto de partida. Um segundo traço

partilhado pelas diferentes correntes é analisar cada caso de forma mais ou

menos consistente, antes de fazer comparações ou generalizações.

Reconstitui-se, antes de mais, por exemplo, uma teoria subjetiva singular, uma

conversa concreta, o desenrolar de uma caso, só depois se usam outros estudos

de caso e os seus resultados como termo de comparação (veja-se Hildenbrand

1995) para criar tipologias (de diferentes teorias implícitas, diferentes

sequencias de conversa, diferentes estruturas de casos). O que em cada caso é

entendido como “caso” – um indivíduo e os seus pontos de vista, uma interação

delimitada no tempo e no espaço, ou um contexto cultural onde o

acontecimento se dá – isso depende da posição teórica à luz da qual o material é

estudado.

A construção da realidade como base. Os casos ou tipologias reconstituídos

contêm vários níveis de construção da realidade: os sujeitos, com a sua visão de

um determinado fenómeno constroem uma parte da sua realidade; nas

conversas e discursos, são interactivamente produzidos fenómenos, que

igualmente contribuem para a construção da realidade; as estruturas de

significado latentes e as normas com elas relacionadas contribuem para a

construção das situações sociais e atividades nelas geradas. Consequentemente,

a realidade estudada pela investigação qualitativa não é dada; é, sim,

construída por diversos “atores”: qual deles será considerado crucial para essa

construção é algo que depende da perspetiva teórica assumida no estudo do

processo.

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O texto como material empírico. O processo de reconstituição dos casos induz a

produção de textos, sobre os quais são realizadas as análises empíricas: o ponto

de vista do sujeito é reconstituído na medida em que a sua teoria subjetiva é

formulada como texto; o curso de uma interação é registado e transcrito, a

reconstituição das estruturas de significado latentes só pode ser conseguida

com base em textos dados com o necessário pormenor. Em todos estes casos é o

texto a base da reconstituição e da interpretação. Que status se atribui ao texto é

algo que depende da posição assumida no estudo.

No Quadro 2.1 resumem-se as posições teóricas e os seus traços comuns; na

Caixa 2.1 completa-se a lista de traços da investigação qualitativa estudada no

capítulo 1.

Caixa 2.1 – Traços da investigação qualitativa: Lista completa

Adequação dos métodos e teorias Perspetivas dos participantes na sua diversidade Reflexão do investigador sobre a investigação Variedade de métodos e perspetivas na investigação qualitativa Verstehen como princípio epistemológico A reconstituição dos casos como ponto de partida A construção da realidade como base O texto como material empírico

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Texto nº 3 - FLICK, Uwe, (2005) - Métodos Qualitativos na Investigação

Científica, Lisboa, Monitor, pp. 29-37

3

CONSTRUÇÃO E COMPREENSÃO DO TEXTO

No capítulo anterior, afirmou-se que diferentes posições teóricas da

investigação qualitativa têm como traços comuns: verstehen, a referência a casos,

a construção da realidade e a utilização do texto como material empírico. Estes

traços originam diversas questões: como se pode entender o processo de

construção da realidade social, no fenómeno estudado e, ao mesmo tempo, no

processo de o estudar? Como é representada ou produzida a realidade, no caso

que é (re) constituído para fins de investigação? Qual a relação do texto com a

realidade?

3.1 - TEXTO E REALIDADE

O texto serve três propósitos, no processo de investigação qualitativa: constitui

os dados essenciais em que se baseia a descoberta; é a base da interpretação; e é

o meio fundamental da apresentação e comunicação dos resultados. É o caso da

hermenêutica objetiva, que assumiu a textualização do mundo como programa

(veja-se Garz 1994), mas é também o caso da generalidade dos métodos

correntes em investigação qualitativa. Ou são as entrevistas que contêm os

dados que são transformados em transcrições (ou seja textos), sobre as quais em

seguida se fazem as interpretações (na observação, as notas de campo são

Quadro 2.1 – Posições teóricas na investigação qualitativa

Ponto de vista do sujeito

Construção de realidades sociais

Enquadramento cultural das realidades sociais

Raízes teóricas tradicionais

Interacionismo simbólico

Etnometodologia Estruturalismo, Psicanálise

Desenvolvimentos recentes nas ciências sociais

Interacionismo interpretativo

Estudo do trabalho Pós-estruturalismo

Desenvolvimentos recentes na Psicologia

Programa de investigação “teorias subjetivas”

Psicologia do discurso

Representações sociais

Traços comuns Verstehen como princípio epistemológico Reconstituição dos casos como ponto de partida Construção da realidade como base O texto como material empírico.

