495-2046-2-PB jane reis

29
169 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013 CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA E VINCULAÇÃO DE HORÁRIOS NA PROGRAMAÇÃO DE TV: A FORÇA DAS IMAGENS E O PODER DAS PALAVRAS* Jane Reis Gonçalves Pereira** RESUMO: O presente artigo analisa a viabilidade constitucional da imposição de barreiras de horá- rios para exibição de programação inadequada para crianças na TV aberta, a partir dos argumentos até agora ventilados no julgamento, em curso no Supremo Tribunal Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.404. O objetivo é demonstrar a complexidade do conflito entre liberdade e intervenção nesse domínio específico, que aponta para uma solução, que, embora rejeitando o controle prévio da programação, reconhece a constitucionalidade do estabelecimento de marco regulatório que discipline limites temporais relacionados à classificação por faixa etária na programação na TV aberta. PALAVRAS-CHAVE: Classificação indicativa. Liberdade de expressão. Liberdade de programação. Barreiras de horário. ADI nº 2.404. Introdução A proteção à liberdade de expressão integra a espinha dorsal das democracias liberais. Sua história confunde-se com a trajetória do constitucionalismo moderno e das lutas contra a opressão do Estado. 1 No Brasil, as experiências autoritárias cíclicas e recentes conferem à sua proteção um forte valor simbólico e emocional. As feridas abertas por anos de censura institucionalizada tornam o tema delicado e favorecem a defesa das teses que preconizam o absenteísmo do Estado na regulação das liberdades comunicativas. Nesse contexto de trauma, invocar a palavra “censura” numa discussão é sempre um recurso retórico potente. Nos últimos anos, as tentativas de debate sobre o tema da atuação do Estado no domínio da comunicação são sistematicamente assombradas pelo fantasma da censura, 2 conceito que tem a sua já elevada potência argumentativa maximizada pelo espectro da brutalidade da ditadura militar. Ao mesmo tempo, a intensa influência que o Direito norte-americano exerce no pensamento constitucional brasileiro viabilizou a ampla utilização, nesse debate, de algumas ideias e premissas libertárias que transitam naquele sistema, que é hoje o mais inclinado à proteção preferencial à liberdade de expressão das democracias ocidentais. Não é rara, inclusive, a utilização de conceitos e citações norte-americanas de forma descontextualizada, de modo a sugerir que, naquele país, a liberdade de expressão é tutelada de forma absoluta e incondicional em todas as esferas, mito que uma análise mais abrangente do modelo de regulação dos meios de comunicação nos Estados Unidos – sobretudo do campo da TV aberta – é capaz de desmentir. 3 * Enviado em 19/11, aprovado e aceito em 16/12/2013. ** Doutora em Direito Público – Uerj; Mestre em Direito Constitucional – PUC-Rio; professora adjun- ta de Direito Constitucional – Uerj; juíza federal. Faculdade de Direito, Pós-Graduação. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].

description

Texto acerca da classificação indicativa.

Transcript of 495-2046-2-PB jane reis

  • 169 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    CLASSIFICAO INDICATIVA E VINCULAO DE HORRIOS NA PROGRAMAO DE TV: A FORA

    DAS IMAGENS E O PODER DAS PALAVRAS*

    Jane Reis Gonalves Pereira**

    RESUMO: O presente artigo analisa a viabilidade constitucional da imposio de barreiras de hor-rios para exibio de programao inadequada para crianas na TV aberta, a partir dos argumentos at agora ventilados no julgamento, em curso no Supremo Tribunal Federal, da Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n 2.404. O objetivo demonstrar a complexidade do confl ito entre liberdade e interveno nesse domnio especfi co, que aponta para uma soluo, que, embora rejeitando o controle prvio da programao, reconhece a constitucionalidade do estabelecimento de marco regulatrio que discipline limites temporais relacionados classifi cao por faixa etria na programao na TV aberta.

    PALAVRAS-CHAVE: Classifi cao indicativa. Liberdade de expresso. Liberdade de programao. Barreiras de horrio. ADI n 2.404.

    Introduo

    A proteo liberdade de expresso integra a espinha dorsal das democracias liberais. Sua histria confunde-se com a trajetria do constitucionalismo moderno e das lutas contra a opresso do Estado.1 No Brasil, as experincias autoritrias cclicas e recentes conferem sua proteo um forte valor simblico e emocional. As feridas abertas por anos de censura institucionalizada tornam o tema delicado e favorecem a defesa das teses que preconizam o absentesmo do Estado na regulao das liberdades comunicativas. Nesse contexto de trauma, invocar a palavra censura numa discusso sempre um recurso retrico potente.

    Nos ltimos anos, as tentativas de debate sobre o tema da atuao do Estado no domnio da comunicao so sistematicamente assombradas pelo fantasma da censura,2 conceito que tem a sua j elevada potncia argumentativa maximizada pelo espectro da brutalidade da ditadura militar.

    Ao mesmo tempo, a intensa infl uncia que o Direito norte-americano exerce no pensamento constitucional brasileiro viabilizou a ampla utilizao, nesse debate, de algumas ideias e premissas libertrias que transitam naquele sistema, que hoje o mais inclinado proteo preferencial liberdade de expresso das democracias ocidentais. No rara, inclusive, a utilizao de conceitos e citaes norte-americanas de forma descontextualizada, de modo a sugerir que, naquele pas, a liberdade de expresso tutelada de forma absoluta e incondicional em todas as esferas, mito que uma anlise mais abrangente do modelo de regulao dos meios de comunicao nos Estados Unidos sobretudo do campo da TV aberta capaz de desmentir.3

    * Enviado em 19/11, aprovado e aceito em 16/12/2013.** Doutora em Direito Pblico Uerj; Mestre em Direito Constitucional PUC-Rio; professora adjun-

    ta de Direito Constitucional Uerj; juza federal. Faculdade de Direito, Ps-Graduao. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].

  • 170 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    Nessa conjuntura, o debate sobre o choque entre liberdades comunicativas e a regulao do mercado audiovisual no Brasil tem assumido contornos maniquestas, e no se sofi sticou em escala proporcional de outros temas importantes em nossa agenda constitucional.4

    Tal cenrio tornou-se claro no incio do julgamento, pelo Supremo Tribunal Fede-ral (STF), da ADI n 2.404, ajuizada em 2001, na qual se discute a constitucionalidade do artigo 254 do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA, Lei n 8.069/90).

    O cerne da discusso consiste em saber se legtima a vinculao de horrios de transmisso de programas de TV e rdio s faixas etrias correspondentes. A inicial da ao pede a declarao de inconstitucionalidade da expresso espetculo em horrio diverso do autorizado, o que ter por resultado a impossibilidade de o Estado restringir a exibio de programas classifi cados como imprprios para faixas etrias nos horrios habitualmente acessveis ao pblico infantil.

    O voto do relator, ministro Dias Tofolli, teve como anteparo o iderio que infor-ma a proteo da liberdade de expresso. As razes do voto enunciam uma srie de aforismos conectados ideia de prevalncia incondicional da liberdade de programao das emissoras de radiofuso, que, na sua viso, no poderia ser submetida regulao estatal. A fundamentao invoca, inclusive, as lies do clebre juiz Hugo Black, que fi -cou conhecido como defensor de um controvertido modelo de interpretao absolutista da primeira emenda.5 Foi citado o sistema norte-americano de classifi cao indicativa da indstria cinematogrfi ca como bom exemplo de autorregulao do mercado, sem referncia, contudo, ao fato de que, em relao TV aberta, ainda vigora nos Estados Unidos uma barreira de horrio que cerceia a exibio de contedo imprprio entre 6h e 22h, e que a inobservncia de tais critrios pode ensejar a aplicao de sanes pela Federal Comunication Comission.6

    Na mesma linha, votaram Luiz Fux, Carmen Lcia e Carlos Ayres de Britto, que antecipou seu voto. Alguns ministros afi rmaram que a classifi cao de horrios confi gu-raria censura prvia (apesar de no ser praticado hoje qualquer exame prvio estatal da programao, j que a regulao em vigor contempla que a classifi cao deve ser feita pelos prprios produtores de contedo).7 Os ministros relacionaram a regulao da ma-tria censura e s ditaduras, tutela estatal da moral pblica, bem como externaram a convico de que o nico controle vivel, no caso, seria o das famlias.

    Para o relator, a prpria Constituio j delineou as regras de sopesamento des-ses dois valores. No se chegou a debater acerca da proporcionalidade e razoabilidade da imposio, pelo Estado, de certos parmetros nessa seara. A convico externada nos votos j proferidos de que expresso classifi cao indicativa, utilizada na Constituio ao tratar das competncias da Unio, signifi ca que a interveno do Estado de mera sugesto e orientao aos pais, no cabendo a cominao de qualquer sano jurdica relacionada ao atrelamento de horrio e pertinncia com as faixas etrias na TV aberta.

    A paisagem que se vislumbra, portanto, a de formao de bloco de ministros com entendimentos alinhados viso absolutista da liberdade de expresso, segundo a

  • 171 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    qual qualquer interveno vinculante do Estado nesse domnio odiosa. At o momento, nenhum dos votos enunciados incluiu na equao argumentativa trs aspectos que repu-to decisivos para a soluo desse embate especfi co: a) a circunstncia de que se trata de regulamentao que recai sobre rdio e televiso, os quais so meios de comunicao sujeitos concesso pblica, aspecto que pode justifi car um regime de regulao dife-renciado; b) a circunstncia de que o dispositivo em debate visa a proteger um grupo vulnervel, cujo ciclo de amadurecimento do qual se inferem a autonomia e a capacida-de de autodeterminao no se completou, o que pode legitimar algumas compresses atuao dos atores privados na transmisso pblica da programao; c) o fato de que, no caso, h um efetivo confl ito entre direitos constitucionalmente tutelados, razo por que as restries legislativas devem passar pelo crivo da proporcionalidade, cabendo ter em considerao, ainda, o princpio democrtico, que tem como consectrio o reconhe-cimento de uma margem de ao do legislador.

    No pretendo, no presente artigo, fazer uma abordagem completa do tema da in-terveno do Estado no domnio da comunio. No irei, tampouco, sustentar uma viso intervencionista que justifi caria uma vigilncia estatal abrangente sobre os contedos exibidos na TV. Tenho a convico de que a Constituio consagra uma modelo de pro-teo reforado da liberdade de expresso. Meu objetivo aqui ser, a partir da anlise das razes utilizadas na discusso sobre constitucionalidade da classifi cao indicativa e sanes correlatas, demonstrar que o choque entre liberdade e interveno no tem os contornos singelos que os votos j proferidos sugerem.

    1 Ideias que no correspondem aos fatos: sobre captura retrica e a banalizao da palavra censura

    Liberdade uma das palavras mais poderosas do vocabulrio constitucional. Remete ao ideal humanista de emancipao e refl ete a capacidade das pessoas de usarem sua razo e seus sentimentos para se tornarem protagonistas do prprio destino. Se algum nos convence de que uma providncia nos confere mais liberdade, intumos que se trata de algo naturalmente bom.

