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ROSANE MUNIZ ROCHA
A TRAJETRIA DE
GIANNI RATTO
NA INDUMENTRIA
Orientao:
Prof. Dr. Fausto Roberto Poo Viana
SO PAULO
2008
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ROSANE MUNIZ ROCHA
A TRAJETRIA DE
GIANNI RATTO
NA INDUMENTRIA
Dissertao apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Artes, rea de Concentrao Artes Cnicas, Linha de
Pesquisa Prtica Teatral Indumentria e Cenografia, da Escola de Comunicaes e Artes da
Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do
Ttulo de Mestre em Artes, sob orientao do Prof. Dr. Fausto
Roberto Poo Viana.
SO PAULO
2008
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d
Esta pesquisa foi realizada com o apoio da Fapesp.
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So Paulo, ____________________________________de 2008.
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RESUMO
Esta pesquisa registra e analisa as criaes de figurinos, desde a Itlia at o Brasil, de
Gianni Ratto, diretor, cengrafo, iluminador e figurinista, alm de autor e importante
figura no teatro italiano e brasileiro.
A catalogao, organizao e digitalizao das imagens de seus trabalhos resgata
parte da histria do teatro. Somada investigao em fontes bibliogrficas, e levando
em considerao a histria oral nos depoimentos registrados, a anlise do seu acervo
torna-se no apenas histrica, mas tambm cultural.
Um estudo comparativo de trs montagens do mesmo espetculo (Elixir de Amor) em
diferentes fases de sua carreira com Giorgio Strehler, no Teatro Scala, em 1951; no
Theatro Municipal de So Paulo, em 1971; e com Antonio Pedro, no Teatro Municipal
do Rio de Janeiro, em 1983 possibilita uma reflexo sobre os diferentes processos
criativos em seu processo de trabalho no que tange elaborao de figurinos
teatrais.
PALAVRAS-CHAVE: GIANNI RATTO, FIGURINOS, INDUMENTRIA, TRAJES,
COSTUME TEATRAL
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g
ABSTRACT
This research focus and analyses costume creation, from Italy to Brazil, of Gianni
Ratto, director, set, light and costume designer, also author and a very important
person in both Brazilian and Italian theater.
The cataloguing, organization and the creation of photo archives of the images rescue
part of the theater history. Together with the investigation of varied bibliographical
sources and considering oral history as documental information, the analysis of his
collection becomes not only historical, but also cultural.
A comparative study of three different mise-en-scnes of the same play (LElisir
DAmore) in different moments of his career with Giorgio Strehler, in Teatro alla
Scala, in 1951; at the Theatro Municipal de So Paulo, in 1971; and under Antonio
Pedros direction, in the Teatro Municipal do Rio de Janeiro, in 1983 makes it
possible to reflect on the different creative processes in his process of creation in
terms of costume creation.
KEY-WORDS: GIANNI RATTO, COSTUMES, COSTUME DESIGN, THEATRICAL
COSTUMES, STAGE DESIGN
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DEDICATRIA
A todas as mulheres inspiradoras da criao de Gianni Ratto. Em especial, na rea do figurino teatral:
Ebe Colciaghi, Luciana Petruccelli, Bell Paes Leme e Kalma Murtinho.
s minhas inspiraes dirias: meu marido Hilton e minha filha Ana Clara.
Aos meus pais, irmos e irms que, apesar de minha ausncia, sempre estimulam
com palavras fraternas e de confiana.
Ao meu orientador Fausto Viana, presena permanente nas incessantes consultas e
grande parceiro na paixo pela pesquisa da indumentria.
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AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas me auxiliaram e ensinaram ao longo deste trabalho.
Pelo amparo emocional, compreenso e estmulo constante, agradeo minha famlia. Pela grande generosidade e disponibilizao do acervo de Gianni, meu agradecimento
especial Vaner Maria Birolli Ratto.
Agradeo o apoio recebido pela Fapesp, que me ofereceu bolsa de estudo durante a pesquisa.
Aos professores que me despertaram, a cada semestre, a cada aula, para o prazer da pesquisa: Fausto Roberto Poo Viana, Clvis Garcia, Cyro Del Nero de Oliveira Pinto,
Maria Ceclia Loschiavo dos Santos, Monica Baptista Sampaio Tavares e Arley Andriolo. Aos professores Elisabeth Azevedo e Mrcio Tadeu pelas prestimosas
consideraes na avaliao do trabalho. Na Itlia, agradeo a Adriana Bortolotti (Conservatore Museo Storico di Bergamo),
Alessandra Vannucci, Alice Contrini e Francine Garino (Museo Teatrale alla Scala), Ana Ogg e Venanzio, Ana Paniale (Archivio Fotografico del Scala di Milano), Franco
Tomatis, Giorgio Colciaghi, Luciano Antonini e Gian Marco Antonini, Maghali Miranda e Ludo Farago, Maria Grazia Gregori, Paula Caracchi, Franco Diespro e Silvia Colombo (Archivio Piccolo Teatro), Rita Citterio e Cristina (Laboratori Ansaldo Scala) e, ainda, ao porteiro do Hotel Sir Edward (Milo), fundamental para o meu encontro com Luciana Petruccelli.
No Brasil, Aby Cohen, Aimar Labaki, Alice Correa, Augusto Boal, Ariovaldo Policastro, Beatriz Luz Dupin, Bertha Heller (EAD), Caio Franco, Carlos Vial, Cleyde Yconis,
Gilberto e Renata (Biblioteca da ECA USP), Dbora Batello, Denise Orthis, Dona Conceio de Alencar, Dr. Ubir Tadeu Leal e Ina (OSPA), Emlio Fontana (Arquivo do
Estado), Frank Hamilton (dos EUA), Gabriele Leib, Gilberto (Hotel Coxixo), Hector Pace, Helena Prates, Joaquim Rodil Ferreira, Liana Magalhes, Luciana Bueno, Marcelo del Cima (Acervo Maria Della Costa), Mrcia Cludia Figueiredo (Centro de
Documentao e Informao da FUNARTE), Marcia Taborda, Mrcio Sgreccia (Museu do Theatro Municipal de So Paulo), Marcondes Mesqueu, Maria Della Costa, Maria
Eugnia (UFBA), Mauricio Paroni de Castro, Niza de Castro Tank, Ricardo Martins, Ruth Staerke, Srgio Britto, Srgio Domingos e Par - Jos Galdino (Central de Inhama-RJ), Stanley Valeriano, Tony Giusti, Valria Berti Contessa, Vnia Cerri e
Victoria Kerbauy.
A estas pessoas, e a outras tantas que me ajudaram ao longo do caminho, meus sinceros agradecimentos pela colaborao na pesquisa e documentao de nossa histria.
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SUMRIO
INTRODUO (Tecendo a teia)............................................................. 01
CAPTULO 1 A FORMAO (O croqui de uma vida)............................. 15 CAPTULO 2 OS FIGURINOS DE GIANNI RATTO (As costuras de um caminho)........................................... 35 Na Itlia...................................................................................... 39
Ebe Colciaghi....................................................................... 53 Luciana Petruccelli................................................................ 65
No Brasil..................................................................................... 69 Kalma Murtinho................................................................... 75
Bell Paes Leme e Marie Louise Nery...................................... 81 Marias, Alices, Conceies..................................................... 93
Notas........................................................................................ 119
CAPTULO 3 ANLISE COMPARATIVA DOS FIGURINOS PARA A PERA ELIXIR DE AMOR (Os diferentes bordados)............................... 121
3.1. Introduo anlise de uma metodologia de criao de um figurino ......................................................................................... 123 3.2. Gaetano Donizetti e Elixir de Amor........................................... 125
3.3. As leituras de Gianni Ratto para a pera Elixir de Amor............... 127 - Teatro Scala.................................................................... 127
- Theatro Municipal de So Paulo.......................................... 137 - Teatro Municipal do Rio de Janeiro...................................... 145
3.4. Anlise da metodologia da criao de Gianni Ratto na comparao das trs montagens da pera Elixir de Amor.............................. 157
CONCLUSO (Arremate).................................................................... 161
ANEXOS .......................................................................................... 173
1. Currculos.............................................................................. 175 2. Histrico dos espetculos analisados no captulo 2...................... 189
3. Litografia indita de Craig, por Gianni Ratto............................... 203
4. Estudo I Pagliacci................................................................... 204 5. Anotaes de direo de Arlequim na turn 1954........................ 211
BIBLIOGRAFIA................................................................................ 213
* CAPA: Foto de Gianni Ratto em sua residncia, por Rosane Muniz, em 26 de julho de 2001.
Foto da cortina do Teatro Scala, de Milo, por Rosane Muniz, em 13 de julho de 2006.
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INTRODUO
(Tecendo a teia)
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O TECER DA TEIA
Corria o ano de 2001, quando decidi entrevistar Gianni Ratto para o livro-
reportagem Vestindo os nus o figurino em cena, resultado do meu trabalho de
concluso do curso de Jornalismo e que eu viria a publicar trs anos depois, pela
Editora Senac Rio. Para uma pesquisadora, um dos maiores prazeres no processo de
trabalho a experincia de confrontar o artista, provoc-lo nos pontos mais
nevrlgicos, descobertos pela pesquisa. Apesar de trabalhar com teatro h algum
tempo, minhas pernas tremiam pela oportunidade de conhec-lo pessoalmente - sem
contar as vezes em que nos cruzamos publicamente em estrias, bastidores ou
manifestaes artsticas, nas quais ele era sempre figura presente e atuante. Mesmo
com o estranhamento de alguns colegas, j que era famoso cengrafo e diretor
teatral, quais no foram a satisfao e a curiosidade investigativa, ao sair, depois de
cinco horas de conversas e devaneios, com a certeza de que realmente ele era um
grande mestre tambm na seara da indumentria teatral, tal como haviam me
afirmado Kalma Murtinho e Bell Paes Leme, duas grandes e importantes profissionais
da rea, com mais de cinqenta anos de profisso no Brasil.
No livro, a entrevista de Gianni Ratto abre o captulo dedicado aos figurinistas,
no qual ele apresentado como O Mestre. Assim que lanado, enviei o livro de
presente e nunca mais nos encontramos, at que, em setembro de 2005, continuando
minhas pesquisas na rea da indumentria, voltei USP como aluna especial e, logo
em seguida, fui convidada pelo Prof. Dr. Fausto Viana (que seria, depois, meu
orientador na pesquisa de mestrado) a assumir a funo de pesquisadora no Traje em
Cena projeto de conservao, catalogao e criao de banco de dados do acervo de
figurinos do Theatro Municipal de So Paulo. Neste trabalho, acabei por me interessar
pela pesquisa sobre as criaes de Gianni Ratto para peras do Theatro. E foi a que
deu-se nosso reencontro.