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frequentemente os dados textuais de base; ou então a investigação parte do

registo das conversas e situações espontâneas para chegar à interpretação. Em

ambos os casos, encontramos o texto como resultado da coleta de dados e como

instrumento de interpretação. Então, se a investigação qualitativa se baseia na

compreensão das realidades sociais através da interpretação de textos, duas

questões se tornam especialmente importantes: o que acontece na tradução da

realidade para o texto? E o que sucede na retradução do texto para a realidade

ou na inferência da realidade a partir do texto? Neste processo, o texto

substitui-se à realidade estudada. Assim que o investigador recolhe uns dados e

a partir deles estrutura um texto, este passa a ser utilizado no resto do processo

como substituto da realidade a estudar. Originariamente, eram estudadas as

biografias, mas agora é a narrativa feita na entrevista que está disponível para

interpretação. O que resta desta narrativa é o que foi “captado” no registo e o

que ficou documentado pelo método de transcrição escolhido. O texto

produzido desta maneira torna-se a base das interpretações posteriores e das

descobertas que delas resultarem: verificar os registos acústicos torna-se tão

insólito como sujeitar a verificação os sujeitos entrevistados (ou observados). É

difícil controlar quanto e o quê da questão original – uma biografia, por

exemplo – o texto reproduz e contém. As Ciências Sociais, que necessariamente

se transformam numa ciência do texto (Gross 1981) e que se apoiam em textos,

como meios de fixar e objetivar os seus resultados, deviam prestar mais atenção

a este género de questões. A questão, raramente referida, da produção de novas

realidades (por exemplo, a vida como narrativa), em que se geram e

interpretam dados como textos e textos como dados, tem de ser mais

extensamente debatida.

3.2 - O TEXTO COMO CONSTRUÇÃO DA REALIDADE: CONSTRUÇÕES

DE PRIMEIRA E DE SEGUNDA ORDEM

A impossibilidade de reduzir a relação entre texto e realidade a uma simples

representação de factos dados foi objeto de prolongado debate, em diversos

contextos, como “crise de representação”. Winograd e Flores (1986) manifestam

sérias dúvidas sobre a própria ideia de representação, no debate sobre os limites

da representação da realidade em sistemas cognitivos ou computorizados; e

Paul Ricoeur encarou estes debates como um tema geral de Filosofia moderna.

A partir dos debates da Etnografia (Berg e Fuchs 1993; Clifford e Marcos 1986),

esta crise é discutida, no que se refere à investigação qualitativa, como uma

dupla crise de representação e de legitimidade. Como crise de representação, e

em consequência da viragem linguística nas Ciências Sociais, duvida-se que os

investigadores sociais “captem diretamente a experiência vivida. Esta

experiencia, afirma-se, é criada no texto escrito pelo investigador. É esta a crise

de representação… torna problemática a ligação direta entre a experiência e o

texto” (Denzin e Lincoln 2002b, p.17).

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A segunda crise é a crise da legitimidade: os critérios clássicos de controle são

rejeitados para a investigação qualitativa ou no seguimento do pós-

modernismo e rejeitada na globalidade a possibilidade de legitimar o

conhecimento científico (veja-se o Capítulo 18).

O ponto fundamental do debate é o seguinte: até onde, principalmente nas

Ciências Sociais, estamos preparados para supor a existência de uma realidade

exterior aos pontos de vista subjetivos socialmente partilhados, com base na

qual seja possível validar “a sua representação”, nos textos e outros produtos

da investigação. As diferentes variedades do construtivismo social (veja-se uma

breve revisão em Knorr-Cetina 1989) e do construcionismo (Gergen 1985)

rejeitam esta hipótese. Optam por partir da ideia de que a realidade é

ativamente produzida pelos participantes, por meio da atribuição de

significado a acontecimentos e objetos, e de que a investigação social não pode

fugir a estas atribuições de significado, se quiser tratar de realidades sociais. As

questões levantadas e a levantar, neste contexto, são resumidas assim por

Matthes: o que é que os sujeitos sociais tomam por real, e como o fazem? E em

que condições – na ótica dos que os observam – se mantém este tomar por real?