    A palavra censura a sua antagonista, e est ligada s diversas verses do autoritarismo. Ao ouvir falar em censura, pensamos em livros queimados, em ideias condenadas clandestinidade e em perseguies motivadas por orientao poltica e pelo conservadorismo moral. O controle das artes, do fl uxo de informao e das opinies sempre esteve a servio das ditaduras. Por isso, se uma ao qualifi cada como censura, tendemos a compreend-la como intrinsecamente m. O raciocnio simples e persu-asivo: se uma ao estatal pode ser defi nida como censura, deve ser veementemente repudiada por aqueles que prezam a democracia liberal. A prpria Constituio de 1988, nesse tpico, foi clara e taxativa: vedada qualquer forma de censura poltica, ideol-gica e artstica (art. 220).

    Liberdade e censura, portanto, so palavras poderosas e muito convincentes, que expressam a luta entre o que se considera o bem e o mal no ambiente liberal-democrtico.

  • 172 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    A primeira habitualmente posta a servio das teses que repudiam a interferncia do Estado, enquanto a segunda frequentemente invocada para combater toda forma de interveno no campo da circulao de ideias. Ocorre que, por seu elevado potencial de convencimento, tais palavras acabam por ser usadas de forma demasiadamente elstica, o que acarreta o esvaziamento do seu signifi cado.

    Mas o desafi o que se apresenta nas disputas constitucionais justamente deter-minar se as palavras usadas efetivamente correspondem ao que buscam descrever.

    Na argumentao jurdica e poltica, uma estratgia falaciosa costumeira8 ace-nar com o pior cenrio, forando analogias e antevendo panoramas catastrfi cos, com o escopo de levar o interlocutor a formar sua opinio mais com base no medo de eventuais desdobramentos hipotticos do que nos aspectos em jogo. No raro, nesse tipo de disputa retrica, recorrer ao conhecido argumento da ladeira escorregadia,9 segundo o qual qualquer regulao estatal seria o primeiro passo para uma sucesso de prticas que resultariam no retorno da censura e das prticas autoritrias.

    Tal estratgia de argumentao tem como efeito pernicioso a desqualifi cao pre-cipitada do pensamento oposto, e a tendncia a favorecer as teses extremadas no lugar das intermedirias.

    Esse artifcio tem sido usado de forma recorrente nas discusses sobre as confl itu-osas relaes entre o Estado e os meios de comunicao de massa. A palavra censura repetidamente empregada como uma arma de efeito silenciador do prprio debate sobre o tema. Quando qualquer interveno estatal no domnio da comunicao est em questo, seus oponentes empenham-se em rotul-la como censura. Ao contaminar o debate com um termo pejorativo, repelido por quem tem apreo pela democracia libe-ral e, mais importante, repudiado pela Constituio , neutraliza-se a tese antagnica, que passa a ser rotulada como retrgrada e autoritria. Estigmatiza-se o argumento adversrio, impedindo, ainda no ponto de partida, o avano da discusso.

    No ignoro, todavia, que uma das caractersticas da censura negar sua condio. Como bem adverte Gustavo Binembojm (2006, p. 14), uma das caractersticas sorrateiras da censura a de negar no apenas as ideias diferentes ou discordantes, mas, sobretudo a de negar-se a si mesma. A censura costuma ser um mal oculto e silencioso justamente e porque a voz silenciada sempre a dos opositores os outros invisveis.

    Embora seja verdade que existe o risco de a censura surgir travestida de regula-o, isso no signifi ca dizer que qualquer regulao das liberdades comunicativas possa ser entendida como censura. A afi rmao da ministra Carmen Lcia em seu voto, de que a censura tem vrios apelidos, a liberdade um s, no considera a complexidade do tema e a circunstncia de que a promoo das liberdades comunicativas de alguns gru-pos pode resultar na compresso da liberdade de outros. Empregar um conceito exces-sivamente elstico de censura nos colocaria diante de uma escolha binria e falsa, em que teramos de optar entre tolerar um Estado censor que nos vigia ou acatar um irres-trito laissez-faire no campo das liberdades comunicativas. No poderamos tratar como legtimas intervenes que busquem promover o pluralismo, tutelar grupos fragilizados

  • 173 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    (como ocorre no caso em discusso) ou desobstruir canais de comunicao bloqueados por poderes privados. Ao tomarmos essas assertivas como verdades incontestveis, as-sumiremos que, no domnio da liberdade de expresso, os riscos para os direitos funda-mentais provm apenas da ao do Estado, nunca de agentes privados.

    A banalizao do uso da expresso censura nas discusses sobre a regulamenta-o das mdias coopera para propagar as vises mais intransigentes e maniquestas do assunto, reduzindo radicalmente o alcance da deliberao poltica, judicial e pblica desses temas. certo que a ingerncia estatal que tem por objetivo suprimir uma ideia por razes ideolgicas ou morais censura, mas nem toda restrio ao exerccio da liberdade de expresso pode ser assim defi nida.

    Alguns exemplos mais extremos ajudam a ilustrar o raciocnio. Podemos argu-mentar que a vedao da pornografi a infantil seria incompatvel com a Constituio de 1988, por caracterizar uma forma de censura? razovel supor que a proibio de propaganda de produtos nocivos, como o lcool, nos intervalos da programao infantil constituiria censura? Restries legais e judiciais ao discurso de incitao ao dio de-vem ser compreendidas como censura? Esses exemplos, na minha percepo, indicam que o conceito de censura deve ser construdo e aplicado luz do conjunto normativo da Constituio. Uma construo de signifi cado que qualifi ca como censura qualquer modalidade de regulao na esfera comunicativa consiste em afi rmar uma regra de preferncia abstrata e absoluta da liberdade de expresso na sua dimenso negativa. Ao mesmo tempo, adotar um conceito to difuso de censura equivale a afi rmar que uma mo invisvel do mercado de ideias capaz de corrigir qualquer distoro e desequil-brio de foras no campo da comunicao. Essa noo no compatvel com a dimenso compromissria e dialtica da Carta de 1988.

    Entendo que a utilizao da palavra censura nos contextos em que se opera um confl ito entre direitos constitucionais antagnicos confi gura o que Margaret Radin (2012, p. 458) chamou de captura retrica, referindo-se forma de discurso que se utiliza de rtulos conclusivos. O que acontece quando se usa essa estratgia argumentativa? O mero uso do rtulo descarta a considerao das razes opostas. Nessa linha de raciocnio, se induzimos o interlocutor a pensar que a vinculao de horrios por faixa etria censu-ra, fi ca pressuposto que as empresas transmissoras tm direito subjetivo de veicular os programas de contedo adulto em qualquer hora do dia, independentemente das razes antagnicas que pudessem justifi car juridicamente a soluo inversa.10

    Como afi rma a autora, quando a retrica distorce a argumentao em questes importantes para democracia, a democracia sofre (RADIN, 2012, p. 458).

    Essa forma de argumentao teve papel crucial no julgamento, em curso no STF, sobre a constitucionalidade das sanes administrativas por no observncia da clas-sifi cao indicativa (artigo 254 do ECA). Os que defendem a declarao de inconstitu-cionalidade sustentam, entre outros argumentos que sero adiante abordados, que o sistema de barreiras de tempo vulnera a liberdade de expresso e institucionaliza uma modalidade de censura.

  • 174 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    Essa construo argumentativa, de que a vinculao de horrios viola a liber-dade de expresso e de que sua manuteno caracteriza censura, tem sido repetida em diversos crculos e foi absorvida pelos votos dos ministros que se posicionaram pela inconstitucionalidade do dispositivo.

    Quero aqui defender que a regulao legal de horrios atrelados s diversas faixas etrias no confi gura uma restrio desproporcional da liberdade de expresso, e que sua previso no ordenamento no equivale a consagrar mecanismos de censura no Brasil.

    Censura, nos sistemas que a empregam, pode ser defi nida como o controle de obras e publicaes exercido, normalmente antes da veiculao, por um agente da ad-ministrao ou comit, que concede ou nega autorizao com base em critrios vagos ou no revelados (BARENDT, 2005, p. 122). De uma forma mais sinttica, poderamos defi nir censura como o bloqueio estatal circulao de uma ideia, obra ou publicao, normalmente de forma prvia.

    O que est em pauta no o banimento de programas ou o impedimento de exibir determinados contedos na programao, o que, de fato, poderia ser caracterizado como censura. O que est em questo a constrio estatal ao poder de as emissoras de TV e rdio (as quais, vale lembrar, so concessionrias do Poder Pblico) decidirem o horrio em que exibiro programas cujo contedo envolve sexo e violncia gratuita. Trata-se, no caso, de imposio de barreiras (watersheds) exibio de programao nociva aos espectadores infantis nos perodos do dia em que habitualmente eles assistem TV, algo que admitido nas diversas democracias ocidentais, inclusive nos Estados Unidos, que so hoje o expoente mximo do modelo libertrio da esfera comunicativa.

    Existe uma enorme diferena entre repudiar a possibilidade de o Estado realizar o controle da programao de forma prvia e compreensiva e entender que a lei pode comprimir a liberdade de alocao temporal de programas potencialmente prejudiciais ao desenvolvimento das crianas, com o objetivo de promover o princpio de proteo infncia contido na Constituio de 1988.

    Excluda a noo de que as barreiras de horrio (watersheds) confi guram censura a qual expressamente vedada pela Constituio , a questo ter de ser compreen-dida como uma restrio legal oposta liberdade comunicativa das emissoras com o fi m de tutelar os direitos fundamentais das crianas. O meio em pauta a prescrio de barreiras temporais restringe a liberdade de programao, visando a promover a proteo infncia. Trata-se, assim, de uma coliso entre princpios constitucionais, a ser solucionada pelo mtodo da ponderao, que encerra a anlise da proporcionalidade da restrio imposta liberdade de difuso nos canais abertos.

    Como desenvolverei mais frente, a expresso autorizada, utilizada no dispo-sitivo combatido na ADI n 2.404, realmente incompatvel com o sistema constitucional de 1988. No entanto, o dispositivo poderia ser objeto de uma interpretao conforme a Constituio, com o escopo de excluir a leitura de que o Estado possa efetivar um exame prvio da programao.

    Com efeito, a mera imposio de limites de horrio na TV aberta no deve, em tese e como ponto de partida, ser entendida como um mecanismo incompatvel com o sistema constitucional brasileiro.

  • 175 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    2 A infi ltrao de concepes estrangeiras no discurso jurdico brasileiro: possibilidades e riscos

    A Constituio de 1988 tem um carter liberal que convive com inequvocos tra-os sociais. Ela estabelece fortes protees liberdade de expresso, mas simultanea-mente determina que o Estado assegure s crianas e adolescentes o direito cultura e liberdade, bem como que os ponha a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso (art. 227).