Ao entrevist-lo pela segunda vez, recebi uma provocao: No gostei do seu
livro! Aps a surpresa inicial, j que a edio estava sendo muito bem aceita, veio a
inquietao. Queria saber o porqu de sua opinio, tima oportunidade para me
deparar com erros e ter a chance de repar-los em uma prxima vez. Mas ele s
respondeu aps a ameaa de que eu no iria embora de sua casa enquanto no me
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esclarecesse. Em outras pocas, penso que este tipo de intimao no teria surtido
efeito. Porm, no precisei insistir mais. No sou mestre em nada!, falou irritado.
Lembrei de um trecho de seu livro, no qual diz que A histria da humanidade no a
de seus homens, mas a das obras que eles deixaram, perenes e indestrutveis. A
Histria das Artes no precisa de nomes, precisa de obras. 1Foi o suficiente para eu
entender o sinal. Minha pesquisa de mestrado seria organizar e analisar suas obras na
indumentria teatral e avaliar a importncia do seu trabalho para o teatro brasileiro
nesta rea. Disse isso e recebi um meio-sorriso como resposta, uma aparente
satisfao que quase me fez pensar que eu havia sido manipulada. Afinal, Gianni
Ratto assumia que nunca elogiava para estimular a contnua busca. Pois conseguiu:
poucos meses depois, eu estava inscrita na ps-graduao. Mas no tardou muito
para que, entre as festas de fim de ano, com a cidade de So Paulo praticamente
vazia, Gianni viajasse discretamente, permitindo a bem poucos uma despedida
formal.
Minha pesquisa foi amadurecendo, e cada vez mais descobri o carinho e apreo
de Gianni por este elemento cnico. Desde quando pedia sua me para costurar os
figurinos para suas maquetes; ao trabalhar com a figurinista Ebe Colciaghi, na Itlia;
na vinda para o Brasil com a sua segunda esposa e figurinista Luciana Petruccelli; pela
anlise de suas criaes e croquis; nas entrevistas com amigos, costureiras,
figurinistas, atrizes e diretores que trabalharam ao seu lado... O aprendizado tem sido
grande ao poder ouvir, ao vivo, vozes do passado relembrando casos que tanto
enriquecem a histria do nosso teatro. Muitas vezes, me sinto sua aluna por tabela. E
ele ainda dizia que no era mestre...
Apesar de a pesquisa andar de vento em popa, pairava a dvida de como
escolher a linguagem da escrita, para contar, avaliar e refletir sobre suas criaes.
Muitas descobertas, mas tambm conseqentes incertezas. Com cinco livros de sua
autoria editados, poderia parecer que o trabalho deste profissional j est
suficientemente documentado. Alm disso, se por um lado a poesia de sua escrita
inspira, por outro inibe quando pensamos nas ricas metforas de um profissional que
realizou tantos cenrios em sua vida que se conseguisse juntar toda a madeira que
neles foi empregada (...) poderia construir uma cidade. 2 Seria possvel juntar
1 RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p.140.
2 RATTO, loc.cit.
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imagens e dados de toda uma produo de figurinos, que talvez no desse para vestir
a cidade de So Paulo, mas com certeza algumas piccolas cidades italianas? Talvez
no, mas como quantidade no qualidade, o importante que croquis, fotografias,
registros em programas ou jornais, pequenas e grandes histrias de muitas de suas
obras foram coletadas para esta pesquisa. Chegamos ao nmero, por enquanto, de
sessenta e sete espetculos com os figurinos assinados por ele, sendo que treze
quando ainda na Itlia.
O jornalista Srgio Augusto, quando convidado para escrever uma biografia de
Vincius de Morais, acabou desistindo por problemas de prazos, porm depois, ao ler a
realizada por outro colega, comenta que duvidaria ter feito melhor, mas que com
certeza teria escrito com mais de mulher, de cinema e de Tati de Moraes, primeira
esposa do poeta. Trao um paralelo do comentrio com este trabalho, que talvez no
seja melhor que ler os escritos biogrficos feitos pelo prprio punho de Gianni, mas
com certeza ter muito mais de mulher, de figurino e de Luciana Petruccelli, segunda
esposa do por que no dizer artista (para resumir o diretor, cengrafo,
figurinista, iluminador, autor, professor e pensador que foi). Gianni deixou bem claro
que a moralidade do indivduo nada tem a ver com seus valores criativos assim como
a moralidade de uma personagem nada tem a ver com a do ator que a interpreta. 3
No que seja para uma avaliao moral do seu comportamento, mas ao analisar as
indumentrias criadas por ou para seu trabalho, no h como deixar de lado sua
volpia categrica para o ser feminino.
Este torna-se, ento, um estudo de sua vida e obra com recorte no figurino,
que tratado por ele em suas obras de forma espordica e irregular, sem estar
metodologicamente organizado. Seus enfoques principais sempre foram a cenografia
e a direo de ator. No entanto, busco o primeiro contato que tivemos, no qual ele
confirma a importncia dos trajes: O figurino a pele do ator, que passa a ser
necessria a partir do momento no qual se revela indispensvel. uma questo de
lgica e no se pode fugir dela. 4 Na teoria, mesmo frente breve bibliografia
existente no pas sobre a indumentria teatral e sua importncia para a encenao e
encenadores, percebemos o lado prtico com o qual Gianni Ratto fala sobre o assunto.
Mas o que se destaca mesmo na sua trajetria o modo como observou, aprendeu,
3 RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 39.
4 RATTO, Gianni in MUNIZ, Rosane. Vestindo os nus: o figurino em cena. Rio de Janeiro: Ed. Senac, 2004. p. 72.
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pensou, ensinou, arquitetou, dirigiu o trabalho deste elemento cnico to fundamental
para o teatro e qui, para o seu modo de ver a vida. Curiosamente, Gianni dizia que
esquecia os rostos dos amigos mortos, mas ao conversar com eles em suas horas de
insnia, lembrava de uma roupa que vestiam, ou um tom de voz ou uma risada. 5
Sua ateno estava nos detalhes. Exatamente onde a minha tambm deveria estar.
A pesquisa andava bem, investigaes, descobertas, mas a dvida pairava em
como eu iria tratar seu envolvimento com a indumentria, como conduziria a escrita.
Fao uso de um lugar calmo para escrever, ideal para meus momentos de leituras,
reflexes e inspiraes para a escrita. Junto com meus pequenos, mas pesados,
pertences: livros, papis, croquis, fotos... Em momentos de divagao, quando
olhamos para o nada no intuito de refletir, percebi que no estava sozinha neste
aparente sossego. Foi quando elas comearam a chegar. No incio no fiquei muito
satisfeita, pois pensei que estas constantes visitas me atrapalhariam no trabalho. Mas
o despertar e perceber diverso da presena destas amigas aranhas em meu escritrio
se tornou o foco. O que elas estariam querendo me dizer? Primeiro descobri algumas
pequenas, de pernas finas e compridas, elegantes. Em seguida apareceram as
menores, porm com o corpo mais gordinho e patas curtas. Algumas escalam as
paredes bem lentamente, outras gostam de se esconder atrs de mveis e objetos,
mas so bem geis na fuga, quando descobertas.
Neste momento de investigao aracndea, cai em minhas mos o texto O Tao
da Teia, de Ana Maria Machado. Era isso! Minhas ilustres visitantes me despertavam
para a tecelagem do pensamento, caminhando fio por fio, me conduzindo ao longo de
espirais, labirintos e caminhos, mostrando-me que, para considerarmos um trabalho
pronto, necessrio e fundamental: termos a pacincia e a perseverana da aranha
ao tecer sua teia. Eu acabara de encontrar o fio da meada.
Mas a observao comeou ainda antes. Sempre com Gianni Ratto e a pesquisa
amadurecendo na mente, fui cursando as disciplinas da ps-graduao. Em um fim de
tarde, aps uma aula de Design e Cenografia, me despeo para ir ao lanamento do
livro Fio a Fio, de Gilda Chataignier. Por coincidncia, meu orientador tambm estava
indo ao evento e compramos juntos, cada um, a sua edio. Achei que era um sinal.
Alguns meses depois, no processo terico de contextualizar a criao de figurinos 5 RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 294.
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feitos a partir de objetos reutilizveis para o espetculo de Teatro N Kantan, de Yukio
Mishima, retomo o livro com mais cuidado para que minha colega Beatriz Luz o utilize
em seu captulo onde versa sobre a percepo e reutilizao de materiais orgnicos e
inorgnicos. O debate sobre o assunto nos aproximou.
No semestre seguinte seramos ambas convidadas para auxiliar e aprender na
monitoria da disciplina de Indumentria e Cenografia no Bacharelado em Artes
Cnicas da USP, convidadas e amparadas pelo meu orientador, no Programa de
Aperfeioamento de Ensino (PAE), para o qual fui aprovada a participar. A primeira
reunio, para estruturar o semestre, foi na abertura da exposio Bordados da
Caatinga, no Sesc Pinheiros, onde assistimos ao show Vozes do Trabalho e paramos
para ouvir o projeto para o curso e avaliarmos qual poderia ser nossa contribuio. Foi
a que pulavam as idias: Giotto, Bosch, anjos, demnios, assemelhados, fio, tecer,
materiais, Ariadne, Ana Maria Machado, irmos Grimm... ops! Novamente O Tao da
Teia. Por coincidncia, eu havia comprado um dia antes a verso oficial de
Rumpelstiltskin, de 1857, para a minha filha. Naquele texto, Ana Maria Machado
comenta sobre a descoberta da origem do conto dos irmos Grimm, que tem sua
primeira verso em 1808, de uma verso oral de Mademoiselle LHeritier, de 1798,
que se chamava Ricdin-Ricdon. E ela percebe algumas mudanas significativas, sociais
e econmicas, em relao perspectiva feminina, que aconteceram nesse meio
sculo, com o texto e com os txteis, com as mulheres tecels.
Ok. Mas o que aranha e percepo tm em comum com Gianni Ratto? O alerta
de uma viso para um modo de anlise comparativa, histrica, estrutural. Gianni j
vinha da Europa com um sentido do que era histria, de como pensar a arquitetura
teatral e, principalmente, a roupa, que significa pensar sobre a memria, mas
tambm sobre poder e posse. 6
Tecer a teia da sua vida por meio das fases de criao de uma indumentria.
Este o guia para a diviso desta pesquisa. Trazer um pouco da histria por meio da
sua vivncia, da sua formao. Entender a relao da sua viso de arte com a
importncia da observao do ser feminino e suas vestes. Como a sensibilidade para a
percepo no modo de vestir pode revelar a alma das personagens em suas peas...
6 STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx In MACHADO, Ana Maria O Tao da Teia: sobre textos e txteis. In
Estudos Avanados 17 (49), 2003, p. 182.
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Toda esta experincia narrada no primeiro captulo da dissertao, quando vrios
momentos da formao e vida de Gianni so repassados, tendo como ponto de partida
a anlise da relevncia da indumentria nas suas vivncias, desde a Itlia at o Brasil.
O Captulo 1 A Formao, tem por subttulo O croqui de uma vida.
