6. Marginalismo e fundamentos da corrente Neoclássica
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Licenciatura em Economia
Introdução ao Pensamento Económico
Notas Pedagógicas 2012-13
6. O Marginalismo e os Fundamentos da Corrente Neoclássica
José Castro CaldasMaria de Fátima Ferreiro
As Origens da Economia Neoclássica
Em finais do século XIX a Economia Política passou por uma
profunda transformação que ficou conhecida na história do
pensamento económico por “revolução marginalista”.
Esta “revolução” metodológica e teórica está na origem da
Economia Neoclássica, isto é, da corrente que é ainda hoje dominante
na disciplina. De facto, a Microeconomia que continua a ser ensinada
em quase todos os cursos de Economia do mundo não é mais do que
uma síntese de inúmeros contributos parcelares acrescentados ao
longo de um século a uma base conceptual que foi estabelecida pelos
economistas marginalistas no final do século XIX.
A compreensão da Economia Neoclássica é facilitada pelo
conhecimento dos aspectos essenciais quer dos contributos
fundadores, quer de outras influências a montante, quer ainda da
síntese contemporânea tal como é apresentada nos manuais mais
difundidos de Introdução à Economia.
Este texto integra apenas uma referência ao utilitarismo de
Bentham, que exerceu profunda influência em alguns dos autores
marginalistas e uma apresentação geral da “revolução marginalista”. A
síntese contemporânea dos conceitos fundamentais da Microeconomia
Neoclássica pode ser encontrada em muitos manuais, nomeadamente
no mais difundido de todos eles à escala mundial – Economia, de Paul
Samuelson e William Nordhaus.
1. O Utilitarismo de Bentham e a Noção de Utilidade
Jeremy Bentham (1748-1832) foi um filosofo moral inglês que
concebeu o projecto de fundar uma ciência moral, isto é, uma
moralidade exclusivamente baseada na razão, liberta do sentimento
ou de preceitos baseados na fé religiosa.
Embora Bentham fosse bem conhecido de alguns dos economistas
políticos mais destacados do seu tempo, nomeadamente David Ricardo
e John Stuart Mill, tendo exercido sobre eles uma grande influência
intelectual, só com a revolução marginalista, a relação entre o
utilitarismo e a Economia se desenvolveu plenamente1.
No cerne do utilitarismo de Bentham situa-se o princípio da
utilidade segundo o qual toda a acção deve ser aprovada ou
desaprovada consoante aumenta ou diminui a utilidade da entidade
cujo interesse está em causa.
Alguns elementos desta definição requerem clarificação. Por
utilidade Bentham entende “a propriedade de qualquer objecto, pela
qual tende a produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade
[…] ou evitar a ocorrência de dano, dor, mal, ou infelicidade” à
entidade cujo interesse está em causa; a utilidade pode assumir um
“sinal” positivo ou negativo: os indivíduos avaliam as acções tendo em
conta os efeitos líquidos (efeitos positivos descontados dos negativos).
Em segundo lugar, o princípio da utilidade é, para Bentham, um
princípio normativo, na medida em que é apresentado como o critério
à luz do qual a acção deve ser julgada. No entanto, também pode ser
interpretado como um princípio positivo, na medida em que estabelece
a causa da acção – a acção será empreendida se aumentar a utilidade
do agente e não o será no caso contrário. Em terceiro lugar, o princípio
1 Esta relação, no entanto, está longe de ser simples. Embora alguns marginalistas, como Edgeworth, se definissem como herdeiros de Bentham e outros, como Jevons e Marshall, aceitassem esta herança, sujeita a muitas reservas, outros ainda, como Menger, rejeitavam-na frontalmente.
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da utilidade é susceptível de ser aplicado quer a indivíduos quer a
comunidades. Quando a entidade cujo interesse está em causa é um
indivíduo, a utilidade a ter em conta é a utilidade individual; quando é
uma comunidade, a utilidade a ter em conta é a da comunidade. Mas,
dado que para Bentham, a comunidade é uma entidade fictícia, a
utilidade da comunidade não é mais do que “a soma dos interesses [ou
da utilidade individual] dos diversos membros que a compõem”. Além
disso, como julgar as acções que são tomadas em nome do interesse
individual mas que têm consequências negativas para outros? A
aplicação estrita do princípio da utilidade implicaria, neste caso, que o
agente tivesse em conta não só a sua própria utilidade mas de todos
os que são afectados pela acção. O princípio da utilidade é um
princípio de conduta moral que não legitima o egoísmo ou a
persecução do interesse próprio sem consideração dos outros.