    Como destaquei no comeo, interessante notar que o discurso que veicula a primazia absoluta da liberdade das emissoras tem sido visivelmente infl uenciado pelas vises mais extremadas da liberdade de expresso nos Estados Unidos. Os argumentos so usualmente respaldados por citaes de frases de juzes e juristas que, naquele pas, fi zeram defesas radicais da liberdade de discurso. Contudo, raramente se faz referncia s restries que so impostas programao de TV aberta e ao prprio modelo de regulao estatal dos meios de comunicao nos Estados Unidos. Essa assimilao parcial pe em evidncia os riscos de uma infi ltrao enviesada de ideias constitucionais estrangeiras. O dilogo com outros sistemas jurdicos um instrumento proveitoso, enriquecedor e algu-mas vezes imprescindvel. Mas no se pode perder de vista que o uso irrefl etido de teses estrangeiras pode causar uma importao seletiva, descontextualizada e desvirtuada das ideias constitucionais ventiladas em outros pases.11

    A tradio fi losfi ca dos Estados Unidos no domnio da liberdade de expresso riqussima e merece ser estudada e aproveitada. No entanto, deve-se ter cautela ao transpor para o Brasil um arsenal de argumentos formulados em um contexto muito diverso do nosso, deixando de lado os pontos em que nossa Constituio se diferencia radicalmente do modelo norte-americano. importante olhar para fora, mas sem es-quecer quem somos e onde estamos. O sistema jurdico dos Estados Unidos confere uma proteo mais intransigente ao discurso ofensivo do que qualquer outra democracia liberal. A ttulo de exemplo, trata-se do nico pas democrtico que rejeita a regulao estatal do discurso do dio (hate speech) contra grupos minoritrios e religiosos.12

    Por outro lado, repita-se, mesmo o idealizado sistema norte-americano de liberdade de expresso convive com uma agncia de regulao que empreende intervenes no mercado de radiofuso, coisa que raramente mencionada entre ns.13

    Paralelamente, emular comportamentos e tradies de outros pases encerra o risco de comprometer nossa identidade constitucional. A Constituio brasileira reverente tradio liberal e recusa instrumentos autoritrios na esfera comunicativa, mas no adotou um modelo absolutista de liberdade de expresso. Ela no consagrou um liberalismo hiperblico e incondicional nessa seara. Pelo contrrio, em diversos comandos promove a adaptao dos dogmas liberais a outros direitos constitucionais e exigncia de uma atuao promocional e protetiva do Estado.14

    Meu objetivo, neste texto, procurar desconstruir a leitura de que rejeitar bar-reiras de horrio a soluo certa porque promove a liberdade; e manter a lei a

  • 176 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    soluo errada, porque institucionaliza a censura. A discusso desse tema precisa ser empreendida luz da metodologia da ponderao, mtodo que permite levar a srio e avaliar todos os direitos e princpios em jogo. No constitucionalmente adequado qualifi car qualquer modelo de vinculao de horrios como censura. preciso ter em conta todas as variveis que esto em jogo nesse debate: a liberdade promovida de qu? Quem o principal destinatrio dessa liberdade? A restrio em questo promove quais princpios constitucionais? Ela passa no teste da proporcionalidade? 3 Liberdade de qu?

    O cerne da discusso em curso no STF a viabilidade constitucional da vinculao de horrios por faixas etrias. Est em pauta defi nir se o Estado pode classifi car programas apenas com a fi nalidade de sugerir ou orientar as famlias ou se pode, tambm, impingir sanes em decorrncia da exibio na TV aberta de programas imprprios em horrios diversos dos indicados para cada faixa etria.

    A ADI n 2.404, ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), questiona a constitucionalidade das palavras espetculo em horrio diverso do autorizado no art. 254 do Estatuto da Criana e do Adolescente, o qual tem o seguinte teor:

    Art. 254. Transmitir, atravs de rdio ou televiso, espetculo em horrio diverso do autorizado ou sem aviso de sua classifi cao: Pena multa de vinte a cem salrios de referncia; duplicada em caso de reinci-dncia a autoridade judiciria poder determinar a suspenso da programao da emissora por at dois dias. (BRASIL, 1990)

    O voto do relator foi no sentido de acolher o pedido para declarar a inconstitucionalidade da expresso em horrio diverso do autorizado. A supresso de tal parcela do dispositivo tem por consequncia o reconhecimento da impossibilidade de serem estabelecidas sanes relacionadas inobservncia dos parmetros na indicao de horrios por faixas etrias.

    verdade que o art. 254 do ECA utiliza um vocabulrio inadequado, de matriz autoritria, ao empregar a expresso diversamente do autorizado. O uso desse termo sugere que o Estado poderia efetivar um controle prvio da programao. Essa leitura se empreendida efetivamente seria incompatvel com o modelo de liberdade de expresso estabelecido pela Constituio de 1988. A terminologia retrgrada provavelmente coope-rou para a rejeio peremptria da prpria possibilidade de regulao dos horrios na TV.

    Soluo possvel para afastar a compreenso de que a lei autoriza uma fi scalizao ex ante pelo Estado seria o tribunal conferir ao dispositivo uma interpretao conforme a Constituio.

    Nesse sentido, seria eliminada a leitura de que o Poder Pblico pode efetivar qualquer forma de controle prvio da programao. No entanto, penso que no inconstitucional que o Estado estabelea os parmetros elementares para que as em-presas efetivem a autoclassifi cao e fi scalize sua observncia.

  • 177 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    No plano ideal, o dispositivo deveria ser revisto e o marco legal, adaptado linguagem contempornea dos direitos. Entretanto, a fundamentao dos votos j proferidos aponta para a formao de um precedente que exclui a possibilidade de qualquer imposio de limites de horrio para exibio de programao adulta na TV aberta. especifi camente esse aspecto que quero examinar.

    Nosso sistema de tutela da liberdade de expresso no se harmoniza com a possibi-lidade de autorizao prvia para a exibio de contedos. Mas rejeitar em termos abso-lutos a possibilidade de o Estado estabelecer qualquer barreira de horrio para exibio de programao adulta na TV aberta tambm no a soluo constitucionalmente adequada.

    importante destacar que a questo aqui debatida no alcana o material audio-visual exibido em cinemas, na internet, e o comercializado por meio de mdias fsicas. O que pretendo discutir a possibilidade de o Estado prescrever parmetros para a classifi cao etria e os horrios apropriados de exibio, especifi camente no caso da TV aberta e do rdio que atuam mediante concesso , e, no caso de no observncia reiterada, aplicar sanes s emissoras. O ponto de controvrsia, portanto, to so-mente a viabilidade da imposio de barreiras por faixa de horrios na televiso aberta.

    Mesmo que o STF pronuncie a inconstitucionalidade do dispositivo pelo fato de ter empregado impropriamente a palavra autorizar, poderia ser deixada em aberto a possibilidade de ser fi xado outro tipo de marco regulatrio. Entretanto, como destaquei, o julgamento encaminha-se para a rejeio categrica dos limites temporais. Fiscalizar o que transmitido na TV aberta ser ento, exclusivamente, um problema da famlia, no do Estado.

    Porm, a explorao dos canais abertos de TV e das frequncias de rdio no um domnio estritamente privado. Trata-se de um espao em que os atores privados utilizam a infraestrutura de telecomunicaes fornecida pelo Estado. Por se tratar de um mecanismo de transmisso que tira proveito de recursos estatais limitados no h um acesso infi nito aos canais e ondas de rdio e TV para qualquer pessoa ou corporao que queira utiliz-los , tal forma de expresso no acessvel a todos os cidados, mas apenas s empresas que detm a respectiva concesso.

    Ainda que se suponha que, no futuro, o fenmeno da convergncia poder elimi-nar a barreira tecnolgica que limita o nmero de sujeitos que detm canais pblicos de comunicao, por ora a TV aberta um meio de comunicao importante, concentrado e infl uente. Em um pas desigual como o Brasil, a questo tem tambm relevncia sob a tica da isonomia. Nas classes sociais menos favorecidas, maior o espao que a TV aber-ta ocupa como opo de entretenimento, e mais intenso o seu potencial de infl uncia. Nessa conjuntura, legtimo que o Estado tenha um papel mais ativo nessa seara do que em outras esferas, como o da imprensa escrita, do cinema, do teatro e da TV a cabo. A fora, a abrangncia e a dimenso pblica da televiso aberta justifi cam a interveno do Estado para promover direitos fundamentais. Como destacaram J. J. Gomes Canotilho e Jnatas Machado (2003, p. 32): O Estado, alm de um dever de absteno e de proc-teo ao direito em causa, tem igualmente um dever de regulao. Assim, a liberdade

  • 178 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    de programao no incompatvel com o estabelecimento de algumas restries, semelhana do que sucede com todos os direitos, liberdades e garantias.

    Obviamente, tal aspecto no autoriza que o Estado empreenda uma tutela ex-pansiva do que exibido, controlando o contedo com o propsito de excluir da pro-gramao determinadas produes, determinando que estas no podem abordar certos assuntos ou impondo a subtrao de cenas. Contudo, esse mecanismo de comunicao, por sua prpria natureza, deve ser submetido a um escopo de regulao mais amplo do que aquele empregado em outros domnios da difuso de ideias.

    Por isso, relevante insistir que no est em discusso, na ADI n 2.404, a inter-venincia do Estado em campos estritamente privados como a produo de livros, de jornais e de peas de teatro, as exibies em cinemas ou a internet.

    O aspecto da discusso que quero aqui explorar se a Constituio consagra uma liberdade intangvel de alocao temporal dos contedos imprprios para crianas nos veculos que so explorados mediante concesso (TV e rdio).

    4 Liberdade de quem?

    Um ponto importante para dar transparncia discusso descortinar quem so, no tema em exame, os destinatrios primordiais da ampliao da liberdade que advir do reconhecimento de que a defi nio de horrios um domnio insuscetvel de interveno do Estado. Qual o alcance das barreiras de horrio em relao aos espec-tadores? E quanto aos produtores e aos difusores de contedo?

    A argumentao no sentido da inconstitucionalidade dos limites temporais valo-riza o tratamento da questo luz das liberdades existenciais. No entanto, o problema em anlise envolve uma intricada teia de interaes entre liberdades existenciais e liberdades econmicas.

    Esse aspecto no banal e tem consequncias importantes. H razovel consenso no sentido de que, quando se promovem ponderaes entre princpios constitucionais, as liberdades de cunho existencial tendem a desfrutar de uma proteo mais reforada que as liberdades de carter econmico.

    Assim, relevante identifi car, para a anlise da constitucionalidade da indicao de horrio e da aplicao de sanes nos casos de inobservncia repetida, qual a natureza das liberdades atingidas e em que proporo so afetadas.

    Um dos aspectos mais comprometidos pela regulao em pauta a liberdade das emissoras de calibrar a distribuio de programas de acordo com sua possvel audincia, com o propsito de extrair o melhor proveito econmico de sua exibio.

    que a imposio de limites de horrio eventualmente impede exibir os progra-mas aptos a gerar maior audincia (consequentemente com maior renda de publicidade) em horrios nobres, ainda que tais programas contenham cenas de sexo e violncia. Est em anlise, portanto, a liberdade de distribuio temporal da programao pelas con-cessionrias de rdio e TV. Usar o termo censura, nesse caso, seria um claro exagero,

  • 179 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    j que no h supresso da faculdade de exibir os contedos, mas restries ao momen-to do dia em que podem ser transmitidos.

    inquestionvel que as liberdades dos consumidores/telespectadores so tam-bm afetadas pela regulao. A impossibilidade de exibir programas com contedo adul-to nos horrios de maior audincia restringe o acesso do espectador a esse tipo de programao. preciso considerar, porm, que essa restrio tem impacto menor para pblico com maior maturidade, que ter mais facilidade de acessar a programao com contedo mais impactante em horrios alternativos.

