#6 Como Decorrencia Da Sensivel No Modo Frigio

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FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular. Tese (Doutorado em Música). Universidade Estadual de Campinas, 2010. p. 673 e 641-645 Do acorde de “sexta aumentada” como uma decorrencia do emprego da sensivel no modo frigio Autores como Aldwell e Schachter (1989, p. 479) e Proctor (1978, p. 115-116) argumentam que esse tipo de aparição da “#6” é uma alteração da “familiar” cadência Frígia que evidencia a “origem contrapontística” (ou seja, a origem “linear”, “pré-tonal” ou “monal”) desse “acorde de sexta aumentada”. FIG. 5.66 - A sexta aumentada como decorrência de uma alteração familiar na cadência frígia * * * DOS DEBATES DOS ILUMINISTAS FRANCESES EM TORNO DESTE CÉLEBRE ACORDE SUPERFLUEComo se sabe, são muitos e diversos os pontos de vista sobre este acorde láb-dó-ré-fá#no tom de Dó-menor ou Dó-maior. Mais recentemente desde aproximadamente a segunda metade do século XX, devido a fatores igualmente diversos, dentre eles o avanço dos estudos formais e das publicações técnico-teóricas nos campos da música popular evidenciou-se uma espécie de divergência entre os cultores do “acorde de dominante substituta” (pelo lado da jazz theory e da chamada harmonia funcional que se pratica no campo da música popular cifrada) versus os defensores do “acorde de sexta aumentada” (pelo lado da teoria erudita, escrita com semibreves na pauta, a teoria da harmonia tradicional ou de escola). Considerando genericamente tal cenário, a intenção aqui é destacar que, na história moderno- contemporânea da teoria da harmonia, tal divergência não é a única, não está isolada, não é recente (pois este acorde não é recente e vem sendo teorizado pelo menos desde o século XVIII), e nem tão pouco se reduz aos dualismos do tipo: popular versus erudito, contemporaneidade versus tradição, cifrado versus escrito ou prático versus teórico. Nesta intenção é útil referenciar algo das influentes opiniões e contra-opiniões que mostram como o entendimento representado aqui pelo recorte de Rameau nunca foi consensual. E com isso valorizar o fato de que a divergência “sexta aumentada versus dominante substituta” é algo que se orienta “decerto por uma concepção musical que se pode entender como sinal específico da tendência geral da história das idéias para substituir os conceitos de substância pelos conceitos de função” (DAHLHAUS e EGGEBRECHT, 2009, p. 114). Entenda-se, para os autores, nesse dualismo “substância” versus “função”, “substância” é aquilo que a coisa é “em si”, a res extensa (a coisa extensa), no caso: um “intervalo” de sexta aumentada. Enquanto que “função” é a explicitação do “para o quê serve essa coisa”, no caso (por hora) vale dizer: a sexta aumentada serve para “substituir a dominante(ou seja, tem função de dominante). Neste sentido, vamos notar que as teorias “reservadas” da “sexta aumentada” são tidas como “tradicionais” (clássicas ou escolásticas), já que valorizam a “essência” (as qualidades, propriedades e atributos que caracterizam a natureza própria de um intervalo concreto), valorizam aquilo que, conforme Leite (2009, p. 233-234), na filosofia escolástica de São Tomás de Aquino (1225-1274) chamou-se de o “modo especial de ser do ente” (“modus specialis essendi entis”), ou seja, valorizam o seu “aspecto não-transcendental”: o “ser ente por si”. Em contraposição, nas teorias “expandidas” que se consolidaram na contemporaneidade romântico-popular, valoriza-se um “estar em função de”, o suposto da “interdependência” que conduziu a “estética das relações” e foi decisivo para o surgimento das teorias da funcionalidade harmônica que defendem

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Sexta Aumentada _ Frígio

Transcript of #6 Como Decorrencia Da Sensivel No Modo Frigio

FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o

estudo de planos tonais em música popular. Tese (Doutorado em Música). Universidade Estadual

de Campinas, 2010. p. 673 e 641-645

Do acorde de “sexta aumentada” como uma decorrencia do emprego da sensivel no modo frigio

Autores como Aldwell e Schachter (1989, p. 479) e Proctor (1978, p. 115-116) argumentam que esse tipo de

aparição da “#6” é uma alteração da “familiar” cadência Frígia que evidencia a “origem contrapontística” (ou

seja, a origem “linear”, “pré-tonal” ou “monal”) desse “acorde de sexta aumentada”.

