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 ROSANE MUNIZ ROCHA A TRAJETÓRIA DE GIANNI RATTO NA INDUMENTÁRIA Orientação: Prof. Dr. Fausto Roberto Poço Viana SÃO PAULO 2008

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  • ROSANE MUNIZ ROCHA

    A TRAJETRIA DE

    GIANNI RATTO

    NA INDUMENTRIA

    Orientao:

    Prof. Dr. Fausto Roberto Poo Viana

    SO PAULO

    2008

  • b

  • c

    ROSANE MUNIZ ROCHA

    A TRAJETRIA DE

    GIANNI RATTO

    NA INDUMENTRIA

    Dissertao apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao em Artes, rea de Concentrao Artes Cnicas, Linha de

    Pesquisa Prtica Teatral Indumentria e Cenografia, da Escola de Comunicaes e Artes da

    Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do

    Ttulo de Mestre em Artes, sob orientao do Prof. Dr. Fausto

    Roberto Poo Viana.

    SO PAULO

    2008

  • d

    Esta pesquisa foi realizada com o apoio da Fapesp.

  • e

    ____________________________________________________

    ____________________________________________________

    ____________________________________________________

    So Paulo, ____________________________________de 2008.

  • f

    RESUMO

    Esta pesquisa registra e analisa as criaes de figurinos, desde a Itlia at o Brasil, de

    Gianni Ratto, diretor, cengrafo, iluminador e figurinista, alm de autor e importante

    figura no teatro italiano e brasileiro.

    A catalogao, organizao e digitalizao das imagens de seus trabalhos resgata

    parte da histria do teatro. Somada investigao em fontes bibliogrficas, e levando

    em considerao a histria oral nos depoimentos registrados, a anlise do seu acervo

    torna-se no apenas histrica, mas tambm cultural.

    Um estudo comparativo de trs montagens do mesmo espetculo (Elixir de Amor) em

    diferentes fases de sua carreira com Giorgio Strehler, no Teatro Scala, em 1951; no

    Theatro Municipal de So Paulo, em 1971; e com Antonio Pedro, no Teatro Municipal

    do Rio de Janeiro, em 1983 possibilita uma reflexo sobre os diferentes processos

    criativos em seu processo de trabalho no que tange elaborao de figurinos

    teatrais.

    PALAVRAS-CHAVE: GIANNI RATTO, FIGURINOS, INDUMENTRIA, TRAJES,

    COSTUME TEATRAL

  • g

    ABSTRACT

    This research focus and analyses costume creation, from Italy to Brazil, of Gianni

    Ratto, director, set, light and costume designer, also author and a very important

    person in both Brazilian and Italian theater.

    The cataloguing, organization and the creation of photo archives of the images rescue

    part of the theater history. Together with the investigation of varied bibliographical

    sources and considering oral history as documental information, the analysis of his

    collection becomes not only historical, but also cultural.

    A comparative study of three different mise-en-scnes of the same play (LElisir

    DAmore) in different moments of his career with Giorgio Strehler, in Teatro alla

    Scala, in 1951; at the Theatro Municipal de So Paulo, in 1971; and under Antonio

    Pedros direction, in the Teatro Municipal do Rio de Janeiro, in 1983 makes it

    possible to reflect on the different creative processes in his process of creation in

    terms of costume creation.

    KEY-WORDS: GIANNI RATTO, COSTUMES, COSTUME DESIGN, THEATRICAL

    COSTUMES, STAGE DESIGN

  • h

    DEDICATRIA

    A todas as mulheres inspiradoras da criao de Gianni Ratto. Em especial, na rea do figurino teatral:

    Ebe Colciaghi, Luciana Petruccelli, Bell Paes Leme e Kalma Murtinho.

    s minhas inspiraes dirias: meu marido Hilton e minha filha Ana Clara.

    Aos meus pais, irmos e irms que, apesar de minha ausncia, sempre estimulam

    com palavras fraternas e de confiana.

    Ao meu orientador Fausto Viana, presena permanente nas incessantes consultas e

    grande parceiro na paixo pela pesquisa da indumentria.

  • i

    AGRADECIMENTOS

    Muitas pessoas me auxiliaram e ensinaram ao longo deste trabalho.

    Pelo amparo emocional, compreenso e estmulo constante, agradeo minha famlia. Pela grande generosidade e disponibilizao do acervo de Gianni, meu agradecimento

    especial Vaner Maria Birolli Ratto.

    Agradeo o apoio recebido pela Fapesp, que me ofereceu bolsa de estudo durante a pesquisa.

    Aos professores que me despertaram, a cada semestre, a cada aula, para o prazer da pesquisa: Fausto Roberto Poo Viana, Clvis Garcia, Cyro Del Nero de Oliveira Pinto,

    Maria Ceclia Loschiavo dos Santos, Monica Baptista Sampaio Tavares e Arley Andriolo. Aos professores Elisabeth Azevedo e Mrcio Tadeu pelas prestimosas

    consideraes na avaliao do trabalho. Na Itlia, agradeo a Adriana Bortolotti (Conservatore Museo Storico di Bergamo),

    Alessandra Vannucci, Alice Contrini e Francine Garino (Museo Teatrale alla Scala), Ana Ogg e Venanzio, Ana Paniale (Archivio Fotografico del Scala di Milano), Franco

    Tomatis, Giorgio Colciaghi, Luciano Antonini e Gian Marco Antonini, Maghali Miranda e Ludo Farago, Maria Grazia Gregori, Paula Caracchi, Franco Diespro e Silvia Colombo (Archivio Piccolo Teatro), Rita Citterio e Cristina (Laboratori Ansaldo Scala) e, ainda, ao porteiro do Hotel Sir Edward (Milo), fundamental para o meu encontro com Luciana Petruccelli.

    No Brasil, Aby Cohen, Aimar Labaki, Alice Correa, Augusto Boal, Ariovaldo Policastro, Beatriz Luz Dupin, Bertha Heller (EAD), Caio Franco, Carlos Vial, Cleyde Yconis,

    Gilberto e Renata (Biblioteca da ECA USP), Dbora Batello, Denise Orthis, Dona Conceio de Alencar, Dr. Ubir Tadeu Leal e Ina (OSPA), Emlio Fontana (Arquivo do

    Estado), Frank Hamilton (dos EUA), Gabriele Leib, Gilberto (Hotel Coxixo), Hector Pace, Helena Prates, Joaquim Rodil Ferreira, Liana Magalhes, Luciana Bueno, Marcelo del Cima (Acervo Maria Della Costa), Mrcia Cludia Figueiredo (Centro de

    Documentao e Informao da FUNARTE), Marcia Taborda, Mrcio Sgreccia (Museu do Theatro Municipal de So Paulo), Marcondes Mesqueu, Maria Della Costa, Maria

    Eugnia (UFBA), Mauricio Paroni de Castro, Niza de Castro Tank, Ricardo Martins, Ruth Staerke, Srgio Britto, Srgio Domingos e Par - Jos Galdino (Central de Inhama-RJ), Stanley Valeriano, Tony Giusti, Valria Berti Contessa, Vnia Cerri e

    Victoria Kerbauy.

    A estas pessoas, e a outras tantas que me ajudaram ao longo do caminho, meus sinceros agradecimentos pela colaborao na pesquisa e documentao de nossa histria.

  • j

    SUMRIO

    INTRODUO (Tecendo a teia)............................................................. 01

    CAPTULO 1 A FORMAO (O croqui de uma vida)............................. 15 CAPTULO 2 OS FIGURINOS DE GIANNI RATTO (As costuras de um caminho)........................................... 35 Na Itlia...................................................................................... 39

    Ebe Colciaghi....................................................................... 53 Luciana Petruccelli................................................................ 65

    No Brasil..................................................................................... 69 Kalma Murtinho................................................................... 75

    Bell Paes Leme e Marie Louise Nery...................................... 81 Marias, Alices, Conceies..................................................... 93

    Notas........................................................................................ 119

    CAPTULO 3 ANLISE COMPARATIVA DOS FIGURINOS PARA A PERA ELIXIR DE AMOR (Os diferentes bordados)............................... 121

    3.1. Introduo anlise de uma metodologia de criao de um figurino ......................................................................................... 123 3.2. Gaetano Donizetti e Elixir de Amor........................................... 125

    3.3. As leituras de Gianni Ratto para a pera Elixir de Amor............... 127 - Teatro Scala.................................................................... 127

    - Theatro Municipal de So Paulo.......................................... 137 - Teatro Municipal do Rio de Janeiro...................................... 145

    3.4. Anlise da metodologia da criao de Gianni Ratto na comparao das trs montagens da pera Elixir de Amor.............................. 157

    CONCLUSO (Arremate).................................................................... 161

    ANEXOS .......................................................................................... 173

    1. Currculos.............................................................................. 175 2. Histrico dos espetculos analisados no captulo 2...................... 189

    3. Litografia indita de Craig, por Gianni Ratto............................... 203

    4. Estudo I Pagliacci................................................................... 204 5. Anotaes de direo de Arlequim na turn 1954........................ 211

    BIBLIOGRAFIA................................................................................ 213

    * CAPA: Foto de Gianni Ratto em sua residncia, por Rosane Muniz, em 26 de julho de 2001.

    Foto da cortina do Teatro Scala, de Milo, por Rosane Muniz, em 13 de julho de 2006.

  • 1

    INTRODUO

    (Tecendo a teia)

  • 2

  • 3

    O TECER DA TEIA

    Corria o ano de 2001, quando decidi entrevistar Gianni Ratto para o livro-

    reportagem Vestindo os nus o figurino em cena, resultado do meu trabalho de

    concluso do curso de Jornalismo e que eu viria a publicar trs anos depois, pela

    Editora Senac Rio. Para uma pesquisadora, um dos maiores prazeres no processo de

    trabalho a experincia de confrontar o artista, provoc-lo nos pontos mais

    nevrlgicos, descobertos pela pesquisa. Apesar de trabalhar com teatro h algum

    tempo, minhas pernas tremiam pela oportunidade de conhec-lo pessoalmente - sem

    contar as vezes em que nos cruzamos publicamente em estrias, bastidores ou

    manifestaes artsticas, nas quais ele era sempre figura presente e atuante. Mesmo

    com o estranhamento de alguns colegas, j que era famoso cengrafo e diretor

    teatral, quais no foram a satisfao e a curiosidade investigativa, ao sair, depois de

    cinco horas de conversas e devaneios, com a certeza de que realmente ele era um

    grande mestre tambm na seara da indumentria teatral, tal como haviam me

    afirmado Kalma Murtinho e Bell Paes Leme, duas grandes e importantes profissionais

    da rea, com mais de cinqenta anos de profisso no Brasil.

    No livro, a entrevista de Gianni Ratto abre o captulo dedicado aos figurinistas,

    no qual ele apresentado como O Mestre. Assim que lanado, enviei o livro de

    presente e nunca mais nos encontramos, at que, em setembro de 2005, continuando

    minhas pesquisas na rea da indumentria, voltei USP como aluna especial e, logo

    em seguida, fui convidada pelo Prof. Dr. Fausto Viana (que seria, depois, meu

    orientador na pesquisa de mestrado) a assumir a funo de pesquisadora no Traje em

    Cena projeto de conservao, catalogao e criao de banco de dados do acervo de

    figurinos do Theatro Municipal de So Paulo. Neste trabalho, acabei por me interessar

    pela pesquisa sobre as criaes de Gianni Ratto para peras do Theatro. E foi a que

    deu-se nosso reencontro.

