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Coordenação EditorialIrmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria AdministrativaIrmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria Comercial Irmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção Filosofia e PolíticaLuiz Eugênio Véscio

FILOSOFIA & POLÍTICA

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Tradução deModesto Florenzano

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ISBN 88-7989-247-9 (original)Copyright© 1997 Donzelli Editore, Roma

Edizione brasiliana effettuata con l’intermediazione dell’ Agenzia Letteraria Eulama

Copyright© de tradução – EDUSC, 2000

Tradução realizada a partir da edição de 1997. Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa

para o Brasil adquiridos pela EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO

Rua Irmã Arminda, 10-50CEP 17044-160 - Bauru - SP

Fone (0xx14) 235-7111 - Fax (0xx14) 235-7219e-mail: [email protected]

Bodei Remo.A filosofia do século XX / Remo Bodei; tradução de

Modesto Florenzano. Bauru, SP : EDUSC, 2000.288 p. ; 21 cm. - - (Coleção Filosofia e Política)

ISBN 85-86259-84-5Tradução de: Não inclui bibliografia.

1. Filosofia moderna - Séc. XX. I. Título. II. Série.

CDD 190

B6665F

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Para ChiaraPara Lisa

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Nota introdutória1. As filosofias do ímpeto

O tempo reencontradoAs cicatrizes do crescimentoPeriferias da vidaEsperar no trágicoO horror da estagnação

2. Em direção a novas evidências: filosofia e saber científicoO pensamento matemáticoA relatividadeO espaço interior

3. O patos da objetivaçãoDurkheim e WeberDe Croce a Gramsci

4. Os desníveis da históriaO historicismo de DiltheyOutras humanidades: filosofia da antropologiaO pensamento revolucionárioMito e razão instrumental no Nacional-Socialismo

5. O encontro das filosofias e a nova epistemologia“De uma margem à outra”A filosofia americanaA epistemologia do neopositivismo e a sua crítica

Sumário

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6. O pensamento dialéticoConsciência e totalidadeA dialética negativa

7. O mundo e o olharHusserl: a visão da coisaSchütz: migrações de sentidoHeidegger: o desvelamento do SerWittgenstein: a linguagem e o mundoSartre: o olhar do outroLaing e Bateson: os nós inextricáveisMerleau-Ponty: a toalha brancaFoucault: o olhar do poder e as técnicas do euParfit ou o túnel de vidro da identidade

8. Os vínculos da tradiçãoA viagem da vida: Blumenberg e as metáforas“Ninguém conhece a si mesmo”: Gadamer e a hermenêuticaA mitologia branca de Derrida

9. Vida ativaArendt: pensar, querer, julgarHabermas: o deserto avançaRawls: “loteria natural” e justiça

10. Olhando para frenteOs horizontes da TerraDa ItáliaRorty: comunidade e verdadeIncerteza e desempenhoO retorno da responsabilidade

Índice onomástico

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Este livro oferece instrumentos para pensar a expe-riência de um século denso de transformações imprevistas.Reconstrói as coordenadas que orientam nossas paisagensmentais e delineia o mapa dos percursos nos quais a filoso-fia cruza com os saberes mais representativos. Captando asidéias em movimento, resultam bem mais visíveis, na suaespecificidade, os desdobramentos que articulam o discur-so filosófico, aqui referido, utilizando apenas as fontesprimárias. Com estilo narrativo límpido e rigoroso, sãoabandonados os dois modelos expositivos mais difusos: oda história linear (que apresenta uma ladainha de opiniõesremendadas pelo tênue fio da progressão cronológica) eaquele, totalmente privado de contexto, da descrição dossistemas miniaturizados e isolados (dotados de uma exis-tência autônoma e fora do tempo). Em seu lugar, prefere-se a representação de cenas teóricas compactas, escandidaspor quadros conceituais, nos quais os protagonistas tecemde maneira cerrada os seus argumentos no esforço de escla-recer problemas que são também nossos.

Em termos quantitativos, metade do volume baseia-se numa pesquisa precedente, porém radicalmente reelabo-rada (cf. Filosofia, in La cultura del 900, Gulliver, Milão

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Nota Introdutória

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1979 e Oscar Studio Mondadori, Milão 1981); ao passoque a outra metade é um trabalho completamente novo,que amplia algumas partes já escritas e introduz a reflexãofilosófica mais recente.

Los Angeles - Pisa, outono-inverno 1996-1997

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O tempo reencontrado

A quem acorda no meio da noite sucede, às vezes, se-gundo Proust, ignorar todos os dados relativos à própria pes-soa e ao lugar onde se encontra. A razão, entregando-se aosono, cancela todos os confins de tempo e de espaço. Nãoresta, ao despertar, mais que um elementar e indeterminado“sentimento da existência, tal como pode fremir no fundo deum animal” e num “homem das cavernas”. Para se situar ese orientar novamente ocorre reconstituir a rede das coorde-nadas do mundo e os “traços originais” do próprio eu, reali-zando em poucos instantes um salto “sobre séculos de civili-zação”. Mas para assumir a consciência de si é necessário re-compor a ordem das coisas. Primeiramente é o corpo, na es-curidão, que vem em ajuda, é “a memória de suas costelas,de seus joelhos, de suas espáduas” que lembra os vários tiposde camas em que dormimos, que procura adivinhar a posi-ção dos móveis e as situações vividas: “achava-me então nocampo, em casa de meu avô, morto havia muitos anos; [...]o muro estendia-se em outra direção: achava-me no meuquarto em casa da Sra. de Saint-Loup”. E, no entanto, “as pa-redes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peçaimaginada”, preparam o reconhecimento do lugar em que se

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capítulo 1

As filosofias do ímpeto

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está. Cada quarto se apresenta gravado na fuga de outrosquartos, que aparecem como seus contornos flutuantes, mar-gens indispensáveis do processo de especificação. Cada coisatem um halo de alteridade, movendo-se no seu estado flui-do, é atravessada pela corrente do tempo. Mas, eis que aconsciência está completamente desperta, retomou o contro-le da situação, intervém o pensamento que tudo solidifica:“A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes sejaimposta pela nossa certeza que essas coisas são elas mesmase não outras, pela imobilidade do nosso pensamento peran-te elas”. Nomeamos as coisas e (com objetivo pedagógico,para evitar dispersão e fadiga) as classificamos e simplifica-mos, delas suprimindo toda alteridade interna, toda plurali-dade de contornos, toda referência a nós: “O que as palavrasnos apresentam das coisas é uma imagem clara e usual comoessas que se dependuram nas paredes das escolas para dar àscrianças o exemplo do que é um banco, um pássaro, um for-migueiro, coisas tidas como semelhantes a todas aquelas damesma classe”.1 Para retomar posse de si e das coisas de ma-neira autêntica, deve-se realizar uma espécie de experimen-to, em solidão e em silêncio: reproduzir a duração pura, des-fazendo as resistentes concreções do presente, intuindo paraalém do pensamento imobilizante e da linguagem classifica-tória. Longe da multidão e da acossante vulgarização dostempos, protegidos dos estímulos muito intensos e por issoembotantes da cidade grande, libertos da constrição de ope-

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1. M. Proust, Em Busca do Tempo Perdido. No Caminho deSwann, Editora Globo, Porto Alegre 1981, p. 13-14, 320;vol. 1, tradução de Mário Quintana. Proust, seja pela qua-lidade artística de sua escrita, seja pela excelência da tra-dução brasileira, é o único, entre os inúmeros autores cita-dos por Remo Bodei, cuja tradução para o português nãofoi feita por nós. (N. T.)

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rar em termos práticos sobre as coisas – ao trabalhá-las, comefeito, elas revelariam hegelianamente uma diferente dureza– é possível evocar uma existência interior rica, complexa,matizada, traduzir a espacialidade no tempo da consciência,dar testemunho, do fundo de um laboratório-catacumba decortiça, de uma humanidade refinada e sensível prestes a de-saparecer.

Nessa solidão, pode-se fazer reemergir os estratosmais antigos de nós mesmos, os vários eus que se sucede-ram e que jazem em profundidades quase geológicas, es-magados pelo peso da nossa atual personalidade. Cada umdeles foi, no seu devido tempo, sepultado por um choquepoderoso, provocando seu abandono, obrigando-nos a umareinvenção de nós mesmos. O destino nos fornece, de res-to, tantos “eus de reposição” com os quais podemos refor-mular nossas paixões e nosso pensamento. Nos seus con-frontos, uma vez deixados para trás, experimentamos, nofinal, somente uma “ternura de segunda mão”.2 Por sorte,porém, não podendo elaborá-los completamente ou sub-metê-los de todo ao último eu no comando, eis que, às ve-zes, eles retornam. Descobrimo-lo de repente, com surpre-sa, no instante em que uma lembrança (da qual achavámosnão mais conservar nenhum traço) vem ao nosso encontrograças a uma centelha casual do presente. Nesses momen-tos reencontramos miraculosamente intacto um nosso “eu”passado, não gasto pelas modificações psíquicas sucessivas,paradoxalmente protegido e resguardado do esquecimentocomo se estivesse num estojo. Quando os dois eus cronolo-gicamente longínqüos – o do presente e o do passado – se

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2. Cf. Id., A Fugitiva, ibid, vol. 6, tradução de CarlosDrummond de Andrade.

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tocam à maneira de dois pólos em um arco voltaico, quan-do a emoção não se separa mais do conhecimento “por cau-sa do anacronismo que tão freqüentemente impede o calen-dário dos fatos de coincidir com o dos sentimentos”,3 entãose descobre como que um aroma de eternidade. Reparamosque alguma coisa salvou-se da destruidora voracidade dotempo. Parece então que se resolve “o enigma da felicida-de”, escondido nos reconhecimentos “estereoscópicos” denós mesmos ao permanecer idênticos através das mudan-ças, singulares e desdobradas. Estranhamente, os eventosque nos comovem, quando se apresentam por meio da lem-brança involuntária, são aqueles, à primeira vista, insigni-ficantes. Eles se salvaram, todavia, da homologação naperspectiva do presente justamente porque a inteligênciaos descartou, em razão de sua inutilidade: “a mínima pa-lavra dita em determinada época de nossa existência, o ges-to mais insignificante deixavam-se banhar e impregnarpelo reflexo de algo logicamente estranho, do qual os se-para a inteligência a cujos raciocínios não eram necessá-rios, mas onde – aqui, na rósea luz crepuscular a bater nomuro florido de um albergue campestre, na sensação defome, no desejo de mulheres; ali, em volutas azuis do marmatinal a envolverem frases musicais, delas emergindoparcialmente como ombros de ondinas – o gesto, o maissimples ato era encerrado como em mil vasos fechados,dos quais cada um contivesse uma substância de cor, chei-ro e temperatura absolutamente diversas; sem contar queesses vasos, dispostos ao longo de muitos anos durante osquais não cessáramos de mudar, ao menos de sonhos e de

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3. Id., Sodoma e Gomorra, ibid, vol. 4, tradução de MárioQuintana.

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idéias, situam-se em altitudes diferentes e nos fornecemsensações de atmosfera extremamente várias [...]. Sim, sea recordação, graças ao esquecimento, não pôde estabele-cer nenhum laço, tecer malha alguma entre si e o momen-to presente, se ficou em seu lugar, em seu tempo, se con-servou sua distância, seu isolamento no côncavo de umvale ou no cimo de uma montanha, ela nos faz respirar, derepente, um ar novo, precisamente por ser um ar outrorarespirado, o ar mais puro que os poetas tentaram, em vão,fazer reinar no Paraíso, e que não determinaria essa sensa-ção profunda de renovação se já não houvesse sido respira-do, pois os verdadeiros paraísos são os que perdemos”.4 Atais raros instantes podemo-nos agarrar para escapar dainexpressiva uniformidade de uma inteligência que nosesvazia de emoções e de matizes, empurrando-nos parauma routine esquecida do possível resgate do tempo.

As cicatrizes do crescimento

Séculos de civilização e a inexorável pressão das neces-sidades práticas conspiram, assim, para a tendencial univo-cidade e fixação dos pensamentos e das coisas que eles cap-turam. Isso tinha sido afirmado, em formas mais argumen-tativas, por Henri Bergson, primo por afinidade de Proust.Ele também tinha procurado demonstrar como os contor-nos nítidos que atribuímos às coisas não são mais que o es-quema de uma influência exercitável sobre elas, os progra-mas de possíveis manipulações: “Eles são o plano das nossas

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4. Id., O Tempo Redescoberto, ibid, vol. 7, p. 123, tradução deLúcia Miguel Pereira.

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ações eventuais reenviado aos nossos olhos como por um es-pelho, quando percebemos as superfícies e os contornos dascoisas [...]. Dissemos que os corpos brutos são recortados notecido da natureza por uma percepção cujas tesouras seguem,de alguma maneira, o traçado das linhas sobre as quais po-deria passar a ação”.5 A inteligência e a percepção imobili-zantes são os instrumentos de uma intervenção no mundo aserviço da sobrevivência da espécie humana. A ação, paraser eficaz, deve recortar o mundo segundo linhas de inter-venção possível. A fim de manipulá-lo deve, porém, ser ca-paz de medir e de prever, de forjar instrumentos e máqui-nas, de estender o seu poder sobre os mais disparatados fe-nômenos. Por isso a inteligência e as ciências são o prolon-gamento da ação na sua capacidade de fabricar objetos arti-ficiais, instrumentos e máquinas sempre mais perfeitos.

É a necessidade prática da ação que seleciona as lem-branças à vista das dificuldades do momento, que pede aju-da à memória para resolver analogicamente os impasses dequando em quando encontrados. O passado conserva-se as-sim virtualmente, de maneira automática, e a memória écomparada a um cone de ponta-cabeça, cujo vértice con-densa um número mínimo de lembranças ao tocar o níveldo presente, que sempre se afasta e sempre é perseguido,enquanto as lembranças aumentam progressivamentequanto mais se remonta em direção à base. “Inclinado so-

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5. H. Bergson, L’évolution créatrice, in Oeuvres, PUF, Paris,1959, p. 504. Todas as passagens de Bergson foram pornós traduzidas diretamente do francês. Para os demais au-tores franceses a tradução foi feita a partir do italiano, mascotejada com a tradução francesa do livro de Remo Bodei– La Philosophie Au XXe Siècle, Champs Flammarion, Pa-ris, 1999- de autoria de Corinne Paul-Maier com a colabo-ração de Paul Michon. (N. T.)

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bre o presente”, o passado nos persegue e bate à porta daconsciência.

Esse tempo só encontra escuta quando é consideradoútil, quantificável. Somente o espaço, contudo, pode sermedido, somente o que é exatamente programado e prees-tabelecido pode ser previsto. Ocorre, porém, que esse para-digma de domínio e de controle do real é impropriamenteestendido também ao campo da consciência e da culturahumana, espacializando o tempo e petrificando e homoge-neizando o que se modifica e se desenvolve. Eis, pois, queos nossos estados de consciência, “como seres vivos inces-santemente em vias de formação” são assimilados pelaexterioridade recíproca das coisas inertes (pelo tempo cro-nológico subdividido em partes iguais) e considerados es-táveis, malgrado a sua instabilidade, e distintos, malgradoa sua mútua compenetração.

O tempo cronológico é substancialmente aquele sím-bolo t, empregado nas equações da mecânica, que oferece aBergson, jovem professor em Clermont-Ferrand, a primeiraocasião para refletir sobre a duração e para distinguir o ca-ráter abstrato do primeiro, do caráter concreto da segunda,que tem valor intensivo e é “criação contínua, jorrar inin-terrupto de novidades”. E enquanto o tempo cronológico ésuposto como único e linear, o da duração é múltiplo, elás-tico, complexo, carente de um ritmo único. Contra a cons-ciência diluída e segmentada do tempo cronológico, exte-riorizada e dependente das coisas, ocorre reapropriar-se in-dividualmente da existência, redescobrir em nós mesmos afonte da espontaneidade e da transformação, o ímpeto “flo-real”, antimecanicista. Se na moldura do tempo espacializa-do assiste-se à dissipação do eu e à sua direta subordinaçãoa exigências sociais despersonalizantes, no interior da “du-

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ração”, cada um administra e capitaliza o próprio desenvol-vimento, provocando uma “avalanche sobre si mesmo.

Sobre qual fulcro insistir para sair da condição normalda inércia, do empobrecimento freqüente e da passividadeda consciência? Triste é, com efeito, a condição de quem sedeixa simplesmente arrastar pelo hábito: “A maior partedo nosso tempo, vivemos no exterior de nós mesmos, sópercebemos do nosso eu um fantasma desbotado, sombraque a duração pura projeta sobre o espaço homogêneo. Anossa existência desenvolve-se, pois, mais no espaço doque no tempo; vivemos mais para o mundo exterior do quepara nós; falamos mais do que pensamos; ‘agem sobre nós’mais do que agimos nós mesmos. Agir livremente é tomarposse de si, é entrar de novo na duração pura”.6

Inverter a rota, porém, é difícil, pois o nosso sensocomum, historicamente adquirido, deriva do paradigmado espaço homogêneo e inerte, sobre o qual intervém, re-cortando e coligando, uma inteligência instrumental quenão é verdadeira nem falsa (nisso Bergson está estreita-mente aparentado à cultura filosófica da época, comNietzsche ao empirocriticismo, com James à imagem cro-ceana da ciência). Do mundo da ação, ou seja, também dotrabalho, pode-se evadir para o mundo da duração pura,da liberdade, cujo reino começa além da práxis, além dotrabalho. E quem poderá gozar desse privilégio? Quempoderá de uma maneira elitista subtrair-se ao “agir sobrenós”? Quem poderá evitar a degradação – econômica,emocional, intelectual – da existência? Há em Bergsonum protesto implícito contra a deterioração do viver, a

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6. Id., Essai sur les données immédiates de la conscience, ibid.,p. 151.

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sombria impressão de que a ciência se tornou uma aliadada iliberalidade e da reificação.

A isso ele reage substancialmente com duas estraté-gias. Em primeiro lugar, enfatizando o ímpeto para a fren-te, negando toda datação imóvel e toda redução ao presen-te ou ao que já foi, sem todavia assegurar qualquer pro-messa de efetivo progresso: a evolução é imprevisível,pode-se somente confiar na mudança. Isso porque a “dura-ção” fica garantida pela analogia entre a consciência huma-na e a vida da natureza em sua complexidade. Ambas sãocriação contínua, autoprodução. A vida psíquica é um jor-rar constante de nova, imprevisível espontaneidade. O seu“ímpeto” é solidário com o impulso único que é a vida emgeral, que se dissocia nas suas várias formas animais e ve-getais, sofrendo paradas, desvios e regressões, mas tambémcicatrizando as suas feridas e seguindo sempre adiante. NaEvolução criadora (1907) o enfoque recai, mais do que na re-cuperação do tempo perdido, na projeção para o futuro,que é um caso particular do impulso do universo na dire-ção de metamorfoses contínuas. Um único e idêntico avan-ço, indivisível e ubíquo, permeia todos os seres. Bergson ocompara a “uma investida impetuosa” de um exércitoimenso. A propósito dessa metáfora militar, é interessantenotar – incidentalmente – como os oficiais franceses, edu-cados na Academia por instrutores bergsonianos na tática ena estratégia do élan vital, morressem aos milhares, no pri-meiro período da Grande Guerra, em “investidas impetu-osas” contra as guarnecidas trincheiras alemãs.

À luz dessa teoria, Proust aparece como uma espéciede Bergson de ponta-cabeça, melancólico, que inverte adireção do impulso vital: ao invés de direcioná-lo para afrente, para o futuro indefinido do ataque da cavalaria, o

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dirige para trás no tempo perdido individual, para, toda-via, reencontrar o eterno. O impulso vital bergsonianoavança, seja como for, ao longo de linhas de uma evolu-ção divergente, que opera não por adição ou associação,mas por desdobramento e dissociação, contendo paradas,desvios, regressões, atrofiações ou cicatrizes de possibili-dades inexpressas, latentes ou bloqueadas. Na vida indi-vidual, da infância à maturidade, perde-se sempre algu-ma coisa, restringe-se, ao crescer, a área do possível. So-mos, com efeito, obrigados a manter a nossa identidadeem um crescimento “em uma única direção”, podandocontinuamente as possíveis ramificações da nossa perso-nalidade, os eus que teríamos desejado ser: “Cada um denós, com um golpe de vista retrospectivo sobre sua histó-ria, constatará que a sua personalidade de menino, por-quanto indivisível, reunia em si pessoas diversas, que po-diam permanecer juntas porque estavam em estado nas-cente: essa indecisão cheia de promessas é um dos maio-res fascínios da infância. Mas as personalidades que secompenetram, tornam-se, com o crescimento, incompatí-veis e, dado que cada um de nós só pode viver uma vida,é obrigado a fazer uma escolha. Escolhemos, na realidade,incessantemente, e incessantemente abandonamos muitascoisas. O caminho que percorremos no tempo está cober-to de escombros de tudo o que começávamos a ser, detudo o que teríamos podido nos tornar”.7

Imergindo-nos na duração, sentimos pulsar novamen-te um impulso que, numa das últimas obras (Duração e si-multaneidade, de 1922), torna-se cósmico, envolve a inteirarealidade. Com os “golpes de sonda da duração pura” che-

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7. Id., L’évolution créatrice cit., p. 579-80.

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gamos a nós mesmos, tornamo-nos livres, conseguimos re-construir o sentido da nossa existência.

A segunda estratégia consiste em fechar-nos no inte-rior da última fortaleza da consciência individual, onde seacumulou aquilo que pôde ser salvo da reificação, onde secelebra o corroborante rito de recordar-se do próprio eu edo qual se espera, um dia, poder realizar uma saída paratornar apenas mais complexo e profundo o espaço externo.À eficácia das ciências é contraposta a verdade da filosofia,guardiã de uma vida mais intensa. A prática da filosofiapermite à consciência individual reconstituir-se numa uni-dade dinâmica, reunir-se novamente a si mesma, para alémda segmentação e da dissipação imposta por uma experiên-cia dissolvente e despersonalizante. O eu tem necessidadede recompor-se, de reestruturar-se continuamente e deconservar, ao mesmo tempo, a própria identidade e integri-dade (partindo de exigências análogas, mas com soluçãodiversa, Nietzsche invocou o nosso próprio querer no eter-no retorno do igual).

O conflito entre a individualidade e a desagregaçãoque a ameaça, é representado, de forma dramática, comocombate entre fluidez e congelamento, entre tempo e espa-ço, entre neo-lamarckismo (para o qual a evolução é movi-da por uma necessidade interna) e darwinismo (para o qualé movida pela luta pela sobrevivência). Fluidez, movimen-to, necessidade são as categorias portadoras do pensamen-to de Bergson, mas também aquelas que provocam maisresistências na consciência comum, “ptolemaica”: “Diantedo espetáculo dessa mobilidade universal, alguns serão to-mados de vertigem. Habituados à terra firme, não podemse acostumar à ondulação e à arfagem. Têm necessidade depontos “fixos” onde apoiar o pensamento e a existência.

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Acreditam que se tudo passa, nada existe; e que, se o real émobilidade, já não o é mais no momento em que é pensa-do, escapando ao pensamento. O mundo material, dizem,irá se dissolver e o espírito se afogar no fluxo torrencial dascoisas. Que se tranqüilizem! A mudança, se consentiremem olhá-la diretamente, sem véus interpostos, logo lhesaparecerá como o que pode haver de mais substancial e demais duradouro no mundo”.8

Nesse universo em perene movimento, a realidade re-desenha-se e reinterpreta-se continuamente; o conceito de“dados sensíveis” rigidamente positivista desprende-se (oobjeto visível complica-se em manchas coloridas, dissolve-se em linhas e planos que não obedecem mais aos cânonesda velha geometria projetiva; as tonalidades musicais se en-trecruzam, os sons se esvaem ou os acordes tornam-se auda-zes, principalmente dissonantes ou chocantes); também alinguagem e os módulos de pensamento devem mudar, des-manchar-se, recompor-se em níveis diversos e assimétricos,adquirir maior plasticidade e elasticidade, para manter sobcontrole estados de consciência e projetos de intervenção so-bre um mundo mutável que tem um alto coeficiente de ob-solescência; devem ir sempre além da capacidade média derecepção do grande público, que distingue a reconstituiçãodo momento inercial, a passividade e a reificação que rapi-damente se reproduz a cada novo avanço.

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8. Id., La pensée et le mouvant, in Oeuvres cit., p. 1385.

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Periferias da vida

Também para Georg Simmel, o indivíduo moderno émóvel, fluido, plasmável. Mas no sentido de um entrelaça-mento variável de realidades dadas e de possibilidades cons-truídas. Ele é semelhante a um número de cofre, formadopor elementos comuns a todos os outros, porém misturadosde modo a produzir uma precisa e inconfundível combina-ção. No passado, o homem estava encapsulado dentro deuma multiplicidade de esferas tendencialmente concêntri-cas (família, estirpe, corporação, Estado, Igreja). Abando-nando tal ordem e pondo o indivíduo na intersecção de cír-culos sociais excêntricos, a sociedade contemporânea avançaem direção a uma acentuada diferenciação.9 O indivíduotorna-se, assim, tanto mais ele próprio quanto mais englo-ba traços de universalidade compartilhados com outros equanto mais alarga o leque de combinações possíveis. Osci-lando entre processos de socialização e de personalização,todos temos, agora, a oportunidade – nem sempre captada,e nem sempre feliz – de “realização”.

Dar sentido à própria vida, ali onde a centralidade doindivíduo não está mais garantida pelas instituições, é toda-via um empreendimento árduo. Para cada acréscimo no pa-pel da subjetividade produz-se, com efeito, como contrapon-to, uma dilatação do âmbito da objetividade (e vice-versa), nosentido, por exemplo, de que a racionalidade inserida numasimples máquina de costura (objetividade privada de cons-ciência, projetada porém conscientemente, por um ou maishomens) toma o lugar da consciência, da habilidade, da capa-

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9. G. Simmel, La differenziazione sociale, Laterza, Roma-Bari, 1982, p. 119

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cidade, da atenção da mulher que, com a agulha e a linha exe-cutava à mão, as mesmas operações. Semelhantes movimen-tos resultam, agora, englobados na racionalidade interna damáquina, na qual o espírito “é por assim dizer traspassado”.10

A difusão das máquinas exonera dos encargos maispesados ou que requerem mais tempo, mas isso tem umpreço, até mesmo no campo dos trabalhos domésticos. Àmulher de determinadas camadas abre-se, com efeito, im-previstamente, um espaço não esperado de virtualidade, detempo livre, que ela não sabe ainda como gozar. A novacondição coloca-a, pelo contrário, em conflito com o pró-prio papel tradicional, já que o matrimônio, enquanto ins-tituição, não progrediu com a mesma velocidade do ”espí-rito subjetivo” dos cônjuges e das inovações técnicas. A li-bertação das fadigas não se traduz, assim, numa maior sa-tisfação pessoal, num aumento sensato do tempo de umavida sensata: “muitíssimas mulheres da classe burguesaperderam o conteúdo ativo da vida sem que, com a mesmarapidez, outras atividades ou outras metas viessem ocuparo lugar deixado vazio: a freqüente ‘insatisfação’ das mulhe-res modernas, a não utilização das suas forças que, retroa-gindo, provocam uma série de perturbações e de destrui-ções, a sua procura, em parte sadia e em parte mórbida, deexperiências fora de casa, é o resultado do fato de que a téc-nica na sua objetividade tomou um caminho próprio, maisrápido do que a possibilidade de desenvolvimento das pes-soas”.11 Quanto mais a racionalidade emigra da consciência

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10. Ibid., p. 13611. G. Simmel, Filosofia del denaro, Utet, Turin 1984, p.654-5 e cf. Id., “Cultura femminile”, in La moda e altri sag-gi di cultura filosofica, Longanesi, Milão, 1985.

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subjetiva e se instala em automatismos e suportes mate-riais (como o dinheiro), tanto mais o indivíduo corre o ris-co de ter esvaziadas as suas prerrogativas precedentes. A ra-cionalidade tende a carecer de sentido e o sentido a carecerde racionalidade. A transferência da espiritualidade paraautomatismos objetivos e privados de consciência deixa,todavia, aos indivíduos um espaço sempre mais amplo deliberdade e de indeterminação. Eles, agora, não têm que sepreocupar tanto com sobreviver, quanto com não “sub-vi-ver”, ou seja, de não ficar abaixo das próprias possibilida-des inexpressas.

A plenitude e o significado da vida encontram-se, po-rém, em tempos e espaços virtuais, num alhures não situá-vel nas séries dos acontecimentos e dos lugares nos quais es-tamos quotidianamente colocados. A eles chegamos nummovimento que só na aparência vai adventura, em direção àscoisas futuras, e em direção a países exóticos. Descobrimo-los, ao contrário, no presente e dentro de nós, em zonas “en-dóticas” (observadas de dentro) da experiência. O que se de-monstra, em primeiro lugar, estranho ou estrangeiro já estáem nós, é, antes, nós. Por meio de um falso movimento,Simmel descobre o essencial no inessencial, fixando o cen-tro de nossos interesses na periferia da vida costumeira: nomarginal, no excêntrico, nas possibilidades não saturadasque nos chegam como um dom ou como o resultado de umaatividade não inteiramente nossa, não inteiramente deseja-da (a aventura, os sonhos, as obras de arte).

Atravessando espaços logicamente intransitáveis,transpõe-se com o desejo as paredes do espelho que separao real do imaginário, penetra-se num mundo sem espessu-ra que aparece mais significativo do que aquele que tridi-mensionalmente e efetivamente vivemos. Estabelece-se um

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jogo de proximidade e de afastamento. Somos impelidospara uma zona de irrealidade veraz ou de desrealização quesatisfaz, para uma ilusão mais verdadeira que toda realida-de que nos circunda (verdadeira não em sentido perceptí-vel ou lógico, mas enquanto nos agrada, porque a intuímoscomo lugar de realização de possibilidades inatingíveis domundo). Abrem-se assim janelas de sentido imprevistas eimprováveis, mundos e enclaves extraterritoriais à realidadee ao tempo cronológico, que aludem a uma outra existên-cia mais digna de ser vivida, a uma pedra preciosa engas-tada na banalidade do cotidiano, a uma eternidade como“cessar das relações temporais”.12

Esperar no trágico

Contra Simmel, Lukács refuta o caráter errante daaventura e do marginal para encontrar o centro de gravi-dade e a verticalidade da vida no caráter definitivo do ins-tante. É preciso apoiar-se num ponto arquimédico sub-traído à mudança, numa necessidade trágica, irrevogávelque não se dissolva novamente em possibilidade: “Hojepodemos esperar novamente o advento da tragédia, por-que nunca como hoje a natureza e o destino acham-se tãoterrivelmente sem alma, nunca como hoje as almas huma-nas percorrem com tamanha solidão as estradas abandona-das; é possível esperar um retorno da tragédia, quando setenham dissipado por inteiro os fantasmas incertos deuma ordem de comodidades que a vileza dos nossos so-

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12. Id., “Il paesaggio di Böcklin”, in: Il volto e il ritratto.Saggi sull’arte, Il Mulino, Bolonha, 1985, p. 86.

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nhos projetou na natureza para criar uma ilusão de segu-rança”. Não é a aventura que conduz, pois, ao centro davida, mas a tragédia. A aventura não faz mais do que am-plificar a indeterminação da vida moderna. Existência evida contrapõem-se como o relativo ao absoluto. O trági-co põe-nos diante da profundidade dos “grandes instan-tes”. Quando os encontramos, abre-se diante de nós “ovazio dos abismos sempre mais escuros”, e sente-se um si-lêncio súbito. Somente, então, conseguimos dar uma dire-ção à vida que “se desenrola sem escopo”. Nesses instan-tes, o mutável torna-se efetivamente definitivo, o casualnecessário. O tempo redime-se e talvez abre-se a possibi-lidade de captar, na sua própria caducidade, os vislumbresdo eterno: “É possível fazer que as cores, o perfume e o pó-len dos nossos instantes, os quais talvez amanhã não maisserão, sejam subtraídos uma vez mais à deterioração, épossível captar a substância íntima dessa não-deteriorabi-lidade ainda que desconhecida de nós mesmos?”.13

A energia humana concentra-se intensivamente emsemelhantes momentos privilegiados, refutando a disper-são extensiva e a repetitividade do cotidiano. Com eles en-tramos na “idade heróica da decadência”, quando não nos émais permitido precipitar ou retardar, no momento emque é preciso parar o declínio, aceitando-o com virilidade,desbloqueando um impasse: “Quando as causas que origina-riamente se opunham ao sentimento vital, os fatos sentidoscomo estando em oposição e outros sentimentos entrandoem contraste inconciliável se agigantam até resistir comforça igual, então sobrevém o declínio real. Desse modo,

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13. G. Lukács, L’anima e le forme (1911), SugarCo, Milão,1963, p. 309, 231,228,235.

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tem início a idade heróica da decadência na qual não é maispossível avaliar hedonisticamente a virtude, olhar a vida demaneira que a virtude seja recompensa, a culpa expiação, ena qual, todavia, nas virtudes continua a resistir a energiaposicional pela intensidade infinita da velha vida, umaenergia que é incapaz de entrar em acordo com a mutávelrealidade, destinada, portanto, a sair perdendo [...] sãotempos em que, pelo fato de problematizar-se, a vida nãoexiste mais como valor central para o homem ético”. Ad-verte-se “o declínio trágico da própria existência”14 e põe-se o problema de como salvá-la de tal equilíbrio que para-lisa as decisões e dissipa as energias, favorecendo o “claroescuro” da existência. Certamente, os homens, o mais dasvezes, são ainda relutantes ao trágico. Aspiram ao modo depensar de Simmel, às delicias do indeterminado, do desco-nhecido e da aventura: “Para eles, atrás de toda parede ro-chosa que não poderão jamais superar, escondem-se paraí-sos imprevisíveis e eternamente inatingíveis. Para eles, avida é ânsia e esperança, os entraves impostos pelo destinotornam-se, com grande naturalidade, enriquecimento inte-rior da alma. O homem jamais aprende da existência a fozonde desembocam os seus rios: ali onde nada se completa,tudo é possível: o complemento é o milagre”. Na decisãotrágica, num único instante, ao contrário, despido de tem-poralidade, concentra-se e toma forma o sentido da vida.Então cada um encontra e reencontra a si mesmo. NessaSelbstbegegnung – nesse “encontro com nós mesmos”, comoo chamará Ernst Bloch – o centro imóvel, atemporal doexistir se entrevê na luz de um clarão de descontinuidade

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14. Id., Il dramma moderno, SugarCo, Milão, 1976,p. 56-8.

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com relação à existência experimentada como um percor-rer vazio. A morte, o limite, tornam-se fator de cristaliza-ção definitiva, dão significado à vida, fixando-a de uma vezpara sempre. E é justamente a experiência do limite queacorda a alma para o “culto do eu”, à autoconsciência, queimpede que se evapore no ar, que se desperdice em mil ria-chos que não têm nenhuma foz visível.

A tragédia arranca, pois, das margens de si e conduzao centro: “Na vida comum, os homens experimentamapenas a periferia de si mesmos” A tragédia constitui o mi-lagre que permite ao definitivo entrar na vida, que evita adissolução de tudo em variações: “Ela intervém no mo-mento em que energias misteriosas extraem do homem suaessência, obrigando-o à essencialidade; o processo trágicodesenvolve-se pela manifestação sempre maior desse serverdadeiramente único”.15

Na tragédia, o ponto culminante da vida se atinge nadissolução e na morte. Nela o essencial é “que uma vida ad-quira a própria expressão no ocaso, na ruína, que o máxi-mo da vida seja alcançável somente na morte e que essemomento seja representativo da vida típica [...]. A tragé-dia torna conscientes os processos vitais, pelo que se expe-rimenta uma alegria inebriante, quando se consegue vê-loscom transparência e compreender sua necessidade”.16 Con-tra a esperança, explicitamente recusada, a tragédia reduzas aberturas e as indeterminações da existência à univoci-dade irrevogável, à experiência de um limite intransponí-vel. É necessário saber negar a existência para alcançar avida, ser capaz de repudiar a realidade empírica para con-

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15. Id., L’anima e le forme cit., p. 307-8, 314, 311-2.16. Id., Il dramma moderno cit., p. 63, 65.

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seguir aquilo que é imutável e cingido nos seus limites: “Oque os homens amam da existência é o seu clima, a sua in-determinação, o seu constante oscilar como um pênduloque nunca toca os extremos; amam a grande incerteza,como uma monótona, soporífera canção de ninar [...]. Oshomens odeiam a univocidade e a temem. A sua debilida-de e a sua vileza circundam todo impedimento que vem defora, todo obstáculo que impede os seus caminhos”.17

O horror da estagnação

Bergson, Simmel, ou o jovem Lukács, estão inseridosnesse vasto programa de pesquisa de novas linguagens e,indiretamente, de revitalização de uma civilização. Estãopróximos dos Verlaine, dos Debussy ou da art nouveau,compartilham o plus ultra das vanguardas, coincidem sobrea individualidade e a continuidade insidiadas, têm um sin-tomático horror da estagnação, doença mortal também deuma economia que deve avançar para não sucumbir. Masnão são os únicos a participar dessa profunda inquietação.

Nos anos posteriores à Comuna de Paris e à “grandedepressão”, em muitos dos contemporâneos penetra a idéiaque a auto-regulação do mercado acabou e que o governoda multidão está para começar, que se é obrigado, em cir-cunstâncias extremas, mas não improváveis, a passar ou sobas forcas caudinas da mais rígida e forçada regulamentação,ou sob as da anarquia econômica e social. A “mão invisí-vel”, de smithiana memória, parece cansada de sempre in-tervir para remediar o mal, transformando os vícios priva-

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17. Id., L’anima e le forme cit., p. 307.

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dos em virtudes públicas e o egoísmo em benefício coleti-vo. A espontaneidade relativa dos comportamentos indivi-duais não mais produz automaticamente o presumido in-teresse geral; não há mais harmonia entre o “livre” agir dosindivíduos e das classes e o progresso do “devir social”. Avisibilidade dos processos turvou-se: entre a ação e o resul-tado previsto penetrou o azar, o imprevisível, o elevadoquociente de risco. Somente, o resultado do que aconteceu,poderá estabelecer se os meios eram adequados ao fim. Aeficiência pressupõe uma convalidação a posteriori. Em ter-mos gnoseológicos: entre o pensamento e os seus objetosnão há mais correspondência e a “verdade” não é mais con-cebível como adaequatio da coisa ao intelecto. Conhecerpode significar no máximo dominar, manipular, organizaro mundo para fins práticos, de comando ou de sobrevivên-cia. Morto também Deus – para largos estratos sociais –cessa a necessidade de uma teodicéia, de uma justificaçãode Deus mediante a exibição da ordem do mundo.

O que fazer? Urgem novos modelos de intervenção.Pode-se agir sobre dois registros (separadamente, ou me-lhor, em combinação entre si ou com outras técnicas): 1)aumentando a asperidade e a capilaridade do controle so-cial, da disciplina externa e interna (por meio de mecanis-mos de interiorização ética, política ou terrorista de deter-minadas regras e obrigações); 2) promovendo o desenvolvi-mento das forças produtivas, mobilizando as energias indi-viduais das classes dirigentes e convocando novamente asreservas da consciência. No primeiro caso, deve-se recorrera uma planificação todo-poderosa e despersonalizante, “es-pacializante”, no sentido de que se devem neutralizar asconsciências desviantes de quem não tem interesse ou von-tade de participar nessa reestruturação. No segundo caso, a

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consciência que pode pensar em si mesma, perdida a sua –em parte ideológica – espontaneidade social, procura emsi uma espontaneidade ao quadrado, um desenvolvimentoexponencial que parta da descoberta da própria base idên-tica. Essa mais potente espontaneidade, que é a criação donovo, encontra o seu pendant num campo aparentementelongínquo, mas que obedece às mesmas linhas de força deum projeto social complexo: na Teoria do desenvolvimento eco-nômico de Schumpeter, de 1911. Opondo-se aos teóricos doequilíbrio econômico geral (Walras, Pareto), ele proclamaa necessidade do desenvolvimento, fundado sobre inova-ções veiculadas pela vontade de sucesso, pela combativida-de e pela “alegria de criar” das grandes individualidades,dos empreendedores, dos capitães de indústria. Estes últi-mos quebram o “fluxo circular”, a routine econômica nor-mal, e a ela substituem pela dinâmica do desenvolvimen-to. No mais das vezes os homens, com o objetivo de pou-par energia, vivem inconscientemente num universo de re-petitividade, de hábitos: “Isso deriva do fato de que [...]todo conhecimento e todo hábito, uma vez adquiridos,permanecem tão solidamente firmes em nós e tão indiscer-níveis dos outros elementos de nossa pessoa quanto um tri-lho numa ferrovia. Eles não têm necessidade de a cada vezserem renovados e tornados conscientes, pois afundam,pelo contrário, nos estratos do subconsciente”.18 Os em-preendedores subvertem esta atitude.

Inovar para não cair na estagnação e na regressão; de-senvolver a consciência (pelo menos de alguns) e mantê-lavigilante para não ser engolida pela inércia e pela disper-

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18. J. Schumpeter, Teoria dello sviluppo economico, Sansoni,Florença, 1971, p. 103,94.

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são. Estas são as palavras de ordem para exorcizar o perigo,então sentido, do caráter precário daquela “civilização” edaquela consciência. Basta, com efeito, que a consciênciarelaxe para revelar seu caráter lábil. No sonho, na rêverie,nos estados crepusculares e patológicos pode-se observar oseu desaparecimento, a sua “superfluidade” para a vida or-gânica. Ela é uma aquisição filogeneticamente mais recen-te, que não deitou ainda raízes sólidas, que se desfiguradiante da estabilidade dos organismos biológicos e da “me-mória orgânica”. A consciência e a civilização são fenôme-nos intermitentes: podem ser temporariamente colocadosentre parênteses por um distúrbio psíquico ou por um con-flito mortal. Nesses termos, também se expressará Freudnas Considerações atuais sobre a guerra e a morte de 1915. Cha-ma a atenção, em tais afirmações, a percepção histórica in-direta da crise e do equilíbrio precário não da civilizaçãoem geral, mas daquela forma específica, a idéia de que oobnubilamento da consciência já é, latente, dentro de cadaum de nós, a par daquele que poderíamos definir o “mauselvagem”, o primitivo escondido na caverna da consciên-cia e pronto a predominar tão logo deixamos de estar aler-tas. Percebemos, sempre mais claramente e de muitos pon-tos, a idéia que uma recaída na barbárie é possível oudeveras iminente, que o progresso e os hábitos de raciona-lidade precedentemente em vigor não estão mais garanti-dos e talvez nem sejam mais desejáveis.

Assim, Georges Sorel é levado a refletir sobre os cic-los da história e a formular a hipótese – por causa do recairda luta de classe no reformismo – do retorno ao ingenssylva da sociedade capitalista moribunda. Sem o uso dos“mitos”, que elevem artificialmente o nível do combate, oque existe é estagnação e não transição a uma civilização

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superior. Na “nova metafísica” da idade moderna, nãomais baseada no reflexo das presumidas estruturas objeti-vas do mundo, o mito é produzido pela vontade de acre-ditar, constitui uma máquina que captura e articula emcombinações sempre novas as energias inconscientes e asemoções dos homens com vistas a ações ou sublevações so-ciais. Ele não está ligado a nenhuma prova de realidade oucoerência lógica, mas somente à coerência fantástica, rela-tivamente aos desejos de redenção, das paixões, das aspi-rações e das lutas das multidões na iminência de mudan-ças radicais: “os homens que participam dos grandes mo-vimentos sociais concebem sua próxima ação sob forma debatalhas, da qual sairá o triunfo da própria causa [...] nes-se sentido, a greve geral dos sindicalistas e a revolução ca-tastrófica de Marx são mitos”.19

O fortalecimento do Quarto Estado, a difusão da al-fabetização e o acrescido número dos “intelectuais”, avontade das massas emergentes de participar ativamenteda organização social e política, parecem a muitos um ne-fasto nivelamento dos homens, o desencadeamento daanarquia sem rosto promovida pelos socialistas. TambémPareto concebe, desse modo, o papel dos intelectuais pe-queno-burgueses que constituem o aparato dos partidossocialistas: “O proletariado intelectual dos deslocados,que em parte tem origem na instrução pública, inoportu-namente, tolamente ordenada pela burguesia, parte paraa conquista do Estado e dos bens da burguesia”.20 E assim

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19. G. Sorel, Considérations sur la violence, Rivière,1908.20. V. Pareto, “Memento homo”, in: Il Regno, I, 1904, 55,p. 532.

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Le Bon anuncia uma nova era de desordens, de inseguran-ça: “O advento das massas assinalará talvez uma das últi-mas etapas das civilizações ocidentais, um retorno na di-reção daqueles períodos de anarquia confusa que prece-dem o florescimento de novas civilizações”. Para sorte dequem sabe guiá-las, as multidões são manobráveis (Mus-solini dirá ter lido inúmeras vezes a Psicologia das multi-dões de Le Bon): elas “se encontram mais ou menos nascondições de um dormente, cujas faculdades racionais,momentaneamente suspensas, deixam nascer na menteimagens de extrema intensidade, que logo se dissipariamse a reflexão interviesse”.21 Os chefes, os meneurs de foules,têm um segredo para se fazerem seguir, mesmo se pare-cem vender unicamente ilusões e mentiras. Eles vendemna realidade a coisa mais preciosa, a esperança. Olhandopara a sua própria infância, Le Bon encontra a origem dassuas convicções na superioridade da sugestão irracionalcom relação às argumentações racionais e ao conexo prin-cípio de realidade. Quando era criança, chegou, com efei-to, à sua pequena cidade um vendedor de drogas, ummago coberto de roupas cintilantes. Vendia a preço de ba-nana um remédio contra todos os males, um elixir capazaté de assegurar a felicidade aos que o adquiriam. O far-macêutico local – homem “enxuto, magro e severo”- nãose cansou de dizer que se tratava de simples açúcar: “Mas,que valor podia ter a fala deste lojista ciumento, contra asafirmações de um mago coberto de ouro, atrás do qualimponentes guerreiros tocavam cornetas? [...] O que omago vendia era o elemento imaterial que guia o mundoe que não pode perecer: a esperança. Os sacerdotes de to-

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21. G. Le Bon, La Psychologie des foules (1895), PUF, 1947.

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dos os cultos, os políticos de todos os tempos, venderamalguma vez coisa diferente?”22

Da manipulação das coisas passa-se à manipulação“científica” dos homens, à utilização da energia livre e po-tencialmente subversiva da massa, com vistas a objetivosque lhe são estranhos. A inteligência, a vontade, a capaci-dade de organização e de previsão das elites deve-se concen-trar, intensificar, para poder guiar instrumentalmente essaenergia de união ainda cega (talvez não por muito tempo);deve manter uma separação permanente da cultura e dasaquisições da massa, e deve se apressar. O progresso – umavez sustentado – é-o de forma paroxística ou em conexãocom a destruição, a morte regeneradora. Com essas vestesaparece, extremado, nos venenosos mas reveladores elogiosmarinettianos da velocidade, da máquina e da guerra. Di-ferentemente de Bergson, aqui a máquina não é o produtoda inteligência embotada, mas o modelo do homem do fu-turo e a companheira sensual do presente: “Já observaramum maquinista quando lava carinhosamente o grande cor-po possante da sua locomotiva? São como as carícias esper-tas e minuciosas que um amante pratica com sua mulheradorada. Pôde-se constatar na grande greve dos ferroviáriosfranceses, que os organizadores da sabotagem não conse-guiram induzir nem um único maquinista a sabotar a sualocomotiva. Isto me parece absolutamente natural. Pois,como um homem desses teria podido ferir ou matar a suagrande amiga fiel e devotada, de coração ardente e à dispo-sição: a sua bela máquina de aço que tantas vezes brilharavoluptuosa sob sua carícia lubrificante? [...] É preciso,

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22. Id., La psychologie politique, Flammarion, Paris, 1911,p. 134-5.

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pois, preparar a iminente e inevitável identificação do ho-mem com o motor, facilitando e aperfeiçoando uma trocaincessante de intuição, de ritmo, de instinto e de discipli-na metálica, absolutamente ignorado pela maioria e so-mente adivinhado pelos espíritos mais lúcidos”.23

Na disciplina metálica e na identificação com o mo-tor, distribuidor de energia, a classe dominante obtém umanova legitimação. Modernizando o apólogo de MenenioAgrippa, pode-se dizer que ao “estômago” da propriedadefundiária, que teria redistribuído a nutrição aos “braços”da plebe, se substitui o “motor” do capitalismo industrial,que transmite o movimento aos órgãos mecânicos da“maioria”. A inovação passa pelo controle rigoroso, da ani-quilação daquilo que passa a ser julgado “velho”, incluin-do a guerra, a luta contra a “possante morte, atlética e co-berta de trevas”.24 Também os objetos começam a mudarde forma. Acabam as sinuosas formas liberty; o mundo ve-getal, do qual gostava de se cobrir um industrialismo queainda se envergonhava de si mesmo, secou; o ímpeto enco-raçou-se, enrijecido nas enxutas geometrias das armas e dosobjetos em série.

Em parte, convergente com as posições acima expos-tas é, na Itália, a filosofia de Giovanni Gentile, que tantopeso teve também por motivos extra-teóricos. Ele tinhapartido de uma interpretação em sentido ativista do mar-xismo – a práxis como produção subjetiva do homem, aeducação do educador (de uma interpretação própria da

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23. F.T. Marinetti, L’uomo moltiplicato e il regno della macchi-na, agora in: Teoria e invenzione futurista, Mondadori, Milão,1968, p. 255-6.24. Id., La battaglia di Tripoli, Edizioni futuriste di “Poe-sia”, Milão, 1912, p. 10.

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terceira Tese sobre Feuerbach de Marx), a unidade de mestree de discípulo – para chegar a uma concepção, mais neo-fichtiana do que neo-hegeliana, do movimento espiritual,e à adesão ao fascismo como herdeiro do Risorgimento e an-tagônico ao atomismo individualista atribuído ao liberalis-mo. Nele, o pensamento é um ato que não se pode nuncaobjetivar por completo, que deve incessantemente englo-bar a alteridade, destruindo também as escórias empíricase individualistas. É energia que se descarrega e se degradadepois de cada pausa (aqui, verdadeiramente, “quem páraestá perdido”: estamos em plena guerra de movimento) eque todavia perenemente ressurge das próprias cinzas.

No verão de 1943 – depois do 25 de julho e antes do8 de setembro, entre a queda de Mussolini e o momentocrucial da destruição das instituições – Gentile exprimeum dos pontos mais altos do seu pensamento em Genesi estruttura della società. Com o patos de quem vê afastar-se arealização de seus ideais, elabora ainda uma vez o tema do“Estado ético”. Considera-o o objetivo supremo ao qualtende uma comunidade e, ao mesmo tempo, o instrumen-to da fusão completa e sem resíduos dos indivíduos numtodo orgânico, rede sólida que institui e mantém os víncu-los de solidariedade entre os cidadãos de uma determinadanação. Nos confrontos do indivíduo, o Estado assume o pa-pel que tinha Deus, para Agostinho na alma de cada um,de ser “mais íntimo a mim mesmo de quanto eu o sou deminha parte mais íntima” e “mais alto do que as minhasfaculdades mais altas” (cf. Confissões, III, 6, 11). Por isso –afirma Gentile – ele não se realiza no mero inter homines esse,mas vive também e sobretudo in interiore homine. Nós so-mos o Estado. Ele contém, porém, também um elementode alteridade, de superioridade, com o qual devo entrar ne-

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cessariamente em conflito. A sua é uma autoridade que pa-rece limitar arbitrariamente a minha liberdade até que, de-pois da luta, não compreendo o vínculo escondido peloqual o indivíduo se desenvolve paralelamente ao Estado.“No fundo do Eu há um Nós”: é este o motivo constante,que se estende em numerosas variações e modulações. Nabase do Eu acha-se “uma espécie de socialidade originá-ria”,25 que o ancora e o estabiliza na sua identidade, a qualde outro modo seria absurda, incerta e móvel (pois, mesmoquerendo, o indivíduo não conseguiria nunca ser “este Eu”,átomo singular isolado, o Único, no sentido de Stirner). Oindivíduo é parte da societas, para cuja vida contribui. Cadaum tem em si próprio o socius e todo pensar é um dialogar,simultaneamente, consigo e com o outro de si que não re-presenta somente um hóspede passageiro, que não está so-mente em nós, mas é Nós. Na concreta dialética do “parti-cular” e do “universal” (duas entidades abstratas, se consi-deradas isoladamente), o singular não é pura liberdade, as-sim como o Estado não é pura coação. A conclamada iden-tidade do particular e do universal, de liberdade e de auto-ridade, resulta todavia, em Gentile, dúbia. A natureza doEstado ético, consiste, com efeito, justamente em não con-ceder ao sujeito, ao Eu, nenhuma real autonomia com rela-ção ao Estado. A autoridade sufoca assim a liberdade, oNós, o Eu. Ao indivíduo, está, antes, interditada a possibi-lidade de efetiva negação, de inovação, de luta e de decisãoautônoma frutífera: tudo acaba avocado, em última instân-cia, à majestade do Estado.

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25. G. Gentile, Genesi e struttura della società, Sansoni,Florença, 1955, p. 32.

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O pensamento matemático

Diante dessa estratégia teórica que dissolve e matiza omundo, que salienta a duração, a velocidade, o ato puro,que privilegia o momento psicológico, subjetivo, construti-vista, coloca-se uma estratégia complementar e coeva, ba-seada na descrição clara e minuciosa dos fenômenos, consi-derados na sua estrutura e também na sua manifestação es-pacial ou social, e na dependência do sujeito aos “dados”imóveis que se impõem por auto-evidência ou constriçãoexterna. Para melhor compreender a diferença entre essasduas linhas, pode-se recorrer a uma comparação: enquantoa primeira insiste nas funções de movimento, nas dissolu-ções, nas sobreposições e em todos os artifícios técnicos sub-jetivos do filme do real, a segunda detém-se mais na análi-se cuidadosa de cada fotograma singular e se interroga so-bre os procedimentos específicos da sua constituição. Nesseúltimo caso, temos substancialmente uma retomada, emmais alto nível, da temática da objetividade do conheci-mento, uma evidenciação do caráter cogente possuído porcertos dados e por certas relações nos confrontos do sujeito.O positivismo ingênuo havia precedentemente procuradoresolver o problema da objetividade com base no conceito

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capítulo 2

Em direção a novas evidências: filosofia e saber científico

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de “dado”: os dados seriam mostrados diante de todos e bas-taria recolhê-los com método, ordená-los adequadamente eexpô-los. Em tal processo, o pensamento e a interpretaçãoapareciam como aditivos não consentidos, suscetíveis de al-terar a pureza cristalina dos fatos, enquanto a historicidadedos paradigmas perceptivos, lingüísticos e teóricos não eranem mesmo examinada e assumia simplesmente um aspec-to naturalisticamente eterno. O sujeito era uma esponja queabsorvia o mundo. Quando, porém, tomou-se consciênciade que os dados e os objetos são o resultado de operaçõescomplexas; que a própria percepção sensível é uma modali-dade de estruturação; que existem múltiplas ordenaçõespossíveis de organização dos dados; quando também as“ciências exatas” foram obrigadas por sua dinâmica internaa abandonar o apelo à intuição e percebeu-se que os dadosestavam subordinados aos parâmetros dos sistemas observá-veis escolhidos, então pareceu que o saber havia perdidotodo vínculo com a realidade, que toda certeza e evidênciaimediata haviam desaparecido.

Até mesmo as ciências, como a geometria e a aritmé-tica, que em milênios de história não só haviam demonstra-do sua “verdade” como tinham se tornado um modelo reco-nhecido por outros ramos do saber, pareciam em profundacrise de identidade. O seu próprio desenvolvimento rápidoparecia quase transtornante, dissipativo, não mais recondu-zível a critérios unitários de inteligibilidade (também aquio avanço comporta uma perda de visibilidade dos funda-mentos e requer um esforço para sua reapropriação, para suareunificação com a própria origem e para compreender osseus próprios movimentos). Como já tinha ocorrido com osnúmeros imaginários, constatava-se agora a fecundidadeoperatória de determinadas construções, sem que, contudo,

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se pudesse dar conta dos motivos do sucesso. Assim, a ne-gação do quinto postulado de Euclides – “no plano, por umponto externo a uma reta r pode-se traçar uma e apenas umaparalela a r” – legitimava de maneira desconcertante outrasgeometrias “não-euclidianas”, todas perfeitamente funcio-nando, onde a intuição sensível normal era deixada de lado:nas construções de Lobachévski e de Bolyai, por um pontoexterno a uma reta dada passam infinitas paralelas, na deRiemann, nenhuma. Não existem doravante geometriasmais “verdadeiras” do que outras (até porque pôde-se de-monstrar que o espaço sujeito às leis físicas da teoria, eins-teiniana, da relatividade geral não é euclidiano) e todas de-vem coexistir numa realidade pluralística. Cai, com isso, aidéia de um espaço natural, intuitivamente representável,isomorfo com relação ao euclidiano, e aumenta normalmen-te a separação entre a experiência comum sensível e a ciên-cia, que parece decolar em direção a atmosferas extrema-mente rarefeitas e se constituir em universos de regras regi-das somente pela coerência interna. A evidência não apare-ce mais dada pela referência a um patrimônio coletivo demodalidades perceptivas e argumentativas, mas é atestadapor níveis mais profundos, pressupõe antes uma separaçãotraumática dele e um salto em direção a linguagens especia-lizadas, setoriais, descontínuas, onde se mostra, enfim, aosiniciados. Tal como a quem entra numa ordem monásticapede-se abandonar o mundo e sentir e pensar diferentemen-te, assim também, a quem entra na ciência, pede-se o sacri-fício da intuição imediata e a renúncia a atitudes antes na-turais. Pede-se o olhar, que penetra além dos fenômenos ex-teriores, que é tão eficazmente expresso por um conto taoís-ta: o Duque Mu di Chin roga a Po Lo para que lhe encon-tre um cavalo excelente, mas este, já velho, recomenda um

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amigo, Chiu-fang Kao, indicando-o como o melhor conhe-cedor de cavalos; passados três meses, Chiu-fang anuncia terencontrado um ginete soberbo e de tê-lo deixado emShach’iu: “Que tipo de cavalo é? – perguntou o Duque. –Oh, é uma égua de cor marrom acizentado, – foi a respos-ta. E, no entanto, quando alguém foi mandado para pegá-la, descobriu-se que o animal era um garanhão negro comoa noite! Muito desapontado, o Duque mandou chamar PoLo. – Aquele teu amigo – disse-lhe – que encarreguei deprocurar um cavalo, aprontou uma bela confusão. Se nãosabe nem mesmo distinguir a cor ou o sexo de um animal!Como pode entender de cavalos? Po Lo emitiu um suspirode satisfação. Verdadeiramente comportou-se assim? – gri-tou. Ah, então é dez mil vezes mais esperto do que eu. Nãohá comparação entre ele e mim. O que interessa a Kao é omecanismo espiritual. Para se assegurar o essencial esqueceos detalhes mais comuns; todo atento às qualidades interio-res, perde de vista as exteriores. Ele vê o que quer ver e nãoo que não lhe interessa. Ele olha as coisas que devem serolhadas e desdenha as que não têm nenhuma importância.Kao é um juiz de cavalos tão esperto que tem em si a qua-lidade para julgar coisas ainda melhores do que os cavalos.– Quando o cavalo chegou, não houve mais nenhuma dúvi-da, era mesmo excepcional”.26

O percurso da ignorância ao saber matemático não émais tão relativamente plano como no Menon platônico,onde mesmo um jovem escravo inculto, se conveniente-mente guiado, pode chegar a demonstrar o teorema da du-

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26. Citado em J. M. Lotman, “Il problema del segno e delsistema segnico”, in Ricerche semiotiche. Nuove tendenze dellescienze umane nell’URSS, org. por J. M. Lotman e B.A. Us-penski, Einaudi, Turin, 1973, p. 48-9.

