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    PASSEANDOPELOSPARQUES DECORTZARStrolling through Cortazars parks

    Susan Blum Pessa de Moura*

    Cortzar (1924-1984) trabalha principalmente com a subverso daordem, 1 ou seja, para fabricar o seu fantstico ele faz um trabalhointeressante de quebra de paradigma no tempo, no espao e na linguagem.Com essa subverso e unheimlich, com o humor e ludismo to prprios doescritor, ele acaba criando um envolvimento com o leitor como pode serpercebido em vrios momentos de sua obra.

    Esse ludismo e subverso j podem ser percebidos quando Cortzarcompara o romance ao cinema e o conto a uma foto, dizendo que um filme uma ordem aberta, ao passo que a foto tem uma limitao, um recorte

    da realidade; mas um recorte que atua como uma exploso que abra depar em par uma realidade muito mais ampla (CORTZAR, 1993, p. 151).Ou seja, a vida sintetizada naquela foto explode aos olhos de um observadormais atencioso e meditativo que pode perceber uma segunda realidade pordetrs daquela aparncia e descobre uma realidade interna que luta porsair.2 E por este motivo que Cortzar procura fazer com que os contostenham uma tenso e um ritmo bem concentrados, que sero desdobradospelo leitor/espectador.

    Escrevendo dessa forma, Cortzar aproxima o leitor dos seus

    escritos, envolvendo-o como no livro Jogo de amarelinha (2003) ou 62.modelo para armar(2000). Mas isso no significa que apenas nesses livrosh o envolvimento com o leitor. Pode-se perceber um germe disso nos contos,entre eles Continuidad de los parques, pertencente ao livroFinal del juego

    * Mestre em Literatura, pesquisadora do grupo de estudo do espao da UFPR ecoordenadora de literatura da Casa de Artes Helena Kolody (CAHK).

    1 Assunto abordado na noite anterior pela prof. Cleusa Passos e por isso no serestendido aqui.

    2 Um conto de Cortzar que exemplifica bem isso Las babas del diablo (In:Lasarmas secretas - 1989)

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    (1974); nele, Cortzar faz uma crtica sutil ao leitor passivo e procura deforma inusitada acordar o leitor emprico para o questionamento darealidade.3

    O brevssimo conto Continuidad de los parques relata dois

    acontecimentos. Em um primeiro, um homem de negcios chega em suacasa, se acomoda em sua poltrona e penetra em sua leitura de um romance.No segundo, h um crime passional: dois amantes tramam o assassinato deum homem de negcios. Os dois relatos trazem um intenso realismo, e selidos em separado, nada se encontra neles de elemento fantstico. O fantsticose apodera deles quando os dois acontecimentos se (con)fundem na sintaxedo relato: o romance que lido pelo homem de negcios exatamente ahistria de dois amantes que resolvem matar um homem de negcios, ejustamente no momento em que este est lendo um romance.

    A mistura das histrias ocorre em vrios momentos e de diversasformas, sendo que o espao e o tempo so exemplos desse amalgamento.Mas ainda existe um outro elemento que funciona como uma porta, ou seja,que d passagem de um espao a outro, de uma realidade a outra, de ummundo a outro. Que j vamos ver qual ...

    Para exemplificar esse envolvimento, utilizo um desenhistacontemporneo a Cortzar que tambm se aproveita dessa tcnica deamalgamento. No conto, tal como no quadro de EscherExposio de gravuras(fig. 1),4 encontramos o mesmo aspecto: envolvimento entre um sujeito e

    um objeto. Em Escher, o espectador se v envolvido no prprio quadro, e no

    3 Neste ponto foram apresentados, no evento, alguns detalhes como: a subversodo tempo e do espao em vrios textos do segundo livro de contos de CortzarFinal del juego. Nesselivro a maioria das histrias tem uma duplicidade interessante, geralmente so duas histrias emdois tempos e/ou dois espaos. Para exemplificar, foram resumidos os contos La noche bocaarriba e El ro, sendo que no caso do primeiro aparecem dois espaos e tempos bem distintos,seja do motoqueiro, seja do moteca, que se amalgamam em diversos momentos, deixando o leitorna dvida de qual a realidade que deve ser seguida como real e qual a onrica. E no segundo

    conto a mescla de espaos e tempos, tambm envolvendo o real e o onrico, permitindo leiturasassociativas de cama e rio, por exemplo. Mas o conto mais detalhado e analisado do evento foiContinuidade dos parques, lido em transparncia e analisado com mais detalhes.