E ainda: em que condições os próprios observadores consideram reais as coisas

que observam desta maneira? (1985, p. 59). Os pontos de partida da

investigação são, pois, as ideias dos acontecimentos sociais, das coisas ou factos

que se encontram, no campo social estudado, e no modo como essas ideias

comunicam entre si – isto é, competem, entram em conflito, se impõem ou são

partilhadas e tidas por realidade.

3.2.1 – As construções sociais como ponto de partida

Alfred Schütz defende que os factos só se tornam relevantes pela sua seleção e

interpretação:

Estritamente falando, não existe tal coisa como um facto puro e simples. Todos

os factos são desde a origem selecionados de um contexto universal pela

atividade da nossa mente. São sempre factos interpretados, sejam eles olhados à

parte do seu contexto, por uma abstração artificial, ou ponderados no seu

enquadramento específico. Em qualquer dos casos, transportam os seus

próprios horizontes interpretativos internos e externos (1962, p. 5)

Podemos ver aqui um paralelo com Goodman (1978). Para Goodman, a

realidade socialmente construída, por meio de várias formas de conhecimento

do conhecimento comum até à ciência e à arte – que são vários “modos de

construção da realidade”. De acordo com Goodman – e Schütz – a investigação

social é uma análise destes modos de construção da realidade e dos esforços

construtivos dos participantes, no seu dia-a-dia. Uma ideia fulcral, neste

contexto, é a distinção feita por Schütz entre as construções de primeira e de

segunda ordem. Segundo ele, “os constructos das Ciências Socias são, por assim

dizer, constructos de segundo nível, isto é, constructos dos constructos

elaborados pelos atores da cena social”. Neste sentido, Schütz sustenta que “a

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tarefa primeira da metodologia das Ciências Sociais é a exploração dos

princípios gerais, pelos quais as pessoas organizam no dia-a-dia as suas

experiências, particularmente as do mundo social” (1962, p.59).

Sendo assim, as perceções e o conhecimento comuns são a base de elaboração

de uma “versão da realidade” mais formalizada e geral, pelos cientistas sociais

(Goodman 1978). Paralelamente, Schütz (1962, p. 208 e ss.) assume a existência

de “múltiplas realidades” sendo a da ciência apenas uma delas, organizada em

parte com base nos mesmos princípios que organizam a realidade do

quotidiano, e obediente em parte, a outros princípios.

Figura 3.1 – A compreensão, entre a construção e a interpretação

A investigação nas Ciências Sociais, em particular, é confrontada com o

problema de só encontrar o seu universo de estudo nas versões já existentes no

terreno ou nas que são construídas em comum ou em concorrência pelos

sujeitos, na sua interação. O conhecimento científico e a explicitação das inter-

relações englobam vários processos de construção da realidade: elaborações

subjetivas no dia-dia, pelos sujeitos estudados, e elaborações científicas (isto é,

mais ou menos codificadas) pelos investigadores, no tratamento e interpretação

dos dados e na apresentação dos resultados (Fig. 3.1).

Nestas construções, as relações tidas por garantidas são traduzidas: a

experiência do dia-a-dia é traduzida em conhecimento, pelos sujeitos

estudados; os relatos dessas experiências ou acontecimentos e atividades são

traduzidos em texto pelos investigadores. Como se podem tornar mais

concretos estres problemas de tradução?

