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    Gabriela Borges, Renato Luiz Pucci Jr., Flvia Seligman (eds.)

    Volume I

    TelevisoFormas Audiovisuaisde Fico e de Documentrio

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    Gabriela Borges, Renato Luiz Pucci Jr., Flvia Seligman (eds.)

    TelevisoFormas Audiovisuaisde Fico e de Documentrio

    Volume I

    1 edio | Faro e So Paulo | 2011

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    Borges, Gabriela; Pucci Jr., Renato; Seligman, Flvia eds.Televiso: Formas Audiovisuais de Fico e de Documentrio. Volume IGabriela Borges, Renato Luiz Pucci Jr., Flvia Seligman Faro e So Paulo, 2011ISBN: 978-85-63552-02-0

    1.Televiso 2. Fico 3. Documentrio 4. Anlise Audiovisual 5.Ttulo

    Televiso: Formas Audiovisuais de Fico e de DocumentrioVolume I

    Organizao: Gabriela Borges, Renato Luiz Pucci Jr., Flvia SeligmanDesign Grfico: Bloco DReviso: Gabriela Borges, Renato Luiz Pucci Jr., Flvia Seligman

    EDIES CIACConselho Editorial

    Ana Isabel SoaresAntnio BrancoDavid AntunesEugnia VasquesGabriela Borges

    Joo Maria MendesMirian TavaresVtor Reia-Baptista

    CIAC/Universidade do AlgarveFCHS, Campus Gambelas 8005-139 FaroT. 289800900 ext. 7541www.ciac.pt

    Diretoria Socine(2010 2011)

    Presidente: Maria Dora Genis Mouro, ECA USP

    Vice Presidente: Anelise Corseuil, UFSCTesoureiro: Paulo Menezes, FFLCH USPSecretria: Mariana Baltar, UFF

    SOCINE/ Departamento de Cinema, Rdio e TelevisoEscola de Comunicaes e Artes da Universidade de So PauloAv. Prof. Lcio Martins Rodrigues, 443, So Paulowww.socine.org.br

    Faro e So PauloSetembro 2011

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    Sumrio

    007_Introduo

    01 1 _Percursos Narrativos na Televiso

    A televiso aps a hecatombeArlindo Machado

    O recurso fico em dois filmes documentais portuguesesEduardo Cintra Torres

    Linha direta justiae a reconstruo do regime militarMnica Almeida Kornis

    O Amor segundo B. Schianberg - Muito alm do reality showAnglica Coutinho

    Audiovisual por ele mesmo: No estranho planeta dos seres audiovisuaisDennison de Oliveira

    077_Recriaes e Transcriaes

    Play it again, Sam. Narrativas beckettianas nos meios audiovisuaisGabriela BorgesParticularidades narrativas da microssrie Capitu

    Renato Luiz Pucci Junior pa : elementos narrativos atualizados entre o cinema e a televisoFlvia SeligmanUm filme para cinema, um episdio para televiso: o caso da adaptao dupla de O louco do CatiFabiano Grendene de Souza

    127_Narrativas seriadas

    As duplas vidas nas sries televisivasMauro Eduardo PommerL for LOSTGlauco Madeira de ToledoThe west wing: anlise dos recursos estticos do episdio pilotoRegina Lcia Gomes Souza e SilvaArquivo X. Um estudo da linguagem audiovisual na televisoLus Eduardo RodriguesMocinhos e Bandidos: o policial brasileiro como gnero na televisoLuiza Cristina LusvarghiCinema na tev: um estudo das produes ficcionais da RBS TVMiriam de Souza RossiniAspectos do tempo diegtico na telenovela O grito, de Jorge AndradeSabina Reggiani Anzuategui