    4 Tambm conhecido como Galera de grabados(1956), Escher informa que comovariacin del tema tratado enBalcn(...) se realiza aqu una distensin que circunscribe el centrovaco en el sentido del reloj. Abajo a la derecha entramos en una galera con cuadros expuestos enlas paredes y sobre unas mesas. Primero nos encontramos con un visitante que lleva las manos ala espalda, y luego, en la esquina inferior izquierda, vemos a un joven que es cuatro veces msgrande que el visitante. Su cabeza, por su parte, h sido aumentada con respecto a su mano. Estconsiderando el ltimo grabado de la serie que cuelga de la pared, y sigue con atencin los detalles:el barco, el agua y las casas en el fondo. De all dirige su mirada hacia la derecha, a lo largo delgrupo de casas, cuyo tamao aumenta. All, una mujer est mirando por la ventana en direccin altecho oblicuo que cubre la galera. El joven est mirando todas estas cosas como si fuesen detalles

    bidimensionales del grabado. Si mira un poco en torno suyo, descubrir que es parte del grabado(ESCHER, 1994, p. 15-16).

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    conto o leitor est envolvido na leitura. Os dois, conto e quadro, representamde forma exemplar a relao narcsica entre texto e leitor ou entre quadro eespectador (observador). Em ambos h uma cumplicidade entre espectador/leitor e quadro/livro a tal ponto que o envolvimento levado s ltimas

    conseqncias, pois ambos estodentrodo objeto observado. Quando Escheraponta que se o admirador do quadro observasse o seu entorno perceberiaque fazia parte do mesmo, tambm o leitor do conto de Cortzar, se voltassesua cabea, poderia ver o assassino (do livro que est lendo) atrs de si.

    Sobre essa complexidade do conto, o prprio Cortzar comentou:Yo, que no escribo nunca dos veces un cuento, ste lo he escrito quinceveces y todava no estoy satisfecho. Creo que le faltan an elementos deritmo y tensin para que pueda llegar a ser diminutamente perfecto(CORTZAR, apud BERMEJO, 2002, p. 88). Para a confeco do conto,

    Cortzar afirma no se recordar de como ele surgiu, ao contrrio de outroscontos que surgiram em sonhos ou que so autobiogrficos (PREGO, 1991,p. 35), mas ao mesmo tempo se sabe por uma fala de Cortzar, ainda nesselivro de Prego, que quando ele era pequeno e lia, ocorria uma capacidadede sair das coordenadas tirnicas do tempo e do espao e [se] perder,mergulhar completamente na leitura (p. 57), em uma absoro que maistarde o levou a ter sentimentos de atravessar barreiras temporais e espaciaisj no mais atravs do livro, mas pela linguagem em suas obras. E isso oque ocorre de certa forma nesse conto, pois h um atravessar de fronteiras.

    Antes vamos nos ater um pouco ao espao. Cortzar muitoconhecido pelo seu ludismo e um dos experimentalismos que ele promove justamente esse de quebrar paradigmas que existiam anteriormente. Muitospodem achar que essa quebra comum, mas no devemos nos esquecer quegrande parte da obra de Cortzar foi escrita principalmente de 1951 a 1970.Ele tem outros livros (dos seus quase setenta) aps essa data, mas os livrosque o tornaram um escritor reconhecido so dessa poca. E o livro Final del

    juego foi publicado em 1956. A subverso que Cortzar provoca no era tocomum naquela data. Um exemplo dessa quebra de paradigmas o da

    segurana interior e o da insegurana exterior. O autor subverte a seguranado espao interno (visto geralmente como uma continuao do corpo humano)e da insegurana do espao externo,5como veremos logo mais.