No captulo 2 Os figurinos de Gianni Ratto, com subttulo As costuras de
um caminho, uma parte dos figurinos realizados por Gianni Ratto, na Itlia e no
Brasil, analisada e registrada com croquis e / ou fotos. A influncia de Ebe Colciaghi
tambm percebida em imagens. Alm da importncia de Luciana Petruccelli, na
responsabilidade dos seus figurinos nos primeiros anos no Brasil, e de outras
mulheres que com ele trocaram experincias no campo da criao de costumes
teatrais. A est a relevncia deste trabalho. Vrios momentos da crnica de uma
vida, ao se unirem, trazem a vivncia de um profissional que dedicou tanto tempo s
nossas artes cnicas.
Por meio da catalogao, organizao e digitalizao das imagens de seus
trabalhos h uma hiptese natural de que parte da histria do teatro realizado por
Gianni Ratto seja recuperada com este trabalho. Mas por que uma parte? Porque
mesmo para quem vive o momento, o que permanece registrado na memria so
somente flashes, como comenta Gianni (1996, p. 79):
A busca no passado feita atravs das imagens que foram registradas, pois a memria impalpvel, no se solidifica no pensamento... Quem
inteligente? A histria. Ela a sedimentao diria da transformao da crnica em algo que no pode ser mexido. A crnica algo que
passa, se sedimenta. E ela se transforma em histria quando vrias crnicas se juntam para criarem algo slido. O tempo uma varredura mgica que recolhe tudo e joga no grande poo do lixo. E morre gente
todo dia. Mas o que morre a crnica, a histria fica. 7
Para que o trabalho seja no s relevante, mas tambm original apesar de
uma pesquisa sobre figurino teatral no Brasil j ser, por si s, original, devido s
parcas publicaes na rea o Captulo 3 Anlise comparativa dos figurinos
para a pera Elixir de Amor, que possui o subttulo A escolha de bordados traz
um estudo comparativo de trs montagens do mesmo espetculo (Elixir de Amor) em
diferentes fases de sua carreira: como cengrafo para a direo de Giorgio Strehler,
7 RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 79.
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no Teatro Scala, de Milo (1951), trabalhando ao lado da figurinista italiana Ebe
Colciaghi. Quando dirigiu, criou cenrios e figurinos para a o Theatro Municipal de So
Paulo (1971). E, finalmente, quando concebeu os cenrios e figurinos para a direo
de Antonio Pedro, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1983).
Vrias poderiam ter sido as opes para anlise. Mas ao escolher trs
montagens do mesmo espetculo, um estudo comparativo das diferentes
interpretaes, ou realizaes, para o mesmo texto, pode denunciar mtodos
semelhantes na criao e execuo do trabalho. Ou no. Est a o interessante.
Os figurinos da pera Elixir de Amor se apresentaram para mim em agosto de
2005, quando me juntei ao Traje em Cena. L, na Central de Produo Francisco
Giacchieri:
Foram escolhidos para o incio do trabalho de catalogao 28 espetculos, dentre os 80 supostamente existentes no acervo. O critrio utilizado foi o de antiguidade a partir do mais antigo, de 1948 e de relevncia dos figurinistas presentes no acervo Gianni Ratto, Aldo Calvo e Dener, por exemplo. Esses espetculos foram
entendidos pela coordenao do projeto como sendo de valor histrico e que deveriam compor futuramente o Arquivo Permanente do acervo.8
Quando da reunio com as pesquisadoras para definir as pautas, me ofereci
para cuidar dos trabalhos de Gianni, pois eu j tinha acesso ao seu acervo pessoal - e
ao prprio - devido pesquisa para o livro Vestindo os nus, no qual Gianni um dos
entrevistados. No Traje em Cena, o primeiro passo, depois da organizao estrutural
do local de trabalho e da separao dos figurinos por peras e higienizao, foi iniciar
a criao do Banco de Dados.
O Banco de Dados foi dividido em trs grandes reas: Catalogao,
Dossi e Conservao. A Catalogao est subdividida em Traje, Imagens, Trnsito e Dados da Catalogao. O Dossi de Pesquisa subdivide-se em Histrico Original, Histrico no Theatro Municipal e
Figurinista. A Conservao no tem subdivises.9
Em paralelo Catalogao foi elaborado o Dossi de Pesquisa. Cada
pesquisador deveria alimentar o Banco de Dados com os histricos e dados do
8 AZEVEDO, Elisabeth; VIANA, Fausto. Breve Manual de Conservao de Trajes Teatrais, 2006, p. 52.
9 AZEVEDO, loc.cit.
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figurinista correspondente. Iniciei minha pesquisa pela busca dos trajes criados por
Gianni existentes no acervo. Foi quando conheci os coloridos trajes de Adina e
Giannetta, Dulcamara e Nemorino, entre tantos outros. Das criaes de Gianni para o
Municipal, a pera Elixir de Amor se destacava pelo seu colorido e alegria. Inclusive,
quando organizamos a exposio Gianni Ratto no Municipal, um lugar de destaque foi
dado para estes figurinos, onde ao lado de cada um foi colocado o croqui
correspondente, encontrados no acervo do Theatro e restaurados para a exposio.
Depois de captados todos os dados possveis, agendei uma entrevista com
Gianni Ratto. Era uma calma tarde do dia 05 de outubro de 2005 e sua casa, no bairro
do Pacaembu, estava comeando a entrar em obras. Mesmo com o estado de sua
doena bastante avanado, conseguimos sentar para um caf na sala de jantar. A
conversa durou quase uma hora, porm o pensamento de Gianni, apesar de lembrar
de histrias muito curiosas, divagava. Com o problema de audio, outra dificuldade
foi o apito quase ininterrupto do aparelho auditivo que o distraa. Mas, como sempre,
Gianni mantinha seu humor e sarcasmo.
Antes de entrarmos na entrevista propriamente dita, ele reclamava do baixo
nvel cultural dos enfermeiros de hoje em dia, irritado por seu ajudante no ter
entendido uma piada que contou durante o banho, j que no fazia idia do que seria
um obelisco. Curiosidades parte, mesmo assim conseguimos lembrar algumas
histrias muito interessantes de sua passagem pelo Theatro Municipal.
Sua lembrana desta montagem de Elixir como um espetculo alegre e
generoso. Gianni fez questo de recordar, tambm, a montagem para o Municipal do
Rio de Janeiro, que foi um escndalo, (...) porque o diretor e o regente que
trabalharam comigo l, cantores, atores... a gente queria fazer um espetculo que
fosse autenticamente, no diria pornogrfico, mas quase, porque o Elixir de Amor .
Alm de o encontro ter motivado a escolha pelo tema desta pesquisa de dissertao,
estas observaes serviram de estmulo para um mergulho nas diferenciaes destas
montagens e, consequentemente, para este captulo final.
A poucas semanas de terminar este trabalho de pesquisa sobre Gianni,
procurando na internet mais informaes sobre o bal de Aurlio M. Miloss, Marsia,
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11
qual a surpresa quando encontro um novo dado: um livro virtual 10, recm colocado
na rede, sobre o bartono Tito Gobbi, com seu currculo completo, inclusive com a
ficha tcnica de cada espetculo. Maior ainda foi a surpresa ao encontrar uma
montagem da pera LElisir DAmore, para a qual Gianni Ratto foi o responsvel pelos
cenrios e figurinos, em 1950! Antes mesmo da montagem que ser analisada no
captulo 3, de 1951, com figurinos de Ebe Colciaghi e cenrios de Gianni Ratto, no
Teatro Scala, com direo de Giorgio Strehler. Reproduzo abaixo as informaes:
LElisir DAmore
Estria: 13 de setembro de 1950 LONDRES, ROYAL OPERA
HOUSE, COVENT GARDEN (produo do Teatro Scala)
Maestro e Diretor: Franco Capuana
Maestro do Coro: Vittore Veneziani
Direo: Mario Frigerio
Cenrios e Figurinos: Gianni Ratto
Diretor Cenogrfico: Nicolas Benois
Adina Margherita Carosio
Nemorino Ferruccio Tagliavini
Belcore Tito Gobbi
Doutor Dulcamara talo Tajo
Giannetta Silvana Zanolli
Rcitas: 15, 18 e 20 de setembro de 1950.
Esta foi uma produo do Teatro Scala, apresentada em Londres, segundo
Frank Hamilton que, consultado por e-mail sobre a veracidade da informao, enviou
duas fontes nas quais constam os crditos de Gianni Ratto como o responsvel pelos
cenrios e figurinos:
LA SCALA. Tito Gobbi alla Scala: nel XX anniversario della scomparsa. Milano: La
Scala, 2004, p.72. TINTORI, Giampiero. Duecento anni di Teatro alla Scala: Cronologia opere-balletti-
concerti 1778-1977. 1979, p.105.
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HAMILTON, Frank. Tito Gobbi: a partial performance chronology. Compiled by Frank Hamilton, 2008.
http://frankhamilton.org.
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Como no possumos imagens desta nova montagem descoberta, realizaremos
neste captulo 3 uma anlise comparativa das trs criaes, montadas em diferentes
momentos da carreira de Gianni Ratto. Este captulo procurar teorizar seu
movimento criador, desmembrando e aproximando-se das camadas construtivas de
cada obra e do possvel amadurecimento artstico que se manifesta por elas.
Na Concluso, de subttulo O Arremate, procuramos ver qual o problema de
Gianni Ratto com a palavra mestre. A etimologia vem do latim magister, aquele que
manda, dirige, ordena, mas tambm o que guia, conduz, ensina. Jesus aconselhava os
discpulos a no chamarem a ningum de Mestre, porque o verdadeiro Mestre um
s, Deus. Mas se assumiu como tal, pois dizia ter conscincia de ser o enviado. Vs
chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou (Jo.13,13). Ser discpulo de
Cristo significa, no apenas escutar os Seus ensinamentos, mas imitar a sua coerncia
de vida. O mestre introduz o discpulo numa sabedoria, numa viso da vida. O
conceito no muito comum no Antigo Testamento e aparece somente no judasmo
tardio. Isto deve-se ao lugar central da Palavra de Deus como fonte da sabedoria. 11
A partir do sculo XIII, o mestre o comandante, o maestro. J depois do
sculo XV, o ttulo se torna acadmico. De qualquer forma, sempre representa aquela
pessoa que dotada de saber, competncia e talento em alguma cincia ou arte. No
parece ser a este mestre que Gianni se opunha, mas ao que, na histria da arte,
considerado como aquele que forma discpulos para trabalhar, muitas vezes, na
mesma obra, seguindo os conceitos e ensinamentos do professor. Ou mesmo aquele
anterior da histria da religio, j que Gianni, tendo estudado dos 9 aos 12 anos em
colgio interno, conhecia bem as escrituras. A viso da culpa e do pecado impostos
pelo catolicismo o assustava, tais como os temas trabalhados na Quaresma: o horror
do pecado, os terrveis castigos, as cruis punies, o inculcar (a tentativa de
inculcar) em ns a idia da autopunio, da confisso assustada, do jejum como
disciplina, do silcio, da vontade de expiar a morte do Cristo como se fssemos
culpados da lana e do vinagre, da Via Crucis e do Calvrio. 12 Mesmo assim, Gianni
Ratto sabia usar dos artifcios do Mestre, como o prprio assume quando disse que O
trabalho com os atores, assim como com os alunos de qualquer disciplina,
11
JOS, Cardeal-Patriarca. Seguir a Cristo como discpulo, 28/03/04. In http://www.patriarcado-
lisboa.pt/vidacatolica/vcnum16/3_05_05%20Catequese%20Quaresmal%2004.doc, em 08/05/08, s 01:41. 12
RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 93.
