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Escola Secundária de Santa Maria Ano Letivo 2012/2013 Filosofia 10ºAno Professora: Fátima Paiva As Éticas de Kant e de Stuart Mill Kant Emanuel Kant (1724-1804) – célebre filósofo alemão, um dos mais importantes filósofos da época moderna europeia. Escreveu a Crítica da razão Pura (sobre Gnoseologia), a Crítica da Razão Prática (sobre ética) e a Crítica da Faculdade de Julgar ( sobre estética). O ponto de partida da sua ética é a preocupação com a justificação e origem dos princípios do agir moral, de forma a garantir que os valores não fiquem sujeitos aos caprichos de cada um. Reconhecendo existir em todos os homens a aspiração de ser feliz, Kant afirma que não é por desejar alcançar a felicidade que o ser humano deverá agir moralmente, embora o facto de esforçar-se por ser bom o torne digno e feliz. Ora, se não é a felicidade que pode justificar a moralidade, o que será então? Será a crença em Deus? Será o prazer? Kant reconhece que todos os homens , mesmo os mais simples e intelectualmente ignorantes, são capazes de realizar actos morais . Donde lhe vem esta capacidade? A resposta Kantiana é a seguinte: todos os homens são seres racionais e, por isso, possuidores de uma faculdade que pode ser usada para conhecer (razão teórica) e para orientar o agir, 1

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Escola Secundária de Santa MariaAno Letivo 2012/2013 Filosofia 10ºAno Professora: Fátima Paiva

As Éticas de Kant e de Stuart Mill

Kant

Emanuel Kant (1724-1804) – célebre filósofo alemão, um dos mais importantes filósofos da época

moderna europeia. Escreveu a Crítica da razão Pura (sobre Gnoseologia), a Crítica da Razão

Prática (sobre ética) e a Crítica da Faculdade de Julgar ( sobre estética).

O ponto de partida da sua ética é a preocupação com a justificação e origem dos princípios do

agir moral, de forma a garantir que os valores não fiquem sujeitos aos caprichos de cada um.

Reconhecendo existir em todos os homens a aspiração de ser feliz, Kant afirma que não é por

desejar alcançar a felicidade que o ser humano deverá agir moralmente, embora o facto de

esforçar-se por ser bom o torne digno e feliz.

Ora, se não é a felicidade que pode justificar a moralidade, o que será então? Será a crença em

Deus? Será o prazer?

Kant reconhece que todos os homens, mesmo os mais simples e intelectualmente ignorantes, são

capazes de realizar actos morais. Donde lhe vem esta capacidade? A resposta Kantiana é a

seguinte: todos os homens são seres racionais e, por isso, possuidores de uma faculdade que

pode ser usada para conhecer (razão teórica) e para orientar o agir, isto é, ordenar o que se deve

fazer (razão prática, que é aquilo a que vulgarmente chamamos consciência). Todos os homens

possuem esta capacidade e são dotados de uma vontade que determina a escolha da acção

(esta escolha pode resultar de múltiplas influências).

A vontade humana possui livre arbítrio, isto é, possibilidade de escolher, e pode mesmo optar

pela realização de acções contrárias à moralidade.

Se as influências a que a vontade cede forem exteriores à razão prática (interesses, inclinações

como, por exemplo, o instinto de conservação da vida – animalidade - o egoísmo, a utilidade do

acto ou o desejo de ser feliz – humanidade -, a vontade desvia-se do que deveria ser a sua

finalidade – personalidade. (Segundo Kant: tendência ou inclinação para a animalidade –

influências /necessidades do corpo; tendência ou inclinação para a humanidade – influências da

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sociedade; tendência ou inclinação para a personalidade – exigências auto-impostas pela razão

prática).

E qual deveria ser a verdadeira finalidade da vontade? Tornar-se uma vontade boa.

E o que é uma vontade boa? É uma vontade que, em todas as circunstâncias, decida e

escolha de forma absoluta e incondicional, isto é, que só respeite as exigências da razão

prática e o que ela ordena (personalidade). Mas a vontade humana nem sempre age assim,

dado que o ser humano é simultaneamente corpo e espírito, razão e sentidos. É preciso fortalecer

a vontade para que ela só escolha o que deve, o que é próprio da natureza humana – obedecer

ao que a razão prática ordena, isto é, respeitar o dever e não procurar a satisfação dos

interesses, dos impulsos sensíveis, etc. É por isso que fazer da nossa vontade uma boa

vontade é o ideal moral que Kant nos propõe que realizemos, pois ela constitui o mais elevado

bem e é, portanto, a condição de possibilidade de todos os outros bens, incluindo a felicidade. O

que faz a nossa vontade tornar-se uma vontade boa é a opção pela personalidade, isto é, a acção

realizada tendo em vista as exigências da razão prática, aquilo a que Kant chama Lei moral ou

acção por dever.