    5 Um paternalismo odioso que vulnera a liberdade dos pais?

    Cabe tambm refl etir sobre outras duas objees vinculao de horrio aventa-das nas razes pela sua inconstitucionalidade. A primeira a de que ela violaria o direito dos pais de determinarem a quais contedos seus fi lhos tero acesso. A segunda a de que, por interferir em um espao de deciso que deveria estar reservado s famlias, a disposio em questo consagraria um paternalismo odioso.

    O primeiro argumento desloca os holofotes da discusso, tirando as luzes da li-berdade comercial das emissoras e direcionando-as para a liberdade dos pais de educa-rem seus fi lhos. Um aspecto importante, segundo essa linha de raciocnio, seria a inter-ferncia do Estado no poder familiar. A premissa de que a intromisso do Estado estaria cerceando a autonomia cultural das famlias. Tal argumento tem um apelo importante, j que conduz ideia de que as famlias estariam sendo tuteladas pelos padres morais ditados pelo Poder Pblico.

    Parece-me, porm, que essa uma percepo distorcida dos efeitos prticos da classifi cao indicativa somada s balizas de horrios. A classifi cao atrelada aos horrios no subtrai dos pais a faculdade de permitir que seus fi lhos assistam aos programas qualifi cados como imprprios. Eles continuam tendo o poder de permitir que tais programas sejam vistos na internet. Podem ainda grav-los, compr-los ou permitir que crianas e adolescentes fi quem acordados para assisti-los nos horrios alternativos. Na verdade, a teleologia do dispositivo no comprimir o poder dos pais (isso sem considerar que h crianas que no tm pais, e, ainda, que o prprio poder familiar no absoluto). O efeito pragmtico da defi nio de horrios exonerar os cuidadores do nus de vigiar a programao na TV aberta para identifi car o contedo prejudicial. A tese de que as famlias tm liberdade de decidir o que as crianas as-sistiro pressupe um cenrio irrealista em que os cuidadores fi scalizam totalmente o que assistido, como se pais no tivessem jornadas de trabalho e tarefas domsticas, estando disponveis integralmente durante a exibio.

    A programao televisionada diferentemente da exibida em outros meios de co-municao tem um carter invasivo e imprevisvel para o espectador. A regulao nesse domnio, portanto, tem o efeito prtico de ampliar a liberdade dos pais e cuidadores que pretendem restringir o acesso das crianas programao adulta, sem impedir que

  • 180 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    os que tm uma viso mais liberal do que pode ser assistido pelas crianas permitam que elas tenham acesso aos contedos no indicados para a sua idade. Trata-se de um impulso dado pelo Estado no sentido de aumentar as possibilidades de escolha dos pais por uma programao mais ajustada a cada fase da infncia.

    O segundo argumento, de que a lei teria carter paternalista, revela uma estra-tgia de captura retrica semelhante da defi nio de todas as aes regulamentares como censura. Essa tese sugere que, se a disposio for paternalista, m; e como tal, deve ser necessariamente repudiada. Tal ideia demoniza o paternalismo de forma ampla, sugerindo que um ambiente democrtico e liberal deve repudiar todas as aes interventivas do Estado que visem a proteger as pessoas contra efeitos nocivos de suas prprias escolhas. Todavia, esse conceito precisa ser posto prova. mesmo convin-cente a noo de que qualquer forma de paternalismo perniciosa? Seria razovel sus-tentar que nosso sistema constitucional deve repelir todas as formas de atuao estatal paternalista? A Constituio de 1988 autoriza aes paternalistas que visem a corrigir assimetrias e promover a liberdade?

    Leis paternalistas, numa defi nio singela e rudimentar, so aquelas que restrin-gem a liberdade a fi m de proteger o indivduo contra si mesmo.15 O exemplo mais corri-queiro de lei paternalista a obrigatoriedade de os motociclistas usarem capacetes e os passageiros, cinto de segurana. A crtica s leis paternalistas afi rma que elas violam a liberdade ao pressupor que os indivduos so incapazes de se autodeterminar. Essa crti-ca relevante e merece ser levada a srio num sistema liberal, especialmente quando esto em pauta restries que visam a proteger pessoas autossufi cientes e autnomas. Mas como afi rmar que nociva, por paternalista, uma providncia estatal que protege um grupo indiscutivelmente vulnervel, como as crianas e adolescentes?

    interessante notar que a conotao pejorativa do termo paternalismo advm exatamente do fato de ele retratar uma infantilizao dos indivduos. Contudo, na dis-cusso aqui tratada, o que est em cena exatamente a proteo da infncia, e no de adultos autodeterminados. Nesse sentido, chega a ser esdrxulo repelir o paternalismo em matrias relacionadas tutela dos direitos fundamentais das crianas.

    No caso da classifi cao de horrios, o Estado atua na proteo de um grupo mais facilmente sugestionvel (crianas e adolescentes), contra aes pautadas pelo exerccio de um poder privado (mercado audiovisual). Nas relaes de poder privado e nas trocas assimtricas, medidas paternalistas podem atuar no sentido de promover a igualdade e, por consequncia, a liberdade. Nesse caso, a interveno do Estado no viola a autonomia das crianas e adolescentes, mas a incrementa, pois visa a equilibrar uma relao de poder desigual em que o pblico infantil o polo mais vulnervel. As crianas e suas famlias no participam das decises acerca do que ser exibido. A TV aberta, diferentemente de outros meios de comunicao, tem uma fora invasiva e im-previsvel. O espectador no aciona a programao de forma ativa nem escolhe a ordem de exibio: ela transmitida de acordo com as decises dos agentes de mercado.

    Na ausncia de interveno do Estado, o mercado publicitrio e as empresas de radiofuso tero controle absoluto da grade de programas, segundo suas preferncias

  • 181 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    discricionrias e interesses comerciais. A deciso sobre a grade de programao de TV no movida apenas pela fora das ideias e pelo impulso da arte, pois nessa esfera tam-bm joga um papel importante a energia do dinheiro. Existe, nessa relao, uma inequ-voca desigualdade ftica entre os fornecedores e consumidores: enquanto as empresas de TV podem defi nir o que ser exibido segundo os mais variados critrios, o pblico destinatrio tem apenas a liberdade de desligar ou mudar o canal. Ou, como se costuma afi rmar, o nico controle cabvel o controle remoto. Todavia, a gama de opes na TV aberta bastante restrita. E, no contexto de um absoluto laissez-faire nesse campo, no difcil intuir que as opes oferecidas em outros canais provavelmente no sero muito diferentes quanto impropriedade para faixas etrias mais baixas. Se no h uma efetiva variedade de escolhas, a liberdade do espectador limitada.

    Alm disso, no plausvel a tese de que a Constituio de 1988 repudiaria todas as formas de paternalismo jurdico. Crianas e adolescentes no deveriam ser, por defi -nio, um dos grupos em relao aos quais devemos tolerar alguma dose de interveno estatal, sem que isso descaracterize nosso sistema como democrtico e liberal? Ou tam-bm se cogita declarar a inconstitucionalidade da norma que impe o uso de cadeirinhas para conduzir crianas nos automveis sob o argumento de que tal disposio pater-nalista, pois interfere na liberdade dos pais de defi nir como transportaro seus fi lhos?

    Outro ponto merece ser explorado. Conforme ressaltei, a vinculao de horrios por faixas etrias da TV aberta no imperativa para as famlias, que podem permitir que crianas e adolescentes assistam a qualquer contedo. Essa vinculao limita, sobre-tudo, a liberdade da emissora de organizar a grade de programao, com a fi nalidade de difi cultar o acesso dos menores aos contedos imprprios e facilitar o controle dos cui-dadores. Podemos associar esse esquema de regulao ao que tem sido qualifi cado como paternalismo libertrio. Essa concepo sustentada por Richard Thaler e Cass Sunstein, que publicaram, em 2008, o livro Nudge: O Empurro para a Escolha Certa. Nesse modelo de ao, o governo no probe condutas nem compele o indivduo a fazer algo que bom para si mesmo, mas normatiza o contexto em que ele se insere, para o induzir a eleger a melhor alternativa. Trata-se de uma interferncia do Estado na arquitetura da escolha, amparada na premissa de que nenhum ambiente de escolha neutro. Assim, por exem-plo, se nas relaes comerciais os fornecedores tendem a sugestionar os consumidores a fazer as escolhas que tornam o negcio mais lucrativo, o governo poderia agir de forma a neutralizar essa infl uncia, criando um panorama favorvel deciso que promova sua segurana ou sade.

    So exemplos de medidas que empurram as pessoas para a melhor direo a exigncia de que os fabricantes de produtos nocivos ponham advertncias sobre os riscos para a sade nas embalagens; a determinao de que, nas escolas, os alimentos mais saudveis sejam postos nas prateleiras mais acessveis; e, no episdio mais polmico e conhecido, a normatizao do tamanho dos refrigerantes vendidos nos cinemas para difi cultar a induo ao consumo exagerado de acar.

    Por ltimo, penso que atacar as barreiras de horrios sob o fundamento de que seriam paternalistas em relao s famlias incide num contrassenso. que no so

  • 182 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    associaes de usurios da TV ou associaes de pais que defendem, perante o STF, a declarao de inconstitucionalidade da Lei. Ao contrrio, organizaes civis voltadas para a proteo de direitos humanos, como Anis, Alana e Conectas Direitos Humanos, postularam o ingresso como amici curiae na ADI n 2.404 para tentar reverter a diretriz que est sendo fi rmada no julgamento.

    No mesmo sentido, a Unesco (MENDEL; SALOMON, 2011) formulou um extenso rela-trio comparativo, no qual demonstra que o modelo brasileiro de classifi cao e restrio exibio de programao adulta em horrios mais acessveis s crianas no destoa do adotado em outros pases democrticos como Canad, Frana, Reino Unido e Estados Unidos. O estudo em questo deixa claro que a formao de um precedente impeditivo da regulao de horrios estaria em desacordo com o paradigma de proteo das crianas contra programao imprpria na TV, modelo hoje prevalente nas democracias ocidentais.

    Nas democracias contemporneas, o controle de canais de TV aberta uma das formas mais efi cazes de exerccio do poder privado. A relao que se estabelece entre a rede de TV e o pblico no horizontal nem paritria, pois os destinatrios das mensa-gens no controlam o processo de produo e a sequncia de exibio dos contedos. Se o ator privado que tem maior fora na relao jurdica combate uma interveno estatal sob a tese de que paternalista, necessrio avaliar se o que est em disputa o apreo pela liberdade ou pelo poder de cercear a liberdade dos mais vulnerveis. importante refl etir sobre se o objeto da discrdia efetivamente o valor da autonomia individual ou a ideia de que ao mercado deve ser reconhecido o direito de pautar as decises dos destinatrios dos servios.