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plicação do quadrado. As entidades matemáticas se multi-plicaram e suas relações recíprocas tornaram-se intrinca-das. Podem-se percorrer estradas diversas para se chegar acompreender a nova situação, mas todas pressupõem ouum reforço dos processos fundamentados no plano lógicoou uma reformulação das noções de intuição, evidência edados (às vezes, esses percursos se cruzam). No terreno dasmatemáticas em geral assiste-se, portanto, a tentativas al-tamente complexas de pesquisa dos fundamentos comunsmediante uma conexão de matemática e lógica – atribuin-do-se um significado diferente à objetividade das entidadesmatemáticas –, mediante estratégias de formalização queprescindem da “verdade” objetiva de tais entidades ou me-diante a descoberta de novos procedimentos intuitivos.

Na primeira direção se situam Cantor, Frege e oRussell do período anterior a 1914, que tinham sustenta-do a objetividade das entidades matemáticas, o seu ser pla-tonicamente independente de nosso pensamento. Assim,ao fundar uma teoria lógica da aritmética (já consideradauma ciência sem dificuldade, aquela que se começa a ensi-nar às crianças), Cantor liga o seu conceito de “conjunto”com a idéia platônica ou com o mikton (o aglomerado, ocompósito) do Filebo.27 E Frege, em polêmica com os fau-tores da lógica de caráter psicológico, como Benno Erd-mann, pode dizer: “Eu reconheço um campo do objetivonão real, enquanto os lógicos da escola psicológica susten-tam que o não real seja, por isso mesmo, subjetivo. No en-tanto, não se consegue ver por qual recôndito motivo o quetem consistência independente de quem julga, deva ser ne-

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27. G. Cantor, Grundlagen einer allgemeinen Mannigfaltig-keitslehre, Teubner, Leipzig, 1883, p. 165.

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cessariamente real, e deva poder agir imediata ou mediata-mente sobre o sentido”.28 Uma proposição matemática nãodeixa de ser verdadeira quando eu não mais a penso, “comoo sol não deixa de existir quando fecho os olhos”.29 Russel,que tinha acreditado, com Frege, na realidade dos númerosque povoam “o reino sem tempo do ser”30, é categórico emafirmar a existência platonicamente real dos números: “Aaritmética deve ser descoberta precisamente no mesmosentido em que Colombo descobriu as Índias Ocidentais enós não podemos criar mais números do que Colombopôde criar indianos”.31 Pela matemática, a objetividade dosaber salva-se da destruição da certeza sensível precedentee do arbítrio subjetivo, de caráter convencional, mas éobrigada a se deslocar para uma região onde o homem nãomais tem poder de intervenção, faculdade de crítica. O ma-temático é o escrivão fiel de leis não humanas e o infinitoatual cantoriano não só é declarado isento do “panteísmo”do qual foi acusado, como é posto em relação com o infini-tum creatum divino da tradição cristã.32 O homem deve acei-tar essas verdades não sensíveis e não psicológicas que seimpõem por si, para além do pensamento concreto, da ex-periência e da história. Através do platonismo renovado acerteza indiscutível do “dado” positivista é restaurada aoquadrado, subtrai-se ao movimento.

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28. G. Frege, Aritmetica e logica, Boringhieri, Turin, 1965,p. 265.29. Ibid., p. 23.30. B. Russel, I principi della matematica, Longanesi, Milão,1951, p. 14.31. Ibid., p. 427.32. G. Cantor, Gesammelte Abhandlungen mathematischen unphilosophischen Inhalts, Springer, Berlim, 1932, p. 400.

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O querer fundar a matemática sobre bases lógicas ge-rou todavia não poucas dificuldades. Caída a referência àintuição, à experiência e à psicologia, abandonada a provaúnica da coerência interna, a razão matemática parece seenredar em paradoxos lógicos insolúveis, análogos àqueleclássico do Mentiroso de Eubulides que diz “eu minto”(essa asserção é verdadeira ou falsa?). Já Cantor havia-sedado conta, em 1895, de que sua teoria dos conjuntoscontinha uma antinomia, mas foi Russel que descobriu noquinto axioma dos Grundgesetze de Frege, uma contradiçãoparalisadora, a assim chamada antinomia de Russel, preci-samente, ou da classe de todas as classes que não são ele-mentos de si mesmas. Três anos depois, em 1905, JuliusKönig demonstrava a não-confiabilidade da teoria canto-riana da fusão num aleph da consideração cardinal e ordi-nal dos conjuntos. A mesma relação entre lógica e mate-mática corria o risco de ser colocada em crise. Frege con-solava-se, no pós-escrito ao segundo volume dos Grundge-setze, notando como a sua situação não era pior que a dosoutros: Solatium miseris, socios habuisse malorum. Mas a refle-xão sobre tal dificuldade não foi sem resultados e levouRussel à formulação da “teoria dos tipos” (aperfeiçoada, aseguir, na “teoria ramificada dos tipos”), pela qual, paraevitar as antinomias provocadas pela auto-referência ou“reflexividade” das proposições, faz-se necessária uma hie-rarquia das entidades lógicas, de tal modo que cada fun-ção proposicional seja de ordem lógica superior aos seusargumentos e cada classe de tipo lógico superior aos seuselementos. Nos Principia mathematica – escritos em cola-boração com Whitehead, entre 1910 e 1913 – Russelchegou a reunir num corpus orgânico os princípios de todaa matemática.

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No campo da formalização da matemática tambémencontra-se David Hilbert. Mas ele não crê, como Bolyai,na “verdade virginal” das suas entidades, nem as hipostasiaem termos realistas: satisfaz-se com a “segurança” propor-cionada pelos sistemas formais não autocontraditórios. DosFundamentos da geometria de 1899 até os Fundamentos da ma-temática (obra composta junto com Paul Bernays entre1934 e 1939) ele persegue o objetivo de criar sistemasaxiomáticos não contraditórios (entendendo os axiomascomo postulados que estabelecem o sentido dos símbolosde outra maneira indefinidos), que permitem a derivaçãomecânica de fórmulas, ajudados por uma metamatemáticaque tem a tarefa de provar o domínio lógico de toda a ma-temática. Não se trata todavia, para ele, de renunciar à in-tuição enquanto tal – pode-se seguir de maneira subordi-nada, também esse método, como ensina a sua Geometriaintuitiva de 1932 –, mas de pensar conscientemente, sempressupor espaços naturais ou correspondência ontológicaentre aparato axiomático e mundo: “Proceder axiomatica-mente não significa outra coisa que pensar conscientemen-te. Pelo contrário, antes, quando não se usava o métodoaxiomático, os homens acreditavam ingenuamente em vá-rias conexões como dogmas. A axiomática elimina essa in-genuidade, deixando-nos, porém, com todas as vantagensda crença”.33

Contra todas as doutrinas de caráter lógico e formalis-ta coloca-se o “neo-intuicionismo” de Brouwer e de Hey-ting, segundo os quais a matemática baseia-se na intuição

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33. D. Hilbert, Neubegründung der Mathematik, in “Abhan-dlungen aus dem mathematischen Seminar der HamburgischenUniversität”, 1922, I, p. 157.

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do tempo, “da unidade na diferença, da persistência namutação”. Assim, não é na intuição sensível, como a do es-paço, nem nas verdades lógicas, que são antes um produtodas práticas construtivas que partem dos dados intuitivos,mas justamente nessa imediata intuição do fluir do contí-nuo. Brouwer admitia que um sistema formal não poderiaser definitivo, e assim não se viu no mesmo embaraço deHilbert quando Gödel provou a existência de limites nademonstrabilidade do caráter não contraditório dos siste-mas axiomáticos e a possibilidade idealmente infinita deconstruir metamatemáticas de ordem superior àquelas dequando em quando exibidas.

Os desenvolvimentos da matemática foram, a seguir,muito ricos, seja na estruturação, seja na abertura de insus-peitados campos de indagação. Assim, um grupo de mate-máticos franceses (André Weil, Jean Dieudonné e outros),que toma o nome coletivo de Bourbaki, iniciou a publica-ção de volumes em colaboração, a partir de 1939 e conse-guiu contornar a oposição entre formalistas e intuicionis-tas, insistindo na necessidade de substituir as idéias peloscálculos e declarando-se insatisfeito com a exigência únicado rigor. “Se a lógica – afirma Dieudonné – é a higiene domatemático, ela não fornece, contudo, nenhum alimento”.Também pelos seus efeitos sobre a reflexão epistemológica,entre os muitos resultados dos últimos decênios podem serlembrados o estender-se da “matemática” pura nos camposdo descontínuo e da complexidade, como no caso da teoriadas catástrofes de René Thom, que analisa o desmorona-mento repentino de estruturas de equilíbrio, ou no do es-tudo dos objetos fractais, figuras geométricas muito irre-gulares, proposto por Bénoit Mandelbrot. Pelo contrário,no âmbito da “matemática aplicada” ou como quer que

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seja ligada à pesquisa extra-matemática avulta a prolifera-ção de novos ramos, devido em boa parte à repercussão tan-to do enorme desenvolvimento da informática (termo quenasce da contração, em francês, de information automatique),quanto do nascimento da inteligência artificial (disciplinaque se propõe construir máquinas inteligentes, capazes deestimular os processos cognitivos da mente humana outambém, vice-versa, de estudar o pensamento humano emanalogia com os procedimentos efetivos, ou algoritmos,das próprias máquinas). Sem contar as numerosas lingua-gens formais, surgiram assim, por exemplo, a teoria mate-mática da comunicação, inaugurada por Claude E. Shan-non e ligada ao cálculo das probabilidades, e a computacio-nal, que comprometeu o conceito clássico de demonstra-ção. A incidência na filosofia e nas dinâmicas sociais dosinstrumentos de elaboração da informação e de simulaçãode faculdades intelectuais e movimentos corpóreos huma-nos salta aos olhos e a sua ação está bem longe de ter-se es-gotado.

A relatividade

Observando-se bem esses esforços da matemáticapara redefinir o próprio estatuto científico, tambémpode-se ver, de forma estilizada, o profundo labor socialtendente a reconstruir diferentes sistemas de coordenadaspara interpretar o real, redes de relações cujos nós sãoconstituídos pelas “evidências”, pela identificação dospontos relativamente estáveis, pela pausa, na correntezados movimentos. Gramáticas do olhar, coligações sintáti-cas, campos de designação, hábitos de racionalidade, ati-

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vidades práticas vão sendo fatigosamente estruturadas demaneira nova. Desaparece definitivamente a imagem,bem confortável, da existência de normas fixas, naturais,à qual o conhecimento e os comportamentos humanos de-vem reportar-se: de repente o mundo parece menos coe-rente, menos reconduzível a padrões de simplicidade. Ofato é que também as normas precedentes eram o produ-to de um complexo esforço de sistematização da realida-de, mas de um esforço prolongado, lento, parecendo qua-se imóvel ao senso comum, aos não familiarizados com amudança conceitual. Ao passo que agora as mudanças sãomacroscópicas, sob os olhos de todos, e a ciência assumemais diretamente, agindo com base em posições privile-giadas, o complicado jogo de redistribuição e de requali-ficação dos papéis e das funções sociais. Ela transmite aos“não incumbidos dos trabalhos” não somente os resulta-dos simplificados das próprias operações, mas o senti-mento mesmo da instabilidade, da problematicidade doreal. Os velhos pólos de convergência metafísica do todo(Deus, homem e mundo), sob os quais a realidade haviasido rubricada, não mais se sustentam, desmoronam in-ternamente. Os mecanismos sociais de focalização e deconexão das coisas estão em parte bloqueados, estão emreparação. A ciência no seu complexo, e não apenas a ma-temática, opera para ajustá-los e para adaptá-los às novascircunstâncias. Assim a imagem do mundo oferecida pelafísica é surpreendente para o senso comum, subverte aidéia de um universo sempre igual a si mesmo, indepen-dente do sistema de referência escolhido para enquadrá-loe da intervenção do observador. Freqüentemente é recor-tada no tecido de outros mundos possíveis, que é lícitopensar sem contradições e que servem para medir a rela-

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tividade dos pontos de partida de toda investigação.Como nesse universo hipotético de Poincaré: “Imagine-mos, por exemplo, um mundo fechado numa grande es-fera e submetido às seguintes leis: a temperatura, nãouniforme, é máxima no centro e vai diminuindo à medi-da que dele nos afastamos, chegando ao zero absoluto aoatingirmos a esfera onde esse mundo encontra-se encerra-do. Preciso agora a lei segundo a qual essa temperaturavaria. Seja R o raio da esfera limite; seja r a distância doponto considerado ao centro da esfera. A temperatura ab-soluta será proporcional a R2 – r2. Suponho também que,num mundo assim, todos os corpos possuem o mesmocoeficiente de dilatação, de modo que o cumprimento deuma régua qualquer seja proporcional à sua temperaturaabsoluta; e, enfim, que um objeto transportado de umponto a outro, cuja temperatura seja diferente, coloca-seimediatamente em equilíbrio térmico com o seu novoambiente. Nada nessa hipótese é contraditório ou inima-ginável. Um objeto móvel tornar-se-á, então, cada vezmenor à medida que se aproxima da esfera limite. Obser-vamos antes de mais nada que, se esse mundo é limitadodo ponto de vista de nossa geometria habitual, parecerá,contudo, infinito aos seus habitantes. Quando estes, comefeito, querem se aproximar da esfera limite, resfriam-see tornam-se cada vez menores, de tal maneira que não po-dem jamais atingir a esfera limite”.34 Quando, em 1902,Poincaré formulava essa teoria, ela tinha apenas um valorhipotético, servia para corroborar as suas teses convencio-nalistas (todavia é errado reduzir, segundo a vulgarização

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34. H. Poincaré, La science et l’hipothèse (1909), Flamma-rion.

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de Le Roy, a epistemologia de Poincaré ao convenciona-lismo: as “receitas científicas” também possuem um sig-nificado teórico, de previsão e, além do mais, a conven-cionalidade não coincide com o arbítrio).

Poucos anos depois, as teorias einsteinianas da relati-vidade restrita e da relatividade geral (de 1905 e de 1916),essas transformações, que parecem valer apenas para mun-dos imaginários, são aplicadas também ao nosso mundo.Os conceitos de contração dos cumprimentos e de dilata-ção dos tempos relativizam a idéia de uma uniformidadeabsoluta das medidas e da existência de sistemas de refe-rência absolutos: a um observador solidário com um siste-ma de referência que se move a uma velocidade V com re-lação a um outro que se presume parado, uma régua pare-cerá mais curta e um relógio mais devagar em relação amedidas análogas efetuadas pelo observador solidário como outro sistema. Não apenas o espaço, mas também o tem-po e a noção de “simultaneidade” perdem o caráter absolu-to que possuíam na física clássica.

Todavia, já Galileu, nos Diálogos sobre os dois grandessistemas do universo, para explicar a relatividade dos movi-mentos, dá o exemplo de uma embarcação que de Venezanavega para Alepo. As mercadorias – “sacos, caixas e outrosvolumes” que estão na estiva – movem-se em direção à Si-ria com relação ao porto de saída, mas não em relação aonavio. Na assim chamada “relatividade galileuana” todomovimento é, portanto, relativo ao sistema de referênciaadotado. Trata-se, porém, de uma concepção puramente ci-nemática e não dinâmica do movimento. Ou seja, ela nãose interroga sobre as causas que produzem, inibem ou mo-dificam o movimento. Em Newton, pelo contrário, o pro-blema é justamente o de determinar a natureza das forças

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as quais, a cada instante, modificam o movimento inicial(retilíneo ou uniforme) que todo corpo deixado a si mesmoteria espontaneamente. A força da inércia, associada a con-ceitos de espaço e de tempo absolutos, é, pois, o que carac-teriza a física newtoniana. Nela, o espaço age sobre os ob-jetos, mas não vice-versa, e existe independentemente de-les. O tempo verum et mathematicum mede, de maneira ab-soluta, todos os acontecimentos, estabelecendo sua simul-taneidade ou sucessão. Mach tinha considerado a posiçãode Newton sobre o tempo absoluto como puramente me-tafísica: “tem-se a impressão de que Newton está ainda soba influência da filosofia medieval”. Afirmar, com efeito,que alguma coisa muda com o tempo significa simples-mente “dizer que os estados de uma coisa A dependem dosestados de uma outra coisa B”. Dado, porém, que podemosescolher o sistema de referência, produz-se a “ilusão erra-da” de que a própria referência seja não-essencial. Surge,assim, a idéia do tempo absoluto e toma-se uma abstraçãometafísica como sendo a realidade: “Não podemos medir asmudanças das coisas reportando-as ao tempo. Pelo contrá-rio, o tempo é uma abstração, à qual chegamos justamentepor meio da constatação da mudança, graças ao fato de quepara a dependência recíproca das coisas não estamos obri-gados a nos servir de uma medida determinada”.35

A teoria einsteiniana não se distingue, portanto, dasteorias clássicas por haver introduzido a idéia da relativida-de, mas por tê-la generalizado, tornando-a mais complexa,inserindo-a em dispositivos conceituais capazes de unificarcampos do saber antes separados. As grandes intuições de

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35. E. Mach, La meccanica nel suo sviluppo storico-critico, Bo-ringhieri, Turin, 1977, p. 241.

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Einstein demonstraram como a inércia e a gravitação coin-cidem e como pode-se (e deve-se) prescindir das noções deespaço e tempo absolutos. A teoria da relatividade, comotodos os modelos científicos, é, com efeito, uma teoria deinvariantes. Como constante natural, válida para qualquersistema de referência, resta somente a velocidade da luz novácuo, segundo as equações formuladas por Maxwell, em1873. Esse ponto contrasta com as leis da mecânica clássi-ca, para a qual as velocidades de dois corpos que se movemem direção oposta somam-se, de tal modo que a luz prove-niente de estrelas da qual a Terra se aproxima deveria pos-suir uma velocidade maior do que aquela de estrelas daqual a Terra se afasta. Se a velocidade da luz é constante,variáveis são, portanto, os sistemas métricos. Como em cer-tos quadros de Dalí, onde relógios e réguas aparecem de-formados, moles, “derretidos”.

À teoria da relatividade restrita, Hermann Minkowskiaplicará pouco depois (1908) o assim chamado “espaço-tempo”, um espaço quase-euclidiano, quadridimensional,constituído pela totalidade dos acontecimentos (um aconte-cimento que se verifica num tempo t no ponto P do espaçotendo as coordenadas cartesianas [x, y, z] é representado,considerando o tempo como quarta dimensão do espaço,mediante as coordenadas espaço-temporais [x, y, z, t]). Nateoria da relatividade geral, Einstein combinará o sistemaespaço-tempo com o espaço riemanniano. Também, a dife-rença entre matéria e energia tende a matizar-se em Eins-tein na variação entre diversas “densidades de campo”.

A teoria da relatividade, juntamente com a mecânicaquântica, representa um dos vértices do pensamento cien-tífico do século XX (e, para efeitos de reincidência, tam-bém do filosófico). A Einstein, todavia, o “princípio da in-

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determinação”, formulado por Werner Heisenberg não po-dia agradar, porque parecia colocar em jogo a perfeita cal-culabilidade do universo físico. Na realidade, ele nega so-mente o “fantasma heurístico” de um modelo estático e rí-gido do mundo físico, de uma descrição cabal da realidadeda qual o observador está excluído a fim de elucidar a ver-dade em si. Tal princípio limita-se, ao contrário, a afirmarque é preciso escolher o modo da descrição. Heisenberg es-tabelece, com efeito, a impossibilidade de determinar – ri-gorosamente e ao mesmo tempo – a posição de uma parce-la sub-atômica e a sua quantidade de movimento. Ou sedetermina a primeira (e permanece indeterminada a segun-da) ou se determina a segunda (e permanece indetermina-da a primeira). O observador interfere necessariamente,ainda que pouco, no objeto sobre o qual realiza uma expe-riência ou uma mensuração. Para recorrer a um exemploelementar, é como se quiséssemos estabelecer com precisãototal a temperatura da água quente numa banheira. Nãoteríamos como fazê-lo, dado que o termômetro subtrai ca-lor, e portanto modifica – ainda que imperceptivelmente –a temperatura da massa de água. Isso, todavia, não implicaabsolutamente que as leis físicas tornem-se incertas, que seintroduza, portanto, na cidadela da ciência o cavalo deTróia da irracionalidade. Quer dizer, simplesmente, que osempreendimentos cognoscitivos são mais complexos doque se estava habituado a crer.

Dessa complexidade tornou-se intérprete, em anosmais recentes, Ilya Prigogine. Contra a dinâmica irreversí-vel das teorias clássicas e quânticas, ele demonstrou comotambém o universo tem uma história e como o tempo domundo compartilha com o tempo do homem o elementofundamental da irreversibilidade. Os fenômenos irreversí-

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veis – como aqueles estudados pela termodinâmica, emparticular pela sua segunda lei – não conduzem, porém,necessariamente ao aumento da entropia, da desordem, àassim chamada “morte do universo pelo frio”. Não se de-senvolvem, com efeito, num sistema fechado (ou seja, quenão absorve, nem cede, energia externa), mas num sistemaaberto, “dissipativo”. As flutuações no seu interior, as vio-lações do equilíbrio, produzem assim uma nova ordem, in-calculável mas rigorosamente analisável, que surge da pró-pria desordem. Tal colocação assinala o fim do determinis-mo, do triunfo da necessidade, como havia sido sugeridono século XIX por Laplace. Não é verdade que, se conhe-cêssemos perfeitamente o estado do mundo num momen-to dado, estaríamos assim em condições de predizer comabsoluto rigor também os seus estados futuros: “Na con-cepção clássica, o determinismo era fundamental e a pro-babilidade era uma aproximação à descrição determinista.Hoje, é o contrário: as estruturas da natureza nos obrigama introduzir a probabilidade independentemente da informa-ção que possuímos. A descrição determinista somente seaplica, com efeito, a situações simples, idealizadas, que nãosão representativas da realidade física que nos circunda”.36

A distância entre o presumido caráter fixo inexorável dasleis da natureza e a incontrolável mutabilidade do mundohumano tende assim a reduzir-se. Em graus diversos, a ins-tabilidade e o emergir do imprevisto é comum a ambas.Resulta, conseqüentemente, percorrível – ainda que emperspectiva – o caminho de uma “nova aliança” entre na-tureza e homem, física e metafísica: “Talvez nos orientemos

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36. I. Prigogine, La nascita del tempo, Bompiani, Milão,1991, p. 52.

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em direção a uma nova disciplina que herdará da física apreocupação com o mundo, da descrição quantitativa e dametafísica clássica a ambição de uma imagem coerente glo-bal que a inclua”.37

O espaço interior

Sujeito e objeto não mais se defrontam, como na físi-ca e na metafísica clássicas, como entidades compactas quese desafiam. Pelo contrário, esses dois pólos tradicionais searticulam sobre esquemas de máxima complexidade e mo-bilidade, onde os encontros são menos lineares e os antago-nismos mudam continuamente de fisionomia e posição:multiplicam-se, deformam-se, mascaram-se, abandonam,em geral, a simplicidade operativa daquelas que Sartrechamava “filosofias alimentares”, nas quais o sujeito devo-ra o objeto ou vice-versa. E isto não diz respeito, natural-mente, apenas à vertente do objeto que primeiramenteconsideramos, à estrutura do mundo físico, do “céu estre-lado” sobre nós, mas também ao que está “dentro” de nóse que é agora sondado nos seus aspectos mais perturbado-res pela psicanálise e pela nova psiquiatria. Na psicanálisefreudiana, pelo contrário, (pelo menos até 1924, no artigosobre O problema econômico do masoquismo), a diferença entreo sujeito e o objeto no homem, entre res cogitans e res exten-sa, psique e corpo, é fortemente atenuada, não só pela so-matização dos conflitos psíquicos, ao nível dos sintomasou, digamos, das histerias de conversão, mas pelo motivo

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37. Id., La nuova alleanza (1979), Longanesi, Milão, 1981,p. 180.

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muito mais relevante que o inteiro aparato psíquico é vis-to em termos físicos, energéticos.

Aplicando à psique humana o modelo helmoltziano do“sistema fechado”, Freud sustenta que existe uma quantida-de fixa de energia psíquica que, em situações otimizadas, édistribuída de modo equilibrado e pode circular facilmen-te, mas que, às vezes, quando o seu movimento é freado, blo-queado, desequilibrado, entupido, fixa-se ou concentra-seem algumas zonas provocando sofrimento ou fenômenos“patológicos”. Uma vez que, justamente, tal excesso de pres-são não pode ser descarregado externamente, faz-se necessá-rio distribuir as cargas energéticas de maneira diversa, des-viá-las para outras regiões, para aliviar os pontos mais fati-gados. As pulsões, que não podem ser canceladas, sofrem as-sim “vicissitudes” (recalque, sublimação, negação etc.), que,sob o perfil energético, são deslocamentos de cargas. Por issoa terapia psicanalítica não age apenas fornecendo ao pacien-te a mera consciência sobre a origem dos seus males, masproduzindo também um deslocamento de energia, elimi-nando aquelas pressões energéticas – em forma, por exem-plo, de recalque – que impedem a transparência dos própriosconflitos. No início da cura, mais do que ajudar, o saber éantes uma fonte de angústia, o início de uma batalha quemobiliza todas as resistências: “É um conceito há muitotempo superado (ainda que à primeira vista pareça corres-ponder à realidade) aquele segundo o qual o doente sofreriapor força de uma espécie de ignorância, razão pela qual casose eliminasse esta ignorância, informando-o (sobre a conexãocausal da sua doença com a sua vida, sobre acontecimentosda sua infância etc.) ele ficaria curado. Um tal “não saber”não é por si mesmo o momento patogênico, mas a raiz des-se “não saber” colocado nas resistências interiores, as quais

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num primeiro momento provocaram o “não saber” e ainda omantêm. A comunicação daquilo que o doente não sabe por-que o recalcou, é somente um dos primeiros meios necessá-rios para a terapia. Se o conhecimento do inconsciente fossetanto eficaz quanto sustenta quem não é entendido em psi-canálise, bastaria para a cura que o doente ouvisse algumaslições ou lesse alguns livros. Mas a eficácia de tais coisas so-bre os sintomas é análoga àquela que poderia ter em tempode carestia, um faminto, com a leitura de listas de comidas.E a comparação pode ser estendida além do seu primitivosignificado: uma vez que as comunicações relativas ao in-consciente produzem, em geral, sobre o doente o efeito de oconflito nele se acentuar e os distúrbios aumentarem”.38

Para interpretar esses conflitos e procurar resolvê-los, apsicanálise deve considerar a existência, na estrutura psíqui-ca, de lógicas e espaços interiores diversos: “o Id da segundatópica não conhece nem o tempo nem a negação (o pensa-mento faz-se possível unicamente pelo “não”, revelado naVerneinigung, ou seja, na aceitação somente intelectual do re-calcado por parte do paciente que permanece no terreno dosimples “saber”). A ausência da dimensão temporal no In-consciente (e em seguida no Id) implica a tendência das pul-sões à imortalidade, a coação a repetir, o congelamento de umtempo privilegiado na idade dos primeiros conflitos infantis,que escavam o alvéolo sobre o qual fluem os sucessivos.

O nosso tempo psíquico é, com efeito, complexo echeio de desníveis e aspectos híbridos porque nele coexis-tem – em tensão – duas modalidades de tempo: a atempo-ralidade do Id e a temporalidade da consciência, a coexis-

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38. S. Freud, “Psicoanalisi selvaggia” (1910), in: Opere, Bo-ringhieri, Turin, 1966-1978, VI, p. 329.

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tência e a sucessão. Na tradição filosófica, essas duas dimen-sões estão separadas. Se se toma uma posição exemplar, a deLeibniz, vê-se da maneira mais clara como nele o tempo é aordem da sucessão, enquanto o espaço, a ordem da coexis-tência. Em Freud, ao contrário, o tempo tem, conjuntamen-te, as características do tempo e do espaço, “a sucessão com-porta também uma coexistência”.39 O primeiro resultadorelevante é que, dessa maneira, o passado convive com opresente; o já acontecido, o imóvel, com o que flui, de talmodo que o passado psíquico é coexistência de coexistênciae de sucessão, de passado que não passa e de presente quepassa projetando-se para o futuro ou sedimentando-se, ouseja, coexistência do que persiste e do que se torna. O se-gundo resultado é que no tempo há co-presença de desen-volvimento e de conservação, de evolução e de imobilidade.Isso explica a possibilidade da regressão. No tornar-se con-serva-se virtualmente tudo. Damo-nos conta de que “navida psíquica nada pode perecer uma vez formado e que dealguma maneira tudo se conserva e, em circunstâncias opor-tunas, [...] tudo pode ser trazido à luz”.40 Se o organismonão está doente, todos os vestígios mnemônicos se conser-vam, ainda que submetidos a uma contínua reelaboração ereinterpretação, transcritos ou “transliterados” no vocabulá-rio e na sintaxe da “época da vida” em que nos encontramos.

No interior do aparato psíquico temos, portanto, umchoque e uma intersecção de mecânicas pulsáteis e de planoslógicos diferentes, com todas as torsões, os paralelogramas deforça e as zonas de sombra que dele derivam. Também no ho-

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39. Id., “Considerazioni attuali sulla guerra e la morte”(1915), ibid., VIII, p. 133.40. Id., “Il disagio della civiltà”, ibid., X, p. 562.

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mem, por assim dizer, existem espaços não-euclidianos aolado das mais visíveis superfícies euclidianas, espaços do Idestruturados segundo axiomas diferentes do Ego e do Supe-rego, porquanto o Ego – e aqui está o aspecto novo da segun-da tópica com relação à primeira – seja ele também em par-te inconsciente, não possui absolutamente a pureza cristalinado cogito que de Descartes a Husserl lhe é atribuído. Isto valepara todos os homens, não somente para os doentes: existeuma “psicopatologia da vida cotidiana” que é indicativa dosmicroconflitos operantes em cada um de nós e do esforço in-dividual e social tendente à perpetuação da “normalidade” ouda quantidade de energia constantemente empregada paravigiar o recalcado e promover a “civilização”. Acaba a idéia deuma normalidade rígida e natural, assim como em outroscampos vimos o desaparecimento do conceito de “norma”. Opatológico atravessa agora o normal; o conflito e a exceçãopermeiam a norma, num cruzamento de códigos lingüísticose comportamentais complexo, na oposição entre público eprivado, entre o que se pode revelar e o que se deve esconder.A normalidade é uma conquista contínua, um estado nuncagarantido porque o patológico está dentro de nós.

Se Freud não crê na possibilidade de se alcançar umavida psíquica radiosa (passa-se, para ele, no máximo, deuma infelicidade patológica para uma “infelicidade nor-mal”), Carl Gustav Jung tenta, pelo contrário, percorreresse caminho. Mediante uma ousada construção teórica, eleilustra os degraus por meio dos quais se articula o processoideal de individuação que culmina no Si, na bem sucedidaconquista, no vértice da pirâmide, de uma consciência daspróprias forças e dos próprios limites. Na base desse majes-toso edifício acha-se porém o “inconsciente coletivo”, comos seus fascinantes, mas também ameaçadores “arquétipos”.

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Eles têm caráter universal e ubíquo, encontram-se junto atodos os povos e em todas as épocas, nos sãos e nos doentes.São exaltantes e perigosos ao mesmo tempo, enquanto, porum lado, potencializam o indivíduo, por outro, ameaçamaniquilá-lo, engolindo-o no seu anonimato e produzindo “ainflação do eu”. Jung reconhece neles uma raiz orgânica, jáque não há nada de estranho que certas funções psíquicastambém se transmitam ao longo do eixo do tempo evoluti-vo: “Como o nosso corpo conserva ainda em muitos órgãosos resíduos de antigas funções e de antigas condições, assimo nosso espírito, que também no seu desenvolvimento ul-trapassou aparentemente aquelas tendências arcaicas instin-tivas, traz ainda os sinais característicos da evolução percor-rida e repete o passado remoto pelo menos nos sonhos e nasfantasias”.41 Em tal perspectiva, o arquétipo não constituiuma representação herdada, pois se transmitem não os con-teúdos, mas a capacidade mesma de representar. Ele segueantes “certos caminhos herdados, ou seja, o modo inato peloqual um pintinho sai do ovo, os pássaros constróem seus ni-nhos, certas abelhas golpeiam com o ferrão o gânglio motordo lagarto e as enguias encontram seu caminho para as Ber-mudas”.42 Esse, porém, é o arquétipo biológico, diferentedaquele de que se ocupa a psicologia, que o considera aocontrário como forma a priori (análoga às categorias kantia-nas), molde vazio, capaz de organizar a experiência e de or-denar as representações.43 Ele se enche, assim, de dados for-

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41. C.G. Jung, “Simboli della transformazione” (1911),in: Opere, Boringhieri, Turin, 1967 sgg., V, 1970, p.4142. Id., Introduzione a E. Harding, Frauen-Mysterien,Rascher, Zurique 1949, p. VIII.43. Cf. Id., “Riflessioni teoriche sull’essenza della psiche”(1947-1954), in Opere, cit., IX, 1980, I, p. 247.

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necidos pela existência individual, que assumem todavia,no seu interior, um caráter mítico e “numênico”, de revela-ção de alguma coisa de imenso, divino ou demoníaco. Sebem que perigosa, a visão dos arquétipos, certamente, abreao indivíduo frestas de premonição e de emoção, enquantomobiliza, ao mesmo tempo, o pensamento e os sentimen-tos. O que se nota nas obras de arte ou nos “grandes sonhos”(onde mais que uma freudiana “satisfação alucinatória dodesejo” assiste-se a uma consultação de cada um com as par-tes mais escuras de si mesmo, que, porquanto comuniquemcom linguagem oracular, sabem, porém, sempre mais doque a consciência): “Toda relação com o arquétipo, vivencia-da ou simplesmente expressa, é ‘comovente’, ou seja, ela ageuma vez que desencadeia em nós uma voz mais poderosaque a nossa. Aquele que fala com imagens primordiais écomo se falasse com mil vozes; agarra e domina e, ao mes-mo tempo, eleva o que designou do estado de caducidade àesfera das coisas eternas; erige o destino pessoal em destinoda humanidade e, ao mesmo tempo, libera em nós todasaquelas forças auxiliares que sempre tornaram possível àhumanidade escapar de todo perigo e de sobreviver mesmonas noites mais longas”.44

Outras direções toma, pelo contrário, a nova psiquia-tria pós-positivista, aberta por Jaspers em 1931 com a Psi-copatologia geral, quando – separando-se de seu mestre MaxWeber – afirma que toda ação e todo pensamento são do-tados de sentido. Constatada a impossibilidade de desco-brir um “bacilo da loucura” ou lesões orgânicas para as psi-coses endógenas (e em particular para o grupo daquelas

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44. Id., Il problema dell’inconscio nella psicologia moderna(1932), Einaudi, Turin, 19712, p. 50.

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que Bleuler definiu como “esquizofrenias”), considerada ainutilidade da visão objetivante que tende a catalogar, aconsiderar entomológicos os diversos distúrbios, recondu-zindo-os a fatores orgânicos e a etiquetas, começa agora porparte da psiquiatria a aproximação das filosofias mais re-centes, de Dilthey, de Bergson, de Max Scheler, assimcomo mais tarde se fará referência a Husserl, a Heideggerou a Sartre. Jaspers, contemporaneamente psiquiatra e fi-lósofo, é uma figura emblemática dessa inflexão. A visãoobjetivante é fortemente redutora, tende a remeter os fenô-menos a uma base natural, orgânica, substancialmenteimóvel, acreditando com isso ter dado uma explicação“científica”: transforma um sorriso numa simples contra-ção de músculos. Interpreta a loucura e o delírio como umanegação seca da razão e do discurso sensato, como alterida-de impenetrável. A nova psiquiatria, ao contrário, colocan-do-se também no terreno das ciências do espírito, conside-ra a incompreensibilidade do doente mental no interior dasrelações interpessoais como a nossa mesma incompreensi-bilidade e opacidade recíproca num grau mais alto, e pro-cura sondar-lhe não sua absoluta estranheza, mas o projetode existência do qual é portador. Penetrar nesses mundoshorrorosos da loucura, observar as suas lancinantes figurasou as construções barrocas do delírio, é uma viagem de des-coberta nas dobras da própria razão, uma exploração dassuas regiões mais impérvias. Tal como um cristal que, aocair e quebrar segundo determinadas leis, manifesta os pla-nos de fratura latentes também nos cristais ainda íntegros,o louco revela de forma proclamada a existência divididadaquele momento projetável e projetivo que envolve nãoapenas a razão, mas também a percepção sensível e a tona-lidade afetiva – momento presente em todos, mais ou me-

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nos incorporado nos seus conteúdos “reais”. O doente men-tal revela assim, com maior evidência, o caráter de constru-ção, segundo projetos fundamentais que cada vida possui eexibe, agigantadas, as lacerações presentes em todos, aspossibilidades de fracasso latentes em cada existência (porisso, a sua vista e o seu contato são perturbadores, fontes deangústia e de insegurança: a “normalidade” preserva-se es-condendo e isolando as “exceções”). Mas à margem dos pre-cários equilíbrios entre o momento “público”, o pertenci-mento a um mundo e a uma linguagem comum, e o mo-mento “privado”, o desenganchar-se do projeto fundamen-tal de uma vida da rede perceptiva e comunicativa comum– equilíbrios que constituem a gama da “normalidade”-,existem as irrupções magmáticas do elemento projetivotornado autônomo, perturbado na sintonização com a rea-lidade e com os outros: é então que se escutam vozes quenenhum outro escuta, que se vêem coisas que nenhum ou-tro vê, que se subtraem os discursos aos esquemas mais or-dinários, públicos, de decifração. E não apenas a razão éatingida, pois, existe também, dir-se-ia, uma loucura dossentidos: o tempo tende, assim, a se congelar ou a invertersua direção, o espaço a se contrair, o mundo a se encolhersobre si mesmo.

Eugène Minkoswski – desenvolvendo aqui a filosofiade Bergson – considera a psicose como um fechamento dofuturo vivido pelo indivíduo, a flexão permanente do ím-peto para o amanhã, o sofrimento por uma realidade quelhe aparece como bloqueada. Então, o tempo perceptiva-mente se solidifica ou o doente vê os ponteiros do relógiomoverem-se para trás. Ou então, o espaço perceptivo, ana-logamente ao espaço interior fechado, se restringe, e o su-jeito psicótico, posto ao ar livre, cumpre obsessiva e ma-

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quinalmente somente poucos passos para frente e para trásou se encolhe, assumindo um volume espacial mínimo,como se quisesse se anular. Dir-se-ia até que a razão perma-nece íntegra nessas torsões perceptivas e nessa impossibili-dade de se dirigir para o futuro, e que exprime e descrevecom precisão a paisagem devastada percebida internamen-te e externamente: uma idéia delirante “não é outra coisa,em suma, que a tentativa do pensamento, permanecido in-tacto, de estabelecer um nexo lógico entre as diversas pe-dras do edifício em ruína”.45

Os delírios têm sentido, portanto, se se é capaz de re-constituir a gênese e a estrutura de tais paisagens interio-res e perceptivas, se se consegue traduzir novamente essasformas de privatização lingüística e experimental nos ter-mos de uma lógica e de uma concepção do mundo maisvasta e complexa. A nova psiquiatria, com tonalidadesexistenciais, adquire um alto valor simbólico no plano so-cial e político porque, em lugar de mostrar os “desviantes”,os loucos-delinqüentes afastados da norma (como fazia naItália, por exemplo, Lombroso), tende, antes, a fazer ver odesvio como intimamente constitutivo da própria norma eo doente mental como o extremo de uma vida deterioradaque todos, em graus diversos, experimentam.

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45. E. Minkowski, “Studio psicologico e analisi fenomeno-logica di un caso de melancolia schizofrenica” (1923), in:E. Minkowski, V. E. von Gebsattel, E. W. Strauss, Antro-pologia e psicologia, Bompiani, Milão, 1967, p. 31.

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Durkheim e Weber

Se a psiquiatria e a psicologia não-objetivantes cor-roíam o conceito de norma e de legalidade rígida dos fenô-menos, ou seja, se punham em relevo mais as variantessubjetivas e a multiplicidade dos projetos individuais, queno limite são únicos e incomensuráveis, do que a sua recon-duzibilidade a regras gerais, nem por isso nas outras “ciên-cias humanas” podia-se renunciar ao uso de leis. Assim, emDurkheim, a sociologia, que manteve estreitos vínculoscom as suas matrizes positivistas, delimita como uma bar-reira externa a área de validade da psicologia e restabelecea exigência de uma objetividade não submetida a refraçõese distorções individuais (cumpre, a partir de fora, aquelamesma função de garantia da objetividade diante dos su-jeitos singulares que o “realismo” de tipo platônico tinhatido no interior das matemáticas). Os indivíduos podemagir subjetivamente pelos mais diversos motivos, mas o re-sultado dos seus atos, o fato social obedece a uma lógicaprópria, possui uma constrição específica: “É um fato socialqualquer modo de fazer, mais ou menos fixado, capaz deexercer sobre o indivíduo uma constrição externa; ou tam-bém que está geralmente no interior de uma determinada

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capítulo 3

O patos da objetivação

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sociedade, enquanto possui sua própria existência indepen-dentemente de suas manifestações individuais”.46 Isso sig-nifica que o movimento desses átomos sociais, que são osindivíduos, não é tão completamente sem relação ou inde-finidamente diferenciado como aparece na vertente psico-lógica, mas está submetido a uma forma atenuada de ne-cessidade, como a que estrutura a limalha de ferro ao lon-go das linhas de força de um campo magnético ou queplasma segundo regras a ação individual, de tal modo queos fatos sociais “são, em certo sentido, os moldes nos quaissomos obrigados a versar as nossas ações”.47 A esfera socialtende, portanto, a assumir um estatuto diferente do da psi-cológica – deve ser estudada, para Durkheim, como cole-ção de “coisas” e não como fluxo – e é este o sintoma de umalargamento das mediações entre indivíduo e coletividade.De um lado, a individualidade – rejeitada em sua solidão einsignificância social num mundo sempre mais organizadono qual cada um é intercambiável – redescobre a própriacomplexidade e as largas margens de incompatibilidade, denão-absorção no todo social, enfatizando, conseqüentemen-te, o caráter insubstituível de seu papel e o valor propulsorda diversidade e da violação da norma; de outro, a socieda-de como um todo proclama-se independente do aporte dosindivíduos singulares, os mais exigentes, afirmando ser au-tônoma e possuir, ela e não os indivíduos, os intrumentosde coerção, sendo o todo que guia as partes e não vice-ver-sa. Porquanto concepções análogas de separação da totalida-de social com relação aos indivíduos tenham desembocado

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46. E. Durkheim, Les règles de la méthode sociologique, Flam-marion, 1988.47. Ibid, p. 45.

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em ideologias totalitárias ou “estadolátricas”, em Dur-kheim (como em Croce ou em Weber) não se trata de ani-quilar a contribuição da individualidade, mas de discipliná-la, de chegar a bom termo com as novas individualidadescomplexas que se vão constituindo. Sob esse aspecto, a so-ciologia pode parecer nos confrontos com a psicologia comoo convexo com relação ao côncavo de um mesmo todo,como complementaridade na análise das funções sociais eindividuais, como distribuição dos campos de investigação.E, em Durkheim, como acentuação do elemento cooperati-vo fundado seja na divisão do trabalho, seja, mais intima-mente, no caráter social, de “representação coletiva”, que osconceitos possuem. O pensamento, o órgão da mais alta co-municação entre os homens, não é um produto individualque reage quimicamente sobre outros produtos individuais,outros pensamentos, mas é, no seu nascimento, elementosocial do qual os indivíduos se apossam e que adaptam, tra-duzem, incrementam (e é, ao conhecer tais processos, que apsicologia readquire os seus direitos).

Circula na cultura européia desses anos – em muitosambientes geográficos e em muitas disciplinas para ser umpuro acaso – a exigência de combater o vitalismo psicológi-co, ancorando o indivíduo à ação, ao fato social, ou seja, aomomento em que se objetiva, se conjuga laboriosamente como mundo e produz efeitos constatáveis. Assim, é a ação hu-mana que, para Weber, dá sentido a um universo dele priva-do, atribuindo à realidade “valores”, objeto de fins humanos,e construindo instrumentos, meios para conseguir esses fins.A única ciência possível é a dos meios, não dos valores, entreos quais registra-se um conflito, um “politeísmo”, não com-ponível. Das diferentes formas de ação dotadas de sentido (ra-cional com relação a fins, racional com relação a valores, pas-sional-emotiva, tradicional), o capitalismo desenvolve plena-

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mente apenas a primeira, empurrando para a esfera privada epenalizando todas as outras. A racionalidade capitalista é pu-ramente instrumental, baseada na eficiência, na destruiçãodas certezas de conteúdos tradicionais, no controle e no esfria-mento da emotividade, na suspensão do significado geral dosoutros valores. O Estado e a sociedade são organizados com osmesmos critérios da empresa capitalista e o mundo ficou semencantos, privado dos seus substratos mágicos, tornado maisseguro, ordenado, calculável e cientificamente compreensí-vel. A religião – que foi o primeiro órgão poderoso a dar sen-tido ao mundo e que, nas suas roupagens calvinistas, gerou oespírito do capitalismo – esgotada a sua missão civilizadora,parece ter-se retirado à vida privada, tornando-se instrumen-to de turva consolação. A realidade capitalista é, com efeito,muito dura, mas, para Weber, dela não se pode sair, é uma“jaula de aço”: é preciso muita coragem para aceitar viverdentro de suas barras, para contentar-se com a sóbria vocaçãodo trabalho, da profissão (Beruf).

Mas o patos com o qual ele carrega os momentos daobjetividade e do operar fecundo não deve fazer perder devista a face subjetiva, a ética – de proveniência neo-kantia-na – da responsabilidade do indivíduo, hoje tremendamen-te só no esforço para fazer coincidir a máxima do próprioagir com a “legislação universal”. Contrariamente a quan-to se poderia pensar, o peso da subjetividade não diminui,nesse mundo, ferreamente estruturado pela razão formal,pela ciência, pela fábrica, pela burocracia, mas cresce para-lelamente a ele. Cada um deve escolher, deve seguir “o de-mônio que tem os fios da sua vida”48 (não o “líder carismá-

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48. M. Weber, “La scienza come professione”, in: Il lavorointelletuale come professione, Einaudi, Turin, 1966, p. 43

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tico”, portanto), sem se acomodar num relativismo cético(talvez o de um historicismo invertebrado), colocando-seacima do conflito ou refugiando-se nos braços misericor-diosos das velhas Igrejas. Contra o relativismo, a acomoda-ção e o misticismo, Weber insiste em mostrar – ao lado deargumentos de ordem ética – o caráter não indeterministado nosso conhecer e agir no mundo. Os “ideal-tipos”, osconceitos com os quais interpretamos o real, pondo unila-teralmente em evidência somente alguns aspectos, são ofruto de escolhas drásticas, construções irreais, “quadrosfantásticos”, úteis para conhecer e dominar (não para refle-tir!) o mundo, produção de estruturas normativas de natu-reza lógica, desvinculadas de “juízos de valor”. Mas não sãoarbitrários, são, antes, objetivos enquanto intersubjetivos,funcionando cientificamente enquanto operam mediantenexos causais. Em polêmica com os deterministas, Webernega certamente a existência de uma causalidade absoluta,de uma concatenação rígida dos fatos, típica de algumasconcepções positivistas ou do determinismo econômico decertos expoentes da Segunda Internacional, mas, do mesmomodo e com a mesma força, refuta o indeterminismo abso-luto de um Eduard Meyer, que atribui um papel prepon-derante ao acaso, ao imprevisível, à decisão individual e àliberdade da ação. Entre acaso e necessidade existe um lar-go espaço de graduação do possível. Valendo-se dos mode-los de cálculo de probabilidades, em particular dos de Jo-hannes von Kries, Weber elabora uma teoria da história eda ação humana, que pode ser esclarecida com o exemplopor ele mesmo escolhido: se jogamos um dado por umnúmero elevado de vezes, é absolutamente impossível sa-ber, com certeza, qual dos seis números sairá em cada joga-da; as possibilidades se distribuem igualmente na freqüên-

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cia de 1/6 para cada uma das faces do dado. Mas se deslo-camos o centro de gravidade do dado, se usamos um dado“maquiado”, então podemos favorecer, mais ou menos asaída de um certo número. O deslocamento do centro degravidade do dado é, pois, a “causa adequada” para a pas-sagem da casualidade absoluta à previsibilidade, ao senti-do. Também a ação humana dotada de sentido é uma mo-dificação análoga do acaso. Para compreender uma ação in-dividual ou um acontecimento histórico devemos proce-der, portanto, por imputações causais, desmontar os fenô-menos e imaginá-los com ou sem algumas premissas, uti-lizando a irrealidade dos “se” e dos “mas” para explicar oreal, para estabelecer o grau de favorecimento que um ele-mento tem sobre o conjunto.

De Croce a Gramsci

Contrariamente a Weber, os “se” e os “mas” não cons-tituem para Croce o critério da interpretação histórica. Jus-tamente porque nele é forte o patos no momento da obje-tivação, da incorporação determinada das nossas ações nomundo, é ocioso perguntar-se o que teria acontecido se osfatos tivessem ocorrido de outra maneira. Tal pergunta éum “jogo que costumamos fazer, nos momentos de ócio oude preguiça, fantasiando sobre a direção que teria tomadonossa vida se não tivéssemos encontrado a pessoa que en-contramos, ou se não tivéssemos cometido o erro que co-metemos; e, com muita desenvoltura, tratamos de nósmesmos como o elemento constante e necessário, e nãopensamos em mudar, mentalmente também, esse nós mes-mos, que é aquilo que é nesse momento, com as suas expe-

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riências, as suas lembranças e as suas fantasias, precisamen-te por ter encontrado, então, aquela dada pessoa e cometi-do aquele erro: mas, eis que, reintegrando a realidade dofato, a brincadeira se interrompe sem mais e desvanece”.49

A impossibilidade de formular previsões para o futuro, ofim declarado de todo teleologismo e de toda filosofia dahistória (entendida como história com propósito), o respei-to pela dureza dos fatos e pelo agir de forças desmedidas etransindividuais, a precipitação e o devir irrevogável daação singular nas grandes torrentes dos acontecimentos doTodo, deixam espaço apenas para o reconhecimento do pas-sado. Mas isso não significa aceitar a necessidade inelutá-vel do curso histórico também para o presente e para o fu-turo. Pelo contrário: empurrados por necessidades práticassempre novas e continuamente insurgentes, pelo desejo deeliminar as obscuridades e os fantasmas que se interpõemà ação, de romper com a servidão e o peso do passado, nóso interrogamos e o tornamos vivo, contemporâneo, “quaseà maneira do que se conta de certas imagens de Cristo e deNossa Senhora, as quais, feridas pelas palavras e pelos atosde algum blasfemador e pecador, vertem sangue”.50

Pela reflexão, pela filosofia – que é “metodologia dahistoriografia”, conhecimento do “universal concreto” pre-sente em todo acontecimento – conseguimos compreenderqual é o sentido da pesquisa histórica, do reconhecimentoobjetivo, mediado pelos documentos e testemunhos, da-quilo que foi. A investigação histórica dos historiadores ea que cada um realiza para reconstruir o significado do pró-

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49. B. Croce, La storia come pensiero e come azione (1939), La-terza, Bari, 1973, p. 19.50. Ibid., p. 10

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prio comportamento, aplaina a estrada da liberdade, enten-dida como consciência da necessidade, cognição das possi-bilidades reais do agir, que exclui, portanto, seja a aceita-ção passiva dos acontecimentos, seja o desejo de saltar, semenfrentá-los, por sobre os condicionamentos e as barreirasdo real. Convertendo o passado em conhecimento, com-preendendo quão obscuramente se agita em nós e no mun-do, estamos prontos para realizar-nos, para tornarmos cadaum de nós um criador de história, numa “religião dasobras” que lembra a ética weberiana da vocação, do Beruf.Somente o que se objetiva, o que entra em relação com aatividade dos outros deixando alguma marca, tem valorpermanente: não os esforços impotentes, não as jactâncias,não as garrulices, não as diversas formas de “paralisia davontade” que debilitam os ânimos.

Por isso, a arte deve ser “expressão” e não reivindica-ção de uma nebulosa interioridade que seria muito nobre eprofunda para ser traduzida em linguagem; deve ser comu-nicação, conhecimento, e não turvo sensualismo ou instru-mento de propaganda política e religiosa. Por isso, a filo-sofia deve ser conhecimento efetivo do universal concreto enão coleção de abstrações úteis, de etiquetas, como Croce élevado a considerar, simplificando as posições convencio-nais correntes também entre os cientistas. Por isso, os atos“econômicos” devem ser levados a cabo com boa consciên-cia, sem neles mesclar preconceitos morais (a categoria do“útil”e do “vital”, essa “verde” força com a qual ele siste-matiza a herança de Maquiavel, de Marx, dos marginalis-tas e da Machtpolitik do tempo, é aquela que mais irá obri-gar Croce a modificar os seus esquemas teóricos, o elemen-to desestabilizador e subterrâneo que irá insidiar o Olimpodo “Espírito”, a doutrina do equilíbrio geral dos “distin-

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tos”). Por isso, enfim, as ações morais não são atos desen-carnados, etéreos, altruísmo vazio que tem por mira ummundo diferente do nosso e superior, mas volição do uni-versal que tem como pressuposto a volição de cada um, ouseja, ações voltadas para o interesse geral, das quais todosse beneficiam, mas que pressupõem o abandono temporâ-neo do, ainda que lícito, egoísmo individual. A vida do“Espírito” é justamente essa realização incessante do movi-mento do Todo por meio das obras de todos, as quais sãosomente funções subordinadas dessa totalidade e tornam-se “imortais” em sentido laico e têm valor apenas quandoaceitam conscientemente servir como material de constru-ção de uma história que se eleva acima das suas cabeças,acima das suas intenções (aqui são claramente visíveis o an-tipsicologismo de Croce e o caráter de um liberalismo nãocertamente individualista): “cada ato nosso, apenas realiza-do, de nós se separa e vive imortalmente, e nós mesmos(que realmente não somos mais que o processo dos nossosatos) somos imortais, porque ter vivido é viver sempre”.51

Nós somos veículos, “fagulhas”, dessa enorme potência doTodo, cuja direção nos escapa, que não podemos julgar,mas que devemos receber “à guisa de mistério”.52 Estamosrodeados de organismos monstruosos aos quais estamosobrigados a nos curvar, “aos Leviatãs que se chamam Esta-dos, aos colossais seres vivos com vísceras de bronze, aosquais temos o dever de servir e de obedecer, e eles de suaparte têm boas e profundas razões para se olhar com fero-cidade, para se morder, para se despedaçar, para se devorar,

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51. Id., “Religione e serenità”, in: Frammenti di etica, ago-ra também in: Etica e politica, Laterza, Bari, 1973, p. 23.52. Id., “L’utopia come forma morale perfetta”, in: Terzepagine sparse, Laterza, Bari, 1955, I, p. 97.

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visto e considerado que somente assim moveu-se até ago-ra, e assim substancialmente mover-se-á sempre, a históriado mundo”.53

Mas esse é o nosso único mundo, no qual sofremos,talvez, mas no qual existem os objetos de todo desejo, pai-xão, interesse, conhecimento. Na realidade, não querería-mos um outro, aquele que prometem as religiões: estamosindissoluvelmente ligados a essa “terrestridade”, a essaimanência (tal é o significado da expressão “historicismoabsoluto” e tal é um dos temas que Gramsci irá retirar deCroce). Devemos corajosamente nele mergulhar, aceitar orisco, a possibilidade do sofrimento, as desilusões e asamarguras: “Vale a pena viver, quando apalpa-se o pulso atodo momento e cobre-se com panos quentes e evita-setodo sopro de ar por medo de adoecer? Vale a pena amar,pensando e providenciando sempre à higiene do amor, gra-duando-lhe as doses, moderando-o, procurando de quandoem quando a abstenção como exercício de abstinência, pelotemor de estremecimentos muito fortes e de dilaceraçõesfuturas?”.54 Nessa perspectiva também o mal perde o seuaspecto substancial. Não por se chegar a abolir sua cons-ciência ou porque, à maneira de Vico, a filosofia possa sal-var da angústia “pelas mulheres que parem” ou “pelos fi-lhos que nas doenças definham”, porque o mal não temexistência e poder autônomo, separado do positivo. O mal,ou é percebido com tal, e por isso não o fazemos, ou entãonão o é, e por isso se pratica o bem: “O jogador exemplar,no momento em que sabe que está se prejudicando econo-

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53. Id., “Per la serietà del sentimento político” (1916), in:Pagine sulla guerra, Laterza, Bari, 1928, p. 166.54. Id., “Amore per le cose”, in Frammenti di etica, cit., p.19.