-
13
fundamenta-se (...) num inevitvel ato de seduo centrado no eixo da atividade a
ser realizada. (No esqueamos que Cristo foi um sedutor). 13
Provavelmente Gianni se opunha tambm aquele mestre da marinha,
geralmente o mais antigo do navio, que por orientar os marinheiros, tratado de
senhor. Mas apesar de esta definio parecer contrria sua filosofia, Cleyde
Yconis revelou que se incomodava muito por v-lo, quando foi para o TBC, ser
chamado de Sr. Gianni pelo elenco que veio com ele da Companhia Maria Della
Costa. Segundo ela, nenhum outro diretor estrangeiro havia sido chamado com esta
deferncia. Mas Maria Della Costa, que no foi para o TBC, estranhou o fato, pois
disse que na sua Companhia lembra de os atores sempre o tratarem por Gianni, mas
sempre com muito respeito.
Chego concluso de que talvez eu tenha mesmo cometido um erro. No em
cham-lo de mestre no livro, mas sim no artigo que utilizei antes da palavra. Deveria
ter escolhido o indefinido em lugar do definido, um ao invs de o. Ele no O
Mestre. Acontece que no livro Vestindo os nus o desejo era traar a importncia do
figurino teatral e um perfil dos figurinistas em atuao naquele momento:
Este livro o resultado de mais de trinta entrevistas que registram uma breve histria do figurino no Brasil, como e por quem ele criado
contemporaneamente e qual a sua importncia cnica. Minha inteno no foi fazer nenhum julgamento de valor e o mais difcil foi escolher, dentre tantos profissionais criativos e competentes, os que teriam um
espao para retratar, atravs do relato de suas experincias, um pouco de seus modus operandi. 14
Naquele momento Gianni era O Mestre. Hoje poderamos dizer que Gianni foi
Um Mestre, entre outros que houve. O diretor do Teatro Augusto Boal, no Museu
Nacional de Braslia, em 13 de maro de 2008, salienta a idia de fomentar a
pedagogia ao invs da educao: educar quer dizer mostrar o que j se sabe, vem do
Latim educare = mostrar o caminho; j a pedagogia colocar o jovem ou outra
pessoa em condies de seguir seu prprio caminho. 15 Talvez Gianni teria preferido
ser retratado como Um Pedagogo, afinal preocupar-se com o outro ocupava grande
parte do seu trabalho.
13
RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 200. 14
MUNIZ, Rosane. Vestindo os nus: o figurino em cena. Rio de Janeiro: Ed. Senac, 2004. p. 17. 15
http://www.cultura.gov.br/site/?p=10924, em 01 abr. 2008, s 15h.
-
14
A preocupao do xito nunca ocupou minha mente, muito mais dirigida e orientada para conquistas qualitativas dentro do prprio
espetculo (...) Sempre achei que a preocupao primeira de meu trabalho deveria ser a de dar o melhor do meu melhor a meus colaboradores. O que
invariavelmente me apaixonou, e continua me apaixonando, foi a conscincia de ter condies de agir no subconsciente do ator (e
dizendo ator quero dizer cengrafo, figurinistas ou compositor, pois tambm agem no espetculo, interpretam como o prprio intrprete) fato este mais gratificante que o prprio xito do espetculo. Diria at,
embora parea um disparate, que o mais importante do meu trabalho de direo consiste em alcanar o melhor resultado interpretativo. Isso
muitas vezes foi conseguido; outras no.16
o que veremos ao tecer as muitas meadas de fios que laaram a vida de
Gianni Ratto.
16
RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 199.
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15
CAPTULO 1
A FORMAO
(O croqui de uma vida)
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16
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17
A janela, enquanto abertura para o ar
e para a luz, simboliza receptividade.
Se redonda, a receptividade da
mesma natureza que a do olho e da
conscincia. Se quadrada, recebe o
que enviado do cu. 17
Uma janela retangular pode ampliar tanto a visibilidade do horizonte ao ponto
de liberar a inspirao e criatividade. E se pensarmos o cinema como uma janela
aberta para uma seqncia de idias, presumimos a imaginao de uma criana,
ainda um tanto livre de preconceitos ou moralidades, ao se defrontar com uma tela
repleta de imagens. Um novo mundo que estimula, mas que tambm revela as
aptides do pequeno Giovanni Ratto desde a mais tenra idade.
Um dia tomei uma deciso; a esta altura eu devia j estar com quase cinco anos. Depois de uma sesso de cinema, procurei as revistas de
moda que minha me costumava comprar e recortei uma srie de figurinos que fui colar na parede do pequeno quarto sem janelas; do banheiro retirei uma toalha branca com a qual os cobri
cuidadosamente; as quatro cadeiras da cozinha me permitiram criar uma platia. Contemplei satisfeito meu trabalho, certo do resultado
final. Chamei mame, a conduzi para o melhor lugar, apaguei a luz... e nada aconteceu. Voltei a acender a luz, repeti o ritual de conduzir
minha me para a melhor cadeira, apaguei novamente a luz e, mais uma vez, nada aconteceu. A eu tive uma crise de desespero. Foi somente muitos anos mais tarde que descobri qual tinha sido o
problema; curiosamente a descoberta me serviu para solucionar a exigncia tcnica de um cenrio deveras complexo. 18
No seriam poucos os cenrios de Gianni Ratto que exigiriam uma tcnica
complexa. Esta descoberta pode tranquilamente ser exemplificada com a magia
criada pelo cengrafo no seu primeiro cenrio realizado no Brasil, em O Canto da
Cotovia, quando surgiam em cena, inesperadamente, os vitrais de uma catedral. Um
efeito que Gianni havia realizado na Itlia para solucionar a mudana de cenas de Le
Notti DellIra.
Entre as obras que apareceram imediatamente no ps-guerra e inspirada nos eventos comuns a toda uma Europa sob ocupao
tedesca, Le notti dellira (junho 1947) aparece como um testemunho vivo de um pensamento poltico e moral e, da parte teatral de Grassi e Strehler, uma contribuio atualizao da histria e ao modo de
interpret-la. A ao se passa sobre dois planos diferentes: aquele mais realstico (...) e aquele mais declaradamente teatral. Uma sala
17
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos. RJ: Jos Olympio, 1988, p.512. 18
RATTO, Gianni. A Mochila do Mascate. SP: Hucitec, 1996, p.36-37.
-
18
de visitas da casa de Bernard Bazire transforma-se, graas a um efeito de luz e ao uso de transparncia, em uma ponte ferroviria que
os soldados devem explodir. Passar de um cmodo de visitas de um farmacutico de uma provncia francesa para uma estrada de ferro constitui-se, naturalmente, tambm um problema tcnico nada fcil.
Finalmente encontra-se a soluo: a tapearia verde e amarela do aposento da casa se transforma, pouco a pouco, graas ao efeito de
luz, deixando aparecer a estrutura metlica da ponte. (...) Os mveis e objetos do interior burgus assumem assim, na nova perspectiva, o aspecto de ferro-velho, de destroos de uma periferia abandonada. 19
A atriz Maria Della Costa, que interpretava o papel principal em O Canto da
Cotovia, comenta:
Ele fez um cenrio de uma discrio... De uma beleza... Quando viajo Europa e vejo aqueles vitrais das catedrais, me lembro muito do
Gianni. Porque tem cengrafos que no se importam com o texto e querem apenas que o seu trabalho aparea. Mas O Canto da Cotovia entrava no cenrio. Tudo de forma simples: papis coloridos que ele
recortou e colou por trs. Quando iluminava, ficava um autntico vitral! A genialidade do Gianni Ratto est a.
Ele viveu para o teatro, apesar das mulheres, que acho que tambm foi importante para ele... Alis, tambm acho que devo elogiar isso:
ele teve bom gosto! Era homem. Um homem que gostava das mulheres, da feminilidade. Ele aprendia com as mulheres e com a sensibilidade. 20
19
STREHLER. Il Lavoro Teatrale: 40 Anni di Piccolo Teatro 1947-1955. Piccolo Teatro di Milano / Teatro dEuropa: Vallardi & Associati Editori, 1987, p.11. (traduo: Rosane Muniz) 20
Maria Della Costa, em depoimento autora, em abril de 2008.
Figura 1 Dois cenrios de Gianni Ratto transformados com o efeito da iluminao. esquerda, em Le Notti DellIra, em 1947, na Itlia, com o Piccolo Teatro. direita, em O Canto da Cotovia, em 1954, no Brasil, com a companhia de Maria Della Costa.
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19
Uma mulher: sua me. A primeira platia para um frustrado espetculo, que
viria a inspir-lo tantas vezes ao longo da vida. Assim como o foi esta primeira forte
figura feminina na vida de Gianni, fundamental na sua vida artstica, principalmente
no que se refere sensibilidade para sua criao como figurinista, como podemos
perceber no exemplo lembrado pelo amigo de tantos anos, Luciano Antonini:
Quando Gianni trabalhou em Lamore delle tre melarance (dezembro de 1947), ns fomos ao Scala ver. Gianni era brilhante. Sua me era
uma tima pianista e fazia todos os figurininhos da cenografia. Era ela quem fazia as maquetes. E o padrasto de Gianni era Crescuolo, um pianista de fama. J desde pequeno, Gianni era um menino prodgio.
Quando amos sua casa, podamos discorrer sobre qualquer argumento. Era um contnuo falar, brincar, conversar.21
Segundo Gianni Ratto, sua me, Maria, era uma mulher inteligente, sensvel e
forte. Nascida em Gnova, viria a dar a luz a Gianni no dia 27 de agosto de 1916, em
Milo, ainda muito nova. A infncia de Gianni foi basicamente ao lado desta figura
feminina, j que seu pai no entrou mais em casa quando ele ainda tinha quatro anos.
Seu perfume, seu frescor, quando de manh levantava iluminada em contraluz pelo
sol que entrava pelas janelas desprovidas de cortinas, me comunicavam uma emoo,
uma alegria... 22 com a qual o pequeno conviveu at os oito anos, quando foi
internado em um colgio, em Nervi, a doze quilmetros de onde sua me morava.