    207_ Colaboradores

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    Introduo

    Este livro resultado das actividades desenvolvidas no seminrio temtico Televiso: For-mas Audiovisuais de Fico e Documentrio, do XIV Encontro Internacional da SOCINE(Sociedade Brasileira de Cinema e Audiovisual), realizado na Universidade Federal de Per-nambuco em outubro de 2010. O encontro de pesquisadores de diferentes universidadesbrasileiras e estrangeiras interessados em discutir o estado da arte dos estudos televi-sivos, em particular na sua inter-relao com o cinema, foi bastante profcuo. Em funodisso, os coordenadores do seminrio organizaram esta coletnea com o intuito de dar

    a conhecer os projetos e as reflexes mais recentes que se desenvolvem neste campo,sistematizar as principais questes tericas e empricas que mobilizam as pesquisas emcurso e delinear, a partir do incio de um dilogo entre as academias brasileira e portu-guesa, alguns pontos de interesse e preocupaes comuns que propiciem o aprofun-damento do debate sobre a televiso. Neste sentido, foi realizada uma parceria entre aSOCINE e o CIAC (Centro de Investigao em Artes e Comunicao) da Universidade doAlgarve para a co-edio deste livro.

    Em vista da excepcional relevncia cultural da televiso desde o incio da segunda metadedo sculo passado, torna-se imprescindvel aprofundar o conhecimento do meio a fim

    de avanar na discusso de problemas de pesquisa ainda muito prementes. Apesar de apesquisa sobre a televiso se mostrar bastante desenvolvida em relao a aspectos comoa recepo e a produo, a anlise audiovisual ainda o grande desafio a ser superado.Em Storytelling in film and television(2003), Kristin Thompson aponta o notvel atrasoda pesquisa com anlise de produtos televisivos e sugere que este decorre da visodominante, at h poucas dcadas, de que a programao da televiso seria constitudapor um fluxo homogeneizador e hipnotizante (Raymond Williams), concepo que noabriria espao para o exame detalhado de produtos especficos. A autora indica as razespor que o paradigma do fluxo televisivo deve ser afastado, entre elas a de que tantoconstataes empricas quanto dos estudos de recepo indicam que os telespectadoresconseguem distinguir claramente entre um programa e outro, assim como entre oprograma e os intervalos comerciais, o que estava fora do horizonte da ideia de fluxo.Com isso, a pesquisa no campo pode se valer do know-how da anlise flmica. ArlindoMachado, no livroA televiso levada a srio(2000), que se tornou um marco nos estudostelevisivos no Brasil, tambm levanta o mesmo ponto ao sugerir a importncia do estudoe da anlise dos programas televisivos, muito mais que do fluxo da programao. Almdisso, enfatiza a importncia da televiso como um meio de expresso esttica comotantos outros, tais como o cinema, a literatura e o teatro, e indica um repertrio bsico deprogramas televisivos, propondo assim um reenquadramento da discusso da qualidadena televiso. No livro Discursos e Prticas de Qualidade na Televiso, lanado em Portugal

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    em 2008, Gabriela Borges sistematiza a anlise de prticas de qualidade na televisolatino-americana e europeia, com o intuito de apresentar metodologias de anlise de um

    dos principais elementos constituintes do meio televisual, o programa.

    De certo modo, e mesmo que tangencialmente, a questo da qualidade perpassa todosos artigos deste livro. A proposta concentra-se assim no exame de produes ficcio-nais e documentrias da televiso, tendo em vista o debate e o avano do conhecimentode produtos especficos, ou grupos de produtos, assim como de proposies de carterterico e perspectivas que abarcam o sentido da produo televisiva, em suas respec-tivas conjunturas histrica, social e cultural. O enfoque se centra nos aspectos estils-ticos, narrativos e de composio audiovisual, com o objetivo de debater ocorrnciasespecficas do meio ou que possuem denominadores comuns com outras artes e mdias.

    Sendo assim, a partir de diferentes perspectivas tericas, vrios modos de articulao dalinguagem audiovisual so explorados na leitura do fazer televisual de cada um dos pro-gramas analisados.

    O livro est organizado em trs sees: Percursos Narrativos na Televiso; Recriaes eTranscriaese Narrativas Seriadas.