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micamente não joga: a sua mão está parada, e está paradaporque saber (em sentido prático) equivale a querer, e sabero prejuízo do jogo significa sabê-lo como prejuízo, ou seja,repugnar o jogo. Se a mão retoma os dados ou as cartas, issoacontece porque nele oblitera-se aquele saber, quer dizer,porque ele muda seu querer: e neste caso o jogo não é maispercebido como prejuízo, ou seja, é desejado, e, naqueleinstante, para ele transforma-se em bem porque lhe satis-faz uma necessidade”.55

A filosofia croceana é eminentemente uma pedagogiapolítica, a tentativa de educar uma classe dirigente italianaà altura das suas tarefas, de fazê-la assumir uma postura eu-ropéia. O seu convite à sobriedade, à operosidade, à serieda-de é, politicamente, o convite a abandonar os sonhos fanta-siosos de glória nacionalista e colonialista, a sacrificar os as-pectos ocamente retóricos e o transformismo miúdo queesta burguesia carrega há séculos, a eliminar as escórias deum idealismo deteriorado, as garrulices e as asfixias locaispara mergulhar ativamente na corrente dos acontecimentosmundiais, a acolher de maneira subordinada algumas exi-gências do movimento operário, desde que – bem entendi-do – seja adequado à racionalidade burguesa. O proletaria-do “se quer imitar verdadeiramente a burguesia ao derrubaruma velha sociedade, deve ter a força e a capacidade de imi-tá-la igualmente nos métodos severos da derrubada e dareedificação. Tais são as condições postas pela história, ecom a sua observância o socialismo é tão pouco amedronta-dor, quanto é pouco amedrontador o que é necessário”.56 O

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55. Id., Filosofia della pratica (1908), Laterza, Bari 1963,pp135-6.56. Id., Conversazioni critiche, Laterza, Bari, 1924, I, p.312-3.

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proletariado, porém, atravessa, ainda, uma fase passionalbruta da sua vida política, mas de resto a política é, na suaessência, paixão, racionalização “econômica” de interessessetoriais, que prescinde de todo valor moral supremo, ten-do sua própria justificação em si mesma. A previsão marxia-na de uma luta de classe que se conclui com o desapareci-mento de todas as classes é, portanto, para Croce uma uto-pia moral, que sucumbe às seduções da deusa Justiça, tãoenganosas quanto a encantadora Alcínoe. O modelo filosó-fico dos “distintos” entende, pelo contrário, manter umequilíbrio entre as classes e os blocos de interesses contra-postos, evitando reviravoltas drásticas e violentas. A idéiade uma “liberdade” – hegemonia sem ditadura manifesta –como garantia de que nenhuma classe prevalecerá sobre asoutras pela violência favorece evidentemente, em termosgramscianos, a “revolução-passiva”, a simples racionalizaçãodo domínio existente e o compromisso com forças deveraspré-burguesas, como a Igreja. Com ela, tem-se uma espéciede divisão tácita das esferas de influência: as elites ao Esta-do laico e liberal, que irá forjá-las de modo austero e eficaz,as massas a uma religião que é forma inferior, passional, defilosofia, que irá manter o “povo” na obediência e na passi-vidade. Há aqui uma implícita declaração de incapacidadeem controlar largos estratos sociais e em fazê-los participar,mesmo a longo prazo, de uma atividade histórica mais vas-ta.

Enquanto interlocutor de Croce, Gramsci procura in-verter esse esquema, colocando o problema e preparando osinstrumentos para permitir que todos participem comoprotagonistas na construção da história e das instituições.Sobretudo depois de 1917, a burguesia atravessa um perío-do de profunda crise de hegemonia; as relações de força mu-

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daram em favor da classe operária, que não está mais obri-gada à passividade fatalista ou à revolta sem saída, comoquando sofria a iniciativa do bloco histórico dominante.Agora, ela está em condições de dirigir as forças produtivase de guiar os Estados: atingiu a maioridade política. É pre-ciso uma compacta “vontade coletiva” para operar a transi-ção e um “novo senso comum” para elevar as grandes mas-sas ao patamar da ciência e das formas de vida modernas. Eisso é tanto mais necessário porque no Ocidente, onde a “so-ciedade civil” é extremamente articulada com a proteção do“Estado político”, a luta será longa, será uma enervante“guerra de posição”. Para resistir à ofensiva proletária e pararemediar a queda tendencial da taxa de lucro, os Estados sereorganizam, tentam comprometer diretamente todos os ci-dadãos na defesa do sistema vigente, capturando-os ou ex-torquindo-lhes, à força, o consenso. É preciso aprender to-dos os métodos mais elaborados dos adversários, não deixar-se surpreender despreparados ou atrasados nessa revoluçãoque arde em “fogo lento”, abandonar o primitivismo econô-mico e mecanicista precedente e desenvolver a capacidadede previsão e de guia dos acontecimentos, chamando tam-bém os intelectuais para colaborar com tal empreendimen-to histórico e colmatando continuamente as distâncias quese formam entre as linhas estratégicas dos vértices e a capa-cidade de compreensão e de recepção da base.

O historicismo gramsciano quer ser a armadura teóri-ca para enfrentar aquela situação histórica determinada deluta e de transição, cheia de desequilíbrios, de tensões, deavanços e recuos (na qual deve-se, por exemplo, mediar oNorte industrial e o Sul camponês, a alta cultura da tradi-ção burguesa e as crenças mágicas ou o folclore das cama-

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das subalternas, a filosofia e o mito, o desenvolvimento dasforças produtivas, mesmo por meio da aplicação de siste-mas tayloristas, e os obstáculos interpostos por relações deprodução atrasadas ou arcaicas). Mas não se trata de umhistoricismo “flexível” ou, como foi dito, de “esquerda cro-ceana”, porquanto Gramsci tenha retirado muito de Croce(e de Gentili), como Marx de Hegel: mediante os desequi-líbrios, a atenção pelo desenrolar concreto dos aconteci-mentos, o esforço para eliminar a divisão entre dominantese dominados, a história deve ser transformada segundo umprojeto de emancipação coletiva, não contemplada e adora-da como um mistério imperscrutável e cruel em sua essên-cia eterna e incompreensível. O seu historicismo é tão ra-dical e imanente que aquilo que hoje – nessa precisa situa-ção histórica objetiva – é verdadeiro, poderá se tornar falsoe o que é falso poderá, pelo menos em alguma medida, setornar verdadeiro: “Pode-se até mesmo chegar a afirmarque enquanto todo o sistema da filosofia da práxis pode setornar caduco num mundo unificado, muitas concepçõesidealistas, ou pelo menos alguns de seus aspectos, que sãoutópicos durante o reino da necessidade, poderiam se tor-nar ‘verdade’ depois da passagem, etc.”57

O historicismo – interpretado por Togliatti – desem-penhou uma função relevante na cultura italiana do se-gundo pós-guerra. Constituiu a ponte que permitiu tran-sitar de um idealismo a um tipo de marxismo que, na Itá-lia, teve que pular uma geração. Contra toda “abstração ja-cobina”, pôs em evidência os fechamentos, os bloqueios, aespecificidade, a concretude de toda situação histórica, a

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57. A. Gramsci, Quaderni del carcere, Einaudi, Turin, 1975,p. 1490.

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necessidade de afinar o pensamento sobre a realidade, delevar em conta relações de força impostas pela situação in-ternacional. O valor quase “neo-realista” da concretude,do vínculo com as situações históricas e econômicas deter-minadas, torna-se central. É preciso reconhecer os direitose o peso do próprio tempo, evitando o refúgio no mofo fe-chado da própria consciência ou dimensão privada. Contrao idealismo e o espiritualismo e contra a retórica fascista,pretende-se agora fazer descer novamente a filosofia docéu das idéias puras para dentro das casas e das vidas doshomens.

Nessa marcha em direção a uma espécie de “via italia-na à racionalidade” procurou-se, com efeito, sob a égide dapolítica, um entrelaçamento entre história e utopia. Umahistória dinamizada, vertebrada e fortalecida por um fimutópico (o da emancipação) deveria se conjugar com umautopia freada, capaz de levar em conta os vínculos e as pos-sibilidades, as barreiras e as passagens para forçá-los. Sãojustamente esses dois elementos que, a seguir, foram-sedissociando progressivamente, subtraindo da história o seufim nas filosofias do “pós-moderno”, e da utopia o seu las-tro de condicionamentos históricos, a ponto de fazê-la ten-dencialmente voltar a ser um gênero literário.

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O historicismo de Dilthey

Muito diferente era a base teórica do historicismo deDilthey, que havia estimulado as reflexões e as críticas tan-to de Weber quanto de Croce. Também aqui a ênfase recaisobre a objetivação das obras de cada um, num mundo hu-mano dotado de sentido, que é o produto do seu agir mas,ao mesmo tempo, também daquilo que lhes dá forma e nointerior do qual elas tornam-se compreensíveis. Tudo o quesurge da atividade espiritual tem a marca da historicidade:“Da disposição das árvores num parque, à ordem das casasnuma rua, do instrumento do trabalho manual à sentençanum tribunal, tudo a nossa volta, a toda hora, é historica-mente produzido. O que o espírito deixa entrar hoje, comseu caráter na própria manifestação da vida, torna-se, ama-nhã, história. Enquanto o tempo escoa, estamos cercadospelas ruínas de Roma, de catedrais, de castelos indepen-dentes. A história não está em nada separada da vida, emnada diferenciada do presente por sua distância tempo-ral”.58 Alimentamo-nos desse “espírito objetivo”, dessa his-

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capítulo 4

Os desníveis da história

58. W. Dilthey, “La costruzione del mondo storico nellescienze dello spirito”, in: Critica della ragione storica, Einau-di, Turin, 1954, p. 236.

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toricidade, desde a infância, ainda antes de aprender a fa-lar: absorvemos os costumes da família e da comunidade, aordem das coisas, os signos e as expressões faciais. Além domais, com o passar dos anos, uma vez que nos assenhorea-mos da linguagem, entendendo o significado de muitoscomportamentos, pensamentos, instituições, conseguimosorientar-nos nesse mundo que se tornou nosso e para o qualcontribuímos, mas que é fruto de todas as gerações que sesucederam até agora. Por esse motivo – pela “vida em co-mum” que existe e que une quem exprimiu alguma coisacom quem pode entendê-la – a história e as outras “ciên-cias do espírito” têm um estatuto especial que as distinguedas ciências da natureza. A natureza é-nos estranha, não fo-mos nós que a fizemos, é alguma coisa de exterior à qualaplicamos a explicação causal; a história é obra nossa, nelao sujeito do saber é idêntico ao seu objeto, e nós podemos“compreender” com “conexões dinâmicas”, com relação avalores e fins, o sentido dos seus acontecimentos, através daexperiência interior que os revive, a Erlebnis, e a interpre-tação que os decifra e os reconstrói. Não tem importânciaque nós não tenhamos vivido diretamente a experiência e aemoção que se trata de compreender. Pelo contrário, a his-tória e as outras ciências do espírito enriquecem-nos e uni-versalizam-nos porque tornamo-nos partícipes das infinitasexperiências e combinações que os inevitáveis limites davida individual fazem pessoalmente inacessíveis: “Abre-seo palco: aparece Ricardo, e uma alma penetrante pode, se-guindo as suas palavras, os seus gestos e os seus movimen-tos, reviver algo que está fora de toda possibilidade de suavida real. O bosque fantástico de Se assim vos parece nostransfere para uma disposição interior, a qual nos consentereproduzir toda excentricidade. E nesse reviver, está uma

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parte importante da aquisição de coisas espirituais, dasquais somos devedores ao historiador e ao poeta. O cursoda vida produz em cada homem uma determinação cons-tante, na qual ficam limitadas as possibilidades aí contidas[...]. A compreensão abre-lhe um amplo campo de possibi-lidades, que não existiam na determinação de sua vida real.A possibilidade de viver de forma imediata na minha exis-tência mais do que um estado religioso, é para mim, comopara a maior parte dos homens, muito restrita. Mas quan-do eu leio as cartas e os escritos de Lutero, as narrativas dosseus contemporâneos, os atos das conferências religiosas edos concílios bem como da sua narração oficial, eu vivo umprocesso religioso de tal força eruptiva, de tal energia, quena vida e na morte ele está além de toda possibilidade deErlebnis para os homens da atualidade”.59

Dilthey está preocupado com o enrijecimento e com apetrificação do mundo histórico, teme que os sentidos doscontextos não possam mais ser decifrados pelo indivíduo eque a experiência histórica tenda a se tornar coisa, passadoincompreensível. Permanece um objeto que não tem senti-do para nós, que é indiferente. O caráter de fixidez lhe fazperder sua dimensão cambiante com base em razões de-monstráveis. A história deve servir para potencializar avida, para reconstruir artificialmente a tradição. Ela parecedever assumir também uma tarefa terapêutica, a de revita-lizar uma experiência sem viço, de dar oxigênio a uma in-dividualidade que se sente sufocada pelos mecanismos ob-jetivos da produção de sentido e pela complexidade, masque ao mesmo tempo não acredita mais nas filosofias da

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59. Id., Nuovi studi sulla costruzione del mondo storico nellescienze dello spirito, ibid., p. 324-5.

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história que prometem um curso das coisas que sustente oprogresso do sujeito na sua crista da onda. O impetuosodesenvolvimento por meio das contradições apresentadopela dialética desnaturou-se em evolução. A continuidadee a viscosidade do movimento histórico, a sua falta de cor-tes nítidos foram aceitas. Agora, trata-se de fazer concorrero indivíduo – com o prêmio de sedução oferecido pela po-tencialização da Erlebnis – na manutenção da vida e na re-produção dos universos simbólicos e de sentido e, ao mes-mo tempo, na conservação da vitalidade social. O espíritoobjetivo deve ser posto a render no duplo interesse do in-divíduo e da comunidade. Pela mediação da história, o pre-sente adquire uma tonalidade vital mais intensa. O queaparece em universos simbólicos inertes reativa-se median-te a compreensão típica do “círculo hermenêutico”, a Vers-tehen (tratada no ensaio de 1900 intitulado, justamente,Hermenêutica). Ela consiste no jogo aberto de antecipaçãodo sentido global de um determinado problema, que retor-na, porém, continuamente sobre si mesmo e retifica, dequando em quando, a compreensão mediante uma recolo-cação e um reexame das partes.

Mediante a Verstehen, cada um pode viver outras vidasparalelas à sua, imaginar-se provido de mais biografias pos-síveis, que lhe multipliquem as possibilidades. O eu não é,com efeito, monolítico, mas é como um tecido compostopor mil fios: é tanto mais robusto quanto mais fios (o sen-tido traçado por outros) conseguir englobar. A história nãotem mais, doravante, apenas a tarefa de estabelecer o queverdadeiramente aconteceu, mas a de entreabrir os univer-sos de sentido que correm o risco de permanecer mudos noâmbito do “espírito objetivo”. Ela constitui o remédio tan-to para as limitações casuais quanto para aquelas necessá-

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rias à vida. Faz reviver e ativa germes que já viviam em nósdispersos e abre a vida aos possíveis, alargando-a além dosseus limites estreitos. A compreensão é o antídoto face aofechamento e ao isolamento dos indivíduos. A história(mas também a arte) são os principais instrumentos de uni-versalização de cada um sem o cancelamento da individua-lidade.

Dilthey quer evitar, de um lado, o vitalismo, o isola-mento da Erlebnis da mediação histórica, de outro, a histó-ria como objetividade, inexorável movimento objetivo nãomediado pela consciência e pela doação e decifração do sen-tido individual. Por isso, ele não renuncia ao vínculo entrepsicologia e história, entre subjetividade e objetividade,entre individualidade e universalidade. A psicologia indi-vidual é o ponto de partida e o ponto de chegada do pro-cesso de “compreensão”: o conhecimento histórico é conhe-cimento da individualidade, ainda que (como aparece naContribuição ao estudo da individualidade) para a ele se che-gar, seja necessário passar pelas generalizações, tipificações.Por sua vez, o indivíduo é a encruzilhada do mundo histó-rico, o único portador e criador vivo dessas relações fluidasque constituem a história. O ideal de Dilthey expressa-sena sua referência constante à cultura alemã do período queprecede 1848 (a Schleiermacher, a Hölderlin, a Goethe, aHegel), àquela fase em que se procurava um equilíbrio en-tre indivíduo e Estado, subjetividade e objetividade, quan-do ainda não se exaltavam e não se impunham tão dura-mente os “Leviatãs”, como irá ocorrer na idade bismarckia-na e guilhermina e com Treitschke, Weber ou Meinecke.O “espírito objetivo”, produzido pela longa ação modela-dora das subjetividades humanas, não se apresenta comouma entidade estranha e hostil a elas: existe a possibilida-

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de de sua reapropriação, de impedir pela “compreensão”sua autonomização e institucionalização em formas amea-çadoras. Dilthey traça as linhas de um projeto de desalie-nação e de fluidificação das concreções e das reificações so-ciais – análogo, nos seus fins, ao idealizado por Bergson –que não passa pela modificação coletiva, política, das ins-tituições, mas pela miríade de iniciativas individuais ten-dentes a revitalizar e a dar sentido a uma civilização que sevai enrijecendo em formas de organização estatal e econô-mica sempre mais integradas e cogentes. A sua filosofia éao mesmo tempo um toque de alarme e um programa con-tracorrente: uma tentativa de modificar a rota de colisãoentre os Estados europeus que levará a agosto de 1914.

A crescente importância, também política, do conhe-cimento do homem na sua vida individual e na de relação,ao lado da “crise dos fundamentos” das ciências naturais,conduzem à emergência das “ciências do espírito” (Geistes-wissenschaften), das quais é preciso estabelecer os caracteresdiferenciais. Para governar os homens, bem como para esca-par da dominação, é preciso conhecê-los, vê-los não comoessência eterna, natural, mas como seres continuamentemodificados pela história, ou seja, por eles mesmos. O ho-mem é “criatura do tempo”, de si mesmo: o seu operar é in-teligível somente no interior de um mundo histórico espe-cífico que o circunscreve e do qual faz-se necessário conhe-cer as regras. O reconhecimento da dimensão histórica,além de revelar o desejo de retomar as rédeas de um proces-so que parece guiado por forças distantes e obscuras, tempara Dilthey também um significado emancipatório. Umavez mostrada a relatividade e a caducidade de toda expres-são da vida histórica, de toda estrutura social ou de todo va-lor, cumpriu-se “o último passo para a libertação do ho-

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mem”.60 Mas o que permanece em tal relativismo históricoé apenas “a continuidade da força criadora como elementohistórico essencial”. A história apresenta-se, assim, comoum grande canteiro aberto, no qual não existem verdadespré-concebidas, mas – justamente – verum ipsum factum.Cada um pode participar criativamente no empreendimen-to coletivo segundo as suas forças. Sob esse perfil, o histori-cismo é também uma forma de mobilização de massa, umapelo para lembrar que a história está aberta a todos, quedeixou de ser um privilégio dos poderosos da Terra.

Novamente, de maneira igual a Bergson, tudo se tra-duz em força criadora indeterminada: permanece a pereni-dade da mudança, mas sem individualizar seu sentido, seusagentes e sua dinâmica específica. De resto, é justamentesobre essa criatividade do movimento histórico em con-traste com a regularidade cíclica e repetitiva da natureza(pelo menos em tempos não muito longos), que se funda adivisão entre ciências do espírito e ciências da natureza, en-tre “compreensão” e “explicação”, entre “conexão dinâmi-ca” e causalidade. Ao reivindicar contra o positivismo a au-tonomia e a dignidade das Geisteswissenschaften com relaçãoàs suas irmãs mais afortunadas, fazendo-as abandonar umjá enraizado complexo de inferioridade, Dilthey contribuipara fixar a separação entre as “duas culturas” num mo-mento em que, entre outras coisas, as ciências naturais re-nunciam ao conceito clássico de causalidade rígida e asciências do espírito (com Weber, Durkheim ou Freud) seseparam do vitalismo ou do psicologismo da Erlebnis ligan-do-se a um conceito de causalidade mais sutil e elaborado.É verdade que em Dilthey não há jactância nem espírito

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60. Ibid., p. 383.

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revanchista face às dificuldades que, então, atravessavam asciências da natureza. Diante da insinuante suspeita queelas tinham perdido sua infalibilidade e tivessem caído dopróprio trono entre a plebe das outras formas de conheci-mento incertas e conjeturais, obrigadas, como a filosofia, arediscutir, aparentemente, sempre os mesmos problemas,ele não experimenta a mal oculta satisfação dos outros filó-sofos que, ignorando o momento de crescimento de tal cri-se, tinham considerado que o tempo havia chegado paracontratacar e proclamar a restauração da filosofia como“rainha das ciências” (em tal situação de desordem somen-te ela poderia legitimamente governar, já que, por tradi-ção, tem familiaridade com o instável domínio das cons-truções conceituais, conhece a dinâmica das transformaçõese está acostumada aos “tempos de pobreza”). Dilthey limi-ta-se a repartir o reino do conhecimento e, diferentementede Croce, concede um significado teórico, e não econômi-co-prático, às ciências da natureza. A sua concepção básicaé, ao contrário, a de que estas possuem um conteúdo maisconstante de verdade, devendo ajustar-se a uma realidademenos móvel e mutável no tempo do que a das ciências doespírito.

Outras humanidades: filosofia da antropologia

Se o historicismo fornece à cultura européia a pene-trante consciência de ter rompido o cordão umbilical com anatureza e de ter tornado o homem filho da própria histó-ria; se ele relativiza no tempo e para áreas comparativamen-te restritas aquela mudança de valores e de experiências dasquais se deve assenhorear, a nova etnologia tende a verificar

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a multiplicidade dos entrelaçamentos entre natureza e cul-tura (a sublinhar, indiretamente, a presença da naturezatambém na história dos “países civilizados”) e a relativizar,no espaço, os valores e as experiências. Como Freud tinhaprocedido à conquista e ao melhoramento daquele “país in-terno estrangeiro” que é o inconsciente, assim, entre oscila-ções e dispersões, a etnologia procede à descoberta e à ab-sorção daquela humanidade outra que havia precedente-mente merecido o qualificativo de “selvagem”, boa ou máque fosse. Num mundo sempre mais interdependente,numa história que se amplia até alcançar de maneira estável– e não episódica – escala planetária, o etnocentrismo oci-dental revela-se restrito, míope, e compreender a alteridadepassa a significar compreender a nós mesmos. Sob a crostada civilização, sob a espessura da história, está tambémsempre presente no homem europeu, aquele elemento “sel-vagem” que havia sido exorcizado nos tempos da preceden-te dominação colonial. Agora, começa a ser percebida tantoa carência do esquema unilinear que remonta a Adam Fer-guson (para o qual todos os povos deveriam percorrer as trêsetapas do estado selvagem, bárbaro e civilizado), quanto ainadequação e a ambigüidade do esquema evolucionista,sustentado, de maneira diferente, por Spencer, Tylor e Fra-zer (segundo o qual, existiria desenvolvimento, do maissimples ao mais complexo, de um “espírito humano” uni-forme em todos os lugares). Agora, a atenção é dirigida paraa relação diferencial entre a cultura e o racionalismo euro-peu e a variedade, a pluralidade, a irredutibilidade das“outras” civilizações a um sistema unitário. A análise com-parativa do estatuto do “pensamento selvagem”, mesmoconcluindo-se, em geral, com a reafirmação da superiorida-de do civilizado, abala e atenua insensivelmente a fé na eter-

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nidade metahistórica e na ubiqüidade da nossa lógica. Cro-ce considerava inútil estudar o pensamento dos selvagens,das crianças ou dos loucos, dado que podíamos nos dedicarao de Kant. O fato é que justamente a procura dessas alte-ridades removidas exprimia a necessidade de refundar pelabase uma nova cultura global e novas formas de pensamen-to que acolhessem e ativassem o que antes nos era estranhoe que agora, dilatando-se os horizontes geográficos ementais, deve tornar-se patrimônio comum. Um desenvol-vimento por linhas internas dos pontos mais altos já alcan-çados pelo pensamento europeu (digamos de um Kant,justamente) revelava-se insuficiente.

Nessa querelle sobre a relação entre pensamento ociden-tal e pensamento “outro” – não só selvagem, não apenas emsentido etnológico: pensamos, para dar um único exemplo,na lógica do raciocínio infantil em Piaget – um papel de-terminante desempenha a categoria de causa, que em talconfronto sofre ulteriores desdobramentos. Esse conceitofundamental do racionalismo europeu, orgulhosamente li-gado aos progressos das suas ciências, não é quase nuncaatribuído, em sentido pleno, aos selvagens ou às tambémevoluídas sociedades asiáticas. Para Frazer, a magia, “irmãbastarda da ciência”, fase primordial da mentalidade huma-na, à qual os primitivos estão ainda ligados, aplica errada-mente aqueles mesmos princípios associativos que, se bemaplicados, conduzem ao saber sobre as causas. Os selvagensse utilizam, com efeito, de dois princípios: “primeiro, queo semelhante produz o semelhante, ou que o efeito asseme-lha-se à causa; segundo, que as coisas, uma vez postas emcontato, continuam a agir umas sobre as outras, à distância,depois de cessado o contato físico. O primeiro princípiopode ser chamado lei da similaridade, o segundo lei do con-

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tato ou contágio”.61 Os primitivos, os sem-ciência, vivem,segundo Frazer, no erro e num universo fantasmagórico,longe do progresso e da clareza alcançada pelas mentes doshomens civilizados: “É, portanto, uma verdade evidente, equase uma tautologia, dizer que toda a magia é necessaria-mente falsa e estéril, porque se se tornasse verdadeira e fru-tífera, não seria mais magia e sim, ciência”.62

Lucien Lévy-Bruhl, porquanto tenha inicialmenteacentuado o caráter “pré-lógico” da mentalidade primitiva,não pretende absolutamente demonstrar sua inferioridade.Ele quer, pelo contrário, produzir um “efeito de estranha-mento”, bloquear a projeção espontânea de nossos hábitose de nossa mentalidade sobre as outras. Nos seus mecanis-mos básicos, a mentalidade dos primitivos não é diferenteda nossa: somente os pressupostos e as necessidades especí-ficas são diferentes, e é somente no interior desse bloco derelações entre ambiente, necessidades e representações co-letivas que se pode entendê-la. Assim, “a atividade mentaldos primitivos não será mais interpretada desde o iníciocomo uma forma rudimentar da nossa, como infantil equase patológica. Mas aparecerá como normal nas condi-ções em que ela se exercita, como complexa e a seu mododesenvolvida”.63 O primitivo segue as regras inconscientesda “participação mística”, vive uma experiência de insegu-rança e de alerta diante dos perigos e dos encantamentos domundo, enquanto que nós – pode-se, legitimamente, dizerem linguagem weberiana – vivemos num universo desen-

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61. J.G. Frazer, The Golden Bough, MacMillan, Londres-New York, 1922.62. Ibid., p. 83.63. L. Lévy-Bruhl, La mentalité primitive (1922), PUF,1960.

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cantado, confiantes na estabilidade do nosso ordenamentointelectual, mesmo quando ele entra momentaneamenteem crise: “Temos um sentido contínuo de segurança inte-lectual tão forte que não vemos como possa ser abalado;pois, mesmo supondo o aparecimento imprevisto de um fe-nômeno completamente misterioso e cujas causas nos esca-passem inteiramente no início, não estaríamos por isso me-nos persuadidos de que a nossa ignorância é apenas provi-sória, que essas causas existem e que cedo ou tarde poderãoser determinadas. Assim, a natureza no seio da qual vive-mos é, por assim dizer, de antemão, intelectualizada. Ela éordem e razão, como a mente que a pensa e nela se move.A nossa atividade cotidiana, até nos seus mais insignifican-tes particulares, implica numa tranqüila e perfeita confian-ça na invariabilidade das leis naturais. Muito diferente é aatitude mental do primitivo. A natureza, no seio da qualvive, apresenta-se-lhe com um outro aspecto. Todos os ob-jetos e todos os seres estão implicados numa rede de parti-cipação e de exclusão místicas: ou melhor, elas constituemseu contexto e sua ordem. São elas, pois, que se imporãoantes de mais nada, à sua atenção, e elas apenas a mante-rão. Se está interessado num fenômeno, e se não se limita apercebê-lo passivamente e sem reagir, por assim dizer, elelogo pensará, como que por uma espécie de reflexo mental,em uma força oculta e invisível da qual esse fenômeno éuma manifestação”.64

Nessa simbiose mística com as forças ocultas, as repre-sentações do primitivo podem não obedecer às nossas cate-gorias lógicas, aos princípios clássicos de identidade e denão-contradição. Elas podem, ao mesmo tempo, revestir

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64. Ibid., p. 20.

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qualidades opostas, condensar entidades diferentes. Somen-te quando o perigo representado por uma natureza muitopoderosa se atenua, somente então, ao que parece, a coesãodas representações sociais, que liga estreitamente o indiví-duo ao grupo se atenua, por sua vez, e a lógica e a contradi-ção abrem caminho nas representações que se transformamem conceitos. Assim, com efeito, Lévy-Bruhl se exprime emLes fonctions mentales dans les sociétés infèrieures (Paris, 1910):“A mentalidade coletiva sente e vive a verdade em virtudedo que chamei simbiose mística. Mas onde a intensidadedesse sentimento falta nas representações coletivas, logo, adificuldade lógica começará a se fazer sentir [...]. Quando oscaracteres objetivos essenciais da pedra se fixaram, por as-sim dizer, no conceito de pedra, o qual, por sua vez, é en-quadrado em outros conceitos de objetos naturais diferentesda pedra por propriedades não menos constantes das suas,torna-se inconcebível que as pedras falem, as rosas se mo-vam voluntariamente e gerem homens [...]. Quanto mais osconceitos se tornam definidos, fixos e ordenados em classes,mais as afirmações quase nada têm a ver com essas relaçõese aparecem como contraditórias”.

Depois de Lévy-Bruhl, a magia ou a mentalidade pri-mitiva deixam fundamentalmente de representar fenôme-nos misteriosos. Vivendo principalmente em contato comos “selvagens”, eliminando o quanto possível os interme-diários, usando o método da “observação participante”, épossível para alguns reconstituir a profunda coerência dosseus sistemas de representação e também notar como elesnão vivem continuamente numa atmosfera de estupor má-gico. Existe mesmo uma vastíssima esfera profana no pen-samento dos primitivos: como constatará Malinowski, so-mente quando não são capazes de dominar completamente

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um processo, recomparece a magia. Já para Marcel Mauss,que sofre a influência da idéia durkheimiana de contraintesociale, a magia dos primitivos não é o fruto de uma men-talidade (inferior ou diversa), mas da necessidade de esta-belecer uma comunicação entre o indivíduo e a coletivida-de. O feiticeiro é um emissário da sociedade, obrigado a sesentir e a permanecer “outro” mediante práticas com essefim, que catalisam em intensos esforços psíquicos as ansie-dades e as expectativas da aldeia: ele é uma espécie de fun-cionário, socialmente investido de uma autoridade à qualele próprio está empenhado em acreditar.65 Para que um in-divíduo acredite na magia, é necessário que toda a socieda-de igualmente acredite. De resto, cada aspecto da vida co-munitária é regulado por relações de obrigação e de exclu-são, por um código de trocas, que envolve pessoas e obje-tos e que determina as atitudes psicológicas de cada um.No Essai sur le don, Mauss mostra, por meio do modelo dopotlàc – a obrigação de retribuir aos dons numa espécie decompetição que pode conduzir à ruína econômica ou àmorte dos participantes – que a troca primitiva, contraria-mente ao que pensavam os pais da economia política clás-sica, não é constituída pela troca entre indivíduos de obje-tos aptos a satisfazer necessidades elementares, e sim pelatroca entre grupos organizados “de cortesias, de banquetes,de ritos, de prestações militares, de mulheres, de crianças,de danças, de festas, de feiras”. A alternativa subentendidaa essa obrigação de trocar, a esse mecanismo de socializa-ção, é a guerra, a troca destrutiva. A troca não é, portanto,

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65. Cf. M. Mauss et H. Hubert, “Esquisse d’une théoriegénérale de la magie” (1904), in: M. Mauss, Sociologie,Anthropologie, PUF, 1950.

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considerada (de Malinowiski a Mauss, a Godelier, do kulaao potlatsh, à “moeda de sal”) como uma simples relaçãoeconômica separável do contexto social ou representativo,mas como um fenômeno complexo que envolve necessida-des, instituições, prestígio e luta.

Tal formulação das relações sociais como comunica-ção no interior de um sistema determinado encontrará emLévi-Strauss um dos mais agudos investigadores. Aplican-do à etnologia os modelos da lingüística e da matemática,ele procurará estabelecer os princípios formais da troca (demulheres, como nas Estruturas elementares do parentesco) ouo lugar de certas crenças e mitos em culturas e âmbitosgeográficos longínquos (belíssima, por exemplo, a recons-trução em Raça e história da crença em “Papai Noel”). Re-futando a oposição axiológica entre povos dotados de his-tória e povos sem história, abandonando o privilégio daexplicação temporal das situações humanas, Lévi-Straussdestaca as estruturas semânticas, a solidariedade que ligasincronicamente os seus componentes, os tempos longos eespaços amplos, as ressonâncias entre códigos diversos e apermanência, também em nossa cultura, do “pensamentoselvagem”. Isso não significa, de fato, pensamento dos pri-mitivos, mas pensamento no estado selvagem, “distintodo pensamento educado ou cultivado justamente em vistade um rendimento”. E tal pensamento bruto coexiste como cultivado em muitas de nossas atitudes mentais ou denossos comportamentos: na arte, na produção dos mitos,nas associações de imagens, de sabores, na maneira de ca-minhar ou de comer. Para entender o pensamento selva-gem não é necessário recorrer a faculdades, agora, enterra-das sob o nosso ser civilizado ou a formas de extraordiná-ria e ferina sensibilidade: “O índio americano que decifra

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uma pista, mediante indícios imperceptíveis, o australia-no que identifica sem hesitar as impressões dos passos dei-xados por qualquer um dos componentes do seu grupo(Meggitt), não se comportam, diferentemente, do que nóspróprios fazemos quando guiamos um automóvel e porum golpe de vista, por uma ligeira orientação das rodas,por uma variação do barulho do motor, ou até mesmo pelaintenção suposta num olhar, decidimos se é o momento deultrapassar um carro ou colocar-se ao lado para deixá-lopassar. Porquanto possa parecer incongruente, essa com-paração é rica de ensinamentos; o que, de fato, aguça asnossas faculdades, estimula a nossa percepção e dá segu-rança aos nossos juízos, deve-se, em parte, ao fato de queos instrumentos de que dispomos e os riscos que corremosaumentaram incomparavelmente pela potência mecânicado motor e, em parte, ao fato de que a tensão derivante dosentimento dessa força incorporada, traduz-se numa sériede diálogos com outros motoristas cujas intenções, seme-lhantes às nossas, transformam-se em signos que esforça-mo-nos por decifrar, justamente, porque são signos quesolicitam a intelecção”.66

O pensamento selvagem está inserido nesse sistemade signos, no qual homem e mundo integram-se alternati-vamente e, no qual a experiência ordena-se segundo taxo-nomias não arbitrárias, porquanto aparentemente bizarras.É verdade que o pensamento selvagem não distingue o mo-mento da observação do da interpretação dos signos, masisso não quer dizer que ele não capte a realidade e não seja,no próprio âmbito, eficaz.

Também o chamado pensamento mágico não é o

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66. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Plon, 1962.

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oposto do pensamento científico, mas o pressentimento da“verdade do determinismo”, o herdeiro de uma longa tra-dição de observações, de experiências, de percepções de re-gularidade e de incompatibilidade. Certamente, que as ta-xonomias do pensamento mágico são, às vezes, surpreen-dentes e muito incompreensíveis para nós. Mas, a um exa-me mais atento, revelam a sua legalidade e razão de seranalógica: “A cereja selvagem, a canela, a baunilha e o vi-nho de Xeres formam um grupo que não é mais somentesensível mas inteligível, porque todos contêm aldeído; en-quanto que os cheiros gêmeos do chá do Canadá (winter-green), da lavanda e da banana, se explicam com a presençade esterol. A simples intuição nos induziria a incluir nummesmo grupo a cebola, o alho, a couve, o nabo, o rabanetee a mostarda, se bem que a botânica separa as liliáceas dascrucíferas; a química convalida o testemunho da sensibili-dade e prova que essas famílias entre elas estranhas se coli-gam num outro plano: contêm enxofre (K., W.). Um filó-sofo ou um poeta, inspirando-se em considerações quenada têm a ver com a química ou com qualquer outra for-ma de ciência, teria podido operar esses reagrupamentos: aliteratura etnográfica revela um bom número deles, cujovalor empírico e estético não é por outro lado menor”.67

O pensamento mágico não se limita apenas a organi-zar os usos do saber, mas também possui eficácia operativae terapêutica, como mostra, de maneira exemplar, o sorti-légio que o xamã da tribo dos Cuna, na zona do Panamá,usa no caso dos partos difíceis. Cada momento do trabalhode parto é seguido e traduzido em termos míticos (as fasesde contração e de dilatação correspondem ao passar de ani-

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67. Ibid., p. 25-6.

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mais cavadores como o tatu, ao aparecimento de um povode arqueiros e assim por diante). O xamã fornece à partu-riente uma linguagem, mediante a qual, a sua experiênciatorna-se exprimível verbalmente, perdendo seu caráteranárquico, inefável, e assim “nela provoca o desbloqueio doprocesso fisiológico, ou seja, da reorganização, num senti-do favorável, da seqüência em curso, por que passa a pa-ciente”. A cura do xamã torna-se, assim, alguma coisa in-termediária entre a nossa medicina orgânica e a terapia psi-canalítica, dado que o conhecimento dos processos tornapossível ordenar os conflitos e dominá-los melhor: “A curaconsistiria, portanto, no tornar pensável uma situação que,de saída, se apresenta em termos afetivos e no tornar acei-tável à mente dores que o corpo se recusa a tolerar. Que amitologia do xamã não corresponde a uma realidade obje-tiva é um fato sem importância: a paciente nela acredita,bem como a sociedade da qual ela é um membro”.68

De uma perspectiva diferente, resulta possível, tam-bém para o outro grande antropólogo contemporâneo, Clif-ford Geertz, compreender e traduzir no próprio vocabulário– entre limites variáveis – as experiências fundamentais dehumanidades outras. E não há nenhuma necessidade de re-correr a formas misteriosas de intuição das quais os antro-pólogos seriam dotados. É, com efeito, falso o “mito do es-tudioso de campo semelhante ao camaleão, perfeitamenteem sintonia com o ambiente exótico que o circunda, ummilagre vivo de empatia, tato, paciência e cosmopolitismo”.É suficiente, para compreender, fazer referência aos sistemassimbólicos (linguagem, imagens, comportamentos, insti-tuições), utilizados por culturas diversas da nossa, compa-

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68. Id., Anthropologie Structurale.

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rando-os aos nossos e inserindo-os em esquemas de raiomais amplo. Unindo a autocompreensão ao conhecimentodos outros, chega-se a descrever e a reconstruir o sentido decivilizações a nós estranhas, sem necessidade de anular-nosno Outro ou de manter uma distância incolmatável nos seusconfrontos. Seguindo declaradamente o modelo diltheyanodo “círculo hermenêutico”, do “moto perpétuo intelectual”,para Geertz, todo fenômeno parcial remete à compreensãoglobal, a qual, por sua vez, recebe sentido somente por umincessante retornar sobre as partes, mediante uma espéciede glosa recíproca. Não se pode saber o que é uma luva debaseball se não se sabe o que é o baseball, mas o uso da luvaou do bastão, uma vez melhor compreendidos, lançam umaluz sobre a inteira dinâmica do jogo. Analogamente, um ri-tual estranho recebe o seu pleno significado somente numcontexto simbólico geral sobre o qual lança luz. O “conhe-cimento local” remete ao global e vice-versa, assim como oconhecimento de nós mesmos ao dos outros: “A dupla per-cepção de que a nossa é uma voz entre outras e que, dadoque é a única que temos, devemos falar com ela, é muito di-fícil de sustentar”. A incomensurabilidade completa entreas culturas humanas não existe, assim como não existe a suaidentidade e completa sobreposição ou uma verdade separa-da de quem compreende e interpreta.

Tendo transcorrido muitos anos no centro de Java, emBali e numa cidadezinha do Marrocos, Geertz serve-se de suaexperiência para oferecer um exemplo iluminador. A nenhu-ma cultura, afirma, falta a compreensão dos próprios compo-nentes enquanto pessoas, ou seja, enquanto entidade diferen-te das pedras, animais ou deuses. Mesmo estando muito lon-ge da concepção ocidental de indivíduo como “centro dinâ-mico de consciência, emotividade, juízo”, as suas noções cor-

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respondentes resultam afinal interpretáveis, reconduzíveisdentro do horizonte da própria cultura. Vê-se assim que, emJava, a “pessoa” é entendida com base na oposição entre batir(vida emotiva “interior”, fluir de sentimentos no seu imedia-tismo) e lair (comportamentos e ações “exteriores”, observá-veis), e que o ideal socialmente perseguido por todos indi-vidualmente é ser alus, “puro” ou educado, em ambos os ní-veis, aplanando “as colinas e os vales” das paixões e tendendosempre a uma conduta controlada, não vulgar. Em Bali, aocontrário, os indivíduos devem estilizar sua transitória e ca-sual existência segundo esquemas teatrais, sendo, portanto,levados a representar-se mantendo a fé nos próprios dotesmorais: “Mas as máscaras que endossam, o palco que ocupam,as partes que recitam, e, o que é mais importante, o espetá-culo que encenam, permanecem, e constituem não a fachadamas a substância das coisas, não menos do que a própria cons-ciencia”. No Marrocos, enfim, os indivíduos são tomadoscontextualmente, com base na relação associativa ou “adscri-tiva”, nisba, que os define de acordo com a característica dequando em quando tida como determinante (tribo, lugar denascimento, profissão). Em tal modelo social, a identidadedas pessoas é dada “em termos de categorias cujo significadoé quase puramente posicional, pelo lugar ocupado no mosai-co geral”.69 Esse esquema livre, constituído por coordenadasque variam de acordo com os lugares – mercados, campos,banhos públicos – deixa amplo espaço ao “hiperindividualis-mo”, enquanto cada um pode mudar entre os diversos con-textos, ser “uma raposa entre as raposas, um crocodilo entreos crocodilos”, sem temor de perder a identidade própria.

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69. C. Geertz, “Local Knowledge, Further Essays”, in: In-terpretative Anthropologie, Basic Books, New York, 1977.

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Esta “antropologia interpretativa” é deliberadamentesempre construída “depois do fato”, não só no sentido deconsiderar os fenômenos ex post, pelos traços que deixaram(porque antes de serem compreendidos devem ser vividos),mas também no sentido de que eles são fabricados (não sãotomados a posteriori por uma não contaminada reserva deverdades objetivas ou encontrados “belos e reluzentes” napraia). Geertz ilustra o método da própria disciplina me-diante uma parábola: “Um sábio está acocorado diante deum elefante em carne e osso postado exatamente à sua fren-te. O sábio diz: “Este não é um elefante”. Somente maistarde, quando o elefante virou-se e começou a se afastarmovendo-se pesadamente, o sábio começa a se perguntar sedepois de tudo não podia estar na presença de um elefante.Ao final, com o elefante já completamente fora de sua vis-ta, o sábio observa as pegadas deixadas pela besta e declaracom certeza: “Um elefante estava aqui”.70

Um comportamento involuntariamente semelhantetinha tido Ernesto De Martino, ao registrar na Itália meri-dional os traços de fenômenos mágicos e religiosos em viasde desaparecimento. Sem necessidade de sair da “Europacivilizada”, encontrara os seus “selvagens” não longe decasa, assim como, recentemente, Marc Augé achou-os nasgrandes cidades do Ocidente, enquanto perambulamapressados ou perdidos, ignorando-se reciprocamente, nos“não lugares” das estações, dos aeroportos ou dos metrôs.71

Com uma série de ensaios publicados em vida – Il mondomagico, de 1948, Morte e pianto rituale nel mondo antico, de

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70. Id., After the Facts. Two Countries, Four Decades, OneAnthropologist, Harvard Univ. Press, Cambridge Mass.71. Cf. M. Augé, Non-lieux, Seuil, 1993.

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1958, Sud e magia, de 1959, La terra del rimorso, de 1961,e com a grande e inconclusa obra póstuma La fine del mon-do, de 1977, – De Martino demonstrou como as crenças eas práticas mágicas convivem ainda na Itália do sul juntoàs formas de religião oficial. Elas respondem à necessidadede proteger a frágil consciência humana, a “presença”, dasforças naturais e sociais que a ameaçam. Constituem arma-duras que a impedem de se dissolver na angústia diante daincerteza cotidiana e do contato com o desconhecido e onovo. A repetição ritual de gestos, atividades e fórmulas noâmbito de uma comunidade (o choro das carpideiras dian-te do cadáver de um defunto ou as danças das “tarântulas”,pessoas mordidas por um animal imaginário) submete oindivíduo a uma disciplina do corpo e da alma capaz dereintegrá-lo na história e de tranqüilizá-lo. A distância en-tre esse mundo mágico-comunitário e o racionalizado pelahistória não pode, todavia, ser superada se a existência des-sas massas camponesas, expostas ao capricho dos elementosnaturais e à precariedade das condições econômicas, não forsuperada, se a quase permanente “crise da presença” não forsuperada.

O pensamento revolucionário

Se o pensamento selvagem existe também entre os po-vos civilizados e as práticas terapêuticas ou taxonômicaseficazes também se encontram entre os primitivos, o mo-delo de um desenvolvimento histórico linear, que tem nasua base os povos que se encontram nas etapas iniciais dodesenvolvimento, ou seja, os Naturvölker, e no seu vérticeas nações civis hegemônicas, não mais se sustenta. O mun-

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do, revolvido por guerras planetárias e por revoluções quemudam incessantemente as cores dos mapas geográficos eas relações de poder, não é mais compreensível por meio deesquemas simples de monodominação e de sujeição subs-tancialmente renunciadora de forças estáveis. Continentesinteiros são agora arrastados num processo global de mu-dança e civilizações multimilenárias (já atingidas pela se-gunda onda de colonialismo, aquela guiada pelos Estados,em que “a bandeira precede o capital”) são submetidas àpressão de formas de aculturação rápida e violenta prove-nientes de fora. Também a natureza das guerras de massa –que não poupa a população civil e que provoca indireta-mente a entrada das mulheres na atividade produtiva emtempo integral, o seu abandono da casa e da vida privadacomo centro exclusivo, com o conseqüente ulterior enfra-quecimento da família patriarcal – cria modificações pro-fundas e conflitos privados na existência e na psicologia demilhões de pessoas, que experimentam sobre si mesmas apotência e a incidência dos acontecimentos coletivos.

Depois, com a Revolução de Outubro, o processo his-tórico complica-se ainda mais. Lenin demonstrou na práti-ca que ele não é necessariamente linear, que certas etapasdo desenvolvimento, como o domínio capitalista ocorridonuma determinada nação, podem ser saltadas, que gruposrelativamente restritos de revolucionários de profissão, queagem como “vanguarda externa” do proletariado, podemgalvanizar um movimento que arrasta e torna protagonis-tas milhões de homens. Depois de 1917, o marxismo, nas-cido como teoria cientifica complexa, além de arma políti-ca do proletariado, acultura-se rapidamente na União So-viética, onde procura-se produzir também a posteriori aque-la maturação geral da consciência de classe que o desenro-

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lar da história russa não consentira antes e onde ele tendea se tornar, no período stalinista, uma espécie de religiãode Estado, uma ideologia que visa desenraizar as velhasconcepções religiosas e “mágicas” da Rússia camponesa. Atarefa de Lenin como teórico e político dessa fase de cons-trução do poder soviético é imensa: as polêmicas de Mate-rialismo e empirocriticismo, de 1909, contra Bogdanov e osoutros “machianos” russos e em favor de um conhecimen-to objetivo, de uma aproximação continua à verdade, dareivindicação de uma realidade material externa que nósrefletimos, estão agora longe e desatualizadas; o confrontocom Hegel e a dialética, levado a cabo entre 1914 e 1915durante o exílio em Berna (e entregue àqueles Cadernos fi-losóficos que serão publicados postumamente em 1933), agede forma mediada, incorporando-se à análise dos aconteci-mentos apenas ocorridos. O problema que agora mais ur-gentemente se coloca é, ao contrário, o de coordenar aspontas avançadas da consciência de classe e do desenvolvi-mento industrial com o “atraso” da mentalidade campone-sa e da economia rural (e tudo isso num período em que aguerra civil e o cerco internacional põem em cheque a sim-ples sobrevivência física e política do Estado soviético).Avançar, arrastando o peso do passado pré-burguês, conju-gando tempos históricos diferentes, absorvendo dos adver-sários de classe os conhecimentos e as técnicas e a herançacultural mais desenvolvida: essa é a mensagem de Leninque será colhida, em formas e medidas diversas, por Bloch,por Gramsci e por Lukács.

Nessa luta, todavia, os organismos de democracia debase perdem progressivamente o seu poder real e traços au-toritários e burocráticos avançam inevitavelmente. A dure-za do choque provoca contragolpes e exige também, para

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dizê-lo com Gramsci, “cortes monstruosos”. A democraciae o socialismo estão apenas no início e o ardor revolucioná-rio tende em parte a esfriar-se pelas exigências de organi-zação cotidiana e cometimento da nova sociedade. As mas-sas populares, perdendo em parte os instrumentos de auto-governo, os soviet, começam a ser marcadas por formas depassividade. Para Rosa Luxemburgo, a ditadura do partidorevolucionário e as limitações da liberdade são um malpara a revolução, paralisam a laboriosa atividade do labora-tório político coletivo que começara a funcionar: “A liber-dade apenas para os sequazes do governo, apenas para osmembros de um partido – por mais numerosos que sejam– não é liberdade. A liberdade é sempre unicamente liber-dade para quem a pensa de modo diferente. Não por fana-tismo de ‘justiça’, mas porque tudo o que é educativo, sa-lutar e purificador deriva da liberdade política, dependedessa convicção, e perde toda eficácia, quando a liberdadetorna-se privilégio”. O socialismo não se constrói por de-creto, mas deve nascer da própria escola da experiência detodos: “O negativo, a demolição, pode-se decretá-los; aconstrução, o positivo, não. Terra virgem. Mil problemas.Somente a experiência é capaz de corrigir e de abrir novasestradas. Somente uma vida fermentante, sem impedimen-tos, imagina mil novas formas, improvisa, emana uma for-ça criadora, corrige espontaneamente todos os erros. Porisso, justamente, a vida pública dos estados com liberdadelimitada é tão deficiente, tão pobre, tão esquemática, tãoestéril, porque excluindo a democracia renuncia-se à fonteviva de toda riqueza espiritual e progresso (Prova: os anos1905 e os meses fevereiro-outubro de 1917). Assim é nãoapenas politicamente, mas também econômica e social-mente. Toda a massa do povo deve participar da vida pú-

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blica. De outra forma, o socialismo acontece por decreto,autorizado pelo bureau de uma dúzia de intelectuais. É in-condicionalmente necessário um controle público. De ou-tra forma, a troca de experiências fica estagnada no círculofechado dos funcionários [...]. A práxis socialista exige umacompleta transformação espiritual das massas degradadaspor séculos de dominação de classe burguesa. Instintos so-ciais no lugar dos egoístas, iniciativa das massas no lugardo desleixo, idealismo que eleva acima de todo sofrimento,etc. Ninguém o sabe melhor, descreve-o com mais eficácia,repete-o mais obstinadamente do que Lênin. Mas ele se en-gana completamente sobre os meios. Decretos, poder dita-torial dos inspetores de fábrica, penas draconianas, reino doterror, são todos paliativos. O único caminho para o renas-cimento é a escola da própria vida pública, da mais ilimi-tada e ampla democracia, opinião pública. É justamente oque o reino do terror desmoraliza.”72

Do pensamento de Lênin e de Rosa Luxemburgo par-te o “marxismo utópico” de Ernst Bloch, que constata noperíodo stalinista um prevalecimento da “corrente fria”, doeconomicismo e da Realpolitik, sobre a “corrente quente”do impulso para uma sociedade sem classes. Mesmo tendo,a seu tempo, justificado os “expurgos” de Stalin, Bloch su-blinha o aspecto criativo do marxismo, que é o herdeiro detodas as tentativas de emancipação da história humana, detodos os esforços para atribuir “dignidade” ao homem. Pes-soalmente – como gostava de freqüentemente lembrar – asua experiência fora profundamente marcada, ainda antesque por Marx, pelo exemplo da insurreição dos campone-

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72. R. Luxemburgo, “La rivoluzione russa”, in: Scritti scelti,Einaudi, Turin, 1975, p. 599, 600-1.

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ses contra os príncipes alemães, em 1525: “Há uma antigacanção que me vem sempre à mente, que inconscientemen-te incorporei ao meu modo de filosofar. A antiga canção,que os camponeses alemães derrotados cantavam depois dabatalha de Frankenhausen, quando a antiga miséria recaiusobre eles multiplicada. Aqueles que ainda sobreviviam,cujos olhos e línguas ainda não tinham sido perfurados earrancadas, cantavam esta canção: “Vencidos voltamos paracasa. Os nossos netos levarão a luta a um fim melhor”.73 Omarxismo herético de Bloch, entendido como “ciência daesperança”, tende a resgatar, mesmo depois da Revoluçãode Outubro, o quanto no homem foi sempre reprimido,mutilado, humilhado. Recupera e reativa os resíduos in-coercíveis das aspirações a uma vida melhor que não te-nham sido absorvidos e tornados funcionais aos poderes vi-gentes, aquele vasto mundo subterrâneo de desejos, de pro-jetos e de lutas que tem sido até agora derrotado ou não en-controu um reconhecimento suficiente. O que deve orien-tar a pesquisa do novo é o inteiro passado irredento queimpele em direção ao futuro, as esperanças dos vencidos,tudo aquilo a que a humanidade renunciou em nome deuma realidade caracterizada pela exploração, pela divisãoem classes e pela dominação da natureza. As expectativasmessiânicas dos profetas do Antigo Testamento, as visõesde Joaquim de Fiore, as revoltas de todos os oprimidos sãoestações de um longo e acidentado caminho que levará auma sociedade sem classes, são momentos do “sonho deuma coisa”.

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73. E. Bloch, “Hegel come ‘novum’”, in v.a. Enciclopedia‘72, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, Roma, 1971,p. 338.

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No passado, era sobretudo a religião que forneceria aohomem o significado global da existência, a imagem deuma vida mais digna e mais plena. Esse espaço ocupadopela religião deve ser conquistado e melhorado, eliminan-do os elementos fantásticos e retrógrados. A permanênciada religião mesmo depois que o seu caráter de ilusão pro-jetiva foi desvelado, é indicativo do fato de que as necessi-dades que empurravam para ela não puderam encontraruma satisfação mais alta. Aniquilar a religião significa rea-lizá-la no mundo. Nesse sentido, somente um ateu podeser um bom cristão. Nessas reflexões, o pensamento deBloch se entrelaça com o dos maiores teólogos do séculoXX. Com o de Karl Barth da Epístola aos Romanos ele com-partilha, com efeito, a luta contra a imagem banalizante deum Cristo “humano, muito humano” como o entendia a“teologia liberal”; com Rudolf Bultmann, a idéia de umareligião demitizada, a vontade de renovação e a percepçãoque o “evento escatológico”, a revelação das “coisas últi-mas”, não se situa num porvir longínquo, mas está já pre-sente, aqui e agora: com Jürgen Moltmann, enfim, a ima-gem de Deus como “promessa” e “poderio do futuro”. Mas,se para Bloch, o cristianismo se realiza somente dentro dohorizonte do mundo (deixando todavia um ponto de inter-rogação sobre a transcendência), o mesmo pode-se afirmardos ideais burgueses de liberté, égalité, fraternité. A Revolu-ção Francesa proclamou-os, mas não os realizou. Eles pode-rão realizar-se somente com a condição de considerá-los,respectivamente: a liberdade como fim da constrição sociale natural não estritamente necessária e reconhecível; aigualdade não como um achatamento igualitário dos indi-víduos, mas como riqueza variadamente manifestada pelasfaculdades humanas; a fraternidade como solidariedade não

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ofuscada pelos antagonismos de uma sociedade em que oshomens estão separados pela necessidade e por interessesinconciliáveis. A revolução proletária prolonga, sob esseperfil, a linha de tendência democrática e emancipatóriapresente nas revoluções burguesas: “Não há democraciasem socialismo, não há socialismo sem democracia”. Bloch,sensível à lição de Rosa Luxemburgo, advoga por um mar-xismo como experimentação contínua, experimentum mundi,comprometimento de todos na construção do comunismo.A utopia representa o antídoto contra o enrijecimento bu-rocrático dos Estados socialistas, assim como a retomada doconceito jusnaturalista de “dignidade humana” deveria re-presentar o antídoto contra os seus desvios policialescos econtra o poder excessivo do partido dos mil olhos. Mas areligião, os ideais de liberdade, de igualdade, de fraterni-dade, de dignidade humana são somente províncias do“continente esperança”, a extensão de tudo o que está emtransformação, que tende a encarnar a utopia.