Durante o exlio, despertou a admirao por uma outra mulher: a poetisa,
Rossana Zezzos (Ror), amiga de sua me, que o presenteava com livros como
Dickens, Conrad, Verne, Andersen, Grimm... que viriam a dar-lhe as bases do amplo
mundo intelectual que conquistaria ao longo de sua vida. Ror tinha personalidade e
foi presa por se vestir como homem, o que adorava fazer.
Foi nesta mesma poca que Gianni conheceu Leandro Criscuolo, pianista
famoso, que se relacionou por muitos anos com sua me, at se casarem quando
Gianni j tinha 22 anos e prestava o servio militar obrigatrio. Ao transferir-se para o
colgio de Cherasco com dez anos, outra escola de padres, ao mesmo tempo em que
comeava a ter mais noo de si, aumentava seu senso de ironia e do grotesco.
21
Luciano Antonini, em depoimento autora, em julho de 2006. 22
RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 50.
-
20
Mas foi aos treze anos que comeou a se sentir livre: retornou para Gnova e
foi estudar Artes Plsticas no Liceu Artstico. Tinha aulas de arte e desenho e, nos
intervalos das aulas, fugia com os amigos para o alto de um morro, onde tinham uma
boa vista da cidade, para fumar e curtir o silncio da oportunidade que era poder
observar. Ato que Gianni colocou sempre em prtica, com afinco, desde quando
acompanhava sua me aos concertos da orquestra que se apresentava ma
Universidade Popular.
Desde os primeiros compassos eu esquecia onde estava e com quem estava. A msica me envolvia sensorialmente; (...) J na cama, eu custava a adormecer, repassando mentalmente uma das linhas
meldicas que minha mente tinha gravado, at o momento em que os acordes tocados pela orquestra me apareciam reais invadindo-me
com toda sua sonoridade: e a eu adormecia. Nunca mais no decorrer de minha vida consegui realizar o milagre daquele momento que me conduzia de uma viglia ansiosa para a inconscincia do sono juvenil. 23
Sua adolescncia foi um perodo muito rico culturalmente. Europeu, acostumou-
se a encontrar histria a cada curva que fazia. E aproveitava as oportunidades. Uma
delas foi quando, aos 15 anos, soube por um amigo dos encontros semanais que
aconteciam todas as noites de quarta-feira no apartamento de um filsofo, catedrtico
e autor respeitado de livros de Esttica, Prof. Bartono. Participavam jovens e
adultos, com idades que variavam dos quinze aos quarenta anos, todos interessados
em cultura e arte. Gianni participava de todos os debates, sobre variados assuntos.
Foi acerca desta poca que conheceu os amigos Nino, Luciano e Mario, com os quais
manteria contatos sempre, mesmo que por cartas ou telefonemas, quando j no
Brasil.
Aos 17 ou 18 anos encontrei trs amigos. Nos conhecemos no Liceu Artstico de Gnova. Eu fiz um exame e entrei no quarto ano direto e Nino Bonamici, Mario Isolati e o Gianni quando souberam que eu tinha
entrado direto, pularam muito. Os exames do liceu artstico de Genova eram feitos em Roma.
Naquela poca fazia-se o editorial, competies entre estudantes, e Gianni ganhava sempre. Eu ganhava em arquitetura; Bonamici e Isolati, em pintura. Ns quatro sempre nos lembrvamos disso. Foi
uma coisa extraordinria. 24
23
RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 82-83. 24
Luciano Antonini, em depoimento autora, em julho de 2006.
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21
Gianni Ratto tambm colaborou como desenhista para o arquiteto Mario Lab e
para o irmo de sua esposa, Enrica, que era excelente pintor. At ir para Roma
estudar na primeira escola de cinema do mundo, fundada em 1935, Centro
Sperimentale di Cinematografia. Mas logo viria a guerra e Gianni teria que se alistar.
Prestou o Servio Militar de 1938 a 1945, um perodo de ricas experincias, de
soldado raso a oficial, que o fez descobrir que nada valia ter freqentado escolas de
arte e cinema, ter me apaixonado pelo teatro, namorado, ter trabalhado com pessoas
de alto nvel e freqentado meios onde a educao era, antes de tudo, uma postura
cultural se no conseguisse se libertar da arrogncia de querer chegar verdade sem
saber ao certo quem ela era. Seu senso de observao tornou-se ainda mais aguado.
Foi nessa poca que conseguiu o lugar de escrivo no palacete do Comando
do Regimento, o que lhe deu o direito de ter um carto de acesso ao quartel at meia
noite. Desta forma, Gianni aproveitou para escrever e desenhar durante a noite.
Fascinado pela potncia da cor no cinema, adaptou a Sonata a Kreutzer, de Tolstoi,
em um roteiro onde fez as previses das possibilidades tcnicas e artsticas que a
nova descoberta oferecia.
A guerra lhe deu a chance de ter contato com a brutalidade e a misria. Depois
de ver operrios judeus implorando por alimento e os oficiais da SS reprimindo-os por
jogarem comida para fora do trem, Gianni acabou desertando com mais trs colegas,
saindo da Grcia em direo Itlia, em um roteiro que duraria dois anos. Com o fim
da guerra, ficou em Gnova alguns meses trabalhando como desenhista com o
arquiteto Mario Lab e mantendo contato com os amigos que atuavam em teatro. At
ir para Milo, quando j em 1946 estaria retornando s suas atividades artsticas,
desta vez, profissionais. Fez parte da comisso julgadora do concurso internacional
para a reconstruo do Teatro Carlo Felice, em Gnova (figura 2), para recuper-lo do
amontoado de escombros nos quais se transformou aps a guerra.
Figura 2 Teatro Carlo Felice, em Gnova.
(Foto da autora)
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22
Gianni Ratto era um italiano exigente que acreditava na existncia do teatro
somente se houvesse paixo, poesia, amor e tentativas e medo de morrer para
sobreviver. Esta era a potica deste profissional dos palcos, que em oito anos de
trabalho na Europa, realiza mais de 120 espetculos (entre teatro dramtico, lrico,
musical, de dana, de revista etc.). No s atuou constantemente ao lado de Giorgio
Strehler, mas tambm colaborou com Stravinski, Mitropoulos, Mario Landi, Orazio
Costa e tantos outros. Trabalhou para a Companhia Benassi-Torrieri, fundou o Piccolo
Teatro de Milo, ao lado de Giorgio Strehler e Paolo Grassi onde trabalhou como
diretor tcnico e cengrafo oficial de 1946 a 1953, e tambm foi vice-diretor tcnico
do Teatro Scala, para o qual criou diversos cenrios e figurinos, destacando-se a
pera La Traviata (que veremos no captulo 2, com mais detalhes sobre sua relao
de trabalho no Piccolo e no Scala). Foi neste perodo que se iniciou sua parceria com
Ebe Colciaghi. Ele nos cenrios e ela nos figurinos. Vamos analisar a influncia desta
figurinista em seus trabalhos posteriores.
Nunca recusei um convite de trabalho: eu precisava aprender minha profisso e tudo que oferecesse uma compensao gratificante era
bem-vindo. Revistas, shows musicais, pera, espetculos dramticos, aceitava todos, feliz por ter sido procurado, para poder aprofundar meus conhecimentos e... sobreviver. Passava dias e noites nos teatros
onde se montasse um espetculo e nos atelis onde eram realizadas as cenografias pictricas e as construes cenogrficas. Nenhuma escola
poderia me ter dado noes to ricas e exatas como as que conseguia
Figura 3 Gianni Ratto cumprimentando o
elenco de Giuditta, no Teatro Scala, 1951.
(Arquivo Scala)
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23
com artistas-tcnicos e artesos; e eu amava o contato singelo com homens simples que gostavam do que faziam, orgulhosos de sua
competncia. 25
Muitas histrias sobre suas experincias de trabalho na Itlia, na rea da
cenografia, poderiam ser retratadas aqui, porm, melhor l-las no livro de punho do
prprio Gianni Ratto.26 Para esta pesquisa, nos interessa entender seu contexto
histrico na criao da indumentria teatral que realizou em ambos os pases.
Precisamos entender este incio de vida teatral profissional, desde o Piccolo Teatro,
como conta o diretor Giorgio Strehler:
O Piccolo nasceu, do ponto de vista da cena, sob o gesto de um cengrafo e de uma jovem figurinista: Gianni Ratto e Ebe Colciaghi. So eles que durante os primeiros anos, quase um decnio, levaram
adiante o discurso visual do Piccolo. Ratto, naquele momento cengrafo recm-nascido, construiu os primeiros espaos para os nossos espetculos. O primeiro croqui, apenas esboado, com
esforo, com pesquisas de centmetros, para poderem mover-se (o Piccolo tinha um palco ainda menor que o atual!) com o Lalbergo dei poveri. E era sua a primeira inaugurao do Arlecchino servitore di due padroni; seu o dispositivo cnico para Le notte dellIra; seu o Ricardo II, espetculo chave da nossa juventude. 27
Strehler foi um diretor de teatro italiano e ator; figura proeminente no teatro
europeu ps-2 Guerra como co-fundador e diretor artstico (1947-68, 1972-97) do
Piccolo Teatro de Milo, o primeiro importante teatro regional moderno italiano. Ele
dirigiu mais de 250 peas, mais notadamente trabalhos de Shakespeare, Bertolt
Brecht e Carlo Goldoni. Tambm dirigiu peras no Teatro Scala de Milo, foi o ator
principal da sua produo pica de Fausto e ocupou o Senado Italiano por um
mandato, quando Gianni j estava no Brasil h mais de trinta anos.
Apesar de j ter trabalhado com outros diretores e figurinistas, antes de formar
o Grupo do Strehler, a maioria dos trabalhos de Gianni em seu pas natal foi
realizada em parceria com Colciaghi, no que diz respeito visualidade do espetculo.
Nesta poca, o grupo conseguia realizar o to desejado rompimento com os padres
teatrais, como o prprio Gianni Ratto comenta, em outubro de 2005, ao pesquisador
Carlos Eduardo Carneiro:
25
RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 46. 26
Vide Bibliografia. Gianni Ratto escreveu cinco livros: A Mochila do Mascate (1996), Antitratado de Cenografia
(1999), Crnicas Improvveis (2002), Hipocritando (2004) e Noturnos e outros contos fantsticos (2005), que
permitem um mergulho na sua potica criativa. 27
STREHLER, Giorgio. In GLI SPAZI DELLINCANTO (Bozzetti e figurini del Piccolo Teatro: 1947-1987). Milano: Edizione Amilcare Pizzi, 1987, p.7-8.
-
24
O grupo foi a conseqncia de um inter-relacionamento entre gente jovem de teatro, que aspirava a uma ruptura definitiva dos processos
das companhias dramticas profissionais ligadas ao obsoleto conceito do mattatore (o grande ator que arrasava com a sua interpretao excepcional, ou no, qualquer texto ou qualquer espetculo).