    Ao entrevist-lo pela segunda vez, recebi uma provocao: No gostei do seu

    livro! Aps a surpresa inicial, j que a edio estava sendo muito bem aceita, veio a

    inquietao. Queria saber o porqu de sua opinio, tima oportunidade para me

    deparar com erros e ter a chance de repar-los em uma prxima vez. Mas ele s

    respondeu aps a ameaa de que eu no iria embora de sua casa enquanto no me

  • 4

    esclarecesse. Em outras pocas, penso que este tipo de intimao no teria surtido

    efeito. Porm, no precisei insistir mais. No sou mestre em nada!, falou irritado.

    Lembrei de um trecho de seu livro, no qual diz que A histria da humanidade no a

    de seus homens, mas a das obras que eles deixaram, perenes e indestrutveis. A

    Histria das Artes no precisa de nomes, precisa de obras. 1Foi o suficiente para eu

    entender o sinal. Minha pesquisa de mestrado seria organizar e analisar suas obras na

    indumentria teatral e avaliar a importncia do seu trabalho para o teatro brasileiro

    nesta rea. Disse isso e recebi um meio-sorriso como resposta, uma aparente

    satisfao que quase me fez pensar que eu havia sido manipulada. Afinal, Gianni

    Ratto assumia que nunca elogiava para estimular a contnua busca. Pois conseguiu:

    poucos meses depois, eu estava inscrita na ps-graduao. Mas no tardou muito

    para que, entre as festas de fim de ano, com a cidade de So Paulo praticamente

    vazia, Gianni viajasse discretamente, permitindo a bem poucos uma despedida

    formal.

    Minha pesquisa foi amadurecendo, e cada vez mais descobri o carinho e apreo

    de Gianni por este elemento cnico. Desde quando pedia sua me para costurar os

    figurinos para suas maquetes; ao trabalhar com a figurinista Ebe Colciaghi, na Itlia;

    na vinda para o Brasil com a sua segunda esposa e figurinista Luciana Petruccelli; pela

    anlise de suas criaes e croquis; nas entrevistas com amigos, costureiras,

    figurinistas, atrizes e diretores que trabalharam ao seu lado... O aprendizado tem sido

    grande ao poder ouvir, ao vivo, vozes do passado relembrando casos que tanto

    enriquecem a histria do nosso teatro. Muitas vezes, me sinto sua aluna por tabela. E

    ele ainda dizia que no era mestre...

    Apesar de a pesquisa andar de vento em popa, pairava a dvida de como

    escolher a linguagem da escrita, para contar, avaliar e refletir sobre suas criaes.

    Muitas descobertas, mas tambm conseqentes incertezas. Com cinco livros de sua

    autoria editados, poderia parecer que o trabalho deste profissional j est

    suficientemente documentado. Alm disso, se por um lado a poesia de sua escrita

    inspira, por outro inibe quando pensamos nas ricas metforas de um profissional que

    realizou tantos cenrios em sua vida que se conseguisse juntar toda a madeira que

    neles foi empregada (...) poderia construir uma cidade. 2 Seria possvel juntar

    1 RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p.140.

    2 RATTO, loc.cit.

  • 5

    imagens e dados de toda uma produo de figurinos, que talvez no desse para vestir

    a cidade de So Paulo, mas com certeza algumas piccolas cidades italianas? Talvez

    no, mas como quantidade no qualidade, o importante que croquis, fotografias,

    registros em programas ou jornais, pequenas e grandes histrias de muitas de suas

    obras foram coletadas para esta pesquisa. Chegamos ao nmero, por enquanto, de

    sessenta e sete espetculos com os figurinos assinados por ele, sendo que treze

    quando ainda na Itlia.

    O jornalista Srgio Augusto, quando convidado para escrever uma biografia de

    Vincius de Morais, acabou desistindo por problemas de prazos, porm depois, ao ler a

    realizada por outro colega, comenta que duvidaria ter feito melhor, mas que com

    certeza teria escrito com mais de mulher, de cinema e de Tati de Moraes, primeira

    esposa do poeta. Trao um paralelo do comentrio com este trabalho, que talvez no

    seja melhor que ler os escritos biogrficos feitos pelo prprio punho de Gianni, mas

    com certeza ter muito mais de mulher, de figurino e de Luciana Petruccelli, segunda

    esposa do por que no dizer artista (para resumir o diretor, cengrafo,

    figurinista, iluminador, autor, professor e pensador que foi). Gianni deixou bem claro

    que a moralidade do indivduo nada tem a ver com seus valores criativos assim como

    a moralidade de uma personagem nada tem a ver com a do ator que a interpreta. 3

    No que seja para uma avaliao moral do seu comportamento, mas ao analisar as

    indumentrias criadas por ou para seu trabalho, no h como deixar de lado sua

    volpia categrica para o ser feminino.

    Este torna-se, ento, um estudo de sua vida e obra com recorte no figurino,

    que tratado por ele em suas obras de forma espordica e irregular, sem estar

    metodologicamente organizado. Seus enfoques principais sempre foram a cenografia

    e a direo de ator. No entanto, busco o primeiro contato que tivemos, no qual ele

    confirma a importncia dos trajes: O figurino a pele do ator, que passa a ser

    necessria a partir do momento no qual se revela indispensvel. uma questo de

    lgica e no se pode fugir dela. 4 Na teoria, mesmo frente breve bibliografia

    existente no pas sobre a indumentria teatral e sua importncia para a encenao e

    encenadores, percebemos o lado prtico com o qual Gianni Ratto fala sobre o assunto.

    Mas o que se destaca mesmo na sua trajetria o modo como observou, aprendeu,

    3 RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 39.

    4 RATTO, Gianni in MUNIZ, Rosane. Vestindo os nus: o figurino em cena. Rio de Janeiro: Ed. Senac, 2004. p. 72.

  • 6

    pensou, ensinou, arquitetou, dirigiu o trabalho deste elemento cnico to fundamental

    para o teatro e qui, para o seu modo de ver a vida. Curiosamente, Gianni dizia que

    esquecia os rostos dos amigos mortos, mas ao conversar com eles em suas horas de

    insnia, lembrava de uma roupa que vestiam, ou um tom de voz ou uma risada. 5

    Sua ateno estava nos detalhes. Exatamente onde a minha tambm deveria estar.

    A pesquisa andava bem, investigaes, descobertas, mas a dvida pairava em

    como eu iria tratar seu envolvimento com a indumentria, como conduziria a escrita.

    Fao uso de um lugar calmo para escrever, ideal para meus momentos de leituras,

    reflexes e inspiraes para a escrita. Junto com meus pequenos, mas pesados,

    pertences: livros, papis, croquis, fotos... Em momentos de divagao, quando

    olhamos para o nada no intuito de refletir, percebi que no estava sozinha neste

    aparente sossego. Foi quando elas comearam a chegar. No incio no fiquei muito

    satisfeita, pois pensei que estas constantes visitas me atrapalhariam no trabalho. Mas

    o despertar e perceber diverso da presena destas amigas aranhas em meu escritrio

    se tornou o foco. O que elas estariam querendo me dizer? Primeiro descobri algumas

    pequenas, de pernas finas e compridas, elegantes. Em seguida apareceram as

    menores, porm com o corpo mais gordinho e patas curtas. Algumas escalam as

    paredes bem lentamente, outras gostam de se esconder atrs de mveis e objetos,

    mas so bem geis na fuga, quando descobertas.

    Neste momento de investigao aracndea, cai em minhas mos o texto O Tao

    da Teia, de Ana Maria Machado. Era isso! Minhas ilustres visitantes me despertavam

    para a tecelagem do pensamento, caminhando fio por fio, me conduzindo ao longo de

    espirais, labirintos e caminhos, mostrando-me que, para considerarmos um trabalho

    pronto, necessrio e fundamental: termos a pacincia e a perseverana da aranha

    ao tecer sua teia. Eu acabara de encontrar o fio da meada.

    Mas a observao comeou ainda antes. Sempre com Gianni Ratto e a pesquisa

    amadurecendo na mente, fui cursando as disciplinas da ps-graduao. Em um fim de

    tarde, aps uma aula de Design e Cenografia, me despeo para ir ao lanamento do

    livro Fio a Fio, de Gilda Chataignier. Por coincidncia, meu orientador tambm estava

    indo ao evento e compramos juntos, cada um, a sua edio. Achei que era um sinal.

    Alguns meses depois, no processo terico de contextualizar a criao de figurinos 5 RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 294.

  • 7

    feitos a partir de objetos reutilizveis para o espetculo de Teatro N Kantan, de Yukio

    Mishima, retomo o livro com mais cuidado para que minha colega Beatriz Luz o utilize

    em seu captulo onde versa sobre a percepo e reutilizao de materiais orgnicos e

    inorgnicos. O debate sobre o assunto nos aproximou.

    No semestre seguinte seramos ambas convidadas para auxiliar e aprender na

    monitoria da disciplina de Indumentria e Cenografia no Bacharelado em Artes

    Cnicas da USP, convidadas e amparadas pelo meu orientador, no Programa de

    Aperfeioamento de Ensino (PAE), para o qual fui aprovada a participar. A primeira

    reunio, para estruturar o semestre, foi na abertura da exposio Bordados da

    Caatinga, no Sesc Pinheiros, onde assistimos ao show Vozes do Trabalho e paramos

    para ouvir o projeto para o curso e avaliarmos qual poderia ser nossa contribuio. Foi

    a que pulavam as idias: Giotto, Bosch, anjos, demnios, assemelhados, fio, tecer,

    materiais, Ariadne, Ana Maria Machado, irmos Grimm... ops! Novamente O Tao da

    Teia. Por coincidncia, eu havia comprado um dia antes a verso oficial de

    Rumpelstiltskin, de 1857, para a minha filha. Naquele texto, Ana Maria Machado

    comenta sobre a descoberta da origem do conto dos irmos Grimm, que tem sua

    primeira verso em 1808, de uma verso oral de Mademoiselle LHeritier, de 1798,

    que se chamava Ricdin-Ricdon. E ela percebe algumas mudanas significativas, sociais

    e econmicas, em relao perspectiva feminina, que aconteceram nesse meio

    sculo, com o texto e com os txteis, com as mulheres tecels.

    Ok. Mas o que aranha e percepo tm em comum com Gianni Ratto? O alerta

    de uma viso para um modo de anlise comparativa, histrica, estrutural. Gianni j

    vinha da Europa com um sentido do que era histria, de como pensar a arquitetura

    teatral e, principalmente, a roupa, que significa pensar sobre a memria, mas

    tambm sobre poder e posse. 6

    Tecer a teia da sua vida por meio das fases de criao de uma indumentria.

    Este o guia para a diviso desta pesquisa. Trazer um pouco da histria por meio da

    sua vivncia, da sua formao. Entender a relao da sua viso de arte com a

    importncia da observao do ser feminino e suas vestes. Como a sensibilidade para a

    percepo no modo de vestir pode revelar a alma das personagens em suas peas...

    6 STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx In MACHADO, Ana Maria O Tao da Teia: sobre textos e txteis. In

    Estudos Avanados 17 (49), 2003, p. 182.