Não se deve, porém, dar ao termo “esperança” um sig-nificado psicológico ou simplesmente teológico. O “prin-cípio esperança” contém uma lógica do desejo que não en-trecorta apenas o plano racional, mas também o dos sonhoscom olhos abertos. Evita-se o perigo da reificação tambémmediante a arremetida nessa direção psíquica. Dado que aesperança não está necessariamente ligada a cenários gran-diosos, Bloch não desvaloriza os desejos da sociedade demassa (ter dentes brancos, corpo esbelto e atlético, roupasbonitas). Não mostra nos seus confrontos nem a suspeita deinautenticidade denunciada por Heidegger, nem o “esno-bismo” de Adorno. O desejo representa a casca, a “cortiçaprovisória” que encerra as potencialidades reais ou realizá-veis dos indivíduos: “Os desejos não fazem nada, mas pin-

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tam e conservam com particular fidelidade o que deveriaser feito. A garota que gostaria de se sentir brilhante e cor-tejada, o homem que sonha empreendimentos futuros, su-portam a pobreza ou o cotidiano como uma cortiça provi-sória”. Nada pior do que reprimir os desejos, porque eles,uma vez recalcados, apodrecem no nosso inconsciente e nanossa consciência. Nada pior do que desprezá-los porquetambém através dos desejos, na aparência os mais fúteis, seesconde a possibilidade do encontro de si mesmo: “Cosmé-ticos, maquiagens, plumagens alheias ajudam por assimdizer o sonho de sair da caverna”.74 Nesse plano, esses de-sejos são não apenas legítimos, mas capazes de extrair denós as melhores possibilidades. A quem mostra ambiçõestão reduzidas não se podem imputar culpas subjetivas. Asua atitude remete ao fato de que nós todos (a política, asociedade, a história) não fomos capazes de oferecer a elesalgo melhor. Nessa reavaliação da rêverie, Bloch aproxima-se – por inciso – de Gaston Bachelard, que vê na perdamomentânea da presença plena de si, da lucidez e continui-dade da consciência, uma alegre ampliação do raio da ex-periência significativa. Nela desvestimo-nos do princípioda individuação, ao qual por comodidade a nossa vida deadultos, determinando-se, teve que obedecer. Retornamosaos muitos possíveis eus que teríamos podido ser e que ali-viavam nossa infância: “Quando, sonhando longamente nasolidão, afastamo-nos do presente, para reviver os temposda nossa vida, vêm-nos ao encontro numerosos rostos in-fantis. Nós fomos muitos na nossa vida já vivida, nos nos-sos primeiros anos de vida e somente pela narrativa dos ou-

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74. Id., Principio speranza (1959), Garzanti, Milão, 1994, 3vol., I, p. 58, 397.

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tros começamos a conhecer a nossa unidade. Sobre o fio danossa história narrada pelos outros, acabamos, ano a ano,por assemelhar-nos. Recolhemos todos os nossos seres emtorno da unidade do nosso nome”.75 A rêverie representa umestado intermediário, de oscilação e indecisão, entre o per-ceber e o imaginar, o sentir e o lembrar, entre a lógica dodesperto e a do dormente. É um “infra-mundo” entreconsciência e inconsciente, a cintilação indeterminada, ovislumbre, que leva a uma realidade despotencializada:“um menos de ser esforça-se para o ser”. Para propiciar a rê-verie, a chama de uma vela aparece como um “operador deimagens” e de tramas psíquicas de enorme eficácia. Ela “se-para do mundo e engrandece o mundo do fantasiador”,transformando-o – segundo a terminologia de Paracelso –numa exaltatio utriusque mundi. Os pensamentos perdem,nessa esfera mágica de luz circundada por zonas de sombrassempre mais espessas, os seus revestimentos sucessivos, as“túnicas” de cujas camadas estavam envoltos.76 Não apesar,mas graças a tal perda, eles multiplicam paradoxalmenteos significados que encerravam e comprimiam, criando asua volta campos gravitacionais capazes de capturar à lon-ga distância quanto de remoto ao lado deles passa. Reno-va-se assim o frescor da imaginação, que é toujours jeune.

Para Bloch, todavia, o desejo utópico prolonga-se mui-to além dos sonhos com os olhos abertos, estendendo-se dosprojetos de uma sociedade perfeita à impensável vitória so-bre a morte. A esperança é, por um lado, como o ar: inodo-ra, insípida, invisível e impalpável. Sem ela, contudo, nós

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75. G. Bachelard, La Poétique de la rêverie (1960), PUF,1993.76. Id., La Flamme d’une chandelle, PUF, 1961.

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não podemos respirar. Igual à “cândida pomba” kantianaque crê voar melhor quando não encontra a resistência doar, consente à nossa razão avançar justamente porque sus-tentada pela sua corrente ascensional. Por outro lado, ela étambém proteiforme e pode assumir papéis perversos, comoacontece no Nacional-Socialismo em que a necessidade depátria, de identidade e de segurança se entrelaça com asmais arcaicas e bárbaras concepções. O tempo histórico nãoé, com efeito, concebido por Bloch, igual ao tempo crono-lógico, como linha única, divisível em partes iguais, mascomo contraponto de tempos diferentes, multiversum de des-níveis (entre indivíduos, classes, povos), que torna a histó-ria complexa, elástica, deformável, igual ao espaço rieman-niano, sob a ação dos acontecimentos. Nesse universo den-so de torsões e de aberturas ao novo, a própria matéria nãoé quantidade pura ou extensão inerte, mas “estando em pos-sibilidade”, movimento para a frente, com o qual o homemé chamado a colaborar, de modo que o comunismo – en-quanto, marxianamente, “naturalização do homem” e “hu-manização da natureza”- aparece a Bloch como a síntesemais alta entre natureza e sociedade, a “utopia concreta”que orienta a história. O Nacional-Socialismo, pelo contrá-rio, sobre o qual Bloch se detém nos primeiros anos do exí-lio em alguns penetrantes ensaios de Herança do nosso tempo,é fruto também dos desequilibrios temporais, da não-con-temporaneidade no tempo histórico (Ungleichzeitigkeit) dasclasses sociais na Alemanha. Neste país, com efeito, juntoàs duas classes fundamentais que vivem no plano mais altodo presente histórico, existem amplos estratos camponesese pequeno-burgueses atrasados, excluídos de um presentedo qual não conseguem compreender racionalmente a dinâ-mica e a direção. Na ausência de uma compreensão racional,

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longe do motor do desenvolvimento econômico, frustadosnas suas expectativas e desorientados até o desespero pelostranstornos do primeiro pós-guerra e pela inflação selva-gem, eles vivem sua relação com a política sob forma demito, sonhando desforras, restaurações autoritárias, drásti-cas limitações do poder da classe operária, superioridade danação alemã e da raça ariana. Assim, o Nacional-Socialismo,enquanto “jacobinismo do mito”, consegue transformá-losem massa de manobra e inseri-los organicamente numa am-pla frente de interesses, que abarca a grande indústria, oexército, a burocracia, sob o controle do partido e do seuchefe. Traços ainda feudais, que espelham o tempo históri-co ou as imagens de restauração de camadas atrasadas (omito), fundem-se, desse modo, com a eficiência tecnocráti-ca e a racionalidade formal dos aparatos industriais, milita-res e burocráticos e, juntos, constituem o vulto multiformedo fenômeno nacional-socialista.

Mito e razão instrumental no Nacional-Socialismo

Mas a ideologia nacional-socialista acumula muitosoutros desequilíbrios, com seu naturalismo e darwinismosocial e sua luta contra os princípios de liberdade, igual-dade e fraternidade. A ciência e a natureza são chamadasa testemunhar em favor da hierarquia social, dos saluta-res desequilíbrios, e contra a suposta estagnação das fa-culdades humanas e das nações, quando domina o iguali-tarismo democrático e socialista. Não é, talvez, verdadei-ro que (na hidráulica, na termodinâmica, na eletricidade)não existiria nenhum movimento, nenhuma distribuição

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de energia, sem um desnível entre as massas de água, semuma diferença de calor e de potencial? Que os rios, os lí-quidos nos vasos comunicantes, as locomotivas e os flui-dos elétricos não se moveriam sem essas benéficas desi-gualdades? O mesmo – acrescenta-se – acontece com ascomunidades humanas: prevalecendo os fracos pregadoresde igualdade e de compaixão pelos fracos, a humanidadeestá destinada a se extinguir. O espectro do aumento daentropia no universo físico, que levará a uma degradaçãoda energia e a um progressivo resfriamento do cosmos,continua a agitar-se (e não apenas nas suas primitivasroupagens tardo-positivistas) diante do mundo social,concebido como um sistema fechado. Armazenar energia,utilizar instrumentalmente o alto potencial das massas,intensificando, por sua vez, a carga do pólo ulteriormen-te distanciado das elites: essa é uma das mais freqüentesrespostas e modalidade de autodefesa de uma estruturasocial que se sente ameaçada pela estagnação e pelo avan-ço das “multidões”.

Já, Nietzsche (em outros aspectos tão radicalmentecrítico do existente e certamente não responsável por todasas sugestões e aplicações unilaterais do seu pensamento)considera necessário o alongamento da escala hierárquica,obtenível até mesmo por meio de uma preliminar difusãoda democracia entre o rebanho humano, e a manutenção emtoda sua dureza da moderna escravidão do trabalho assala-riado. Acresce que o segredo da exploração não deve ser di-vulgado entre a classe operária. Aqueles que, como os socia-listas, ousaram quebrar essa barreira de silêncio são corrup-tores, semeadores de infelicidade entre aqueles mesmos quequeriam defender: “Desgraçados sedutores, que destruíramcom o fruto da árvore do conhecimento o estado de inocên-

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cia do escravo!”.77 O saber e a consciência devem ser acres-cidos somente do lado de quem comanda, ao passo que de-vem diminuir relativamente do lado de quem obedece. Sen-do doravante impossível manter grandes massas na igno-rância, não resta mais que uma variedade de combinaçõesentre “disciplina metálica” e controle da educação, da cul-tura, da informação e de toda sociedade. Esta última tarefaé favorecida pela dificuldade, e não apenas para os maiscapazes, de se ter um quadro global do que acontece e de seconseguir acesso às linguagens científicas. A conexão dosacontecimentos alcançou uma escala planetária; a complexi-dade e a interdependência dos dados os mais diversos, umadimensão quase incomensurável com a capacidade de umindivíduo dominá-los e elaborá-los; a consciência comumcusta a se orientar com o desenvolvimento rápido, aciden-tado de cada uma das ciências, que, com as suas formulaçõesintrincadas, descontínuas, cheias de tecnicismos, mantêm-na a uma respeitosa distância. Os arcana imperi e o saberoperativo tendem, assim, a se tornar patrimônio de oligar-quias restritas, as quais, coadjuvadas por um contingente detécnicos, entre os quais propaga-se uma concepção neutrado próprio agir, recompõem no plano político e estatal ospedaços das ciências, das técnicas e das práticas sociais. Parapoder manter contemporaneamente o desenvolvimento téc-nico produtivo e o controle das multidões, a ciência devecoexistir com o mito, a técnica com o vitalismo, o mundosem magia weberiano, o Entzauberung, com o misterioso emágico carisma dos chefes.

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77. F. Nietzsche, “Lo stato greco”, in: Opere, G. Colli e M.Montinari (orgs.), Adelphi, Milão, 1964 s., III, 2 (1973),p. 224.

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No Nacional-Socialismo, justamente, a autêntica sa-bedoria encontra-se somente no chefe, que distribui asconscientes mentiras dos mitos sociais e teoriza a doutrinada dupla verdade, da função instrumental de determinadasidéias. Assim, o próprio Hitler declara a Rauschning nãoacreditar no “mito do século XX”, na raça: “Também seibem como os vossos intelectuais, os vossos poços de sabe-doria, que não existem raças no significado científico dapalavra. Mas vós, que sois um agricultor e um criador, vóscertamente sois obrigado a vos basear na noção de raça, sema qual toda criação seria impossível. Ora bem, eu que souum homem político, também tenho necessidade de umanoção que me consinta romper uma ordem enraizada nomundo de contrapor à história a destruição da história. En-tendeis o que vos estou querendo dizer? É necessário queeu libere o mundo de seu passado histórico [...]. Com a no-ção de raça, o Nacional-Socialismo levará a sua revoluçãoaté a fixação de uma nova ordem no mundo”.78

As massas, de resto, são julgadas constitutivamentenão pensantes: “É uma grande sorte para os homens de go-verno que as massas não pensem! Somente se pensa quan-do se trata de dar uma ordem ou de assegurar sua execução.Se não fosse assim, a sociedade humana não poderia subsis-tir”. Não podendo dar ordens, mas somente recebê-las, asmultidões não correm o risco de pensar. Por isso, a críticaincisiva e o pensamento não regulamentado são desestabi-lizadores, ao passo que permanecem lícitos e são exaltadosos discursos puramente técnicos, setoriais. É até mesmo

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78. H. Rauschning, Hitler mi ha detto, Mondadori, Milão,1945, p. 255-6. Este testemunho merece porém algumacautela.

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pregada uma “entusiástica intolerância” contra quem de-monstra muita vontade de saber, de colher o fruto da árvo-re do conhecimento, quem é representado como um esquá-lido doente de hipertrofia intelectualista. Por isso, são so-licitados os comportamentos gregários, místicos ou técni-cos, as virtudes dos submetidos diante do patrão, virtudescondensadas na palavra de ordem das SS (“A minha honrachama-se fidelidade”) e, no âmbito do fascismo italiano,“Acreditar, obedecer e combater”.

Pela intensificação da exploração da força de trabalhointerna e depois estrangeira, pela violência, pela utilizaçãodos novos meios de comunicação de massa, toma corpo umgigantesco projeto de engenharia humana, de modificaçãoantropológica e genética coletiva. Quebrados os laços desolidariedade de classe, de amizade, de família, isolado ecolocado o indivíduo na malha estreita dos olhares cruza-dos e aproximados (do chefe local ao dos próprios familia-res), oferece-se em troca, desde a infância, o tranqüilizanterefúgio da camaradagem, o sentimento “heróico”, do per-tencimento a um povo nobre e a um guia iluminado, reful-gente de todas as qualidades das quais todos foram priva-dos e que agora recebem como luz reflexa nos desfiles, nasparadas, no rádio. Não possuindo o éter linhas privilegia-das, o rádio abole em linha de princípio a distinção entrecentro e periferia, entre cidade e campo; a sua voz penetraentre os grupos mais fechados e nos lugares mais perdidos,mobilizando as camadas anteriormente mais refratárias àpolítica ou mais inertes. O rádio, o cinema, a oratória doschefes aculturam, em etapas forçadas, segmentos dasociedade guiados anteriormente apenas pelo costume oupor princípios incoerentes, agindo sobre elementos regres-sivos da mensagem transmitida: a emotividade, a densida-

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de das imagens e das figuras retóricas, o patos racionalista,o sangue e a terra, um sub-rogado de vida de aroma forte euma rebelião mimada e vigiada contra as privações, a obe-diência e a meticulosidade da exploração. Aliás (e o de-monstraria a natureza, “rainha cruel de toda sabedoria”) aexistência é em si mesma duríssima: “Um ser bebe o san-gue de outro. Um retira alimento da morte de outro. Inú-til falar de humanidade [..]. A luta permanece”.79

A consistência da “segunda natureza”, da civilização,sobre a qual se havia fundado a “razão” do Iluminismo e ado Idealismo clássico alemão, se adelgaçou até quase desa-parecer. Agora é a primeira natureza, nas suas manifes-tações mais cruéis, a “sabedoria” dos animais, a oferecer omodelo da segunda natureza, justificando-lhe os crimes.Quase como uma consolação oferece-se o viático da incons-ciência e da despersonalização. “Eu não tenho consciência– Göring soía dizer – minha consciência é o Führer”. A vi-são da realidade tornada insuportável para muitos empur-ra a mente a anestesiar-se, a demandar a compreensão dascoisas a quem tem capacidades sobre-humanas. A cada umé determinada a sua quota de consciência e de cultura comuma espécie de “lei de bronze” da consciência, o quantobasta para poder desenvolver eficazmente o papel que lhe édesignado. Quanto mais se é subordinado, menos se devesaber, como resulta evidente do programa de Himmlerpara os povos dominados da Europa Oriental: “Para a po-pulação não-alemã da Europa Oriental não deve haver ne-nhuma escola que vá além da elementar com quatro anos.O objetivo de tal escola elementar deve ser somente o de

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79. A. Hitler, La mia vita, Bompiani, Milão, 1949, p. 143e Adolf Hitler in Franken, (Nürnberg) 1939, p. 144.

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ensinar a contar no máximo até 500, a escrever o próprionome e sobrenome, e enfim, de ensinar que é um manda-mento divino obedecer aos alemães e ser honesto, diligen-te e sincero. Não considero indispensável ensinar a ler”.80

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80. H. Himmler, “Denkschrift Himmlers über die Behan-dlung der FrendVölker in Osten” (maio 1940), in Viertel-jahreshefte für Zeiteschichte, 1957, V. p. 197.

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“De uma margem à outra”

O advento do Nacional-Socialismo na Alemanha e ascrises políticas e econômicas de algumas nações européiasprovocam um dos mais significativos fenômenos de osmo-se cultural entre áreas de tradição diversa, mas sempre nointerior dos países “desenvolvidos”. As perseguições raciaise políticas levam ao exílio muitos milhares de intelectuais(mais da metade alemães e dois terços de origem hebraica),dos quais alguns de altíssimo nível. É uma nova diáspora,um processo de polinização cultural que produz efeitos tal-vez maiores do que aqueles imputáveis à fuga para a Itáliados sábios tardo-bizantinos, depois da queda de Constanti-nopla. Em função de suas inclinações políticas ou das opor-tunidades de pesquisa e de trabalho, eles se distribuem portodos os quadrantes da Terra: do Japão (Löwith) aos paísesescandinavos (Brecht e Korsch nos primeiros anos da emi-gração), da União Soviética (Lukács), à França (Benjamin).Mas é nos Estados Unidos que eles chegam em maior nú-mero e em grupos mais compactos. E aqui o elenco serialongo: basta recordar os nomes de Einstein, Thomas Mann,Adorno, Horkheimer, Marcuse, Erikson, Fermi, Salvemi-ni, Lang, Schönberg e Neumann. Esses intelectuais conse-

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capítulo 5

O encontro das filosofias e a nova epistemologia

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guem dar uma contribuição fundamental e marcante so-bretudo em alguns setores como a física, a sociologia, a psi-canálise e o cinema.

Às vezes isolados e desconfiados uns dos outros – leia-seo Diario de trabalho de Brecht – dificilmente se integram oudesejam integrar-se na sociedade americana. Os herdeiros darefinada cultura mittleeuropéia acham os indígenas “bárbarosde boa índole”, segundo a definição de Thomas Mann, mas,em particular, ficam chocados com a estandartização da vida,com o empobrecimento das relações humanas sob o manto da“dessublimação repressiva”, com a manipulação e reificaçãoda consciência, com a uniformidade das experiências procu-radas, com o gosto pelo colossal e com a fé ingênua nos “fa-tos” e na atividade prática. A sociedade de massa, o “mundoadministrado” por meio dos instrumentos mais ligeiros doconformismo e da indústria cultural, a “multidão solitária”das grandes cidades, perturbavam os que haviam escapado domais pesado e sangrento totalitarismo nacional-socialista,dando-lhes a impressão de que em toda parte se estava na pre-sença de uma “realidade bloqueada”, de uma enorme prisãona qual os homens tinham, em sua maioria, perdido a espe-rança numa vida melhor e se haviam dobrado e adaptado aum domínio de face anônima, a uma nova barbárie que semanifesta em roupagens “racionais” e pretende obediência aoque impinge como inexoráveis leis objetivas; onde até a clas-se operária – a marxiana promessa de libertação de toda ex-ploração – ou havia, na América, chegado a um acordo como poder vigente e estava por esse englobada, ou havia sidoprensada e despedaçada na Europa pelo duplo torniquete doNacional-Socialismo e do stalinismo.

O processo de reificação e de embotamento da cons-ciência, de exaltação da “dura realidade” e de irrisão pe-

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rante as tentativas de emancipação ou de pensamento nãoconformista (rotulados como utópicos, bizarros, inúteis)opera, portanto, em escala mundial, mas é nos EstadosUnidos que diversos intelectuais europeus tornam-seconscientes dele. E é nesse descarte entre ideologia demo-crática e situação efetiva, nessa “camaradagem à base deempurrões”, que se revela ao olhar de Adorno e de Hor-kheimer todo o horror da “vida deteriorada”, o enjaula-mento dos indivíduos numa mentalidade rígida e passiva,incapaz de experiência e de pensamento espontâneos, víti-mas da manipulação social, uma mentalidade que se ex-pressa emblematicamente nesse pequeno episódio em queAdorno narra o seu primeiro impacto com o mundo ame-ricano: “Entre os vários colaboradores que trabalhavamprovisoriamente comigo no ‘Princeton Project’, haviauma jovem senhora. Depois de alguns dias tomou a liber-dade de me pedir com uma gentileza perfeita: ‘Dr. Ador-no, importa-se se lhe faço uma pergunta pessoal? Respon-di que ‘depende da pergunta, mas pode fazê-la’, e ela con-tinuou: ‘Diga-me, por favor: o senhor é introvertido ouextrovertido?’”81 Nesse universo conceitual estandartiza-do, a subjetividade e a objetividade estão completamentede ponta-cabeça: “Objetivo é o aspecto não controvertidodo fenômeno, o cliché aceito sem discussão, a fachada com-posta por dados classificados: ou seja, o subjetivo; e subje-tivo é o que rompe aquela fachada, o que penetra na expe-riência específica do objeto, liberta-se dos preconceitos es-tabelecidos e coloca a relação com o objeto no lugar da re-

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81. Th. W. Adorno, “Esperienze scientifiche in America”,in: Parole chiave. Modelli critici (1969), SugarCo. Milão,1974, p. 175.

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solução da maioria dos que, não só não pensam, como nãovêem o objetivo”.82

Esse é o comportamento difuso, massificado, queAdorno encontra entre as “pessoas” e que descreve na suafenomenologia da vida deteriorada. Mas quais são as posi-ções filosóficas que dominam a cultura quando ele chegaaos Estados Unidos, e até que ponto elas agiram ou agemainda sobre a consciência comum?

A filosofia americana

A filosofia americana – declarada inexistente por Toc-queville em 1840 – vincula-se entre o século XIX e o XX atradições européias: ao empirismo inglês, à filosofia escocesado senso comum, ao idealismo clássico alemão e ao positivis-mo evolucionista de Spencer. Mas com Peirce, James e De-wey cria-se uma tradição autóctone, fortemente caracteriza-da pela sua constante relação com o senso comum, a vidaprática, a ação, as técnicas, e marcada pela reflexão sobre opoder das crenças, da fé, e pela vontade de elaborar hábitosde racionalidade e de conduta para as novas elites as quais,num estado em rápido e intenso processo de industrializa-ção, abandonavam o credo religioso, mas procuravam subs-tituí-lo, pelo menos em parte, por outras certezas. O que elesoferecem não são, todavia, as certezas da metafísica, do idea-lismo ou do materialismo europeus, mas construções teóri-cas que aceitam e exorcizam ao mesmo tempo o risco, a pre-cariedade, o erro, que procuram englobar progressivamenteos métodos das práticas científicas no senso comum.

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82. Id., Minima moralia (1951), Einaudi, Turin, p. 64.

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Assim, Pierce, acentuando o momento probabilistados procedimentos científicos e com o auxílio dos sistemassimbólicos, de uma “álgebra lógica”, procura compreendera função do pensamento ao produzir “hábitos de ação”.Tornar claras as nossas idéias significa formular hipótesessobre os efeitos práticos que elas poderão ter e passar da ir-riquietude e da insatisfação que acompanha a confusãomental e a conjugada indecisão da vontade, à fixação de umcredo que nos satisfaça e que seja controlável no interior docircuito cognoscitivo. Dos ensaios recolhidos em Caso,amor e lógica, aos monumentais Collected Papers, a produçãode Pierce está eminentemente centrada nesse nó entre pen-samento, ação e crença. A vantagem da ciência e dos mo-delos de comportamento que nela se inspiram é a de saberreconhecer a própria falibilidade e de proceder por meio decontínuas autocorreções, sem perder a confiança no avançoe sem abalos traumáticos, inserindo-se na corrente mesmadaquela tendência à verdade que é parte da natureza do ho-mem. A verdade é, portanto, uma conquista provisória emcada um dos seus resultados, mas permanente no seu fazer-se, não sendo outra coisa que o processo prático de verifi-cação que põe fim a um estado de dúvida, ou quando me-nos, reconstituindo-o num plano diverso e mais alto.

Com William James é posto em discussão o nexocrença-verdade, mas com ele quase desapareceram os pro-cedimentos cognoscitivos de controle e verificação dascrenças. A verdade tem, com efeito, um caráter projetivo,é a eventual resposta à fé numa hipótese, não se mede nopresente, mas no seu impulso para o futuro (é nesse terre-no que Bergson se reconhece na filosofia de James). Dir-se-ia, parafraseando Stendhal, que a fé é uma promessa deverdade. O pragmatismo não é uma simples reedição do

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utilitarismo: verdadeiro é igual a útil, mas nem sempreútil é igual a verdadeiro. A verdade caracteriza-se por pos-suir um sentiment of rationality, por sentirmo-nos à vontade,em casa, pela familiarização com o mundo. E isso deve bas-tar-nos. Não podemos transformar a complexidade da vidae da experiência em idéias abstratas, em pensamento puro,que nos é prejudicial: “Somos como peixes que nadam nomar do sentido, determinados para o alto pelo elementosuperior, mas incapazes de respirá-lo puro ou de nele pene-trar”.83 A excessiva quantidade de oxigênio do pensamentoabstrato, a vontade de eliminar sem resíduos a opacidadedo viver, nos seria fatal. A fé, de resto, não se opõe à verda-de. Sem ela não nos resolveríamos à ação, permaneceríamosparalisados. Em cada momento importante da vida deve-mos, com efeito, “dar um salto no escuro” e não existe ne-nhuma “companhia de seguro” que nos possa garantir con-tra os riscos que corremos. Somente a fé, movida por “hi-póteses vivas”, permite-nos aceitar o risco “de olhos aber-tos”, pedindo a colaboração do intelecto: fides quaerens in-tellectum, justamente.

Por outro lado, o “pluriverso” no qual vivemos nãoforma nenhuma unidade compacta à qual possamos nos re-ferir como modelo. Não existe, com efeito, para James,uma “realidade”, mas múltiplos “subuniversos de realida-de”. O nosso mundo de mundos é, com efeito, construídoà maneira de um cacho de uva. É fruto da contínua seleçãoentre numerosas maneiras de estruturá-lo, segundo exigên-cias e estruturas de ordem diferentes, mas finitas: a das coi-

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83. W. James, Pragmatism, A New Name for Some Old Waysof Thinking, Longmans, Green and Co., Nova York-Lon-dres-Toronto, 1949, p. 128.

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sas sensíveis, da ciência, das relações ideais de tipo mate-mático ou metafísico, das ilusões, dos sistemas religiosos emíticos, dos sonhos, da loucura ou das obras de arte. Cadasubuniverso de realidade é dotado de critérios de relevân-cia e até mesmo de parâmetros temporais diferentes e inco-mensuráveis: por isso, o mundo do sonho não é uma puracópia do mundo da vigília ou os critérios de explicação domito não coincidem com os da razão filosófica. Entramos esaímos continuamente desses setores qualitativamente di-ferentes e devemos aprender a viver em todos.

Cada um de nós é, por sua vez, um mundo de mun-dos selecionados. Daí, porque a experiência se manifestacomo fluxo de vida que oferece contemporânea e serial-mente material diferente da reflexão, transformando, as-sim, a mente em teatro de possibilidades simultâneas e su-cessivas. Também por esses motivos à filosofia confia-se amissão de restaurar e de dar crédito ao papel que o “inde-terminado” desenvolve na nossa vida psíquica, um “bomterço” da qual é percorrida por “premonições, rápidas vi-sões prospectivas de esquemas de pensamento, não aindaarticuladas”. Como não há em absoluto um mundo somen-te, não existe assim nenhum eu idêntico a si mesmo emsentido próprio. Ele varia incessantemente, mesmo man-tendo, em geral, uma vaga percepção da própria continui-dade: “Uma ‘idéia’ ou Vorstellung permanente que compa-rece à consciência a intervalos periódicos, é uma entidademitológica do gênero ‘Valete de espadas’”. Os vários eus,que estão em nós, tal como os diferentes subuniversos derealidade que freqüentamos, pertencem-nos enquanto apa-recem distinguidos por uma simples ‘marca’, reconhecen-do-os como nossos somente se conservam o ‘calor’ que pre-cedentemente neles deixamos. Tal teoria é incisivamente

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expressa por James mediante a incorporação de duas ima-gens. A primeira, muito americana, e até mesmo western,representa uma cena ao ar livre; a segunda, ao contrário, re-mete ao recolhimento de uma prática religiosa: “Do reba-nho deixado livre durante o inverno em alguma extensapradaria, quando chega a primavera, o proprietário escolhee separa os animais nos quais encontra impressa a própriamarca. A marca do rebanho é, para as diversas partes dopensamento, aquele certo calor animal ao qual acenamos.Calor que penetra em todas elas, como o fio que alinhavaum rosário, e dele faz um todo, que tratamos como umaunidade, porquanto essas partes possam diferir bastanteentre si. Junta-se a esse caráter o outro, que os diversosEus, nos aparecem como se tivessem sido contínuos entreeles por longos trechos de tempo, e os mais recentes delescontínuos com o nosso Eu do momento presente”.84 Num“universo pluralista”, aberto ao acaso, ao indeterminado,mas também à liberdade humana, devemos nos habituar aorisco, nos imunizar nos seus confrontos, tornando-o paranós uma segunda natureza.

É esse o fio melódico, a mensagem, que percorre aobra de James. Os seus traços se encontram – parcialmen-te e em forma cientificamente mais elaborada, orgânica ereflexiva – em John Dewey, cuja filosofia descarta muitosdos elementos vitalistas e fideístas do pensamento jamesia-no. Dewey, que na juventude estudara a fundo Hegel, con-serva do filósofo alemão o gosto pelas construções teóricasfortemente estruturadas em sentido antimecanicista, emque cada elemento está em relação de “interação” com os

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84. Id., The Principles of Psychologie, Nova York, Holt, 2vol., 1980.

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outros e em que cada equilíbrio alcançado se demonstraprecário e, provocando no sujeito situações “perturbadoras,penosas, ambíguas, confusas, cheias de tendências contras-tantes, obscuras etc.”, leva a experiência e a pesquisa paramais altas e satisfatórias soluções. Em Lógica, teoria da in-vestigação, escrito em 1938, quando Dewey tinha já seten-ta e nove anos, é traçado o percurso do conhecimento: daexperiência bruta, imediata, à posição de um problema, àformulação de idéias ou previsões “do que acontecerá,quando certas operações são executadas tendo em vista suaprecisa relação com as condições observadas”85, ao raciocí-nio, como desenvolvimento das hipóteses ou das possibili-dades, da experimentação e enfim ao julgamento com oqual resolve-se o embaraço inicial. A experiência, queconstitui a interação entre um ser vivo e o seu ambiente na-tural e social, tem um raio mais amplo do que unicamen-te o conhecimento. A razão tem um caráter instrumental,resolve as dificuldades, retifica a experiência e os desequi-líbrios, transforma o mundo e promove a convivência hu-mana, situa-se na linha de continuidade entre natureza ehomem, biológico e mental, objetivo e subjetivo. Ela nãoé nunca determinada abstratamente, mas movida por inte-resses, por necessidades, por solicitações de esclarecimentoque emanam da existência individual e social. Por isso,também na educação, deve-se reconstruir a reconciliaçãoentre conhecimento e interesse, entre lógica e natureza, en-tre trabalho intelectual e trabalho manual, desenvolvendoos germes de sociabilidade presentes nas pessoas e mos-trando a elas o vínculo inseparável que existe entre pesqui-sa da verdade e democracia, entre incremento criativo da

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85. J. Dewey, Logic: the theory of inquiry, Nova York, Holt,1938.

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individualidade e progresso social. Também a linguagem éverdadeira unicamente no interior do seu contexto biológi-co e social, afirma Dewey em polêmica com Carnap e osneopositivistas, que não só consideram os enunciados lin-güísticos como dotados de verdade intrínseca, externamen-te à sua inscrição social, mas declaram também verdadei-ros exclusivamente aqueles que são empiricamente contro-láveis ou tautológicos, definindo como incertos ou priva-dos de sentido aqueles que tratam dos valores, de argu-mentos políticos e morais, ou seja, aqueles que para Deweymais urge conhecer e controlar.

A epistemologia do neopositivismo e a sua crítica

Na filosofia americana, o estatuto do dado observávelé, pois, menos rígido e ingênuo do que aquilo que não apa-rece a Adorno no plano do senso comum. Mas se olharmosmelhor, o que ele combate no plano teórico não é uma fi-losofia americana (que antes parece ignorar), mas uma filo-sofia da velha Europa transplantada nos Estados Unidos,onde encontrou naqueles anos um clima favorável que a fezvicejar: o neopositivismo, também por Dewey hostilizado.Ele nasce nos países de língua alemã, no final dos anos vin-te e se ramifica nos dois círculos de Viena (Schlick, Carnap,Gödel, Waismann, Frank) e de Berlim (Reichenbach,Hempel, Von Mises), unificados culturalmente pela revis-ta “Erkenntnis”, dirigida de 1930 a 1938 por Carnap eReichenbach. O Wiener Kreis, que tem para nós aqui umarelevância maior, evoca no manifesto da sua fundação o en-sinamento de Peano, Frege, Russel, Whitehead e Mach,mas é sabido que os seus estudiosos, em particular Schlicke Carnap, foram influenciados pelas doutrinas do Tractatus

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logico-philosophicus e pelas poucas conversações com Witt-genstein. Característica de tal empiricismo lógico é a dis-tinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos, entre pro-posições que concernem idéias (e que são fundamental-mente reconduzíveis a tautologias) e proposições que con-cernem fatos e que são verificáveis mediante o recurso aosdados observáveis elementares. Externamente a esses doisgêneros de enunciados, que têm valor cientifico, existe ainsensatez da metafísica, imputável a um uso impróprio dalinguagem, ao uso de palavras privadas de sentido ou àconjunção sintaticamente errônea de palavras dotadas sin-gularmente de sentido. Em A superação da metafísica pormeio da análise lógica da linguagem, Carnap mostrará emHeidegger um exemplo, a não ser imitado, de uso impró-prio da linguagem.

O modelo neopositivista de teoria científica foi re-presentado como uma pirâmide de enunciados, tendo novértice os mais gerais e não demonstrados, nas seções in-termediárias os dedutíveis logicamente dos precedentes ena base aqueles com generalidade mínima, que se referema observações particulares. O aspecto axiomático e o recur-so aos dados observáveis fazem parte da própria imagemda ciência. Mas a sistematização teórica do modelo variamuito entre os diferentes autores e, freqüentemente, nointerior de um mesmo autor. Tomemos o caso de Carnap.Em 1928, na Construção lógica do mundo, não há referência,com em Mach, à sensação enquanto dado irredutível (apsicologia da forma tem, com efeito, demonstrado que assensações já são o resultado de processos abstratos), masaos “vividos elementares”, aos Elementarerlebnisse, aos mo-mentos psicológicos a seguir conectados por “relações” deordem lógica. O programa de Carnap contempla, então,

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por um lado, a “reconstrução racional” dos conceitos cien-tíficos com base na referência ao imediatamente dado, poroutro, a evidência das reações estruturais capazes de arti-cular os dados. Mas já na Sintaxe lógica da linguagem de1934, os “vividos elementares”, de natureza psicológica einverificável, são substituídos pelos “protocolos observá-veis”, de natureza lingüística e controlável. Carnap proce-de sempre mais em direção ao exame de linguagens alta-mente formalizadas, convencionais, expressas pelo “prin-cípio de tolerância”, pelo qual, “cada um pode construircomo quiser a sua lógica, ou seja, a sua forma de lingua-gem”. Sob a influência de Hilbert e do lógico polonêsTarski, delineia uma “metalinguagem” para analisar a lin-guagem-objeto das proposições científicas, ou seja, paratraçar os lineamentos de um sistema dedutivo axiomático.A verdade analítica, definida agora em termos sintáticos,adquirirá mais tarde também um aspecto designativo, se-mântico (na Introduction to Semantics de 1942), e a lingua-gem, de acordo com Charles Morris – junto ao qual e aNeurath, Carnap havia produzido em 1938 a Enciclopédiada ciência unificada – será estudada também sob o aspectopragmático, com relação aos comportamentos por ela in-duzidos. Contemporaneamente, o rígido verificacionismoserá abandonado e Carnap terá de se contentar com a sim-ples “confirmação” de um enunciado com base no seu graude probabilidade.

A um outro emigrado, dessa vez à Inglaterra, caberá acritica à fundamentação neopositivista: Karl RaimundPopper. Ele se afasta cada vez mais das colocações do “Cír-culo de Viena”, ou seja, de um modelo de ciência fundadosobre protocolos observáveis e sobre um sistema de enun-ciados certos e definitivos. Os problemas científicos não

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são para ele reduzíveis ao correto uso lingüístico ou à cons-trução de “intrincados modelos em miniatura, [de] vastossistemas de mecanismos minúsculos”86, como justamenteocorre com Carnap. A ciência tende a resolver, por ensaiose erros, os “enigmas” do mundo e é algo imperfeita, aindaque continuamente aperfeiçoável. É um agregado de con-jecturas, de preconceitos, de antecipações prematuras e de“hipóteses arriscadas”, que por sorte são constantementesubmetidas ao controle da comunidade científica. O co-nhecimento não deve mais perseguir o ídolo deletério doconhecimento absolutamente certo, objetivo, definitivo:“Uma vez que a veneração que tributamos a esse ídolo éum impedimento não apenas à audácia das nossas questões,mas também ao rigor dos nossos controles. A concepção er-rada da ciência trai-se justamente pelo seu desmesuradodesejo de ser aquela justa. Pois, o que torna alguém um ho-mem de ciência não é a posse do conhecimento, da verdadeirrefutável, mas a pesquisa crítica, persistente e inquieta daverdade”.87

É errado considerar as ciências como caracterizadaspor uma base observável e as metafísicas como equilibran-do-se sobre as asas da especulação. Em primeiro lugar, por-que as grandes teorias científicas, por exemplo, a da relati-vidade, se apóiam muito pouco em dados empíricos e, emsegundo lugar, porque a metafísica, longe de se reduzir apuro não-senso, como queriam os neopositivistas, orienta opróprio empreendimento científico (foi, com efeito, a “me-tafísica influente”, do culto da luz, de origem neoplatôni-ca, a empurrar Copérnico para a formulação das suas hipó-

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86. K. R. Popper, The Logic of scientific discovery, Londres,Hutchinson, 1959.87. Ibid., p. 311.

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teses astronômicas). A linha de demarcação entre ciência emetafísica ou entre ciência e pseudo-ciência passa não pelodivisor de águas sentido/não-sentido, mas pelo “falsificá-vel”/”não-falsificável”. Ou seja, uma teoria científica nãopode ser corroborada mediante verificações, acumulandoprovas tais que a confirmem, recorrendo à indução. Ne-nhuma regra pode garantir que uma generalização que seinfere de observações verdadeiras, porquanto longamenterepetidas, seja verdadeira. Há, porém, uma assimetria en-tre verificabilidade e falsificabilidade, na medida em queas asserções universais da ciência não podem nunca ser de-rivadas de asserções singulares, mas podem todavia ser porelas impugnadas. As asserções de base poderão, portanto,falsificar uma teoria, não fundá-la. É científica uma teoriacuja forma lógica é falsificável mediante asserções empíri-cas, mediante um experimentum crucis, ao passo que é meta-física e pseudo-científica uma teoria que não pode ser con-futada por princípio.

Possuem esse aspecto, segundo Popper, a psicanálise eo marxismo, tal como ele os conhecera desde sua juventu-de, enquanto pretendem fornecer explicações onicompreen-sivas e claras (ao passo que a explicação científica é a “redu-ção ao conhecido do desconhecido”, em níveis maiores degeneralidade) e encontrar contínuas verificações às suas pro-posições: “Um marxista não podia abrir um jornal sem quenele encontrasse a cada página um testemunho capaz deconfirmar a sua interpretação da história [...]. Os analistasfreudianos sublinhavam que as suas teorias eram constante-mente verificadas pelas suas ‘observações clínicas’”.88 Mas,

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88. Id., Conjectures and Refutations, Londres, Routledge andKegan Paul, 1963.

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exatamente porque essas doutrinas não são o resultado deprevisões arriscadas, não impedem o acontecimento de cer-tos eventos, servem-se de assunções auxiliares ad hoc e sub-traem-se a toda confutação, elas não são, por isso, científi-cas. Ao passo que, o estatuto de cientificidade possui-o, porexemplo, a teoria einsteiniana da gravitação, porque passouincólume pelo crucial experimento de Eddington, sob oqual podia sucumbir: “A teoria einsteiniana da gravitaçãohavia chegado à conclusão de que a luz devia ser atraída porcorpos pesados como o sol, do mesmo modo como eramatraídos os corpos materiais. Conseqüentemente, podia-secalcular que a luz proveniente de uma longínqua estrelafixa, cuja posição aparente estivesse próxima do sol, teria al-cançado a terra por uma direção tal, capaz de fazer parecera estrela ligeiramente afastada do sol; ou, em outras pala-vras, podia-se calcular que as estrelas vizinhas ao sol parece-riam como se se tivessem afastado um pouco do sol e tam-bém entre si. Trata-se de um fato que não pode ser observa-do normalmente, uma vez que aquelas estrelas tornam-seinvisíveis durante o dia pelo excessivo esplendor do sol: nocurso de um eclipse é todavia possível fotografá-las. Se sefotografa a mesma constelação à noite, é possível medir asdistâncias das duas fotografias, e controlar assim o efeitoprevisto”.89

O marxismo não pode ser para Popper uma teoria cien-tífica também porque assenta sobre dois pressupostos falsos:o historicismo e a dialética. Por “historicismo” ele entendeuma “antiga superstição”, segundo a qual, existiriam forçasirresistíveis que nos empurram para a frente e que legiti-mam profecias disfarçadas de previsões científicas e opções

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89. Ibid., p. 65-6.

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disfarçadas de futuro indicativo. Isso significa divinizar aHistória, transformá-la em tribunal do mundo, justificartodo totalitarismo. Hegel e Marx, esses “falsos profetas”, ge-raram, respectivamente, Hitler e Stalin, e foram os mais fer-renhos fautores de um coletivismo tribal, fechado; foram osinimigos da “sociedade aberta”, onde existe crítica, debate,possibilidade de “falsificar” as posições alheias, de dissentirlivremente (os limites ideológicos e também filológicos detal interpretação do pensamento de Hegel e de Marx nãotêm necessidade de serem sublinhados). A sociedade abertaou, mais tarde, a democracia, não é certamente perfeita: ésimplesmente o regime no qual o poder político – submeti-do ao mais estrito controle, para evitar a tirania – provocadanos menores . Estreitamente conectada ao historicismo é adialética, na medida em que as contradições nela são exalta-das até tornarem-se o motor da história. Mas a ciência nãopode resignar-se às contradições, deve eliminá-las, e é essa aúnica força que empurra para a frente o desenvolvimentodialético: “O que promove o desenvolvimento não é umaforça misteriosa, interna a essas duas idéias [tese e antítese],nem uma fantasmagórica tensão entre elas: é unicamente anossa resoluta decisão de não admitir as contradições que nosinduzem a procurar atentamente um novo ponto de vista,que nos consinta evitá-las”.90

Nas mais recentes discussões sobre a epistemologia, asteses falsificacionistas foram precisadas e retificadas pelopróprio Popper e por seus seguidores Agassi e Watkins.Mas foram colocadas em dúvida, em diversos aspectos, porKuhn, Lakatos e Feyerabend. Kuhn considera que Poppertenha mudado o curso inteiro da ciência com os seus raros

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90. Id., “Che cos’è la dialettica?”, ibid., p. 539.

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momentos revolucionários. Nos períodos de “ciência nor-mal”, com efeito, a atitude crítica e falsificacionista não éabsolutamente difundida. Somente nas fases poderosamen-te inovativas, quando muda repentinamente o paradigmade uma teoria científica e os velhos fundamentos são des-qualificados, somente então, a pesquisa procede segundomodelos assimiláveis aos de Popper. Lakatos (um estudio-so húngaro emigrado à Inglaterra depois de 1956, forma-do nas filosofias de Hegel, Marx, Lenin e Lukács, e tornan-do-se a seguir um popperiano heterodoxo) coloca, de suaparte, em evidência – indo além de uma intuição de Pop-per – como o caráter de cientificidade ou não-cientificida-de não pode ser imputado a uma teoria singular, mas a umasucessão de teorias, a um “programa de pesquisa”, que éademais determinado no seu próprio núcleo por assunçõespré-analíticas de tipo metafísico, e conseqüentemente nãofalsificáveis. Para Feyerabend, enfim, defensor de umaepistemologia já “anárquica” e contrário a toda regulamen-tação rígida, a todo método na pesquisa cientifica, a práti-ca da ciência é incalculável, rica em inventivas, em estrata-gemas, não ligada a nenhum “código de honra”, astuta, talcomo é a história para Hegel e para Lenin. A ciência nãofunciona segundo critérios policialescos de “lei e ordem”,mas graças à sistemática violação de todas as regras estabe-lecidas e de todas as regras e de todas as teorias, até mesmodaquelas que parecem confirmadas por resultados experi-mentais bem estabelecidos. Vale o critério do anything goes,do “tudo pode ir bem”, até porque ele permite a prolifera-ção das teorias, com a conseqüente liberação de energias in-telectuais e imaginativas de outra maneira destinadas apermanecer comprimidas ou inertes. É interessante obser-var como nos estudos dos anos setenta, diante dos proble-

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mas postos pela mudança conceitual, pelo suceder-se dasteorias científicas, que avançam por inclusão e conjunta-mente por negação das precedentes, a filosofia hegeliana ea dialética, tão desprezadas pelos neopositivistas e por Pop-per, voltaram, com Lakatos, Feyerabend e outros, ao augecomo modelo a ser estudado para compreender o nexo en-tre continuidade e descontinuidade na forma do Aufhebungou “superação”. Por um lado, refuta-se a concepção tradi-cional segundo a qual a ciência teria um caráter cumula-tivo, continuista, passando por sucessivas conquistas, poroutro, tende-se a restringir a forte descontinuidade talcomo aparece em Bachelard ou em Kuhn de A estruturadas revoluções científicas. Junto às sugestões dialéticas pro-cura-se contemporaneamente (por exemplo, através dosmodelos formais de Sneed e Stegmüller ou através da con-cepção da racionalidade “local” e “reticular” de Larry Lau-dan) salvar o conceito de progresso no curso do pensamen-to científico e oferecer uma imagem de como a ciênciapode crescer sobre si mesma negando, de quando emquando, os próprios limites.

Do lado americano – depois de um domínio incon-trastável das posições de Carnap, Neurath, Tarski e, maistarde, dos teóricos da filosofia da linguagem comum – adespedida da filosofia analítica é lenta. A insídia mais ra-dical à sua hegemonia veio nesses últimos quinze/vinteanos da “filosofia continental” de Foucault, Derrida, Gada-mer ou Habermas, difundidos, inicialmente, por meio dosdepartamentos de francês ou de literatura comparada daCosta Leste e da Califórnia. Os mais precoces signos de re-belião interna contra o neopositivismo podem todavia fa-zer-se remontar ao início dos anos cinqüenta, quando Wil-lard van Orman Quine escreve, em 1951, o artigo Dois dog-

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mas do empirismo. Nele afirma a insustentabilidade da dis-tinção entre enunciados analíticos (tautológicos, do tipo“solteiro significa não casado”, que se baseiam no signifi-cado dos termos e têm valor independentemente dos dadosda experiência) e enunciados sintéticos (empíricos, não de-duzíveis pelo puro raciocínio, mas pela observação contin-gente), entre verdade de razão e verdade de fato. Os pri-meiros fecham-se sobre si mesmos num círculo vicioso deinextricáveis remetimentos recíprocos entre sinônimos, nocaso “solteiro” e “não-casado”; os segundos não podem serinterpretados através de um remeter direto aos puros dadosperceptivos. Nenhum enunciado, com efeito, é suscetívelde ser confirmado singularmente, fora de seu contexto glo-bal, “holístico”. Cai, assim, seja a possibilidade de reduzirtodos os enunciados significantes à experiência imediata,seja a noção de “significado” (enquanto conceito rígido quese refere a alguma coisa exterior, a um mudo fato nu e nãointerpretado). Tal posição abre caminho à idéia de queexistem mais “paradigmas”, dado que toda observação estácarregada de teoria, ou mais “versões do mundo”, dado quediferentes esquemas conceituais geram diferentes modosde construir a realidade. Pergunta-se, por exemplo, Nor-wood Russel Hanson: “Kepler e Tycho Brahe viam a mesmacoisa quando observavam o surgimento do Sol?”, ou seja, quan-do um via-o parado com a Terra girando ao seu redor e ooutro via-o girar em torno do nosso planeta?”91 E, depois,no sentido de Nelson Goodman, se não existe mais ne-nhum vínculo entre os nossos enunciados e a realidade per-ceptível não seria então possível à ciência fabricar uma plu-

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91. N.R. Hanson, Patterns of Discovery, Cambridge Univ.Press, 1958.

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ralidade de mundos, dotados de consistência própria, à ma-neira como fabrica-os a arte?92

O pluralismo de paradigmas ou de versões do mundoé confutado, seja pelo lógico Saul Kripke (que contra todaatitude “kantiana” de um mundo desconhecido a ser inter-pretado, apresenta realisticamente a idéia de batizar as coi-sas por meio de nomes ou de designações rígidas), seja, so-bretudo, por Donald Davidson, o qual mostra como nãotem sentido contrapor à realidade múltiplos esquemasconceituais, incomensuráveis e rivais entre si, que organi-zariam a experiência. A própria noção de “esquema concei-tual” é, com efeito, impraticável, tanto ao singularquanto ao plural. Não existe nenhuma realidade bruta,preexistente à rede dos esquemas com os quais procuraría-mos capturá-la, como não existe também uma alternativaterminante entre a intraduzibilidade completa dos nossosesquemas (ou linguagens que os exprimem) e uma perfei-ta convergência entre eles, que consentiria o acesso a umcompartilhado mundo único. Abolido o dualismo entre es-quema e conteúdo, considerado como “terceiro dogma doempirismo” (assim como o seu colega de Harvard, HillaryPutnam, abole o dualismo entre fatos e valores), Davidsonadmite unicamente traduções de enunciados a serem com-parados entre si, para encontrar, assim, o sentido do que sefala com relação a eventos extra-lingüísticos, comuns ao“consórcio” humano. Se afirmamos a diversidade dos es-quemas conceituais, devemos, contudo, demonstrar a suaintraduzibilidade. No entanto, mesmo querendo, não so-mos absolutamente capazes de fazê-lo, nem para as lingua-

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92. Cf. N. Goodman, Ways of Worldmaking (1978), India-nápolis, Bob Merril, 1982.

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gens parcialmente intraduzíveis, nem para aquelas com-pletamente intraduzíveis. Apesar do “princípio da conside-ração”, que nos convida a escolher a interpretação maiscoerente e sensata das asserções alheias manifestadas numalíngua desconhecida, delas podemos sempre oferecer inter-pretações ulteriores, sem conseguir, todavia, fixar seu pre-ciso significado. Além do mais, no caso de absoluta incom-preensibilidade, torna-se legítimo até mesmo duvidar seelas constituem uma linguagem, se correspondem a umcomportamento lingüístico, no sentido de que há “portrás” delas estados mentais de sujeitos intencionados a co-municar-se. Com efeito, “tanto o acordo quanto o desacor-do resultam inteligíveis somente em face do pano de fun-do de um acordo difuso e consolidado”.93

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93. D. Davidson, Inquiries into truth and interpretation, Ox-ford Univ. Press, 1984 e Essays on action and events, Oxford,Clarendon Press, 1980.

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Consciência e totalidade

A filosofia hegeliana, com seus conceitos conexos dedialética e de totalidade, já havia dado, contudo, muito an-tes, os seus frutos com um dos mestres de Lakatos, GyörgyLukács, também ele obrigado em 1919, depois do fracassoda República dos conselhos de Bela Kun, a tomar o cami-nho do exílio: Viena, Berlim e Moscou, onde tem a possi-bilidade, por cerca de doze anos, de observar, de perto, o re-gime stalinista. A figura de Hegel (que, fechado um longoperíodo de latência, tornara a se projetar sobre diversas fi-losofias do século XX, de Dilthey ao “existencialismo”, deAdorno a Lakatos, em todo lugar onde se combatesse a“reificação”social, burocrática, cientifica) encontra em Lu-kács não apenas um dos seus mais atentos intérpretes mastambém um teórico que, por meio de sua aproximação aMarx, o faz reentrar na essência do debate político dos úl-timos decênios. Com o desaparecimento, no primeiro pós-guerra, das esperanças revolucionárias na Europa Ociden-tal, o marxismo dividiu-se em dois troncos, assinalando adiferença de experiência entre quem estava na oposição equem estava no poder – ainda que ela não se apresentassemais como distinção entre Igreja militante e Igreja triun-

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capítulo 6

O pensamento dialético

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fante – e que remontava também a matrizes históricas enacionais diversas. Enquanto na União Soviética a durezada luta política em curso e os esforços para construir umabase econômica sólida para o socialismo fazem com que sedê ênfase aos momentos da necessidade, ao realismo, àobjetividade, no Ocidente, onde o fascismo começa em al-guns países a governar e onde o período de transição prefi-gura-se longo, a reflexão marxista tende a assumir tonsmais utópicos ou “extremistas”, a recuperar uma dimensãoanti-economicista, prospectiva, filosófica, baseada na to-mada de consciência das dificuldades e dos pontos mortosa serem superados. A esse objetivo é dedicado História econsciência de classe, de 1923.

Lukács, que na juventude absorvera as idéias do his-toricismo de Dilthey, da filosofia dos valores, de Simmel ede Weber, pressupõe ainda nos ensaios, que constituemesse volume, a distinção diltheyana entre ciências da natu-reza e ciências do espírito, bem como as análises que da rei-ficação e do capitalismo haviam dado a Filosofia do dinheirode Simmel e os escritos de Weber (inclusive os editadospostumamente, dos quais Lukács conhecia em parte o con-teúdo, tendo freqüentado em Heidelberg a casa de MaxWeber). A dialética não pode para ele ser aplicada à natu-reza, que é regida por leis de uniformidade metahistórica,de eternização e isolamento dos dados, de calculabilidade equantificabilidade das ciências naturais que o capitalismopretende aplicar também às sociedades humanas (justa-mente no momento em que as ciências mudavam de aspec-to, Lukács continua a ter delas uma visão mais arcaica doque a de Dilthey). Capitalismo e ciências da natureza são,pois, solidários: sendo levada a sério a afirmação de Weberde que “a ciência é o único partido da burguesia”. Mas

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também capitalismo e reificação são solidários: no mundodas mercadorias, também o homem tende a ser guiado etratado como coisa, a ser reduzido a mero apêndice da pro-dução. O que contrasta vitoriosamente tal reificação e aideologia que a justifica é a dialética com a sua idéia de to-talidade, que restabelece os nexos vivos e processuais darealidade, imerge a história nos “dados”, liga teoria e prá-tica na compreensão e transformação, conecta o sujeito como objeto, permite uma visão global numa época de varia-ções contínuas e freqüentemente imperceptíveis do arran-jo de conjunto num tabuleiro mundial. O conhecimentoda totalidade não autocontraditória só é possível à cons-ciência de classe do proletariado. Precedentemente, nasidades pré-capitalistas, a divisão em castas e estratos (Stän-de) tornava invisível a totalidade social e, conseqüentemen-te, impossível a previsão, a projeção e o controle da dinâ-mica histórica. Com o advento da burguesia, com a forma-ção das classes modernas e a autonomização da esfera eco-nômica, as visões do mundo e a percepção dos conflitos deinteresse tornam-se totais e “a consciência de classe entrouna fase em que pode se tornar consciente”.94 Se bem que a bur-guesia (diferentemente dos camponeses ou da sua fraçãomais desagregada, a pequena burguesia) tenha uma visãodialética da realidade, é uma visão trágica e contraditória:sobre a consciência burguesa, como sobre os personagensque Lukács havia estudado em A alma e as formas e em His-tória do desenvolvimento do drama moderno, “pesa uma trágicamaldição que a obriga, mal chega ao ponto mais alto doseu desenvolvimento, a cair numa insolúvel contradição

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94. G. Lukács, Storia e coscienza di classe, Sugar-Co, Milão,1967, p. 77.

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consigo mesma e, conseqüentemente, a se auto-suprimir.Essa situação trágica da burguesia espelha-se historicamen-te no fato de que ela ainda está empenhada em esmagar opróprio predecessor, o feudalismo, e já aparece o seu novoinimigo, o proletariado”.95 A burguesia não pode suportara visão da totalidade, que inclui a dos seus próprios limi-tes e a do seu fatal desaparecimento; ela é, portanto, obri-gada a se manter na defensiva e a interromper para si mes-ma e para os outros a percepção global dos nexos históri-cos. A classe operária, pelo contrário, que goza da vanta-gem de considerar a sociedade a partir do seu “centro”, domotor da produção, não só não tem medo da totalidade so-cial, mas tem, sobretudo, interesse em conhecê-la, para po-der guiar o processo de transição e abolir a si mesma numasociedade sem classes. Muitos anos depois, no Prefácio àtradução italiana de 1967, Lukács reconhecerá ter cometi-do diversos erros em História e consciência de classe: de terconfundido a “objetivação”, ineliminável em toda ativida-de humana, com o “estranhamento”, que é historicamenterevogável; de ter feito o trabalho perder a característica queMarx lhe havia atribuído em toda sociedade, qual seja, a deassegurar a troca orgânica da sociedade com a natureza, ede ter incorrido, em particular, num “excesso (hegeliano),contrapondo à prioridade da esfera econômica a centralida-de metodológica da totalidade”.96

A importância de Hegel, da dialética e da categoria detotalidade, não serão, porém, nunca repudiadas na inteiraprodução de Lukács. Pelo contrário, sobretudo, depois queStalin inaugura a política das frentes populares, ele elabo-

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95. Ibid., p. 8096. Ibid., p. XXI.