FIG. 5.66 - A sexta aumentada como decorrência de uma alteração familiar na cadência frígia

* * *

DOS DEBATES DOS ILUMINISTAS FRANCESES EM TORNO DESTE CÉLEBRE ACORDE “SUPERFLUE”

Como se sabe, são muitos e diversos os pontos de vista sobre este acorde “láb-dó-ré-fá#” no tom de

Dó-menor ou Dó-maior. Mais recentemente – desde aproximadamente a segunda metade do século XX, devido

a fatores igualmente diversos, dentre eles o avanço dos estudos formais e das publicações técnico-teóricas nos

campos da música popular – evidenciou-se uma espécie de divergência entre os cultores do “acorde de

dominante substituta” (pelo lado da jazz theory e da chamada harmonia funcional que se pratica no campo da

música popular cifrada) versus os defensores do “acorde de sexta aumentada” (pelo lado da teoria erudita,

escrita com semibreves na pauta, a teoria da harmonia tradicional ou de escola).

Considerando genericamente tal cenário, a intenção aqui é destacar que, na história moderno-

contemporânea da teoria da harmonia, tal divergência não é a única, não está isolada, não é recente (pois este

acorde não é recente e vem sendo teorizado pelo menos desde o século XVIII), e nem tão pouco se reduz aos

dualismos do tipo: popular versus erudito, contemporaneidade versus tradição, cifrado versus escrito ou

prático versus teórico. Nesta intenção é útil referenciar algo das influentes opiniões e contra-opiniões que

mostram como o entendimento representado aqui pelo recorte de Rameau nunca foi consensual. E com isso

valorizar o fato de que a divergência “sexta aumentada versus dominante substituta” é algo que se orienta

“decerto por uma concepção musical que se pode entender como sinal específico da tendência geral da história

das idéias para substituir os conceitos de substância pelos conceitos de função” (DAHLHAUS e

EGGEBRECHT, 2009, p. 114). Entenda-se, para os autores, nesse dualismo “substância” versus “função”,

“substância” é aquilo que a coisa é “em si”, a res extensa (a coisa extensa), no caso: um “intervalo” de sexta

aumentada. Enquanto que “função” é a explicitação do “para o quê serve essa coisa”, no caso (por hora) vale

dizer: a sexta aumentada serve para “substituir a dominante” (ou seja, tem função de dominante).

Neste sentido, vamos notar que as teorias “reservadas” da “sexta aumentada” são tidas como

“tradicionais” (clássicas ou escolásticas), já que valorizam a “essência” (as qualidades, propriedades e atributos

que caracterizam a natureza própria de um intervalo concreto), valorizam aquilo que, conforme Leite (2009,

p. 233-234), na filosofia escolástica de São Tomás de Aquino (1225-1274) chamou-se de o “modo especial de

ser do ente” (“modus specialis essendi entis”), ou seja, valorizam o seu “aspecto não-transcendental”: o “ser

ente por si”. Em contraposição, nas teorias “expandidas” que se consolidaram na contemporaneidade

romântico-popular, valoriza-se um “estar em função de”, o suposto da “interdependência” que conduziu a

“estética das relações” e foi decisivo para o surgimento das teorias da funcionalidade harmônica que defendem

que o acorde, “por si só”, de fato não é capaz de nos informar de maneira inequívoca qual é a sua função.