    Como o controle da radiofuso concretiza poderes privados, a disputa em torno das medidas qualifi cadas como paternalistas pode obliterar, em muitos cenrios, uma luta pelo poder de infl uenciar o comportamento das pessoas. Se a regulao pblica combatida recorrendo pejorativa imagem do Estado-bab esse tambm um rtulo que exerce a funo de captura retrica , vale a pena avaliar se est em jogo efetiva-mente a proteo da autonomia individual ou, ao contrrio, a liberdade dos agentes de mercado de infl uenciar e sugestionar os indivduos sem interferncias. Quando emprega-mos as metforas do pai, da bab e da criana, a questo subjacente efetivamente a ampliao da liberdade de autodeterminao dos indivduos ou a faculdade do mercado de tutelar os consumidores sem qualquer obstculo?

    6 O alcance da restrio de horrios e seu regime constitucional: uma defesa da liberdade de ao do legislador e do mtodo da ponderao

    O debate sobre a constitucionalidade do artigo 254 do ECA tem, por pano de fundo, trs questes cruciais: a) o alcance da atribuio de competncia legislativa Unio para legislar sobre classifi cao indicativa; b) o espao de ao do legislador para intervir na esfera comunicativa, com a fi nalidade de promover a proteo infncia; e c) a discusso sobre se a regulao do mercado audiovisual poderia ser mais reforada nos setores sujeitos concesso.

  • 183 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    A Constituio regulou a matria nos artigos 21, XVI, e 220, 3, com o seguinte teor:

    Art. 21 Compete Unio:.....................................................................................................XVI exercer a classifi cao, para efeito indicativo, de diverses pblicas e de programas de rdio e televiso; [...]

    Art. 220. [...] 3 Compete lei federal:I regular as diverses e espetculos pblicos, cabendo ao poder pblico informar sobre a natureza deles, as faixas etrias a que no se recomendem, locais e hor-rios em que sua apresentao se mostre inadequada;II estabelecer os meios legais que garantam pessoa e famlia a possibilidade de se defenderem de programas ou programaes de rdio e televiso que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, prticas e servios que possam ser nocivos sade e ao meio ambiente. [...]

    Art. 221. A produo e a programao das emissoras de rdio e televiso atendero aos seguintes princpios:I preferncia a fi nalidades educativas, artsticas, culturais e informativas;II promoo da cultura nacional e regional e estmulo produo independente que objetive sua divulgao;III regionalizao da produo cultural, artstica e jornalstica, conforme percen-tuais estabelecidos em lei; [...] (BRASIL, 1988)

    Um dos argumentos que amparam a tese da inconstitucionalidade de ordem literal. Segundo se sustenta, a utilizao do vocbulo indicativa pelo texto constitu-cional deveria levar concluso de que o poder do Estado restringe-se ao exame da cor-relao entre os contedos e as faixas etrias para efeitos sugestivos, a fi m de assinalar sua classifi cao para o pblico destinatrio.

    Conforme essa viso, o uso da expresso indicativa no art. 21, XVI, e do voc-bulo informar no art. 220, 3, I, gera a interpretao, a contrario sensu, de que o Estado no poderia adotar quaisquer outras medidas, como as sanes administrativas previstas no art. 254 da Lei n 8.069/90.16

    Entendo que sequer seria necessrio debater de forma aprofundada o signifi cado literal da palavra indicativa para defi nir se a lei poderia estabelecer outras providncias nesse domnio. Isso porque, como explicarei a seguir, deve-se reconhecer que o legislador tem liberdade prima facie de empregar outros meios, alm daqueles que a Constituio enunciou explicitamente, para promover direitos fundamentais, desde que se atenda ao princpio da proporcionalidade.

    De qualquer forma, o prprio argumento literal, no caso, no consistente. A palavra indicar no tem sentido unvoco: ela comporta tambm o signifi cado de de-signar, determinar, precisar e estabelecer.17 Paralelamente, a interpretao literal no pode ser empregada com o propsito de esvaziar a utilidade e a efi ccia do comando legal. Como destacou Luiz Gallotti em passagem sempre lembrada: De todas, a inter-pretao literal a pior. Foi por ela que Cleia, na Chartreuse de Parme, de Stendhal, havendo feito um voto a Nossa Senhora de que no mais veria seu amante Fabrcio,

  • 184 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    passou a receb-lo na mais absoluta escurido, supondo que assim estaria cumprindo o compromisso (GALLOTTI apud BARROSO, 1996, p. 120).

    Essa afi rmao no implica subestimar a importncia dos elementos literais e tex-tuais no controle do subjetivismo. O vocabulrio ponto de partida e pea fundamental na constrio do arbtrio no processo hermenutico. Como sintetiza Aharon Barak (1992, p. 253): As palavras tm signifi cado. Um cigarro no um elefante.

    De fato, o sentido comumente dado s palavras deve, claro, limitar a atuao do intrprete. Na feliz imagem de Max Radin (1930 apud MORESO, 1997, p. 217), em-bora as palavras no sejam como cristais, tambm no so como malas de viagem, no podemos colocar nelas tudo que queremos. Mas como agir nesses cenrios de ambigui-dade? A meu ver, preciso excluir os sentidos nitidamente impraticveis e preencher as zonas de penumbra recorrendo ao propsito do conjunto normativo. Esse esforo impede que o dicionrio seja usado pelo intrprete como utenslio para desconstruir a lgica global do sistema.

    O que a passagem do romance de Stendhal citada por Gallotti retrata de forma emblemtica que a literalidade das palavras no pode ser usada como artifcio para desconsiderar seu contexto e implicaes globais, neutralizando a efi ccia do comando. No caso, penso que uma leitura restritiva dos sentidos possveis da expresso indicativa tornaria inefi cazes as previses do art. 220, 3, II, e dos princpios enunciados nos artigos 221 e 227. O Estado fi caria desprovido de qualquer mecanismo vinculante para conferir efetividade aos comandos de proteo da infncia.

    Esse aporte vocabular restritivo esvazia a efetividade do edifcio normativo cons-trudo pela combinao dos artigos 220, 221 e 227 da Constituio. Entender que clas-sifi cao exclusivamente sugestiva no domnio da TV aberta signifi ca reconhecer, em outros termos, que as empresas de radiofuso tm o direito subjetivo de exibir qualquer tipo de programao nos horrios que julgarem conveniente, sem correlao com as faixas etrias indicadas. Essa concluso incompatvel com a concepo contempor-nea de efetividade das normas constitucionais, pois reduz os princpios de proteo infncia condio de meras advertncias, conselhos ou apelos s empresas de televi-sionamento e radiofuso.

    Todavia, o argumento mais importante para repelir a tese de que a expresso indicativa exclui outras providncias estatais no campo da programao de TV poten-cialmente lesiva s crianas no o de ordem literal. O que est por trs desse problema a compreenso sobre as relaes que se estabelecem entre legislador democrtico e direitos fundamentais.

    Esse ponto implica uma tomada de posio sobre a relao sinrgica que se esta-belece entre democracia e supremacia constitucional (SOUZA NETO; SARMENTO, 2013, p. 31). Seria correto afi rmar que, no domnio dos direitos fundamentais, o legislativo s pode dar cumprimento a certas ordens constitucionalmente estabelecidas, regulando os domnios em que for explicitamente autorizado a agir? Ou, diversamente, deve-se reconhecer ao Parlamento uma liberdade de ao prima facie, que lhe confere algum grau de discricionariedade poltica para eleger meios de realizar direitos e princpios constitucionalmente previstos?18

  • 185 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    O ponto saber como as normas de direitos fundamentais impem ao legislador uma ao positiva e de que forma circunscrevem seu poder de agir. No se discute que a atuao do legislador ordinrio subordinada Constituio. Mas de que maneira e em que medida essa vinculao implementada?

    Os direitos fundamentais comandam a ao legislativa em duas frentes: a) de um lado, impem impedimentos atuao do Estado, confi gurando um acervo de competn-cias negativas do Poder Pblico; e b) de outro, operam como comandos reitores da ao estatal, ordenando a realizao de tarefas e a consecuo de objetivos pelo Poder P-blico a fi m de promov-los. Nesse prisma, como afi rma Joaqun Rodrguez-Toubes Muiz:

    Os direitos fundamentais tm, portanto, um duplo aspecto: condio ou requisi-to mnimo da atuao pblica constitucionalmente legtima, e ideal ou aspirao mxima da atuao constitucionalmente preferida. So tanto regras sobre direitos como princpios sobre deveres. Entre ambas as indica es, resta um espao bastan-te amplo para a interveno discricionria (aqui entendida no sentido de poltica) e legtima dos poderes pblicos. (MUIZ, 2000, p. 122)

    Os direitos fundamentais e princpios constitucionais tm uma propenso natural a entrar em confl ito. Sendo os direitos fundamentais concebidos como normas que enunciam princpios vale dizer, como comandos normativos prima facie , possvel que sejam restringidos em decorrncia das razes antagnicas que, em determinadas situa es, assumam maior peso. Dessa forma, a regulao dos direitos pressupe duas normas vlidas que entram em confl ito: a norma que estatui o direito prima facie e a norma que ampara o estabelecimento da restrio.19 O direito defi nitivo ser extrado depois de empregada a metodologia da ponderao, utilizando-se como ferramenta de aferio de pesos o princpio da proporcionalidade. O uso dessa estrutura de raciocnio corresponde chamada teoria externa dos direitos fundamentais, j empregada pelo STF diversas vezes (PEREIRA, 2006, p. 150). Ela incompatvel com a noo de que as normas de direito fundamental estabelecem apenas comandos defi nitivos e axiomticos.20

    De acordo com a teoria externa dos direitos fundamentais, os direitos devem ser interpretados em duas etapas. Na primeira fase so determinadas, da forma mais ampla possvel, as diversas faculdades e posi es jurdicas que decorrem do direito fundamental em jogo. Trata-se de verifi car, luz do dispositivo que assegura o direito, seu contedo inicialmente protegido,21 sem tomar-se em considerao se outros direitos individuais ou interesses comunitrios podem ser afetados ou restringidos. A leitura da norma, nesse estgio, ampla e abrangente. Sem embargo, devem ser levadas em conta as limita es estabelecidas no prprio preceito que outorga o direito (como, por exemplo, na questo aqui analisada, a vedao expressa censura).

    No segundo momento, o amplo contedo inicialmente protegido do direito de-ve ser confrontado com outros direitos e bens constitucionais que com ele colidam, a fi m de identifi car seu contedo defi nitivamente protegido. So traados, assim, os limites defi nitivos do direito, os quais so limites externos, j que resultam do recorte do contedo inicialmente protegido do direito fundamental (GUERRERO, 1996).

  • 186 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    Tem-se, assim, a premissa de que os direitos fundamentais so restringveis em de-corrncia dos confl itos normativos que se estabelecem entre estes e outros direitos e bens constitucionais. A possibilidade de restringir os direitos, contudo, ela mesma limitada. A constitucionalidade da restrio deve ser aferida por meio do juzo de ponderao, que ir sopesar os direitos e bens em confl ito, com a aplicao do princpio da proporcionalidade.