    A primeira seo, Percursos Narrativos na Televiso, aborda o experimentalismo e a cria-tividade na televiso, bem como a intrincada relao entre a fico e a realidade nestemeio. Os textos partilham o estudo da construo sgnica da narrativa a partir dos ele-

    mentos que compem a linguagem, pois se debruam sobre uma leitura atenta dos seusmodos de significao. O artigo de abertura do livro apresenta o trabalho do pesquisadorconvidado para o seminrio de Televiso da SOCINE, Arlindo Machado, que continua adesenvolver a sua pesquisa sobre o tema da experimentao na televiso. Ao analisar oprograma italiano Cinico TV(1989-1993), de Cipr e Maresco, que concebido como umainterveno pirata na televiso, o autor discute a qualidade da televiso italiana a partirdas caractersticas estticas e estilsticas do programa. de destacar tambm o artigo dopesquisador portugus Eduardo Cintra Torres, convidado para participar desta coletneaa partir de sua interveno num outro painel da SOCINE. O artigo analisa a fico comouma ferramenta de evidenciao do real em documentrios portugueses contempor-neos, alm de corroborar com a proposta deste livro de empreender um dilogo entre asacademias brasileira e portuguesa, aproximando os trabalhos de anlise audiovisual queesto a ser desenvolvidos nos dois pases. Por outro lado, a anlise dos outros produtosaudiovisuais presentes nesta seo abordam o experimentalismo em recentes propos-tas veiculadas na televiso brasileira e a construo da fico a partir de traos do real,apontando para uma reflexo sobre a veracidade e as questes ticas envolvidas na cons-truo sgnica, tanto do ponto de vista da produo quanto da recepo.

    A segunda seo,Recriaes e Transcriaes, envolve o problema da migrao de produtosentre a televiso e outros meios. Trata-se da recorrente problemtica da adaptao, que

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    tem sido abordada segundo diferentes conceituaes: traduo intersemitica, trans-mediao, entre outras, cada qual com sua carga terica especfica. Numa poca de

    convergncia entre os meios, essa problemtica alada ao primeiro plano dos estudosde televiso, tal o nmero de ocorrncias exibidas nas telas. Os quatro textos da secose voltam para uma notvel experincia no mbito da cultura europeia e para realizaesem trs distintos estados brasileiros: Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul, o que um indcio da crescente disseminao de atitudes ousadas em adaptaes televisivas noBrasil. Os autores dos textos deixam de lado o insuficiente parmetro da fidelidade aooriginal e se voltam para o exame das solues tcnicas, narrativas e de linguagem natransposio do teatro, da literatura e do cinema para produtos televisivos de impactoqualitativo ou de audincia. Seja a partir do teatro de Beckett, seja desde o mais celebradoromance de Machado de Assis, de uma pea popular do teatro baiano ou da bifurcaocinema/TV levada a cabo numa produo dupla e parcialmente simultnea, os elementosoriginais so incorporados quando possvel, metamorfoseados quando necessrio,deixados de lado e trocados por outros quando novos caminhos se apresentam. Para almdas restries de especificidade de cada meio, que em outros tempos tiveram tanto pesopara a realizao e para a critica, por exemplo, nas formulaes de Clement Greenberg(1940), as experincias analisadas nesta seo do conta da intensa troca entre os meios eda busca incessante de solues que produzam no rplicas do original, mas um produtotelevisivo marcante. Apontam tambm para o imenso potencial narrativo da televiso,ainda por ser devidamente explorado.

    A terceira seo, Narrativas Seriadas, aborda as sries televisivas e os novos formatos, prin-

    cipalmente em produes norte-americanas e brasileiras. Ressaltamos que o pesquisadorbrasileiro Mauro Pommer, que apresentou seu trabalho em outro painel da SOCINE, foitambm convidado a participar desta coletnea pelo interesse do seu trabalho para osestudos televisivos. Nos ltimos anos, as sries norte-americanas ganharam evidncia nocenrio internacional devido ao sucesso de pblico mas, principalmente, devido quali-dade das propostas narrativas que apresentam. Autores como Greeber (2004), McCabee Akass (2007) e Nelson (2007) abordam no apenas a popularidade destas sries, mastambm as suas novas propostas narrativas que ultrapassam a discusso da relao entrecinema e televiso ao serem inseridas no mercado global de convergncia das mdias.A criao de personagens multifacetadas e narrativas transmdias para pblicos especfi-