Construção Textos como versão da realidade

Experiência

Interpretação

Meio natural e social Acontecimentos atividades

Compreensão, atribuição de significado

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3.3 - A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE NO TEXTO: A MIMÉTICA

Para responder à questão, buscar-se-á na estética e na teoria da literatura o

conceito de mimética (veja-se Iser 1993; Kunsforum 1991), as quais podem

oferecer pistas a uma Ciência Social assente em textos. A mimética refere-se à

transformação da realidade (natural, no original de Aristóteles) em mundo

simbólico. Foi primeiro entendida como “imitação da natureza”; mas o conceito

tem sido sujeito a um debate mais extenso (Gebauer e Wulf 1995). Um exemplo

sucinto e repetidamente utilizado de mimética é a representação das relações

sociais ou naturais em textos literários e dramáticos, ou no palco: “Nesta

interpretação, a mimética caracteriza o ato de produção de um mundo

simbólico, que engloba elementos práticos e teóricos” (1995, p:3). Mas o

interesse atual por este conceito ultrapassa o seu uso em textos literários ou no

teatro. Debates recentes tratam a mimética como um princípio geral que define

a nossa compreensão da realidade e do texto:

O indivíduo “assimila-se” a si próprio à realidade, pela via do processo

mimético. A mimética possibilita aos indivíduos saírem para fora de si, puxar o

mundo exterior para o seu mundo interior e dar expressão à sua própria

interioridade. Gera uma proximidade dos objetos que é inatingível por

qualquer outra via, sendo, por isso uma condição necessária da compreensão

(1995, pp. 2-3).

Ao aplicar estas considerações à investigação qualitativa, e aos textos nela

utilizados, podemos identificar os elementos miméticos pelos seguintes aspetos:

Transformação da experiência em narrativa, relatos, etc. pelas pessoas

estudadas;

Elaboração de textos baseados no ponto anterior e sua interpretação

pelos investigadores;

Finalmente, devolução destas interpretações aos contextos quotidianos,

por exemplo, através da leitura do texto que apresenta os resultados.

As reflexões de Ricoeur (1981;1984) constituem um frutuoso ponto de vista para

a análise dos processos miméticos na elaboração e interpretação dos textos da

Ciência Social. Em relação aos textos literários, Ricoeur dividiu os processos

miméticos, “jocosa, mas seriamente”, em três passos: mimética, mimética e

mimética.

A Hermenêutica, porém, preocupa-se com a reconstituição do ciclo completo

das operações, por meio das quais a experiência prática se dota de trabalhos,

autores e leitores… no fim desta análise, aparecerá como corolário que o leitor é

o operador por excelência que, ao fazer uma coisa – o ato de ler – assume a

unidade da transversalidade que vai da mimética à mimética, passando pela

mimética (1984, p. 53).

Ler e compreender textos torna-se um processo ativo de produção da realidade,

o qual envolve não só o autor do texto mas também aqueles para quem foram

escritos e os leem. Transposto para a investigação qualitativa, isto significa que,

na produção de textos (sobre um assunto, uma conversa ou um acontecimento

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quaisquer), aquele que lê e interpreta o que está escrito está tão implicado na

construção da realidade como aquele que o escreveu. De acordo com a

definição de mimética proposta por Ricoeur, numa Ciência Social baseada em

textos, podem distinguir-se três formas de mimética:

As interpretações do homem comum e as científicas estão sempre

baseadas numa preconceção da atividade humana e dos acontecimentos

naturais e sociais, a mimética: “Qualquer que seja o status destas

histórias, que de certo modo são anteriores à forma narrativa que

possamos dar-lhes, o simples uso da palavra “história” (com este sentido

pré-narrativo) atesta a nossa preconceção de que a ação é humana na

medida em que caracteriza uma história de vida merecedora de ser

contada. A mimética é esta preconceção da natureza da ação humana, da

sua semântica, do seu simbolismo, da sua temporalidade. Desta

preconceção, comum aos poetas e aos seus leitores, nasce a ficção, e com

ela a segunda forma de mimética, que é textual e literária” (Ricoeur 1981,

p.20).

A transformação mimética no “processamento” dos ambientes naturais

ou sociais para textos – seja em narrativas do quotidiano para outras

pessoas, seja em determinados documentos seja em textos para fins de

investigação – deve ser entendida como um processo construtivo, a

mimética: “O domínio da mimética situa-se entre os antecedentes e os

consequentes do texto. A este nível, a mimética pode ser definida com a

configuração da ação” (1981, p.25).