  • 8

    Toda esta experincia narrada no primeiro captulo da dissertao, quando vrios

    momentos da formao e vida de Gianni so repassados, tendo como ponto de partida

    a anlise da relevncia da indumentria nas suas vivncias, desde a Itlia at o Brasil.

    O Captulo 1 A Formao, tem por subttulo O croqui de uma vida.

    No captulo 2 Os figurinos de Gianni Ratto, com subttulo As costuras de

    um caminho, uma parte dos figurinos realizados por Gianni Ratto, na Itlia e no

    Brasil, analisada e registrada com croquis e / ou fotos. A influncia de Ebe Colciaghi

    tambm percebida em imagens. Alm da importncia de Luciana Petruccelli, na

    responsabilidade dos seus figurinos nos primeiros anos no Brasil, e de outras

    mulheres que com ele trocaram experincias no campo da criao de costumes

    teatrais. A est a relevncia deste trabalho. Vrios momentos da crnica de uma

    vida, ao se unirem, trazem a vivncia de um profissional que dedicou tanto tempo s

    nossas artes cnicas.

    Por meio da catalogao, organizao e digitalizao das imagens de seus

    trabalhos h uma hiptese natural de que parte da histria do teatro realizado por

    Gianni Ratto seja recuperada com este trabalho. Mas por que uma parte? Porque

    mesmo para quem vive o momento, o que permanece registrado na memria so

    somente flashes, como comenta Gianni (1996, p. 79):

    A busca no passado feita atravs das imagens que foram registradas, pois a memria impalpvel, no se solidifica no pensamento... Quem

    inteligente? A histria. Ela a sedimentao diria da transformao da crnica em algo que no pode ser mexido. A crnica algo que

    passa, se sedimenta. E ela se transforma em histria quando vrias crnicas se juntam para criarem algo slido. O tempo uma varredura mgica que recolhe tudo e joga no grande poo do lixo. E morre gente

    todo dia. Mas o que morre a crnica, a histria fica. 7

    Para que o trabalho seja no s relevante, mas tambm original apesar de

    uma pesquisa sobre figurino teatral no Brasil j ser, por si s, original, devido s

    parcas publicaes na rea o Captulo 3 Anlise comparativa dos figurinos

    para a pera Elixir de Amor, que possui o subttulo A escolha de bordados traz

    um estudo comparativo de trs montagens do mesmo espetculo (Elixir de Amor) em

    diferentes fases de sua carreira: como cengrafo para a direo de Giorgio Strehler,

    7 RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 79.

  • 9

    no Teatro Scala, de Milo (1951), trabalhando ao lado da figurinista italiana Ebe

    Colciaghi. Quando dirigiu, criou cenrios e figurinos para a o Theatro Municipal de So

    Paulo (1971). E, finalmente, quando concebeu os cenrios e figurinos para a direo

    de Antonio Pedro, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1983).

    Vrias poderiam ter sido as opes para anlise. Mas ao escolher trs

    montagens do mesmo espetculo, um estudo comparativo das diferentes

    interpretaes, ou realizaes, para o mesmo texto, pode denunciar mtodos

    semelhantes na criao e execuo do trabalho. Ou no. Est a o interessante.

    Os figurinos da pera Elixir de Amor se apresentaram para mim em agosto de

    2005, quando me juntei ao Traje em Cena. L, na Central de Produo Francisco

    Giacchieri:

    Foram escolhidos para o incio do trabalho de catalogao 28 espetculos, dentre os 80 supostamente existentes no acervo. O critrio utilizado foi o de antiguidade a partir do mais antigo, de 1948 e de relevncia dos figurinistas presentes no acervo Gianni Ratto, Aldo Calvo e Dener, por exemplo. Esses espetculos foram

    entendidos pela coordenao do projeto como sendo de valor histrico e que deveriam compor futuramente o Arquivo Permanente do acervo.8

    Quando da reunio com as pesquisadoras para definir as pautas, me ofereci

    para cuidar dos trabalhos de Gianni, pois eu j tinha acesso ao seu acervo pessoal - e

    ao prprio - devido pesquisa para o livro Vestindo os nus, no qual Gianni um dos

    entrevistados. No Traje em Cena, o primeiro passo, depois da organizao estrutural

    do local de trabalho e da separao dos figurinos por peras e higienizao, foi iniciar

    a criao do Banco de Dados.

    O Banco de Dados foi dividido em trs grandes reas: Catalogao,

    Dossi e Conservao. A Catalogao est subdividida em Traje, Imagens, Trnsito e Dados da Catalogao. O Dossi de Pesquisa subdivide-se em Histrico Original, Histrico no Theatro Municipal e

    Figurinista. A Conservao no tem subdivises.9

    Em paralelo Catalogao foi elaborado o Dossi de Pesquisa. Cada

    pesquisador deveria alimentar o Banco de Dados com os histricos e dados do

    8 AZEVEDO, Elisabeth; VIANA, Fausto. Breve Manual de Conservao de Trajes Teatrais, 2006, p. 52.

    9 AZEVEDO, loc.cit.

  • 10

    figurinista correspondente. Iniciei minha pesquisa pela busca dos trajes criados por

    Gianni existentes no acervo. Foi quando conheci os coloridos trajes de Adina e

    Giannetta, Dulcamara e Nemorino, entre tantos outros. Das criaes de Gianni para o

    Municipal, a pera Elixir de Amor se destacava pelo seu colorido e alegria. Inclusive,

    quando organizamos a exposio Gianni Ratto no Municipal, um lugar de destaque foi

    dado para estes figurinos, onde ao lado de cada um foi colocado o croqui

    correspondente, encontrados no acervo do Theatro e restaurados para a exposio.

    Depois de captados todos os dados possveis, agendei uma entrevista com

    Gianni Ratto. Era uma calma tarde do dia 05 de outubro de 2005 e sua casa, no bairro

    do Pacaembu, estava comeando a entrar em obras. Mesmo com o estado de sua

    doena bastante avanado, conseguimos sentar para um caf na sala de jantar. A

    conversa durou quase uma hora, porm o pensamento de Gianni, apesar de lembrar

    de histrias muito curiosas, divagava. Com o problema de audio, outra dificuldade

    foi o apito quase ininterrupto do aparelho auditivo que o distraa. Mas, como sempre,

    Gianni mantinha seu humor e sarcasmo.

    Antes de entrarmos na entrevista propriamente dita, ele reclamava do baixo

    nvel cultural dos enfermeiros de hoje em dia, irritado por seu ajudante no ter

    entendido uma piada que contou durante o banho, j que no fazia idia do que seria

    um obelisco. Curiosidades parte, mesmo assim conseguimos lembrar algumas

    histrias muito interessantes de sua passagem pelo Theatro Municipal.

    Sua lembrana desta montagem de Elixir como um espetculo alegre e

    generoso. Gianni fez questo de recordar, tambm, a montagem para o Municipal do

    Rio de Janeiro, que foi um escndalo, (...) porque o diretor e o regente que

    trabalharam comigo l, cantores, atores... a gente queria fazer um espetculo que

    fosse autenticamente, no diria pornogrfico, mas quase, porque o Elixir de Amor .

    Alm de o encontro ter motivado a escolha pelo tema desta pesquisa de dissertao,

    estas observaes serviram de estmulo para um mergulho nas diferenciaes destas

    montagens e, consequentemente, para este captulo final.

    A poucas semanas de terminar este trabalho de pesquisa sobre Gianni,

    procurando na internet mais informaes sobre o bal de Aurlio M. Miloss, Marsia,

  • 11

    qual a surpresa quando encontro um novo dado: um livro virtual 10, recm colocado

    na rede, sobre o bartono Tito Gobbi, com seu currculo completo, inclusive com a

    ficha tcnica de cada espetculo. Maior ainda foi a surpresa ao encontrar uma

    montagem da pera LElisir DAmore, para a qual Gianni Ratto foi o responsvel pelos

    cenrios e figurinos, em 1950! Antes mesmo da montagem que ser analisada no

    captulo 3, de 1951, com figurinos de Ebe Colciaghi e cenrios de Gianni Ratto, no

    Teatro Scala, com direo de Giorgio Strehler. Reproduzo abaixo as informaes:

    LElisir DAmore

    Estria: 13 de setembro de 1950 LONDRES, ROYAL OPERA

    HOUSE, COVENT GARDEN (produo do Teatro Scala)

    Maestro e Diretor: Franco Capuana

    Maestro do Coro: Vittore Veneziani

    Direo: Mario Frigerio

    Cenrios e Figurinos: Gianni Ratto

    Diretor Cenogrfico: Nicolas Benois

    Adina Margherita Carosio

    Nemorino Ferruccio Tagliavini

    Belcore Tito Gobbi

    Doutor Dulcamara talo Tajo

    Giannetta Silvana Zanolli

    Rcitas: 15, 18 e 20 de setembro de 1950.

    Esta foi uma produo do Teatro Scala, apresentada em Londres, segundo

    Frank Hamilton que, consultado por e-mail sobre a veracidade da informao, enviou

    duas fontes nas quais constam os crditos de Gianni Ratto como o responsvel pelos

    cenrios e figurinos:

    LA SCALA. Tito Gobbi alla Scala: nel XX anniversario della scomparsa. Milano: La

    Scala, 2004, p.72. TINTORI, Giampiero. Duecento anni di Teatro alla Scala: Cronologia opere-balletti-

    concerti 1778-1977. 1979, p.105.

    10

    HAMILTON, Frank. Tito Gobbi: a partial performance chronology. Compiled by Frank Hamilton, 2008.

    http://frankhamilton.org.

  • 12

    Como no possumos imagens desta nova montagem descoberta, realizaremos

    neste captulo 3 uma anlise comparativa das trs criaes, montadas em diferentes

    momentos da carreira de Gianni Ratto. Este captulo procurar teorizar seu

    movimento criador, desmembrando e aproximando-se das camadas construtivas de

    cada obra e do possvel amadurecimento artstico que se manifesta por elas.

    Na Concluso, de subttulo O Arremate, procuramos ver qual o problema de

    Gianni Ratto com a palavra mestre. A etimologia vem do latim magister, aquele que

    manda, dirige, ordena, mas tambm o que guia, conduz, ensina. Jesus aconselhava os

    discpulos a no chamarem a ningum de Mestre, porque o verdadeiro Mestre um

    s, Deus. Mas se assumiu como tal, pois dizia ter conscincia de ser o enviado. Vs

    chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou (Jo.13,13). Ser discpulo de

    Cristo significa, no apenas escutar os Seus ensinamentos, mas imitar a sua coerncia

    de vida. O mestre introduz o discpulo numa sabedoria, numa viso da vida. O

    conceito no muito comum no Antigo Testamento e aparece somente no judasmo

    tardio. Isto deve-se ao lugar central da Palavra de Deus como fonte da sabedoria. 11

    A partir do sculo XIII, o mestre o comandante, o maestro. J depois do

    sculo XV, o ttulo se torna acadmico. De qualquer forma, sempre representa aquela

    pessoa que dotada de saber, competncia e talento em alguma cincia ou arte. No

    parece ser a este mestre que Gianni se opunha, mas ao que, na histria da arte,

    considerado como aquele que forma discpulos para trabalhar, muitas vezes, na

    mesma obra, seguindo os conceitos e ensinamentos do professor. Ou mesmo aquele

    anterior da histria da religio, j que Gianni, tendo estudado dos 9 aos 12 anos em

    colgio interno, conhecia bem as escrituras. A viso da culpa e do pecado impostos

    pelo catolicismo o assustava, tais como os temas trabalhados na Quaresma: o horror

    do pecado, os terrveis castigos, as cruis punies, o inculcar (a tentativa de

    inculcar) em ns a idia da autopunio, da confisso assustada, do jejum como

    disciplina, do silcio, da vontade de expiar a morte do Cristo como se fssemos

    culpados da lana e do vinagre, da Via Crucis e do Calvrio. 12 Mesmo assim, Gianni

    Ratto sabia usar dos artifcios do Mestre, como o prprio assume quando disse que O

    trabalho com os atores, assim como com os alunos de qualquer disciplina,

    11

    JOS, Cardeal-Patriarca. Seguir a Cristo como discpulo, 28/03/04. In http://www.patriarcado-

    lisboa.pt/vidacatolica/vcnum16/3_05_05%20Catequese%20Quaresmal%2004.doc, em 08/05/08, s 01:41. 12

    RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 93.