    cos, em geral organizados em f clubes, reconfigura tanto a discusso sobre a qualidadena televiso quanto o prprio modo de se fazer televiso no mundo globalizado. Os au-tores centram-se assim na anlise dos aspectos estilsticos e estticos, sem descuidarda importncia dos aspectos mercadolgicos em tais produes. No caso brasileiro, assries e, principalmente, as minissries tm explorado temas e formas diferenciadas e setornaram no grande palco da experimentao na televiso. Sendo assim, os textos destaseo apontam algumas raridades em termos da anlise audiovisual, centrando-se, porum lado num gnero ainda pouco estudado, o policial, e nas produes locais que movi-mentam o mercado regional do Sul do Brasil e, por outro lado, no gnero de excelnciada televiso brasileira, a telenovela. Entendemos que, por seu carisma e proximidade com

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    o pblico, as narrativas seriadas da televiso constituem um dos mais caros produtos,tratados com muito prestgio pelas emissoras e patrocinadores. Por conta disto os textos

    analisam a tcnica mas sobretudo o contedo e a forma como este contedo se dispe,como ele chega ao pblico e qual o impacto na produo audiovisual.

    Ressaltamos que optamos por manter as redaes especficas de Portugal e do Brasil afim de respeitar o estilo dos autores. Para finalizar, destacamos ainda que este o pri-meiro seminrio dedicado especialmente aos estudos televisivos no seio da SOCINE, as-sociao de pesquisadores que durante muito tempo esteve voltada aos estudos de cine-ma. Por essa razo, consideramos de suma importncia tanto a realizao do seminrioquanto a publicao deste livro, que apontam para perspectivas de aprofundamento dosestudos do audiovisual.

    Referncias

    BORGES, Gabriela e REIABAPTISTA, Vtor (2008). Discursos e prticas de qualidade nateleviso. Lisboa: Livros Horizonte.

    GREEBER, Glen (2004). Serial television. Big drama on the small screen. Londres, BFIPublishing.

    GREENBERG, Clement. (1940). Rumo a um novo Laocoonte. In: FERREIRA, Glria;COTRIM, Ceclia. - Orgs. - (1997). Clement Greenberg e o Debate Crtico. Rio de Janeiro:Jorge Zahar.

    MACHADO, Arlindo (2000).A televiso levada a srio. So Paulo: Ed. Senac.

    MCCABE, Janet e AKASS, Kim (org.) (2007). Quality TV. Contemporary American televisionand beyond. Nova Iorque: I.B.Tauris.

    NELSON, Robin (2007). State of play. Contemporary high-end TV drama. Manchester:Manchester University Press.

    THOMPSON, Kristin (2003). Storytelling in Film and Television. Cambridge/Londres:Harvard University Press.

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    Percursos Narrativos

    na Televiso

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    A televiso normalmente praticada e pensada como o lugar por excelncia do entrete-nimento leve e descompromissado, o espao do espetculo pueril, em geral voltado a umcotidiano andino, diante do qual o cidado comum pode relaxar-se depois de um diaou uma semana de trabalho duro. Ao contrrio de outros meios e artes, poucas so, emteleviso, as experincias de risco, capazes de levar as possibilidades expressivas dessemeio para alm dos seus limites institucionais. Exatamente por essa razo, os intelectuaisde formao mais tradicional (Adorno certamente a referncia mais bvia) resistem

    tentao de vislumbrar qualquer alcance esttico nos produtos televisivos, produtos es-ses no geral fabricados em escala industrial para uma massa indiferenciada e pouco sele-tiva. No modo de entender desses intelectuais, a boa, profunda e densa tradio cultural,lentamente filtrada ao longo dos sculos por uma avaliao crtica competente, no podeter nada em comum com a epidrmica, superficial e descartvel produo em srie deobjetos comerciais de nossa poca, da porque falar em criatividade ou qualidade estticaa propsito da produo televisiva s pode ser uma perda de tempo.