A transformação mimética do texto em compreensão acontece no

processo de interpretação, a mimética – no entendimento quotidiano das

narrativas, documentos, livros, jornais, etc., na interpretação científica

dessas narrativas e documentos de investigação (protocolos, transcritos,

etc.), ou nos textos científicos: a mimética assinala a intersecção do

mundo do texto com o do ouvinte ou do leitor (1981, p.26).

Na perspetiva formulada por Ricoeur, sobre o tratamento de textos literários, os

processos miméticos podem ser entendidos, em termos de Ciência Social, como

o cruzamento da construção e da interpretação da experiência (Fig. 3.2). A

mimética devolve a passagem da preconceção à interpretação, através do texto;

e este processo é consumado tanto no ato de elaboração e interpretação como no

de compreensão.

A compreensão, processo ativo de elaboração, implica aquele que compreende.

Nesta conceção da mimética, o processo não se limita ao acesso a textos

literários, antes se estende à compreensão na sua globalidade e, portanto, à

compreensão como conceito de saber, no quadro da investigação em Ciência

Social. É uma ideia clarificada por Gebauer e Wulf (1995), no seu debate geral

sobre a mimética. Referem-se á teoria de Goodman (1978) sobre as diferentes

vias de construção da realidade e das suas consequentes versões, enquanto

resultados do conhecimento:

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O conhecimento é, para este modelo, uma questão de invenção: os modos de

organização “não são encontrados na realidade, são construídos como

realidade”. A compreensão é criativa. Apoiada na teoria de Goodman da

construção da realidade, a mimética pode ser reabilitada por contraste com a

tradição que a despoja do seu elemento criador – assente, aliás, em pressupostos

falsos: o isolamento do objeto do conhecimento, a hipótese de uma realidade

existente fora dos sistemas de codificação, a ideia de que a verdade é a

correspondência entre proposições e um universo extralinguístico, o postulado

de que se pode seguir os traços do pensamento até às suas origens. Nada nesta

teoria se mantém intocável, depois da crítica de Goodman: “a realidade é

construída com outras realidades” (1995, p.17).

Figura 3.2 – O processo mimético

A mimética é, pois, colocada por Gebauer e Wulf na ótica da produção do

conhecimento, em geral, e por Ricoeur no processo de compreensão da

literatura, em particular, sem nenhum deles invocar rígida e estritamente a

idei

a

de

rep

rese

nta

ção

de

real

ida

de

dad

as em textos nem o conceito estrito de realidade e de verdade.

Construção Textos como

versão da realidade

mimética2 mimética3

Experiência Interpretação

Meio natural e social Acontecimentos atividades

mimética1 Compreensão, atribuição de significado

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3.4 - A MIMÉTICA NA RELAÇÃO DA BIOGRAFIA COM A NARRATIVA

Para maior clarificação, aplicar-se-á o conceito de processo mimético a um

procedimento habitual na investigação qualitativa. Grande parte da prática de

pesquisa concentra-se na reconstituição, através da entrevista, de histórias de

vida ou biografias. O ponto de partida baseia-se no pressuposto de que a

narrativa é a forma apropriada de apresentar a experiência biográfica (vejam-se

mais pormenores nos Capítulos 9, 10 e 16). Neste contexto, Ricoeur mantém “a

tese da qualidade narrativa ou pré-narrativa da experiência, enquanto tal (1981,

p. 20). E Bruner ilustra a relação mimética entre as histórias de vida e as

narrativas afirmando:

…que a mimética é um movimento de duplo sentido entre a assim chamada

vida e a narrativa. A narrativa imita a vida, a vida imita a narrativa. Neste

sentido a “vida” é uma construção da imaginação humana do mesmo tipo de

uma “narrativa”. É construída pelos seres humanos por meio de um raciocínio

ativo, o mesmo tipo de raciocínio envolvido na construção de narrativas.

Quando alguém conta a sua vida… é sempre uma realização cognitiva, não

uma simples récita de algo univocamente oferecido através de um cristal

transparente. É, afinal, um trabalho narrativo. Psicologicamente não existe isso

da “vida como tal”. No mínimo, é um trabalho de acesso a memórias, para além

disso, contar a sua vida é uma façanha de interpretação (1987, pp. 12-13).