Kant vai ao ponto de distinguir a moralidade da legalidade, para salientar a dignidade das

acções morais. Assim, uma acção que, externamente respeite as normas, é sem dúvida uma

acção boa. Por exemplo o comerciante que não especula com os preços e que exerce a sua

actividade com honestidade, está a praticar boas acções. Porém , pode fazê-lo por diferentes

razões. Pode fazê-lo porque:

A) desse modo ganha a credibilidade e a confiança dos seus clientes e acaba por ter mais

clientela e mais lucro do que se optasse pela especulação . (afinal é esse o seu objectivo)

Realiza as acções não por dever mas por interesse. Sem dúvida realiza um acto bom,

cumprindo exteriormente o seu dever legal de respeitar os seus clientes, sendo honesto

com eles. Mas nem por isso há moralidade alguma no seu acto.

B) Pode fazê-lo porque isso é que é ser honesto e, portanto, é isso que é o seu dever. Neste

caso ele agiu inteiramente por dever, fez o que deve fazer só pelo respeito exigido pelo

dever moral. Foi a intenção e não o acto em si que permitiu diferenciar a moralidade da

legalidade do acto.

A moral de Kant é assim uma moral da intenção, já que o critério mais importante para

classificar uma acção é a intenção por parte do indivíduo de cumprir o que a sua razão lhe

ordena, sem se preocupar com as consequências que para a sua felicidade pode ter a realização

de uma acção por dever.

Com base em que lei é que a nossa razão prática orienta as nossas acções?

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Não nos impõe uma lista de comportamentos proibidos, tipo os ‘dez mandamentos’. Ela não nos

apresenta um conjunto de normas a respeitar. Dá-nos apenas um orientação que devemos

cumprir de forma incondicional e independentemente de circunstâncias de tempo, lugar ou

cultura. Esta orientação chama-se Imperativo Categórico e formulou-o da seguinte forma:

“Age apenas segundo uma máxima tal que possas, ao mesmo tempo, querer que ela se

torne uma lei universal”

Significa esta máxima que façamos o que fizermos respeitemos esta condição ou forma: que a

máxima ou regra que tomei para mim mesmo possa ser transformada em regra reconhecida ou

aceite por todos os outros, sem excepção. Só nesta situação realizamos um acto universal, um

acto bom, dado termos todos o mesmo princípio de acção. Esta é a Lei Moral, um princípio

formal universal que diz o que é o dever para todos os homens.

Lei Moral

Universal Absoluta e

incondicional

Apodíctica ou

necessária

A priori

▼ ▼ ▼ ▼

Tem de valer para

todos os seres

racionais em geral,

sem excepção.

Vale

independentemente

das circunstâncias,

do tempo, do lugar,

cultura, das

situações concretas,

das consequências

da acção.

Tem de ser assim e

não pode ser de

outro modo.

Não deriva da experiência.

A sua origem está na

racionalidade humana.

Kant coloca assim a origem e a justificação da moralidade no próprio homem, na sua natureza

racional. É a razão prática que é a legisladora universal, ela ordena em nome da comunidade

humana, de que todos fazemos parte, a obediência a esta lei que damos a nós mesmos. Só esta

obediência nos torna livres. Não será porém um contra-senso dizermos que somos livres e que

podemos optar e, simultaneamente, termos de obedecer à lei da razão? Neste sentido liberdade é

sinónimo de autonomia. A autonomia pressupõe o livre arbítrio como sua condição de

possibilidade. É por termos a possibilidade de escolher e de decidir o que fazer que adquirimos 3

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mérito quando escolhemos obedecer à lei que nos damos a nós mesmos. A palavra autonomia

significa precisamente isso: é autónomo aquele que dá a lei ( nomos ) a si mesmo, tornando-se,

por isso, a única autoridade que deve respeitar. O dever que coincide com a liberdade torna-se,

assim, uma obrigação, mas uma obrigação auto-imposta.

É por dar a lei a si mesmo que o homem adquire uma dignidade especial e que tem de ser tratado

como tal, como fim em si mesmo e nunca como meio.

Stuart Mill

Filósofo e economista inglês (1806-1873), a sua obra foi considerável, sobretudo nos domínios da

lógica e da filosofia prática.

No século XIX começaram a desenvolver-se processos de ruptura com a chamada época

moderna nas vertentes sociais, políticas e artísticas a que as teorias éticas também não ficaram

indiferentes. Assim, desenvolveram-se, sob diversas designações, teorias que se caracterizavam

por acentuar as consequências das acções como critérios de avaliação, desvalorizando as

intenções e os princípios da acção.

Uma dessas teorias ficou conhecida por Utilitarismo, e foi fundada por Jeremy Benthan e depois

também defendida por John Stuart-Mill. Baseia-se no pressuposto de que o objectivo último das

acções humanas é a felicidade , entendendo-se por felicidade o estado de espírito em que há

prazer e ausência de dor. O seu princípio geral, também conhecido por princípio da utilidade ou

princípio da maior felicidade, define como bem aquilo que trouxer a maior felicidade global. Dado

que um mesmo acto pode beneficiar certas pessoas e prejudicar outras, há que instituir como

princípio objectivo da moralidade o seguinte: “A máxima felicidade possível para o número de

pessoas é a medida do bem e do mal.”