    Mas, de repente, surge na televiso italiana e justo na italiana, considerada uma das pioresdo mundo uma experincia singular e extraordinria de televiso, uma experincia, pela

    primeira vez, radicalmente autoral, tanto no sentido de que constri um estilo prprio euma viso pessoal de mundo, como tambm no sentido de que as assinaturas dos seusdois autores aparecem na primeira cartela de abertura do programa, como as dos pintoresapareciam no p do quadro. Trata-se de Cinico TV, de Cipr e Maresco, como aparecena primeira cartela, referindo-se aos seus criadores Daniele Cipr e Franco Maresco.O programa esteve no ar de 1989 a 1993, primeiro pela Televideo Market (TVM), de Palermo,e depois em horrio nobre pela rede nacional Radio e Televisione Italiana (RAI-TRE), almde posteriores especiais e contnuas reprises, sempre acompanhado por uma legio defs fidelssimos em toda Itlia. Foi considerado pelo cineasta Bernardo Bertollucci a nicacoisa inteligente que aconteceu no audiovisual italiano nas ltimas trs dcadas.

    A primeira coisa que chama a ateno nesse programa a radical opo pelo preto ebranco (jamais entra cor no programa). Mas no um preto e branco qualquer. Pelocontrrio, atravs do uso sistemtico de um filtro dgrad, que amplia os contrastes nas

    1_ Agradeo a colaborao de Marta Luca Velez (Universidad de Caldas, Manizales, Colombia) pela buscados programas, traduo do italiano, entrevista com um dos diretores e, sobretudo, pela discusso dotexto e colaborao na construo das idias.

    2_ O contedo deste texto foi apresentado no Seminrio TV: formas audiovisuais de fico e documentrioda SOCINE em 2010 e posteriormente publicado na Revista e-comps em 2011.

    A televiso aps a hecatombeArlindo Machado

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    partes mais altas do quadro, as nuvens so exageradamente carregadas, dando a impressode que uma tempestade iminente vai desabar sobre as cabeas dos protagonistas. Tudo

    construdo como se fosse uma interferncia pirata na televiso. Tanto os planos iniciaise finais do programa, como as passagens entre os vriossketches, so constitudos pelochuvisco caracterstico da televiso fora do ar. De repente, quebrando todo o glamourespetacular e multicolorido do fluxo televisivo, entra no ar um objeto estranho, assustador,com uma visualidade que nada tem a ver com aquilo que se entende por televiso,expondo as vsceras de um punhado de personagens terminais, horrorosos, patticos,num cenrio de runas que evoca uma paisagem aps uma hecatombe nuclear. Dizemos especialistas que se o mundo fosse submetido a uma guerra atmica, os nicos seresvivos que sobreviveriam seriam as baratas. Aqui temos um cenrio aps o cataclismo final,onde as baratas sobreviventes foram metamorfoseadas em formas humanas ou semi-humanas, contrariando Kafka, que imaginou, em seu Die Verwandlung(A Metamorfose),a histria de um homem que se transforma em inseto.

    Tudo comeou um pouquinho antes, em 1986, no canal TVM, de Palermo, capital da pro-vncia de Siclia, como se sabe, a regio economicamente mais pobre da Itlia, alm debero do banditismo organizado, a Mfia. A TVM foi uma das primeiras televises livres daSiclia, inclusive tambm da Itlia. O movimento das rdios e televises livres na Europa,que sucede o anterior movimento das rdios e televises piratas, visava se contrapor aochamado monoplio estatal das ondas eletromagnticas, ou seja, concentrao de todopoder de emisso radiofnica e televisiva nas mos exclusivas do governo nacional. Numprimeiro momento, era um movimento de contestao, liderado principalmente pelas for-

    as de esquerda, mas, num segundo momento, esse movimento serviu de arete para asempresas comerciais de comunicao pressionarem os governos em prol de uma aberturapara as rdios e televises privadas. Depois de vrios enfrentamentos e mudanas, mui-tas televises livres foram legalizadas e transformadas em televises comunitrias locais,como foi o caso da TVM. Aps a legalizao, este canal se dedicou principalmente reali-dade siciliana, mas para sobreviver, uma vez que no era uma televiso pblica, nem estavana rota dos grandes anunciantes, mantinha vrios programas de tele-vendas (da o nomeTelevideo Market). Foi nesse canal que Cipr e Maresco, ambos nascidos em Palermo, pu-deram realizar seus primeiros experimentos com televiso, atravs de programas dirigidosa jovens, emisses de jazz (uma paixo dos dois) e at mesmo pardias dos programas de