A utilidade é portanto uma categoria conceptual segundo a qual
todos os sentimentos, sejam eles quais forem, se fundem na mente
individual, tornado todos os bens e males comensuráveis
independentemente da sua qualidade.
Para Bentham, no entanto, a utilidade não era apenas uma
categoria abstracta, já que ele acreditava que os indivíduos, quando
tinham de escolher, estavam efectivamente dispostos e eram capazes
de avaliar cada uma das acções possíveis, somando e subtraindo os
prazeres e as dores que previsivelmente decorreria de cada uma
delas, seleccionando por fim a que apresenta uma maior utilidade.
Segundo ele, não havia nenhuma razão de princípio para pensar que a
utilidade não pudesse ser mensurável, ou que não se pudesse pensar
acerca dela como se o fosse. O seu princípio da utilidade implica
mesmo, no caso de acções que dizem respeito à comunidade, que a
utilidade de diferentes indivíduos possa ser não só medida como
adicionada.
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Abrindo caminho à medição da utilidade, Bentham estabelecia
assim uma série circunstâncias que afectam o valor dos prazeres e das
dores para o indivíduo que as experimentam: a) a sua intensidade; b) a
sua duração; c) o grau de certeza ou incerteza (no caso não de
experiências vividas mas de expectativas relativas a experiências
futuras); e d) o desfasamento no tempo.
Os economistas marginalistas influenciados por Bentham
importaram a noção de utilidade na sua interpretação positiva e
individualista. Quando falavam de utilidade, referiam-se ao que motiva
os indivíduos para a acção e orienta as suas escolhas, partindo do
princípio que estas escolhas só têm consequências para quem as
pratica. As acções com consequências para a comunidade, ou para
outros, diriam respeito à Ética e não à Economia.
2. A Revolução Marginalista
No final do século XIX a situação da Economia era paradoxal. Por
um lado, verificava-se uma afirmação académica e profissional
crescente da disciplina. A dedicação académica em tempo integral, a
publicação de revistas especializadas2 e a formação de funcionários
públicos na “ciência da administração económica” dominada por
académicos (Alemanha), correspondem a alguns dos traços desta
evolução positiva. Por outro lado, os próprios economistas tinham a
percepção de que a sua disciplina estava a atravessar uma situação de
“crise”. De acordo com a opinião que então se começava a difundir, a
Economia Política apresentava os seguintes problemas: (a) não seria
2 Na Alemanha, pioneira em publicações que se tornaram referências da disciplina/profissão, deve destacar-se o Journal of Institutional and Theoretical Economics (1844) e o Yearbook of Economics and Statistics (1863). Em Inglaterra, um pouco mais tarde, destaque para o Quarterly Journal of Economics (1886), o Economic Journal (1890) e o Journal of Political Economy (1892) (cf. Roger Backhouse, The Penguin History of Economics, Penguin Books, 2002, p.166).
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científica; (b) padeceria de inconsistências teóricas; (c) teria
implicações sociais e políticas inaceitáveis.
Relativamente à questão da cientificidade, o principal problema
era o uso quase exclusivo da linguagem natural e a escassa
matematização da Economia Política Clássica.
Este ponto de vista é compreensível se tivermos em conta que
nessa época estava a ocorrer a vulgarização da noção de “cientista” e
a assistir-se a um afastamento entre a “ciência”, até então designada
por “filosofia natural”, e a Filosofia. A ciência, pensava-se então, era
“objectiva”, baseada na observação, no peso e na medida e na
formulação matemática das suas leis. A filosofia era especulativa,
fundada na lógica e não em “factos” provenientes da experiência. A
Física era então a ciência por excelência, a origem dos critérios que
todos os outros saberes deveriam respeitar se quisessem aceder ao
estatuto de ciência, e como a linguagem da Física era matemática toda
a ciência devia utilizar a linguagem matemática. Assim se compreende
que alguns marginalistas afirmassem com convicção, e sem sentir
necessidade de qualquer justificação, que se a Economia queria ser
ciência deveria tornar-se numa ciência matemática.
Mas o problema da matematização não era o único. Alguns
economistas consideravam, além disso, que as leis da Economia
Política não eram verdadeiras leis científicas, no sentido em que não
eram nem universais nem a-temporais. De facto, algumas das
principais leis da Economia Política, nomeadamente as respeitantes à
distribuição do rendimento, tinham por referência classes sociais –
trabalhadores, capitalistas, proprietários de terra – que são específicas
das sociedades europeias em determinada época histórica. Para
chegar a leis económicas verdadeiramente científicas seria necessário
então desembaraçar a Economia das classes sociais ou de outras
entidades colectivas.