A divergência “#6 versus SubV” é, então, algo que toma parte daquela ampla “cadeia de antíteses”

(DAHLHAUS, 1999, p. 49) que, como vamos vendo, perpassa vários dos nossos assuntos envolvendo

desarmonias diversas (eruditos versus eruditos; barroco versus clássico; clássico versus romântico;

harmonia como matéria, distância e extensão versus harmonia como movimento, força e energia; acordes

belos versus acordes sublimes; natureza fora de nós versus natureza dentro de nós; formalistas versus

conteudistas; etc.).

Neste primeiro comentário sobre os percalços históricos da normalização do nosso “SubV7”, serão

referenciados alguns debates travados pelos iluministas franceses a respeito deste “Accord de sixte

superflue”. Tais debates podem ser considerados uma espécie de registro culto e pioneiro que,

significativamente veiculado, contribuiu para popularizar a questão da “#6” a partir de meados do século

XVIII. Mais adiante, em outro comentário, serão mencionados alguns registros (mais ou menos da mesma

época) do “acorde de sexta aumentada” na cultura teórica do baixo contínuo. E posteriormente, num terceiro

destes comentários, enfrenta-se um sobrevôo que elenca contribuições que marcam o debate romântico-

contemporâneo (dos finais do século XVIII até meados do XX).

Na Paris pré-revolução, numa circunstância realmente ímpar na qual os philosophes, com

impressionante conhecimento de causa, discutiam publicamente com os musiciens questões como “qual é a

fundamental de um accord de sixte superflue?” (e, por incrível que pareça, os músicos davam ouvidos ao

que os filósofos diziam e publicavam sobre tais detalhes “técnicos” da “nossa” arte), Rameau foi um raro

músico teórico que pode debater as miudezas artesanais do nosso ofício com pensadores do porte de um

Rousseau e de um D’Alembert.

Em 1751, logo no volume um (p. 77-80) da “Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences,

des arts et des métiers” editada por Diderot e D’Alembert, no verbete “accord” escrito por Rousseau,

podemos ler o entendimento – contrário ao defendido por Rameau – de que este acorde não é uma inversão:

“Neste acorde [FIG. 5.33a] não se inverte nem se pode alterar nenhum de seus sons, se trata propriamente

de um acorde de petite-sixte maior, elevada por acidente e no qual eventualmente se substitui a quinta pela

quarta” (ROUSSEAU, 1751, p. 78). Sem modificar o texto, Rousseau transpõe o exemplo (FIG. 5.33b) e,

como já vimos (FIG. 2.18), republica tal entendimento no seu “Dictionnaire de musique” de 1768

(ROUSSEAU, 2007, p. 71).

FIG. 5.33 - O “accord de sixte superflue” gravado nos escritos de Rousseau na segunda metade do século XVIII

Em 1765, no verbete “Sixte” que escreve para o volume quinze da “Encyclopédie...”, o philosophe-

musicien Rousseau – este “outsider” precursor do Romantismo que “tornou os alemães possíveis”

(SCHWANITZ, 2007, p. 302-303) – reelabora o texto acentuando o papel pré-dominante deste

Accord de sixte superflue: Consiste em uma espécie de petite-sixte que não se pratica a não ser sobre o

sexto grau de um tom menor [p.ex. sobre a nota láb de Dó-menor] quando este descende sobre a

dominante [lábsol]; em tal caso, como a sexta deste sexto grau é maior por natureza [diatonicamente,

a sexta de láb é fá], algumas vezes se faz aumentada [superflue] adicionando-se um sustenido

(ROUSSEAU, 1761, p. 235).

Este texto também foi republicado na íntegra no verbete “Sixte” do “Dictionnaire...” de 1768.

Rameau falecera em 1764, e então Rousseau acrescenta uma última alfinetada negando a tese ramista de que

o tal fenômeno é apenas uma inversão: “A sixte superflue se transforma então em um acorde original, o qual

nunca se inverte” (ROUSSEAU, 2007, p. 366).