Justamente com Strehler, Grassi, Jacobbi, Celi, Salvini, Orazio Costa, Giannini, Ivo Chiesa e um grande nmero de outros jovens talentos,
iam se definindo novos conceitos que, pela prpria estrutura do teatro vigente, s encontravam vazo em espetculos espordicos para os quais atores donos de companhias (capocmicos e empresrios) interessados nos movimentos de aps-guerra, abriam os espaos do palco e seus magros oramentos. importante no esquecer que para
tanto dispnhamos contrariando conceitos que ns achvamos bsicos de sete ou oito dias para ensaiar e estrear, para projetar e executar cenrios, figurinos e iluminao.28
A direo de Giorgio Strehler, como um dos primeiros na figura do diretor /
encenador, marca, ento, esta poca de transio. Gianni Ratto disse em entrevista
que a grande fora dos teatros experimentais na Itlia, na dcada de 1940 e 1950,
foi provocar polmica. O grande mrito do Piccolo, do Stabile de Gnova, foi o de ter
proposto uma linguagem nova para o tempo deles.
Mesmo assim, Gianni Ratto falou que para ele, nesta poca, era muito mais
fundamental uma preocupao de carter esttico do que de aprofundamento de
pensamento. A imagem imediata e a beleza como idias eram o mais importante. 29
Mas relembra das influncias dramatrgicas dos textos e, ao comentar sobre o
processo de criao de cenrios para a pea Ral, de Gorki, complementa seu
pensamento: foi um processo de amadurecimento interpretativo, no qual a arte
visual se transformou em uma arte interpretativa.
No teatro regular do incio dos anos quarenta os diretores engajados, na maior parte das vezes, se limitavam a levantar a produo
funcional. Nesta, permanecia o tema, e eles davam um estilo, enobreciam.30 Por isso, o autor Strehler, experimentadas as misrias
da direo e das companhias itinerantes, se torna o mais decisivo adversrio da coexistncia entre o velho e o novo teatro: Muitos cmicos antigos se contorceram em mortes e envenenamentos [...]. Muito papelo [...], muitos gestos de aflio e de farsa, muito trabalho nos condenou [...]. Muita teatralidade.31
28
CARNEIRO, Carlos Eduardo. Mestres da Cenografia: Gianni Ratto. In Espao Cenogrfico News. Jun/2006. n 28,
p.22. 29
MUNIZ, Rosane. Vestindo os nus: o figurino em cena. RJ: Senac Rio, 2004, p.81. 30
A mesma academia de arte dramtica, pelo menos aparentemente, ensinava a continuao do passado da importncia
do teatro do primeiro ator. 31
STREHLER, Giorgio. Condizioni di uma polemica, cit.
-
25
Era preciso retornar estaca zero da comunicao representativa,32 precisava negar de novo os artifcios deslumbrantes: o personagem escrevia Strehler no humano porque se move humanamente, porque vestidos, palavras, gestos, sentimentos so inerentes a todos33. E ainda: A oleografia34 insuportvel. Se o teatro oleografia [...] insuportvel 35.
Neste livro36, encontrado no arquivo do Teatro Piccolo graas a uma citao em
um artigo, Cludio Meldolezi escreve sobre a personalidade muito forte e,
ocasionalmente autoritria, de Giorgio Strehler. O livro foi emprestado para consulta
no Arquivo do Piccolo Teatro, mas com a ressalva de que eu o utilizasse com
cuidado, j que Strehler no gostou do resultado e ficou incomodado pelo fato de o
autor ter feito suas pesquisas tambm dentro do prprio arquivo do Piccolo, porm
trazendo tona no s o lado criativo e de importncia de Strehler para a inovao
cnica, mas dando espao para a crtica.
Independente do momento do teatro italiano de um teatro de diretor, Gianni
trazia a experincia que teve ao lado de Strehler com a harmonia da cena. Vittoria
Crespi Morbio destaca, no livro Gianni Ratto no Scala, na Itlia, esta harmonia da
cena nos espetculos os quais Gianni trabalhou com Giorgio Strehler:
Os espetculos de Strehler e Ratto so concebidos nos mnimos
particulares para poder funcionar com perfeio como sofisticados mecanismos de relojoaria. Uma encenao no aparece mais como a obra de um solista, mas, sobretudo de um coro que se soma s vozes
do diretor, da figurinista, personificada na presena fiel de Ebe Colciaghi, do tcnico das luzes e frequentemente nos sons de Fiorenzo
Carpi.37 Mas em 1954, com o desejo de alar vo pela direo teatral e tambm
insatisfeito com a sua vida pessoal na Itlia, Gianni Ratto decide aproveitar a
oportunidade, ao saber que havia brasileiros procurando por um diretor italiano, e
mudar para o Brasil. Vai de Milo para Gnova e no dia seguinte pega o navio
Eugnio C, da companhia de navegao Costa. Era um dia de janeiro: o tempo
chuvoso, vento frio e cortante. Gianni viajou de terceira classe e era considerado um
32
STREHLER, Giorgio. Responsabilit della Regia, in Posizione, 10 out-10nov. 1942. 33
idem. Disumano e teatro. In Eccoci, 1 apr.1943. 34
Reproduo de um quadro a leo, feita de uma tela para outra, ou uma pintura feita por este processo. 35
idem. Nota. Per um teatro pstumo, cit. 36
MELDOLESI, Claudio. La Generazione dei Registi. In Fondamenti del Teatro Italiano. Florence: Ed.Sansoni, 1984,
p.301-353 et passim. 37
MORBIO, Vittoria Crespi. Gianni Ratto alla Scala. Milano: Umberto Allemandi & C, 2004, p.15.
-
26
emigrante. Dividia seu quarto com um vinhateiro, um tecelo e um torneiro mecnico.
Depois de treze ou quatorze dias de viagem at o Rio de Janeiro, onde ficaram por
dez horas, continuaram viagem para Santos. Pouco depois de chegar a So Paulo,
escreve sua primeira carta38 para o amigo arquiteto Luciano Antonini, que aqui
reproduzo. Algumas palavras no foram identificadas. Em negrito, observaes
minhas:
So Paulo, 28 de janeiro de 1954
Caro Luciano, a viagem foi tima, salvo por apenas uma tempestadezinha no
Golfo de Leone. Mas, depois de uma semana de permanncia aqui em So
Paulo, j o esqueci.
A chegada ao Rio foi emocionantssima, um espetculo, estupendo. Do
______, a cidade, todos os arranha-cus em uma natureza espetacularmente
selvagem, se revela de repente. Se est, de verdade, em um outro mundo - no
Rio uma parada de um dia com mais de 40 de calor (uma autntica ______) e
no dia seguinte em So Paulo onde o sorriso luminosssimo de Luciana me
acolheu dando-me as boas vindas.
Sou hspede do meu empresrio (Sandro Polloni) no subrbio perifrico de
So Paulo, em uma mansozinha fresqussima e limpa e moro com ele e sua
companheira que a primeira atriz da companhia que dirigirei (Maria Della
Costa).
O Teatro, que ser inaugurado em abril-maio, est atualmente em
construo e situado em uma bela rua, uma das mais belas avenidas da cidade
(avenida 9 de julho). um prdio baixo, comprido que tem na parte dos fundos
um pequenino arranha-cu, sbrio na arquitetura e agradvel de se ver.
So Paulo uma cidade extraordinariamente dinmica e lembra um pouco
Milo pela sua atividade. Situada a 800 metros de altura s.m. (sobre o mar).
Tem um clima suportvel, neste perodo so freqentes os temporais e a
noite o ar fresqussimo. Em Trememb, o subrbio onde moro, o clima
esplendido e a noite se dorme que um prazer. Contudo, se continuo assim
dormirei sempre menos porque a segunda noite que vou pra cama s quatro
da manh. Uma vez porque permanecemos conversando at tarde, outra porque
fomos casa de um colega meu italiano que nos convidou aps um espetculo.
Trs dias depois da minha chegada fui convidado a uma recepo em
homenagem aos arquitetos participantes de um congresso de Bienal, os
convidados eram... quinhentos! Aqui, dada a riqueza existente, recepes desse
gnero so freqentes e aps a primeira vez j no causa mais surpresa.
O teatro pelo qual trabalharei tem quinhentos lugares.
Aqui j me rotularam (graas aos meus compatriotas) publicando que eu sou
um cengrafo e no um diretor, mas isso bom porque me d publicidade. No
s dirigirei um teatro e o transformarei em um organismo vlido mas serei
tambm o diretor porque a confiana que demonstram em mim aqui, me faz
sentir capaz.
Essa uma aventura que ou vai ou racha, mas se vai, vai de verdade.
Daqui a poucos dias, na ABITAT, que uma importantssima revista de arte,
sair um grande artigo meu com fotografias (muitas) dos meus trabalhos. Daqui
a alguns dias Radio Gazeta (que corresponde ao nosso Corriere della Sierra) far uma entrevista comigo e daqui a um ms, no Museu de Arte desta cidade,
realizarei uma palestra sobre teatro.
38
Traduo de Ariovaldo Policastro e da autora. Grifo nosso.
-
27
Luciana (Petruccelli, mulher de Gianni, na ocasio) me extremamente
til em tantas coisas. Me apresentou a muitas pessoas e tinha preparado o
terreno para que eu fosse bem acolhido. Por outro lado, meus hspedes so
extremamente gentis comigo e se baseiam sobre a minha experincia e
preparao. Te confesso que me encontro muito bem aqui em meio a esses
arranha-cus que no me parecem to altos assim, dada a largura das estradas.
A cidade me agrada e sobretudo h uma intensidade sibilante, subterrnea,
igualmente viva e potencialmente eficaz que no deixa de estimular. Pode
tambm ser que a um certo momento eu me estresse e me canse. Todavia as
impresses so boas apesar de certo inevitvel diletantismo.
Domingo irei a uma fazenda que me dizem que muito bela e rica; pertence
a um brasileiro riqussimo (Flavio de Carvalho) e ___ arquiteto e pintor e ___
___ __. Luciana muito amiga da sua mulher (Maria Kareska) que uma
cantora simpaticssima e inteligente.
Devo escrever uma montanha de cartas e at hoje ainda no fui bem-
sucedido em fazer-lo. Esta a primeira de uma longa srie.
Te darei noticias mais detalhadas em seguida.
Recordaes aos seus e, se o vir, Nino.
Para voc um abrao afetuosssimo. Luciana te cumprimenta e te agradece
pelos doces.
Gianni
Obrigado pelo seu graciosssimo presente.
At-logo (no uma expresso imprpria. Quer dizer: Arrivederci presto.)
Luciana
Gianni estava muito animado com a chegada ao novo pas. Porm, logo em
seguida ele pde perceber que a recepo de parte do grupo da cia. de Maria Della
Costa no seria to acolhedora como ele esperava.