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Por último, a Economia Política não seria científica porque
envolvia inúmeras referências a valores morais e mesmo julgamentos
de valor. Para construir uma economia verdadeiramente científica,
acreditava-se então, era preciso traçar uma fronteira clara entre
Economia e Ética.
No que diz respeito às inconsistências teóricas, o dedo acusador
era dirigido às teorias do valor-trabalho e da distribuição do
rendimento. A teoria do valor-trabalho seria indefensável por depender
de pressupostos totalmente irrealistas e a teoria da distribuição por
não ser conforme aos factos. Na realidade, Ricardo fazia depender a
teoria de valor trabalho de pressupostos exigentes e a sua teoria da
distribuição dependia inteiramente do postulado que estabelece que
os salários tendem a fixar-se ao nível de subsistência. Ao longo do
século XIX, no entanto, ia-se tornando patente que os salários dos
trabalhadores, em certas circunstâncias, poderiam assegurar mais do
que a simples sobrevivência das famílias operárias e que isso não se
tinha de traduzir numa tendência para a sua descida.
Quanto às implicações sociais e políticas, o problema, segundo
alguns autores, residia no antagonismo de interesses das classes
sociais que inevitavelmente decorre da teoria da distribuição do
rendimento de Ricardo e da tendência para a descida da taxa de lucro
que logicamente deriva das suas teorias da população e do valor.
Efectivamente, para uma ciência que advoga o laissez-faire as
perspectivas de conflito social insanável e de estagnação futura não
são certamente as mais exaltantes. Segundo os críticos marginalistas,
os “erros” de Ricardo teriam tornado a Economia Política vulnerável à
crítica socialista.
Para muitos economistas do final do século XIX a Economia
Política não podia ser reformada, ela tinha de ser refundada e o
primeiro elemento a substituir era a teoria do valor-trabalho.
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A nova teoria do valor
No início da década de 1870 três economistas - William Stanley
Jevons (1835-1882), Léon Walras (1834-1910) e Carl Menger (1840-
1921) - apresentaram uma nova abordagem para a questão do valor
que é inspirada, pelo menos no caso de Jevons, na noção de utilidade
de Bentham. De acordo com esta perspectiva, o valor das coisas
depende não do trabalho que a sua produção envolve, mas da
utilidade que elas proporcionam a quem delas usufrui.
Além disso, a utilidade que os bens proporcionam não é
constante, ela depende da quantidade que está disponível ou se
consumiu. A utilidade dos bens depende da sua raridade. A utilidade
de um bem é tanto menor quanto maior a quantidade disponível desse
bem, ou quanto maior a quantidade que foi consumida. A utilidade de
um copo de água no deserto pode ser maior do que a de um diamante,
mas esta utilidade pode ser nula para quem está ao lado de uma fonte.
A utilidade marginal, ou seja, a utilidade da última unidade consumida
ou a “intensidade do último desejo satisfeito” (Walras) é o que
determina o valor das coisas.
Acontece que a utilidade marginal, segundo o que na época se
acredita ser uma lei psicológica fundamental, é decrescente. A “lei da
utilidade marginal decrescente”, similar à “lei dos rendimentos
decrescentes” de Ricardo, permitiria não só resolver o famoso
“paradoxo da água e dos diamantes” de Smith3 como parecia ser
muito plausível. Mesmo para alguém que está com muita sede no
deserto a utilidade de cada copo de água vai diminuindo à medida que
vão sendo bebidos copos de água adicionais. Admitindo a possibilidade
3 Este paradoxo descreve a perplexidade de A. Smith ao constatar que sendo a água um bem essencial à vida apresentava, não obstante, um valor de troca muito baixo enquanto que os diamantes, um bem supérfluo, apresentavam um valor de troca elevado.
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de quantificação da utilidade associada ao acto de beber água, a
situação descrita pode ser representada da seguinte forma:
Copos de água Utilidade total Utilidade marginal
1 1010
6
3
1
2 20
3 26
4 29
5 30
Note-se que se em vez de copos de água considerarmos uma
quantidade contínua de água, a utilidade total pode ser descrita sob a
forma de uma função matemática de que a utilidade marginal é a
primeira derivada. A noção de utilidade parecia portanto proporcionar
aos marginalistas o campo para o uso da matemática que procuravam.