    Esse modelo de interpretao, como se disse, deve necessariamente operar com um aporte dilatado do alcance do direito fundamental. No caso da liberdade de expres-so, todas as formas de comunicao, expresso, veiculao, programao, edio e trnsito de ideias esto inicialmente abrigadas pela tutela constitucional. Nesse marco terico, no possvel sustentar, como fazia o juiz Hugo Black, que determinadas formas de discurso so absolutamente e incondicionalmente protegidas, enquanto outras no desfrutariam de proteo alguma.

    Todavia, essa abordagem ampla do contedo dos direitos fundamentais tem como consectrio o reconhecimento de que o legislador democrtico dispe de uma margem de ao para equacionar os confl itos entre direitos. O Parlamento est vinculado aos direitos fundamentais, mas no deve ser entendido como um mero executor tcnico de decises constitucionais que j estariam exaustivamente enunciadas (ALEXY, 2002, p. 40; PEREIRA, 2006, p. 353).

    Essa concluso determinada tanto pela prpria estrutura normativa dos direitos como pelo princpio democrtico. Ela implica o entendimento da Constituio como ordem substantiva e vinculante que convive com uma esfera de manifestao da vontade popular materializada pela liberdade legislativa.

    A ponderao a tcnica que viabiliza, precisamente, determinar, nos casos difceis, aquilo que defi nitivamente permitido ou proibido pela Constituio. Em certos contextos, a ponderao pode levar concluso de que a atuao legislativa se situa no campo do constitucionalmente possvel, e no do constitucionalmente ordenado. o que ocorre, por exemplo, quando os bens ou interesses em jogo assu-mem um peso equivalente na dinmica do balanceamento, caso em que deve preva-lecer a liberdade de deciso do Parlamento.

    De fato, o reconhecimento de uma esfera de liberdade do legislador no incompatvel nem com o entendimento dos direitos fundamentais como princpios nem com a dimenso objetiva desses direitos, tampouco com a ponderao. Hoje, a ideia de que a ponderao caracteriza-se como metodologia adequada para solucionar problemas constitucionais est conectada tese de que o processo de sopesamento deve abarcar, alm dos princpios em confl ito, o princpio da liberdade do legislador, que atua sempre como razo em favor da preservao da norma, salvaguardando, assim, a dimenso democrtica do Estado Constitucional Alexy (2002), Sanchs (2009), Borowski (2003).

    Como assinala Martin Borowski:

    [...] na ponderao deve ter-se em conta um princpio adicional, que ordena prima facie seguir as decises do legislador legitimado. Este princpio da classe dos prin-cpios formais, e fundamenta a validade das normas, independentemente da corre-o de seu contedo, com sujeio aos procedimentos previamente estabelecidos.

  • 187 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    Ele ordena cumprir as decises do legislador em tudo quanto seja possvel. Surge assim uma margem de ao, na qual o legislador livre; fora dessa margem, pelo contrrio, est sujeito Constituio. O resultado da ponderao no pode vulne-rar o princpio democrtico, nem, com ele, as competncias do legislador, j que dito princpio forma parte da ponderao. Este compromisso entre a liberdade e a sujeio apoia-se nos princpios do moderno Estado Constitucional. (BOROWSKI, 2003, p. 60)

    A resposta mais apropriada luz do princpio democrtico e da separao de poderes , portanto, que o legislador dispe de uma margem de ao para fi xar os mecanismos de soluo de confl itos entre direitos fundamentais, margem esta que limitada pelos prprios direitos fundamentais. A ferramenta metodolgica de aferio dessa fronteira o princpio da proporcionalidade.

    Assim, ainda que acatssemos a tese de que a palavra indicativa faz referncia to somente ao dever estatal de informar, a competncia estabelecida no art. 21, XVI, da Constituio no excluiria a possibilidade de o legislador empregar outros mecanismos de proteo ao desenvolvimento infantil no ambiente da televiso aberta. O princpio de liberdade de ao do legislador, calcado no princpio democrtico, autoriza a utilizao de outros instrumentos jurdicos voltados promoo do princpio da proteo da infncia, desde que respeitem o contedo essencial da liberdade de expresso, aferido mediante a aplicao do princpio da proporcionalidade.

    7 Avaliao da proporcionalidade da imposio de barreiras de horrio

    Afastada a leitura de que a regulamentao de horrios de programao de TV e rdio do Estado pelo critrio de adequao s faixas etrias seria um campo infranquevel ao do Estado, a questo em anlise deve ser tratada como uma hiptese de coliso entre direitos constitucionais.

    O primeiro passo no processo de aferio da proporcionalidade de uma restrio a direito fundamental avaliar se ela passa no teste da idoneidade ou adequao.22 Esse requisito exige que toda restrio aos direitos fundamentais seja idnea para o atendimento de um fi m constitucionalmente legtimo.

    Analisar a legitimidade constitucional dos fi ns visados pela medida que impe a restrio um desdobramento da prpria ideia de idoneidade ou adequao. No h como verifi car a aptido de uma medida restritiva para o atendimento de um objetivo sem que ele tenha sido identifi cado,23 e apreciada sua compatibilidade com a Constituio.

    O fi m buscado pela medida restritiva consistente nas barreiras de horrios de programao de teor adulto a proteo da infncia. Esse fi m est normativamente respaldado pelo art. 227 da Constituio.

    Identifi cada a existncia do fi m visado pela medida restritiva de direitos fundamentais e o seu fundamento constitucional, o subprincpio da adequao exige que seja aferida a aptido desta para o atendimento do objetivo perseguido. preciso, portanto, examinar se o meio empregado (imposio de limitao de horrios na TV) instrumentalmente adequado para cooperar para a realizao do fi m buscado.

  • 188 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    A idoneidade da medida diz respeito sua aptido emprica para contribuir para a concretizao do fi m. O conceito constitucionalmente adequado de idoneidade pressupe a rejeio dos meios completamente incuos ou inefi cientes para obter o fi m pretendido.24

    Nesse contexto, as medidas que colaboram, ainda que parcialmente, para a consecuo do fi m devem passar nesse teste. Tal postura liga-se necessidade de conferir certo espao de manobra ao Legislativo, j que raramente possvel determinar com segurana absoluta se o meio ou no totalmente adequado. Por isso, a exigncia de adequao pressupe que os juzes declarem a inconstitucionalidade da medida apenas quando for possvel afi rmar com total certeza e objetividade que ela no contribui para a realizao do fi m. Essa concepo tem respaldo nos princpios democrtico e da separao de poderes.

    A vinculao de horrios por faixas etrias na TV aberta colabora para a pro-moo do fi m da proteo da infncia. Segundo algumas vertentes da Psicologia e da Pedagogia, difi cultar o acesso das crianas s cenas de contedo pornogrfi co e vio-lncia gratuita contribui para o desenvolvimento saudvel da personalidade. Outros, de forma diferente, sustentam que essa limitao tem fundamento tico e educativo. Nessa outra viso, ainda que no se tenha a convico de que a programao adulta gera efeitos perniciosos para a formao das crianas, uma exposio restrita a esse tipo de contedo permite que recebam outro tipo de informao que possa contribuir para sua educao e cidadania.25

    A vinculao de horrios tambm atende ao subprincpio da necessidade. A imposio da necessidade do meio requer que, dentre vrias medidas restritivas de direitos fundamentais igualmente aptas para atingir o fi m perseguido, o legislador aplique a menos lesiva para o direito afetado. Tal subprincpio guarda semelhana com a noo de proibio de excesso,26 impondo uma anlise comparativa entre os diversos meios que podem auxiliar no atendimento fi nalidade buscada, para que se eleja aquele que for menos gravoso para o direito afetado.27

    O controle da necessidade das leis restritivas impe uma anlise comparativa do meio utilizado e de outros meios que, alternativamente, poderiam ter sido empregados, a fi m de determinar qual deles o menos oneroso para os direitos fundamentais. O objetivo verifi car se legislador no poderia escolher outro meio de igual efi ccia na promoo do fi m buscado, mas menos prejudicial para o direito fundamental afetado.

    Nesse exame, preciso que o meio alternativo usado como parmetro de compara-o ostente um grau superior ou idntico de efi ccia ao daquele empregado pelo legislador.

    Devem tambm ser afastados da comparao tanto os meios alternativos, que, embora dotados de grau equivalente ou superior de idoneidade ao do meio empregado pelo Legislativo, so de difcil efetivao ou, ainda, os que demandam custos muitos elevados para serem implementados (PULIDO, 2005, p. 742).

    Assim, para que uma medida legislativa seja entendida como desnecessria, devem conjugar-se dois elementos: a) igual ou maior idoneidade do meio alternativo; e b) menor onerosidade do meio alternativo. Quando o meio alternativo tem um maior coefi ciente de idoneidade, mas ocupa a mesma posio do meio efetivamente empregado na escala da onerosidade, o subprincpio da necessidade est atendido.28

  • 189 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    Nessa ordem de ideias, a imposio de barreiras de horrio s poderia ser vista como desnecessria proteo da infncia caso outro meio igualmente ou mais efi caz e menos oneroso pudesse ser empregado.

    Na televiso aberta, uma maneira alternativa de promover o amparo infncia seria entender que o dever de proteo cabe apenas aos pais, e no ao Estado.

    Seguindo essa linha de pensamento, debate-se se a existncia de uma tecnologia que permite aparelhar as TVs com mecanismos de bloqueio da programao de contedo pornogrfi co ou violento seria uma alternativa apta a qualifi car a barreira de horrio como desproporcional por ser desnecessria. A discusso gira em torno do V-Chip, me-canismo que poderia ser empregado pelos pais para impedir o acesso de seus fi lhos a esses contedos. A Lei n 10.359/2001 prev a obrigatoriedade de os novos aparelhos de televiso conterem dispositivo que possibilitem o bloqueio temporrio da recepo de programao imprpria.

    Ocorre que esse meio no pode ser entendido como menos oneroso sob a tica dos direitos fundamentais. Se, por um lado, ele menos restritivo em relao liber-dade de alocao temporal da programao pelas emissoras de TV; por outro, impe um nus maior aos pais e aos fabricantes de aparelhos. H razovel margem de dvida, ainda, sobre o grau de efi cincia desse meio.

    Por ltimo, o bloqueio automtico de programao restringe o acesso da criana e do adolescente programao de TV. Esse tipo de bloqueio pode no ter grande impacto no ambiente da TV a cabo, em que a gama de canais e alternativas de programao abrangente. Na televiso aberta, no entanto, o bloqueio da programao durante os horrios em que o pblico infantil mais comumente a assiste representa um cerceamento de seu acesso ao entretenimento, j que o nmero de canais limitado.

    Tambm no se deve deixar de lado o fato de que a apreciao do problema no pode desconsiderar nosso dfi cit de igualdade social. Mecanismos como vigilncia e fi scalizao de pais e cuidadores, implantao de dispositivos de segurana, presena de meios alternativos de entretenimento (videogames, leitura, internet...) so amplamente disponveis para as famlias de classes mais abastadas. Mas esses mecanismos no podem ser tomados como padro para a formao de presunes sobre a utilidade das limitaes de horrio. Fora dos grandes centros urbanos e nas classes sociais mais baixas, a TV aberta ainda o mecanismo importante de acesso cultura, informao e diverso.