Alm dos compatriotas que o ignoravam, Gianni tambm teve uma grande parte do elenco que ia contra ele. Tinha o Eugenio Kusnet, que tambm era diretor, um russo branco, maravilhoso, professor. Ele
tambm teve muitos cimes, pois sendo o diretor, mentor intelectual da nossa companhia, das nossas queixas com a construo do
teatro... Quando ele viu que contratamos um diretor italiano ficou profundamente magoado. Ele no demonstrou, mas trabalhou por baixo com um pouco do elenco contra o Gianni. Falava: Como
contratar um diretor italiano, que no fala uma palavra de portugus e que vem dirigir uma pea aqui, se h diretores brasileiros? E eu
ficava ali, tentando administrar, mas era difcil porque uma parte prejudicava, de propsito. E ficava aquela briga: Mas ele cengrafo! No, diretor. Mas cengrafo. No, diretor. Eu tive que segurar
aquela barra e o Gianni chorou muito no nosso colo. Ele ficou muito magoado, at queria sumir. No queria ir embora, mas queria sumir,
porque no estava conseguindo. A o chamei. Por isso que ele sempre me adorou. Porque eu sempre dei mo firme a ele, coisa que nem o
Sandro soube fazer porque tambm era o homem do dinheiro, o produtor e estava envolvido nos ltimos preparativos do teatro. Ento
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28
eu segurei a barra. Quando o Sandro perguntava como as coisas estavam, eu dizia que estava tudo bem. E assim foram andando os
ensaios. 39
Gianni no foi o primeiro, mas faz parte dos profissionais que vieram com
experincia para este pas. O TBC contribuiu muito com o teatro brasileiro na
introduo de uma sistematizao, na qual todos os elementos se tornam pensados e
colaboram para a totalidade do espetculo. Mesmo que Gianni tenha participado na
companhia somente como diretor e cengrafo, em Eurydice (1956), e acrescentando a
funo de iluminador em Nossa Vida com Papai (1957), sua presena para a mudana
no tratamento cenografia e ao figurino notvel nestes anos de formao do teatro
brasileiro. Nestes dois trabalhos citados, Gianni no trabalhou como figurinista. No
primeiro, comandou a criao de sua parceira Luciana Petruccelli, sua segunda
mulher, que veio para o Brasil um pouco antes dele, preparando as bases para sua
chegada. No segundo espetculo citado, ensinou e preparou Kalma Murtinho no que
seria seu primeiro figurino profissional. Uma anlise mais especfica sobre as
figurinistas est no captulo 2. Mas a atriz Maria Della Costa salienta que o trabalho de
pensar no figurino j existia:
Acho que naquela poca tinham grandes figurinistas tambm. No tanto quanto hoje, mas uma safra menor. Faziam-se coisas
maravilhosas. Trabalhei no teatro mais realista, depois mais moderno, polmico, poltico... Umas roupas a gente comprava, ia pras lojas procura de tecidos mais envelhecidos, outras elas envelheciam.
Naquela poca tinham tinturas pra fazer tingimentos... Hoje quero tingir certas coisas e sai a tinta. Era mais consistente antes. Porque
teatro tem que lavar as roupas. Ainda mais no Rio de Janeiro, Brasil, pas tropical. Em algumas roupas d pra fazer o corte embaixo do brao, mas em certos vestidos no dava. Tinham mulheres que
faziam um trabalho insano, cortavam, tingiam, costuravam essas roupas. 40
Se tomarmos o comentrio da atriz, quando comenta que Era mais consistente
antes, podemos fazer uma viagem para um tempo um pouco mais distante e lembrar
Eduardo Victorino, em seu estudo Cem annos de theatro: a mecnica theatral e a arte
de encenao41, que, ao avaliar a artesania teatral do incio do sculo, considera que o
Brasil nunca esteve muito distanciado dos teatros mais adiantados europeus, no
39
Maria Della Costa, em depoimento autora, em abril de 2008. 40
Maria Della Costa, ibid. 41
SALA PRETA revista do departamento de artes cnicas eca-usp. Cem annos de Theatro: a mecnica theatral e a arte da encenao. SP: CAC, 2003. n3, p.182-189.
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quesito da mecnica e arte da encenao, pois no tardava para que seguisse os
exemplos. Em seu livro Para ser ator 42, Victorino recomenda:
ARTE DE VESTIR, CARACTERIZAO E CONSELHOS
100- A maneira de vestir, disse Buffon, to variada, como variadas
so as naes. No theatro deve seguir-se esse preceito, variar, mas
tendo em vista que condio indispensvel a propriedade no
trajar.
101 A caracterizao deve merecer todos os cuidados a quem pisa a
scena. E no s a cabea que deve ser pintada, mas as costas das
mos, o pescoo e at os braos, quando tiverem de se apresentar
nus.
106 A alma do personagem a desempenhar que compe o
exterior. O contrrio princpio errado, porque todo o desempenho
deve partir do caracter.
107 O caracter moral o resultado do eu que se passa na alma,
segundo Sergi, que affirma que a expresso de cada emoo parte da
caracter moral para a exteriorizao physica.
108 O mimetismo na Arte, um erro.
109 Naturalidade no negligencia nem vulgaridade
Mesmo que estas recomendaes sejam bastante atuais, a verdade do mundo teatral
do incio do sculo no seguia suas recomendaes. Apesar de se pensar no figurino,
a finalidade de sua criao ainda era muito mais esttica.
42
VICTORINO, Eduardo. Para sr actor. SP: Livraria Teixeira, 1936, p. 63.
Figura 4 - parte do elenco de O Contratador de Diamantes, na escadaria do Theatro Municipal de
So Paulo, em 1919. (FONTE: Cem Anos de Teatro em So Paulo, p.80)
-
30
Como inteno beneficente, a Sociedade de Cultura Artstica decidiu montar,
em 1919, o espetculo O Contratador de Diamantes (figura 4), de Afonso Arinos. Os
cenrios (segundo o livro consultado) foram assinados por Wasth Rodrigues, que,
muito provavelmente, pode ter desenhado tambm os trajes, j que era sua
especialidade desenhar trajes em aquarelas como o muito conhecido livro sobre os
trajes do exrcito brasileiro. Mas o evento parece muito mais uma ao entre
amigos dos quatrocentes.
No podemos esquecer que o Teatro de Revista j funcionava h alguns anos
como uma verdadeira indstria quando Gianni Ratto chegou ao Brasil, apesar de j
em incio de decadncia. Porm, a equipe de costureiras que cuidava dos trajes, nos
mais variados estilos e formas, no era para ningum colocar defeito. Havia,
naturalmente, trajes dissociados da encenao, s vezes sem a preocupao com a
personagem, em um contexto dramtico a ser descrito. A companhia de Walter Pinto,
por exemplo, passou a explorar o luxo e a engenhosidade da cenografia, como se v
na montagem de Mui Macho Sim Sinh, de 1950 (figura 5). Esta nova moda teatral
acabou por transformar o bairro carioca do Recreio em uma verdadeira fbrica
(mesmo bairro onde, coincidentemente hoje, se encontra a Fbrica de Cenografia e
Figurinos da Rede Globo de televiso, no Projac), com direito a escritrio de produo
e ateli de costura. O Teatro de Revista para o qual Gianni trabalhou em de
Xurupito!, em 1957 serviria de inspirao para um espetculo que ele viria a
encenar em 1979, no Rio de Janeiro: Lola Moreno, que se encontra analisada no
captulo 2.
Figura 5 Bastidores do
teatro de revista: preparao
cenotcnica para uma
gigantesca mesa que entrava
em cena; a sala de produo
da equipe de Walter Pinto e a
equipe de costureiras.
(Fonte: KAZ, Leonel et al.
Brasil, palco e paixo: um
sculo de teatro.
RJ:Aprazvel, 2004-2005, il.,
p.67)
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31
Um outro estudo seria avaliar a situao do Brasil no aspecto da indumentria,
no meio do incio do sculo at a chegada dos estrangeiros, principalmente dos
italianos e, logo em seguida, de Gianni Ratto. Vale a pena lembrar que o Theatro
Municipal de So Paulo, para o qual Gianni muito trabalhou, com sua experincia no
teatro lrico que trazia do Scala, de Milo, ainda no tinha uma produo de seus
trajes. H um processo (figura 6), de 1951, que comprova a compra de figurinos para
oito peras, no valor total de Cr.$ 1.985.374,00.
Prefeitura Municipal do Estado de So Paulo
P. Processo 18.183 51 13 10 51
Sr. Chefe
Dando cumprimento determinao de V. V., recebi do Sr.
Alfredo Gagliotti, concessionrio da temporada lrica oficial de
1951, ora finda, o material estipulado na clusula VIII do contrato
de fls. 73 e 76 deste Processo.
Compreende o seguinte: cenrios, guarda-roupas, adereos,
cabeleiras e sapatos das peras Ada, Manon, de Massenet, Adriana de Lecouvreur, Boris Godunoff, Zaza, Barbeiro de Sevilha, Pagliacci e Cavalleria Rusticana todas em perfeito estado de conservao, com os respectivos guarda-roupas novos,
de boa qualidade e acabamento aperfeioado.
Quer o vesturio confeccionado em conformidade com as
exigncias que ele impe nas classes inferiores, quer o luxuoso e
colorido entre os nobres, bordado, ou recamado de pedrarias
observam uma exatido levada at as mais insignificantes
mincias. Observam rigorosamente uma relao entre o lugar e a
poca da ao, a idade ou qualidade das personagens.
O vesturio dos homens do povo, dos burgueses e dos
camponeses, talhados em tecidos diversos, caracterizam-se por
suas formas tradicionais e combinaes de cores. No vesturio
esto compreendidos os respectivos pertences, tais como: meias,
coletes, blusas, cintos, chapus, boinas, lenos, jabeux etc.
Figura 6 Processo de compra do lote de figurinos, ao qual se seguiam sete pginas
com descrio dos itens, separados por pera, com valores individuais e totais de cada
elemento. (Acervo Theatro Municipal de So Paulo. Traduo: Vnia Cerri, para o
projeto Traje em Cena e gentilmente cedida para uso nesta pesquisa)
O grande movimento de renovao das artes do sculo XX, defendido durante a
Semana de Arte Moderna, em 1922, no afetou, a princpio, o teatro brasileiro. Isto s
viria a acontecer, lentamente, a partir dos anos 1940, com as chegada dos
estrangeiros que fugiam da guerra e procuravam um lugar mais calmo. Chegaram
-
32
antes de Gianni: Adolfo Celli, Ruggero Jacobbi, Luciano Salce, Alberto dAversa,
Maurice Vaneau, Flaminio Bollini, Tulio Costa e o polons Ziembinski, que foi o
responsvel pela montagem da pea Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com os
Comediantes, em 1943, no Rio de Janeiro, considerada o marco do Modernismo
teatral no pas.