    tele-vendas. Em troca desse trabalho, a TVM lhes emprestava cmeras e lhes dava acessos ilhas de edio para que eles pudessem realizar os seus prprios trabalhos experimen-tais. Assim, eles tiveram a oportunidade de criar, de maneira inteiramente independente,vrios ensaios de curta durao que, eventualmente, tambm podiam ser exibidos nosintervalos entre os programas da TVM. Esses curtas j lidavam, de forma ao mesmo tempocnica e cmica, com os problemas da comunidade palermitana, como a pobreza, a vio-lncia, a solido, o abandono, o crime organizado e o caos urbanstico da cidade. Foramesses curtas que deram origem idia de Cinico TV, um programa de tipo fragmentado,constitudo de pequenossketches, depois agrupados em edies dirias de cinco a dezminutos (salvo algumas excees mais longas), que foram originalmente exibidos na TVM.

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    Em 1990, os jornalistas Didi Gnocchi e Mimmo Lombezzi, que realizavam Isole com-prese(Ilhas Comprimidas), um programa sobre as televises locais da Itlia, para a rede

    Italia-UNO, interessaram-se pelas emisses de Cipr e Maresco no canal TVM e os con-vidaram a participar do programa. Mas os dois autores realizaram poucas contribuiespara Isole comprese, pois muito rapidamente foram censurados e despedidos, em ra-zo de uma emisso que se referia explicitamente a Silvio Berlusconi, o Big brother daItlia, controlador de todos os meios de comunicao pblicos e privados (inclusive daItalia-UNO) e, ainda por cima, primeiro ministro do pas (na Itlia, equivalente a presi-dente). Nessesketch, intituladoA Silvio3, o personagem ciclista de Cinico TV, FrancescoTirone, aparece sentado diante de um aparelho de televiso, com a imagem de Berlusconiao fundo, enquanto uma voz over lhe pergunta: Buona sera, ma vero che il potenteBerlusconi starebbe per comprare la Sicilia? (Boa noite, mas verdade que o poderosoBerlusconi quer comprar a Siclia?)4 E Tirone, com um forte acento siciliano, lhe responde:

    Ma veramente il signor Silvio pu anche averli, tutti questi soldi dacomprarse anche isole intere [...] e ci credo a questo, anche la Siciliasi potrebbe comprare. ricco, un migliardario che nessuno lo puabbattere, neanche Onassis, che cha la flotta navale. [...] Io, secondome, Berlusconi mi guarder anche via radare, penso che parler anchecon quelli della marina italiana, penso che mi segue, mi vede. Controllatutti con i radari Berlusconi, essendo uno che dirige tutti gli Stati e chaquesta potenza di avere questo buon governo televisivo. [...] Ma inquesto caso per me sar pi potente Berlusconi che il papa, che il

    papa dirige la televisione pure, quella vaticana, ma il signor Berlusconidirige la televione mondiale. [...] Veramente, esiste Berlusconi; esistein tutte le parti; in tutte le citt dItalia esiste Berlusconi, che ci seguea tutti. [...] Berlusconi st anche nelle nuvole, sai?. In alto. Berlusconi una persona che va correndo con aerei in tutte le parti del mondo.Berlusconi pure in mezzo allacqua, in mezzo alle tempeste. [...] unapersona pi celeste che diciamo noi. come un santo secondo il mioparere. Cosa le posiamo dire?5

    3_ Uma citao irnica do famoso poema de Giacomo Leopardi,A Silvia(1828), sobre uma jovem quemorreu de tuberculose.

    4_ Todas as citaes de dilogos do programa, bem como as citaes retiradas de textos publicados emlngua estrangeira so de traduo nossa.