    No conto Continuidad de los parques pode-se dizer que opersonagem-leitor convoca essa continuidade, pois j havia iniciado aleitura do romance dias antes, ou seja, j tinha conhecimento parcial doenredo do livro. O livro, objeto do mundo circundante, j partilhava, atravs

    5 Como visto na noite anterior, na palestra de Cleusa Passos, com os contos No seculpe a nadie e Casa tomada.

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    do texto narrativo, um entorno relacional com o leitor ficcional, fazendoento parte de seu entorno pessoal. O personagem-leitor retoma a leitura emsua ida fazenda; ou seja, ele se encontrava em um espao mais organizadoe racional que a cidade, e vai a um espao mais selvagem onde os instintos

    afloram mais, que o campo. O campo exatamente o espao descrito noromance lido por ele. A viagem realizada por trem:6alm de ser um elementoatravessador, o trem um translado em que o personagem no necessita terateno, pois no ele quem est dirigindo, e isso permite uma distrao7

    (ou viagem interior). Chega em casa e, aps resolver alguns assuntos (assimpode viajar na leitura de forma mais tranqila, sem maioresresponsabilidades), recosta-se em sua poltrona favorita, em seu tranqiloescritrio, que d para o parque de carvalhos (um local perfeito para reiniciara viagem). Ou seja, posiciona-se exatamente em um ambiente

    (conscientemente ou no) tal qual encontrava na leitura.Assim os espaos so coincidentes e trazem tona o fantstico

    no conto. Mas no somente a coincidncia espacial influi no resultadoinslito, pois a coincidncia temporal tambm traz sua contribuio. Essasimultaneidade percebida atravs da descrio dada quando o personagem-leitor se posiciona em frente aos janeles que lhe mostram a paisagem emque danzaba el aire del atardecer bajo los robles (p. 9), e atravs do amante,personagem do romance, que distingue na bruma malva del crepsculo laalameda que llevaba a la casa (p. 10). Ou seja, apresentam-se dois tempos

    iguais no espao ficcional e no real, da perspectiva da personagem.Alm disso, pode-se mencionar a coincidncia corporal entre o leitor ficcionale o personagem de seu livro (ambos sentados na sala em uma poltrona develudo verde, de frente a janeles e de costas para a porta).

    relevante o fato de o personagem ter se deixado levarconscientemente de seu mundo circundante para o interior do livro. A leituracomo ato solitrio e privativo acaba promovendo uma identificao e seinsere no entorno pessoal do leitor, emprico ou ficcional, provocando reaesem seu espao interior. A histria vai delineando esse novo entorno, como

    se percebe pelas frases: la ilusin novelesca lo gan casi en seguida. Gozabadel placer casi perverso de irse desgajando lnea a lnea de lo que lo rodeaba;e ainda: palabra a palabra, absorbido por la srdida disyuntiva de loshroes, dejndose ir hacia las imgenes que se concertaban y adquirancolor y movimiento, fue testigo del ltimo encuentro en la cabaa del monte

    6 O elemento atravessador de espaos recorrente em Cortzar, j que pode ser umametfora do sair do espao fsico, sendo incio de uma viagem para o espao interior.

    7 A distrao elemento relevante na vida de Cortzar e um aspecto apontado por

    ele para se ter um contacto com outras realidades, conforme entrevista com PREGO (1991, p. 58) eBERMEJO (2002, p. 73).

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    (p. 9). O leitor passa ento de um simplesvoyeurde manchas no papel, paraum voyeurmais ativo, inserido na narrativa. Um voyeurdo encontro dosamantes na floresta, por exemplo.

    Nesse encontro dos amantes se confirma o paradigma do jardim8

    que visto como um topos literrio e artstico de forte matiz ertico. Enesse caso mais forte ainda, por tratar-se aqui de um espao maisdesordenado que o do jardim. O mato e a floresta so representaes de umamor ertico e sensual sem racionalismos, uma forte sexualidade pag queo jardim apresenta de forma mais comportada e moralista. Os amantes sedeixam levar pelos desejos, e sua psique (espao interior) mais emotiva einstintiva, pois querem matar algum para fazer sobreviver seu amor.