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ra abertamente uma linha estratégica de longo alcance queprevê, como corolário da aliança entre burguesia progres-sista e proletariado, o rejuntamento da grande estação cul-tural da burguesia progressista, antes de sua definitiva en-trega ao “irracionalismo”. Os nomes de Hegel, de Goethee de Ricardo constituem os pontos de referência e a heran-ça mais sadia e dialética da tradição burguesa: representamaquelas individualidades plásticas que o proletariado esfor-ça-se por produzir em todo homem. O irracionalismo en-venenou, a seguir, a filosofia, a arte e a economia políticaburguesa (escapa a Lukács, na justa polêmica contra a cul-tura que conduziu ao Nacional-Socialismo e à guerra, oquanto de conhecimento existe também na “decadência”,quais os antídotos à crise misturados às toxinas: daí a liqüi-dação sumária de tantos autores na Destruição da razão). Es-sas idéias de Lukács terão na Itália um peso relevante (en-tre os anos cinqüenta e sessenta, na idade da “desprovincia-lização”), quando se enxertam no historicismo marxistapreexistente e na perspectiva política de uma aliança entreclasse operária e camadas médias democráticas; contribui-rão, então, para a formação de um “humanismo marxista”,não isento de elementos classicizantes, “grosseiros” e har-monicamente compostos. Uma incidência menor, e nãoapenas na Itália, terão, pelo contrário, as últimas e maismaduras reflexões do filósofo húngaro, da monumental Es-tética à Ontologia do ser social, onde se enfrentam organica-mente os problemas do espelhamento da vida cotidiana(um tema que será transmitido à discípula Agnes Heller) ena arte, na peculiaridade da sua mimese e dos seus méto-dos de “sinalização”, e do conhecimento dirigido por um“estando em si “ estratificado em diversos níveis mediadospelo trabalho e tornados inteligíveis pela história.

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A dialética negativa

A esta concepção de uma dialética fortemente compo-sitiva, harmônica apesar das contradições mais dilaceran-tes, e à imagem de uma totalidade alcançada, opõem-seAdorno e Benjamin, que, em conexão com o embasamen-to trágico das filosofias de Kierkegaard e de Rosenzweig ecom a idéia neo-kantiana da incomensurabilidade da partecom o todo, da totalidade como simples focus immaginarius,reavaliam aquela “lógica da desagregação” que se exprimena arte e nos conceitos das vanguardas do século XX. ParaAdorno, é preciso viver até o fundo as dilacerações desseperíodo histórico, em que, com o avanço da socialização, atotalidade tornou-se totalitarismo, sistema em que vige alei da unidade, da eliminação do diverso, do não compatí-vel com a dominação. Não se deve, pois, procurar – comofaria Lukács – uma “conciliação forçada”, transfigurar arealidade negativa do presente em formas somente pacifi-cadas na aparência. Devem ser, pelo contrário, trazidas àluz da consciência as mutilações, as divisões e as degrada-ções que a vida experimenta e que a grande arte de umKafka, de um Traks, de um Picasso ou de um Schönbergrepresentam. A conciliação só pode ser concebida “à beirada loucura”97, no que hoje é esmagado, oprimido, impoten-te, individual, inútil, não funcional, num mundo regidopela intercambiabilidade, pelo princípio da eqüivalência,da identidade. Em tudo o que é rejeitado alberga-se a es-perança de que o poder e a força das coisas, o destino des-sa época, não tenham para sempre o predomínio. Somente

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97. Th. W. Adorno, Filosofia della musica moderna (1949),Einaudi, Turin, 1959, p. 130.

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por meio desse acúmulo de dor, que nos projeta para umtempo que não é o nosso, poderemos entrever o desapare-cimento da totalidade antagônica, a redenção da particula-ridade, a paz como “estado de uma diferenciação sem po-der, na qual o que é diferenciado participa reciprocamentedo outro”.98 Unicamente então terá fim a marxiana “pré-história” da humanidade. Mas para isso é preciso escapar dasugestão do existente, revolvê-lo na sua obviedade, acionara “fantasia exata” que recupere o quanto até hoje foi remo-vido e marginalizado; substituir à luta de classe que se in-teriorizou, a resistência à dominação das pequenas mino-rias; ativar, substancialmente, a razão dialética que é “a ir-racionalidade face à razão dominante”99 e que – afirmaAdorno em polêmica com Popper e os “cientistas”- não énem fechada holisticamente, nem estranha ao objeto. An-tes, na sua negatividade, que não acolhe passivamente osdados sensoriais ou as tautologias como a própria verdade,ela é muito mais respeitosa para com a vida e as contradi-ções do objeto do que as concepções neopositivistas oucientificistas, desprezadas pela dialética, e que, por sua vez,a consideram como não mais que uma série de fúteis diva-gações retóricas: “Num certo sentido, a lógica dialética émais positiva do que o positivismo, por ela desprezado: elarespeita, como pensamento, o que se deve pensar, o objeto,mesmo quando ele não segue as regras do pensamento. Asua análise acena às regras do pensamento. O pensamentonão é obrigado a se contentar com a própria normativida-de; tem condições de pensar contra si próprio, sem renun-

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98. Id., “Epilegomeni dialettici”, in: Parole chiave. Modellicritici, cit., p. 214.99. Id., Minima moralia cit., p. 68.

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ciar a si mesmo. Se fosse possível uma definição da dialéti-ca dever-se-ia propor essa”.100 O pensamento dialético pro-cura pensar a “história congelada nas coisas”, o nó tempo-ral do devir em que os cientistas se escondem e que filtra,para além de toda ideologia, na arte e no pensamento nãoregulamentados, procedendo “por intermitência”, tenden-tes para o “não ainda”.

Tal congelamento não é, exatamente, um destino:“Como o fim, também a origem da música vai além do rei-no das intenções, aparenta-se ao gesto, estreitamente afimao choro. O gesto do desatar: a tensão da musculatura fa-cial cede, aquela tensão que, ao direcionar o rosto para oambiente em vista da ação, dele o isola a um só tempo.Música e choro decerram os lábios e deixam livre o homemdetido... O homem que se entrega ao choro e a uma músi-ca que não se lhe assemelha em mais nada, deixa contem-poraneamente refluir em si a corrente daquilo que ele nãoé, e que estava estagnado atrás do fechamento do mundodos objetos concretos. Com o seu choro e o seu canto pene-tra na realidade alienada”.101

Para Adorno, a música, tal como a arte em geral e asgrandes filosofias, faz falar o que a dominação e a ideologiaescondem sob a couraça da identidade ou suprimem comoirrelevante e nocivo. Por necessidade de autoconservação ahumanidade teve efetivamente de resistir, nos seus inícios,ao chamado do diverso e ao caráter pânico e indistinto danatureza. Ao canto das Sereias, Ulissses reage ordenandoaos seus companheiros que tapassem os ouvidos com a cera

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100. Id., Dialettica negativa (1966), Einaudi, Turin 1970,p. 126.101. Id., Filosofia della musica moderna, cit., p. 129-30.

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e que remassem vigorosamente, enquanto que ele, tendo-se feito amarrar ao mastro da nave, estava livre para ouvi-lo. Essa é a “pré-história do sujeito”, que se constitui pormeio de uma separação traumática da natureza interna eexterna e por meio da fundação de um pólo centralizado decontrole de si mesmo e da sociedade, mas que nunca deixade sentir a nostalgia do estado inicial, o desejo de a ele re-tornar: “A humanidade teve que se submeter a um trata-mento espantoso, a fim de que nascesse e se consolidasse oSi, o caráter idêntico, prático, viril do homem, e algumacoisa de tudo isso repete-se em toda infância. O esforçopara manter unido o eu pertence ao eu em todos os estados,e a tentação de perdê-lo sempre se conjugou com a cega de-cisão de conservá-lo [...]. A angústia de perder o Si, e deanular, com o Si, o limite entre si-mesmo e o resto da vida,o medo da morte e da distinção, acha-se estreitamente con-jugado com uma promessa de felicidade com a qual a civi-lização tem estado ameaçada a todo instante”.102

Quanto mais o eu é débil, mais tende a submeter a na-turalidade; e o pensamento e o primado lógico da identi-dade outra coisa não são que o correlato da subordinaçãoque a totalidade social exige de todo indivíduo. A durezada luta contra uma natureza hostil e muito poderosa exigiuaté hoje a atribuição ao gênero de um poder de coerção ede coesão que sacrifica, inevitavelmente, a singularidade.O caráter compacto da totalidade social e o reforço da iden-tidade pessoal asseguram a sobrevivência da espécie e dosindivíduos num mundo ainda conflitual, ao preço, porém,de uma “vida deteriorada” e da renúncia à felicidade inte-gral, que relampeja, como sub-rogado, na fantasia e na

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102. Id., Dialética negativa, cit., p. 165.

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arte. A plenitude da vida possível para além dos mecanis-mos de perpetuação social e de dominação, é concedidadesde que se a declare não efetiva, pura ilusão sem preten-são de perturbar a seriedade do real.

Houve um período, a partir do Renascimento e por todaa época do capitalismo concorrencial, em que o indivíduosubtraiu-se parcialmente ao comando da totalidade idêntica,ou melhor, em que a própria totalidade do social, quebrado aseu favor o equilibrio com a natureza, pôde tolerar dentro desi um conflito mais acentuado e legitimá-lo. No ápice desseperíodo histórico temos, no terreno prático, o desenvolvi-mento da “pequena empresa psicológica” do indivíduo e osalto das forças produtivas e, no terreno teórico, a dialética deHegel e de Marx e a grande arte do século XIX. Mas, depois,com o surgimento do capitalismo monopolista, devido ao au-mento das tensões econômicas, políticas e sociais, a totalida-de se enrijece novamente, penaliza os desvios do que é diver-so, procura apagar o processo de individualização em anda-mento, na esperança de conseguir, mediante a abolição da es-pontaneidade do comportamento de cada um, o reforço dasestratégias anti-crise. A “pequena empresa psicológica” vai àfalência e é substituída pelo “grande magazine” da consciên-cia manipulada103 e aqueles mesmos valores que haviam for-necido o propulsor indispensável à decolagem do capitalismode concorrência (individuação, autodeterminação, liberdadede pensamento, conflitualidade) são agora condenados comoum luxo antiquado e nocivo. Do sujeito autoconsciente,propugnado pelo idealismo clássico alemão, retorna-se as-sim à substância amorfa, à comunidade conformista ameri-

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103. Cf. M. Horkeheimer -Th. W. Adorno, Dialetticadell’illuminismo (1947), Einaudi, Turin, 1972, p. 216.

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cana, à Gleichschaltung, ou seja, ao nivelamento coagidonacional-socialista ou ao partido dos mil olhos de brechtia-na memória. Em cada caso, com as cadeias do medo oucom aqueles das necessidades, o ser social fica indissoluvel-mente ligado à consciência. A “estrutura” penetra e invadea “superestrutura”, fazendo cair, de um lado, a aparênciaresidual de uma zona autônoma com relação à esfera econô-mica, e reduzindo, junto, o indivíduo à mera função deportador dos mecanismos econômicos, enguiçando o motorsubjetivo da transformação, que havia começado a funcio-nar em baixa rotação com a individuação. Uma vez dilace-rados os invólucros protetores do indivíduo – autonomiasubjetiva, família, amor, amizade, solidariedade de classe –este acha-se mais uma vez em contato direto com a totali-dade primordial, que dobra o particular ao universal “ne-gativo”. A parábola do “esclarecimento” (Aufklärung) con-duz de uma barbárie à outra, da rudeza natural à planifica-da. E, no clima da douta barbárie do presente, a revoluçãoé adiada para uma data indefinida.

Somente pequenas minorias podem negar a opressãovigente, com uma resistência quantitativamente débil,mas certamente bem mais do que simbólica. Ao conceitode luta de classe, Adorno contrapõe o de resistência à do-minação; à luta coletiva e organizada, a singular ou de gru-pos restritos; à guerra de movimento, para nos servir daterminologia gramsciana, a de posição, em trincheiras es-parsas. A “realidade bloqueada” pode ser lentamente flui-dificada somente pela obra de poucos, dos rejeitados, dosheréticos, dos perseguidos por essa ordem: “Os fracos, osimpotentes, que a história marginalizou e aniquilou se-gundo o veredicto de Spengler, personificam negativamen-te, na negação de tal civilização, aquilo que permite, ainda

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que fracamente, romper a dominação e pôr um fim ao hor-ror da pré-história. No seu protesto está a única esperançade que destino e poder não tenham a última palavra”.104

O sujeito histórico da emancipação, o proletariado,parece ter-se tornado incapaz, enquanto tal, de se oporao poder do existente, comprimido como está entre so-cialismo burocrático, ênfase no consumismo e terror fas-cista. De resto, a degradação da vida manifesta-se de milmodos e “doente” aparece com freqüencia também“tudo o que passa a existir” porque o novo abre caminhofatigosamente entre vínculos, fechamentos, retraimen-tos e sendas que não conduzem a lugar nenhum. Numaimpiedosa e, ao mesmo tempo, comovida fenomenolo-gia da existência cotidiana, manifestam-se abertamenteaos olhos de Adorno todas as misérias e os vazios masca-rados pela maior liberdade e imediatismo que a lógica“capitalista” da identidade (enquanto troca de equiva-lentes que cancela a subtração da mais-valia) promove efaz penetrar até nas mais íntimas manifestações da cons-ciência individual e do comportamento social: os ho-mens desaprendem a arte do dom, uma vez que “há algode absurdo e de incrível na violação do princípio de tro-ca; com freqüência, também as crianças olham descon-fiadas para o doador, como se o presente fosse um tru-que para vender escovas e sabão”. A procura de uma co-munhão maior entre indivíduos agora privados de es-pontaneidade e de laços afetivos profundos ocorre pormeio da falsa vizinhança de uma “camaradagem a basede empurrões”, que “não é mais que um outro signo da

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104. Th. W. Adorno, Prismi. Saggi sulla critica della cultu-ra (1955), Einaudi, Turin, 1972, p. 63.

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crescente impossibilidade da convivência humana nasatuais circunstâncias”.105

Contra o virtual desaparecimento e embotamento daexperiência, a filosofia e a arte podem constituir-se emantídotos, a primeira imunizando os homens no confron-to com o “grande poder da sugestão” que emana do exis-tente, a segunda apresentando-se como “o lugar tenente”do sujeito coletivo autêntico, mas ainda por aparecer. Fi-losofia e arte devem retorcer a aparente obviedade e imu-tabilidade do real, indicar sobretudo as suas linhas de fra-tura latentes e visíveis, o seu ser sulcado de contradiçõesnão componíveis no momento. Desde jovem, Adornoafirmou ter utilizado uma idéia para ele fundamental, ade uma “lógica da desagregação”, que pôde ver em açãonão apenas nas vanguardas musicais vienenses, nas técni-cas dodecafônicas, mas também nas filosofias “atonais” deum Benjamin ou de um Bloch ou na pintura de um Pi-casso. A “dialética negativa”, que renuncia à conciliaçãoatual, é conseqüentemente o instrumento para escandir apresumida impenetrabilidade e intransformabilidade doreal, para revelar – infelizmente ainda para poucos –como o gigante da dominação tem os pés-de-barro ecomo a sua duração depende do consentimento involun-tário ou extorquido dos oprimidos. Teoricamente, ela é a“consciência conseqüente da não-identidade”, mas a “es-perança da conciliação acompanha o pensamento inconci-liável”. A dialética negativa deve ressarcir o não-idênticopela sua eliminação da totalidade vigente, deve basear-seno que ainda resiste na periferia da realidade ou contra elaluta, no “não-conceitual individual e particular” para ex-

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105. Id., Minima moralia, cit., p. 32, 27.

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primir assim a “história congelada das coisas”, dissolven-do a identidade, a totalidade e a reificação social com oácido corrosivo das contradições. Os resíduos da socieda-de atual são o fermento da sociedade futura, não a suacompleta configuração. E a luta, pelo seu concreto alvo-recer é factível, não banalmente utópica, não inevitavel-mente votada à derrota.

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Husserl: a visão da coisa

Vamos dar, agora, um passo atrás no tempo para vercomo os “filósofos puros” enfrentaram a relação sujeito-ob-jeto – o olhar e a coisa – e tentaram estabelecer novas cer-tezas. Recomecemos por Husserl, para quem a superação dopsicologismo, do relativismo historicista e da oposição su-jeito-objeto é obtida graças a uma complexa estratégiacognoscitiva que introduz a consciência comum no sabercientífico, levando-a para pontos de vista mais altos, arran-cando-a, não sem violência, de sua espontânea atitude natu-ralista segundo a qual a realidade está simplesmente diantede nós e não se deve fazer mais do que refleti-la. Mas, “umarealidade absoluta vale quanto um quadrado redondo. Realidadee mundo são para nós títulos de determinadas unidades de‘sentido’, relativos a determinados nexos significativos daconsciência pura, os quais conferem justamente esse senti-do e não um outro e mostram a sua validade”.106 Isto nãosignifica cair num idealismo de tipo berkeleyano ou decla-rar que o mundo é produzido pela consciência. Quer dizer

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capítulo 7

O mundo e o olhar

106. E. Husserl, Idee per una fenomenologia pura e per unafilosofia fenomenologia, Einaudi, Turin, 1965, p. 123.

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apenas que a consciência é “intencionalidade”, é sempreconsciência de alguma coisa, de sorte que não existe de umlado a consciência e de outro a coisa, de um lado o sujeito ede outro o objeto, mas sempre uma ligação bipolar consti-tutiva e inseparável. E nós não temos apenas a percepçãosensível dos dados individuais, mas também a percepção di-reta dos universais, a visão das “essências”, dos eide, que re-cebemos ao pensar. No ato de pensar somos, portanto, pas-sivos, não participamos da construção dos conceitos da ló-gica pura, mas aceitamos os seus dados.

Adorno viu em tal colocação uma forma de terrorismoe de “absolutismo lógico”, já que a verdade torna-se algu-ma coisa de sobre-humano que se impõe à consciência comuma evidência privada de mediações, o congelamento emessências eternas do movimento das coisas e da história,que reflete a abdicação realizada pela subjetividade bur-guesa em benefício de uma poderosa totalidade social anô-nima. A visão das essências e a epochè (ou seja, a tematiza-ção da investigação por meio da suspensão da atitude natu-ral) são para Adorno a negação da dialética e o prevaleci-mento do estático: “Como o fotógrafo de tipo antigo, o fe-nomenólogo cobre-se com o pano negro da sua epochè, exor-ciza os objetos a permanecer imóveis e imutáveis e, ao fi-nal, realiza passivamente, sem a espontaneidade do sujeitocognoscente, retratos de família, como aquele da mãe, “quepousa o olhar afetuoso sobre os seus pequenos enfileira-dos”.107 Mas, em Husserl há outra coisa: trata-se de ver, dedeixar-se impregnar pelo mundo, suspendendo o juízo,dando novamente voz ao objeto, redescobrindo o sentido e

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107. Th. Adorno, Sulla metacritica della gnoseologia, Sugar-Co, Milão, 1964, p. 203.

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a ordem das coisas, que a contínua modificação dos siste-mas de referência e de apoio os tornou incertos e problemá-ticos. A análise eidética reproduz a um nível mais alto deinteligibilidade a ordem que a epochè havia suspendido. Ométodo fenomenológico apresenta-se assim como umacontínua doação de sentido a uma experiência muda ouque tende a se tornar tal na consciência comum. Esta últi-ma pode, como Orfeu, sair dos subterrâneos do “vivido”para o luminoso reino das essências, do saber, somente sefor capaz de não se voltar para trás, de não recair na atitu-de natural. Assim, realizando um esforço para desancorar-se da espontaneidade dos hábitos, resultar-lhe-á evidenteque os objetos não existem por natureza, que são unidadesintencionais, pontos nodais da rede de coordenadas que es-truturam o mundo. Mas como orientar-se nele? Como se-parar a intenção cognoscitiva (que não tem para a maiorparte dos homens uma excelência ou constância particular)das outras modalidades de referência ao mundo? E comoreencontrar, debaixo das estratificações culturais e históri-cas, o substrato material da “coisa”? O mundo circunstan-te tem valências e práticas diversas: “Ele me está constan-temente ‘à mão’, e eu mesmo sou um membro seu. E estádiante de mim, não apenas como um mundo de coisas, mas,com a mesma imediação, também como um mundo de valo-res, mundo de bens, mundo prático. Diante de mim, encontroas coisas dotadas de caracteres de valores, como as proprie-dades físicas, belas e feias, agradáveis e desagradáveis, de-sejáveis e indesejáveis, etc. As coisas apresentam-se ime-diatamente como objetos de uso, a ‘mesa’ com os seus ‘li-vros’, o ‘copo’, o ‘vaso’, o ‘piano’, etc. Também esses carac-teres axiológicos e práticos pertencem constitutivamenteaos objetos como tais, independentemente de eu prestar ou

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não prestar atenção neles e nos objetos. E, tal como para assimples coisas, isso vale naturalmente também para os ho-mens e os animais que me circundam e com relação ao seucaráter social. Eles são meus ‘amigos’ ou ‘inimigos’, meus‘inferiores’ ou ‘superiores’, ‘estranhos’ ou ‘parentes’ etc.”.108

O homem, sendo um “corpo vivo”, também está su-jeito a necessidades, imerso num sistema de dependênciasque o faz agir em vista da consecução de um objetivo, cir-cundado por objetos úteis que têm o caráter de “merca-dorias”.109

Mas, se eu quero conhecer a constituição material dacoisa (empreendimento ao qual Husserl se dedica já na Li-ção sobre a coisa de 1907 e nas Idéias II) devo penetrar sob es-sas valências individuais e sociais até chegar no seu estratode materialidade que a distingue do puro fantasma, ou seja,dos “dados privados do estrato de apreensão da materialida-de”. Tomemos o exemplo da cor, abordado não apenas nasIdéias II, mas também num manuscrito em parte ainda iné-dito de 1910, Fantasma e coisa,110 e coloquemo-nos a ques-tão simples de saber qual é a cor de um objeto. Entretanto,a distinção entre forma e cor de uma coisa transforma-se fe-nomenologicamente na diferença entre “cor” e “coloração”,ou seja, entre a cor e a sua extensão. Em segundo lugar, umavez que a cor ocorre somente na presença de uma fonte lu-minosa, a cor dependerá da sua iluminação e apresentar-se-á, na sua variação, com “sombreamentos” sempre diversos.

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108. Husserl, Idee per una fenomenologia pura e per una filoso-fia fenomenologica, cit., p. 59.109. Ibid., p. 584.110. Id., Ms. D. 13 XXIV, cit. in G. Piana, “Un’analisihusserliana del colore”, in: aut-aut, março 1966, 92,p. 21-30.

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Mas nós atribuímos ao corpo uma cor objetiva, cujas modi-ficações são imputadas a elementos de distúrbio. Uma coi-sa teria assim sempre uma mesma cor, tanto na escuridão deum armário, quanto na claridade de uma luz fraca ou de umsol forte. Na realidade, porém, a cor objetiva atribuída auma coisa é uma norma, é algo pensado e não algo visto. So-mos nós que estabelecemos condições otimizadas e normaisque determinam a cor do objeto: “Assim, certas condições re-sultam ser as condições ‘normais’: a visão nas condições cons-tituídas pela luz do sol e de um céu claro, sem a interven-ção de outros corpos capazes de influir sobre a cor da apari-ção. O ‘optimum’ que é assim obtido vale como a cor mesma,diferentemente, por exemplo, do vermelho do entardecerque ‘sufoca’ todas as cores próprias do corpo. Todas as outrascores da qualidade são um ‘aspecto da’, ‘aparições da’ privilegia-da cor da aparição”.111

Assim, a “coisa” apresenta-se como unidade normati-va que permanece igual em todas as modificações (que po-dem sempre ser eliminadas reconstituindo as condiçõesotimizadas”) e que, diferentemente do “fantasma”, age,produz enredos causais.

A não compreensão, por parte das ciências naturais,do caráter constitutivo das coisas, o fato de tê-las entendi-do de maneira naturalista, levou a um obscurecimento dosentido da racionalidade européia. A crise das ciências euro-péias (livro elaborado entre 1935 e 1937, mas saído apenasem 1954) descreve justamente esse extraviu, a perda doímpeto teleológico. Nessa época trágica, em que os totali-tarismos espalham-se e a racionalidade parece servir so-

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111. Id., Idee per una fenomenologia pura e per una filosofiafenomenologica, cit., p. 445-6.

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mente para fins destrutivos ou ter-se colocado à disposiçãodo poder, a ciência tem sua responsabilidade, enquantocontribuiu para tratar o homem também como coisa. Os fi-lósofos, estes “funcionários da humanidade”,112 devemcompreender o porquê da crise e contribuir para a sua so-lução, indicando no “mundo da vida” (Lebenswelt) o funda-mento esquecido das ciências, a origem das suas pergun-tas. Agora a filosofia não é mais considerada por Husserlcomo uma “ciência rigorosa”, mas como a ultrapassagemprática do naturalismo”.113

Em 1917, quando Husserl cunha o neologismo Le-benswelt, este já assumiu o caráter de sintoma. Revela, comefeito, a profunda fratura entre a atitude teórica de quemse dirige para o “mundo”, para a totalidade do real, e dequem, ao contrário, se situa no “mundo da vida”, ou seja,no centro de um “horizonte de coisas que não são meroscorpos, mas objetos de valor”. A primeira atitude suprimeo sujeito, considerando-o, com desdém, um objeto entreoutros; a segunda, volta a tecer incessantemente a espessarede de relações cognoscitivas e afetivas dentro da qual osujeito está efetivamente preso ao mundo. Uma baseia-sena categoria de “causa” e esforça-se por designar um sen-tido preciso aos fenômenos singulares; a outra apóia-se nocritério da “motivação” e interroga os fatores que induzemo próprio sujeito “a pensar, a avaliar, a desejar, a agir”. Aconduta dos que operam no plano da objetivação do mun-do tende a encerrar todo ser e “essência” no âmbito da uni-vocidade; a dos que se sentem inseridos na Lebenswelt visa,

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112. Id., La crisi delle scienze europee e la fenomenologia tras-cendentale, Il Sggiatore, Milão, 1961, p. 46.113. Cf. ibid., p. 47.

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pelo contrário, conservar uma tolerante abertura perante apluralidade de significados da experiência, dos diversosníveis de realidade. Os sujeitos capazes de comunicar in-formalmente sem se colocar muitos problemas, mas tam-bém sem se entrincheirar na dimensão do inefável, os ho-mens que padecem e agem em contato direto com o seuambiente mutável, são em geral os mesmos que – em de-terminadas culturas e circunstâncias – endossam os “anto-lhos habituais” do cientificismo naturalista, acreditando,assim, elevar o seu pensamento acima da opacidade da ex-periência irrefletida. Uma pergunta aparece em Husserldesde já esboçada: a atitude teórica objetivante é só o quese consente ao saber da espécie humana ou pode-se formu-lar a hipótese de um tipo de conhecimento igualmenteeficaz, que não seja reconduzível, por um lado, à objetiva-ção e, por outro, às obscuras intuições do vitalismo ou aosindistintos lampejos subjetivos da Erlebnis?114 Que um talempreendimento árduo também seja destinado a perma-necer inacabado demonstram-no tanto o longo percursoque conduz Husserl à Crise das ciências européias (e além,até as últimas conversações transcritas pela irmã), quantoo privilégio dado ao próprio termo de Lebenswelt. Antes dereceber plenos direitos de cidadania lingüística, o vocábu-lo devia parecer a muitos um híbrido monstruoso, um“centauro conceitual”, composto por Welt, que alude à to-talidade compacta, durável, corpórea do “mundo” e porLeben, que remete à multiforme, frágil, caduca finitude da“vida”.

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114. Id., Idee per una fenomenologia pura e per una filosofia fe-nomenologica, cit., II, Ricerche fenomenologiche sopre la constitu-zione, p. 764-5, 49, 580.

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Renunciando provisoriamente às vantagens garantidaspelo universo ordenado das ciências, Husserl arrisca-se acair ou no relativismo ou nas nebulosas filosofias da intui-ção, ou seja, naquelas formas de pensamento que sempreabominou. Nelas toda cultura humana – segundo as doutri-nas de Spengler ou de Toynbee, isolada das outras, encam-pa as mesmas pretensões de legitimação. Qualquer cânonepara medir o grau atendível de preconceitos, opiniões e va-lores ou para discutir idéias, costumes, estados de ânimo re-sulta, portanto, infundado. Se o envolvimento da filosofiano mundo da vida superasse, pois, – na Crise das ciências eu-ropéias – um determinado nível, tudo o que constitui o ladoda contingência e da arbitrariedade do vivido readquiririaaquela força e prestígio que a ciência moderna conseguiudeles arrancar depois de duras lutas. Nesse caso, a universa-lidade da “consciência transcendental” – a irredutibilidadeda consciência ao objeto, que torna comum todos os ho-mens – seria destruída em beneficio da multiplicidade em-pírica de sujeitos psicológicos sem relações e de civilizaçõesque se proclamam soberanamente incomensuráveis. O dis-curso e a comunicação seriam consentidos somente pelo fatode compartilhar determinadas e específicas tradições vivi-das, espontâneas ou induzidas. Tornar-se-iam uma meraquestão de pertencimento e de homogeneidade cultural aosdiferentes grupos humanos. O instrumento da “redução fe-nomenológica” permite, todavia, a Husserl sair dessa difi-culdade. Deixa-lhe uma razoável esperança, que se manifes-ta numa paráfrase do dito evangélico “quem perde a própriavida, a salvará”. A perda do mundo da vida – ou seja, a suasuspensão por meio da epochè torna-se, com efeito, a premis-sa de sua reconquista. Graças ao patrimônio de universali-dade acumulado pelo “sujeito transcendental” que reflete

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radicalmente sobre si mesmo e exibe assim as formas e asvias de doação do sentido, também o mundo da vida é res-gatado e iluminado. Suspendendo provisoriamente o juízotorna-se problemática a obviedade. Inibem-se simultanea-mente tanto a prevaricação subjetivista. que tende a proje-tar costumeira e fantasmagoricamente sobre a “coisa” es-quemas perceptivos, pensamentos consolidados e interessesprovenientes do mundo da vida, quanto a tentação objeti-vista que (visando conservar-lhe o estrato de apreensão damaterialidade) subtrai-lhe, em seguida, a complexidade dasdimensões e a variedade das abordagens para privilegiarcomo normativa uma única atitude e desqualificar, conse-qüentemente, todas as outras. A epochè permite ouvir nova-mente o cruzamento de vozes que vêm de ambos os pólos,da coisa e do sujeito, de renegociar o sentido fora da obri-gação da obviedade.

Schütz: migrações de sentido

No sociólogo e filósofo austríaco Alfred Schütz o in-distinto e unitário mundo da vida husserliano (permaneci-do, além disso, em Husserl substancialmente inexploradona sua concreta cartografia) se articula e se especifica. Nãoassume o aspecto de “subuniversos de realidade”, como emWilliam James, mas de “províncias finitas de significado”,cada uma dotada de uma autonomia própria. Cada uma éum universo simbólico, virtualmente auto-suficiente, den-tro do qual se permanece, até que um trauma, uma passa-gem brusca e descontínua, um “salto kierkegaardiano”, in-duz a transpor os confins: “Assim como é grande o núme-ro de gêneros de experiências traumáticas, também o é o

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das províncias finitas de significado sobre as quais eu pos-so atribuir particular relevância à realidade. Eis algunsexemplos: o trauma de adormecer caindo no mundo dossonhos; a transformação interior à qual somos submetidosquando levantam-se as cortinas do teatro como transição aomundo do palco; a mudança radical de nossa atitude se,diante de um quadro, pemitimos que o nosso campo devisão se restrinja ao que está dentro da moldura, como pas-sagem ao mundo pictórico; o nosso embaraço, que se des-faz ao rir, se, ao dar ouvidos a uma história divertida, esta-mos por um momento dispostos a aceitar o seu mundo fic-tício como uma realidade, com relação à qual o mundo danossa vida cotidiana assume um caráter absurdo; o incli-nar-se da criança para o seu brinquedo como passagem aomundo do jogo e assim por diante”.115

No interior de cada mundo todas as experiências sãode per si, e entre si, coerentes e compatíveis. A epochè mar-ca os confins entre as diversas províncias: emigramos con-tinuamente e reentramos nestes outros mundos. Dividi-mos a experiência segundo áreas de significado, pelasquais os diversos mundos são constituídos por aglomera-dos de sentido, e não por uma multiplicidade de elemen-tos heterogêneos reagrupados ao acaso cuja síntese cabe aoeu. A própria sociedade – como mostram os artigos de sa-bor simmeliano O estrangeiro: ensaio de psicologia social e Osobrevivente – já possui virtualmente, com efeito, os “mol-des” de reprodução dos mundos psicológicos e institucio-nais escolhidos para filtrar os acontecimentos. Isto se dásegundo regras que capturam a riqueza dos significados

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115. A. Schütz, “On Multiple Realities”, in: Collected Pa-pers, La Hague, Martinus Nijhoff , 1962-66, 3 vol.

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escancarados pela multiplicação das esferas de realidade.Somente o mundo vital do cotidiano (que Husserl, por ou-tro lado, não distinguia do mundo da vida) consegue exer-cer uma dominação sobre outras províncias de sentido,proclamando a “realidade suprema” ou paramount reality.A ciência é para Schütz uma das tantas províncias de sig-nificado, que não tem uma superioridade absoluta sobre asoutras, mas à qual se apela conforme a variação dos inte-resses, dos “critérios de relevância”. A passagem dos váriosmundos vitais à dimensão da ciência não é uma passagemdo observado ao conhecido, do sentido à verdade, e simuma abertura do que é mais ou menos familiar ao que nãoé, mas que pode se tornar: “A familiaridade [...] indica apossibilidade de referir novas experiências, no que diz res-peito à sua especificidade, ao meu fundo habitual de co-nhecimento já adquirido [...]. Toda experiência, ao fazerparte de nossa posse habitual (por isso, nos é familiar) trazconsigo a antecipação de que, em linha de princípio, de-terminadas experiências futuras serão reconhecidas comoreferindo-se aos mesmos objetos precedentemente experi-mentados, ou pelo menos a objetos que são idênticos outipicamente semelhantes”.116

O “enfoque da realidade” se desloca e se retira de umaprovíncia finita de sentido à outra. Toda província finita desentido tem agora a sua específica tensão da consciência, asua específica epochè, a sua específica modalidade de perce-ber a Si, a sua específica sociabilidade e a sua específicatemporalidade que estabelece a sucessão ou a simultaneida-de dos fenômenos. A recente retomada de tais temáticasleva a uma desdramatização da passagem através das várias

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116. Id., “Reflections on the problem of relevance” (1947-1951), Yale Univ. Press, 1970.

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“províncias de significado”. Assim em Peter Berger, soció-logo alemão radicado nos Estados Unidos, não há mais ne-cessidade de traumas para passar de um mundo vital a ou-tro. Numa sociedade moderna e urbanizada, estamos já,desde logo, no interior da sua multiplicidade e na área dassuas intersecções, pois os mundos vitais nos aparecem tãoseparados e compactos como acontecia nas sociedades tra-dicionais. Tornaram-se, quando muito, estranhos ou indi-ferentes entre si. A nossa atual existência, especialmentenas metrópoles, introduz-nos incessante e quase impercep-tivelmente em mais mundos, cujos limiares ultrapassamoscontinuamente e continuamente entrecruzamos (mais queuma rota, dir-se-ia um sistema de malhas ferroviárias). Nãoexiste mais nenhum mundo autêntico, não manipulado, ase contrapor ao mundo autêntico: a consciência é constituí-da por uma junção de “pacotes” (packages) de conhecimen-tos pré-confeccionados, fornecidos pelos mundos vitais depertencimento, que não temos tempo, vontade ou compe-tência para abrir e controlar criticamente, sendo já umaatividade fatigante aprender saberes formalizados, práticase profissões.117 Eles são mantidos juntos até que as disso-nâncias cognitivas ou morais não se tornem muito estri-dentes, impedindo um frutífero “acesso à realidade”.

Descobrem-se nas sociedades ocidentais as vantagense as desvantagens da modernidade: de um lado a consciên-cia componencial, de outro a consciência aberta, que nãose sente mais ligada ao seu lugar na paramount reality domundo cotidiano. Podemos pensar-nos como possuindo

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117. P. Berger, B. Berger, H. Kellner, The Homeless Mind,Penguin Books, Harmndosworth, 1973 e P. Berger, Le pi-ramidi del sacrificio, Etica, politica e trasformazione sociale, Ei-naudi, Turin, 1981, p. 140-3.

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biografias diferentes, imaginar como poderíamos ser ounos tornar, distanciando-nos da identidade ou do papelatualmente recobertos e descobrindo ou ativando muitoseus potenciais por meio de uma mais acentuada ampliaçãodas if attitudes (do imaginar os “se...”). É necessário um Eucomponencial, desmontável, que permita simetricamentea transição “suave” de um mundo vital a outro, evitandoas crises de desadaptação. Devemo-nos sentir “em casa”em mais mundos possíveis, o que equivale a dizer que nãodevemos ter uma casa, que somos homeless. De tal ponto devista, a multiplicação das esferas de realidade parece des-locar os problemas ao invés de resolvê-los. Estilhaçadanuma pluralidade de mundos vitais coexistentes e compo-níveis, a husserliana Lebenswelt conduz, no final, a mundosdiversos e incongruentes, “ingovernáveis”. A casa torna-se, porém, um edifício com mais quartos e a “província dohomem” estende-se até se transformar num mapa-múndicolorido que engloba todos os territórios separados. EmBerger os mundos vitais – diferentemente do enfoquedado por Husserl e por Schütz sobre a sua relativa estabi-lidade – sofrem, com efeito, transformações incessantes,moleculares ou catastróficas, que retraduzem e requalifi-cam os seus conteúdos e as suas formas. Estamos, conse-qüentemente, circundados não apenas por inovações e hi-bridismos, mas também por símbolos mortos, sujeitos àdespotencialização e à desclassificação, que sobrevivemencapsulados nas dobras dos nossos mundos vitais. Estessão, por sua vez, percorridos por contínuos fluxos de in-vestimento e desinvestimento de sentido, por atos de sig-nificação e por fases de esquecimento, atravessados oupontuados de espaços ou entes contíguos, mas não comu-nicantes. Sob esse perfil, a experiência apresenta-se tam-

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bém como uma viagem entre os diversos mundos da vidacotidiana e extra-cotidiana, uma migração entre esferas desentido, às vezes, dissonantes que induzem o indivíduo acompor por si mesmo, com uma margem discricionalsempre mais ampla, o próprio “plano de vida” como inte-gração contínua de segmentos de mundos vitais e constru-ção de uma identidade móvel, desencantada ou trágica. Àsemelhança do herói homérico ou do moderno protagonis-ta do Ulysses de Joyce, experimentar significa adquirir acompetência necessária para distinguir, para penetrar epara compreender os inumeráveis mundos da vida (pre-sentes e vizinhos, desaparecidos e longínqüos, “reais” ou“imaginários”) que são percorridos, respectivamente, emdez anos de peregrinações por mares e terras desconheci-das ou no intervalo de vinte e quatro horas, nas cavidadesou nos lugares abertos da própria cidade. Analogamenteaos personagens de Beckett, em que “o sujeito morre an-tes de ter alcançado o verbo”118, no duplo sentido que per-manece sempre inacabado (na medida em que nunca al-cança o verbo por excelência, o ser, ou a ação) e que nun-ca consegue completar uma frase sensata, dizer algumacoisa que mereça ser dita: corre-se o risco de morrer semmemória e sem consciência, num mundo da vida em queo absurdo e o óbvio trocam seus papéis, em que vagueiamhomens reduzidos a larvas, a “não-eu”, Not-Me, somentefelizes no esquecimento estúpido e na negação do mundoe das suas relações (como em Murphy ou em A Última fitade Krapp).

A teoria dos mundos vitais coloca indiretamente pro-

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118. S. Beckett, “Testi per nulla”, in: Primo amore. Novelle.“Testi per nulla”, Einaudi, Turin, 1979, p. 111.

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blemas filosóficos de importância decisiva. Se se nega, comefeito, a existência de uma realidade única e sustenta-se,pelo contrário, que existem muitas, cada uma das quais,ocupando uma diversa e específica província de sentido,comprometem-se irremediavelmente hipóteses e soluçõesque há muito legitimam os mais difusos modos de pensare as mais variadas práticas políticas e religiosas. Quando omundo deixa de representar um todo coerente, que se arti-cula segundo uma ordem admirável, dotada de intrínsecabeleza e racionalidade (ou seja, quando perde os atributosque o constituíam enquanto kosmos ou mundus), também asoposições canônicas de natureza e artifício, de verdadecomo adequação à estruturas objetivamente vinculantes everdade como construção da mente, terminam por perdera própria razão de ser. Além disso, a alternativa não é maissimplesmente entre pluralidade dos mundos e mundo nosingular, entre vidas paralelas e vida única, entre identida-de absoluta e “um, nenhum e cem mil”, entre realismo eutopia. Tudo torna-se incomparável, incomensurável. Semuma realidade única para respeitar, representar e transcen-der, o único movimento possível resulta ser a passagem“horizontal” de um mundo vital a outro. Esse trânsito tor-na supérfluo o trabalho de quem pretende demonstrar queo mundo no seu complexo caminha numa direção determi-nada, desqualificando indiretamente toda procura de au-tenticidade e até mesmo a resposta – com o vocabulário deSimone Weil – ao déracinement, ao “desenraizamento”, me-diante um novo enracinement ou “enraizamento”. A procuradas raízes apresenta-se como um remédio patético para aalastrante impressão de perda de um mundo da vida pers-pícuo e articulado, de perda do próprio lugar, percebida –de quando em quando – de maneira nihilista como funes-

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ta ou serenamente como inevitável.Tanto Husserl quanto, em maior medida, Schütz, não

avançam na direção de um “reencantamento” do mundo,de um salto no extraordinário ou de uma criação de nichosprotegidos como os descritos pela mais atenta sociologiacontemporânea, quando caracteriza, por exemplo, no espa-ço côncavo e protetor dos bares das grandes metrópoles umverdadeiro e próprio microcosmo, um pequeno mundo davida, enquanto lugar de distensão e de conflito, de ativida-de lícita e ilícita, como sub-rogado e evasão da casa. No in-terior desse “subuniverso” de realidade valem regras e cri-térios de relevância que em outro lugar seriam impensá-veis: conversa-se mais facilmente com desconhecidos, dei-xa-se levar pela casualidade dos encontros, abordam-semulheres e homens, contam-se episódios incontroláveis so-bre a própria existência, lendas como projeção de desejo.119

Mas Husserl e Schütz não mostram nem mesmo atitudesde desprezo, de comiseração ou de suficiência pela cotidia-neidade, como ocorre, pelo contrário, na análise que Hei-degger realiza do “Si” (Man), ou seja, da adequação do in-divíduo com a “prosa”, com o pensar e agir impessoal de“todos com ninguém” (como nas alocuções “diz-se...”, “faz-se...”). Eles não temem a “americanização do mundo”, a do-minação da sociedade de massa, se bem que – por contras-te – não estão, porém, em condições de perceber o ambí-guo e desesperado protesto da individualidade, do “si-mes-mo” autêntico que não se conforma com a sua passagempara a esfera do anonimato. Não contrapõem a “autentici-dade” do extracotidiano à banalidade da existência do dia-

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119. Sh. Cavan, Liquor Licence: An Ethnography of Bar Be-havior, Aldine Publications, Chicago, 1966.

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a-dia, nem procuram nobilitar e reconsagrar a vida pormeio de uma imersão na tonalidade afetiva da “angústia”ou do “chamado” (voz inarticulada da consciência que, nosilêncio, intima a escolha do definitivo). Desta voz quedesperta o “si-mesmo” do indivíduo perdido no “se”: “Ochamado nunca é projetado nem preparado, nem delibera-damente efetuado por nós mesmos. “Alguém” chama contra anossa expectativa e contra a nossa vontade. De outro lado,o chamado não provém certamente de um outro que esta-ria no mundo comigo. O chamado sai de mim e todavia aci-ma de mim”. Esta voz inarticulada não pertence a um ou-tro ser que seria o seu “possessor”. É o Dasein, ou “Ser-aí”,a realidade do homem, que chama a si mesmo de maneirainarticulada, sem palavras, por meio da tonalidade emoti-va da angústia e que se encontra apenas na perspectiva dadestruição final da individualidade: “Aquele que chamanão é determinável em seu ‘quem’ por nada que seja da or-dem do mundo. Ele é, com efeito, o Ser-aí na sua desam-bientação, ou seja, o ser-no-mundo originalmente jogadocomo fora de si, o ‘que’ em sua nudez no nada do mun-do”.120 O objeto do meu desejo – o não querer ser, piran-dellianamente, “ninguém”, mas “um” e autêntico – podeser conseguido não vinculando-me ao fio do passado, masao ekstasis do “estar-para-a-morte”, na projeção para um fu-turo que aniquilará inexoravelmente o meu eu. Ou seja,justamente o que procuro encontro-o dado que – mesmona permanência do Ser e na variação dos entes, pessoas ecoisas – está destinado a enterrar-se no abismo do nada.

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120. Cf. M. Heidegger, Essere e tempo (1927), Longanesi,Milão, (1970, Seção II, II, 57, p. 414, 416.

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Heidegger: o desvelamento do Ser

Em Heidegger, e em particular no “segundo Heideg-ger”, o conhecimento da coisa não se apresenta mais comovisão ou justeza da visão, como havia aparecido na “metafí-sica ocidental” desde Platão, cuja teoria preludia a mais tar-dia transformação do mundo em imagens e do homem emsujeito constituinte e producente. No período áureo da vidagrega, que se redescobre no pensamento dos “pré-socráti-cos”, quando a metafísica ainda não nasceu, “é antes o ho-mem a ser olhado pelo ente, ou seja, pelo auto-abrir-se aoser-presente nele recolhido. Olhado pelo ente, sustentadopor ele, envolvido nos seus contrastes e marcado pelo seudissídio: eis a essência do homem no período da grandezagrega [...]. O homem grego é [ist] enquanto percebe o ente;conseqüentemente, na Grécia, o mundo não pode se tornarimagem. Ao contrário, o fato de que em Platão a entidadedo ente se define como eidos (aspecto, vista), é o pressupos-to histórico remoto, operando uma longa e escondida me-diação, para que o mundo se torne imagem”.121

A metafísica é, na realidade, uma física, um errar entreos entes, esquecendo o ser e a verdade, que não é exatidão dorepresentar, cálculo e dominação dos entes, como na era datécnica, mas desvelamento (a-letheia), e abertura do ser pormeio da linguagem ao ente diverso que pode compreender oser que é o homem. A linguagem é a “casa do ser”122, o lugaronde o ser revela-se a quem se lhe abandona e em direção ao

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121. Id., “L’epoca dell’immagine del mondo”, in: Sentieriinterrotti, La Nuova Italia, Florença, 1968, p. 89-90.122. Id., “Perché i poeti?”, ibid., p. 287.

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qual desde sempre “estamos a caminho”, a relação de todasas relações que não é só comunicação: “A linguagem é o re-cinto (templum), ou seja, a casa do ser. A essência da lingua-gem não se esgota na significação, nem é algo conectado ex-clusivamente a signos e a cifras. Sendo a linguagem a casa doser, podemos aceder ao ente apenas passando constantemen-te por esta casa. Se vamos à uma fonte, se atravessamos umbosque, atravessamos já sempre a palavra “fonte”, a palavra“bosque”, ainda que não pronunciemos estas palavras e nãonos refiramos a nada de lingüístico [...]. No caso de algumlugar, é unicamente nesta região que poderá acontecer aquelerevolvimento da dominação dos objetos e da sua representa-ção no mais interior do coração”.123

Do predomínio do ver da metafísica clássica passa-se,no pensamento “ultrametafísico”, que começa a abrir peno-samente caminho e do qual Heidegger se faz pregoeiro, aopredomínio do sentir e do falar (realizando-se às avessas, dir-se-ia, a passagem da prevalência do sentido do ouvido ao davista que muitos estudiosos examinaram para a fase de tran-sição na Grécia da cultura oral à civilização da escrita). Atransposição da metafísica, do esquecimento do ser, ao pen-samento sucessivo – que ocorre quebrando os nexos sintáti-cos da linguagem, tornando-a mais sensível à voz do ser, ten-teando nas suas dobras e revelando suas estratificações – nãoé breve. A reapropriação pela linguagem do sentido do ser,dos significados, durará quanto a própria metafísica (umtempo bastante longo, visto que a metafísica cobre a épocaentre Platão e Nietzsche) e será obra do ser: “A metafísicanão se pode deixar de lado como uma opinião. Não se podedeixá-la para trás como uma doutrina na qual não se crê e

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123. Ibid.

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não mais se sustenta. O fato do homem se encontrar, comoanimal rationale (ou seja, agora, como o ser vivo que traba-lha) a errar, através dos desertos da devastação da terra, po-deria ser um sinal de que a metafísica acontece a partir dopróprio ser, e que a ultrapassagem da metafísica acontececomo aceitação-aprofundamento (Verwindung) do ser [...]. Seé assim não podemos nos imaginar estar fora da metafísicasomente com base num pressentimento de seu falecimento.A metafísica ultrapassada não desaparece. Ela retorna sobforma diversa e mantém a sua dominação como permanentedistinção do ser com relação ao ser existente. Superação daverdade do ser significa: a evidência (Offenharkeit) do serexistente e somente do ser existente perde a exclusividade coma qual até agora se impunha como critério base”.124

Nessa segunda fase da biografia heideggeriana, suces-siva à “viragem” de Hölderlin e a essência da poesia, o ser tor-na-se o centro das suas meditações, enquanto o “ser-aí”, ohomem, é somente o seu “pastor” (é a partir de tais posi-ções que se desenvolverá na França no segundo pós-guerra,em consonância com temas estruturalistas, o anti-huma-nismo de Lacan, Althusser e Foucault). As análises de Ser etempo sobre a angústia, a dejeção, a existência inautêntica ea autêntica, a cotidianeidade e o conformismo vividoscomo refúgio que embota diante da escolha significante doser-para-a-morte, a finitude e a temporalidade do ser-aí(que influirão pelo contrário de maneira determinante so-bre Sartre, Binswanger e as várias correntes “existencialis-tas”); tudo isso parece completamente esquecido ou pareceagir fracamente. É, pelo contrário, ulteriormente aprofun-

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124. Id., “Oltrepassamento della metafisica”, in: Saggi ediscorsi, Mursia, Milão, 1976, p. 46.

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dado um problema acenado em Ser e tempo, o da manipula-ção das coisas, da técnica e da essência das ciências da na-tureza. A técnica moderna, que surge justamente na “épo-ca da imagem do mundo”, não é apenas um simples saberinstrumental, mas um modo no qual a verdade desvela-se,uma forma de manifestação do ser em que os recursos e asenergias naturais são submetidos à utilidade humana: “Odesvelamento que vige na técnica moderna é uma provoca-ção (Herausforderung) que pretende que a natureza forneçaenergia que possa, enquanto tal, ser extraída (herausgeför-dert) e acumulada. Mas isso não vale também para o antigomoinho de vento? Não. As suas asas giram, sim, empurra-das pelo vento, e permanecem dependentes do seu sopro.Mas o moinho de vento não nos põe à disposição as ener-gias das correntes aéreas para que as acumulemos”.125

A finalidade é a máxima utilização ao mínimo custodas energias da natureza conhecidas, transformadas, arma-zenadas, repartidas, comutadas (todos modos do desvela-mento). A própria natureza é designada a um projeto hu-mano e nele inserida: “A central hidroelétrica não é cons-truída no Reno como a antiga ponte de madeira que há sé-culos une uma margem à outra. Pelo contrário, aqui é o rioque é incorporado à construção da central”.126 Ao subsumira natureza dentro das finalidades humanas forma-se umagrande corrente de interdependências que envolve homense coisas: “O guarda florestal que, no bosque, mede a ma-deira das árvores abatidas e que, aparentemente, segue talcomo seu avô as mesmas trilhas é hoje empregado pela in-

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125. Id., “La questione della teoretica”, in: Saggi e discorsi,cit., p. 11.126. Ibid., p. 12.

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dústria da madeira, quer ele o saiba ou não. É empregadoa fim de assegurar a utilização da celulose, a qual, por suavez, deve-se à demanda de papel destinada aos jornais e àsrevistas ilustradas. Estes, por sua vez, induzem (stellen) opúblico a absorver as coisas estampadas, de modo a se tor-nar ‘utilizável’ pela construção da ‘opinião pública’ cons-truída sob encomenda (bestellte)”.127

Mas a técnica moderna, enquanto desvelamento daverdade, não é, todavia, uma operação meramente humana.É o ser que manifesta ao homem a natureza como “conjun-to de forças calculáveis”.

O ser revela-se, porém, também de outras formas e o pe-rigo consiste em tratar a técnica como o único modo do des-velamento e em não entender a sua essência, que não temnada de técnico. O querer, expresso na técnica e nas suas con-seqüências necessárias (o “Estado totalitário”, a separação dohomem enquanto sujeito e do mundo enquanto objeto, a for-mação de um mercado mundial que “faz comércio da própriaessência do ser”), passa a dispor integralmente da natureza edo homem: “Por esse querer, tudo torna-se forçosamente –desde o início e, portanto, a seguir – material da produçãoauto-imposta. A Terra e a sua atmosfera tornam-se matérias-primas. O próprio homem torna-se material humano, empre-gado segundo objetivos pré-estabelecidos. A organização in-condicionada da imposição integral da produção, toda proje-tada segundo os desejos do homem, é um processo que ema-na da própria essência ainda escondida pela técnica”.128

Não há em Heidegger apenas a nostalgia do mundocamponês ou dos seus bosques da Floresta Negra, a sauda-

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127. Ibid., p. 13.128. Id., “Perché i poeti?”, cit., p. 267.

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de por aquelas “coisas, outrora crescidas na calma” e quehoje desaparecem rapidamente substituídas, por uma espé-cie de lei de Gresham, por “pseudocoisas, por ninhariaspara viver”, mas a consciência (comum a toda a cultura ale-mã dessa época, incluídos os adversários de Heidegger,como o Lukács de História e consciência de classe, Bloch eAdorno) de que uma civilização baseada na exploração danatureza e do homem, em que a técnica está a serviço deum poder manipulador, não pode ser tolerada por muitotempo. Há, em suma, a recusa da “jaula de aço” weberianae a tentativa de dela sair mediante o enfraquecimento daessência do pensamento técnico e metafísico e a ativação deum “pensamento rememorante”, filosófico-poético, quepassa pela busca de um suplemento de sentido na densida-de da linguagem. Dessa maneira, também o que é maissimples e óbvio, as coisas que nos circundam, começa a fa-lar diversamente. Consideremos (diz Heidegger, retoman-do um exemplo de Descartes, de Simmel e de Bloch)129 umcântaro. Ele se apresenta fisicamente como um recipientecom um fundo, uma parede e uma alça. Para o pensamen-to técnico científico, que pretende captar as coisas antes emelhor do que qualquer outra experiência, o cântaro é o re-sultado da produção de um ceramista e o seu vazio estácheio de ar. E assim – prescindindo de possíveis medições

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129. Cf. Descartes, Opere, Laterza, Bari, 1967, II, p. 81-2);G. Simmel, Der Henkel, in Philosophische Kultur (1911),agora em Das individuelle Gesetz, Philosophische Eskurse,Suhrkamp, Frankfurt a. M. 1968, p. 95\6-104 e E. Bloch,“Una vecchia brocca” (1918), in: Spirito dell’utopia, la Nuo-va Italia, Florença. 1980, p. 11-4 (sobre o qual cf. tambémTh. W. Adorno, “Henkel, Krug und frühe Erfahrung”, in:Ernst Bloch zu eheren, org. por S. Unseld, Suhrkamp, Frank-furt a. M. 1965).

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ou análises da forma e do material – acredita ter esgotadoo argumento. Mas o vazio do cântaro é um conter do quan-to se deve verter (schenken), é um dom e uma oferenda (Ges-chenk). Nele se condensa o “quadrado” do mundo (céu eterra, homens e deuses: é um conceito platônico, cf. Platão,Gorgia, 507-508): “Na água que é ofertada permanece(weilt) a fonte. Na fonte permanece a rocha, e nesta, o pe-sado cochilar da terra, que recebe a chuva e o orvalho docéu. Na água da fonte permanecem as bodas de céu e ter-ra. Este casamento permanece no vinho, que nos é dadopelo fruto da videira, no qual a força nutritiva da terra e osol do céu aliam-se e conjugam-se [...]. A dádiva do verterdá de beber aos mortais. Aplaca a sua sede. Anima o seudescanso. Alegra as suas reuniões. Mas a dádiva do cântaroé, às vezes, ofertada também em consagração. Se o vertertem esse sentido de consagração, ele não aplaca uma sede.Aquieta a festividade da festa, solenizando-a. Neste caso, adádiva do verter não ocorre numa hospedaria, nem a ofe-renda é uma bebida para os mortais. O que é vertido é a be-bida ofertada aos deuses imortais”.130

Deixando de lado alguns fastidiosos jogos lingüísti-cos e conceituais, o significado do discurso heideggerianoé que as coisas têm uma pluralidade de sentidos, incorpo-ram relações sociais e naturais, absorvem uma pátina mí-tica, um valor simbólico que não é reduzível ao valor deuso ou a esquemas cognitivos. No cântaro escuro da Fran-cônia, onde está representada a figura de um homem bar-budo, Bloch havia procurado a marca da história e da tra-dição popular: nele havia distinguido a imagem dos cân-

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130. M. Heidegger, “La cosa”, in: Saggi e discorsi, cit.,p. 114.