    Por fi m, a autorregulao tambm habitualmente mencionada como alternativa regulao estatal de horrios. Cabe avaliar se ela confi gura um meio menos restritivo e igualmente efi caz de incremento da proteo dos direitos fundamentais das crianas.

    A autorregulao um mecanismo importante em qualquer sistema democrtico. Ela concretiza o princpio de subsidiariedade, segundo o qual a ao coercitiva do Estado deve ser entendida como ultima ratio. Um mercado autorregulado produz uma reduo espontnea das demandas sociais por normas restritivas, ensejando uma diminuio natural da esfera de ao do Estado. Uma tendncia atual, inclusive, a corregulao, que permite que mercado e Estado ajam em sinergia, facilitando a implementao dos objetivos regulatrios e minimizando a interveno estatal.29

  • 190 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    Contudo, no h como afi rmar que a autorregulao possa suprir, em todos os contextos e situaes, a ao do Estado. A regulao realizada exclusivamente pelo prprio mercado nem sempre ser apta a promover, na mesma escala e com a mesma efi cincia, a proteo aos direitos fundamentais. A interveno do Estado justifi ca-se precisamente quando h confl itos entre os interesses do mercado e os direitos de grupos vulnerveis, de modo que a possibilidade de autorregulao e sua potencial efi ccia no podem excluir, em defi nitivo, a atuao estatal.30

    A vinculao de horrios tambm passa no teste da proporcionalidade em sentido estrito. Esse princpio corresponde ao raciocnio ponderativo, confi gurando um modelo de pensamento que deve comandar a parte fi nal do processo de soluo de antinomias entre princpios constitucionais. Segundo o subprincpio da proporcionalidade em sentido estrito, uma restrio a direitos fundamentais constitucional se puder ser justifi cada pela rele-vncia da satisfao do princpio cuja implementao buscada por meio da interveno.

    promovida a comparao entre o grau de afetao do direito fundamental restringido e a importncia da proteo do direito ou princpio que com ele colide e fundamenta a medida.

    No caso da vinculao de horrios, caber responder se a proteo da infncia buscada pela medida restritiva da liberdade de programao das emissoras justifi cada a partir de uma anlise de custo-benefcio, luz da axiologia constitucional. Feito esse exame, ser possvel estabelecer uma relao de precedncia contingente entre os di-reitos e princpios em jogo. Assim, a estrutura argumentativa da proporcionalidade em sentido estrito encerra o ncleo da ponderao (SANCHS, 2009, p. 201).

    A restrio imposta pela correlao de horrios e faixas confi gura uma restrio mdia liberdade de programao (ALEXY, 2002). Ela tem impacto na ordenao e produo dos contedos, que devem ser exibidos de acordo com os horrios indicados. No se trata de uma restrio leve, pois suas implicaes no so mnimas. Mas tam-pouco parece possvel qualifi c-la como grave, j que ela no impede a exibio de contedo, mas apenas determina sua transmisso nos horrios no abrangidos pelas barreiras de tempo estabelecidas.

    Essa restrio, de intensidade intermediria, promove tambm em escala mdia os direitos fundamentais das crianas e o princpio da proteo infncia. Ela diminui a possibilidade de exposio desse grupo aos contedos imprprios e coopera, indiretamente, para que a programao assuma um carter mais cultural e educativo.

    Com efeito, a comparao entre os efeitos negativos e os efeitos positivos (PULIDO, 2005, p. 760) que advm da medida restritiva examinada induz concluso de que ela passa no teste da proporcionalidade em sentido estrito.

    Cabe ter em conta, primeiramente, que tanto a liberdade de programao quan-to os direitos fundamentais das crianas tm um peso abstrato elevado na tbua de valores constitucionais.

    De um lado, a liberdade de programao das emissoras uma manifestao da liberdade de expresso e pensamento, que so peas fundamentais na construo de

  • 191 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    uma sociedade livre e plural. De outro, a proteo da infncia tem intensa conexo com a promoo da autonomia e da igualdade, permite o livre desenvolvimento da perso-nalidade dos indivduos e determina que crianas e adolescentes tenham a chance de crescer em um ambiente livre das diversas formas de opresso e violncia, tanto real como simblica.

    No plano puramente abstrato, possvel dizer que os dois princpios constitucio-nais esto em posio de equivalncia: ambos cooperam para a promoo da dignidade humana em suas mltiplas dimenses. No entanto, na anlise concreta da restrio em-preendida, fi ca claro que a proteo da infncia assume uma relevncia maior.

    O peso concreto mais acentuado da proteo da infncia no domnio da regulao da TV aberta evidenciado a partir da anlise da intensidade da restrio ao direito fun-damental e ao grau de promoo do princpio que a justifi ca. O peso maior justifi cado por uma srie de razes que j foram enunciadas nos primeiros tpicos desse trabalho e que so agora sintetizadas. Primeiramente, a relao que se estabelece entre os agentes que tem sua liberdade restringida e os que tm seus direitos promovidos assimtrica e vertical: a TV tem carter invasivo, e as crianas assumem um papel passivo na absoro dos contedos veiculados. Por outro lado, a circunstncia de que a escolha da grade de TV aberta envolve uma complexa rede de liberdades existenciais e econmicas, bem como o fato de que se trata de uma concesso pblica e acessvel a um grupo restrito de indivduos, detentores de um importante poder privado, justifi ca que o Estado interve-nha com o escopo de proteger grupos vulnerveis. Sob a tica do princpio democrtico, cabe ter em considerao que as crianas no participam do processo de formao da vontade poltica. Na perspectiva da liberdade, de se ver que sua capacidade de autodeterminao no est desenvolvida a ponto de selecionarem os programas mais apropriados para sua faixa etria.

    Assim, so muitas as razes que permitem concluir que a restrio de horrios amplamente justifi cada pelo grau e pela importncia dos direitos e princpios constitucionais que promove. A relao entre o grau de restrio a direitos que advm da barreira de horrios e a extenso e importncia do fi m constitucional que promove adotada de forma sobreproporcional.31

    Palavras fi nais

    Meu objetivo aqui foi demonstrar que o antagonismo entre poder e liberdade no tem, no domnio do mercado audiovisual dirigido infncia, os contornos simplistas apresentados nas teses relacionadas declarao de inconstitucionalidade das barreiras de horrios atrelados classifi cao indicativa em meios de comunicao sujeitos concesso pblica.

    Ainda que a dico do art. 254 da Lei n 8.069/90 no seja a mais adequada, um precedente que venha a repelir, de forma peremptria, a regulao de horrios no a soluo constitucionalmente adequada. Uma sada possvel seria reconhecer a

  • 192 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    possibilidade da imposio de barreiras temporais, consignando, mediante interpreta-o conforme, a impossibilidade de controle prvio da programao.

    No tema da regulao da programao de TV dirigida ao pblico de crianas e adolescentes, esto, de um lado, poderosas corporaes privadas e, de outro, pessoas em formao, cuja capacidade de autodeterminao ainda no plena. A regulao estatal do poder privado em relaes assimtricas no comprime a liberdade dos que sofrem seus efeitos, mas a promove.

    Alis, vale lembrar que a ideia de que a liberdade absoluta fortalece os fortes e oprime os vulnerveis est no cerne de diversos domnios do Direito. esse o propsito, por exemplo, das leis trabalhistas, da legislao consumerista, da lei sobre locaes e das leis anticartis. Defender que a escolha dos horrios de programas cujos especta-dores so crianas um domnio imune ao do Estado, devendo fi car ao critrio do bom-senso das empresas que exploram os canais de TV aberta, apregoar uma fi losofi a superlibertria que no combina com o modelo estabelecido na Carta de 1988, a qual foi clara ao estabelecer o papel promocional do Estado em matria de educao e de proteo infncia.

    CONTENT RATING AND WATERSHED PROGRAMMING ON TELEVISION: THE POWER OF IMAGES AND WORDS

    ABSTRACT: This article assesses the constitutionality of State imposition of programming watershe-ds on broadcast television, taking as its starting point the arguments used by the Brazilian Supreme Court during the ongoing judgment of the Unconstitutionality Action n. 2,404. The aim of the article is to show the complexity of the confl ict between freedom of speech and fundamental rights of children in this specifi c type of media, pointing to a solution that rejects the possibility of previous state control and content ban, but recognizes the constitutionality of regulatory time restrictions connected to age classifi cation of broadcast TV programming.

    KEYWORDS: Content rating. Freedom of speech. Freedom of programming. Watersheds. Unconstitutionality Action n. 2,404.

    Referncias

    ALEMANY, Macario. El paternalismo jurdico. Madrid: Iustel, 2006.

    ALEXY, Robert. Eplogo a la Teora de los Derechos Fundamentales. Revista Espaola de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, n. 66, p. 13-64, set.-dez. 2002. ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Les judges dans la mondialisation. Paris: Seuil, 2005.

    VILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princpios: da defi nio aplicao dos princpios jurdicos. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2004.

    BARAK, Aharon. Hermeneutics and Constitutional Interpretation. Cardozo Law Review, n. 14, p. 767-774, 1992.

  • 193 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    BARENDT, Eric. Freedom of speech. Oxford: Oxford University, 2005.

    BARKAI, Yotam. The child paradox in First Amendment doctrine. New York University Law Review, v. 87, p. 1.414-1.451, nov. 2012.

    BARNES, Javier. El principio de proporcionalidad: Estudio preliminar. Cuadernos de Derecho Pblico. Madrid, Instituto Nacional de Administracin Pblica, n. 5, p. 15-49, 1998.

    BARROSO, Lus Roberto (Org.). A reconstruo democrtica do Direito Pblico no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

    ______. Interpretao e aplicao da constituio: fundamentos de uma dogmtica constitucional transformadora. So Paulo: Saraiva, 2009.

    ______. Liberdade de expresso, censura e controle da programao de televiso na Constituio de 1988. Revista dos Tribunais. So Paulo, v. 790, p. 127-152, ago. 2001.

    BARTLE, Ian; VASS, Peter. Self-regulation and the regulatory State: A survey of policy and practice. Research Report, n. 17. University of Bath School of Management, 2005. Disponvel em: . Acesso em: 12 nov. 2013.

    BASTRESS JR., Robert M. El principo de la alternativa menos restrictiva en Derecho constitucional norteamericano. Cuadernos de Derecho Pblico. Madrid, Instituto Nacional de Administracin Pblica, n. 5, p. 239-253, 1998.

    BINENBOJM, Gustavo. Meios de comunicao de massa, pluralismo e democracia deliberativa: As liberdades de expresso e de imprensa nos Estados Unidos e no Brasil. Revista Eletrnica de Direito Administrativo, Salvador, Instituto de Direito Pblico da Bahia, n. 5, p. 191-211, fev.-abr. 2006. Disponvel em: . Acesso em: 27 nov. 2013.

    BOROWSKI, Martin. La estructura de los derechos fundamentales. Bogot: Universidad Externado de Colombia, 2003.

    BLACK, Hugo Lafayette. Justice Black and fi rst amendment absolutes: a public interview. New York University Law Review, n. 37, 1962.

    BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Disponvel em: . Acesso em: 17 nov. 2013.