O princípio da máxima felicidade possível ou princípio de utilidade é o fundamento supremo da

moralidade: as acções humanas são julgadas como moralmente boas na medida em que

proporcionam a maior felicidade ao maior número. Uma boa acção é, pois, a que tiver mais

possibilidade de trazer felicidade ao maior número possível de pessoas, aquela de que em

determinadas circunstâncias se podem calcular as melhores circunstâncias possíveis. No que

respeita à moralidade da acção, aquilo a que devemos dar mais importância, ao julgar se esta ou

aquela acção é boa ou má, é às suas consequências. É por isto que alguns autores chamam a

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esta teoria consequencialista (o valor moral das acções está nas consequências que delas

derivam) e outros pragmática (o importante das acções humanas são os seus efeitos práticos).

A finalidade suprema da acção – o bem supremo – é, para S. Mill, a felicidade . É por

referência a este fim que avaliamos a moralidade dos actos. O que é a felicidade? É o prazer e a

ausência de dor(são as únicas coisas desejáveis como fins em si mesmos). Propõe uma doutrina

que ultrapasse a promoção disfarçada do egoísmo e a redução do prazer à sua vertente sensorial

ou material. Defende um utilitarismo de carácter altruísta que insiste no dever de agirmos tendo

como fim supremo a utilidade, i.e. a felicidade máxima tendo em conta as circunstância das acção

e as condições de quem age (trata-se do dever de cada homem proporcionar a felicidade ao

maior número possível de seres humanos, relegando para segundo lugar o que nos é útil como

indivíduos) “ Procurando ser útil nas suas acções o homem regula o seu egoísmo natural ao

mesmo tempo que supera a ética do puro prazer”- Nega também que o utilitarismo consista

simplesmente na procura dos prazeres sensíveis, defendendo que os prazeres intelectuais são

superiores àqueles.

Stuart-Mill esteve assim igualmente preocupado em encontrar o fundamento último da

moralidade, reduzindo as diversas normas morais a um princípio: o princípio da máxima

felicidade possível para a maioria. À luz deste princípio a acção moralmente correcta é,

geralmente, a acção que tem como consequência tornar o mais felizes possível o maior número

possível de pessoas. Não é negada a importância das várias normas morais (“Sê honesto”, Sê fiel

às tuas promessas”, “Não mates”). Em que circunstâncias se impõe o apelo ao princípio

supremo da moralidade? No caso de dilemas morais, isto é, quando duas normas morais a que

damos valor entram em conflito e é preciso saber qual das duas preferir.

Analisemos o seguinte exemplo: De um milionário prestes a morrer recebo um cheque de 500

000 dólares. Comprometo-me a cumprir a sua última vontade: entregar essa quantia ao

presidente do seu clube de futebol preferido. Contudo, a caminho do estádio, uma campanha

contra a fome no mundo chama a minha atenção. Surge um conflito: devo ser fiel à minha

promessa ao moribundo ou contribuir para salvar milhares de vítimas da fome? Duas normas

morais estão em conflito (“ajudar o teu próximo” e “ser fiel às tuas promessas”). Impõe-se ser

honesto ou ser humano?

Apelando ao princípio da máxima felicidade possível para o maior número possível, o utilitarista

prescreverá que é minha obrigação dar o dinheiro às vítimas da fome: causarei o maior prazer

possível nas circunstâncias dadas ao maior número possível de pessoas.

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Na ética utilitarista de S. Mill, salientam-se estes dois aspectos:

1- O aspecto consequencialista ou teleológico – a valoração moral da acção depende,

nas situações moralmente mais relevantes, das suas consequências ou resultados: se os

resultados são bons a acção é boa, fizemos o que devíamos; se não são bons não agimos

devidamente. O único fim bom em si mesmo (o telos - fim, ou bem supremo) é o prazer ou

a felicidade. Para os utilitaristas é a realização desse fim que propriamente conta. Pode-se

dizer que, em certa medida, o fim justifica os meios.

2- O aspecto hedonista – a finalidade mais elevada é procurar o prazer da maioria: “ O meu

bem-estar depende do bem-estar dos meus semelhantes”. Trata-se de um hedonismo

essencialmente altruísta (que visa o bem-estar colectivo” que, não rejeitando os prazeres

sensíveis ou ‘inferiores’ (cómoda, bebida, sexo), prefere os prazeres mais estáveis,

controláveis ou contínuos, isto é, prazeres espirituais (conhecimento, criatividade,

liberdade, autonomia, amizade).

Fundamentação da Moral

Kant Utilitarismo

A felicidade é algo exterior à

razão, é subjectiva;

A acção moral tem por base a

‘boa vontade’;

Só as acções por dever têm

valor moral;

As acções por dever impõem-se-

nos pelo imperativo categórico;

O imperativo categórico, ao

impor leis universais, constitui o

fundamento da autonomia

humana;

O agir moral autónomo confere-

nos dignidade.

O valor moral das acções está nas suas

consequências e nos seus efeitos práticos;

Bem é aquilo que trouxer maior felicidade

global (ao maior número de pessoas);

O princípio da utilidade é o fundamento

último da moralidade em casos de dilemas

morais;

A finalidade suprema da acção, isto é, o

bem supremo, é a felicidade (busca de

prazer e ausência de dor);

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