Nesse meio tempo, em 1757, veio a público o extenso verbete “fondamental, musique moderne” (de

aproximadamente 10 páginas) escrito por um dos editores responsáveis pela “Encyclopédie...”, o filósofo,

matemático e físico francês Jean le Rond d’Alembert (1717-1783). Como observam Saslaw (1992, p. 42) e

Shirlaw (1917, p. 279), neste verbete publicado no volume sete da “Encyclopédie...” alguns pontos se

destacam: D’Alembert (tomando o partido de Rousseau) nega a tese ramista de que a nota que está no baixo

não é a fundamental do acorde e já põe em questão o termo “sixte superflue” para um intervalo que de fato soa

como uma “sétima menor” (aqui se pode brincar dizendo que Rousseau e D’Alembert tomam então o partido

da jazz theory, mas as datas mostram que não foi bem assim). D’Alembert defende que o primeiro registro

teórico (ao menos na França) é o de Rousseau (publicado no verbete “accord” de 1751, embora a “Carte

générale...” de Rameau date de 1731) e registra, numa publicação de grande prestígio e circulação, a tal

expressão “accord de sixte italienne”. Uma designação que no correr do século XIX (ao lado das expressões

“sexta aumentada francesa” e “sexta aumentada alemã”) se tornou corrente na literatura de escola. No verbete

“fondamental” de D’Alembert podemos ler (numa tradução livre) que este acorde

em várias ocasiões produz um efeito muito bom, e é usado, sobretudo, pelos italianos. É o chamado

“accord de sixte superflue” ou de “sixte italienne”. É composto por uma terça maior, uma quarta

superflue [aumentada] ou trítono e de uma terça maior, formando o tipo fa-la-si-ré# [FIG. 5.33b]. Este

não é propriamente um acorde de sexta, pois entre fá e ré# existe na verdade uma sétima [menor], mas

o recurso foi assim chamado distinguindo tal sexta pelo epíteto superflue [aumentada].

É muito difícil determinar de forma clara e convincente a origem do presente acorde: isso é, como atribuir

de maneira satisfatória a origem da fundamental de um acorde que apresenta tantas dissonâncias, “fa-

si”, “fa-ré#”, “lá-si”, “lá-ré#”, e que ainda assim continua a ser utilizado com sucesso, como o ouvido

pode julgar? [...] Podemos ver este acorde como uma inversão de si-ré#-fá-lá, que nada mais é do que o

acorde si-ré-fá-la [...] que, em conseqüência da terça maior, produz a impressão do modo de mi [o modo

frígio] por meio da sensível ré#; [...] mas por que a transformação para terça maior é tão importante? Por

qual motivo essa transformação é suportada se ela produz mais duas dissonâncias? Além disso, segundo

o verbete accord do Sr. Rousseau, o acorde fundamental fa-la-si-ré# não se inverte: podemos então ver

[fa-la-si-ré#] como uma inversão de si-ré#-fá-lá? [...] podemos dizer que o acorde si-ré#-fá-lá nada

mais é do que o acorde de dominante-tonique si-ré#-fá-lá que, no modo de mi, é um acorde com fá

natural? Esta origem me parece [...] forçada. [...] O certo é que devemos olhar este acorde [fa-la-si-ré#]

com um acorde em estado fundamental: e o Sr. Rousseau, no verbete accord, tem total razão de agrupar

este acorde com os acordes em estado fundamental [...]

Este accord de sixte superflue não é mencionado por outros autores franceses, ao menos que eu saiba,

e devo confessar que também ignorei sua existência no meu Élements de musique [de 1752], embora

o Sr. Rousseau já tivesse publicado sobre ele. O Sr. de Béthizy em um livro sobre a teoria e prática da

Música, disse que não se lembra o ponto onde o Sr. Rameau teria falado deste acorde em suas obras,

embora tenha empregado este acorde algumas vezes, por exemplo, em um coro do primeiro ato de

Castor e Pollux [FIG. 5.34]. O Sr. de Béthizy dá exemplos de emprego deste acorde no baixo contínuo,

mas deixa em branco a resposta sobre qual seria o baixo fundamental do acorde (D’ALEMBERT,

1757, p. 57).