    Esse espao no qual os amantes se encontram, a floresta, apesarde espao pblico um toposselvagem resguardado dos olhares curiosos,pois fechado pela densidade da mata. Para Zubiaurre, o espao da mata prximo do jardim, que o domestica; ele tem la fuerza del instinto y lapujanza de una sexualidad pagana y libre (...) la libre expresin de lasexualidad en un entorno natural (ZUBIAURRE, 2000, p. 166). O erotismoda paixo proibida levado ao extremo atravs da aniquilao de um outropara se tornar possvel a consumao da prpria paixo.

    Pode-se dizer ento que o narrador-leitor se encontrava mais comoum espectador, pois tudo estava decidido desde o comeo como se percebena frase: ...y se senta que todo estaba decidido desde siempre (p. 10); elej previa (afinal, j tinha um incio de leitura anterior) o que aconteceria eele mesmo se posicionara de acordo com o enredo, como dissemos.

    Nada fora esquecido, toda a descrio do espao que o assassinodeveria percorrer estava nitidamente traada pela mulher: as salas, asvarandas, a escadaria, as duas portas e o quarto. Todo o espao, tal qualum cenrio, j estava montado, ele s precisava se posicionar nesse cenrioda vida/livro: a porta do salo, os janeles iluminando o alto espaldar dapoltrona de veludo verde e a cabea do homem na poltrona, lendo um romance.Os janeles promovem um dilogo entre exterior e interior, assim comoexiste um dilogo entre o livro lido pelo leitor ficcional e o livro lido pelo

    leitor no-ficcional. No caso desse conto o contraste espacial permite umadialtica do mostrar e do esconder que perpassa no s o texto em si, mastambm a inteno do autor, que primeiro esconde e depois mostra essedilogo do leitor com o texto. Alm disso, os janeles so espaos que evocamuma esttica das passagens e que uma via de entre-imagens; so umelemento espacial que convida a espiar e a observar (voyeurismo). Esseolhar acaba por refletir, metonimicamente, a continuidade dos espaos.

    8 O jardim, inclusive comoboosco deleitoso(...) sempre serviu de cenrio acolhedore conivente. (SALDANHA, 1993).

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    O elemento espacial casa sugere a idia de fortaleza, de um bastioresguardado do exterior e a salvo dos olhares dos curiosos. No caso doconto, o personagem se encontra em um espao fechado, porm com vriasaberturas que permitem contato entre exteriores e interiores. Isso acaba

    criando um ar de intimidade e de recluso que caracteriza o espaodomstico, mas que ao mesmo tempo permite observadores e deixa as costasdesguarnecidas a quem penetrar na sala pela porta, criando assim um sustomaior no leitor desprevenido. H um paralelo entre os procedimentos deorganizao do espao do personagem como tal pelo autor, na lgica internado conto, e do personagem como ndice metaliterrio que provoca no leitorreal (emprico) uma reao.

    Nesse conto, Cortzar retoma o paradigma comum de um espaoexterno inseguro e de risco contra o espao interno seguro e que promove o

    bem-estar, para logo em seguida romp-lo com a invaso (do livro e doespao fsico do personagem).

    Essa mescla de espaos possvel porque Cortzar trabalha coma porosidade. Ele diz que o conto deve ser uma esfera perfeita, mas indicaque deve haver porosidade, como uma esponja, permitindo passagens. Alis,os elementos de passagens so recorrentes em Cortzar, como pontes, rios,estradas, portas e janelas.

    Aproveitando o conceito de porosidade em Cortzar, apresento agorao conceito de ponto vlico. O ponto vlico pode ser visto como uma fissura

    entre duas ou mais realidades aqui e agora, sendo um ponto de passagempara olhares mais observadores e questionadores. Cortzar menciona esseponto quando fala do sentimento do fantstico que se encontra em Valisede cronpio:

    ...lembro-me sempre da admirvel passagem de Victor Hugo:Ningum ignora o que o ponto vlico de um navio; lugar deconvergncia, ponto de interseco misterioso at para o construtordo barco, no qual se somam as foras dispersas em todo o velame

    desfraldado. Estou convencido de que esta manh Teodoro [ogato de Cortzar] olhava um ponto vlico do ar. No difcil encontr-los e at provoc-los, mas uma condio necessria: fazer umaidia muito especial das heterogeneidades admissveis naconvergncia, no ter medo do encontro fortuito (que no o ser)de um guarda-chuva e uma mquina de costura. O fantsticoforauma crosta aparente, e por isso lembra o ponto vlico; h algo queencosta o ombro para nos tirar dos eixos. Sempre soube que asgrandes surpresas nos esperam ali onde tivermos aprendido porfim a no nos surpreender com nada, entendendo por isto no nosescandalizarmos diante das rupturas da ordem. (CORTZAR, 1993,

    p. 179)

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    Assim, o ponto vlico, capaz de alterar o equilbrio de tudo, foraa quebra da crosta da aparncia e traz a possibilidade de novas percepes. a esponja ou porta funcionando com quebras de paradigmas de seguranainterior e insegurana exterior, por exemplo.

    Antes de apresentar o ponto vlico do conto, retorno a Escher e seudesenho. Escher expe que a nica dificuldade que enfrentou nesse desenhofoi a ligao entre todas as realidades e que acabou por ficar como umponto branco. Este seria o ponto vlico de Cortzar no quadro. Na literaturao ponto vlico pode ser encontrado em qualquer elemento que seja (ou levea) uma fissura entre realidades.9Promovendo assim, uma alterao doequilbrio no leitor, seja atravs da no-linearidade do texto ou atravs dasubverso de tempo-espao.

    FIGURA 1

    9 Em minha dissertao fao um estudo sobre o ponto vlico em alguns contos deFinal del juego.

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    Assim, o ponto vlico seria para o conto Continuidad de losparques o que o ponto branco de Escher em seu quadro: uma fissuraque permite a inter-relao de realidades. Ns como leitores tambm podemosser uma histria que outra pessoa esteja lendo. Por que no? No conto o

    ponto vlico seria o livro, um instrumento que permite uma fissura entreduas ou mais realidades. Tambm o leitor que est lendo o conto se venvolvido pelo texto. Espectador e leitor se encontram dentro da obra. EmContinuidad de los parques o prprio ttulo j d a definio do que eleapresenta. Nesse caso, uma continuidade, uma continuao de espaos e dehistrias. A vida imita a arte que imita a vida que imita...

    A cumplicidade do leitor-personagem (e at mesmo o do leitoremprico) em relao ao texto leva-o ao ponto de ser espectador do encontrona cabana (umvoyeur). Ele ento testemunha ocular do que acontece no

    livro e testemunha sentimental do que acontece em seu prprio interior. E omesmo se d, em uma dimenso a mais, com o leitor emprico. Estabelece-se um dilogo com as antigas leituras e sentimentos, h comparaes comocorrncias pregressas e isso pode ser transferido do leitor emprico aoleitor ficcional, por analogia, apesar de no haver referncias a isso notexto. Por semelhana os espaos fsico e textual do leitor ficcional se(con)fundem com os espaos fsico e textual do leitor emprico (ns mesmos),e como um caracol infinito, de reflexos especulares, vai se refletindoindefinidamente: eu leio, que ele l, que outro l, que ele l, ou seja, vrios

    observadores, um observando e abarcando o outro, em um eternovoyeurismotextual circular. O mesmo se d no quadro de Escher, no qualnsobservamosum desenho de umhomemque observa quadros...

    Para finalizar, o ato de ler e de adentrar na fantasia e na iluso nosrouba a percepo exata do tempo, mas o fim do romance (a morte virtualdo marido) coincide com o fim do conto (morte virtual do leitor) (PASSOS,1995, p. 68). Como bem percebeu essa estudiosa, h nesse conto um jogo deespelhos muito bem definido, pois

    vrios olhares suscitam, no nvel textual, um jogo especular em que oprazer de ver, sem ser visto, recobra o sabor do proibido, temtica jpresente na paixo inconfessa dos amantes. Quatro olhares espreitam-se circularmente: o do narrador (ao construir suas personagens), o doleitor-personagem (ao visualizar as figuras do romance), o do amante(ao penetrar na sala do marido-rival) e o nosso (na tentativa de abarcartodos os outros). (PASSOS, 1995, p. 66)

    Logo, nesse cruzamento de olhares, estamos identificados com oleitor-marido e com o leitor na poltrona, pois como eles temos o mesmo

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    objeto de desejo em nossas mos: o livro. E tal como eles, somos envolvidospela iluso artstica. Como ltima coincidncia tambm o nosso fimcomo leitores empricos que o final do conto traz.