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taros romanos baratos, usados pelos legionários, e que noNorte tornaram-se mais soldadescos e mais grosseiros.Havia visto a sombra das insígnias das hospedarias (a dosvivos e, segundo as fábulas, a dos mortos) com o barbudoselvagem. Heidegger, pelo contrário, – como Bachelardde a Psychologie du feu ou de La Flamme d’une chandelle –procura nas coisas que nos são familiares os significadosrecalcados pela pressão do pensamento técnico-científicoe que se conservam, latentes e enfraquecidos, no mito (osvalores simbólicos do fogo, o prazer de olhá-lo, o seu ca-lor diferente daquele do vapor). Não se trata, porém, dereencontrar os objetos tais como eles aparecem no esque-cimento, como objetos em desuso, sem serventia, nãofuncionais, como é o Odradek de Kafka na interpretaçãode Walter Benjamin131: Odradeck, que, à primeira vista“se apresenta como um carretel achatado, em forma de es-trela, que parece ter fio em volta”, que pode estar “segun-do os casos, na água furtada, nas escadas, nos corredores,na entrada, que às vezes “se torna invisível durante me-ses, talvez tenha passado para outras casas; mas invaria-velmene volta a nós”, é o que perdeu o seu sentido e con-tudo resiste ainda, tem uma obstinada duração (é a figu-ra mesma do “pai de família” para Kafka?): “Em vão mepergunto o que será dele. Pode morrer? Tudo o que mor-re, teve um objetivo, uma atividade que o fez gastar-se;mas não é o caso de Odradeck. Ou não irá, por acaso, umdia rolar ainda pela escada, diante dos pés dos meus filhose dos filhos dos meus filhos, arrastando um pedacinho defio? É evidente que não cria problema para ninguém:

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131. Cf. W. Benjamin, “Franz Kafka”, in: Angelus Novus,Einaudi, Turin, 1962, p. 282.

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contudo, quase me faz mal, a idéia de que me deva sobre-viver”.132 Para Heidegger é preciso, pelo contrário, sub-trair as coisas do esquecimento da metafísica, abri-las no-vamente a um diálogo, dar voz à sua alteridade, refundarseu sentido, torná-las por meio da linguagem, encruzi-lhada de relações, suportes de uma possível experiênciadiversa, não manipulada.

Wittgenstein: a linguagem e o mundo

Tal como as últimas pesquisas de Heidegger, toda afilosofia de Wittgenstein gira em torno da linguagem e darelação linguagem-mundo. No Tractatus logico-philosophi-cus (em que confluem de modo original os resultados dasreflexões sobre a obra de Frege, de Russel, de Whitehead,de Moore) o mundo é “a totalidade dos fatos”, que sãoconstituídos por outros fatos elementares ou “estados decoisas”, os quais, por sua vez, são formados de objetos, en-tes, coisas, não passíveis de decomposição ulterior. A lin-guagem é a totalidade das proposições e a proposição é oreconhecimento de um estado de coisas que – sendo a pro-posição sensata e sem um caráter lógico exclusivo – temem comum com o estado de coisas uma relação estrutural,uma das possíveis formas de combinação dos objetos. Há,pois, um isomorfismo entre linguagem e mundo e a for-ma persiste através de possíveis transformações e proje-ções: “O disco fonográfico, o pensamento musical, a nota-ção musical, as ondas sonoras, todas estão uma com a ou-tra naquela relação interna de reconhecimento que subsis-

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132. F. Kafka, Racconti, Feltrinelli, Milão, 1964, p. 147-8.

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te entre linguagem e mundo. A todas elas é comum a es-trutura lógica [...]. Na existência de uma regra geral –mediante a qual o músico pode extrair da partitura a sin-fonia; mediante a qual pode-se derivar do sulco do disco asinfonia e novamente, segundo a primeira regra, a parti-tura – precisamente aí reside a ulterior semelhança dessasconformações, aparentemente tão diversas. E essa regra é alei da projeção, a lei que projeta a sinfonia na linguagemdas notas. Ela é a regra da tradução das notas na lingua-gem do disco fonográfico”.133

A linguagem é, portanto, semelhante a uma “grafiahieroglífica”, que representa os fatos que descreve”134 e quese conserva como tal, em sentido representativo, mesmoquando se torna alfabética. As imagens, porém, não são acópia de um fato, mas um fato em si mesmo. Os fatos sãoindependentes uns dos outros, daí porque não só toda indu-ção é impossível, mas também “a crença no nexo causal é su-perstição”.135 Da esfera dos fatos, da mera existência, para a dalógica não há passagem. As proposições da lógica, assimcomo as da matemática, são certamente necessárias – dadoque “fora da lógica tudo é acidente”136 – mas apenas porquesão tautológicas, não dizem nada do mundo. O enunciado“Chove ou não chove” é incondicionalmente verdadeiro, aopasso que um enunciado que contém uma contradição lógi-ca (por exemplo: “Todos os solteiros são casados”) é incon-dicionalmente falso. Mas nem a forma lógica da linguagem,nem o seu isomorfismo com o mundo são exprimíveis. So-

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133. L. Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, Einau-di, Turin, 1964, 4.014, 4.0141.134. Ibid., 4.016.135. Ibid., 5.1361.136. Ibid., 6.3.

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mente é possível mostrá-los, como condições formalmentenecessárias à nossa linguagem, uma linguagem cujos lim-ites não podemos transcender. Existe, portanto, o inefável,o “místico”, o que está além dos fatos (que dizem respeitounicamente a como o mundo é): “Não como o mundo é, é omístico, mas que ele é”.137 Disso nada se pode dizer e, segun-do a famosa proposição conclusiva do Tractatus, “Sobre oque não se pode falar, deve-se calar”. Mas aquém do “místi-co” temos não só o dever de falar, mas de falar corretamen-te. Sucede, porém, que emaranhamo-nos nas regras da nos-sa própria linguagem, confundimo-nos e formulamosproposições que não são significantes. Ou seja, para Witt-genstein (que desenvolve aqui uma distinção tradicional:entre verdade de razão e verdade de fato em Leibniz, entrerelações de idéias e relações de fatos em Hume e entre juí-zos analíticos e juízos sintéticos em Kant), há proposiçõesque não são nem tautológicas, nem empiricamente verificá-veis. A filosofia torna-se, nessas condições, uma atividadeque tem por tarefa traçar o perímetro da área da linguagemsignificante e esclarecer a lógica do pensamento, eliminan-do as expressões confusas e sem sentido.

Depois da publicação do Tractatus, Wittgenstein –que acreditava não ter mais nada a dizer, tendo atingidoos confins da sua linguagem e do seu mundo – fechou-secoerentemente num longo silêncio filosófico, trabalhandoalguns anos como professor primário, arquiteto e, por al-guns meses, também como ajudante-jardineiro num con-vento. Mas, depois, justamente a sua atividade com ascrianças e as discussões com o lógico inglês Ramsey con-venceram-no a modificar a sua fundamentação teórica pre-

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137. Ibid., 6.44.

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cedente de explicação da linguagem e sua relação com omundo. O ensino numa escola elementar levou-o a redes-cobrir a linguagem comum nos seus mecanismos maissimples de aprendizagem e de uso, enquanto que as inu-meráveis conversações com Ramsey revelaram-lhe como alinguagem está pragmaticamente conectada com contex-tos extralingüísticos de comportamento, de crenças, deexpectativas. A partir das Observações filosóficas de 1929-30, Wittgenstein desatrela a sua análise da pesquisa deuma linguagem em si mesma perfeitamente significativae volta-se para o estudo dos “jogos lingüísticos”, das di-versas práticas lingüísticas, aprendidas pelo uso ou ades-tramento e organizadas segundo regras flexíveis, que con-servam em torno de si um halo de indeterminação, masque são declináveis num número de modos virtualmenteinfinito. Nas Pesquisas filosóficas, em particular, procuradistinguir os diversos jogos lingüísticos (por exemplo:“Elaborar uma hipótese e pô-la à prova – Representar osresultados de um experimento mediante tabelas e diagra-mas – Inventar uma história; e lê-la – Recitar no teatro– Cantar em roda – Escolher enigmas – Fazer uma pia-da; contá-la – Resolver um problema de aritmética apli-cada – Traduzir de uma língua para outra – Pedir, agra-decer, imprecar, saudar, orar”)138 sem reduzi-los a uma uni-dade mítica, mas vendo-os como ligados por simples se-melhanças; “Ao invés de mostrar o que é comum a tudo oque chamamos linguagem, digo que esses fenômenos nãotêm, em absoluto, alguma coisa em comum, com base naqual empregamos para todos a mesma palavra, – mas que

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138. Id., Ricerche filosofiche, Einaudi, Turin, 1967, I, § 223,p. 22.

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são aparentados uns com os outros de muitos modos dife-rentes. E graças a esta parentela, ou a estas parentelas, atodos eles chamamos ‘linguagens’”.139

Por meio de uma investigação propositadamente hu-milde, circunscrita freqüentemente ao âmbito do cotidiano,ao exame das situações concretas da vida associativa, Witt-genstein recusa a existência de uma lógica rígida e exata,como se fosse uma espécie de destilado da nossa linguagemou uma regra de todas as regras, uma “superordem” capazde subsumir todas as ordens. Se a linguagem não é, de fatoum todo homogêneo; e se denominar – “como se fosse umbatismo do objeto”140 – não é uma função exclusivamentesua; se o significado não se encontra de maneira natural eoculta fixado no ponto estabelecido, nem exprime a essên-cia do objeto (mas está em relação com um jogo lingüísti-co, uma prática social, uma “forma de vida”), então, a lógi-ca não é alguma coisa escondida por trás da linguagem, oseu fundamento, como se fosse a plataforma desse continen-te, mas uma série de paradigmas, de modelos gramaticaisentre eles aparentados e imanentes aos jogos lingüísticos.Por isso, na lógica não há nada a ser construído, nem nadade novo a ser aprendido, porque tudo já está diante de nos-sos olhos (também Hegel dizia, numa outra perspectiva,que se tratava justamente de conhecer o que era conhecido).Mas sem uma lógica compacta todo raciocínio não perde,talvez, o seu rigor? Não, porque o que seria a “pureza cris-talina” da lógica é um preconceito que “pode ser eliminadosomente fazendo-se girar todas as nossas considerações. (Po-der-se-ia dizer: A consideração deve ser girada, mas em vol-

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139. Ibid., I, § 65, p. 46.140. Ibid., I, § 38, p. 31.

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ta do eixo de nossa necessidade real)”.141 E a nossa necessi-dade real varia com as nossas exigências, segundo o objeti-vo que nos prefixamos. Podemos, assim, normalmente noscontentar com uma certa margem de incerteza, mas há si-tuações em que se requer maior precisão e então nasce a exi-gência da exatidão, da precisão, da lógica. Mas: “‘Inexato’ épropriamente uma repreensão, e ‘exato’, um elogio. E issoquer dizer: o que é inexato não atinge seu objetivo tão pe-feitamente como o que é mais exato. Tudo depende, portan-to, do que chamamos ‘o objetivo’”.142

Avançando muito nessa exigência de rigor, de exatidão,fetichizando-a, chegamos à lógica pura, essencialista, que en-canta o nosso intelecto e o induz ao erro: “Terminamos sobreuma placa de gelo onde falta o atrito e por isso as condições sãoem certo sentido ideais, mas justamente por isso, não podemosnos mover. Queremos caminhar; temos, pois, necessidade doatrito. Voltemos para o terreno áspero!”.143 Se a lógica não émais separável das regras de uma multiplicidade de jogos lin-güísticos, se a linguagem comum não é um princípio separadodo princípio científico, nem mesmo os dados observáveis sãopassíveis de serem cindidos do pensamento. Por meio de umasugestiva reflexão sobre temas gestaltísticos (que será justa-mente retomada em chave antineopositivista por Hanson eToulmin), Wittgenstein mostra como não existe uma “percep-ção imaculada”, neutra e puramente passiva, ou seja, como a re-lação entre a coisa e o olhar não é análoga àquela entre o origi-nal e a cópia, mas como no perceber existe um “pensamentoque ecoa no ver”144, um ver sempre carregado de teoria.

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141. Ibid., I, § 108, p. 65.142. Ibid., I, § 88, p. 59.143. Ibid., I, § 107, p. 65.144. Ibid., II, p. 290.

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Sartre: o olhar do outro

Em Sartre a temática psicologizante francesa (de Ri-bot a Bergson, passando por Janet) e os aportes da fenome-nologia husserliana e do primeiro Heidegger, encontrando-se com as filosofias de Hegel e de Marx, dão lugar a um dosenxertos culturais mais representativos deste século. A des-coberta de Husserl da consciência como “resíduo” irredu-tível, transcendente, não reificável, é relativizada. Sartre,que em Paris seguiu as lições de Kojève sobre a Fenomeno-logia do espírito de Hegel – em particular sobre a “luta peloreconhecimento” e sobre a relação senhor-escravo –, intro-duz no âmbito da consciência e da visão um elemento con-flitual. Somente uma outra consciência, o olhar de um ou-tro indivíduo, pode reificar a consciência, pode solidificarseu fluxo.

Mesmo sem ter seguido os cursos de Kojève, uma po-sição análoga, mas mais radical, terá Simone Weil. L’Iliadeou le poème de la force é um ensaio exemplar no qual se exa-mina, de um outro ângulo, o tema nela recorrente da domi-nação da necessidade e da opressão que torna a liberdadehumana prisioneira de condicionamentos insuperáveis.Qual protagonista sem rosto dos eventos narrados, Homero– equânime diante dos vencedores e dos vencidos – coloca,justamente, em cena a própria força, “que faz de todos quea ela estão submetidos uma coisa”. Pois, ao final, não há di-ferença entre quem está em condição de infligir a morte aosoutros, acreditando-se, com isso, livre e quem, ao contrário,sofre a morte, transformando-se em coisa, em cadáver.Aquiles (que “degola doze adolescentes troianos sobre a pirade Pátrocles, com tal naturalidade como se estivesse cortan-do as flores para um túmulo”) não escapará ao destino co-

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mum da morte, única e inexorável vencedora. Embora nosiludamos de poder manejá-la, a força, de fato, somente podeser sofrida. O destino de quem mata é o de ser morto porsua vez. O homem acha-se, assim, suspenso entre a perspec-tiva real de sucumbir à necessidade biológica e o desejo,destinado a fracassar, de erguer-se para a liberdade. No es-paço vazio entre estas duas condições, testemunhas invo-luntárias são as que conhecem a experiência da desventura,todos os que “sem morrer tornaram-se coisas por todo o cur-so de suas vidas”.145 Tal como todos os desventurados da his-tória, nisso semelhantes aos operários das fábricas moder-nas, os Troianos derrotados e encaminhados à servidão co-nhecem a essência da força e dão-se conta da impossibilida-de de superá-la. Simone Weil, que quis viver, de fato, aexistência anônima dos desafortunados, sabe, por meio de-les, que “o grande enigma da vida humana não é o sofri-mento, é a desventura. Não há por que pasmar-se que ino-centes tenham sido mortos, torturados, expulsos da própriaterra, reduzidos à miséria ou a escravidão, levados para ocampo de concentração ou para o cárcere, dado que existemos criminosos capazes de realizar tais ações”.146

Em Sartre, a dominação das coisas é menos trágica,tem êxitos menos letais. Ao olhar o mundo, eu me abando-no a ele, deixo-me absorver pelas coisas “como a tinta pelomata-borrão”. Mas eis que, de repente, o olhar do outro des-poja-me do meu mundo: posso captar o verde da grama quevejo, mas não vejo o verde como aparece a um outro. Algu-

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145. Cf. S. Weil, “L’Iliade ou le poème de la force” (1940-41), in: Oeuvres complètes, Gallimard, Paris 1988 s., I, II, III(1989), p. 227-53, em particular p. 227, 236, 231.146. Id., Attente de Dieu (1942), La Colombe, Paris 1949,p. 87.

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ma coisa me escapa, alguma coisa de inquietante que limi-ta a minha liberdade. É “como se o mundo tivesse um furode escoamento, no centro do seu ser, e que ele escoasse con-tinuamente nesse buraco”.147 Em Sartre, o outro é semprevivenciado como antagonista, símbolo do perigo, como oinferno, como aquele que, objetivando-me a mim mesmo,remete-me a mim mesmo: “Quando sinto o rangido dos ra-mos atrás de mim, não experimento a sensação de que hajaalguém, mas a de que sou vulnerável, que tenho um corpoque pode ser ferido, que ocupo um lugar e que não posso,em nenhum caso, evadir-me do espaço no qual estou semdefesa, em breve, que sou visto. Assim, o olhar é antes demais nada um intermediário que me remete a mim mes-mo”.148 Se me imagino, por ciúme, interesse ou vício,olhando pelo “buraco de uma fechadura” e um outro mesurpreende, volto a mim envergonhado, nesse caso, o olhardo outro é “a minha transcendência transcendida”.149

Em Sartre, exprime-se a experiência de vida cotidianadas metrópoles, com os seus metrôs, ônibus, as condutas so-litárias dos individuos na multidão, sua desintegração ace-lerada nos anos entre as guerras, o seu ser “abandonado sobmilhões de olhares”. Poder-se-ia dizer, como um dos prota-gonistas do romance Le Sursis, que o olhar do outro, alémde perturbador, é a garantia da minha existência, o teste-munho de que não sou uma nulidade, de que sirvo para al-guma coisa: “Você certamente experimentou, no metrô, noreservado de um teatro, no trem, aquela sensação imprevis-ta e insuportável de ser espionado pelas costas. Você se vol-ta, mas já o curioso abaixou o nariz sobre seu livro [...]. Di-

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147. J.P. Sartre, L’Être et le Néant, (1943), Gallimard.148. Ibid., p. 328.149. Ibid., p. 333.

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zer-te o que é aquele olhar é muito fácil: porque não é nada,é uma ausência; imagine, agora, a noite mais escura possí-vel de ser imaginada. É a noite que te olha. Mas uma noiteofuscante; a noite em plena luz; a noite secreta da claridadediurna. Estou umedecido de luz negra [...]. Que angústiadescobrir, de repente, aquele olhar como um centro univer-sal do qual não posso escapar. Mas que repouso, também!Sei, enfim, que existo. Transformo para meu uso e para a tuamaior indignação a palavra imbecil e criminosa do vossoprofeta, aquele “penso, logo existo” que tanto me fez sofrer– porque mais pensava e menos me parecia existir – e digo:sou visto, então existo. Não tenho mais que suportar a res-ponsabilidade do meu viscoso dissolver-me: aquele que mevê, faz-me ser; sou como ele me vê”.150

Mais tarde, em Saint Genet, comédien et martyr (1952),a temática do olhar irá assumir uma dimensão mais direta-mente social e política e particularizar-se como atribuiçãode papéis e função culpabilizante que a sociedade se atri-bui. Genet, o futuro ladrão e escritor, filho de N.N., é fe-chado num orfanato e depois adotado por uma família decamponeses. Ele não é ninguém e procura, quase em delí-rio e no jogo, ser por meio do haver: “A criança brincavana cozinha; de repente, percebeu sua própria solidão e,como de costume, ficou angustiada. Então, ‘arredou-se’.Uma vez mais; imergiu numa espécie de êxtase. Agora nãohá mais ninguém no aposento: uma consciência abandona-da reflete alguns utensílios. Eis que uma gaveta se abre;uma mãozinha alonga-se... Pega com a boca na botija: al-guém entrou e olha-a. Sob este olhar a criança volta a si.

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150. Id., Le Sursis; em italiano Il rinvio, Mondadori, Milão,1973, p. 384-5.

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Não era ninguém ainda, torna-se de repente Jean Genet[...]. Uma voz declara publicamente: ‘Você é um ladrão’.Ela tem dez anos”.151 A sociedade objetivou-a e catalogou-a, transformando uma criança num monstro.

Complementar ao olhar, à percepção objetivante, é otema da imaginação. A imagem não é um pequeno simu-lacro da coisa percebida, mas é husserlianamente um mododiverso de intencionalizar o próprio objeto da percepção.Em que aspecto dela se diferencia, então?

“Consideremos esta folha de papel, pousada sobre amesa. Quanto mais a olhamos, mais nos revela as suas par-ticularidades. Toda nova orientação da minha atenção, daminha análise, me faz descobrir um novo particular: a bor-da superior da folha está ligeiramente levantada; na tercei-ra risca, a linha contínua acaba apenas pontuada... etc. Ora,posso ter sob o meu olhar uma imagem por todo o tempoque eu quero: não poderei nunca encontrar nada além da-quilo que ali coloquei”.152 O objeto percebido apresenta-se,além do mais, numa infinidade de escorços, ao passo que aimagem é única e pobre. O ato da imaginação parte deuma ausência, de uma lacuna real observada no mundo,que procura preencher por meio de uma operação mágica,de evocação: “É um encantamento destinado a fazer apare-cer o objeto pensado, a coisa desejada, de maneira a permi-tir sua posse. Em tal ato, há sempre algo de imperioso e deinfantil, uma recusa a aceitar distanciamentos, dificulda-des. Assim, a criança, em sua cama, age sobre o mundo pormeio de ordens e de orações. A essas ordens da consciência

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151. Id., em italiano Santo Genet, commediante e martire, IlSaggiatore, Milão, 1972, p. 18.152. Id., L’immaginaire, (1940) Gallimard.

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os objetos obedecem: aparecem”.153 Por meio da imagina-ção introduzo o nada no mundo: o mundo do imaginário éum nada posto como ser ou um ser posto como nada. Aimaginação não é um remendo de pedaços extraídos da rea-lidade perceptível, mas uma região onde vejo as falhas doreal e procuro fechá-las mediante o desejo: “o aparecimen-to de um amigo morto, como real, ocorre na perspectiva daapreensão afetiva do real como mundo vazio desse ponto devista”.154 O imaginário me abre, pois, frestas de liberdade,me permite olhar os vazios na perspectiva da plenitude doreal, de especificar as possibilidades de mudá-lo. Coloca-me diante da angústia da minha liberdade como autodeter-minação e ausência de fundamento ontológico.

No período “existencialista” da produção de Sartre, oindivíduo está só, diante de suas opções, isolado num uni-verso social essencialmente hostil. A seguir, quando o en-volvimento político faz-se mais direto (com a oposição aostalinismo e ao colonialismo) e mais decisiva a aproxima-ção do pensamento de Marx, Sartre tentará uma mediaçãoentre indivíduo e sociedade, sem todavia pressupor solu-ções harmônicas. Com Stalin, o marxismo tornou-se rígidoe petrificado, burocrático e opressivo na prática, catequis-ta e voluntarista na teoria. No seu idealismo, que pretendeadequar a priori a realidade a um esquema doutrinário, ostalinismo violenta a verdade e a experiência concreta: “Ometrô de Budapest era real na cabeça de Rákosi; se o sub-solo de Budapest não permitia sua construção, isso signifi-cava que o subsolo de Budapest era contra-revolucionário[...]. Anos a fio, o intelectual marxista acreditou servir ao

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153. Ibid., p. 193.154. Ibid., p. 284.

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próprio partido, violando a experiência, deixando de ladoos particulares embaraçosos, simplificando grosseiramenteos dados e, sobretudo. conceitualizando o acontecimentoantes de tê-lo estudado”.155 Nessa ótica, a concretude e a in-dividualidade real dissolvem-se num “banho de ácido sul-fúrico” e o que permanece, o universalismo vazio, faz-sepassar por marxismo ortodoxo. Mas o marxismo não estámorto. Pelo contrário, dado que hegelianamente há apenasuma filosofia viva para cada época, hoje é o marxismo que,para o Sartre dos anos cinqüenta e sessenta, representa ohorizonte de inteligibilidade máxima dos problemas con-temporâneos. Mas para se tornar verdadeiramente real,para eliminar as incrustações stalinistas, ele deve medirforças novamente com a realidade concreta e com a dinâ-mica inovadora da subjetividade; deve, em outros termos,englobar o existencialismo, livrando-o, assim, dos fecha-mentos exasperantemente individualistas e privatistas.Faz-se necessário, portanto, um reconhecimento das formasde vida do presente, do entrecruzamento entre atividadehumana e matéria, da “penúria” que condiciona a existên-cia de todos e impede à maior parte do gênero humano sa-tisfazer as mais elementares necessidades de alimentação esaúde, da co-presença exterior ou da solidariedade substan-cial que se forma entre todos os participantes de uma mes-ma experiência, da “contrafinalidade” pela qual um deter-minado projeto produz efeitos opostos aos previstos, etc.

Também aqui há, no interior de uma fundamentaçãoteórica e histórica mais vasta, uma penetrante fenomenologiada vida cotidiana, em particular das grandes cidades. A ativi-dade humana materializa-se sempre em coisas, em institui-

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155. Id., Critique de la Raison dialectique, Gallimard, 1960.

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ções, que por sua vez retroagem sobre os indivíduos reagru-pando-os, dividindo-os, acrescentando ou tirando seu poder,submetendo-os a regras ou a pressões: “Basta que eu abra a ja-nela: vejo uma igreja, um banco, um café: eis três coletivos;este bilhete de mil francos é um outro coletivo; um outro ain-da o jornal que acabei de comprar”.156 Não há práxis que nãose objetive, nem relação humana que não seja filtrada pelamaterialidade, que às vezes contagia com a sua inércia – como peso de todo o passado de ações alheias ali coaguladas –todo indivíduo (mesmo se isso não quer dizer, como aparecepela minuciosa reconstrução da vida e da obra de Flaubert emL’idiot de la famille, que cada um seja por ele mecanicamentedeterminado). Os objetos, socialmente mediados, por exem-plo, o “ônibus das 7 e 49”, reúnem uma série de indivíduos,estranhos uns aos outros, agrupados somente pela função ma-terializada, neste caso pela espera do “veículo que aparecerána esquina do boulevard”.157 Unicamente em situações excep-cionais, como na tomada da Bastilha ou no assalto ao Paláciode Inverno, os homens juntos reencontram a capacidade detroca e de fuga da inércia, reencontram a solidariedade e tor-nam-se “grupo”. Mas esses momentos “máxima tensão”, es-ses instantes de criação coletiva da história, não duram pormuito tempo e a inércia retoma o predomínio: a burocraciaapodera-se das conquistas revolucionárias e as massas, esgota-das e privadas do poder, retornam à passividade: o grupo de-grada-se novamente em série.

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156. Ibid., I, p. 65.157. Ibid., I. 387.

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Laing e Bateson: os nós inextricáveis

Todos esses temas sartreanos encontraram ressonânciatambém fora do âmbito filosófico: em O negro e o outro deFranz Fanon e em O caso de Peter (contido no Eu dividido) deLaing, no que diz respeito à objetivação por meio do olhar;em Laing, Cooper, Esterson, e em geral no movimento da“antipsiquiatria” anglo-saxônica, no que diz respeito àetiologia familiar da esquizofrenia (e, mais em geral, ao ca-ráter patogênico das instituições sociais), em que atuam ascategorias sartrianas de “identidade alterada”, “má-fé”, “se-rialização” e “grupo familiar” (Laing e Cooper, além disso,escreveram um livro sobre Sartre, Razão e Violência). É in-teressante notar como a problemática existencialista, quehavia aguçado a inteligência mais ativa nos anos entre asduas guerras e no imediato segundo pós-guerra, forneceagora instrumentos à política dos países saídos do colonia-lismo e à psiquiatria, ou seja, continuando a agir onde ohomem está mais devastado.

É, justamente, o conceito de “identidade alterada”que proporciona a Laing e a Esterson a chave principalpara interpretar a esquizofrenia. O Outro, cujo juízo in-teriorizo, fende o eixo sobre o qual ergo a minha identi-dade, a imagem “que carrego” de mim mesmo e que mesustenta no meu próprio projeto de existência, o mais dasvezes implícito.158 Toda vez que a desorientação produzi-

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158. Cf. A. Esterson, The Leaves of Spring. A Study in theDialectic of Madness, Londres, Tavistock, 1970: “Por exem-plo, João se considera um homem afetuoso e amigável e vêque Jaime o considera frio e reservado. Se João se identifi-ca com a opinião que Jaime tem dele, sua identidade estásignificativamante alterada”.

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da pela alteração da identidade é tão desequilibrante aponto de me obrigar a duvidar radicalmente de mimmesmo, de introduzir uma cunha entre os meus pensa-mentos, percepções, sentimentos e os que os outros meatribuem, eis que pode surgir a loucura. Tomemos umexemplo, entre os tantos analisados. Dentro da famíliaDanzig, a jovem Sara – a partir da idade de dezessete anos– começa a dar sinais de comportamento estranho: passao dia inteiro na cama, para depois ler a Bíblia durante anoite. Tal atitude, na aparência incompreensível e absur-da, desvela ao final o significado dos sintomas, ou seja, aexpressão da sua combatida hostilidade frente ao seu pai,precedentemente idealizado. A declarada descoberta deque ele não é, de fato, o homem de límpida e escrupulo-sa honestidade em que havia acreditado, provoca a culpa-bilização da garota por parte da família, que pode, aocontrário, impunemente e sem remorsos, falar mal dele.O irmão John é até mesmo encorajado pela mãe a ver opai “como é na realidade” (ou seja, a criticá-lo asperamen-te), enquanto a Sara este comportamento é rigorosamen-te interdito. A garota caiu e sem saber mais como sair daviscosa teia de aranha das perversas relações familiares edas invejosas recriminações recíprocas, permanece isola-da, excluída de todas as combinações, contestada, fora dojogo. Procurando dar um sentido à sua “desconcertante”situação – à descoberta de que os familiares observamuma “dupla moral”, considerando oficialmente falsoaquilo que depois, em particular, sustentam ser verdadei-ro –, extravia-se e cai na doença.

A loucura é uma fuga em busca de soluções, é “a estra-tégia especial que uma pessoa inventa com o objetivo de viver numasituação na qual não pode viver”. O doente mental aparece as-

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sim como um “desterrado do Ser”159, um viajante que pene-trou mais a fundo que outros em territórios inexplorados,dos quais muitos se retiram com medo. Pois, em geral, es-conde-se-nos que a vida pode ser tremenda, cruel, sem sen-tido, inefavelmente dolorosa. Laing, que trabalhou pormuito tempo em hospitais, traz alguns testemunhos arrasa-dores das suas experiências clínicas. A primeira ilustra a fra-gilidade de uma existência indefesa, assaltada por cega e de-voradora força destrutiva: “Tinha dez anos e sofria de hidro-cefalia, devido a um tumor inoperável do tamanho de umaminúscula ervilha, justo no lugar certo para deter o defluxodo líquido espinho-cerebral na cabeça, o que é o mesmo quedizer que tinha água no cérebro, que fazia explodir a cabe-ça, tanto que o cérebro se reduzia cada vez mais a uma su-til camada externa, e isso acontecia também com os ossos docrânio. Sofria sem remédio [...]. Tinha começado a ler O cír-culo Pickwick. Disse-me que tudo o que pedia a Deus era quelhe fosse consentido terminar este livro antes de morrer.Morreu antes de chegar na metade”.160

A segunda toca no puro horror do viver: “Estávamosassistindo ao nascimento de uma criança e as coisas se pro-longaram por dezesseis horas. Finalmente começou a sair,cinza, frio... saiu... uma grossa rã humana, um monstro ana-céfalo, sem pescoço, sem cabeça, com olhos, nariz, boca derã, braços longos... O envolvemos em papel jornal... paralevá-lo ao laboratório de patologia, e com este embrulho de-baixo do braço – que parecia invocar todas as possíveis per-guntas que me havia colocado – caminhava, duas ou três

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159. R.D. Laing, The Politics of Experience and the Bird ofParadise, Londres, 1967.160. Ibid., p. 177-8.

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horas mais tarde, por O’Connel Street. Tinha necessidadede beber alguma coisa. Entrei num bar e apoiei o embrulhosobre o banco. E de repente me deu vontade de tirá-lo dopapel, de levantá-lo para que todos o vissem, espantosa ca-beça de Gorgona para petrificar o mundo”.161

Desse abismo, como que para esquecê-lo, surgem asmodalidades de domesticação da angústia, da “insegurançaontológica” que a todos atormenta: ligações pessoais contor-cidas, simetrias e assimetrias nas relações humanas, proje-ções alucinatórias das imagens de si e dos outros, prisõespsíquicas mortificantes, armadilhas banais, mas inelutáveisde que a existência é cheia. Os próprios conflitos tornam-se,paradoxalmente, tanto mais inextricáveis, quanto mais sevoltam para um “sistema do falso eu”, para uma “normali-dade” imposta, de fachada: “Maria pensa que João é mesqui-nho e incontentável / João pensa que Maria é mesquinha eincontentável / quanto mais Maria considera que João é mes-quinho / mais João considera que Maria é incontentável /quanto mais João considera que Maria é mesquinha [...]”.162

Difícil, sempre, é manter a coesão harmônica das re-lações interpessoais, estabelecendo regras de conduta quenão levem a becos sem saída ou que não implodam. Comomostra a antropologia e a “nova teoria da comunicação” –Bateson, Goffman, Watzlawick, Hall -, as normas sãosempre insidiadas por tendências internas “cismogenéti-cas”, por um movimento quase tectônico de diferenciaçãoque tende a esmigalhá-las, a transmiti-las distorcidas, ainvalidá-las, a colocá-las em contradição consigo mesmas,a estabelecer relações de “dupla vinculação” (double bind,

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161. Ibid., p. 178.162. Id., Knots (1970).

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ou seja, situações sem saída, que reproduzem o conflito,como no caso do alcoolizado que, depois de prometer so-lenemente a si mesmo de não beber mais, chega no fim auma tensão psíquica intolerável, que o faz recair no atoque queria evitar, além de, depois, arrepender-se comigual força e recomeçar outra vez o ciclo). Algumas socie-dades como a balinesa, examinada por Gregory Bateson epor Margaret Mead163, são todavia capazes, mediante umadestramento que se inicia na infância, de congelar os con-flitos num determinado estágio, eludindo a alternativaentre logos e polemos. As mães, ao tratar de seus filhos, al-ternam efetivamente – com mudanças repentinas e inex-plicáveis – a mais doce ternura com a mais marmórea in-diferença, a carícia quente com o distanciamento glacial.Esse tipo de ducha escocesa psíquica desorienta as criançase desativa a sua participação emotiva nos comportamentosalheios, habituando-as a não sentir nem fortes hostilidadesnem fortes ligações. Desta maneira, os conflitos natural-mente permanecem, mas não se procura para eles nemuma situação razoável, nem uma situação violenta. Oscontenciosos são simplesmente acantonados, delegados aum árbitro externo: a outros rapazes, pessoas de prestígiodo lugar ou, até à ocupação japonesa de 1941, ao pobregovernador britânico, constrangido a dirimir os mais es-pinhosos litígios entre os notáveis.

Do duplo vínculo pode-se sair somente de maneira in-ventiva, reconsiderando as situações, criando instrumentos ca-pazes de quebrá-lo, ou seja, de desbloquear ou contornando

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163. Cf. G. Bateson - M. Mead, Balinese Charachter. A Pho-tographic Analysis, The New York Academy of Sciences,New York, 1942; o volume está provido de cerca de 700fotografias.

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obstáculos que parecem normalmente intransponíveis. Exem-plo eficaz de reenquadramento é o expresso numa anedota tor-nada célebre entre os psicólogos por Watzlawick. A um oficialchega a ordem para desimpedir a praça durante uma revolta.Dirige-se assim ao lugar e proclama: “Senhoras e senhores, re-cebi ordem de atirar sobre os canalhas. Mas, como vejo dian-te de mim muitos cidadãos honestos e respeitáveis, peço-lhespara se retirarem a fim de que eu possa atirar sem risco sobreos canalhas”.164 A change, a inovação, é um ato de audácia, quedesestabiliza um sistema fechado ou reformula uma situaçãofossilizada e cheia de tensões. A teoria da dupla vinculação,que “se ocupa do componente de experiência dos emaranha-dos que se formam nas regras ou premissas do hábito”, permi-te desatar os nós promovendo a sua “transcontextualização”,ou seja, o abandono das posições colocadas numa moldura quetornava impossível seu desbloqueio.165

Merleau-Ponty: a toalha branca

A atenção e, dir-se-ia, a obsessão do ver, da espaciali-dade, da corporeidade, que constituíam um dos aspectos dafenomenologia husserliana, são enfatizadas em alguns seto-res da cultura francesa, também como reação ao privilégioconcedido por Bergson e pelo espiritualismo à temporali-dade e à interioridade. Toma-se consciência que a rex exten-sa não é separável da res cogitans, nem representa, por si

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164. Este e outros exemplos in P. Watzlawick, J. H. Bea-vin, D. D. Jackson, Change (1974), Atrolabio, Roma,1978.165. Bateson, Steps to an Ecology of Mind, San Francisco,Chandler, 1972.

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mesma, um mal, um desvalor; que o corpo não é a prisãoda alma, mas, pelo contrário, é “a alma, prisão do corpo”.166

A essa tendência pertencem, a título diverso, Merleau-Ponty e Foucault. Em Maurice Merleau-Ponty, amigo e co-laborador de Sartre na direção da revista “Temps moder-nes”, há o esforço para restituir, por meio do exame da cor-poreidade e das suas relações, um novo ar à vida percepti-va, uma profundidade de campo e uma pluralidade de sen-tidos que o redutivismo de tipo mecanicista e naturalistalhe haviam feito perder. Olhar diversamente, olhar mais afundo, descobrir a interseção dos corpos, das formas, dascores, para além do habitual: a tudo isso dá acesso à Feno-menologia da percepção. Mas também a arte permite-nos essemergulho, como aparece no breve e denso ensaio A dúvidade Cézanne. O pintor conta ter tido a vida toda o desejo depintar o que Balzac havia descrito em Peau du chagrin: uma“toalha branca como um estrato de neve recém-caída e so-bre a qual estavam dispostos os talheres rodeados de pãe-zinhos dourados”. Mas como fazer? Se os objetos foremcingidos completamente em seu conteúdo puro, somosfiéis à geometria, mas não ao mundo visível, no qual o con-torno é o limite ideal em cuja direção os lados fogem emprofundidade. Mas não estabelecer nenhum contorno, en-volver, como os Impressionistas, os objetos num “invólucroluminoso”, utilizando somente as sete cores do prisma eobtendo a vibração da cor local com o acréscimo da sua corcomplementar, significa retirar do objeto o peso e a mate-rialidade que lhe são próprios: “Não assinalar nenhum con-torno significaria tolher dos objetos a sua identidade. As-

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166. M. Foucault, Surveiller et punir, naissance de la prison,Gallimard, 1975.

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sinalar um somente, significaria sacrificar a profundidade,ou seja, a dimensão que nos dá a coisa, não como exibidadiante de nós, mas como cheia de reservas e como realida-de inexaurível. Eis por que Cézanne perseguirá numa mo-dulação colorida o inchamento do objeto e assinalará comtraços azulados muitos contornos. O olhar, remetido de uma outro, percebe um contorno nascente entre todos elescomo faz na percepção”.167

Não se pode, além disso, confiar mais na perspectivageométrica ou fotográfica, porque na percepção real “os obje-tos próximos parecem menores, e os objetos afastados maio-res, ao contrário de uma fotografia, como se pode observar nocinema quando um trem se aproxima e engrandece muitomais rapidamente do que um trem real nas mesmas condi-ções.”.168 Por isso, as deformações de perspectiva nos quadrosde Cézanne (a mesa enviesada com a “toalha branca como umestrato de neve recém-caída”) são menos arbitrárias do que secrê e ficam, de toda maneira, reequilibradas no conjunto,dando a quem olha para elas “a impressão de uma ordem nas-cente, de um objeto que está aparecendo, que está coagulan-do-se sob os nossos olhos”.169 O objetivo de Merleau-Ponty éjustamente o de produzir em todo lugar essa impressão de“nascimento prolongado” de um mundo que se separa dasruínas da obviedade perceptível e que quer esquecer, juntocom os seus condicionamentos e os seus esquemas, também ainércia do déjà vu. Tal mundo perdeu a presumida objetivida-de que o pintor deveria se limitar a reproduzir de maneira

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167. M. Merleau-Ponty, “Le doute de Cézanne”, in: Sens etnon-sens (1960), Gallimard.168. Ibid., p. 32.169. Ibid., p. 33.

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mimética, passiva, transformando-se numa película fotográ-fica, casualmente impressionável.

Mas a pintura põe em contato com o real, com o “Sermudo”, com o “visível”, com a imanência das coisas, reve-lando-lhe porém justamente o “invisível”, a incompreensí-vel transcendência, o “fora” do “dentro” e o “dentro” do“fora”. Entra em contato com “um mundo quase louco,porque é completo e parcial ao mesmo tempo [...] desper-ta, leva à sua extrema potência um delírio que é a própriavisão, porque ver é ter à distância, e a pintura estende essaposse bizarra a todos os aspectos do Ser, que devem, de al-gum modo, se tornar visíveis para nela entrar.”170 Por meiodela, o espaço encerra e fixa o tempo no seu fluir, diferen-ciando, escandindo e articulando o Ser indiviso e amorfo.Todo quadro torna-se assim “uma cristalização do tempo,uma cifra da transcendência”.171

Foucault: o olhar do poder e as técnicas do eu

Diversa é a intenção de Foucault ao abordar os mes-mos temas da corporeidade e da espacialidade. Na sua for-mação concentram-se idéias e experiências de várias e com-plexas matrizes: da filosofia de Nietzsche, Heidegger, Ba-taille, Blanchot ou Klossowski à história da medicina e dasinstituições carcerárias e manicômios, da literatura e da se-miótica à polemologia e à economia política, da geografia(esta ciência do espaço que recebeu na França o grande en-sinamento de Vidal de la Blache) à historiografia (sobretu-

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170. Id., L’Oeil et l’Esprit, Gallimard, 1964.171. Id., Le Visible et l’Invisible, Gallimard, 1964.

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do à dos “Annales”, com o seu interesse pela história apa-rentemente menor, afastada dos acontecimentos oficiaiscomo “guerras e batalhas”, e direcionada aos aspectos co-letivos e aos fenômenos de longa duração: história da men-talidade e da sensibilidade, das epidemias, das variaçõesdemográficas, do clima, da paisagem agrária, das roupas,da comida, etc.). Foucault quer justamente reencontrar pormeio da “erudição” e também da pesquisa sobre aconteci-mentos considerados como marginais, a história secreta do“poder” nas suas vastas e infinitas ramificações (um tema,esse do poder, que adquirirá progressivamente um valorexplícito e reconhecido, unificador de todo o campo dassuas pesquisas, seja na forma do “governo” dos outros, sejado “governo” de si.

Na História da loucura na idade clássica, o poder apre-senta-se como racionalidade que tem necessidade da figurado louco, do antagonista, para se impor e delimitar. Odoente mental que na Idade Média – por mais que a sua vi-são fosse perturbadora – continuava a viver no interior dacomunidade, fazendo parte, às vezes, até mesmo de uma es-pécie de corporação, é depois fechado, isolado, ocupandoinicialmente os lazaretos e os edifícios deixados desocupa-dos quando se atenuou a incidência das epidemias. Ele éagora considerado perigoso, porque o seu exemplo de recu-sa das regras do jogo impostas pela “racionalidade” nascen-te é suscetível de contagiar todos os outros descontentes.No Nascimento da clínica é o novo “olhar médico” que é exa-minado, o momento em que a percepção do curante rejuve-nesce, nos últimos decênios do Setecentos, e se começam aver e a exprimir coisas que antes não apareciam. O espaçoperceptivo reestruturou-se, a distribuição do visível e do in-visível modificou-se, as palavras aliaram-se de maneira di-

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versa às coisas. Não se passa, na realidade, de uma medici-na apriorística a uma experimental, de uma bizarra combi-nação de humores e de úmido e seco à leitura atenta dos sin-tomas e à cura eficaz, mas de uma ordem do espaço e do dis-curso a uma outra. Agora, “as formas da racionalidade mé-dica entregam-se ao maravilhoso espessor da percepção, ofe-recendo como primeira cara da verdade a granulosidade dascoisas, a sua cor, as suas manchas, a sua dureza, a sua ade-rência. O espaço da experiência parece se identificar com adominação do olhar atento, da vigilância empírica aberta àevidência dos únicos conteúdos visíveis. O olho torna-se odepositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luzuma verdade que acolhe apenas na medida em que lhe deuvida [...]. No final do século XVIII, ver consiste em deixarà experiência a maior opacidade corpórea; o sólido, o obscu-ro, a densidade das coisas fechadas em si mesmas tem pode-res de verdade que não vem da luz, mas da lentidão do olharque as percorre, contorna e penetra pouco a pouco, nuncatrazendo outra coisa além da própria clareza. A permanên-cia da verdade no núcleo escuro das coisas é paradoxalmen-te ligada a esse poder soberano do olhar empírico que traz àluz a sua noite [...]. A qualidade singular, a impalpável cor,a forma única e transitória, adquirindo o estatuto do obje-to, assumiram o seu peso e a sua solidez. Nenhuma luz po-derá dissolvê-los mais nas verdades ideais; mas a aplicaçãodo olhar, de quando em quando, irá despertá-los e dar-lhesvalor sobre um fundo de objetividade”.172

Da âge classique em diante (a expressão entendida comreferência à história da cultura francesa, a partir de meadosdo Seicentos), uma rede de olhares cobre o mundo: olhares

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172. M. Foucault, Naissance de la clinique, PUF, 1963.

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que se entrecruzam segundo diferentes eixos prospectivos,como no quadro de Velásquez, Las Meninas, por Foucaultanalisado, em As palavras e as coisas, ou então, olhares dis-simétricos de dissociações, como na estrutura carcerária dopanopticon, descrita em Vigiar e punir: “na periferia umaconstrução em anel; no centro uma torre cortada por am-plas janelas que se abrem em direção à face interna do anel;a construção periférica é dividida em celas, que ocupam,cada uma, toda a espessura da construção; elas têm duas ja-nelas, uma para o interior, correspondente à janela da tor-re; a outra para o exterior, que permite à luz atravessar acela de parte a parte [...]. O Panopticon é uma máquina paradissociar o binômio ver-ser visto: no anel periférico é-se to-talmente visto sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo,sem nunca ser visto”.173

O poder segrega, vigia, pune, criminaliza a quem selhe opõe, exercita-se nos lugares humildes mais que no es-plendor das sessões parlamentares ou das cortes: nos dor-mitórios dos manicômios e das casernas, nos corredores doshospitais, nos quartos dos colégios, nas aulas escolares. Elenão trabalha, com efeito, no atacado, irradiando-se de umaúnica cabeça bem caracterizada e por meio de canais detransmissão privilegiados, mas no varejo, de modo “micro-físico”, infiltrando-se e permeando cada dobra da sociedade.E quem o representa não são apenas os grandes personagens,mas uma miríade de homens pequenos e médios e, no limi-te, todos, do médico ao enfermeiro, do burocrata ao subofi-cial, do policial ao professor. E o poder não está sobre, masdentro da sociedade, não se difunde somente por meio daideologia ou do consenso, mas por meio de mil práticas que

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173. Id., Sorvegliare e punire, cit., p. 218-20.

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envolvem o corpo e o espaço. Subdivide minuciosamente oterritório e os ambientes, regula as distâncias entre os indi-víduos, insinua-se por meio da disciplina e da sexualidadeno corpo das pessoas. Na idade feudal o poder pretendia dosindivíduos sinais de fidelidade e procedia à extração de par-te dos seus bens; a partir da idade clássica pedem-se delesprestações produtivas. O corpo deve ser ao mesmo tempopoliticamente mais dócil e economicamente capaz de umrendimento maior. Deve ser mais sensível e mais maleável.

Tem início, assim, (com a economia política, a me-dicina, as “ciências humanas”, etc.) a descoberta do ho-mem, este ser novo, corpóreo, plasmado pelo poder e pelosaber. O poder, com efeito, não está, para Foucault, basea-do na pura repressão, na proibição, no dizer não, na ideo-logia e na falsa consciência. Contra a tradição, contraReich, contra Althusser, ele reivindica a função produti-va do poder, o seu caráter afirmativo, a sua capacidade deproduzir verdade, saber, ciência. Ou melhor, o saber é in-separável do poder e eles geram-se mutuamente: “a ver-dade não está fora do poder, nem é sem poder (ela não é– apesar do mito do qual seria necessário retomar a histó-ria e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o par-to das longas solidões, o privilégio dos que souberam li-bertar-se). A verdade é desse mundo; aí é produzida gra-ças a múltiplas constrições. E dele detém efeitos obriga-dos de poder. Toda sociedade tem o seu regime de verda-de, a sua ‘política geral’ da verdade: ou seja, os tipos dediscursos que acolhe e faz funcionar como verdadeiros; osmecanismos e as instâncias que permitem distinguir osenunciados verdadeiros dos falsos, o modo pelo qual unse outros são sancionados; as técnicas e os procedimentosque são valorizados para se chegar à verdade; o estatuto

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daqueles que têm o encargo de designar o que funcionacomo verdadeiro”.174

Entre “teoria” e “ideologia” não há, pois, a separaçãonítida, a coupure, encontrada por Althusser. Da mesma ma-neira, no plano da sexualidade, o poder não a reprime,como crê Reich, mas dá apenas a impressão de conculcá-la,de penalizá-la. Na realidade, traduzindo-a em discurso, emA vontade do saber, esse mesmo poder eletriza o corpo, sen-sualiza-o, transforma-o em problema continuamente dis-cutido, promove o estudo das sexualidades periféricas e“perversas” unicamente como fase preliminar para progres-sivamente englobá-lo numa sexualidade polimorfa “nor-mal”. Surge um novo tipo de especificação do indivíduoque já está em ação sob a guia de estratégias anônimas,mudas, dispersivas colocadas em ação por biopoderes, ouseja, formas de gestão política da vida, que visam ao con-trole da reprodução e o nexo (já percebido como insepará-vel) da consciência com a corporeidade. Eles não procuramsubtrair os sujeitos da política, deslocar o seu centro degravidade da ágora à alcova, mas de criar um poder “soma-tizado”, capaz de entrar em cada fibra, e de exercer-se so-bre as dinâmicas demográficas. O corpo está enredado nas“espirais perpétuas do poder e do prazer”175, a partir do mes-mo período em que a punição dos delitos não ocorre maispor meio de suplícios cruéis e execuções públicas, mas pormeio de dores mais “felpudas”, de reclusões nos cárceres(que se tornam verdadeiras e próprias fábricas estatais dedelinqüência, um produto do qual o poder tem necessida-de para manter desperto o medo naqueles mesmos que

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174. Id., Microfisica del potere, Einaudi, Turin, p. 25.175. Id., La volonté de savoir, Gallimard, 1994.

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oprime e que são, assim, induzidos a requisitar a sua pro-teção) e da pena de morte cominada sempre mais raramen-te, às escondidas, e de forma instantânea. Nas sociedadesindustriais, de resto, o corpo tem um valor maior do quenas precedentes, onde a morte era, ainda por cima, umapresença mais familiar e menos temida, assoladas que erampela fome, massacres, epidemias ou pela alta taxa da mor-talidade infantil.

Se o poder é hoje onipresente, microfísico, nem sem-pre identificável nas suas fontes de emissão, pouco adiantacombatê-lo num plano geral, elaborar estratégias comple-xas e utopias de reforma social. Uma vez que ele opera nosparticulares, é nos particulares que é necessário desestabi-lizá-lo (não porque possa ser, enquanto tal, abolido e subs-tituído por um melhor, mas simplesmente, porque nestaforma tornou-se intolerável), combatendo-o no terreno aci-dentado e descontínuo dos focos de insubordinação. Esti-mulado pela tradição francesa dos estudos polemológicos –como é o caso sobretudo de Bouthoul – pelo livro de Aronsobre Clausewitz e pela teoria matemática dos jogos apli-cada à guerra, Foucault delineia um modelo militar de in-terpretação da política e da teoria; não é a dialética, que es-quiva a realidade “sempre aleatória e aberta”, nem a semio-logia, que esquiva o seu “caráter violento, sangrento, mor-tal, esmagando-a sob a forma pacificada, e platônica da lin-guagem e do diálogo”176, que podem explicar o mundo po-lítico e intelectual, mas a guerra. E não só a guerra guer-reada, mas a “silenciosa” que penetra no corpo social, demodo que a política, invertendo o dito de Clausewitz, é acontinuação da guerra com outros meios e a teoria é sem-

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176. Id., Microfisica del potere, cit., p. 9.

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pre uma arma que produz poder, reforçando o velho e con-tribuindo para criar um novo. A dimensão política, comoatividade coletiva tendente à modificação da sociedadecomo um todo, desmorona ao mesmo tempo que as idéiasde totalidade e de dialética. A imagem da totalidade é ini-bitória, e também no terreno teórico são os saberes parti-culares, descontínuos, especializados que têm incidênciareal e que podem progredir, ao passo que as construções ge-rais (como o marxismo ou a psicanálise) têm uma função,somente se forem desmontadas e utilizadas em partes espe-cíficas. O conceito de totalidade está, por outro lado, es-treitamente ligado ao da dialética e destinado a desapare-cer gradualmente com ele. O homo dialecticus, o “ser da par-tida, do retorno e do tempo, o animal que perde a sua ver-dade e a reencontra iluminada, o estranho a si mesmo quevolta a ser familiar”177, está para ser superado numa pers-pectiva de longo prazo, análoga àquela heideggeriana doadvento do pensamento ultrametafísico.

Até agora, o homem ocidental só conquistou a pró-pria identidade contrapondo-se ao outro, ao recalcado, aonegativo de si mesmo (o louco, o pecador, o delinqüente),para poder depois reentrar em si, fortalecido por essa lutae imunizado contra a atração exercida por aquelas mesmasalteridades que ele combate. A dialética é, assim, a cifrateórica de um prática social difusa há séculos na Europa(aqui a cronologia é incerta: do Concílio Lateranense de1525, como aparece em A vontade de saber, ou da âge classi-que, ou de Hegel?), uma espécie de rito de iniciação para se

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177. Id., “La follia, l’assenza d’opera”, in: apendice à se-gunda edição italiana de Storia della follia nell’età classica,Rizzoli, Milão, 1977, p. 628.

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tornar adulto num mundo conflitual, para se conciliar, sobo aguilhão do poder e depois de longas peripécias, consigomesmo e com a realidade. Hoje, dir-se-ia, a conciliação nãoé mais possível nem desejável e os privilégios concedidos àparticularidade contra o universal, à experiência direta elocal contra as mediações e a totalidade, a uma pluralidadede “razões” contra a razão una e monolítica são sintomas dadeclarada desintegração do modelo dialético, da recupera-ção da unidade por meio da oposição e do múltiplo (a idéiada dialética como desenvolvimento através das contradi-ções atenua-se contextualmente com a crise do desenvolvi-mento real, com o refreamento das contradições amaciadasnum mundo ameaçado pela destruição nuclear e pela caídado grande projeto clássico de reunificação do genero huma-no sob uma razão única e em condições de acolher, em ten-são, a multiplicidade?).

Foucault aproxima-se aqui das posições de Deleuze ede Guattari, que recusam a alternativa e a oposição entreuno e múltiplo, entre identidade e contradição – as catego-rias fundadoras da dialética de Platão a Hegel – substituin-do-as pela alternância da “diferença” e da “repetição” e poruma concepção disseminativa, “rizomática”, da racionali-dade, em que existem inumeráveis conexões entre regiõesdo saber não unificáveis, um arquipélago de razões não re-conduzíveis à identidade.178 Mas Foucault não consideraessa esporulação de formas racionais como um fenômenoeterno. Há nele a idéia (no limite da utopia, tão despreza-

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178. Cf. G. Deleuze, Differenza e ripetizione, Il Mulino,Bolonha, 1971; Id., Logica del senso, Feltrinelli, Milão,1975; G. Deleuze e F. Guattari, L’Anti-Edipo, Einaudi,Turin, 1975 e G. Deleuze - F. Guattari, Rizoma, Pratiche,Parma, 1977.

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da) de que num remoto futuro, quando a consumação dopensamento dialético estiver completa, tornar-se-á possíveluma incorporação não dialética da alteridade, análoga à ab-sorção, já em ação, das sexualidades periféricas numa novasexualidade normal polimorfa. Então, nessa situação paci-ficada, “tudo o que nós hoje sentimos relativamente à mo-dalidade do limite, ou da estranheza, ou do não suportável,terá alcançado a serenidade do positivo” e a razão dialéticatornar-se-á do mesmo modo incompreensível como o sãopara nós os comportamentos dos primitivos: “O jogo tãofamiliar de mirar-nos no outro termo de nós mesmos naloucura, e de debruçarmo-nos para ouvir vozes que, vindasde muito longe, dizem-nos de perto o que somos, aquelejogo, com as suas regras, as suas táticas, as suas invenções,as suas astúcias, as suas ilegalidades toleradas, não serámais, e para sempre, que um ritual cujos significados serãoreduzidos a cinzas. Algo como as grandes cerimônias detrocas e de rivalidade nas sociedades arcaicas”.179

No último decênio de sua vida, Foucault (falecido em1984), opera uma inflexão no próprio pensamento. Passa daanálise dos procedimentos de transformação dos seres huma-nos em objetos à da sua transformação em “sujeitos” (no du-plo, divergente, sentido da sujeição e do tornar-se senhor desi), da vontade de poder à da verdade, dos temas encontradosna idade moderna a questões já “problematizadas” na anti-guidade grega e romana. O indivíduo, capaz de organizar aprópria existência e de lhe dar significado, representa agora onó principal da reflexão de Foucault, que não cai todavianuma perspectiva individualista, neoliberal ou anárquica-li-bertária. O Estado moderno, Ocidental, de resto, conhece

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179. Foucault, “La follia, l’assenza d’opera”, cit., p. 627.

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bem a questão da individualidade, já que não cessa de produ-zi-la, entrelaçando-a, porém, indissoluvelmente com formasde totalização. Absorve, com isso, técnicas mais remotas decontrole das pessoas, cuja origem remonta ao “poder pasto-ral” da Igreja, orientado à salvação dos indivíduos mais fra-cos, da última “ovelhinha do rebanho”, ainda que a custo dosacrifício do “pastor”, do chefe. Tanto a Igreja quanto o Esta-do moderno são obrigados a conhecer a interioridade dos in-divíduos e a organizar a sua verdade “singulatim”. O WelfareState não se interessa certamente pela salvação da alma dos ci-dadãos, mas pelo seu bem-estar e proteção contra todas as in-tempéries da vida. De tal modo permite-lhes, todavia, que sedediquem sobretudo aos próprios objetivos privados.