FIG. 5.34 - O “sixte superflue” num fragmento da ópera “Castor e Pollux” (Ato 1, cena 4, Choeur) de Rameau, 1731

Sobre as harmonias cromáticas empregadas por Rameau na ópera “Castor e Pollux” ver Lévi-Strauss

(1997, p. 42-50). Sobre o “Sr. de Béthizy” – Jean-Laurent de Béthizy (1702-1781), compositor que

publicou uma “Exposition de la théorie et de la pratique de la Musique” em 1754 baseando-se nos

ensinamentos de seu ex-professor Rameau – ver Damschroder (2008, p. 247), Lester (1996, p. 207) e Miller

(2008, p. 144-146).

Até meados do século, Rameau e D’Alembert se admiram mutuamente, embora, conforme Kafker

(1963, p. 122), o arredio Rameau tenha se recusado a contribuir com os artigos sobre música da

“Encyclopédie...” (Rameau teria polidamente se oferecido para ajudar a revisar os verbetes escritos por

outros autores, o que não aconteceu, pois nenhum verbete lhe foi enviado para revisão. Mais tarde Rameau

publicaria suas críticas em artigos como o “Suite des erreurs sur la Musique dans l'Encyclopédie” de 1756).

O esforço iluminista de Rameau – descobrir a lei oculta (verdadeira, fundamental, racional, natural, geradora

e ordenadora) sob a diversidade (o caos) dos fenômenos da harmonia –, foi reconhecido pelo enciclopedista

D’Alembert: “Monseur Rameau foi o primeiro a começar a desembaraçar o caos. Ele encontrou na

ressonância do corpo sonoro a origem mais verossímil da harmonia e do prazer que ela nos causa: ele

desenvolveu esse princípio, e demonstrou como os fenômenos da música nascem” (D'ALEMBERT apud

LOUREIRO, 2002, p.28).

Em 1750, D’Alembert participou da comissão científica que emitiu o elogioso parecer avaliando a

“Démonstration du principe de l’harmonie servant de base à tout l'art musical théorique et pratique”, uma

das substanciais reformulações teóricas que Rameau produziu aproximadamente 30 anos após a redação do

primeiro “Traité...” (cf. CHRISTENSEN, 1987, p. 39; FUBINI, 2002, p. 76-77; SADLER, 2001, p. 783). Em

1752, justamente no ano que se deflagra a famosa “Querelle des Buffons”, D’Alembert publica esse “Élemens

de musique...” (Elementos de música teórica e prática segundo os princípios do Sr. Rameau, aclarados,

desenvolvidos e simplificados).

Em princípio, a aparentemente louvável intenção de D’Alembert seria a de tornar as teorias de Rameau

mais acessíveis ao público, uma espécie de divulgação científica de alto nível da época. Rameau, segundo

Fubini, “consciente de sua escassa eficiência literária”, alegrou-se ao ver suas teses difundidas e interpretadas

por tão brilhante e influente escritor-filósofo. Contudo,

folheando as páginas de D’Alembert é fácil dar-se conta de que, realmente, elas seguem as teorias

harmônicas do músico, mas ao mesmo tempo, se alterou profundamente seu espírito. O aspecto

“newtoniano” de seu pensamento, seu esforço unificador e racionalizador foi intencionalmente

completamente esquecido e, sua teoria se voltou para um empirismo, reduzida a um conjunto de regras

úteis e práticas. Rameau, esclarecido, desenvolvido e simplificado [...] é o Rameau aceito pelos

enciclopedistas; o formulador de um complexo de regras coerentes, o ordenador de um material antes

caótico e informe, porém não o Rameau filósofo (FUBINI, 2002, p. 77-78).