    Ento, ao fim do conto, quase que o leitor emprico se vira nesse

    instante da invaso, principalmente se tambm tem sua frente janeles aoentardecer e se encontra sentado em uma poltrona de veludo verde. No so espao do personagem foi invadido, mas tambm o nosso, como leitoresdo conto, limitando mais ainda nossos espaos e trazendo uma certa angstiae ansiedade (sentimentos que trazem o espao em sua origem etimolgica:angstia10 vem do latim e significa estreiteza,limite,restrioe a palavraansiedade, tambm de derivao latina, remete aangere,que significa apertareestreitar). Esses sentimentos que aparecem, ao lermos Cortzar, nosremetem ao existencialismo do autor em suas obras, pois os sentimentos e

    sensaes tpicas do ser humano como medo, angstia e ansiedade aparecemem muitos momentos, trazendo uma certa vertigem ao leitor. 11

    Assim, na busca de um leitor cmplice e partcipe, Cortzar oinsere em um angustioso jogo labirntico de palavras. Ele procura instigaro leitor a questionar-se, a que perceba novas realidades e novaspossibilidades, que saia da leitura linear e explicativa para se aprofundarem outras realidades prximas a ele, no somente do mundo circundante,mas tambm de outros espaos como o das relaes e do pessoal e ntimo.

    RESUMO

    Neste artigo procuro resumir as idias principais de espao emCortzar, idias que foram apresentadas durante o evento deextensoAbrindo a porta para ir jogar na UniversidadeFederal do Paran. O espao analisado envolve no somente otexto literrio em si, como tambm a etimologia de angstia(um sentimento comum na obra de Cortzar) e, em umprenncio de esttica da recepo, um envolvimento do leitor

    em seu espao emprico e na sua relao com o objeto livro.Cortzar, em seus escritos, mostra a relevncia de um leitorativo e cmplice. Para essa apresentao buscou-se ilustraresse envolvimento espacial com uma litografia do desenhistaEscher que trabalha com um elemento comum aos dois autores:o surrealismo e a subverso do espao.

    Palavras-chave: Cortzar, espao, surrealismo, Escher.

    10 Bollnow tambm aborda o sentido etimolgico de angstia em relao ao espao(1969, p. 212).

    11 Tambm a palavra vertigem tem em sua etimologia o espao, pois d um sentimentode falta de equilbrio no espao.

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    ABSTRACT

    In this article I try to summarize the main ideas of space inCortzar that had been presented during the extension event

    Abrindo a porta para ir jogar( Opening the door to go play) inthe Federal University of the Paran. The analyzed space notonly involves the literary text itself, but also the etymology ofanguish (a common feeling in the workmanship of Cortzar)and, in an esthetics premessenger of the reception, aninvolvement of the reader in its empirical space and its relationwith the object book. Cortzar in his writings shows therelevance of an active reader and abettor. Because of that itwas looked to illustrate this space envolvement lithography ofthe Escher tracer who works with a common element for bothauthors: the surrealism and the subversion of space.

    Key-words: Cortzar, space, surrealism, Escher.

    REFERNCIAS

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    BOLLNOW, O. F.Hombre y espacio . Barcelona: Labor, 1969.

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    _____.Las armas secretas. Buenos Aires: Sudamericana, 1989.

    _____.Rayuela. Cali: La oveja negra, 2003.

    _____.Jogo de Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003.

    _____. 62. modelo para armar. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.

    _____. Valise de Cronpio . So Paulo: Perspectiva, 1993.

    ESCHER, M. C.Escher:Estampas y dibujos. Germany: Taschen, 1994.

    PASSOS, C. R. P. Confluncias:Crtica Literria e Psicanlise. So Paulo: Edusp, 1995.

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    ZUBIAURRE, M. T.El espacio en la novela realista. Mxico: Fondo de Cultura Econmica,2000.