Uma lei fundamental do comportamento económico individual
estabelecia então que os indivíduos racionais enquanto consumidores
e trabalhadores procuram maximizar a utilidade. Sobre esta lei
deduziam então os marginalistas as curvas das procura e da oferta que
relacionavam as quantidades procuradas e oferecidas dos bens com o
seu preço de mercado – como a utilidade marginal é decrescente o
montante monetário que um indivíduo está disposto a pagar por um
bem vai diminuindo à medida que a quantidade consumida dessa bem
aumenta; como a desutilidade do trabalho é crescente, a quantidade
oferecida de um bem só aumenta se aumentar o seu preço de
mercado.
Com estes desenvolvimentos, a teoria do valor dos marginalistas
não só dá origem a uma teoria dos preços como se transforma numa
teoria dos preços. Preço e valor, na medida em que a utilidade tem
sempre equivalência num preço, são uma e a mesma coisa. Depois de
alguns acrescentos, esta teoria é a que se pode encontrar ainda nos
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mais vulgares manuais de Introdução à Economia e nos livros de
Microeconomia.
A ênfase no equilíbrio e na análise estática
No centro da economia marginalista e da corrente neoclássica que
lhe sucedeu está portanto uma teoria dos preços. Pretende-se
compreender o modo como os preços dos bens e dos factores de
produção – trabalho, capital e terra - se formam no mercado, assim
como as propriedades desta economia de mercado. Dois resultados
importantes emergem logo nas primeiras análises das propriedades
dos mercados: a) o equilíbrio, isto é, a igualdade entre as quantidades
oferecidas e procuradas tende a estabelecer-se no mercado; b) a
situação de equilíbrio é eficiente.
Na situação de equilíbrio todos agentes do lado da procura que
estão dispostos (ou podem) pagar o preço de mercado do bem ou do
factor encontram bens e factores disponíveis para venda e todos os
produtores e detentores que estejam dispostos a vendê-los pelo preço
de mercado encontram comprador. A situação de equilíbrio é estável
no sentido em que ninguém pode comprar mais barato e ninguém
pode vender mais caro.
Além disso, esta situação de equilíbrio é eficiente, isto é, não é
possível melhorar a situação de um ou mais agentes sem piorar a de
pelo menos um outro. Note-se que a situação não seria eficiente – os
recursos não estariam a ser utilizados da melhor maneira possível –
caso fosse possível melhorar a situação de todos em simultâneo e isso
não tivesse ocorrido.
A ênfase na economia marginalista e neoclássica é, portanto,
conferida à análise do equilíbrio e da estabilidade. A dinâmica do
sistema económico, que tinha interessado os clássicos, nomeadamente
quando se interrogaram acerca da tendência dos lucros no longo
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prazo, era ignorada, sobretudo porque parecia envolver problemas
demasiado difíceis de resolver com a matemática então disponível.
Nesta análise estática, segundo Jevons o problema da ciência
económica poderia ser enunciado da seguinte forma: “dada uma
determinada população, com necessidades conhecidas e capacidade
de produzir, dispondo de uma quantidade dada de terras e de outros
recursos, pretende-se determinar o modo de utilização do seu trabalho
que maximizará a utilidade do produto”4.
A análise do equilíbrio do mercado baseava-se em Walras no
modelo de equilíbrio geral – um sistema de equações simultâneas que
procurava representar a forma como os preços se formam em
simultâneo em todos os mercados de bens e factores. Mais tarde,
Marshall, num esforço para integrar o tempo na análise dos mercados,
propôs uma análise de equilíbrio parcial, isto é, uma análise da
formação dos preços em cada mercado separadamente, mais fácil de
manejar conceptual e matematicamente. A partir daí a microeconomia
divergiu em dois ramos que ainda hoje subsistem – equilíbrio geral e
equilíbrio parcial.
3. Síntese
O utilitarismo de Bentham proporcionou aos marginalistas o
conceito sobre o qual iriam revolucionar a Economia Política.
A substituição da teoria do valor-trabalho pela teoria do
valor-utilidade, a formalização matemática, a adopção do
indivíduo em detrimento da classe social como unidade de
análise, a ênfase na estática e no equilíbrio, correspondem,
a aspectos fundamentais da transformação da Economia em
finais do séc. XIX. 4 Jevons citado em M Blaug, A História do Pensamento Económico, 2º volume, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1990, p.19.
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Esta nova Economia pretende ser essencialmente positiva,
separada da Ética e da Política. Reveladores desta intenção
são o facto de Walras utilizar a expressão “Economia Pura”
como título da sua obra fundamental e de Jevons ter
proposto com sucesso a alteração da designação da
disciplina de Economia Política para Economia (Economics).
4. Bibliografia
Para um panorama geral ler, por exemplo,
Backhouse, Roger (2002), The Penguin History of Economics,
Londres: Peguin Books, Caps. 4 a 6
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