O que de fato os enciclopedistas não puderam aceitar foi a idéia de “música como ciência”, idéia

central em todas as obras de Rameau para quem “a música não apenas era uma ciência, mas sim, por muitos

motivos, podia ser considerada a primeira ciência, a ciência das ciências; para o matemático D’Alembert, a

música é ciência apenas no sentido metafórico” (FUBINI, 2002, p. 78). O estudo de Christensen (1993, p. 255-

290) examina o “Élemens de musique...” mostrando as críticas e correções que D’Alembert faz aos trabalhos

de Rameau. Outras referências sobre são Bernard (1980), Fubini (1994, p. 209; 2002, p. 76-80), Grout e Palisca

(1994, p. 435) e Lester (1996, p. 144-146). Neste mesmo ano, 1752, as polêmicas envolvendo Rameau versus

Rousseau e os enciclopedistas ganham o público e ainda nessa década as relações de Rameau com o seu

apoiador D’Alembert vão também se converter em franco desacordo (cf. CHRISTENSEN, 1993, p. 252;

GIRDLESTONE, 1989, p. 475-518; KINTZLER, 2006, p. 339-340).

Desconsiderando uma possível má vontade típica dessas querelas, a declaração de D’Alembert e

(conforme D’Alembert) também de Béthizy, de que não foi possível localizar na teoria de Rameau alguma

explicação para o polêmico “accord de sixte superflue” pode estar relacionada ao fato de que essa atribuição

da fundamental “ré” ao feixe láb-dó-ré-fá# (o acorde 14 na FIG. 5.1), além de ser consideravelmente sutil,

aparece não numa das principais obras teóricas de Rameau, e sim, numa “carta sobre a música” (a “Lettre de

M. a M. sur la musique et l’explication de la carte générale de la basse fondamentale”, cf. GIRDLESTONE,

1989, p. 484) publicada em um meio não propriamente acadêmico ou perdurável. A recuperação das notas e

cifrações musicais estampadas em um jornal de 1731 é uma façanha de investigação musicológica bem mais

recente (cf. CHRISTENSEN, 1993; DAMSCHRODER, 2008). Como informa Saslaw (1992, p. 43-44),

Rameau (1760, p. 55-56) publicou sua interpretação da “sixte superflue” posteriormente, no “Code de musique

pratique...” de 1760.

Como observa Harrison (1995, p. 182), o organista e historiador musical britânico Matthew Shirlaw

(1873-1961), na sua extensa “investigação sobre os princípios naturais da harmonia com uma análise dos

principais sistemas de harmonia de Rameau até os dias de hoje” publicada em 1917, também enfatiza essa

invisibilidade do “acorde de sexta aumentada” facilmente observável no “Traité...” de 1722 (cf. SHIRLAW,

1917, p. 97):

Apesar do acorde de sexta aumentada ser conhecido e praticado no seu tempo (Heinichen [o compositor e

teórico alemão Johann David Heinichen (1683-1729) referenciado a seguir] dá exemplos de todas as três

formas de o acorde), Rameau evita dar qualquer explicação deste acorde. Um acorde como a configuração

Alemã do acorde de sexta aumentada, por exemplo, fá-lá-dó-ré# ocorrendo sobre o sexto grau da escala de

Lá-menor, foi particularmente embaraçoso para Rameau. Era impossível para Rameau explicar a resolução

natural desse acorde sobre a Dominante seja por meio do duplo “employment” (double emploi) ou por meio

de qualquer outro dispositivo que conhecia. Talvez seja por essa razão que Rameau evita este acorde na

maior parte de suas obras para o palco, substituindo-o pelo acorde de sétima diminuta [“fá#-lá-dó-ré#” em

lugar de “fá natural-lá-dó-ré#”] (SHIRLAW, 1917, p. 242).

* * *