  • 13

    fundamenta-se (...) num inevitvel ato de seduo centrado no eixo da atividade a

    ser realizada. (No esqueamos que Cristo foi um sedutor). 13

    Provavelmente Gianni se opunha tambm aquele mestre da marinha,

    geralmente o mais antigo do navio, que por orientar os marinheiros, tratado de

    senhor. Mas apesar de esta definio parecer contrria sua filosofia, Cleyde

    Yconis revelou que se incomodava muito por v-lo, quando foi para o TBC, ser

    chamado de Sr. Gianni pelo elenco que veio com ele da Companhia Maria Della

    Costa. Segundo ela, nenhum outro diretor estrangeiro havia sido chamado com esta

    deferncia. Mas Maria Della Costa, que no foi para o TBC, estranhou o fato, pois

    disse que na sua Companhia lembra de os atores sempre o tratarem por Gianni, mas

    sempre com muito respeito.

    Chego concluso de que talvez eu tenha mesmo cometido um erro. No em

    cham-lo de mestre no livro, mas sim no artigo que utilizei antes da palavra. Deveria

    ter escolhido o indefinido em lugar do definido, um ao invs de o. Ele no O

    Mestre. Acontece que no livro Vestindo os nus o desejo era traar a importncia do

    figurino teatral e um perfil dos figurinistas em atuao naquele momento:

    Este livro o resultado de mais de trinta entrevistas que registram uma breve histria do figurino no Brasil, como e por quem ele criado

    contemporaneamente e qual a sua importncia cnica. Minha inteno no foi fazer nenhum julgamento de valor e o mais difcil foi escolher, dentre tantos profissionais criativos e competentes, os que teriam um

    espao para retratar, atravs do relato de suas experincias, um pouco de seus modus operandi. 14

    Naquele momento Gianni era O Mestre. Hoje poderamos dizer que Gianni foi

    Um Mestre, entre outros que houve. O diretor do Teatro Augusto Boal, no Museu

    Nacional de Braslia, em 13 de maro de 2008, salienta a idia de fomentar a

    pedagogia ao invs da educao: educar quer dizer mostrar o que j se sabe, vem do

    Latim educare = mostrar o caminho; j a pedagogia colocar o jovem ou outra

    pessoa em condies de seguir seu prprio caminho. 15 Talvez Gianni teria preferido

    ser retratado como Um Pedagogo, afinal preocupar-se com o outro ocupava grande

    parte do seu trabalho.

    13

    RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 200. 14

    MUNIZ, Rosane. Vestindo os nus: o figurino em cena. Rio de Janeiro: Ed. Senac, 2004. p. 17. 15

    http://www.cultura.gov.br/site/?p=10924, em 01 abr. 2008, s 15h.

  • 14

    A preocupao do xito nunca ocupou minha mente, muito mais dirigida e orientada para conquistas qualitativas dentro do prprio

    espetculo (...) Sempre achei que a preocupao primeira de meu trabalho deveria ser a de dar o melhor do meu melhor a meus colaboradores. O que

    invariavelmente me apaixonou, e continua me apaixonando, foi a conscincia de ter condies de agir no subconsciente do ator (e

    dizendo ator quero dizer cengrafo, figurinistas ou compositor, pois tambm agem no espetculo, interpretam como o prprio intrprete) fato este mais gratificante que o prprio xito do espetculo. Diria at,

    embora parea um disparate, que o mais importante do meu trabalho de direo consiste em alcanar o melhor resultado interpretativo. Isso

    muitas vezes foi conseguido; outras no.16

    o que veremos ao tecer as muitas meadas de fios que laaram a vida de

    Gianni Ratto.

    16

    RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 199.

  • 15

    CAPTULO 1

    A FORMAO

    (O croqui de uma vida)

  • 16

  • 17

    A janela, enquanto abertura para o ar

    e para a luz, simboliza receptividade.

    Se redonda, a receptividade da

    mesma natureza que a do olho e da

    conscincia. Se quadrada, recebe o

    que enviado do cu. 17

    Uma janela retangular pode ampliar tanto a visibilidade do horizonte ao ponto

    de liberar a inspirao e criatividade. E se pensarmos o cinema como uma janela

    aberta para uma seqncia de idias, presumimos a imaginao de uma criana,

    ainda um tanto livre de preconceitos ou moralidades, ao se defrontar com uma tela

    repleta de imagens. Um novo mundo que estimula, mas que tambm revela as

    aptides do pequeno Giovanni Ratto desde a mais tenra idade.

    Um dia tomei uma deciso; a esta altura eu devia j estar com quase cinco anos. Depois de uma sesso de cinema, procurei as revistas de

    moda que minha me costumava comprar e recortei uma srie de figurinos que fui colar na parede do pequeno quarto sem janelas; do banheiro retirei uma toalha branca com a qual os cobri

    cuidadosamente; as quatro cadeiras da cozinha me permitiram criar uma platia. Contemplei satisfeito meu trabalho, certo do resultado

    final. Chamei mame, a conduzi para o melhor lugar, apaguei a luz... e nada aconteceu. Voltei a acender a luz, repeti o ritual de conduzir

    minha me para a melhor cadeira, apaguei novamente a luz e, mais uma vez, nada aconteceu. A eu tive uma crise de desespero. Foi somente muitos anos mais tarde que descobri qual tinha sido o

    problema; curiosamente a descoberta me serviu para solucionar a exigncia tcnica de um cenrio deveras complexo. 18

    No seriam poucos os cenrios de Gianni Ratto que exigiriam uma tcnica

    complexa. Esta descoberta pode tranquilamente ser exemplificada com a magia

    criada pelo cengrafo no seu primeiro cenrio realizado no Brasil, em O Canto da

    Cotovia, quando surgiam em cena, inesperadamente, os vitrais de uma catedral. Um

    efeito que Gianni havia realizado na Itlia para solucionar a mudana de cenas de Le

    Notti DellIra.

    Entre as obras que apareceram imediatamente no ps-guerra e inspirada nos eventos comuns a toda uma Europa sob ocupao

    tedesca, Le notti dellira (junho 1947) aparece como um testemunho vivo de um pensamento poltico e moral e, da parte teatral de Grassi e Strehler, uma contribuio atualizao da histria e ao modo de

    interpret-la. A ao se passa sobre dois planos diferentes: aquele mais realstico (...) e aquele mais declaradamente teatral. Uma sala

    17

    CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos. RJ: Jos Olympio, 1988, p.512. 18

    RATTO, Gianni. A Mochila do Mascate. SP: Hucitec, 1996, p.36-37.

  • 18

    de visitas da casa de Bernard Bazire transforma-se, graas a um efeito de luz e ao uso de transparncia, em uma ponte ferroviria que

    os soldados devem explodir. Passar de um cmodo de visitas de um farmacutico de uma provncia francesa para uma estrada de ferro constitui-se, naturalmente, tambm um problema tcnico nada fcil.

    Finalmente encontra-se a soluo: a tapearia verde e amarela do aposento da casa se transforma, pouco a pouco, graas ao efeito de

    luz, deixando aparecer a estrutura metlica da ponte. (...) Os mveis e objetos do interior burgus assumem assim, na nova perspectiva, o aspecto de ferro-velho, de destroos de uma periferia abandonada. 19

    A atriz Maria Della Costa, que interpretava o papel principal em O Canto da

    Cotovia, comenta:

    Ele fez um cenrio de uma discrio... De uma beleza... Quando viajo Europa e vejo aqueles vitrais das catedrais, me lembro muito do

    Gianni. Porque tem cengrafos que no se importam com o texto e querem apenas que o seu trabalho aparea. Mas O Canto da Cotovia entrava no cenrio. Tudo de forma simples: papis coloridos que ele

    recortou e colou por trs. Quando iluminava, ficava um autntico vitral! A genialidade do Gianni Ratto est a.

    Ele viveu para o teatro, apesar das mulheres, que acho que tambm foi importante para ele... Alis, tambm acho que devo elogiar isso:

    ele teve bom gosto! Era homem. Um homem que gostava das mulheres, da feminilidade. Ele aprendia com as mulheres e com a sensibilidade. 20

    19

    STREHLER. Il Lavoro Teatrale: 40 Anni di Piccolo Teatro 1947-1955. Piccolo Teatro di Milano / Teatro dEuropa: Vallardi & Associati Editori, 1987, p.11. (traduo: Rosane Muniz) 20

    Maria Della Costa, em depoimento autora, em abril de 2008.

    Figura 1 Dois cenrios de Gianni Ratto transformados com o efeito da iluminao. esquerda, em Le Notti DellIra, em 1947, na Itlia, com o Piccolo Teatro. direita, em O Canto da Cotovia, em 1954, no Brasil, com a companhia de Maria Della Costa.

  • 19

    Uma mulher: sua me. A primeira platia para um frustrado espetculo, que

    viria a inspir-lo tantas vezes ao longo da vida. Assim como o foi esta primeira forte

    figura feminina na vida de Gianni, fundamental na sua vida artstica, principalmente

    no que se refere sensibilidade para sua criao como figurinista, como podemos

    perceber no exemplo lembrado pelo amigo de tantos anos, Luciano Antonini:

    Quando Gianni trabalhou em Lamore delle tre melarance (dezembro de 1947), ns fomos ao Scala ver. Gianni era brilhante. Sua me era

    uma tima pianista e fazia todos os figurininhos da cenografia. Era ela quem fazia as maquetes. E o padrasto de Gianni era Crescuolo, um pianista de fama. J desde pequeno, Gianni era um menino prodgio.

    Quando amos sua casa, podamos discorrer sobre qualquer argumento. Era um contnuo falar, brincar, conversar.21

    Segundo Gianni Ratto, sua me, Maria, era uma mulher inteligente, sensvel e

    forte. Nascida em Gnova, viria a dar a luz a Gianni no dia 27 de agosto de 1916, em

    Milo, ainda muito nova. A infncia de Gianni foi basicamente ao lado desta figura

    feminina, j que seu pai no entrou mais em casa quando ele ainda tinha quatro anos.

    Seu perfume, seu frescor, quando de manh levantava iluminada em contraluz pelo

    sol que entrava pelas janelas desprovidas de cortinas, me comunicavam uma emoo,

    uma alegria... 22 com a qual o pequeno conviveu at os oito anos, quando foi

    internado em um colgio, em Nervi, a doze quilmetros de onde sua me morava.