A presena estrangeira possibilitou que a arte teatral se igualasse ao teatro
europeu em qualidade e recursos cnicos. Ator, diretor, cenrio, som, figurino, texto e
iluminao compunham um espetculo, na tentativa de uma unidade entre os
elementos. Da a declarao da atriz Cleyde Yconis:
Este estudo j existia. J aconteceu no TBC de no dia do ensaio geral trocar o figurino porque ele estava prejudicando a representao,
porque foi um equivoco ou um erro. No 4 andar ficava a costureira, parece que se chamava Rina, ou algo assim, e s vezes ela fazia uma
roupa nova durante a noite. O figurino pode derrubar um ator. J existia essa conscincia. Eu era contratada pelo TBC e, em todas as produes, ia na 25 de maro, procurava tecido, voltava e mostrava
pro diretor. A ele me falava no esse tom de rosa, tem que ser mais cinza. A eu voltava e procurava outro tom...Eu apresentava os tecidos para o figurinista e depois, se tinha prova, eu acompanhava; e se tinha algum problema, eu ia falar com o figurinista: Olha, no est dando. Esse tecido no deu... Pechinchar... Eu trabalhava na produo do figurino, mas nunca fui encarregada do figurino. 43
Mas retornando ao Gianni Ratto, o diferencial que, no s ele vai colocar o
aprendizado que traz da Itlia, em prtica aqui no Brasil, como tambm vai se
preocupar com a criao de um teatro nacional, de equipe, no qual um grupo no s
atue nas diferentes funes, mas auxilie, fornecendo os instrumentos para que os
outros profissionais consigam tambm expressar seus trabalhos em harmonia.
(...) Com quem voc falar que trabalhou com ele (Gianni Ratto) como
diretor, a tnica essa: que ele era muito bravo, que ele era muito trabalhador, e a preocupao dele era texto, e ator. bvio que, como grande cengrafo que era, ele tinha solues visuais pro
espetculo que eram muito boas. Ento, no dizer que como diretor ele tinha uma deficincia do ponto de vista da organizao da cena.
Mentira, ele organizava muito bem. E, por opo, fazia com que esses elementos estivessem subordinados ao ator e ao texto.44
43
Cleyde Yconis, em depoimento autora, em abril de 2008. 44
Aimar Labaki em entrevista ao autor, em agosto de 2006. Em CARNEIRO FILHO, Carlos Eduardo S. Gianni Ratto:
arteso do teatro. Dissertao (Mestrado). So Paulo: ECA - USP. 2007, p.62-63.
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33
Ensinamentos que Gianni espalhou aos profissionais que tiveram a
oportunidade de trabalhar ao seu lado, j no Brasil. Kalma Murtinho, figurinista que
mais trabalhou com ele (em 24 espetculos), lembra de quando fez os figurinos para
o espetculo Piaf, para o qual Gianni fez os cenrios e Flavio Rangel, a direo:
Foi um prmio trabalhar com o Flavio Rangel que era um homem, um
profissional total, uma cabea, uma pessoa muito curiosa. S que eu e ele tivemos, desde o comeo, uma briga interna dentro do teatro
por causa de mtodos de trabalho. Eu era toda criativa, esfuziante e bagunceira. E ele era todo metdico, (...) cuidadoso, organizava todos os esquetes e eu inventando, voando... Mas na hora eu executava. Me
lembro que em Piaf, por exemplo, o Gianni Ratto, que era adorvel, nunca brigava e dizia: Kalminha, no briga com ele, deixa ele falar. (...) Eles eram grandes, grandes professores. Eu tenho trabalhado com gente muito boa, teatro srio, serssimo... Tm milhes de outros que eu trabalhei e gosto, mas inegvel que o Gianni Ratto foi assim
meu mestre, eu o chamo de meu guru.45
O estmulo de Gianni estava na descoberta atual. Ele dizia que no buscava o
mega ou o reconhecimento, pois achava que estes eram inimigos da sutilidade e que
sua realizao estava em saber o que era til, produtivo, criativo. Desejava se
expandir, arriscar na direo. Quando aceitou vir para o Brasil foi no intuito de se
tornar tambm diretor de teatro e de pera. Dizia ele: Foi portanto sem medo, mas
tambm sem me sentir corajoso, que assumi meu modesto destino.46 E aqui
permaneceu em uma atividade ininterrupta que abrangeu todos os aspectos da
linguagem teatral: direo, cenografia, figurino, traduo de textos estrangeiros,
fundao de grupos (Teatro dos Sete) e teatros (Teatro Novo, no Rio de Janeiro,
fechado pelo Dops), cursos de formao e informao para atores e cengrafos (no
Rio de Janeiro, na EAD e na ECA, em So Paulo, na Escola de Teatro da Universidade
da Bahia, em Recife etc.).
Defendeu, desde sua chegada ao Brasil, a presena nos palcos brasileiros do
autor nacional. Para a qualidade do seu trabalho, uma inteligncia racional, a
autocrtica e o amor perfeio so algumas das caractersticas que diz sempre ter
tentado colocar em prtica. J em sua estria, no Teatro Maria Della Costa, a
encenao de O Canto da Cotovia ganhou os prmios de melhor espetculo, direo,
45
Kalma Murtinho em entrevista autora, em novembro de 2005. 46
RATTO, Gianni. A Mochila do Mascate. SP: Hucitec, 1996, p. 182.
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cenografia e atriz. Trouxe na sua bagagem todo um repertrio cultural e tcnico que
viria a influenciar intensamente o processo de profissionalizao do teatro brasileiro.
Constru uma torre maravilhosa
com trilhos e folhas-de-flandres
retalhos industriais
sacos de cimento e farinha
secos e molhados
fragmentos de velhas portas
porcas e parafusos
umbrais e trincos quebrados
fiapos de tapetes
velhas chaves
uma coluna de concreto
e at um arco romano.
No havia escada
mas subi pelos andaimes
para olhar de cima
a estrutura e o horizonte.
Uma turma de ces passou correndo
e derrubou tudo:
agora eu sei; construirei mais longe,
no fundo de um vulco
cavando at o outro lado da terra.47
Com o perdo da ousadia, me inspiro em Gianni Ratto para dizer que no
prximo captulo, juntaremos fragmentos de informaes com retalhos das vestes
criadas. Folhas de desenhos sugerem as chaves de suas histrias. E antes que a fora
do vento leve tudo embora, cavaremos fundo para marcar sua trajetria.
47
RATTO, Gianni. A Mochila do Mascate. SP: Hucitec, 1996, p.17.
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CAPTULO 2
OS FIGURINOS DE
GIANNI RATTO
(as costuras de um caminho)
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36
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Sempre parto do princpio que o
espetculo uma coisa que inclui a regncia, cenrio,
figurino, todos os detalhes.
Gianni Ratto 48
Quando iniciada a pesquisa, tnhamos como dado que Gianni Ratto havia criado
figurinos para trinta e nove espetculos, no Brasil. Aps dois anos e meio, novas
descobertas ampliam estes nmeros e, neste momento, chegamos ao nmero de
sessenta e sete espetculos. Treze destes quando ele ainda trabalhava na Itlia.
Os figurinos de pera retirados do mundo mgico, sempre mgico mesmo nos casos mais pobres, trajados em manequins estticos,
correm o risco de tornarem-se conchas vazias sem a iridescncia de um tempo, e consequentemente menos resplandecentes, menos poticos
do que originalmente eram. Naquele tempo, s a humanidade, aquela que aviva o mundo, pode, com sua capacidade de imaginao, com poucos dados, pouca estrutura, fragmentos de tecidos e metais,
reconstruir o espetculo imaginrio, um teatro imaginrio e dentro deste projetar as coisas que ali permanecem inertes, memrias, ainda que caream de significado. No fundo, esta coleo uma escola por suscitar o fantstico existente em cada um de ns. Apenas deste modo uma coleo de figurinos
teatrais poder receber a sua luz, que no aquela dos projetores, mas aquela da fantasia, que a mais extraordinria e a mais verdadeira
entre todas as luzes. 49
O diretor Giorgio Strehler escreveu o texto acima para a edio comemorativa
de quarenta anos de figurino do Teatro Scala, de Milo. Da mesma forma que aquela
coleo uma escola, assim a coleo de figurinos criados por Gianni Ratto, e aqui
retratados.
Com imagens de trinta espetculos, sejam croquis e / ou fotos, optou-se, nesta
pesquisa, por aprofundar os dados sobre os figurinos criados para os espetculos
lricos. Das vinte peras com figurinos de Gianni Ratto, temos imagens de doze, sendo
que duas destas (seus dois figurinos criados para a pera Elixir de Amor) sero
analisadas mais a frente, no captulo 3. Tambm sero analisados os trs figurinos
criados para bal, na Itlia, e o primeiro e nico figurino para drama assinado por ele
com o grupo do Piccolo, de Milo. As imagens referentes aos espetculos no
48
Gianni Ratto conforme depoimento autora, em outubro de 2006. 49
STREHLER, Giorgio. LAtelier dellillusione, 1985. In Il Costume Teatrale tra Realismo e Finzione: i costumi storici del teatro alla Scala dagli anni 30 agli anni 60. Milo: Edizione del Teatro alla Scala, 2003, p.25. (Traduo da autora)
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analisados, traro breves comentrios. Os espetculos presentes neste captulo
possuem suas respectivas fichas tcnicas reunidas no Anexo 2.
Das mulheres na vida de Gianni... traz flashes de mulheres que estiveram
na vida de Gianni Ratto na criao de uma indumentria. Inseridas em ordem
cronolgica, entre as montagens de Gianni, facilitam uma leitura interpretativa de seu
aprendizado e das trocas com profissionais, que, eventualmente, se refletem nos
trabalhos seguintes. As notas destas pginas dedicadas s mulheres encontram-se no
fim deste captulo.
A cenografia e o figurino tm uma vantagem sobre os outros aspectos do espetculo que, uma vez acabado, irrepetvel: o projeto, o desenho, o croqui sobrevivem, mas, por estarem
separados do espetculo propriamente dito, assumem as caractersticas das artes plsticas; admiramos ento, se for o caso,
a elegncia de uma gravura, a criatividade de uma roupa, a beleza pictrica de uma prancha: quer dizer, criamos uma memria fictcia
do que talvez possa ter sido um espetculo e emprestamos ao TEATRO uma dimenso esttica, suporte de seus valores poticos e histricos; a crnica do espetculo morreu e os aspectos
complementares do texto inicial assumiram valor anedtico.50
Ter resgatado dados e reunido imagens de grande parte das criaes de
figurinos de Gianni Ratto de importncia documental, mas um estudo isolado do
contexto teatral poderia fazer, como o prprio Gianni diz, que estas imagens
assumissem as caractersticas das artes plsticas. A crnica do espetculo pode ter
morrido, mas na tentativa de resgat-la e entender estes croquis e fotos como parte
de um processo criativo, recorremos s vrias entrevistas realizadas com personagens
participantes das montagens analisadas e tambm com amigos e familiares, alm das
crticas e comentrios na imprensa. Relatos que faro com que o passeio pelos traos
das imagens de figurinos de Gianni Ratto torne possvel, como bem disse Strehler,
suscitar o fantstico existente em cada um de ns ao arrematar as conquistas e
fracassos da trajetria de Gianni.
Mas a histria, seja a do indivduo, seja a da humanidade, no pa