Por quais caminhos o sujeito moderno pode, ao mesmotempo, escapar do paradoxo da individualização totalizantee abandonar o ilusório refúgio do fechamento em si mesmo,da dimensão contemplativa expressa no “conhece a ti mes-mo!”? Como fazer para passar ao campo prático do “governaa ti mesmo!”? Foucault procura agora a resposta no mundoantigo, pagão e cristão. Numa época, percebida como análo-ga à nossa (em que os códigos morais legitimados pela tra-dição perderam autoridade e prestígio) não resta a cada umsenão recorrer à “cura de si”. Na falta de normas socialmen-te compartilhadas, ele é, com efeito, levado a esculpir a simesmo como uma estátua, tornando-se legislador da própriavida. Nessa fase um valor exemplar assume, para Foucault, oideal do sábio estóico da idade romana (Sêneca, MusônioRufo, Marco Aurélio), que quer transformar-se, com “exer-cícios espirituais” cotidianos, em obra de arte. A “estética daexistência” apresenta-se, portanto, como a única ética dignadesse nome, “trabalho” conduzido por todos individual-mente, medida que se nos dá – como ensina a filosofia gre-

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ga do século IV a.C. – também no gozo dos prazeres.180 Nãose trata mais de impor uma disciplina aos outros por meiodos manicômios, das prisões, das fábricas ou das escolas, masde submeter-se individualmente a princípios livrementeaceitos e longamente meditados. Uma ulterior conquista –de que o pensamento moderno se apodera – é realizada pelocristianismo. A “cura de si” dos estóicos, o exame de cons-ciência tendente a aperfeiçoar a própria vida, transforma-seno monaquismo dos primeiros séculos da era vulgar numcorpo de técnicas para obrigar a “carne” a confessar os seuspecados, para extrair as verdades mais escondidas nas pro-fundezas da própria alma e formulá-las com clareza, auto-a-cusando-se diante de Deus, que tudo vê e compreende. Como objetivo de transcender a si mesmo, purificando-se das es-córias terrenas, o cristão deve para tanto “indagar-se para sa-ber quem é, o que sucede no interior de si mesmo, os errosque pode cometer, as tentações a que está exposto. Mas, oque é mais importante, cada um deve dizer essas coisas aosoutros, testemunhando, assim, contra si mesmo”.181 Expor-seao olhar de Deus torna transparente não tanto a fantasmagó-rica essência do sujeito, quanto as “tecnologias do eu”, osmecanismos anônimos da sua ininterrupta construção.

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180. Cf. Id., La cura di sé (1984), Feltrinelli, Milão 1985;Id., L’uso dei piaceri (1984), Feltrinelli, Milão, 1985.181. Id., “Interview de Michel Foucault” (1981, publicadaem 1984), in Dits e écrits, Gallimard, Paris 1994, IV, p. 659.

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Parfit ou o túnel de vidro da identidade

Mas, construir a si mesmo, na forma da identidade, dacoerência, da máxima consciência e vigilância moral é ver-dadeiramente importante? Disso duvida, mesmo servindo-se de um outro gênero de exercícios espirituais, o filósofoinglês Derek Parfit. Na sua perspectiva “reducionista”,com efeito, identity does not matter, a identidade pessoal nãoé o que importa, não é o que nos deve preocupar. Ela so-mente me interessa enquanto meio para um fim, que con-siste em assegurar de qualquer forma a minha continuida-de psicológica (e não somente como pessoa física, mastambém, digamos, como lembrança incorporada à memó-ria dos outros).

Não mais se preocupar com a identidade é apresenta-do por Parfit, seja como libertação da angústia diante damorte e das conexas inevitáveis preocupações centradas ex-clusivamente sobre si mesmo, seja como simultâneo refor-ço do sentido de solidariedade com os outros: “Se deixásse-mos de pensar que o que conta é a nossa identidade, estefato poderia influir sobre algumas das nossas emoções, porexemplo, a nossa atitude diante da velhice e da morte”.Com uma espécie de consolatio estóica, Parfit acrescentaque, se, ao invés de dizer: “Estarei morto”, dissesse “Nãohaverá nenhuma experiência futura que esteja ligada dealgum modo às minhas experiências presentes”, tal refor-mulação do meu pensamento e atitude, “lembrando-me oque comporta o fato da minha morte, torna-a para mimmenos deprimente”. Não pensar na identidade como per-manência de mim mesmo, mas como desenlace das minhasexperiências da continuidade psicológica com o passado,tornaria tudo muito mais simples.

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Numa época em que os progressos das biotecnologias,dos transplantes de órgãos, das clonagens, podem transfor-mar em ciência aquilo que antes era science-fiction, também aidentidade pessoal deixa de estar ligada ao critério da conti-nuidade física do indivíduo completo no tempo e da conti-nuidade psicológica ligada à totalidade da pessoa. É verdadeque a identidade não fica, como teria dito Locke, arranhadase me é extirpado o “mindinho”. Mas o que aconteceria se omeu cérebro ou parte dele fosse transplantado no corpo deum outro e vice-versa? E o que aconteceria se, mediante umahipotética máquina, o teletransporter, uma réplica exata demim mesmo fosse reproduzida em Marte (tão “idêntica” quesobre o rosto há também o corte que me fiz esta manhã en-quanto fazia a barba)? E se depois, por algum estrago, o eupermanecido na Terra morresse e o de Marte sobrevivesse,qual dos dois seria o verdadeiro eu? Por meio desses experi-mentos, por enquanto apenas mentais, de duplicação e deprodução de replicantes seriais de um eu (token persons), che-gamos, para Parfit, a admitir que o que tem valor não é apermanência da individualidade enquanto indivisibilidade,mas, justamente, a continuidade psicológica de alguma ma-neira alcançada através dos mediadores. O critério de tal tipode continuidade (relação R) substitui, assim, o da identidadepessoal: “O que conta é a relação R. R, é a conexão e/ou a con-tinuidade psicológica devida ao tipo justo de causa”.

O sereno abandono da identidade pessoal produz umaefetiva emancipação dos medos, dado que – cessando demirar para a imortalidade – ganha-se uma maior plenitu-de de sentido. Ele é comparável a um paradoxal sistemazen para encontrar a si mesmo. Acontece, em outros ter-mos, algo de análogo ao arremesso de uma flecha quandonão somos mais obcecados pela premente vontade de fazer

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mira e acaba-se assim – pelo fato mesmo de estarmos com-pletamente relaxados e não concentrados – por atingir efe-tivamente o alvo. Traduzido ainda em outros termos, po-der-se-ia dizer: não pense na identidade, tanto é a identi-dade que pensa em você mesmo. Tal atitude permite-nosassim sair de um longo pesadelo: “Quando acreditava quea minha existência fosse aquele fato ulterior, sentia-meaprisionado em mim mesmo. Minha vida parecia-me umtúnel de vidro no qual, ano após ano, movia-me sempremais velozmente, e ao final do qual havia escuridão. Quan-do mudei de opinião, as paredes do meu túnel de vidro de-sapareceram. Agora vivo ao ar livre. Há ainda uma diferen-ça entre a minha vida e a dos outros, mas uma diferençamenor. Os outros me estão mais próximos. Interesso-memenos pelo que resta da minha vida e interesso-me maispela vida dos outros”.182

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182. D. Parfit, Reasons and Persons, Oxford Univ. Press,1984.

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A viagem da vida: Blumenberg e as metáforas

A eficaz metáfora do tunel introduz-nos num campode problemas contíguos. Tradicionalmente, as metáforassão consideradas ou um ornamento retórico, um floreio dalinguagem, ou então um vestíbulo do pensamento concei-tual. O termo metáfora (de metaphorè, que, em grego, querdizer transferência, transporte) indica conjugar, mediantedeslocação, o que está distante. Há metáforas mortas, torna-das conceitos, que utilizamos sem aperceber-nos – segun-do a comparação de Nietzsche – como as moedas cujas ima-gens se apagaram com o uso e que passam a valer somentepelo metal. Há também metáforas vivas (cujo papel foi as-sinalado por Paul Ricoeur), continuamente produzidas pelalinguagem normal ou poética. Elas lançam ousadas pontesentre noções que não estamos habituados a ver unidas.

Os que, pelo contrário, subordinam a metáfora ao pro-blema do conhecimento, consideram-na uma forma inferiorou espúria de pensamento, que funciona como batedor parao pensamento puro, claro e distinto. Hans Blumenbergprocura quebrar o nexo instituído entre pensamento acon-ceitual e pensamento conceitual, de maneira a não conside-rar as metáforas como mero introito à racionalidade, tablado

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capítulo 8

Os vínculos da tradição

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provisório para erigir conceitos.183 Coligando-as ao husser-liano “mundo da vida” (trama não refletida de estruturas depensamento, de sentir e de crer, que adquirimos e que fa-zem de pano de fundo à nossa consciência), ele restitui-lhessua autonomia. O mundo da vida é a esfera do que não é ex-plicitamente tematizado, que permanece no fundo e permi-te ao que, de quando em quando, dizemos e pensamos so-bressair sobre o não dito ou sobre o impensado. Qualquerafirmação nossa tem, pois, sentido porque corta na perspec-tiva de um universo simbólico simplesmente pressuposto.Enquanto os conceitos têm a ver, pois, com a consciência fo-calizada, as metáforas, ao contrário, referem-se ao mundo davida, são golpes de luz transversal que iluminam nexos sig-nificativos não analisáveis diretamente. Exprimem orienta-ções, modalidades de voltar-se para a experiência não desti-nadas a precipitar em cristais conceituais. Os conceitos pu-ros pagam o privilégio da sua relativa clareza e univocida-de, com uma perda da multiplicidade de sentidos do mun-do da vida. Ou seja, todas as vezes que pensamos algo depreciso, conseguimos, certamente, a vantagem de ver claroe distinto com os olhos da mente, mas ao mesmo tempo,cortamos todas as possíveis conexões de sentido com o queresta no fundo do quadro. As metáforas gozam, pelo contrá-rio, da ambígua vantagem, no que concerne ao conheci-mento, de ter um âmbito de referência extremamente vas-to, de poder, no limite, conectar-se com o mundo da vidaem toda a sua extensão, mas pagando este benefício comuma imprecisão maior. Por esse motivo tende-se a suprimi-las da filosofia e a julgar que não convém usá-las como se

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183. Cf. H. Blumenberg, Paradigmi per una metaforologia(1960), Il Mulino, Bolonha, 1960; La leggibilitá del mondo(1981), Il Mulino, Bolonha, 1984.

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constituíssem uma mancha impura no adamantino univer-so dos conceitos. Na realidade, nem mesmo o pensamentomais abstrato pode deixar de recorrer às metáforas, por maisque não se reduza completamente a elas. Há, com efeito,aquelas definidas por Blumenberg como metáforas absolu-tas, indeduzíveis e irreconduzíveis a outras metáforas ouidéias, e as metáforas derivadas.

As metáforas absolutas exprimem orientações não pas-síveis de decomposição ulterior, como a atitude que cada umtem na arriscada viagem da experiência. A metáfora da navi-gatio vitae implica, portanto, que há os que escolhem ser ato-res na própria existência e os que, ao contrário, menos pro-pensos a arrostar os perigos, preferem ser antes espectadoresque atores.184 O elemento do desconhecido, do que nos espe-ra, do risco, é justamente o aspecto que caracteriza tanto ametáfora da navigatio vitae, quanto o surgimento dos mitos.Dado que cada um tem pela frente um caminho que nuncapoderá conhecer de antemão, surge a idéia de que a própriarota, a navegação empreendida traga conselho, que se formegraças a ela, uma experiência. Em português, o vocábulo “ex-periência” é, nesse caso, menos rico do que em outras línguas.Em alemão “experiência diz-se Erfahrung, palavra que traz araiz fahren, “viajar”. Por isso ter experiência significa viajarou, por extensão, navegar. Corresponde ao paradigma deUlisses, o herói que muito viajou e sofreu e que, por isso, écapaz de dirigir a sua perigosa rota, através de todos os obs-táculos divinos e humanos que se-lhe interpõem.

No passado, a experiência se acumulava. Hoje, pelocontrário, estamos numa situação em que – mudando rapi-

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184. Id., Naufragio con spettatore (1979), Il Mulino,Bolonha, 1985.

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damente as coisas – os ensinamentos do passado perdempeso, tornando indeterminadas também as expectativas dofuturo. A idade moderna, marcada pelo aparecimento do“homem copernicano”, assinala o fim das seguranças teoló-gicas, fundadas (no que concerne ao nosso mundo) no Livropor excelência, na Bíblia. É uma época que inaugura a re-belião e a “auto-afirmação” do homem perante a submissãoàs autoridades que se reclamam sobrenaturais, que acende odesejo do novo, que leva à realização de viagens de desco-brimento em terra desconhecida (não apenas em sentidogeográfico, mas também como circunavegação do globus in-tellectualis ou projeção para o mundo do infinitamente gran-de e do infinitamente pequeno, dos astros e dos micróbios).

Também o mito constitui para Blumenberg – um dosprotagonistas do chamado Mythos-Debate, junto com Man-fred Frank e com Karl-Heinz Bohrer – uma estratégia paraenfrentar o desconhecido, para resistir à angústia amorfa esem nome provocada nos homens pelo superpoder da rea-lidade. O mito despotencializa, com efeito, o seu “absolu-tismo” inventando explicações para o inexplicável, tornan-do, assim, o mundo mais familiar. Por isso a antítese entremito e razão não aparece logo. Ela é “uma invenção tardiae negativa, porque renuncia a considerar a função do mito,na superação do estranhamento arcaico do mundo, comouma função ela também racional, por mais oportuno quepudesse parecer, uma vez realizado o trabalho, o desapare-cimento dos seus meios [...]. O próprio mito é um pedaçode incomparável trabalho do logos”.185

Reconhecemos que alguma coisa é um mito quandonela não mais acreditamos, quando as retaguardas do mun-

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185. Id., L’elaborazione del mito (1979), Il Mulino, Bolonha,1991, p. 75, 35.

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do da vida não mais fornecem alimento suficiente ao nossopensamento.

“Ninguém conhece a si mesmo”: Gadamer e a hermenêutica

Blumenberg é um adversário da “secularização”. Nãoacredita, no caso, que o pensamento moderno esteja em re-lação de continuidade com o medieval, no sentido que asidéias “laicas” elaboradas no seu âmbito sejam uma tradu-ção ou uma adaptação de dogmas teológicos ou metafísicosprecedentes. O “homem copernicano” introduziu no seumundo novidades inauditas e, interrompendo as ligaçõescom a tradição, deixou realmente o passado livre para pas-sar, abrindo o “novo tempo”, Neuzeit, ou seja, a moderni-dade. Para Gadamer, ao contrário, nunca podemos nos li-vrar da tradição. A consciência do indivíduo não constitui,com efeito, um centro auto-suficiente, isolado com relaçãoà realidade da história que o circunda: faz parte do mundo,com o qual se comunica por meio da linguagem. Interpre-tamos os acontecimentos somente no interior do horizontedeterminado pela nosso pertencimento a uma tradição, aosseus específicos – e antes inexplicáveis – pressupostos. Onosso entendimento não é, portanto, nunca logicamentepuro, neutro, incondicionado. Tal como para o últimoWittgenstein, também para Gadamer é ilusório imaginarque a nossa alma é como uma tabula rasa livre de condicio-namentos ou de certezas pregressas: “Quem quisesse duvi-dar de tudo, não chegaria nem mesmo a duvidar. O própriojogo de duvidar pressupõe já a certeza [...]. A criançaaprende, porque acredita nos adultos. A dúvida vem depois

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da crença”186 Compreende-se alguma coisa somente porquedispomos já da sua “pré-compreensão” , ou seja, de umaidéia acolhida que nos aponta e orienta, pelo menos atéquando não somos levados a procurar ulteriormente, aaprofundar essa noção não refletida porque, entrementes,tornou-se problemática e insatisfatória. O “círculo herme-nêutico” mostra justamente como opera tal pré-compreen-são do todo, enquanto antecipação provisória do articuladoconhecimento das partes, o qual – uma vez ocorrido – mo-dificará a imagem do conjunto, num processo recorrente enunca acabado de sucessivas retificações e aberturas.

A historicidade significa, em primeiro lugar, que todapré-compreensão é um preconceito e, generalizando, que atradição é uma rede de preconceitos. Mas “pré-juízo” nãoequivale a juízo falso, a algo de intrinsecamente negativo:sempre se julga, e necessariamente, de um ponto de vistapróprio limitado, antes ainda de ter compreendido mais afundo uma questão. Ninguém é isento de pré-juízos:“Quem pensa estar seguro da própria liberdade dos precon-ceitos fundando-se na objetividade do método e negando opróprio condicionamento histórico sofre, depois, a forçados pré-juízos que o dominam de modo inconsciente e in-controlável, como um vis a tergo. Quem não quer reconhe-cer os juízos que o determinam, não saberá ver nem mes-mo as coisas que à luz destes aparecem”.187

Na procura de vítreas transparências, o Iluminismo de-sacreditou a idéia de pré-juízo, declarando-lhe guerra: “As-

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186. I. Wittgenstein, Della certezza (1950-51), Einaudi,Turin, 1978, proposições 115 e 160, p. 22, 29.187. H. G. Gadamer, Verità e metodo (1960), Bompiani,Milão, 1983, p. 417.

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sim fazendo, ele realizou também uma espécie de liberação,uma emancipação do espírito. Se, porém, daí se retira a con-clusão de que é possível tornar-se transparente a si mesmo,soberano no próprio pensar e agir, então erramos. Ninguémconhece a si mesmo. Trazemos impresso conosco desde sem-pre um traço, e ninguém é uma folha em branco”.188

Todos nós somos indelevelmente marcados pelo queherdamos e pelo que absorvemos da tradição. Mesmo que-rendo, não podemos, portanto, nos depurar dos nossos pre-juízos e dos pré-condicionamentos históricos, não podemosapagar o que a história escreveu sobre a “folha” da nossavida: podemos somente reescrevê-la, reelaborá-la incessan-temente. Não atingiríamos de fato, no caso da eventualevaporação dos prejuízos, verdades eternas: alcançaríamos,pelo contrário, o puro vazio mental. Eliminados os traços,desaparecidas as impressões da tradição, não sobra nada. Oimportante é não permanecer ligado obstinadamente oupresunçosamente aos prejuízos: “O discurso não é um puroe simples desembuchar dos nossos prejuízos, mas põe-osem jogo, expõe-os às nossas dúvidas, como à réplica do ou-tro [...]. A simples presença do outro que aparece à nossafrente ajuda, antes ainda que este tome a palavra para re-plicar, a descobrir os nossos prejuízos e a nossa parcialida-de, a nos desfazer deles”.189

Existem além disso “prejuízos legítimos”, que deve-riam ser reivindicados, como os relativos à “autoridade” ouà “tradição”. Entre razão e tradição, sobretudo, não existe,em absoluto, a inimizade que o Iluminismo quer nos fazer

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188. Id., in: Dialogando con Gadamer, org. por C. Dutt,Cortina, Milão, 1995, p. 17-8.189. Id., “Ermeneutica e decostruzione”, in: Verità e meto-do 2 (1986-93), Bompiani, Milão, 1996, p. 296-7.

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crer, dado que identifica a tradição com a cega submissão aautoridades indemonstráveis e arbitrárias: “Mesmo a maisautêntica e sólida das tradições não se desenvolve natural-mente em virtude da força de persistência do que uma vezocorreu, mas tem necessidade de ser aceita, de ser adotadae cultivada. Ela é essencialmente conservação, aquela mes-ma conservação que opera ao lado e dentro de toda mudan-ça histórica [...] Até mesmo onde a vida se modifica de ma-neira tempestuosa, como nas épocas de revolução, na pre-tensa mudança de todas as coisas, conserva-se do passadomuito mais do que se imagina, e solda-se junto ao novo,adquirindo uma validade renovada”.

Mais do que libertar-nos da tradição considerada comoum peso, é preciso redescobrir sua riqueza íntima, pelo fatode nunca ser nem unívoca nem fechada: “O que preenche anossa consciência histórica é sempre uma multiplicidade devozes, nas quais ressoa o passado. Somente na multiplicida-de de tais vozes o passado existe: isso constitui a essência datradição da qual somos e queremos nos tornar partícipes”.190

Sentir a nós mesmos como pertencentes a uma história im-plica o reconhecimento de outras histórias e de outras pes-soas, deixar que vozes diversas e discordantes contrapo-nham-se no interior de cada um de nós e assim o delimi-tem. Somente compreendendo a alteridade em nós mesmos,colocando-nos à prova, estamos em condições de alargar onosso horizonte e, vice-versa, de nos definir e individuali-zar. Com efeito, justamente porque o nosso horizonte é cir-cunscrito, ele pode, a seguir, ser estendido. Compreendersignifica provocar uma “fusão de horizontes”, justamenteporque a verdade não é monológica, mas dialógica, porque

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190. Id., Verità e metodo, cit., p. 330-3.

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não desvela algo que preexiste, mas o resultado do entendere do interpretar em comum. Numa ótica similar, a históriae a arte geram conhecimentos validíssimos, apesar de priva-dos da rigidez do método científico. Mais próximas do“jogo” (cujas regras se impõem aos participantes sem, porisso, inibir sua capacidade de inovar dentro de contextos da-dos), ambas permitem compreender o mundo como reela-boração descontínua de vividos na qual insere-se ativamen-te a própria atividade, considerando-se parte de uma maisgeral Wirkungsgeschichte, de uma “história dos efeitos” quenão diz respeito a fatos nus, mas a acontecimentos já inter-pretados por outros, objetos impregnados de subjetividadese subjetividades mediadas por objetividade.

A mitologia branca de Derrida

Também Jacques Derrida, ainda que de outra manei-ra, considera não necessário abandonar os condicionamen-tos da tradição em favor do Autêntico e do Originário quese ocultam por trás da variedade dos fenômenos. Para ele– diferentemente de Blumenberg – não há “metáforas ab-solutas” precedendo o pensamento conceitual. Nenhumametáfora é, com efeito, capaz de sair do círculo mágico da“metafísica”, da “mitologia branca, que representa e refle-te a cultura do Ocidente” (aquela na qual o homem bran-co toma o próprio pensamento como se fosse a forma uni-versal da racionalidade). A metáfora não pode escapar doconceito. Faz parte necessariamente do cortejo das suasantinomias metafísicas: de sentido próprio e não próprio,de substância e acidente, de pensamento e linguagem oude inteligível e sensível. É, pois, interna ao próprio pensa-

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mento filosófico em seu incansável e sempre inacabadoproceder do figurado ao próprio, que não chega nunca asuperar o mito, a desvelar alguma coisa, a mostrar a ver-dade nua. Toda revelação é, conjuntamente, um novo ve-lamento. Quem não o compreende e quer encontrar o sen-tido próprio por trás do sentido figurado recai na“metafísica da presença”, acredita que a verdade se mani-festa “em pessoa”, diante dele. As metáforas não se desgas-tam no sentido de uma dissolução final no conceito, aindaque compensado pelo pulular contínuo de metáforas vivase potentes, mas de uma acumulação e de um empréstimocontínuo. Deslocam-se assim circularmente, saem e en-tram no horizonte perceptivo do pensamento, represen-tando o Outro ineliminável da conceitualidade. Tambéma dimensão conceitual, conseqüentemente, não desapare-ce, a não ser transitoriamente, na própria metáfora, suapermanente reserva de sentido.191

A “metafísica” – a partir das origens da filosofia oci-dental até Husserl – associa a verdade à imediata presençado ser na consciência, enquanto significado que se revela aosujeito na forma privilegiada da palavra. Com a vitória do“fono-logo-centrismo” a escritura aparece como letra mor-ta, degradação do falado.192 Derrida reivindica, ao contrário,

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191. J. Derrida, “La mythologie blanche”, in: Poétique,1971, 5, p. 1-52, em particular p. 4, 52 (agora em Margesde la philosophie, Éditions de Minuit, Paris, 1972).192. Cf. J. Derrida, La scrittura e la diferenza (1967), Ei-naudi, Turin, 1971; Id., Della grammatologia (1967), JacaBook, Milão, 1969; Id., “La farmacia di Platone”, in Ladisseminazione (1972), Jaca Book, Milão, 1972. Poder-se-ia,de maneira banal, objetar: a escrita não é talvez mais per-manente e “presente” do que a palavra que some depois deter sido pronunciada? E depois, porque a escrita, o “arqui-

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a supremacia da escrita, já atacada por Sócrates em Fedro.Ela é, com efeito, objetividade que transcende o sujeito, avoz da consciência, traço que subsiste depois da morte dosindivíduos. Os signos remetem-se simultaneamente a elesmesmos e a outra coisa que eles mesmos, a um corpo aber-to de textos e situações a serem interpretadas num infinitojogo labiríntico de respostas, desvios, disseminações, des-cartes, demoras, repetições e deferimentos, dos quais não sesai (“difference”). De todo texto ou situação interpretada nãopodemos, pois, compreender por inteiro. Ou melhor, a ab-soluta transparência os destruiria, subtraindo-lhes aqueleexcesso de sentido que ultrapassa a presença imediata e queultrapassa os confins do logos. Identidade e diferença(“difference”), auto-referência e alusão, se implicam, comefeito, originariamente e de maneira mútua, enquanto ospróprios signos da escrita constituem a presença de uma au-sência. Sobretudo, num mundo em que a coleta e registrode informações e de textos está se tornando monumental,nenhuma experiência pode se tornar saturada, assim comonenhuma interpretação, exaustiva: dando adeus às preten-sões de reconstrução sistemática e unitária do sentido, todotexto pode ser “desconstruído”, de maneira a mostrar o te-cido cerrado de remetimentos e deferimentos que não con-duzem, porém, a nenhum original, a nenhum ser como pre-sença pura. Gadamer lembra ter-se salvado da dissolução dadialética por meio da saída de segurança do diálogo, ao pas-so que Derrida, diz ter escolhido o caminho da desconstru-

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texto”, deveria preceder o falado? O argumento de que apalavra pressupõe o “espaçamento” entre letra e letra nãopressupõe, por sua vez, o isolamento e a escolha, historica-mente situáveis, dos sinais específicos, no interior de umalfabeto construído?

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ção, em que a unidade de sentido não se dissolve “no vivocolóquio, mas na trama das relações de sentido que está nabase de toda fala”.193 O termo “desconstrução”, agora emmoda, sobretudo na cultura norte-americana, não deve, to-davia, ser entendido como desejo iconoclástico de impossí-vel destruição do logos, mas como vontade de desarticular osistema de remetimentos, de “deslocar a unidade verbal” demodo a torná-la menos anquilosada e mais consciente dospróprios condicionamentos, ou seja, do que a impede deconseguir a verdade e a autenticidade absolutas.194

Tal como a “carta roubada” do conto de Poe (exami-nado, através de Lacan, em Le facteur de la vérité, de 1975),a evidência é a coisa mais escondida e o excesso de evidên-cia obscurece. As trevas nunca se dissiparão, mesmo por-que a “violência da luz” não constituiria uma vitória.Como bem sabiam Platão e Hegel, na pura luz vê-se tantoquanto na mais total escuridão. Somente as diferenças, asnuances, as comparações permitem ver e compreender (so-bretudo fora da metafísica e da metáfora da luz e da pre-sença). E dado que a metafísica procedeu ao “cancelamen-

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193. H. Gadamer, “Decostruzione e interpretazione”, in:aut-aut, 1985, 208, p. 7.194. Os interesses de Derrida, recentemente até se amplia-ram numa direção principalmente “reconstrutiva” e políti-ca. Ocupou-se assim dos motivos da adesão de Heideggerao Nacional-Socialismo, do significado do pensamento deMarx, numa fase em que o seu pensamento parece atingi-do pelo colapso dos regimes socialistas do Leste, do papelda Europa hoje em sua projeção para a civilização mundial,da amizade ou da hospitalidade; cf. J. Derrida, Dello spiri-to. Heidegger e la questione (1987), Feltrinelli, Milão 1989;Id., Oggi l’Europa (1991), Garzanti, Milão, 1991; Id., Glispettri di Marx (1993), Cortina, Milão 1994 e Id., Politichedell’amicizia (1994), Cortina, Milão, 1995.

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to da pista”, impõe-se agora a tarefa de proceder à sua“utrapassagem”. Mas isso não é possível por meio de um“salto”. A longa despedida da metafísica não a destrói:mantém-se invencível no fundo, mostrando suas infinitasramificações nos nossos modos de pensar, de sentir e deagir. Não podendo conseguir uma imagem mais fiel domundo irredutível à pura presença (enquanto heideggeria-namente, o ser subtrai-se ao dar-se), a filosofia resulta “pa-rasitária” com relação à sua tradição metafísica. Apenasestá em condições de mostrar-lhe as hesitações, as ambi-güidades, as reverberações e os deslocamentos.

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Arendt: pensar, querer, julgar

Examinando as catástrofes produzidas pelos totalitaris-mos do nosso século e a conseqüente, ulterior, degradação dapolítica, Hannah Arendt procurou suas raízes profundas noprogressivo revolvimento da “vida da mente”, na distorçãosofrida pelas nossas três irredutíveis faculdades: o pensar, oquerer e o julgar. Na base desse invisível desastre históricoestá a separação moderna de teoria e práxis, pela qual consi-dera-se o agir mera aplicação de um conceito ou de um pro-jeto já autonomamente elaborado pela teoria. Quando a von-tade se transforma em braço secular do pensamento, acabatodavia por se tornar cega. Por sua vez, a pura contemplação,depois de ter afirmado por milênios a própria supremacia, éobrigada a declarar a sua impotência. O prevalecer da mo-derna convicção de que o homem conhece somente aquiloque faz, conduz logo ao definitivo privilegiamento do ope-rar e à complementar desvalorização de toda forma de pen-samento que não se traduza imediatamente em ação. Ao sus-tentar que “os filósofos limitaram-se, até agora, a interpretaro mundo, quando do que se trata é de mudá-lo”, o Marx dadécima primeira das Teses sobre Feuerbach legitima, contra assuas próprias intenções, uma avalanche de preconceitos.

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capítulo 9

Vida ativa

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Deixa acreditar que interpretar o mundo constitui um luxo,que o pensamento é um parasita e que basta a ação revolu-cionária para revelar o novo mundo encerrado na crisálida dovelho. Dando maior ênfase ao valor do “trabalho”, entendi-do como modificação do mundo e automodificação do ho-mem, Marx contribuiu também para cancelar a distinção,clara aos antigos, entre poiesis e praxis, entre o operar ou fa-zer (produção de um mundo artificial de coisas) e o agir(“única atividade que põe em relação direta os homens sema mediação de coisas materiais”). O fazer dá lugar ao homo fa-ber, capaz de controlar a realidade mediante a técnica; o agirà vida política, ou vita activa, como a chamavam os latinos.Dever-se-ia acrescentar que a práxis e o agir são considerados,de Aristóteles a Hegel, uma forma de conhecimento: aquelaque cuida dos acontecimentos humanos e naturais na suamutabilidade, não captável por meio de leis ou esquemas ri-gorosos e a priori (mas que possuem todavia consistência,quando menos porque a regularidade do mundo humano éassegurada pelo fato de que estamos rodeados de instituiçõese coisas mais duráveis do que a atividade que as produziu).A ciência, pelo contrário, ocupa-se das “coisas que não po-dem ser diferentes do que são”, dos entes matemáticos ou daastronomia, que – justamente enquanto imutáveis e eternos– podem tornar-se objetos da teoria.

Ao reivindicar o papel da política, Hannah Arendt re-cupera a tradição do pensamento ciceroniano, que punha avita activa até mesmo acima da vida contemplativa, tantoque os romanos empregavam como sinônimos “viver”e “serentre os homens (inter homines esse)”.195 Se a política é, pois,

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195. H. Arendt, Vita activa (1958), Bompiani, Milão,1964, p. 13-5.

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inter homines esse, a sua essência descobre-se justamente nes-se “entre”, no otimizar a relação recíproca dos indivíduos egrupos tendo interesses e projetos diferentes. A política,tal como a ação, é, com efeito, plural, sempre pressupõe osoutros: “funda-se sobre o dado de fato da pluralidade doshomens [...], trata da convivência e comunidade dos diver-sos”.196 Nesse sentido, ela respeita a multiplicidade dospontos de vista e a sua não componibilidade, recusando aintimação para achatar todas as opiniões sob a férrea dita-dura de uma pressuposta verdade incondicional que elimi-naria seu caráter obtusamente parcial. À política, pois, éconstitutivamente necessária a “liberdade”, o agir autonô-mo dos indivíduos enquanto capacidade de dar início a al-guma coisa de novo, de não previsto pelos mecanismoscausais do mundo. A liberdade é, nas palavras de Kant,aquele “milagre do mundo fenomênico” que introduz onão existente no existente. Não se é, porém, livre somentequando se age: “Desgraçadamente, à diferença do que secostuma pensar sobre a proverbial independência da torrede marfim dos pensadores, nenhuma outra faculdade hu-mana é tão vulnerável, já que é, de fato, muito mais fácilagir em condições de tirania do que não pensar”.197

Sendo encarregada de prefigurar ativamente um futu-ro sempre mais aberto, a vontade assumiu, de toda forma,na idade moderna, um papel dominante. A percepção daacrescida indeterminação do futuro agudece a necessidadede especificar e visibilizar em formas reconhecíveis por to-dos os principais objetivos políticos. Favorece assim o sur-

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196. Id., “Che cos’é la política?” (fragmentos dos anos cin-quenta, publicados em 1993), Comunità, Milão, 1995, p. 5.197. Id., Vita activa, cit., p. 349.

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gimento de ideologias e de utopias radicais, que mobili-zam tanto mais maciçamente as populações quanto maisdifíceis e incertos são os objetivos a alcançar. Justamenteporque, em geral, as pessoas são obrigadas a uma íntimasolidão, incapazes de conceber planos de vida sensatos, osregimes totalitários exercitam sobre elas uma atração queas induz a submeterem-se sem reservas. Tal poder parecesalvífico, justamente, ao fazer esquecer as diferenças, essen-ciais à política. Sob a máscara da solidariedade de raça, denação ou de classe, o terror fixa ulteriormente tal atomis-mo, exigindo uma incondicional fidelidade ao partido ou àpátria de pessoas sem vínculos sólidos com familiares ouamigos: “A principal característica do homem de massanão é a brutalidade e a rudeza, mas o isolamento e a faltade relações sociais normais”. A ética do sacríficio, propa-gandeada e imposta, não faz apelo, portanto, à abnegaçãocomo virtude, “mas como sentido da nenhuma importân-cia do próprio eu, da sua sacrificabilidade”.198 Exige-se dosindivíduos a obediência automática, a regressão ao reinoanimal, à pura vida biológica, a uma condição em que a ca-deia de comando permaneça sólida e indiscutível. Comolembra Elias Canetti, “a ordem é mais antiga do que a lin-guagem, de outra maneira os cães não poderiam conhecê-la. O adestramento dos animais funda-se justamente nofato que eles, mesmo ignorando a linguagem, aprendem acompreender o que deles se exige [...]. O poder de coman-do não deve ser posto em dúvida; se se enfraqueceu, deveestar pronto a se reafirmar com a luta. No mais, tal podercontinua a ser reconhecido por muito tempo. Surpreende

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198. Id., Le origini del totalitarismo (1963), Comunità,Milão, 1967, p. 439, 437.

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notar quão raramente exigem-se novas decisões: bastam osefeitos das decisões já habituais. Nos comandos revivem asbatalhas vitoriosas, todo comando levado a efeito renovauma velha vitória”.199

Tanto o totalitarismo quanto a perda de significado daexistência nas democracias contemporâneas são o produtodos automatismos e da passividade de todas as três facul-dades: do pensar, que não consegue compreender o sentidodos acontecimentos; do agir, que fracassa no confronto co-letivo das diferenças politicamente relevantes para a conse-cução da “vida boa”; do “julgar”, cuja fraqueza se manifes-ta na falta de penetração, na incapacidade freqüente de dis-criminar.

O julgar é a “raiz comum” do pensar e do agir, a ten-tativa de lançar uma ponte entre eles. Representa “o miste-rioso talento da mente, em virtude do qual são conjugadoso geral, que é sempre uma construção da mente, e o parti-cular que é sempre dado à experiência pelos sentidos”. Ana-logamente ao “gosto” no campo da estética – que se afirmaquando faltam os pretensos critérios objetivos da beleza –também a faculdade do juízo, para determinar o seu objeto,não pode recorrer aos instrumentos e aos métodos prefixa-dos em uso no pensar. Tal como o “juízo reflexivo” formu-lado por Kant (que avalia os particulares sem subsumi-losnos conceitos gerais), no juízo político elaborado porArendt a reflexão conserva o seu originário significado óti-co, quase de um ricochetear do juízo, que retorna sobre simesmo para logo ser novamente reenviado sobre o seu ob-jeto. Com uma diferença de entonação com relação ao “cír-

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199. E. Canetti, Massa e potere (1960), Rizzoli, Milão, p.331, 333.

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culo hermenêutico”, essa forma de juízo não se furta, po-rém, da responsabilidade de tomar posição. O antídoto aoserros, sempre à espreita, é fornecido, por compensação, peladeclarada disponibilidade para retificá-los na presença deargumentações convincentes. Sem o juízo, o pensamentonão passaria de uma estática e inerte contemplação. Mas “amanifestação do vento do pensamento não é o conhecimen-to; é a atitude de discernir o bem do mal, o belo do feio”.As monstruosidades cometidas por Eichmann nos camposde extermínio – de consciência tranqüila, como se se tratas-se de coisas normais – dependem do difuso perecimento dafaculdade de julgar, da incapacidade de distinguir entre obem e o mal, entre o agir e o trabalhar.200 Quando o juízo seembota, liberdade e autoridade tornam-se igualmente in-justificáveis. Os homens não são capazes de instituir rela-ções de cooperação satisfatórias e a mentira e a “banalidadedo mal” triunfam incontrastadas.

Habermas: o deserto avança

A “ação comunicativa” – que é uma “interação media-da simbolicamente” – representa em Habermas um modo(diverso do de Hannah Arendt) para reatar as relações en-tre teoria e práxis e para coordenar as ações dos homens nassociedades “pós-tradicionais”. Nelas, os processos introdu-zidos pelas mídias – dinheiro, poder, organização burocrá-tica – acabaram por acorrentar estreitamente os indivíduos

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200. Cf. H. Arendt, La vita della mente (1978), Il Mulino,Bolonha, 1987,p. 151, 188-9, Id., La banalità del male(1963), Feltrinelli, Milão, 1964.

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às suas funções, restringindo-lhes as áreas de autonomia.Ou seja, nele domina uma “razão instrumental”, que olhasomente para os meios necessários à consecução de fins nãojustificáveis racionalmente. Depois de gasta a “reserva degordura da tradição” – que continuava a alimentar o pen-samento e a ação, fornecendo-lhes uma espécie de pilotoautomático – é agora agredido diretamente o tecido conec-tivo abstrato do “mundo da vida”, o universo simbólicocompartilhado.

Ele já está corroído pela incurável “doença da tradi-ção” provocada pelo advento da Revolução industrial. De-senraizando dos campos milhões e milhões de pessoas, ex-pelindo mulheres e crianças do âmbito da casa, modifican-do os modos de pensar e de sentir de todos, o perecimentoda tradição tornou híbridos os códigos éticos permanecidospor muito tempo isolados e desenvolveu comportamentosorientados mais para a expectativa de tempos históricosmelhores do que para a imitação de ideais santificados pelopassado. As autoridades que detinham precedentemente omonopólio na interpretação das regras morais tendem, as-sim, a descarregar sobre os indivíduos as responsabilidadesde escolher. Há pelo menos dois séculos, assiste-se, comefeito, numa espécie de crescente deregulation ética, a umapluralidade não coordenada e muitas vezes conflitual defontes distribuidoras de normas. O costume e o hábito dei-xam assim de representar a base da conduta moral, o para-digma das atitudes que uma inteira comunidade aceita epromove como modelos para partilhar. Passa-se, segundoAlisdair MacIntyre, do sistema das “virtudes” – dos com-portamentos coletivos homogêneos e relativamente cons-tantes, motivados por uma tradição reflexa, como podia seapresentar na Ética a Nicômaco de Aristóteles – ao sistema

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das preferências individuais. Sua natureza é serem subjeti-vas, móveis, auto-referenciais, não argumentáveis, orienta-das segundo o princípio que na economia se costuma cha-mar de “soberania do consumidor” (cujas escolhas são in-discutíveis, porque “o cliente tem sempre razão”). No seuâmbito, a exclusiva faculdade de deliberar atribui-se, con-seqüentemente, às intuições e às inclinações emotivas doagente. E, dado que os trilhos do hábito não mais nosguiam e o retorno a uma ética de valores amplamente par-tilhados parece improvável, o melhor a fazer é, segundoMacIntyre, seguir o exemplo de são Bento: nessa época decorrupção, comparável ao final do Império Romano, reti-rar-se em pequenos grupos para praticar uma moral comu-nitária na expectativa de que apareça ainda o sol de uma ci-vilização melhor.201

Nas sociedades pós-tradicionais nem mesmo a herme-nêutica é capaz – como acreditam Dilthey, Gadamer ouRorty – de revitalizar a experiência, aumentando sua con-sistência. Sua aridez põe em risco o manancial comum doqual derivam os fluxos de significado e de consciência dosindivíduos, ameaçando a eficácia dos mecanismos de cons-trução da identidade pessoal e coletiva. As mídias fizeramum deserto e o chamaram razão. Nesse sentido, a teoria ha-bermasiana constitui uma tentativa de robustecer os ago-nizantes mundos vitais por meio do Diskurs, da ação comu-nicativa, que retece incessantemente seu desfiado tecidosimbólico. Reconstruído racionalmente seja quando des-truído pela “racionalidade instrumental”, seja quando aba-lado pelos “terremotos” ocorridos na vasta e enrudecida

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201. Cf. A. MacIntyre, After Virtue, Londres, Duckworth,1979.

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área dos mundos da vida, que assumem caráter problemá-tico quando são alterados por acontecimentos externos àconsciência. Então vacilam e em parte desabam, sem revol-ver, porém, por completo a percepção que temos da reali-dade: “Somente um terremoto redesperta nossa atençãopara o fato de que tínhamos considerado sólido o terrenosobre o qual hoje estamos e caminhamos. Também nessassituações torna-se incerto somente um pequeno fragmentodo saber de fundo, que se separa da sua inclusão em tradi-ções complexas, relações solidárias e competências”.202

O “Iluminismo”, ou melhor, o processo de esclareci-mento (Aufklärung) da humanidade européia culminanteno século XVIII – que na razão entendida hobbesianamen-te como cálculo introduzia o telos da emancipação – foi overdadeiro “terremoto” do mundo moderno, aquele quetrouxe à luz aspectos antes invisíveis de obviedade do mun-do da vida. Mediante o recurso a princípios universais, eleacelerou o metabolismo e a instabilidade dos universos sim-bólicos derrubando tradições, preconceitos e privilégios. Arealização distorcida do Aufklärung conduziu, porém, à des-truição dos mundos da vida partilhados, levando a cons-ciência a sub-rogá-los por meio de uma penosa, incansávele muitas vezes infrutífera obra de atualização. Nesse contex-to, a capitalização ordenada e estável da experiência, a suaprevidente acumulação não parece mais praticável, já queela se inflaciona rapidamente, escorrendo sem cristalizar-seou sem sedimentar-se suficientemente. O Aufklärung pro-duziu, assim, uma “patologização” do mundo da vida e –por contragolpe – das próprias formas da racionalidade, que

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202. J. Habermas, Teoria dell’agire comunicativo (1982), IlMulino, Bolonha, 1986, II, p. 1084.

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revelaram aspectos inadequados ou perigosos. Semelhantedegeneração não é imputável, porém, ao abuso de poder porparte da razão, mas antes ao seu déficit. O Iluminismo per-maneceu um “projeto inacabado”, a ser retomado depois denele ter englobado todos os sucessivos “teoremas anti-ilu-ministas” que tiveram o mérito de assinalar os limites ou ospontos nevrálgicos do impacto nas estruturas sociais. O his-toricismo e a hermenêutica são, por exemplo, preciosos por-que assinalam o quociente de redução, de distorção e de re-lativização sofrido pelas tendências universalistas e emanci-pativas, e indicam indiretamente o caminho para reforçaradequadamente as exigências de universalidade e de libera-ção de todos os homens. Enfatizando na especificidade desituações determinadas segundo parâmetros de espaço etempo e na circularidade da compreensão, historicismo ehermenêutica perderam de vista, porém, o eixo de avançocumulativo da história e o respeito pelo universal. Ambosexpiam a “desertificação” do mundo da vida, à qual reagemmediante a ênfase posta na fluidez da história e no movi-mento circular infinito da atividade hermenêutica.

Habermas, ao contrário, manifesta uma sólida confian-ça na difusão dos processos evolutivos de aprendizagem denormas universais, seja de natureza intelectual, seja moral.Eles aparecem como a única via racionalmente percorrívelem vista da emancipação do gênero humano das barreirasdos particularismos que sufocam sua potencialidade. Asenergias entaladas e comprimidas por uma “modernidade”reduzida a mera razão instrumental deveriam ser, portanto,novamente ativadas pela ação comunicativa, a única capaz degerar acordos racionalmente partilháveis. Ela daria seu ple-no sentido ao processo inacabado do “Iluminismo”, fazendo-lhe simultaneamente diminuir a virulência causada pela sua

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permanente instabilidade e consentindo-lhe, além disso,abandonar aquele lado de irracinalidade “mitológica” quehavia induzido Horkheimer e Adorno a dele desconfiar. Se-gundo Habermas (que segue aqui os resultados da psicolo-gia evolutiva de Piaget e Kohlberg), deve-se tender para umAufklärung que seja também moral, para um esclarecimentonão simplesmente cognitivo, mas prático. Como na educa-ção do indivíduo, também na das sociedades humanas po-dem-se percorrer sucessivos estágios de desenvolvimento.Uma vez chegados a um nível superior, resulta, a seguir, ir-reversivel, sobretudo nas sociedades democráticas, o cami-nho para um nível inferior: seria como mandar um adultoinstruído, que freqüentou a universidade, para o primeiroano elementar, a aprender as quatro operações ou a escrever.Adorno, que havia vivido a passagem da democraciasui generis da República de Weimar ao Nacional-Socialismo,não teria certamente aprovado tal perspectiva otimista.

Os repetidos choques telúricos da racionalização colo-cam o problema de como instituir uma forma de diálogoque torne novamente congruentes entre si as peças disper-sas do fragmentado mundo da vida. Isso permanece no fun-do, como se fosse de per si privado de autônoma consistên-cia. E, com efeito, constitui “aquela coisa estranha que sedesfaz e desaparece diante de nossos olhos ao apenas querer-mos levá-la adiante pedaço por pedaço”.203 É preciso todaviahabituar-se a viver – mais do que em oásis de racionalidadecomunicativa ilesa e de intersubjetividade poupada da des-truição – também numa espécie de Califórnia dos mundos

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203. Id., “Dialettica della razionalizzazione” (1981), in:Id., Dialettica della razionalizzazione, Unicopli, Milão,1983, p. 240.

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vitais e dos sistemas simbólicos. Ou seja, há que se apren-der a enfrentar não apenas os abalos dos terremotos maisviolentos (os que põem a descoberto elementos precedente-mente não focalizados pelo mundo da vida), mas tambémos movimentos menos violentos de ajuste que, sucedendo-se com freqüência, modificam imperceptivelmente, seja ascoisas, seja o modo de dirigirmo-nos a elas. A ação comuni-cativa desenvolve também uma função terapêutica ao re-construir incessantemente o mundo comum, salvando dosdesastres provocados pelo crescimento hipertrófico da razãoinstrumental. Esta última substitui às ideologias globais dopassado a fragmentação da consciência, defraudando-a, as-sim, da sua força sintética e detonando uma crise que se ma-nifesta em diversos planos: culturalmente, como hemorra-gia de sentido; socialmente, como anomia e enfraquecimen-to das relações de solidariedade; individualmente, como sé-rie de distúrbios que atinge a personalidade.

Rawls: “loteria natural” e justiça

A ênfase em critérios normativos de caráter universal,que tornem possível uma interação não violenta e não ma-nipulável entre os homens, também se entrelaça alhurescom a pesquisa de modelos de sociedade que permitam ava-liar os ordenamentos das comunidades históricas concretas.No fundo desses interesses convergentes está a percepção dafalta de confiança numa história automaticamente dirigidapara o melhor e na emergência de fatores incômodos e dedesagregação no interior dos sistemas democráticos. Em se-guida à bancarrota do “Deus que fracassou”, ou seja, ao de-saparecimento do comunismo soviético, e ao término dos

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três “decênios dourados” (1960-1990), em que a humani-dade ocidental conheceu um bem-estar sem precedentes,parece ter início, agora, uma época de expectativas decres-centes. E uma vez que os ideais de igualitarismo absolutoaparecem, agora, irrealistas, senão funestos, e o Estado so-cial não está mais em condições de distribuir indiscrimina-damente recursos abundantes a todos os cidadãos, torna-seimprescindível a tarefa de estabelecer critérios rigorosospara uma mais eqüânime repartição de custos e benefícios.A reformulação do pacto social segundo novos esquemas decooperação parece ainda mais urgente, num período em queo pleno emprego se apresenta como uma miragem remota eem que as fronteiras dos países mais ricos tornam-se per-meáveis a consistentes fluxos migratórios de homens e mu-lheres provenientes das zonas menos favorecidas da Terra.

O reconhecimento da fragilidade do Estado social e damiséria crescente em escala planetária coloca uma alternativa,à qual logo se mostrou sensível a filosofia política estaduni-dense. Devem-se atribuir as desigualdades ao acaso, como afir-ma Robert Nozick, ou é preciso, ao contrário, recusar a “lote-ria natural”, defendendo uma justiça que salvaguarde os gru-pos e os indivíduos mais fracos, como sustenta John Rawls?Para Nozick, somos todos filhos do acaso, já no instante emque somos concebidos, dado que um apenas entre milhões deespermatozóides fecundou aquele determinado óvulo.204 De-vemos, portanto, ficar atento ao colocar em discussão o papelda acidentalidade, pois, de outra maneira, cortamos na raiz aprópria legitimidade da nossa existência. Igualmente arrisca-do é recorrer a critérios de reequilíbrio e de justiça baseados na

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204. Cf. R. Nozick, Anarchy, State and Utopia, New York,Basic Books, 1974.

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comensurabilidade entre os diferentes indivíduos com relaçãoa um pressuposto “bem comum”. Os indivíduos são entreeles, de fato, incomensuráveis e o bem comum é uma quime-ra: sacrificar um indivíduo em vantagem de outros significasimplesmente prejudicá-lo e favorecer os demais. Moral anár-quica e conservadora ao mesmo tempo: cada um por si e nin-guém por todos.

Combatendo em duas frentes, tanto contra estas ver-sões “libertárias” de individualismo possessivo, quanto con-tra o utilitarismo velho e novo (de Bentham a Harsanyi),John Rawls inaugura uma renovada tradição contratualista,herdeira do direito natural moderno. Ela se contrapõe, sejaà loteria natural, à justificação das normas de justiça a par-tir de contextos factuais ou históricos, seja ao sacríficio dosingular em nome da felicidade do maior número. Devemosnos servir, segundo Rawls, de um metro, para julgar osacontecimentos, que seja externo aos acontecimentos, dadoque a unidade de medida não pode medir a si mesma. Paraelaborar uma ética e uma política fundadas sobre princípiosde valor universal e partilhável é, portanto, indispensávelrecorrer a modelos transcendentes de origem kantiana, ouseja, a formas que não derivam da experiência, mas estrutu-ram e tornam inteligível a própria experiência. Situar-sefora da história ou da acidentalidade natural significa, por-tanto, que – ao julgar algo do ponto de vista da ética públi-ca – prescinde-se da infinita variedade das situações, domesmo modo que o físico, ao formular as leis do movimen-to, não leva em conta o atrito real.

Se a justiça é comensurabilidade, os cânones para se es-tabelecer se uma sociedade é justa podem ser elaboradosmediante um acordo racional entre os homens. Façamos umexperimento mental e imaginemos que cada um deva esco-

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lher a priori um modelo de sociedade sob um “véu de igno-rância” que lhe esconde a própria futura colocação no seuinterior. Dado que a sorte poderia reservar-lhe o ponto maisbaixo da escala social, cada um tenderá coerentemente a mi-nimizar o risco e a preferir aquela sociedade onde o maisdesvantajoso receba, como compensação, o máximo dasvantagens. Pondo-se na ótica do espectador imparcial e ge-neralizando a própria escolha, isso significa que ele conside-rará, conjuntamente, útil e justo para si e para todos um or-denamento social no qual as desigualdades possam ser des-frutadas em benefício dos mais desfavorecidos. Tais critériosde justiça não representam, porém, rígidas e inexoráveis leisde natureza. Constituem, antes, a conseqüência de um pos-sível pacto entre indivíduos, de um contrato capaz de con-ciliar interesse individual e interesse coletivo.

Contra o weberiano “politeísmo dos valores”, Rawlsreintroduz, assim, a idéia clássica de uma sua hierarquia. Ajustiça (preliminarmente definida “a primeira virtude dasinstituições sociais, assim como a verdade é dos sistemas depensamento”) está intrinsecamente conectada à dignidadeda pessoa, “bem primário” que não tem preço, ou seja, quenão pode ser trocado por nenhum outro. A liberdade, queresume em si todos os bens primários, está “lexicografica-mente” sobreordenada à igualdade, ou seja, tem uma vali-dade superior. O “princípio da diferença”, por sua vez, sus-tenta que as desigualdades sociais e econômicas devem sermantidas somente se direcionados para assegurar os maioresbenefícios aos menos favorecidos ou, numa outra formula-ção, que “todos os valores sociais – liberdade e oportunida-de, riqueza e renda, e as bases do respeito de si – devem serdistribuídos de modo igual, a menos que uma distribuiçãodesigual, de um ou de todos esses valores, não se faça em be-

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nefício de cada um; a injustiça, portanto, coincide simples-mente com as desigualdades que não resultam em benefíciode todos”.205 Isso significa porém, em termos clássicos, quea conservação da liberdade é mais importante que a elimi-nação das desigualdades, ou melhor, que, sem a defesa dos“bens primários” a serem distribuídos com justiça, não épossível a redução das desigualdades.

Embora Rawls reconheça que tal critério vale para associedades democráticas com escassez moderada, ou seja, nãoexcessivamente oneradas pela pobreza, e que a ordem léxico-gráfica prevê exceções (ocorrem, com efeito, fases históricas,como a da revolução industrial, em que a liberdade de indi-víduos privilegiados é menos importante do que a conquis-ta da igualdade pelos menos favorecidos), pode-se em geraldizer que a primeira manifestação da justiça verifica-se nadistribuição da liberdade, o mais fundamental de todos osbens. A égalité não é mais a meta cobiçada pela justiça social,assim como não o é a manutenção das desigualdades existen-tes, a estabilização do acaso. Rawls não só desconfia do cará-ter estagnante das sociedades igualitárias, como julga-as res-ponsáveis pelos efeitos perversos que induzem a violar a li-berdade sem realmente reduzir a tenaz das desigualdades. O“princípio das diferenças” representa, portanto, tambémuma alternativa moderada à luta de classes, a renúncia à sub-versão revolucionária de todas as desigualdades existentes.

O projeto de Rawls é uma das mais elaboradas ten-tativas para pensar o ordenamento das sociedades democrá-ticas, para fixar um ponto de equilíbrio entre a tradição li-beral de defesa das liberdades individuais e a democrático-

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205. J. Rawls, Una teoria della giustizia (1972), Feltrinelli,Milão, 1982, p. 67.

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radical de promoção das chances de vida aos mais desfavore-cidos. Ele está convencido de que as desigualdades são emalguns casos positivas, que constituem incentivos, enquan-to instrumentos para direcionar os recursos “nas mãos dequem pode fazer o melhor uso social deles”.206 Mas, para elea justiça está ligada a um princípio de solidariedade e defraternidade, a um critério tão inexorável de reparação so-cial dos males e dos danos que não recua nem mesmo dian-te da condenação dos dotes naturais como fonte de aloca-ção dos benefícios sociais. Os “talentos” de cada um nãoapenas são considerados como uma riqueza coletiva a serredistribuída no interior da comunidade, mas a sua própriapromoção não resulta absolutamente prioritária para a co-letividade. Assim, por exemplo, no campo da educação es-colar é de justiça que não sejam ajudados os mais inteli-gentes ou os mais espertos, e sim os menos inteligentes eos mais lentos, que sejam retificadas, conseqüentemente,no que for possível, tanto as desigualdades naturais quan-to as provenientes do background familiar. Há provavel-mente em Rawls, além do fundamento jusnaturalista dopensamento, um sensível patos religioso: o conceito de “so-ciedade bem ordenada” é, com efeito, explicitamente de-clarado uma extensão do conceito de tolerância religiosa euma interpretação do kantiano “reino dos fins”.

Como é possível, todavia, manter a solidariedadeem regimes democráticos caracterizados pelo pluralismo epelo individualismo, onde considera-se lícito que cada ci-dadão e cada grupo pode alcançar a seu modo o que acre-dita ser um bem? Como estabelecer, em tal contexto, nor-mas que permitam respeitar a divergente multiplicidade

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206. Id., “A Kantian Concept of Equality”, in: TheCambridge Review, fev. 1975, p. 97.

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dos valores e dos planos de vida, mantendo uma “neutrali-dade liberal” em relação às diferenças constatadas, semcom isso destruir o vínculo social e levar todos ao caos?Como pode um Estado conservar a própria estabilidade nafalta de valores concretos unificadores e efetivamente par-tilhados, sem se comprometer com o reconhecimento demodelos abstratos de justiça? Os temas da duração das ins-tituições e da justiça na perspectiva das gerações futurasentrelaçam-se no último Rawls, com a elaboração de umesquema de convivência entre as diversidades obtido me-diante o “consenso por intersecção”. Toda a sua obra maisrecente concentra-se, assim, no esforço para responder àpergunta “como uma sociedade justa e estável de cidadãoslivres e iguais, mas profundamente divididos por doutrinasreligiosas, filosóficas e morais razoáveis, pode constitutiva-mente manter-se no tempo?”.207

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207. Id., Political Liberalism, Columbia Univ. Press, NovaYork, 1993.