    5_ Traduo aproximada: Realmente, o senhor Silvio tem dinheiro suficiente para comprar ilhas inteiras,[] inclusive poderia comprar a Siclia. rico, um milionrio que ningum pode derrotar, nemsequer Onassis, que tem uma frota naval. [...] Eu, para mim, creio que Berlusconi me vigia tambmatravs do radar, penso que fala tambm com esses da Marinha Italiana, penso que me segue, mev. [...] Berlusconi controla todo mundo por radar e dirige todos os estados, tem essa potncia deter um bom governo televisivo. [...] Neste caso, para mim, Berlusconi mais potente que o papa,pois o papa tambm dirige a televiso, a do Vaticano, mas o senhor Berlusconi dirige a televisomundial. Realmente, Berlusconi existe; existe em todas as partes; em todas as cidades da Itlia existe

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    Nesse mesmo ano, alguns sketches de Cipr e Maresco foram apresentados em Fuoriorario(Fora de Horrio), dirigido por Enrico Ghezzi6, um programa noturno da RAI-TRE

    dedicado a filmes e vdeos inslitos. Finalmente, a partir de 1992, Cinico TVcomea a serexibido dentro do programa Blob(nome extrado de um filme americano de terror classeB), tambm dirigido por Ghezzi na mesma rede pblica. Blob um programa de cercade uma hora de durao, que exibido (inclusive ainda hoje) no horrio nobre das oitohoras da noite e se dedica crtica (s vezes implacvel) da televiso italiana, focalizandoo que foi ao ar nos dias anteriores (vide Fava, 1993). Muito adequadamente, Aldo Grasso(1992: XXIX) o classifica como um exemplo de meta-televiso, a televiso que se elege asi mesma como objeto de reflexo. A partir de ento, Cinico TV passa a se chamar Blob Cinico TVe se constitui como um programa dentro de outro programa, sem perder,entretanto, sua independncia, suas caractersticas prprias e a sua inteno de aparecercomo uma interferncia pirata na televiso.

    Cinico TVfoi um programasui generis, margem de qualquer formato de televiso co-nhecido. Sem nenhuma explicao, a televiso saa do ar por alguns segundos, ficava natela apenas o chuvisco tpico de fora do ar e entrava ento uma galeria de personagensabsurdos, um tanto escatolgicos, com um sotaque siciliano e plebeu quase ininteligvel(pelo menos os personagens que falavam, pois alguns eram mudos, outros gagos, algunsafsicos ou catatnicos e s balbuciavam frases incompreensveis). Tudo isso num pretoe branco lgubre, numa estranha periferia de Palermo (a parte central da cidade nunca mostrada, muito menos o seu conhecido balnerio mediterrneo), em meio a carcaasde edifcios semi-construdos e abandonados, ou a depsitos de lixo e dejetos de cons-

    truo civil, ou ainda no interior de cabanas arruinadas e vazias. A solido absoluta,quase metafsica, nunca h gente nas ruas, exceto aquele sub-lumpesinato aniquiladoe sem sada, no mais que uma dzia de zumbis que arrastam seus trapos (pelo menosos que esto vestidos, pois, na maioria das vezes, esto nus ou semi-nus) num cenriode destruio absoluta. o outro lado do capitalismo avanado, global e tecnolgico, olugar onde foi despejado tudo o que no deu certo e para onde migraram todos aquelesque fracassaram.

    Embora os episdios de Cinico TV fossem esteticamente apurados, como veremos frente, Cpri e Maresco no tiveram a preocupao de produzir programas com controle

    de qualidade, tecnicamente acabados segundo um princpio industrial. O programa

    Berlusconi, que segue a todos ns. Berlusconi existe tambm nas nuvens, sabe? No alto. Berlusconi uma pessoa que corre com avies por todas as partes do mundo. Berlusconi est tambm debaixodgua, no meio das tempestades. [...] Digamos que uma pessoa mais celeste que ns. Para mim, um santo. Que mais podemos dizer?

    6_ Enrico Ghezzi, alm de diretor de televiso, tambm um intelectual e estudioso dos fenmenos dacomunicao de massa com muito prestgio na Itlia. Dentre seus inmeros trabalhos publicados,destacam-se Il mezzo laria (1997) e Paura e Desiderio. Cose (Mai) Viste (2003), importantescontribuies para se entender a mdia contempornea.