    Durante o exlio, despertou a admirao por uma outra mulher: a poetisa,

    Rossana Zezzos (Ror), amiga de sua me, que o presenteava com livros como

    Dickens, Conrad, Verne, Andersen, Grimm... que viriam a dar-lhe as bases do amplo

    mundo intelectual que conquistaria ao longo de sua vida. Ror tinha personalidade e

    foi presa por se vestir como homem, o que adorava fazer.

    Foi nesta mesma poca que Gianni conheceu Leandro Criscuolo, pianista

    famoso, que se relacionou por muitos anos com sua me, at se casarem quando

    Gianni j tinha 22 anos e prestava o servio militar obrigatrio. Ao transferir-se para o

    colgio de Cherasco com dez anos, outra escola de padres, ao mesmo tempo em que

    comeava a ter mais noo de si, aumentava seu senso de ironia e do grotesco.

    21

    Luciano Antonini, em depoimento autora, em julho de 2006. 22

    RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 50.

  • 20

    Mas foi aos treze anos que comeou a se sentir livre: retornou para Gnova e

    foi estudar Artes Plsticas no Liceu Artstico. Tinha aulas de arte e desenho e, nos

    intervalos das aulas, fugia com os amigos para o alto de um morro, onde tinham uma

    boa vista da cidade, para fumar e curtir o silncio da oportunidade que era poder

    observar. Ato que Gianni colocou sempre em prtica, com afinco, desde quando

    acompanhava sua me aos concertos da orquestra que se apresentava ma

    Universidade Popular.

    Desde os primeiros compassos eu esquecia onde estava e com quem estava. A msica me envolvia sensorialmente; (...) J na cama, eu custava a adormecer, repassando mentalmente uma das linhas

    meldicas que minha mente tinha gravado, at o momento em que os acordes tocados pela orquestra me apareciam reais invadindo-me

    com toda sua sonoridade: e a eu adormecia. Nunca mais no decorrer de minha vida consegui realizar o milagre daquele momento que me conduzia de uma viglia ansiosa para a inconscincia do sono juvenil. 23

    Sua adolescncia foi um perodo muito rico culturalmente. Europeu, acostumou-

    se a encontrar histria a cada curva que fazia. E aproveitava as oportunidades. Uma

    delas foi quando, aos 15 anos, soube por um amigo dos encontros semanais que

    aconteciam todas as noites de quarta-feira no apartamento de um filsofo, catedrtico

    e autor respeitado de livros de Esttica, Prof. Bartono. Participavam jovens e

    adultos, com idades que variavam dos quinze aos quarenta anos, todos interessados

    em cultura e arte. Gianni participava de todos os debates, sobre variados assuntos.

    Foi acerca desta poca que conheceu os amigos Nino, Luciano e Mario, com os quais

    manteria contatos sempre, mesmo que por cartas ou telefonemas, quando j no

    Brasil.

    Aos 17 ou 18 anos encontrei trs amigos. Nos conhecemos no Liceu Artstico de Gnova. Eu fiz um exame e entrei no quarto ano direto e Nino Bonamici, Mario Isolati e o Gianni quando souberam que eu tinha

    entrado direto, pularam muito. Os exames do liceu artstico de Genova eram feitos em Roma.

    Naquela poca fazia-se o editorial, competies entre estudantes, e Gianni ganhava sempre. Eu ganhava em arquitetura; Bonamici e Isolati, em pintura. Ns quatro sempre nos lembrvamos disso. Foi

    uma coisa extraordinria. 24

    23

    RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 82-83. 24

    Luciano Antonini, em depoimento autora, em julho de 2006.

  • 21

    Gianni Ratto tambm colaborou como desenhista para o arquiteto Mario Lab e

    para o irmo de sua esposa, Enrica, que era excelente pintor. At ir para Roma

    estudar na primeira escola de cinema do mundo, fundada em 1935, Centro

    Sperimentale di Cinematografia. Mas logo viria a guerra e Gianni teria que se alistar.

    Prestou o Servio Militar de 1938 a 1945, um perodo de ricas experincias, de

    soldado raso a oficial, que o fez descobrir que nada valia ter freqentado escolas de

    arte e cinema, ter me apaixonado pelo teatro, namorado, ter trabalhado com pessoas

    de alto nvel e freqentado meios onde a educao era, antes de tudo, uma postura

    cultural se no conseguisse se libertar da arrogncia de querer chegar verdade sem

    saber ao certo quem ela era. Seu senso de observao tornou-se ainda mais aguado.

    Foi nessa poca que conseguiu o lugar de escrivo no palacete do Comando

    do Regimento, o que lhe deu o direito de ter um carto de acesso ao quartel at meia

    noite. Desta forma, Gianni aproveitou para escrever e desenhar durante a noite.

    Fascinado pela potncia da cor no cinema, adaptou a Sonata a Kreutzer, de Tolstoi,

    em um roteiro onde fez as previses das possibilidades tcnicas e artsticas que a

    nova descoberta oferecia.

    A guerra lhe deu a chance de ter contato com a brutalidade e a misria. Depois

    de ver operrios judeus implorando por alimento e os oficiais da SS reprimindo-os por

    jogarem comida para fora do trem, Gianni acabou desertando com mais trs colegas,

    saindo da Grcia em direo Itlia, em um roteiro que duraria dois anos. Com o fim

    da guerra, ficou em Gnova alguns meses trabalhando como desenhista com o

    arquiteto Mario Lab e mantendo contato com os amigos que atuavam em teatro. At

    ir para Milo, quando j em 1946 estaria retornando s suas atividades artsticas,

    desta vez, profissionais. Fez parte da comisso julgadora do concurso internacional

    para a reconstruo do Teatro Carlo Felice, em Gnova (figura 2), para recuper-lo do

    amontoado de escombros nos quais se transformou aps a guerra.

    Figura 2 Teatro Carlo Felice, em Gnova.

    (Foto da autora)

  • 22

    Gianni Ratto era um italiano exigente que acreditava na existncia do teatro

    somente se houvesse paixo, poesia, amor e tentativas e medo de morrer para

    sobreviver. Esta era a potica deste profissional dos palcos, que em oito anos de

    trabalho na Europa, realiza mais de 120 espetculos (entre teatro dramtico, lrico,

    musical, de dana, de revista etc.). No s atuou constantemente ao lado de Giorgio

    Strehler, mas tambm colaborou com Stravinski, Mitropoulos, Mario Landi, Orazio

    Costa e tantos outros. Trabalhou para a Companhia Benassi-Torrieri, fundou o Piccolo

    Teatro de Milo, ao lado de Giorgio Strehler e Paolo Grassi onde trabalhou como

    diretor tcnico e cengrafo oficial de 1946 a 1953, e tambm foi vice-diretor tcnico

    do Teatro Scala, para o qual criou diversos cenrios e figurinos, destacando-se a

    pera La Traviata (que veremos no captulo 2, com mais detalhes sobre sua relao

    de trabalho no Piccolo e no Scala). Foi neste perodo que se iniciou sua parceria com

    Ebe Colciaghi. Ele nos cenrios e ela nos figurinos. Vamos analisar a influncia desta

    figurinista em seus trabalhos posteriores.

    Nunca recusei um convite de trabalho: eu precisava aprender minha profisso e tudo que oferecesse uma compensao gratificante era

    bem-vindo. Revistas, shows musicais, pera, espetculos dramticos, aceitava todos, feliz por ter sido procurado, para poder aprofundar meus conhecimentos e... sobreviver. Passava dias e noites nos teatros

    onde se montasse um espetculo e nos atelis onde eram realizadas as cenografias pictricas e as construes cenogrficas. Nenhuma escola

    poderia me ter dado noes to ricas e exatas como as que conseguia

    Figura 3 Gianni Ratto cumprimentando o

    elenco de Giuditta, no Teatro Scala, 1951.

    (Arquivo Scala)

  • 23

    com artistas-tcnicos e artesos; e eu amava o contato singelo com homens simples que gostavam do que faziam, orgulhosos de sua

    competncia. 25

    Muitas histrias sobre suas experincias de trabalho na Itlia, na rea da

    cenografia, poderiam ser retratadas aqui, porm, melhor l-las no livro de punho do

    prprio Gianni Ratto.26 Para esta pesquisa, nos interessa entender seu contexto

    histrico na criao da indumentria teatral que realizou em ambos os pases.

    Precisamos entender este incio de vida teatral profissional, desde o Piccolo Teatro,

    como conta o diretor Giorgio Strehler:

    O Piccolo nasceu, do ponto de vista da cena, sob o gesto de um cengrafo e de uma jovem figurinista: Gianni Ratto e Ebe Colciaghi. So eles que durante os primeiros anos, quase um decnio, levaram

    adiante o discurso visual do Piccolo. Ratto, naquele momento cengrafo recm-nascido, construiu os primeiros espaos para os nossos espetculos. O primeiro croqui, apenas esboado, com

    esforo, com pesquisas de centmetros, para poderem mover-se (o Piccolo tinha um palco ainda menor que o atual!) com o Lalbergo dei poveri. E era sua a primeira inaugurao do Arlecchino servitore di due padroni; seu o dispositivo cnico para Le notte dellIra; seu o Ricardo II, espetculo chave da nossa juventude. 27

    Strehler foi um diretor de teatro italiano e ator; figura proeminente no teatro

    europeu ps-2 Guerra como co-fundador e diretor artstico (1947-68, 1972-97) do

    Piccolo Teatro de Milo, o primeiro importante teatro regional moderno italiano. Ele

    dirigiu mais de 250 peas, mais notadamente trabalhos de Shakespeare, Bertolt

    Brecht e Carlo Goldoni. Tambm dirigiu peras no Teatro Scala de Milo, foi o ator

    principal da sua produo pica de Fausto e ocupou o Senado Italiano por um

    mandato, quando Gianni j estava no Brasil h mais de trinta anos.

    Apesar de j ter trabalhado com outros diretores e figurinistas, antes de formar

    o Grupo do Strehler, a maioria dos trabalhos de Gianni em seu pas natal foi

    realizada em parceria com Colciaghi, no que diz respeito visualidade do espetculo.

    Nesta poca, o grupo conseguia realizar o to desejado rompimento com os padres

    teatrais, como o prprio Gianni Ratto comenta, em outubro de 2005, ao pesquisador

    Carlos Eduardo Carneiro:

    25

    RATTO, Gianni. Mochila do Mascate. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 46. 26

    Vide Bibliografia. Gianni Ratto escreveu cinco livros: A Mochila do Mascate (1996), Antitratado de Cenografia

    (1999), Crnicas Improvveis (2002), Hipocritando (2004) e Noturnos e outros contos fantsticos (2005), que

    permitem um mergulho na sua potica criativa. 27

    STREHLER, Giorgio. In GLI SPAZI DELLINCANTO (Bozzetti e figurini del Piccolo Teatro: 1947-1987). Milano: Edizione Amilcare Pizzi, 1987, p.7-8.

  • 24

    O grupo foi a conseqncia de um inter-relacionamento entre gente jovem de teatro, que aspirava a uma ruptura definitiva dos processos

    das companhias dramticas profissionais ligadas ao obsoleto conceito do mattatore (o grande ator que arrasava com a sua interpretao excepcional, ou no, qualquer texto ou qualquer espetculo).