    ______. Lei n 8.069/1990. Estatuto da Criana e do Adolescente. Disponvel em: . Acesso em: 17 nov. 2013.

    CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.

    ________; MACHADO, Jnatas E. M. Reality shows e a liberdade de programao. Coimbra: Coimbra, 2003.

    CIANCIARDO, Juan. El confl ictivismo en los derechos fundamentales. Pamplona: EUNSA, 2000.

    CHAGAS, Claudia Maria; ROMO, Jos Eduardo Elias; LEAL, Sayonara (Org.). Classifi cao indicativa no Brasil: desafi os e perspectivas. Braslia: Ministrio da Justia, 2006.

  • 194 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    DICIONRIO BRASILEIRO DA LNGUA PORTUGUESA. 12. ed. So Paulo: Encyclopaedia Britannica, 1990.

    DICIONRIO AURLIO ELETRNICO SCULO XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Positivo, 2011.

    FISS, Owen M. The irony of free speech. Cambridge: Harvard University, 1996.

    GUERRERO, Manuel Medina. La vinculacin negativa del legislador a los derechos fundamentales. Madrid: Estudios de Ciencias Jurdicas, 1996.

    KEHL, Maria Rita. Classifi cao indicativa no Brasil: Desafi os e perspectivas. Braslia: Ministrio da Justia, 2006.

    LEVI, Lili. First Report: The FCCs Regulation of Indecency. University of Miami Legal Studies Research Paper, n. 14, p. 1-117, 2007.

    LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias que odiamos. So Paulo: Aracati, 2011.

    MACHADO, Jnatas. Liberdade de expresso: Dimenses constitucionais da esfera pblica do sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002.

    MENDEL, Toby. The regulation of television to protect children: Comparative study of Brazil and other countries. Halifax, Center of Law and Democracy, p. 1-30, 2012. Disponvel em: . Acesso em: 27 nov. 2013.

    ______; SALOMON, Eve. The regulatory environment for broadcasting, international best practice survey for Brazilian Stakeholders. Brasilia: UNESCO, 2011. Disponvel em: . Acesso em: 11 nov. 2013.

    MORESO, Jos Juan. La indeterminacin del derecho y la interpretacin de la constitucin. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, 1997.

    MUIZ, Joaqun Rodrguez-Toubes. Principios, fi nes y derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2000.

    NOVAIS, Jorge Reis. As restries aos direitos fundamentais no expressamente autorizadas pela Constituio. Coimbra: Coimbra, 2003.

    PEREIRA, Jane Reis Gonalves. Interpretao constitucional e direitos fundamentais: uma contribuio ao estudo das restries aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princpios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

    PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Politicos e Constitucionales, 2005.

    RADIN, Margaret Jane. Rhetorical capture. Arizona Law Review. Tucson, v. 54, p. 458-468, jan. 2012.

    SANCHS, Luis Prieto. El Juicio de ponderacin. In: Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2009.

    SINCLAIR, Darren. Self-regulation versus command and control? Beyond false dichotomies. Law & Policy, Oxford, v. 19, n. 4, p. 529-559, 1997.

    SARMENTO, Daniel. Liberdade de expresso, pluralismo e o papel promocional do Estado. Revista Dilogo Jurdico. Salvador, n. 16, p. 1-39, maio-ago. 2007.

  • 195 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minneapolis: University of Minnesota, 1983.

    SCHAUER, Frederick: Freedom of speech: a philosophical enquiry. Cambridge: Cambridge University, 1982.

    SOUZA NETO, Cludio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, Histria e Mtodos de Trabalho. Belo Horizonte: Frum, 2013.

    SUNSTEIN, Cass. Democracy and the problem of free speech. New York: Free Press, 1995.

    ______; THALER, Richard. Nudge: Improving decisions about health, wealth, and happiness. New Haven: Yale University, 2008. STAMATO, Bianca. Constitucionalismo mundial e intercmbio mundial entre juzes. In: BARROSO, Lus Roberto (Org.). A reconstruo democrtica do direito pblico no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 703-747.

    WALDRON, Jeremy. The harm in the hate speech. Cambridge: Harvard University, 2012.

    WALTON, Douglas. Argumentation schemes for presumptive reasoning. Philadelphia: Lawrence Erlbaum, 1996.

    ______. Scare tactics: Arguments that appeal to fear and threats. Dordrecht; Boston; London: Kluwer, 2000.

    Notas

    1 Sobre os diversos fundamentos da liberdade de expresso e sua conexo com democracia, confi ram-se: Frederick Schauer (1982), Jnatas Machado (2002) e Daniel Sarmento (2007).

    2 interessante notar que o art. 160, 8, da Constituio de 1969, proibia publicaes e exte-riorizaes contrrias moral e aos bons costumes.

    3 A teoria norte-americana sobre a liberdade de expresso divide-se entre os que preconizam uma viso libertria/absolutista, que acentua sua dimenso de no interveno, e uma viso democr-tica, que aceita a interveno do Estado com o propsito de promover o pluralismo e a igualdade na esfera comunicativa. Confi ra-se, sobre o tema, Cass Sunstein (1995), Owen Fiss (1996), Gusta-vo Binembojm (2006) e Daniel Sarmento (2007).

    4 O STF ainda no havia enfrentado a questo da constitucionalidade da classifi cao indicativa em decorrncia de adotar o entendimento de que a validade dos atos regulamentares que concre-tizam o art. 254 da Lei n 8.069/90 (ECA) no poderia ser examinada em sede de ao direta ou recurso extraordinrio, porquanto a inconstitucionalidade, se presente, seria refl exa ou indireta. O tribunal foi provocado sobre o tema em diversas aes, algumas posteriores ADI n 2.404 (cf. ADI n 392, RE n 265.297, ADI n 2.398 AgR, ADI n 3.907 e ADI n 3.927).

    5 Hugo Black recorria usualmente em suas decises a distines tipolgicas de forma intransigente, e rejeitava o mtodo da ponderao. Como destaca Jorge Reis Novais (2003, p. 666), as contradi-es que defl uem do entendimento da liberdade de expresso como garantia absoluta tm sua ilustrao paradigmtica na prtica constitucional do maior paladino do approach absolutista, o Juiz Black. De fato, Black esforou-se em determinar de forma absoluta e precisa a esfera de proteo constitucional estabelecida pela Primeira Emenda, formulando, assim, a dicotomia que apartava discurso (speech) e conduta (conduct), a qual resultava na orientao de que as formas simblicas de comunicao no desfrutavam de tutela constitucional. Aplicando de forma estrita essa distino, Black entendia que o discurso puro (pure speech), mesmo quando se afi gurasse difamatrio, ostentava proteo constitucional absoluta e incondicional. J os meios simblicos de expresso (simbolic speech), como, por exemplo, o uso de braadeiras negras por estudantes em protesto contra a Guerra do Vietn, no estavam inseridos no mbito de proteo da clusula

  • 196 Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 38, p. 169-197, dez. 2013

    constitucional da liberdade de expresso, ainda quando empregados com o propsito de transmi-tir uma ideia. Nesse sentido, o juiz, em entrevista na qual foi questionado sobre se a obscenidade era tutelada pela liberdade de expresso, fi rmou que: My view is, without deviation, without exception, without any ifs, buts, or whereases, that freedom of speech means that you shall not do something to people either for the views they have or the views they express or the words they speak or write (BLACK, 1962, p. 549-562). Assim, para Black, a liberdade de dizer ou escrever seria incondicional e onipotente, enquanto a de expressar uma convico por outros meios no teria proteo constitucional alguma. O trecho da lavra de Black citado pelo ministro Toffoli diz o seguinte: No difcil, a mentes engenhosas, cogitar e inventar meios de fugir at das cate-gricas proibies da Primeira Emenda.

    6 Sobre o sistema norte-americano de fi scalizao da indecncia (indecency) na programao de TV aberta, veja-se o relatrio da Unesco (MENDEL, 2012) e Levi (2007).

    7 O atual marco regulatrio determinado pela Lei n 8.069/90 e pelas portarias editadas pelo Minis-trio da Justia. Em 2007, editou-se a Portaria n 264, que regulamenta a classifi cao indicativa de obras audiovisuais destinadas televiso e congneres. Em sequncia o Ministrio da Justia promoveu uma srie de debates e consultas pblicas, que resultaram na publicao da Portaria n 1.220/2007, atualmente em vigor. O debate pblico que antecedeu a publicao da Portaria n 1.220 resultou no fi m da anlise prvia para programas televisivos e na iseno de classifi cao indicativa para publicidade, programas jornalsticos, esportivos ou eleitorais.

    8 Douglas Walton (2000, p. 20) explica como o argumentum ad metum construdo de forma calcu-lada para evocar o medo no interlocutor e, juntamente com o apelo ameaa e fora, constitui uma modalidade argumentativa que denominou de scare tatics, dotada de trs caractersticas centrais: a) indicao de um cenrio temerrio; b) objetivo de obter, de um pblico-alvo, um curso de ao recomendado; c) convencimento, desse pblico-alvo, de que a produo deste cenrio temerrio possa ser evitada se for tomado o referido curso de ao.

    9 O argumento da ladeira escorregadia (slippery slope) um mtodo pelo qual se adverte algum que est acompanhando uma sequncia de eventos de que dar o primeiro passo pode (presumi-damente) conduzir a uma cadeia de consequncias que culminaro num desastre, um desfecho ruim que a pessoa advertida no aceitaria (WALTON, 1996, p. 95).

    10 A captura retrica uma forma de discurso que afasta o interlocutor de um debate pblico claro, relacionando-se no apenas noo de que as pessoas se tornam presas de argumentos falaciosos, mas tambm criao de rtulos conclusivos que ocupam integralmente o campo semntico do dis-curso, impedindo uma argumentao racional. Dentre as formas de captura, incluem-se o desvirtu-amento da questo, as capturas por anttese, por substituio e por assimilao. O desvirtuamento da questo especialmente comum no discurso poltico por exemplo, com a afi rmao de que direitos de igualdade suprimem o direito propriedade, que por natureza excludente em relao a terceiros. A captura por anttese ou assimilao prevalente, por exemplo, quando tratamos de expresses antpodas como ataque e defesa, paz e guerra (RADIN, 2012).

    11 Como destaca Bianca Stamato (2007, p. 714), possvel falar na existncia de uma comunidade aberta de intrpretes em nvel mundial. Cf. tambm Allard e Garapon (2005). H uma crescente produo acadmica sobre o tema.

    12 Para uma defesa radical do modelo libertrio, veja-se Lewis (2011), e em sentido moderado, reconhecendo a possibilidade de regulao do hate speech com o escopo de proteger a dignidade humana, cf. Waldron (2012, p. 8). O autor usa a expresso regulao do hate speech para fazer referncia aos sistemas de proteo existentes em pases como Canad, Dinamarca, Alemanha, Nova Zelndia e Reino Unido.

    13 Para uma anlise cuidadosa do modelo regulatrio norte-americano, veja-se a obra de Lili Levi (2007).14 A respeito desse assunto, Daniel Sarmento (2007, p. 2) pontua que: Embora a dimenso preponde-

    rante da liberdade de expresso seja realmente n