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Os horizontes da Terra

Transportando gradualmente o problema do plano dajustiça no interior dos Estados para o da relação entre asdiferentes populações e culturas do planeta, os críticos deRawls põem em dúvida os pressupostos fundamentais dasua teoria. Objetam: a “situação originária” do contratosocial, na qual os indivíduos aparecem despidos de qual-quer determinação histórica, movidos somente pelo cálcu-lo de minimizar os riscos, não pressupõe, talvez, sujeitosdos quais se “dá por descontada a especificidade antece-dente”, ou seja, constituída de maneira abstrata, fora detodo vínculo social?208 E esses indivíduos, preexistentes atoda forma de comunidade, estão verdadeiramente emcondições de entrar em acordo, com base em regras dota-das de uma racionalidade neutra, aprendida, além disso,de maneira misteriosa? Os communitarians contrapõem,conseqüentemente, ao “atomismo” dos liberals (ou ao “in-dividualismo metodológico” dos que consideram que se

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capítulo 10

Olhando para frente

208. M. Sandel, “Justice and the Good”, in: Liberalism andthe Limits of Justice, Cambridge Univ. Press, 1982.

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deve partir da perspectiva dos particulares para chegar aosbens sociais como agregado dos bens individuais) a idéiaque “viver em sociedade é uma condição necessária”, tan-to do “desenvolvimento da racionalidade”, quanto da pos-sibilidade de cada um tornar-se “um ser plenamente res-ponsável, autônomo”. A “necessidade de pertencer” a umacomunidade é, portanto, inseparável tanto da condição deser titular de direitos, quanto da de cuidar dos própriosinteresses privados”.209

O “diálogo de surdos” que opõe os “comunitários”(Michael Sandel, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, emparte Michael Walzer) aos liberals ou “universalistas” (JohnRawls, Jürgen Habermas, Ronald Dworkin) versa em pri-meiro lugar sobre a possibilidade de ancorar os direitos ouem determinadas sociedades, que articulem de maneira es-pecifica as diversas capacidades e expectativas dos indiví-duos, ou na humanidade enquanto tal. A questão logo am-pliou-se e transformou-se, como que por linhas internas,na do “multiculturalismo”, dos critérios a adotar para aconvivência entre culturas e etnias diversas, cada uma mo-vida por valores muitas vezes contrastantes (e, no momen-to, não componíveis). Os problemas precedentes são assimreformulados em grupo: como limitar ou preservar a igual-dade e a paridade de acesso aos direitos entre pessoas quepertencem a povos e culturas diversas? Ainda: deve-se pro-teger as minorias e, mais em geral, os que resultam dequalquer modo desfavorecidos pelo poder de algum grupodominante, concedendo-lhes benefícios reequilibrantes? E,

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209. Cf. Ch. Taylor, “Atomism”, in: Id., Philosophy and theHuman Sciences. Philosophical Papers, Cambridge Univ.Press, Cambridge, 1985, p. 190-207.

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enfim, uma sociedade liberal – ou seja, que mantém a má-xima neutralidade diante do conflito entre valores – deverespeitar também os grupos ou as culturas que não reco-nhecem os direitos dos outros?

Abre-se, assim, em termos lógicos, uma formidáveltensão entre extremos, além do mais, empiricamente ine-xistentes: a diferença não relacionável e o universalismomonolítico. De fato, existe uma ampla gama de gradaçõesintermediárias, de compensações variadas, de dosagens su-tis entre estas duas margens geralmente inaceitáveis (quetêm entre si uma relação de complementaridade, como aque se instaura entre o côncavo e o convexo). Como exem-plos de tais práticas de retificação pode-se ver como nas so-ciedades liberais prevalece a propensão a salvaguardar asdiferenças com espírito de tolerância e de respeito à alteri-dade. Gera-se, todavia, no seu interior, um inevitável pedi-do de limites traduzíveis na interrogação: tolerantes (res-peitosas, hospitaleiras e cosmopolitas) até que ponto? Comsimetria espelhada ao inverso, também as sociedades fecha-das, que escolhem determinados valores como absolutos,são levadas a se perguntar: intolerantes (xenófobas, nacio-nalistas e integralistas) até que ponto?

O fundo sobre o qual vicejam tais perguntas é consti-tuído pelos processos de “globalização”, que continuam ase estender, modificando os nossos modos de ver e de pen-sar. Menos velozmente, porém, e com impacto psicológicomenor do que se pensa. Certamente, o mundo se “restrin-ge”, à medida que as suas partes entram em uma tramamais cerrada de relações; a sociedade se “macdonaldiza”,mediante a criação de padrões de consumo comuns a todasas latitudes; as elites transnacionais (técnicos, pilotos deaviação, cientistas, artistas, representantes de organismos

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internacionais, usuários e vendedores de tele-trabalho)multiplicam-se. Contudo, radicaliza-se, em contrapartida,por parte de muitos povos, culturas e subculturas, a simul-tânea vontade de separação do contexto planetário. Os mo-delos mais antigos de convivência e de mentalidade se“desjuntam” sem que os mais recentes se sedimentem nomesmo ritmo. Assumir hábitos ou idéias de origem estran-geira não incide muito nas estruturas profundas da identi-dade, pelo menos de imediato. O fato de um japonês beberCoca-Cola não o torna um norte-americano, tal como este,ao comer sushi não se torna um japonês.

Assiste-se assim ao estrabismo, à divergência entre glo-balização e fragmentação, à expansão paralela do isolamentocentrífugo e da “mundialização” centrípeta. Justamentequando aumenta a taxa de integração entre os contintentes epovos, cresce – com igual ou maior intensidade – o esforçode alguns países e culturas para se desvincular deste abraçopercebido como sufocante. Cria-se, assim, uma mistura ex-plosiva de ressentimentos para com as potências hegemôni-cas, de orgulho étnico, de fanatismo religioso, de tradiçõesilustres, às vezes, inventadas, de procura de vias alternativascom relação aos “desvalores globais” do progresso incessan-te, do consumismo ou do individualismo. Muitas civiliza-ções sofrem o trauma do desenraizamento, da “desterritoria-lização”, da perda de contato com o húmus das tradições noqual os seus componentes estavam, até poucas gerações atrás,quase totalmente inseridos. Podemos legitimamente nosperguntar se o renascimento dos chamados “particularis-mos” e “localismos” não constitui, pelo menos em parte,uma reação à inserção de indivíduos, camadas e povos nasmalhas cada vez mais estreitas (e para alguns opressivas) dasrelações planetárias de interdependência. Alimenta-se, com

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efeito, nos que estão menos “preparados”, ou menos dispos-tos a sintonizar-se com um tal sistema altamente coordena-do, um agudo e doloroso sentido de inferioridade, fomenta-se indiretamente o repúdio da homologação imposta, a sus-peita de um injusto retrocesso, a certeza de uma perda desoberania e de importância na arena internacional. Reage-se, assim, por “excesso de legítima defesa”, reforçando des-proporcionalmente de maneira compensatória a própriaidentidade, julgada ameaçada ou desprezada. Daí, a vonta-de de encerrar-se em si mesmo e a auto-exaltação dos pró-prios valores, crenças e costumes, a exibição triunfalistacom relação às próprias “raízes” nacionais e religiosas. Ob-serva-se, às vezes, em algumas populações, a manifestaçãode uma espécie de amor traído e rejeitado, a ira lutuosa pornão terem sido chamadas a participar, em igualdade de con-dições, pelos países mais ricos e mais poderosos,dos grandesprojetos de modernização.

É possível elaborar um código moral e com ele articulare tornar compatíveis, de maneira inovadora, regras e critériosde julgamento os mais diversos? É verdadeiramente praticá-vel a hipótese de uma “ética planetária”? Os comunitaristastendem, em geral, a dar uma resposta negativa a ambos osquesitos, enquanto os universalistas estão, em geral, propen-sos a responder em termos positivos, pelo menos na perspec-tiva de uma aproximação infinita. Uma tal ética deveria cor-responder ao efetivo desenvolvimento de uma consciênciamoral e civil transnacional, modelada em experiências con-frontadas e compartilhadas. Parece, todavia, extremamentedifícil conciliar regras morais e jurídicas talvez dotadas demaior universalidade e plausibilidade, mas privadas da sus-tentação de hábitos locais consolidados, com a necessidade deidentidade e de auto-estima, escassamente negociáveis, ex-

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pressas por muitas comunidades. É também duvidoso queexistam, no momento, esquemas de convergência e de com-patibilidade entre culturas heterogêneas. O obstáculo maiorreside, de qualquer maneira, no fato de que as grandes civili-zações mundiais ainda estão a caminho, estão tentando peno-samente encontrar-se e entender-se mais a fundo. E isso, mal-grado o fato de que nos encontramos, segundo a fórmula deEdgar Morin, no “quinto século da era global”, ou seja, a par-tir do momento em que o Velho e o Novo Mundo se conhe-ceram em 1492. Certamente, uma ética planetária mínima(fundada num restrito número de normas universalmente di-fundidas e razoavelmente defensáveis) seria preferível a con-glomerados de valores que se excluem ou se ignoram recipro-camente. Com efeito, em príncipio, o universal pode com-preender o particular, mas o contrário nunca ocorre.

Mas de que universalismo estamos falando? Do esta-belecido sobre leis rígidas e imutáveis, que exigem seremreconhecidas por todos os “homens de boa vontade”?Nesse caso, dever-se-ia seguir a regra aristotélica, segun-do a qual contra principia negantes non est disputandum, ouseja, recusar qualquer diálogo com os que negam princí-pios para nós racionalmente fundados ou auto-evidentes.Eles, com efeito, seriam similares a “um cepo”, ou em lin-guagem mais moderna, moralmente cegos ou daltônicos.É necessário, porém, estarmos seguros de que tais princí-pios representam efetivamente as premissas de um acor-do universal e não, antes, a sublimação de preconceitosetnocêntricos. Por outro lado (pensando no atual neo-kantismo de Karl-Otto Apel ou, em menor medida, deJürgen Habermas e de John Rawls), é irrealista conside-rar que a maior parte dos homens se deixe convencer porsimples raciocínios que se apóiam sobre uma “fundação

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última” das normas éticas, sobre uma mera “ação comu-nicativa” ou sobre modelos contratualistas de uma socie-dade justa. É talvez mais sensato acreditar – como tam-bém julga um discípulo de Habermas – que o encontroentre homens e culturas diferentes implica uma “lutapelo reconhecimento” (posição esta também compartilha-da por Taylor).210 Em outras palavras, que, de fato, asidentidades individuais e coletivas são o resultado não so-mente – e não tanto – de interações racionais, quanto so-bretudo de uma variada mistura de violência e consensoou mesmo de violência que se racionaliza em consenso ede compromissos que refletem relações de força variáveis.Isso não exclui, obviamente, que, do ponto de vista filo-sófico e civil, devam-se usar somente as razões da inteli-gência e recusar as da violência e da manipulação.

Para proceder de maneira fecunda no debate seria pre-ciso, porém, compreender melhor os processos de formaçãodas “pontes de sentido” entre particular e universal ou entreo “eu” e o “nós”. As idéias de “humanidade” ou de “huma-nismo”, hoje envoltas num halo de desconfiança e de suspei-ta, representam uma casa suficientemente hospitaleira paraacolher todas as diferenças ou, pelo contrário, confundem demaneira irremediável, a essência do homem com uma suaforma histórica particular (branco, de origem européia, ou,como se especifica cada vez mais freqüentemente, também“macho”, “heterossexual”e “judeu-cristão”)? Neste últimocaso, trocar-se-ia o autêntico universalismo pelos valores “lo-cais”, forçosamente impostos pelos europeus ao mundo du-

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210. Cf. A. Honneth, Kampf um Anerkennung, Suhrkamp,Frankfurt a. M. 1992 e Id., Riconoscimento e disprezzo, Ru-bettino, Messina, 1993.

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rante séculos de colonialismo e de exploração. O desafio é sé-rio e seria necessário ter uma dupla coragem: de um lado,para não se deixar intimidar pela agressividade e blindagemgratuitas (de caráter “adolescente”, com uma negatividade euma agressividade típicas de identidades ainda frágeis) deminorias, às vezes, mais políticas que numéricas; de outro,para olhar o lado escuro do nosso universalismo, ouvindo asvozes alheias e perguntando-nos onde ele poderia ser injus-to. Os particularismos e os “fundamentalismos” nascem,com efeito, sobretudo no interior dos povos e dos grupos queforam excluídos do banquete do universalismo e que, porisso, recusam defensivamente um jogo no qual sempre foramhabituados a perder. Resta a tarefa ciclópica, mas irrenunciá-vel, de tentar entrançar pacientemente na “corda” da huma-nidade (que resulta tanto mais robusta, quanto mais histó-rias parciais consegue conectar entre si) todas as várias dife-renças, sem se propor ignorá-las ou zerá-las.

Um empreendimento desesperadamente votado aoinsucesso, segundo muitos. E, certamente, para o seu bomêxito não concorrem a maior parte dos instrumentos con-ceituais de que a filosofia tradicionalmente dispõe. Os cri-térios do universalismo apóiam-se, com efeito, em pressu-postos metafísicos que, enfraquecendo-se, conduzem a for-mas de relativismo mais ou menos “irônico”. A constatadaperda de prestígio das filosofias que tinham procurado ar-ticular a realidade e o saber na base de uma razão universalunitária, marmórea e eterna, capaz de fundar um conheci-mento certo e inabalável, produz um cético desencanto.Enfatizam-se, assim, a pluralidade e a autonomia das cul-turas humanas, pondo em evidência tudo o que se apresen-ta como diverso, anômalo, caótico, não reconduzível à uni-dade ou constituído – como julga Jean Baudrillard – de

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“simulacros” caracteristícos da sociedade de consumo e dosmeios de comunicação de massa.211

Por trás da idéia de unidade da “razão” suspeita-se,agora, que existe uma vontade de poder que inibe a evolu-ção divergente de outras expressões de pensamento e de ci-vilização ou, de maneira mais benevolente, uma imagemsimilar a de uma remota estrela cadente que não mais exis-te, ainda que continuemos a ver sua luz. Ao invés de con-siderar os homens como seres integralmente históricos –enraizados em crenças, desejos e preconceitos apreendidosno interior de determinadas comunidades – avista-se a mi-ragem de uma consciência individual fora do tempo e doespaço, sede da verdade e da moral. E enquanto a maiorparte das filosofias do passado tinham concentrado os seusesforços para captar as estruturas invariantes, a-históricasdo pensamento humano ou para caracterizar um terrenocomum de encontro chamado “razão”, a cultura filosóficaatual parece, ao contrário, destacar a improponibilidade detodo esquema unificador. O cerrado confronto entre idéiase culturas reduz-se de tal modo a uma “longa conversaçãodo gênero humano” sem compromisso, na qual cada umpode intervir criativamente inventando ou relançando ar-gumentos, dando-se conta, porém, de que todo entendi-mento é um subentendimento. Desse modo, de um lado, adiscussão torna-se mais maneável, porque as divergênciasde opinião são compostas de maneira elegante e tolerante;de outro, evita-se cuidadosamente aprofundar as questões,considerando simplesmente “loucos” os que não têm von-

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211. Cf. J. Baudrillard, Lo scambio simbolico e la morte(1976), Feltrinelli, Milão, 1979; Id., Simulacres et simula-tion, Galilée, Paris, 1981.

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tade de levar em consideração, apenas porque as suas tesesestão fora do que “é determinado pela nossa educação, pelanossa situação histórica”.212

Da Itália

Se, mudando de escala, passamos de uma perspectivaglobal (ou, pelo menos, européia e norte-americana) a umalocal, somos capazes de avaliar, quase por amostragem, as cor-respondências e peculiaridades nacionais com relação ao cená-rio mundial. Desde o fim dos anos sessenta, com percursos etermos originais, também a filosofia italiana inseriu-se, as-sim, substancialmente no mais amplo debate internacional.A fase mais aguda e inovadora da mundança de perspectivascorresponde ao declínio de tendências outrora hegemônicasna Península, em particular, as várias famílias da dialética edo historicismo. O patos pela história e pelo valor salvífico dapolítica transforma-se, então, seja em desencanto, seja em le-var a sério o “nihilismo”. No plano sociológico, tal inflexãofoi acompanhada pela substituição da relação privilegiada dafilosofia e das ideologias italianas com os “partidos éticos”,pela da opinião pública e os meios de comunicação de massa.

A reabilitação de pensadores já condenados como “rea-cionários” ou “irracionalistas” (Nietzsche, Wittgenstein,Schmitt, Heidegger) fornece agora as armas para uma espé-cie de ataque dirigido contra as posições precedentes. Às con-cepções trágicas, ainda que com final otimista – que descre-

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212. R. Rorty, “The Priority of Democracy over Philo-sophy”, in: Objectivity, Relativism and Truth. PhilosophicalPapers, vol. I, Cambridge Univ. Press, 1983.

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vem uma humanidade desembarcada, depois de uma longaperipécia, nas praias do reino da liberdade ou nas da socieda-de sem classes –, Massimo Cacciari contrapõe, assim, a idéiade krisis, de emergência permanente. Ela não garante qual-quer salvação. Encerra, porém, novas oportunidades intelec-tuais e indica estilos exemplares de conduta, encontráveis,por exemplo, nos “homens póstumos”, nos grandes mestresda décadence que povoam a Viena do finis Austriae. O “pensa-mento negativo”, sugerido por Cacciari que assumiu, com otempo, tons sempre mais neoplatônicos, não pretende, toda-via captar a verdade desvelada. Visa, antes, a manter a presen-ça do irrepresentável no representável e do invisível no visí-vel. No lugar das teorias filosóficas que iam à procura de ummodelo de rigor absoluto nos inexoráveis procedimentos daciência, entra, com Aldo Giorgio Gargani, um “saber semfundamentos”, que encontra nos “rituais epistemológicos”práticas consoladoras tendentes a eliminar as inevitáveis in-certezas denunciadas, a seguir, pela “crise da razão”.

Divide-se agora, também, a estrutura da história, dia-leticamente entendida como o devir, através de contradi-ções. De um lado, há quem, como Emanuele Severino,nega a própria existência do devir, considerando um absur-do lógico a oscilação entre o ser e o nada. Os entes são, comefeito, eternos, e portanto, não nascem e não morrem: mes-mo permanecendo no horizonte do ser, saem simplesmen-te do campo de visibilidade do aparecer, para nele retornarsegundo ritmos cíclicos. Exorcizamos, paradoxalmente, ofantasma do devir, por nós mesmos criado, mediante o re-curso a outros entes fictícios (os “imutáveis” produtos daciência e da religião, como as leis físicas ou Deus). Eles nosagradam porque representam a satisfação indireta do nossodesejo de escapar da caducidade e da morte. De outro lado,

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Gianni Vattimo, utilizando a hermenêutica para invalidartodo projeto de reapropriação de si ou de sair fora da reali-dade alienada, acentua, pelo contrário, o tema da impossi-bilidade de encontrar um sentido acabado à história, amea-çada por um devir que endossa as vestes da caducidade e dafragilidade. A heideggeriana Verwindung, entendida comodespedida das idéias e dos valores fortes da tradição meta-física, é assim contraposta tanto à hegeliana e marxianaAufhebung, quanto à Überwindung dos que pensam “supe-rar” o horizonte da própria metafísica. Assim, se o volumecoletivo La crisi della ragione foi a tentativa extrema de sal-var o poder de síntese no interior do tecido simbólico da“razão”, Il pensiero debole marcou, por sua vez, completoabandono de tal objetivo. Por causa da sua insubstituibili-dade, os “imutáveis” e os traços amortecidos da razão uni-tária, com todas as suas exorbitantes pretensões, não devemporém ser cancelados. Deve-se, antes, salvaguardá-los e re-memorá-los, exprimindo com relação a eles uma pietas aná-loga àquela que se manifesta com relação a tudo o que, en-quanto finito, se consome e morre.213

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213. Cf. Massimo Cacciari, Dallo Steinhof. Prospettive, ven-nesi del primo Novecento, Adelphi, Milão, 1980; Id., L’ange-lo necessario, Adelphi, Milão, 1986; Id., Dell’inizio, Adel-phi, Milão, 1990; A.G. Gargani, Il sapere senza fondamen-ti, Einaudi, Turin, 1975; Crisi della ragione, org. porA.G.Gargani, Einaudi, Turin, 1979; E. Severino, L’essenzadel nichilismo (1972), Adelphi, Milão, 1995 (nova ed.); Id.,Il destino della necessità, Adelphi, Milão, 1980; Il pensierodebole, org. por G. Vattimo e P. A. Rovatti, Feltrinelli,Milão, 1983; G. Vattimo, La fine della modernità. Nichilis-mo ed ermeneutica nella cultura post-moderna, Garzanti,Milão, 1985.

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Rorty: comunidade e verdade

Foi Richard Rorty, em particular, quem combateu a“metafísica” e sublinhou o papel dos contextos sociais.Reatando com a tradição do pragmatismo norte-americano(para o qual a verdade é o resultado de regras e procedi-mentos aceitos no interior de uma dada comunidade), elerefuta os pressupostos plurimilenários do pensamento oci-dental tendentes a garantir seu incondicional caráter abso-luto mesmo na insuperável contingência das situações hu-manas. Refuta, assim, tanto o conceito de realidade exata-mente reproduzível sem deformações pelo “espelho” oupelo “olho” contemplativo da mente214, quanto o da coe-rência puramente lógica do raciocínio e da ação. Rorty, quenão quer se entregar à “neurótica procura cartesiana da cer-teza” e prefere, de longe, uma filosofia capaz de oferecer,pelo menos, alguma noção sobre a maneira pela qual “asnossas vidas poderiam mudar”215, delineia duas posiçõesexemplares relativas à verdade. A primeira, remonta a Pla-tão, ancora a própria verdade numa dimensão sobre-huma-na, na nossa “vítrea essência” que captaria de maneiratransparente uma “objetividade” posta acima de todo cri-tério acordado por grupos humanos concretos; a segunda,remonta a William James e a John Dewey, liga, pelo con-trário, a verdade a práticas sociais compartilhadas de justi-ficação e de controle.

Platão elaborou uma teoria da verdade que não se vin-cula, em absoluto, com a comunidade dos dialogantes efe-

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214. Cf. R. Rorty, Philosophy and Mirror of Nature, Prince-ton Univ. Press, 1979.215. Id., Consequences of Pragmatism, Brighton, Harvester,1982.

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tivos. E isso para evitar um duplo relativismo: sofístico eetnológico (para dar um exemplo, segundo Heródoto, osmesmos Massagetas que comiam os seus pais, por conside-rarem que o melhor túmulo fosse o estômago dos filhos, te-riam recusado com repugnância a possibilidade de queimá-los sobre a pira, segundo o costume dos Gregos). Ele in-venta, para tal propósito, uma comunidade artificial de fi-lósofos que legisla sobre as regras de validade do discurso,vinculando-as a essências (“idéias”) que, uma vez alcança-das, impor-se-iam ao homem pela sua luminosa, indiscutí-vel evidência. A verdade resulta, assim, fundada sobre pro-cedimentos de caráter auto-reflexivo próprios a um gruporestrito que se arroga o direito de representar toda a huma-nidade de qualquer lugar e tempo. Deve-se, porém, obser-var que na realidade – malgrado as críticas de Rorty – Pla-tão procura justamente “edificar” a verdade por meio deuma procura comum. Todos os homens dotados de logos (eaté mesmo um escravo ignorante), se oportunamente guia-dos, podem alcançar conhecimentos corretos. O diálogopassa, com efeito, pela peneira os diferentes pontos de vis-ta, mostra como algumas opiniões encontram o caminhofechado, resultando estéreis e intransitáveis, enquanto ou-tras permitem a confluência e o deságüe das diversas linhasargumentativas, de modo que, ao final, conduzem a solu-ções convincentes para todos. Obtém-se, assim, uma ver-dade que é, subjetivamente, um ponto de chegada, sem-pre provisório, mas que tem uma “objetividade” própria,extraterritorial com relação às diversas culturas e aos pon-tos de vista individuais. A verdade suprema é como o sol,que não se pode olhar por muito tempo sem perder a vis-ta. Mas a razão que o contempla, mesmo nos seus reflexos,torna-se de toda forma a pátria de todos, a tradição parti-

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lhada pela humanidade. O núcleo mais consistente do pen-samento ocidental procedeu justamente por essa estradamestra, da qual a própria verdade aparece sólida porquefundada, não sobre as areias movediças das opiniões subje-tivas, mas sobre o solo de granito da episteme, da ciência.

A essa perspectiva, Rorty contrapõe a transformaçãoda objetividade em “solidariedade”, ou seja, que define averdade em relação àquilo que uma comunidade específicaacredita e argumenta, ao “nós” dos falantes ou dos pensan-tes. Nesse sentido, portanto, “verdade” é o que encontrariamenos resistências para ser aceito por aqueles que seguemdeterminadas regras históricas de verificação; falsidade, ocontrário.216 A filosofia deveria evitar a tentação de procu-rar os fundamentos últimos da realidade e do pensamentoe se limitar a propor discursos “edificantes” (no duplo sen-tido arquitetônico e moral). Ou seja, deveria erguer mora-dias acolhedoras, onde a convivência humana pudesse me-lhor se desenvolver, sem necessidade de recorrer a práticascomunicativas enrijecidas por esquemas pré-fixados. O ob-jetivo da filosofia numa época “pós-filosófica”, que nãotem mais necessidade de práticas fundantes, consiste justa-mente em manter viva a criatividade de formas de diálogoque não pressupõem nenhum “vocabulário dado”.

Para Rorty, não se trata, em absoluto, de deslegitimi-zar a racionalidade ou a moral. Ele está, pelo contrário, detal maneira afeiçoado à “esperança social” a ponto de con-siderar que os valores abstratamente universalistas desvita-lizam as comunidades históricas singulares, impedindo-as

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216. Id., “Solidarity or Objectivity?” in op. cit., “Solida-rietà od oggettività?” (1983), in: Scritti filosofici, cit., I, p.29-46.

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de resolver questões urgentes e concretas. De resto, diz queas liberdades da necessidade, da opressão e da crueldadenão precisam de outra justificação que as da sua desejabili-dade. O que conta, para nós habitantes do Ocidente, “irô-nicos liberais”, é uma democracia que possa prescindir tan-to da fundação religiosa quanto da legitimação filosófica.Basta a autoridade “constituída por um acordo coroado desucesso entre indivíduos que se descobrem herdeiros dasmesmas tradições históricas e postos diante dos mesmosproblemas”. Essa forma de democracia é de tal maneirapreciosa que, no caso de “o indivíduo encontrar na própriaconsciência crenças que são relevantes para a política pú-blica, mas indefensáveis com base nas crenças compartilha-das pelos seus concidadãos, ele deve sacrificar a sua cons-ciência no altar do bem público”.217

Como evitar então o arbítrio das opiniões e a preferên-cia concedida aos próprios valores, mesmo na forma de pre-conceitos etnocêntricos? A desconfiança na possibilidadede lançar pontes de comunicação entre pessoas pertencen-tes a diversas culturas tornou-se cada vez mais forte emRorty. Assim, se em La filosofia e lo specchio della natura ha-via observado que os colonos ingleses e os aborígenes daTasmânia não tinham mais dificuldade para se comunicarentre si do que os primeiros ministros britânicos Gladsto-ne e Disraeli, agora tende a acreditar que existem, do pon-to de vista teórico, tantos critérios de verdade e de justifi-cação quantas são as culturas. Nenhum de nós é realmentecapaz de separar-se das próprias tradições e preconceitos,de superar a barreira da alteridade. Somos, com efeito, de

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217. Id., “La priorità della democrazia sulla filosofia”, in:Scritti filosofici, cit., I, p. 245, 238.

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tal maneira condicionados pelas regras que aprendemos eàs quais estamos habituados na nossa comunidade que tor-namo-nos inevitavelmente etnocêntricos. Para parafrasearHegel, não podemos sair dos nossos condicionamentos his-tórico-culturais, assim como não podemos sair da nossaprópria pele. O ideal de unificação das formas de pensa-mento sob a égide de uma verdade e de uma racionalidadesupercomunitária obedece, de resto, a um preconceito in-consciente: o de que a história do gênero humano caminha-ria inexoravelmente para uma convergência entre as váriascivilizações. Apoiando-se também em Feyerabend218, Rortysustenta, ao contrário, que seria preciso apostar na idéia deuma humanidade que caminha em direções divergentes,privilegiando a diferenciação e não a unificação. O melhora fazer é tornarmo-nos cônscios do peso ineliminável daspróprias tradições e tê-las em conta quando nos confronta-mos com outros, usando possivelmente a arma da ironia,da consciência, ou seja, do peso da contingência para rela-tivizar toda pretensão de caráter absoluto. Contudo, algumcritério geral existe, como o de combater a crueldade noque concerne a todos os seres sencientes e no “saber tirarimportância a várias diferenças tradicionais (de tribo, reli-gião, raça, usos, e similares) no confronto da semelhança nador e na humiliação, no saber incluir na esfera do “nós”pessoas imensamente diversas de nós mesmos”.219

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218. Cf. P. K. Feyerabend, Science in a Free Society, Nlb,Londres, 1978.219. R. Rorty, “Solidarietà”, in: La filosofia dopo la filosofia(1989), Laterza, Roma-Bari 1989, p. 221.

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Incerteza e desempenho

A ação comunicativa de Habermas e a teoria da justi-ça de Rawls representam, nas sociedades democráticas (ca-racterizadas por uma pluralidade de poderes e de valores emconcorrência), uma alternativa seja ao recurso da força nassoluções dos conflitos, seja ao da prática de uma penosa ne-gociação na qual vence quem tem maiores reservas de poderou até mesmo maior habilidade estratégica na persecuçãodos próprios interesses. Infelizmente, quando as distânciasentre os dialogantes ou entre os contendores mostram-se in-comensuráveis, ocorre freqüentemente que quem convence,não vence e quem vence, não convence. Recorre-se, então, àmanipulação ou à violencia, mais ou menos disfarçadas.

Por isso, Jean-François Lyotard propõe não buscar oconsenso, mas, antes, promover o encontro entre os dissen-sos, tentar compor o contencioso ou o dissídio (defférend)sem fazerem-se demasiadas ilusões. A seu parecer, basean-do-se sobre dois assuntos poucos realistas, Habermas erra.Em primeiro lugar, não é, de fato, verdadeiro que os inter-locutores são capazes de acordar-se sobre regras universal-mente válidas para todos os possíveis “jogos lingüísticos”(de per si heterogêneos e incompatíveis, dado que o co-mandar, por exemplo, não coincide em absoluto com o des-crever ou o pregar). Em segundo lugar, é falso “que a fina-lidade do diálogo seja o consenso”, dado que ele constituisomente “um estado das discussões e não o seu fim”. Ouseja, o consenso representa um horizonte provisório e mó-vel, nunca definitivamente adquirido. Ao seguir uma pers-pectiva emancipatória, também Habermas cai, para Lyo-tard, na ilusão dos meta-récits, teorias extrapoladas das“grandes narrações”, de mitos como a vitória final do pro-

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gresso ou o advento das sociedades sem classes. Algumasdessas fábulas para adultos surgem na idade moderna emvista da legitimação de autoridades que – não enterrandomais as suas raízes no passado da tradição – têm necessida-de seja de um alvo novo e macroscópico a ser alcançado nofuturo, seja de heróis coletivos que o representem (classeoperária, revolução ou democracia). Hoje, porém, na “con-dição pós-moderna”, os meta-récits perderam credibilidade,deixando-nos como herança conflitos e tensões dificilmen-te governáveis, mas dos quais é necessário, pelo menos, co-nhecer a cartografia.220

Em tais sociedades, onde – segundo uma expressão deMarx – “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, uma vezinfringidas as normas morais deduzíveis de valores absolu-tos, é possível ainda manter formas de conduta amplamen-te compartilhadas e relativamente estáveis? Se se olha paraos comportamentos efetivos das pessoas, parece justamen-te que não. Foi, com efeito, relevada como característicauma tenaz e inconsciente resistência em assumir obriga-ções morais de longo alcance. Ou seja, difunde-se a pro-pensão para tomar quase com exclusividade “empenhosque não empenham”, revogáveis e de toda maneira retifi-cáveis. São estes os non-binding commitments de que fala No-zick, quando examina a tendência do homem contemporâ-neo em modificar as próprias decisões passadas, de manei-ra a nunca se sentir definitivamente a elas vinculado. A suaargumentação é que não realizamos nunca escolhas motiva-das por “razões” dotadas de um pressuposto peso específi-co objetivo; somos nós, antes, que atribuímos – de quando

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220. Cf. J.F. Lyotard, La condition postmoderne, Minuit,1979.

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em quando – o peso adequado aos motivos das nossas de-cisões (peso que varia segundo o contexto e as justificaçõesque dele oferecemos). É, portanto, possível reformular con-tinuamente as próprias escolhas com base nas nossas variá-veis avaliações.221 Os non-binding commitments implicam defato que, junto à coerência, também o sentido de responsa-bilidade se enfraquece. Se se pensa, por contraste, na im-portância central que nas escalas dos valores tradicionaisassumia o respeito aos compromissos e à palavra dada, dapromessa, não se pode deixar de ver como a possibilidadede voltar sobre as próprias decisões marginaliza e desdra-matiza muitas escolhas, desvinculando o indivíduo da pró-pria fixa identidade com o passado e desencalhando-o dovelho si mesmo. A ética da coerência e da responsabilida-de – porquanto nem sempre explicitamente repudiadas –são diluídas em favor de uma “mudança endógena” daspreferências individuais e de um aclimatar-se de uma con-cepção da identidade pessoal não mais estreitamente confi-nada à continuidade psicológica do indivíduo. Este não sesente mais solidamente ancorado nas próprias escolhas pas-sadas, por elas bloqueado, porque é como se as suas deci-sões precedentes tivessem sido tomadas por outrem.

No corte nítido com o próprio passado pessoal, torna-do possível pela revogabilidade dos compromissos, pela in-fidelidade até para consigo mesmo apresentada por Nozick,manifesta-se – juntamente com uma maior liberdade e sol-tura no agir do indivíduo – também o seu progressivo iso-lamento, a perda da sua “placenta social”, a diminuição dosvínculos com os outros. Privado da plena e orgânica inser-

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221. Cf. R. Nozick, Philosophical Explanations, CambridgeMass., 1981.

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ção nos “corpos intermediários’ que o envolviam (família,comunidade da vizinhança, camada ou classe) e colocadoem contato direto com os seus similares e com as institui-ções, ele é ao mesmo tempo mais livre e mais só. Essa maisimediata vizinhança com a sociedade no seu complexo, comefeito, ao invés de projetá-lo ulteriormente na dimensão pú-blica, o induz a encerrar-se na esfera privada. ChristopherLasch focalizou a gênese de tal condição na análise de comodiminuem ou se transformam os laços de solidariedade numdos mais clássicos corpos intermediários: a família. A tesesustentada é que a família cessou de ser o porto seguro num“mundo sem coração”, o lugar que deveria revigorar o ho-mem em sua dura luta contra a realidade e os condiciona-mentos externos e servir de proteção e invólucro para mu-lher e filhos. Hoje, ela não abriga mais suficientementenem adultos, nem crianças. A desagregação do instituto fa-miliar faz-se acompanhar também por uma desativaçãoemotiva daqueles vínculos que entreteciam amor e poder,sentimentos e instituições. A família tornou-se agora maisporosa às mudanças externas, menos isolada, mais seme-lhante à sociedade que a circunda. Os pais se “proletariza-ram” e houve um nítido enfraquecimento da autoridade“vertical”, com um paralelo incremento de legitimação dasrelações “horizontais” igualitárias (daí a concepção do ma-trimônio como companionship ou a maior vizinhança entrepais e filhos), mas também com a ininterrupta negociaçãodos papéis. Obrigados a defender os resíduos da sua autori-dade não mais garantida de antemão, os pais freqüentemen-te abdicam da sua figura tradicional, recorrendo a tratativasdesgastantes ou a manipulações escondidas.222

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222. Cf. Ch. Lasch, Haven in a Heartless World, Nova York,Basic Books, 1979.

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Em mudança, não está, todavia, apenas a estrutura dasfamílias ou das sociedades, mas também a dos indivíduos.De “moderna” ela ter-se-ia tornado, pelo menos, em algu-mas áreas do planeta, “pós-moderna”. O indivíduo moder-no caracteriza-se, com efeito, por uma identidade sólida edurável, construída “com cimento e aço”; o indivíduo pós-moderno por uma identidade de “plástico”, móvel, cance-lável e reciclável como um video-tape. Os modernos apare-cem também como peregrinos no tempo, homens que semovem segundo uma meta e um projeto, pelo que a iden-tidade torna-se neles construção, previsão e trajeto. Os pós-modernos, pelo contrário, estariam adaptados a morar nodeserto, a viver a experiência da fragmentação do tempo ea ter a percepção nítida da distância incolmatável entre osideais do eu e a sua realização. Não se colocariam para simesmos, portanto, a tarefa de construir algo de estável, esim a de passar por uma série de atividades provisórias,cambiantes e flutuantes. De tal maneira, sobretudo noOcidente, a mobilidade – que antes era típica de grupos oupovos marginais – seria hoje praticada por maiorias. Ouseja, o nomadismo ter-se-ia transfomado em turismo demassa. Assiste-se, com efeito, à sua “adiaforização”, ou seja,a tornar-se indiferente, como resposta defensiva a doses ex-cessivas de experiências de desenraizamento.223

Poder-se-ia, todavia, licitamente duvidar de que oproblema da identidade passa por fases tão drasticamentecontrapostas. Sua conquista foi efetivamente sempre difí-cil e o movimento oscilatório e desequilibrante da manu-tenção da personalidade através do tempo não é certa-

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223. Cf. Z. Bauman, Intimations of Postmodernity, Routled-ge, Londres, 1992; Id., Le sfide dell’etica (1993), Feltrinel-li, Milão, 1996, em particular p. 244 s.

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mente uma característica exclusiva do mundo pós-mo-derno (e logo, por inciso, somos deveras todos assimpós-modernos, móveis, nômades e inimigos de toda esta-bilidade?). Parece, ao contrário, perceptível atualmenteuma quantidade de sinais de contra-tendência, ainda aanalisar, que mostram reações de recusa ao desenraiza-mento, mas que convivem, não obstante, com o adversá-rio que combatem, sustentando-se alternadamente me-diante mecanismos involuntários de convivência antagô-nica. Parecem estar em ação, com efeito, duas linhas deforça contrastantes e simultâneas: de um lado, em algu-mas áreas econômica e socialmente privilegiadas do mun-do, multiplica-se o número dos indivíduos “livrementeflutuantes”, que tendem a se desvincular dos condiciona-mentos da tradição; de outro, crescem paralelamentealhures – corroendo a faixa central dos indivíduos defini-dos “modernos” – tipos de personalidade que querem re-fundar a própria identidade vinculando-a a instituições eentidades tradicionais (consideradas, até há pouco “pré-modernas” e, como tais, desprezadas enquanto considera-das derrotadas pelo Iluminismo, pela Ciência e pelo Pro-gresso). As etnias e as grandes religiões monoteístas pare-cem, conseqüentemente, retomar o próprio antigo papelde protagonistas e de agencies de enraizamento. Detrás dos“fundamentalismos” religiosos, dos “particularismos”,dos “nacionalismos” recentes – qualquer que seja a ma-neira de entendê-los – coloca-se, seja como for, uma reno-vada, inequívoca necessidade de enraizamento. E é justa-mente essa necessidade que, permite ver, como numalente de aumento, um elemento estrutural que, de outramaneira, poderia passar desapercebido: ou seja, que aidentidade individual descende sempre, por mil fios, daidentidade coletiva e que é até mesmo impensável sem

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ela. Descobre-se, assim, que a nossa ilusão de não ter re-lações de dependência com as instituições coletivas desentido, deriva do patos com o qual o indivíduo reivindi-cou nesses últimos séculos a sua autonomia com relaçãoaos sufocantes vínculos do passado, ou seja, depende dasua vontade de subtrair-se ao arbítrio alheio (enquanto aidéia de “liberdade”, antes de se tornar retórica, continhaalgo de muito concreto: a recusa da escravidão e da de-pendência pessoal). Nessa perspectiva, o fato de se procu-rar uma redefinição de si, recorrendo ao enraizamento emidentidades externas fortes (como as Igrejas ou as “comu-nidades” nacionais, “pré-modernas” justamente porque sepensava que estavam metabolizadas, digeridas, para logodescobrir que não é verdade), mostra simplesmente que oenlace com a dimensão coletiva mudou, e não que não tí-nhamos enlaces e que os nossos lastros estabilizadores ins-titucionais deslocaram o nosso centro de gravidade, e nãoque precedentemente estes não existiam.

O retorno da responsabilidade

Frente ao temido estender-se dos non-binding commit-ments, é cada vez mais lembrada a obrigação de cada um sesentir pessoalmente empenhado em prestar conta de deter-minadas formas de conduta que lhe são imputáveis. PaulRicoeur conecta, assim, a identidade pessoal, no campoético, não ao “eu” (termo vazio, entidade desancorada),mas ao “si” (reflexividade que integra num tertium daturidentidade e alteridade). Este “si”, por outro lado, não é oIdem, caracterizado pela permanência no tempo e pela com-paração dos vários estados do sujeito entre si, mas o Ipse, apersonalidade que se conserva projetando-se para a palavra

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dada, mantendo-se fiel à “promessa”. O Ipse permanececoerente consigo mesmo conjugando simultaneamente aopresente tanto o “débito” com o passado quanto o compro-misso com o futuro.224 Foi, porém, principalmente HansJonas que teorizou mais diretamente o “princípio respon-sabilidade”, em simétrica oposição ao “princípio esperan-ça” dos que – como Ernst Bloch – favoreceram o pensa-mento utópico ou as atitudes prometéicas de dominação danatureza e de progresso sem limites. Eles, com efeito, nãose deram conta que – ao invés de produzir grandes trans-formações positivas – acabaram por ameaçar a própria so-brevivência da espécie humana e de todo o planeta, levan-do a sério as utopias e transformando-as, assim, de inócuoexercício literário ou filosófico em perigosos programas deperturbação do mundo.225 A atitude de Jonas (baseadanuma “heurística do medo”, ou seja, na escolha negativa deevitar o mal maior da autodestruição do homem, uma vezque não é possível nem justo conseguir um acordo genera-lizado sobre o que é e como dever-se-ia obter o “bemmaior”) choca-se com as posições do último grande teóricoda ética da responsabilidade, Max Weber. Este havia, comefeito, sustentado, no quadro de um elogio à previsão apai-xonada, que “o possível não seria alcançado se no mundonão se tentasse sempre o impossível”.226 Hoje, quando o ho-mem tornou-se um ser altamente nocivo, incapaz de ava-liar adequadamente o resultado conjunto das ações de to-dos e de cada um, com o risco efetivo de alterar equilíbrios

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224. Cf. Paul Ricoeur, Soi-même comme un outre, Seuil, 1990.225. Cf. Hans Jonas, Il princípio responsabilità. Un’etica perla società tecnologica (1979), Einaudi, Turin, 1990, p. 3 s.226. M. Weber, “La política come professione” (1919), in: Illavoro intellettuale come professione, Einaudi, Turin, 1966, p. 121.

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delicados, em parte ignorados, hoje, quando cada um con-tribui, de sua parte, para a degradação do ambiente e paraa depauperação dos recursos, a responsabilidade, a cautela,a reflexão constituem uma obrigação vinculante e ineludí-vel. Também porque as potencialidades destrutivas da es-pécie humana aumentam, justamente, no momento emque diminuem os seus dotes de previsão e de controle dosprocessos de autoperpetuação. Paradoxalmente, a ameaçada catástrofe deriva não do fracasso, mas do “desmesuradosucesso” da técnica. E, justamente porque se amplia, demaneira inaudita, a esfera dos efeitos inesperados de todaação, é que se deve proporcionalmente estender, antes queseja tarde demais, também o raio da responsabilidade pes-soal. Segue-se a necessidade inversa de abrandar o impactodos grandes projetos de transformação sobre o existente, deforma a que penetrem no mundo gradualmente e sem pro-vocar violentos contragolpes. Cada um de nós tem, comefeito, uma responsabilidade coletiva perante a Terra e seushabitantes, em particular a biosfera, sutil faixa de cerca detrinta quilômetros de espessura que envolve o planeta. Onovo imperativo ecológico de Jonas, formulado à maneirade Kant, soa, portanto assim: “Age de maneira que os efei-tos da tua ação sejam compatíveis com a permanência deuma autêntica vida sobre a terra”. E se é verdade que aexistência da humanidade é o “primeiro mandamento”,dele segue a necessidade de defesa da vida em seu conjun-to. À outra famosa pergunta kantiana, “no que devemos es-perar?”, parece se substituir aquela de que se é ainda lícitoesperar ou se não é antes ilusório e regressivo se entregar àesperança, deixar-se embalar por ela, ao invés de assumircom coragem e desencanto as próprias responsabilidades.

Também a perspectiva de Jonas (como, em outro âm-bito, a de Rawls) funda-se na minimização do risco. Para

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essa finalidade, faz-se necessário frear nos outros e em nósmesmos a propensão ao pensamento utópico, dado que sefundamenta em pretensões exorbitantes e em desejos im-possíveis – ou humanamente custosos – de perfeição, e naidéia de revolvimentos radicais que o mundo, na sua atualfragilidade, não está em condições de suportar. Acresce quea maior parte dos homens hoje parece inclinada a pensarem forma de expectativas de curto prazo com relação aostempos medidos pela sucessão das gerações. Para servir-nosde uma metáfora militar, poder-se-ia dizer que Jonas le-vanta moderadamente o tiro para o futuro, sem se fixar noalvo zero do presente pontual, mas também sem disparar aesmo sobre um futuro remoto e indeterminado. Para ele,somos responsáveis perante um futuro que envolve a nós eàs gerações que se seguirão, mas isso não deve absoluta-mente pôr em risco a existência e as expectativas das gera-ções atuais. O “princípio responsabilidade” aparece sejacomo for, sob a forma de uma ulterior tentativa de desligi-timação das utopias, como sintoma do esgotamento do im-pulso para a frente que as justificava. Elas parecem perdero fascínio e o poder dos tempos em que conseguiam mobi-lizar povos inteiros para a sua construção, empenhando-osem “imodestas” esperanças de êxito, arrastando-os, porém,no fracasso de causas que requeriam pesados sacríficios pes-soais, enquanto prometiam a conquista segura do futuropara a inteira humanidade.

Sob processo estão, mais em geral, as filosofias da his-tória que amparam as modernas utopias, adornando-ascom a sua ilusória natureza de “quase previsão”, pelo qualum fim historicamente longínquo poder-se-á realizar des-de que os seus promotores sejam coerentes ao persegui-lo einvistam e mobilizem sua laboriosa energia na preparaçãodo seu advento. Produz-se, assim, uma série de curto-cir-

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cuitos teóricos, com base nos quais a consecução da finali-dade é declarada infalível, apesar de logo se acrescentar queela exige a intervenção dos indivíduos; a coerência com re-lação ao fim da ação individual é proclamada em toda a suaimportância, justamente enquanto se sustenta que a histó-ria pode avançar na direção “justa”, ignorando astutamen-te as intenções dos indivíduos; a responsabilidade pessoalperante a humanidade é solenemente exaltada como valorético e político supremo, mas ao mesmo tempo não pareceindispensável à economia complexa de um processo dota-do dos próprios automatismos.

Com uma nota de sóbria modéstia, que insiste no cha-mado à responsabilidade diante de um incerto devir e na ur-gência de repensar os limites e os valores das próprias restri-tas tradições dentro de um horizonte mundial, parece fechar-se a reflexão filosófica na soleira do novo milênio. A retiradado pensamento sobre suas próprias premissas (o trabalho deescavação, inventário e limpeza que acompanha a aberturade novos canteiros conceituais) preludia, talvez, o retorno degrandes cenários teóricos? Difícil dizê-lo. Malgrado os recor-rentes anúncios, é porém certo que a filosofia, como a arte,não está de fato “morta”. Antes, ela revive a cada estação por-que corresponde a necessidades de sentido que são contínua-mente – e com freqüência inconscientemente – reformula-das. A tais perguntas, mudas ou explícitas, a filosofia procu-ra respostas, medindo e explorando a deriva, a conformaçãoe as falhas dos continentes simbólicos sobre os quais se apóiao nosso pensar e sentir comuns.

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Adorno, T. W., 113, 125-128,134, 146, 152, 154, 157-159,162, 182, 247.

Agassi, 140.Agostinho, 38.Althusser, L., 180, 212-213.Apel, K.-O., 260.Arendt, H., 237-238, 240, 242Aristóteles, 248, 243.Aron, 214Augé, M., 104n, 105.

Bachelard, G., 114, 142, 185.Balzac, H., 206.Barth, K., 112. Bataille, G., 208.Bateson, G., 200, 202, 204.Baudrillard, J., 262.Bauman, Z., 276n.Beavin, J., 205n.Beckett, S., 174.Benjamin, W., 125, 152, 159,

185.Bentham, J., 250.Bento, São. 244.Berger, B., 172-173.

Berger, P., 172-173.Bergson, H., 15, 16n, 17-19, 21,

36, 65-66, 90-91, 129, 192,205.

Bernays, P., 48.Blanchot, M., 208.Bleuler, E., 65.Bloch, E., 28, 108, 110-116, 159,

183, 279.Blumenberg, H., 223, 224n,

225-227, 231.Bogdanov, A., 108.Bohrer, K.-H., 226.Bolyai, J., 43, 48.Bouthoul, G.,Brecht, B., 125-126.Brouwer, L. E., 48-49.Bultmann, R.,112.

Cacciari, M., 265, 266n.Canetti, E., 240, 241n.Cantor, G., 45, 46n, 47.Carnap, R., 134-137, 142.Cavan, S.,176n.Cézanne, P., 206-207.Clausewitz, C. von, 214.

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Índice onomástico

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Colli, G., 119n.Cooper, D., 200.Copérnico, N., 137. Croce, B., 71, 74, 75n, 76-78, 80,

82, 92, 94.

Davidson, D., 144, 145n.Debussy, C., 30.Deleuze, G., 216.De Martino, E., 105-106.Derrida, J., 142, 231-233, 234n.Descartes, R. 62.Dewey, J., 128, 132-134, 267.Dieudonné, J., 49.Dilthey, W., 65, 85, 87, 89-92,

147-148, 244. Disraeli, B., 270.Durkheim, E., 69-71, 91.Dutt, C., 229n.Dworkin, R., 256.

Eddington, A. S., 139.Eichmann, A., 242.Einstein, A., 55, 125.Erdmann, B., 45.Erikson, E. H., 125.Esterson, A., 200.Eubulide, 47.Euclide, 43.

Fanon, F., 200.Ferguson, A., 93.Fermi, E., 125.Feyerabend, P. K., 140-142, 271.Flaubert, G., 199.Foucault, M., 142, 180, 206,

208-210, 211n, 212, 214,

216, 218, 219n.Frank, M., 226.Frank, P., 226.Frazer, J. G., 93, 95.Frege, G., 45-47, 134, 186.Freud, S., 33, 59, 60n, 61-62, 91,

93.

Gadamer. H. G., 142.Galileu, 53.Gargani, A. G., 265, 266n.Geertz, C., 102-103, 104n, 105.Genet, J., 195-196.Gentile, G., 37-39.Gladstone, W., 270.Gödel, K., 49, 134.Godelier, M., 99.Goethe, J. W., 89, 151.Goffman, E., 203.Goodman, N., 143-144.Göring, H., 122.Gramsci, A., 74, 78, 80, 82, 108-

109.Gresham, T., 183.Guattari, F., 216.

Habermas, J., 142, 242, 245,246-247, 256, 260-261, 272.

Hall, C. S., 203.Hanson, N. R., 143, 191.Harding, E., 63n.Harsanyi, J. C., 250.Hegel, G. W. F., 82, 89, 108,

111, 132, 140-141, 147,150-151, 156, 190, 192,216-217, 238, 271.

Heidegger, M., 65, 113, 135,

284

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176, 177n, 178-179, 182-183, 184n, 185-186, 192,208, 234n, 264,

Heisenberg, W., 56.Heller, A., 151.Hempel, C. G., 134.Heródoto, 268.Heyting, A., 48. Hilbert, D., 48-49, 136.Himmler, H., 122, 123n.Hitler, A., 120, 122n, 140.Hölderlin, F., 89, 180.Homero, 192.Honneth, A., 261n.Horkheimer, M., 125, 127, 247.Hume, D., 188.Husserl, E., 62, 65, 161-162,

164, 166-169, 171, 173, 176,192, 232.

Jackson, D. D., 205n.James, W., 18, 128-130, 132,

169, 267.Janet, P., 192.Jaspers, K., 64-65.Jonas, H., 279-281.Joyce, J., 174.Jung, C. G., 62-63.

Kafka, F., 152, 185, 186n.Kant, I., 94, 188, 239, 241,

253n, 280.Kellner, H., 172.Kierkegaard, S., 152.Klossowski, P., 208, 287.Kohlberg, L., 247.Kojève, A., 192.

König, J., 47.Korsch, K., 125.Kries, J. von, 73.Kripke, S., 144.Kuhn, T., 140, 142.

Lacan, J., 180, 234.Laing, R. D., 200, 202.Lakatos, I., 140-142, 147.Lang, F., 125.Laplace, P.-S. de, 57.Lasch, C., 275, 276n.Laudan, L., 142.Le Bon, G., 35.Leibniz, G. W., 61, 188.Lenin, N., 107-108, 110, 141.Le Roy, E., 52.Lévi-Strauss, C., 99, 100n.Lévy-Bruhl, L., 95, 97.Lobachevski, N., 43.Locke, J., 221.Lombroso, C., 67.Lotman, J. M., 44n.Löwith, K., 125.Lukács, G., 26, 27n, 30, 108,

125, 141, 147-152, 183.Luxemburg, R., 109-110, 113Lyotard, J.-F., 272, 273n.

Mach, E., 54, 76, 134-135.MacIntyre, A., 243-244, 256.Malinowski, B., 97.Mann, T., 125-126.Maquiavel, 76.Marco Aurélio, 218.Marcuse, H., 125.Marinetti, F. T., 37n.

285

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Marx, K., 34, 38, 76, 82, 110,140-141, 147, 150, 156,196-197, 234n, 237-238,273.

Mauss, M., 98-99.Maxwell, J. C., 55.Mead, M., 204n.Meinecke, F., 89.Menenio Agrippa, 37.Merleau-Ponty, M., 205-207.Meyer, E., 73.Minkowski, E., 67n.Minkowski, H., 55.Mises, R. von, 134.Moltmann, J., 112.Montinari, M., 119n.Moore, G. E., 186.Morin, E., 260.Morris, C., 136.Musônio Rufo, 218.Mussolini, B., 35, 38.

Neumann, F., 125.Neurath, F., 136, 142.Newton, I., 53-54.Nietzsche, F., 18, 21, 118, 179,

208, 119n, 223, 264.Nozick, R., 249, 273-274.

Pareto, V., 32, 34.Parfit, D., 220-221, 222n.Peano, G., 134.Peirce, C., 128-9.Piaget, J., 94. 247.Piana, G., 134.Picasso, P., 152. 159.Platone, 323.

Poe, E. A., 37n, 234.Poincaré, H., 52-53.Popper, K. R., 136, 137n, 138-

142 153.Prigogine, I., 56, 57n.Proust, M., 11, 12n, 15, 19.Putnam, H., 144.

Quine, W. V. O., 142.

Ramsey, F. P., 188-189.Rauschning, H., 120n.Rawls, J., 248-256, 260, 272,

281.Reich, W., 212-213.Reichenbach, H., 134.Ricardo, D., 86, 151.Ricoeur, P., 223, 278, 279n.Rorty, R., 244, 264n, 267-271.Rosenzweig, F., 152.Rovatti, P. A., 266n.Russell, B., 45.

Salvemini, G., 125.Sandel, M., 255n, 256.Sartre, J.-P., 58, 65, 180, 192-

194, 197-198, 200, 206.Scheler, M., 65.Schleiermacher, F. D. E., 89.Schlick, M., 134.Schmitt, C., 264.Schönberg, A., 125, 152.Schumpeter, J., 32.Schütz, A., 169, 170n, 171, 173,

176.Sêneca, 218.Severino, E., 265, 266n.

286

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Shannon, C. E., 50.Simmel, G., 23, 24n, 25-26, 30,

148, 183, 288.Sneed, J. D., 142.Sócrates, 233.Sorel, G., 33, 34n.Spencer, H., 93, 128.Spengler, O., 157, 168.Stalin, I. V., 110, 140, 150, 197.Stegmüller, 142.Stendhal, 129.Stirner, M., 39.

Tarski, A., 136, 142.Taylor, C., 256, 261.Thom, R., 49.Togliatti, P., 82.Toulmin, S., 191.Toynbee, A. J., 168.Traks, G., 152.Treitschke, H., 89.Tylor, E. B.,93.

Unseld, S., 183.Uspenski, B. A., 44n.

Vattimo, G., 266.Velásquez, 210.Verlaine, P., 30.Vidal de la Clache, 208.

Waismann, F., 134.Walras, L., 32.Walzer, M., 256. Watkins, J. W. M., 140.Watzlawick, P., 203, 205.Weber, M., 64, 69, 71-74, 85, 89,

91, 148, 279, 280n.Weil, A., 49.Weil, S., 175, 192-193.Whitehead, A., 47, 134, 186.Wittgenstein, L., 135, 186, 187n,

188-191, 227, 228n, 264.

287

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Sobre o livro

Formato: 14 x 21 cmMancha: 23,5 x 42,5 paicas

Tipologia: Garamond Three 11 e 12 (texto), Eras 12, 11 e 12 (titulos)

Equipe de Realização

Coordenadora ExecutivaLuzia Bianchi

Produção GráficaRenato Valderramas

Edição de TextoCarlos Valero

RevisãoJosé Romão

Walderez Sancinetti RibeiroValéria Biondo

Projeto GráficoCássia Letícia Carrara Domiciano

Criação da CapaMarcos Horta

CatalogaçãoValéria Maria Campaneri

DiagramaçãoCarlos Fendel