    Justamente com Strehler, Grassi, Jacobbi, Celi, Salvini, Orazio Costa, Giannini, Ivo Chiesa e um grande nmero de outros jovens talentos,

    iam se definindo novos conceitos que, pela prpria estrutura do teatro vigente, s encontravam vazo em espetculos espordicos para os quais atores donos de companhias (capocmicos e empresrios) interessados nos movimentos de aps-guerra, abriam os espaos do palco e seus magros oramentos. importante no esquecer que para

    tanto dispnhamos contrariando conceitos que ns achvamos bsicos de sete ou oito dias para ensaiar e estrear, para projetar e executar cenrios, figurinos e iluminao.28

    A direo de Giorgio Strehler, como um dos primeiros na figura do diretor /

    encenador, marca, ento, esta poca de transio. Gianni Ratto disse em entrevista

    que a grande fora dos teatros experimentais na Itlia, na dcada de 1940 e 1950,

    foi provocar polmica. O grande mrito do Piccolo, do Stabile de Gnova, foi o de ter

    proposto uma linguagem nova para o tempo deles.

    Mesmo assim, Gianni Ratto falou que para ele, nesta poca, era muito mais

    fundamental uma preocupao de carter esttico do que de aprofundamento de

    pensamento. A imagem imediata e a beleza como idias eram o mais importante. 29

    Mas relembra das influncias dramatrgicas dos textos e, ao comentar sobre o

    processo de criao de cenrios para a pea Ral, de Gorki, complementa seu

    pensamento: foi um processo de amadurecimento interpretativo, no qual a arte

    visual se transformou em uma arte interpretativa.

    No teatro regular do incio dos anos quarenta os diretores engajados, na maior parte das vezes, se limitavam a levantar a produo

    funcional. Nesta, permanecia o tema, e eles davam um estilo, enobreciam.30 Por isso, o autor Strehler, experimentadas as misrias

    da direo e das companhias itinerantes, se torna o mais decisivo adversrio da coexistncia entre o velho e o novo teatro: Muitos cmicos antigos se contorceram em mortes e envenenamentos [...]. Muito papelo [...], muitos gestos de aflio e de farsa, muito trabalho nos condenou [...]. Muita teatralidade.31

    28

    CARNEIRO, Carlos Eduardo. Mestres da Cenografia: Gianni Ratto. In Espao Cenogrfico News. Jun/2006. n 28,

    p.22. 29

    MUNIZ, Rosane. Vestindo os nus: o figurino em cena. RJ: Senac Rio, 2004, p.81. 30

    A mesma academia de arte dramtica, pelo menos aparentemente, ensinava a continuao do passado da importncia

    do teatro do primeiro ator. 31

    STREHLER, Giorgio. Condizioni di uma polemica, cit.

  • 25

    Era preciso retornar estaca zero da comunicao representativa,32 precisava negar de novo os artifcios deslumbrantes: o personagem escrevia Strehler no humano porque se move humanamente, porque vestidos, palavras, gestos, sentimentos so inerentes a todos33. E ainda: A oleografia34 insuportvel. Se o teatro oleografia [...] insuportvel 35.

    Neste livro36, encontrado no arquivo do Teatro Piccolo graas a uma citao em

    um artigo, Cludio Meldolezi escreve sobre a personalidade muito forte e,

    ocasionalmente autoritria, de Giorgio Strehler. O livro foi emprestado para consulta

    no Arquivo do Piccolo Teatro, mas com a ressalva de que eu o utilizasse com

    cuidado, j que Strehler no gostou do resultado e ficou incomodado pelo fato de o

    autor ter feito suas pesquisas tambm dentro do prprio arquivo do Piccolo, porm

    trazendo tona no s o lado criativo e de importncia de Strehler para a inovao

    cnica, mas dando espao para a crtica.

    Independente do momento do teatro italiano de um teatro de diretor, Gianni

    trazia a experincia que teve ao lado de Strehler com a harmonia da cena. Vittoria

    Crespi Morbio destaca, no livro Gianni Ratto no Scala, na Itlia, esta harmonia da

    cena nos espetculos os quais Gianni trabalhou com Giorgio Strehler:

    Os espetculos de Strehler e Ratto so concebidos nos mnimos

    particulares para poder funcionar com perfeio como sofisticados mecanismos de relojoaria. Uma encenao no aparece mais como a obra de um solista, mas, sobretudo de um coro que se soma s vozes

    do diretor, da figurinista, personificada na presena fiel de Ebe Colciaghi, do tcnico das luzes e frequentemente nos sons de Fiorenzo

    Carpi.37 Mas em 1954, com o desejo de alar vo pela direo teatral e tambm

    insatisfeito com a sua vida pessoal na Itlia, Gianni Ratto decide aproveitar a

    oportunidade, ao saber que havia brasileiros procurando por um diretor italiano, e

    mudar para o Brasil. Vai de Milo para Gnova e no dia seguinte pega o navio

    Eugnio C, da companhia de navegao Costa. Era um dia de janeiro: o tempo

    chuvoso, vento frio e cortante. Gianni viajou de terceira classe e era considerado um

    32

    STREHLER, Giorgio. Responsabilit della Regia, in Posizione, 10 out-10nov. 1942. 33

    idem. Disumano e teatro. In Eccoci, 1 apr.1943. 34

    Reproduo de um quadro a leo, feita de uma tela para outra, ou uma pintura feita por este processo. 35

    idem. Nota. Per um teatro pstumo, cit. 36

    MELDOLESI, Claudio. La Generazione dei Registi. In Fondamenti del Teatro Italiano. Florence: Ed.Sansoni, 1984,

    p.301-353 et passim. 37

    MORBIO, Vittoria Crespi. Gianni Ratto alla Scala. Milano: Umberto Allemandi & C, 2004, p.15.

  • 26

    emigrante. Dividia seu quarto com um vinhateiro, um tecelo e um torneiro mecnico.

    Depois de treze ou quatorze dias de viagem at o Rio de Janeiro, onde ficaram por

    dez horas, continuaram viagem para Santos. Pouco depois de chegar a So Paulo,

    escreve sua primeira carta38 para o amigo arquiteto Luciano Antonini, que aqui

    reproduzo. Algumas palavras no foram identificadas. Em negrito, observaes

    minhas:

    So Paulo, 28 de janeiro de 1954

    Caro Luciano, a viagem foi tima, salvo por apenas uma tempestadezinha no

    Golfo de Leone. Mas, depois de uma semana de permanncia aqui em So

    Paulo, j o esqueci.

    A chegada ao Rio foi emocionantssima, um espetculo, estupendo. Do

    ______, a cidade, todos os arranha-cus em uma natureza espetacularmente

    selvagem, se revela de repente. Se est, de verdade, em um outro mundo - no

    Rio uma parada de um dia com mais de 40 de calor (uma autntica ______) e

    no dia seguinte em So Paulo onde o sorriso luminosssimo de Luciana me

    acolheu dando-me as boas vindas.

    Sou hspede do meu empresrio (Sandro Polloni) no subrbio perifrico de

    So Paulo, em uma mansozinha fresqussima e limpa e moro com ele e sua

    companheira que a primeira atriz da companhia que dirigirei (Maria Della

    Costa).

    O Teatro, que ser inaugurado em abril-maio, est atualmente em

    construo e situado em uma bela rua, uma das mais belas avenidas da cidade

    (avenida 9 de julho). um prdio baixo, comprido que tem na parte dos fundos

    um pequenino arranha-cu, sbrio na arquitetura e agradvel de se ver.

    So Paulo uma cidade extraordinariamente dinmica e lembra um pouco

    Milo pela sua atividade. Situada a 800 metros de altura s.m. (sobre o mar).

    Tem um clima suportvel, neste perodo so freqentes os temporais e a

    noite o ar fresqussimo. Em Trememb, o subrbio onde moro, o clima

    esplendido e a noite se dorme que um prazer. Contudo, se continuo assim

    dormirei sempre menos porque a segunda noite que vou pra cama s quatro

    da manh. Uma vez porque permanecemos conversando at tarde, outra porque

    fomos casa de um colega meu italiano que nos convidou aps um espetculo.

    Trs dias depois da minha chegada fui convidado a uma recepo em

    homenagem aos arquitetos participantes de um congresso de Bienal, os

    convidados eram... quinhentos! Aqui, dada a riqueza existente, recepes desse

    gnero so freqentes e aps a primeira vez j no causa mais surpresa.

    O teatro pelo qual trabalharei tem quinhentos lugares.

    Aqui j me rotularam (graas aos meus compatriotas) publicando que eu sou

    um cengrafo e no um diretor, mas isso bom porque me d publicidade. No

    s dirigirei um teatro e o transformarei em um organismo vlido mas serei

    tambm o diretor porque a confiana que demonstram em mim aqui, me faz

    sentir capaz.

    Essa uma aventura que ou vai ou racha, mas se vai, vai de verdade.

    Daqui a poucos dias, na ABITAT, que uma importantssima revista de arte,

    sair um grande artigo meu com fotografias (muitas) dos meus trabalhos. Daqui

    a alguns dias Radio Gazeta (que corresponde ao nosso Corriere della Sierra) far uma entrevista comigo e daqui a um ms, no Museu de Arte desta cidade,

    realizarei uma palestra sobre teatro.

    38

    Traduo de Ariovaldo Policastro e da autora. Grifo nosso.

  • 27

    Luciana (Petruccelli, mulher de Gianni, na ocasio) me extremamente

    til em tantas coisas. Me apresentou a muitas pessoas e tinha preparado o

    terreno para que eu fosse bem acolhido. Por outro lado, meus hspedes so

    extremamente gentis comigo e se baseiam sobre a minha experincia e

    preparao. Te confesso que me encontro muito bem aqui em meio a esses

    arranha-cus que no me parecem to altos assim, dada a largura das estradas.

    A cidade me agrada e sobretudo h uma intensidade sibilante, subterrnea,

    igualmente viva e potencialmente eficaz que no deixa de estimular. Pode

    tambm ser que a um certo momento eu me estresse e me canse. Todavia as

    impresses so boas apesar de certo inevitvel diletantismo.

    Domingo irei a uma fazenda que me dizem que muito bela e rica; pertence

    a um brasileiro riqussimo (Flavio de Carvalho) e ___ arquiteto e pintor e ___

    ___ __. Luciana muito amiga da sua mulher (Maria Kareska) que uma

    cantora simpaticssima e inteligente.

    Devo escrever uma montanha de cartas e at hoje ainda no fui bem-

    sucedido em fazer-lo. Esta a primeira de uma longa srie.

    Te darei noticias mais detalhadas em seguida.

    Recordaes aos seus e, se o vir, Nino.

    Para voc um abrao afetuosssimo. Luciana te cumprimenta e te agradece

    pelos doces.

    Gianni

    Obrigado pelo seu graciosssimo presente.

    At-logo (no uma expresso imprpria. Quer dizer: Arrivederci presto.)

    Luciana

    Gianni estava muito animado com a chegada ao novo pas. Porm, logo em

    seguida ele pde perceber que a recepo de parte do grupo da cia. de Maria Della

    Costa no seria to acolhedora como ele esperava.