Significa isto que uma narrativa biográfica não é uma representação de

processos factuais. Torna-se a apresentação mimética de experiencias,

elaboradas para este fim na forma de narrativa, na entrevista. Por outro lado, a

narrativa oferece, em geral, um quadro que permite localizar, apresentar e

avaliar as experiencias – numa palavra, o quadro em que são vividas. A questão

estudada (neste caso) pela investigação qualitativa já está construída e

interpretada no quotidiano, na forma em que se pretende estudá-la, isto é, na

forma de narrativa. Na situação de entrevista, este modo quotidiano de

elaboração e interpretação é utilizado para transformar as experiencias num

universo simbólico – a Ciência Social, com os seus textos. As experiências são,

então, reinterpretadas com base neste universo: “Na referência mimética, faz-se

uma interpretação com base na perspetiva de um universo produzido

simbolicamente, a partir de universo anterior (mas não necessariamente

existente), que já foi ele próprio objeto de interpretação. A mimética constrói, de

novo, mundos que já foram construídos” (Gebauer e Wulf 1995, p. 317).

Ao reconstituir-se uma vida em resposta a uma questão concreta, elabora-se e

interpreta-se uma versão da experiência. Em que medida a vida e as suas

experiências efetivamente aconteceram da forma relatada é algo que não se

pode verificar. É, no entanto, possível estabelecer as elaborações que o sujeito

faz dos dois planos e quais delas evoluem, na situação de investigação. Antes

da apresentação dos resultados desta reconstituição, as experiências e o

universo em que foram realizadas serão apresentados e encarados de forma

específica – na forma de uma (nova) teoria que para si reclama validade: “A

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ação mimética implica a intenção de apresentar uma realidade simbolicamente

produzida, de forma a ser percebida como realidade concreta” (1995, p. 317). A

fruição da mimética acontece na intersecção da realidade simbolicamente

produzida na investigação com a realidade da vida quotidiana ou do contexto

que a investigação estuda empiricamente: “A mimética é, por natureza,

intermediária, encaixada entre uma realidade simbolicamente produzida e uma

outra” (1995, p. 317).

De acordo com as posições dos vários autores aqui referidos, a mimética evita

alguns dos problemas que conduziram o conceito de representação à crise e à

sua transformação em ilusão. A mimética pode ser libertada do contexto da

expressão e explicação literárias e usada como conceito das Ciências Sociais,

que toma em atenção o facto de as coisas a ser compreendidas serem sempre

apresentadas a vários níveis: podem identificar-se processos miméticos no

processamento das experiências, na prática quotidiana, nas entrevistas e, por

meio destas, na construção de versões da realidade textualizadas e

textualizáveis, isto é, acessíveis à Ciência Social e à produção de textos para fins

de investigação. No processo mimético, são produzidas versões da realidade

que podem ser entendidas e interpretadas na investigação social (vejam-se

aplicações em Flick 1996). A identificação de várias formas de mimética por

Ricoeur e a distinção feita por Schütz entre elaborações quotidianas e científicas,

podem constituir mais um contributo para o quadro esboçado por Goodman

das diferentes versões da realidade, elaboradas na perspetiva do quotidiano, da

Arte e da Ciência. O investigador pode, assim, evitar as ilusões e crises

intrínsecas à ideia de representação, sem descurar no entanto, os elementos

constitutivos do processo de representação (ou melhor, de apresentação) e de

interpretação.

A investigação qualitativa, que assume como princípio metodológico a

compreensão obtida com diferentes procedimentos metodológicos, está desde o

início confrontada com a construção da realidade feita pelo seu “objeto”. A

experiência não é meramente espelhada em narrativas ou textos produzidos

sobre ela no âmbito da Ciência Social. A ideia de espelhar a realidade na

apresentação, na pesquisa e no texto terminou em crise. Pode ser substituída

pelo círculo multifásico de Ricoeur, de modo a entrar em linha de conta com as

elaborações daqueles que participam na explicação científica – o indivíduo

estudado, o autor do texto sobre ele, e o leitor. Na investigação qualitativa, a

diferença entre a explicação quotidiana e a científica reside na organização

metodológica do processo de investigação, que será tratado com mais pormenor

nos próximos capítulos.