    Alm dos compatriotas que o ignoravam, Gianni tambm teve uma grande parte do elenco que ia contra ele. Tinha o Eugenio Kusnet, que tambm era diretor, um russo branco, maravilhoso, professor. Ele

    tambm teve muitos cimes, pois sendo o diretor, mentor intelectual da nossa companhia, das nossas queixas com a construo do

    teatro... Quando ele viu que contratamos um diretor italiano ficou profundamente magoado. Ele no demonstrou, mas trabalhou por baixo com um pouco do elenco contra o Gianni. Falava: Como

    contratar um diretor italiano, que no fala uma palavra de portugus e que vem dirigir uma pea aqui, se h diretores brasileiros? E eu

    ficava ali, tentando administrar, mas era difcil porque uma parte prejudicava, de propsito. E ficava aquela briga: Mas ele cengrafo! No, diretor. Mas cengrafo. No, diretor. Eu tive que segurar

    aquela barra e o Gianni chorou muito no nosso colo. Ele ficou muito magoado, at queria sumir. No queria ir embora, mas queria sumir,

    porque no estava conseguindo. A o chamei. Por isso que ele sempre me adorou. Porque eu sempre dei mo firme a ele, coisa que nem o

    Sandro soube fazer porque tambm era o homem do dinheiro, o produtor e estava envolvido nos ltimos preparativos do teatro. Ento

  • 28

    eu segurei a barra. Quando o Sandro perguntava como as coisas estavam, eu dizia que estava tudo bem. E assim foram andando os

    ensaios. 39

    Gianni no foi o primeiro, mas faz parte dos profissionais que vieram com

    experincia para este pas. O TBC contribuiu muito com o teatro brasileiro na

    introduo de uma sistematizao, na qual todos os elementos se tornam pensados e

    colaboram para a totalidade do espetculo. Mesmo que Gianni tenha participado na

    companhia somente como diretor e cengrafo, em Eurydice (1956), e acrescentando a

    funo de iluminador em Nossa Vida com Papai (1957), sua presena para a mudana

    no tratamento cenografia e ao figurino notvel nestes anos de formao do teatro

    brasileiro. Nestes dois trabalhos citados, Gianni no trabalhou como figurinista. No

    primeiro, comandou a criao de sua parceira Luciana Petruccelli, sua segunda

    mulher, que veio para o Brasil um pouco antes dele, preparando as bases para sua

    chegada. No segundo espetculo citado, ensinou e preparou Kalma Murtinho no que

    seria seu primeiro figurino profissional. Uma anlise mais especfica sobre as

    figurinistas est no captulo 2. Mas a atriz Maria Della Costa salienta que o trabalho de

    pensar no figurino j existia:

    Acho que naquela poca tinham grandes figurinistas tambm. No tanto quanto hoje, mas uma safra menor. Faziam-se coisas

    maravilhosas. Trabalhei no teatro mais realista, depois mais moderno, polmico, poltico... Umas roupas a gente comprava, ia pras lojas procura de tecidos mais envelhecidos, outras elas envelheciam.

    Naquela poca tinham tinturas pra fazer tingimentos... Hoje quero tingir certas coisas e sai a tinta. Era mais consistente antes. Porque

    teatro tem que lavar as roupas. Ainda mais no Rio de Janeiro, Brasil, pas tropical. Em algumas roupas d pra fazer o corte embaixo do brao, mas em certos vestidos no dava. Tinham mulheres que

    faziam um trabalho insano, cortavam, tingiam, costuravam essas roupas. 40

    Se tomarmos o comentrio da atriz, quando comenta que Era mais consistente

    antes, podemos fazer uma viagem para um tempo um pouco mais distante e lembrar

    Eduardo Victorino, em seu estudo Cem annos de theatro: a mecnica theatral e a arte

    de encenao41, que, ao avaliar a artesania teatral do incio do sculo, considera que o

    Brasil nunca esteve muito distanciado dos teatros mais adiantados europeus, no

    39

    Maria Della Costa, em depoimento autora, em abril de 2008. 40

    Maria Della Costa, ibid. 41

    SALA PRETA revista do departamento de artes cnicas eca-usp. Cem annos de Theatro: a mecnica theatral e a arte da encenao. SP: CAC, 2003. n3, p.182-189.

  • 29

    quesito da mecnica e arte da encenao, pois no tardava para que seguisse os

    exemplos. Em seu livro Para ser ator 42, Victorino recomenda:

    ARTE DE VESTIR, CARACTERIZAO E CONSELHOS

    100- A maneira de vestir, disse Buffon, to variada, como variadas

    so as naes. No theatro deve seguir-se esse preceito, variar, mas

    tendo em vista que condio indispensvel a propriedade no

    trajar.

    101 A caracterizao deve merecer todos os cuidados a quem pisa a

    scena. E no s a cabea que deve ser pintada, mas as costas das

    mos, o pescoo e at os braos, quando tiverem de se apresentar

    nus.

    106 A alma do personagem a desempenhar que compe o

    exterior. O contrrio princpio errado, porque todo o desempenho

    deve partir do caracter.

    107 O caracter moral o resultado do eu que se passa na alma,

    segundo Sergi, que affirma que a expresso de cada emoo parte da

    caracter moral para a exteriorizao physica.

    108 O mimetismo na Arte, um erro.

    109 Naturalidade no negligencia nem vulgaridade

    Mesmo que estas recomendaes sejam bastante atuais, a verdade do mundo teatral

    do incio do sculo no seguia suas recomendaes. Apesar de se pensar no figurino,

    a finalidade de sua criao ainda era muito mais esttica.

    42

    VICTORINO, Eduardo. Para sr actor. SP: Livraria Teixeira, 1936, p. 63.

    Figura 4 - parte do elenco de O Contratador de Diamantes, na escadaria do Theatro Municipal de

    So Paulo, em 1919. (FONTE: Cem Anos de Teatro em So Paulo, p.80)

  • 30

    Como inteno beneficente, a Sociedade de Cultura Artstica decidiu montar,

    em 1919, o espetculo O Contratador de Diamantes (figura 4), de Afonso Arinos. Os

    cenrios (segundo o livro consultado) foram assinados por Wasth Rodrigues, que,

    muito provavelmente, pode ter desenhado tambm os trajes, j que era sua

    especialidade desenhar trajes em aquarelas como o muito conhecido livro sobre os

    trajes do exrcito brasileiro. Mas o evento parece muito mais uma ao entre

    amigos dos quatrocentes.

    No podemos esquecer que o Teatro de Revista j funcionava h alguns anos

    como uma verdadeira indstria quando Gianni Ratto chegou ao Brasil, apesar de j

    em incio de decadncia. Porm, a equipe de costureiras que cuidava dos trajes, nos

    mais variados estilos e formas, no era para ningum colocar defeito. Havia,

    naturalmente, trajes dissociados da encenao, s vezes sem a preocupao com a

    personagem, em um contexto dramtico a ser descrito. A companhia de Walter Pinto,

    por exemplo, passou a explorar o luxo e a engenhosidade da cenografia, como se v

    na montagem de Mui Macho Sim Sinh, de 1950 (figura 5). Esta nova moda teatral

    acabou por transformar o bairro carioca do Recreio em uma verdadeira fbrica

    (mesmo bairro onde, coincidentemente hoje, se encontra a Fbrica de Cenografia e

    Figurinos da Rede Globo de televiso, no Projac), com direito a escritrio de produo

    e ateli de costura. O Teatro de Revista para o qual Gianni trabalhou em de

    Xurupito!, em 1957 serviria de inspirao para um espetculo que ele viria a

    encenar em 1979, no Rio de Janeiro: Lola Moreno, que se encontra analisada no

    captulo 2.

    Figura 5 Bastidores do

    teatro de revista: preparao

    cenotcnica para uma

    gigantesca mesa que entrava

    em cena; a sala de produo

    da equipe de Walter Pinto e a

    equipe de costureiras.

    (Fonte: KAZ, Leonel et al.

    Brasil, palco e paixo: um

    sculo de teatro.

    RJ:Aprazvel, 2004-2005, il.,

    p.67)

  • 31

    Um outro estudo seria avaliar a situao do Brasil no aspecto da indumentria,

    no meio do incio do sculo at a chegada dos estrangeiros, principalmente dos

    italianos e, logo em seguida, de Gianni Ratto. Vale a pena lembrar que o Theatro

    Municipal de So Paulo, para o qual Gianni muito trabalhou, com sua experincia no

    teatro lrico que trazia do Scala, de Milo, ainda no tinha uma produo de seus

    trajes. H um processo (figura 6), de 1951, que comprova a compra de figurinos para

    oito peras, no valor total de Cr.$ 1.985.374,00.

    Prefeitura Municipal do Estado de So Paulo

    P. Processo 18.183 51 13 10 51

    Sr. Chefe

    Dando cumprimento determinao de V. V., recebi do Sr.

    Alfredo Gagliotti, concessionrio da temporada lrica oficial de

    1951, ora finda, o material estipulado na clusula VIII do contrato

    de fls. 73 e 76 deste Processo.

    Compreende o seguinte: cenrios, guarda-roupas, adereos,

    cabeleiras e sapatos das peras Ada, Manon, de Massenet, Adriana de Lecouvreur, Boris Godunoff, Zaza, Barbeiro de Sevilha, Pagliacci e Cavalleria Rusticana todas em perfeito estado de conservao, com os respectivos guarda-roupas novos,

    de boa qualidade e acabamento aperfeioado.

    Quer o vesturio confeccionado em conformidade com as

    exigncias que ele impe nas classes inferiores, quer o luxuoso e

    colorido entre os nobres, bordado, ou recamado de pedrarias

    observam uma exatido levada at as mais insignificantes

    mincias. Observam rigorosamente uma relao entre o lugar e a

    poca da ao, a idade ou qualidade das personagens.

    O vesturio dos homens do povo, dos burgueses e dos

    camponeses, talhados em tecidos diversos, caracterizam-se por

    suas formas tradicionais e combinaes de cores. No vesturio

    esto compreendidos os respectivos pertences, tais como: meias,

    coletes, blusas, cintos, chapus, boinas, lenos, jabeux etc.

    Figura 6 Processo de compra do lote de figurinos, ao qual se seguiam sete pginas

    com descrio dos itens, separados por pera, com valores individuais e totais de cada

    elemento. (Acervo Theatro Municipal de So Paulo. Traduo: Vnia Cerri, para o

    projeto Traje em Cena e gentilmente cedida para uso nesta pesquisa)

    O grande movimento de renovao das artes do sculo XX, defendido durante a

    Semana de Arte Moderna, em 1922, no afetou, a princpio, o teatro brasileiro. Isto s

    viria a acontecer, lentamente, a partir dos anos 1940, com as chegada dos

    estrangeiros que fugiam da guerra e procuravam um lugar mais calmo. Chegaram

  • 32

    antes de Gianni: Adolfo Celli, Ruggero Jacobbi, Luciano Salce, Alberto dAversa,

    Maurice Vaneau, Flaminio Bollini, Tulio Costa e o polons Ziembinski, que foi o

    responsvel pela montagem da pea Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com os

    Comediantes, em 1943, no Rio de Janeiro, considerada o marco do Modernismo

    teatral no pas.

    A presena estrangeira possibilitou que a arte teatral se igualasse ao teatro

    europeu em qualidade e recursos cnicos. Ator, diretor, cenrio, som, figurino, texto e

    iluminao compunham um espetculo, na tentativa de uma unidade entre os

    elementos. Da a declarao da atriz Cleyde Yconis:

    Este estudo j existia. J aconteceu no TBC de no dia do ensaio geral trocar o figurino porque ele estava prejudicando a representao,

    porque foi um equivoco ou um erro. No 4 andar ficava a costureira, parece que se chamava Rina, ou algo assim, e s vezes ela fazia uma

    roupa nova durante a noite. O figurino pode derrubar um ator. J existia essa conscincia. Eu era contratada pelo TBC e, em todas as produes, ia na 25 de maro, procurava tecido, voltava e mostrava

    pro diretor. A ele me falava no esse tom de rosa, tem que ser mais cinza. A eu voltava e procurava outro tom...Eu apresentava os tecidos para o figurinista e depois, se tinha prova, eu acompanhava; e se tinha algum problema, eu ia falar com o figurinista: Olha, no est dando. Esse tecido no deu... Pechinchar... Eu trabalhava na produo do figurino, mas nunca fui encarregada do figurino. 43

    Mas retornando ao Gianni Ratto, o diferencial que, no s ele vai colocar o

    aprendizado que traz da Itlia, em prtica aqui no Brasil, como tambm vai se

    preocupar com a criao de um teatro nacional, de equipe, no qual um grupo no s

    atue nas diferentes funes, mas auxilie, fornecendo os instrumentos para que os

    outros profissionais consigam tambm expressar seus trabalhos em harmonia.

    (...) Com quem voc falar que trabalhou com ele (Gianni Ratto) como

    diretor, a tnica essa: que ele era muito bravo, que ele era muito trabalhador, e a preocupao dele era texto, e ator. bvio que, como grande cengrafo que era, ele tinha solues visuais pro

    espetculo que eram muito boas. Ento, no dizer que como diretor ele tinha uma deficincia do ponto de vista da organizao da cena.

    Mentira, ele organizava muito bem. E, por opo, fazia com que esses elementos estivessem subordinados ao ator e ao texto.44

    43

    Cleyde Yconis, em depoimento autora, em abril de 2008. 44

    Aimar Labaki em entrevista ao autor, em agosto de 2006. Em CARNEIRO FILHO, Carlos Eduardo S. Gianni Ratto:

    arteso do teatro. Dissertao (Mestrado). So Paulo: ECA - USP. 2007, p.62-63.

  • 33

    Ensinamentos que Gianni espalhou aos profissionais que tiveram a

    oportunidade de trabalhar ao seu lado, j no Brasil. Kalma Murtinho, figurinista que

    mais trabalhou com ele (em 24 espetculos), lembra de quando fez os figurinos para

    o espetculo Piaf, para o qual Gianni fez os cenrios e Flavio Rangel, a direo:

    Foi um prmio trabalhar com o Flavio Rangel que era um homem, um

    profissional total, uma cabea, uma pessoa muito curiosa. S que eu e ele tivemos, desde o comeo, uma briga interna dentro do teatro

    por causa de mtodos de trabalho. Eu era toda criativa, esfuziante e bagunceira. E ele era todo metdico, (...) cuidadoso, organizava todos os esquetes e eu inventando, voando... Mas na hora eu executava. Me

    lembro que em Piaf, por exemplo, o Gianni Ratto, que era adorvel, nunca brigava e dizia: Kalminha, no briga com ele, deixa ele falar. (...) Eles eram grandes, grandes professores. Eu tenho trabalhado com gente muito boa, teatro srio, serssimo... Tm milhes de outros que eu trabalhei e gosto, mas inegvel que o Gianni Ratto foi assim

    meu mestre, eu o chamo de meu guru.45

    O estmulo de Gianni estava na descoberta atual. Ele dizia que no buscava o

    mega ou o reconhecimento, pois achava que estes eram inimigos da sutilidade e que

    sua realizao estava em saber o que era til, produtivo, criativo. Desejava se

    expandir, arriscar na direo. Quando aceitou vir para o Brasil foi no intuito de se

    tornar tambm diretor de teatro e de pera. Dizia ele: Foi portanto sem medo, mas

    tambm sem me sentir corajoso, que assumi meu modesto destino.46 E aqui

    permaneceu em uma atividade ininterrupta que abrangeu todos os aspectos da

    linguagem teatral: direo, cenografia, figurino, traduo de textos estrangeiros,

    fundao de grupos (Teatro dos Sete) e teatros (Teatro Novo, no Rio de Janeiro,

    fechado pelo Dops), cursos de formao e informao para atores e cengrafos (no

    Rio de Janeiro, na EAD e na ECA, em So Paulo, na Escola de Teatro da Universidade

    da Bahia, em Recife etc.).

    Defendeu, desde sua chegada ao Brasil, a presena nos palcos brasileiros do

    autor nacional. Para a qualidade do seu trabalho, uma inteligncia racional, a

    autocrtica e o amor perfeio so algumas das caractersticas que diz sempre ter

    tentado colocar em prtica. J em sua estria, no Teatro Maria Della Costa, a

    encenao de O Canto da Cotovia ganhou os prmios de melhor espetculo, direo,

    45

    Kalma Murtinho em entrevista autora, em novembro de 2005. 46

    RATTO, Gianni. A Mochila do Mascate. SP: Hucitec, 1996, p. 182.

  • 34

    cenografia e atriz. Trouxe na sua bagagem todo um repertrio cultural e tcnico que

    viria a influenciar intensamente o processo de profissionalizao do teatro brasileiro.

    Constru uma torre maravilhosa

    com trilhos e folhas-de-flandres

    retalhos industriais

    sacos de cimento e farinha

    secos e molhados

    fragmentos de velhas portas

    porcas e parafusos

    umbrais e trincos quebrados

    fiapos de tapetes

    velhas chaves

    uma coluna de concreto

    e at um arco romano.

    No havia escada

    mas subi pelos andaimes

    para olhar de cima

    a estrutura e o horizonte.

    Uma turma de ces passou correndo

    e derrubou tudo:

    agora eu sei; construirei mais longe,

    no fundo de um vulco

    cavando at o outro lado da terra.47

    Com o perdo da ousadia, me inspiro em Gianni Ratto para dizer que no

    prximo captulo, juntaremos fragmentos de informaes com retalhos das vestes

    criadas. Folhas de desenhos sugerem as chaves de suas histrias. E antes que a fora

    do vento leve tudo embora, cavaremos fundo para marcar sua trajetria.

    47

    RATTO, Gianni. A Mochila do Mascate. SP: Hucitec, 1996, p.17.

  • 35

    CAPTULO 2

    OS FIGURINOS DE

    GIANNI RATTO

    (as costuras de um caminho)

  • 36

  • 37

    Sempre parto do princpio que o

    espetculo uma coisa que inclui a regncia, cenrio,

    figurino, todos os detalhes.

    Gianni Ratto 48

    Quando iniciada a pesquisa, tnhamos como dado que Gianni Ratto havia criado

    figurinos para trinta e nove espetculos, no Brasil. Aps dois anos e meio, novas

    descobertas ampliam estes nmeros e, neste momento, chegamos ao nmero de

    sessenta e sete espetculos. Treze destes quando ele ainda trabalhava na Itlia.

    Os figurinos de pera retirados do mundo mgico, sempre mgico mesmo nos casos mais pobres, trajados em manequins estticos,

    correm o risco de tornarem-se conchas vazias sem a iridescncia de um tempo, e consequentemente menos resplandecentes, menos poticos

    do que originalmente eram. Naquele tempo, s a humanidade, aquela que aviva o mundo, pode, com sua capacidade de imaginao, com poucos dados, pouca estrutura, fragmentos de tecidos e metais,

    reconstruir o espetculo imaginrio, um teatro imaginrio e dentro deste projetar as coisas que ali permanecem inertes, memrias, ainda que caream de significado. No fundo, esta coleo uma escola por suscitar o fantstico existente em cada um de ns. Apenas deste modo uma coleo de figurinos

    teatrais poder receber a sua luz, que no aquela dos projetores, mas aquela da fantasia, que a mais extraordinria e a mais verdadeira

    entre todas as luzes. 49

    O diretor Giorgio Strehler escreveu o texto acima para a edio comemorativa

    de quarenta anos de figurino do Teatro Scala, de Milo. Da mesma forma que aquela

    coleo uma escola, assim a coleo de figurinos criados por Gianni Ratto, e aqui

    retratados.

    Com imagens de trinta espetculos, sejam croquis e / ou fotos, optou-se, nesta

    pesquisa, por aprofundar os dados sobre os figurinos criados para os espetculos

    lricos. Das vinte peras com figurinos de Gianni Ratto, temos imagens de doze, sendo

    que duas destas (seus dois figurinos criados para a pera Elixir de Amor) sero

    analisadas mais a frente, no captulo 3. Tambm sero analisados os trs figurinos

    criados para bal, na Itlia, e o primeiro e nico figurino para drama assinado por ele

    com o grupo do Piccolo, de Milo. As imagens referentes aos espetculos no

    48

    Gianni Ratto conforme depoimento autora, em outubro de 2006. 49

    STREHLER, Giorgio. LAtelier dellillusione, 1985. In Il Costume Teatrale tra Realismo e Finzione: i costumi storici del teatro alla Scala dagli anni 30 agli anni 60. Milo: Edizione del Teatro alla Scala, 2003, p.25. (Traduo da autora)

  • 38

    analisados, traro breves comentrios. Os espetculos presentes neste captulo

    possuem suas respectivas fichas tcnicas reunidas no Anexo 2.

    Das mulheres na vida de Gianni... traz flashes de mulheres que estiveram

    na vida de Gianni Ratto na criao de uma indumentria. Inseridas em ordem

    cronolgica, entre as montagens de Gianni, facilitam uma leitura interpretativa de seu

    aprendizado e das trocas com profissionais, que, eventualmente, se refletem nos

    trabalhos seguintes. As notas destas pginas dedicadas s mulheres encontram-se no

    fim deste captulo.

    A cenografia e o figurino tm uma vantagem sobre os outros aspectos do espetculo que, uma vez acabado, irrepetvel: o projeto, o desenho, o croqui sobrevivem, mas, por estarem

    separados do espetculo propriamente dito, assumem as caractersticas das artes plsticas; admiramos ento, se for o caso,

    a elegncia de uma gravura, a criatividade de uma roupa, a beleza pictrica de uma prancha: quer dizer, criamos uma memria fictcia

    do que talvez possa ter sido um espetculo e emprestamos ao TEATRO uma dimenso esttica, suporte de seus valores poticos e histricos; a crnica do espetculo morreu e os aspectos

    complementares do texto inicial assumiram valor anedtico.50

    Ter resgatado dados e reunido imagens de grande parte das criaes de

    figurinos de Gianni Ratto de importncia documental, mas um estudo isolado do

    contexto teatral poderia fazer, como o prprio Gianni diz, que estas imagens

    assumissem as caractersticas das artes plsticas. A crnica do espetculo pode ter

    morrido, mas na tentativa de resgat-la e entender estes croquis e fotos como parte

    de um processo criativo, recorremos s vrias entrevistas realizadas com personagens

    participantes das montagens analisadas e tambm com amigos e familiares, alm das

    crticas e comentrios na imprensa. Relatos que faro com que o passeio pelos traos

    das imagens de figurinos de Gianni Ratto torne possvel, como bem disse Strehler,

    suscitar o fantstico existente em cada um de ns ao arrematar as conquistas e

    fracassos da trajetria de Gianni.

    Mas a histria, seja a do indivduo, seja a da humanidade, no pa