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    tinha uma aparncia trash, embora no ficasse s nisso, como em outros exemplosinternacionais parecidos apenas na superfcie. No comeo usavam o VHS, depois passaram

    ao Umatic e s quase ao final captaram com Betacam. Nunca usaram luz artificial, s aambiente. No total, produziram 49 programas, todos eles realizados nos cafunds dePalermo e enviados atravs de cassetes a Roma, para exibio na RAI-TRE. Cada vez quechegava uma cassete, o pessoal da produo de Blobtremia nas pernas, s de imaginar oque poderia estar chegando!

    Pobre Siclia

    O sul da Itlia tem sido considerado, pelo menos pelos italianos do norte, como uma regioatrasada e sem nenhuma inclinao aos estandartes de progresso. Seus habitantes soestigmatizados como camponeses ignorantes, corruptos e mafiosos. A Mfia surge nessaregio no sculo XIX, na forma de cls familiares altamente organizados, que se dedicamao crime e ao exerccio autnomo de suas prprias leis, sob o amparo (ou negligncia)do Estado, da igreja catlica e dos meios de comunicao. L foi a terra do famosobandido Salvatore Giuliano, que tinha fama de roubar dos ricos para dar aos pobres, massabidamente servia ao mesmo tempo ao governo e Mfia. Por outro lado, a reduoda produo agrcola logo depois da Segunda Guerra e o surgimento da Mfia como umfenmeno tipicamente rural geraram grandes migraes de populaes camponesas aoscentros urbanos do sul da Itlia. A cidade de Palermo cresceu caoticamente, sem nenhumplano urbanstico. Ao mesmo tempo, a dificuldade de ocupar os edifcios do centro, porcausa dos danos causados pelos bombardeios durante a Guerra, provocou uma caticaproliferao de construes e auto-construes de imveis nas zonas perifricas dePalermo, sem nenhuma infra-estrutura, e grande parte dessas construes nem chegarama ser terminadas, ficando abandonadas, como se fossem fantasmas desvairados. Essaperiferia serviu tambm de depsito a cu aberto para despejo das runas da Guerra:edifcios condenados, indstrias arruinadas e falidas, cemitrios de trens e automveis,valas comuns onde os mortos eram enterrados em massa. nesse cenrio desolador quese passam os anti-acontecimentos de Cinico TV.

    Na dcada de 1980, quando Cipr e Maresco se conheceram, as ruas de Palermo erampalco de permanentes enfrentamentos das organizaes criminosas com a polcia, oexrcito e entre elas mesmas. O saldo era sempre uma infinidade de mortos e feridosde todos os lados e mesmo de parte da populao civil que no tinha nada a ver comisso. Nadando contra a mar, Cipr e Maresco criam um cineclube chamado Rosebud(referncia ao famoso tren de Citizen kane), onde diariamente projetavam os clssicosdo cinema para o pblico do bairro. Em uma entrevista sobre os seus primeiros anos detrabalho, Maresco conta:

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    Em uma zona morta da cidade, habitada por excludos e delinqentes,ns projetvamos o novo cinema alemo, o cinema clssico,

    Stroheim, Bergman e tnhamos um pblico que raramente superavaos cinco espectadores. Era preciso superar no apenas uma barreiramental, mas tambm os problemas prticos, na medida em que muitasvezes havia cinco mortos por dia e os helicpteros sobrevoavampermanentemente o bairro, o que desanimava ainda mais os poucosespectadores potenciais.7

    Cinico TV uma abstrao desse cenrio urbano, poltico e social da cidade de Palermo.No programa, Palermo se transforma numa cidade metafsica, lembrando certos cenriossurrealistas de Magritte e De Chirico, onde tudo o que acontece ultrapassa os limites da

    razo. Permanentemente coberta de nuvens carregadas, Palermo aparece sempre imvel,muda, surda, habitada por alguns poucos seres terminais, tambm eles paralisados,esperando passivamente a chegada do Juzo Final. Esses personagens, quase sempreseminus ou quase nus, alguns com defeitos fsicos, aparecem se arrastando lentamenteentre os dejetos, sem sequer lamentar a sorte ou emitir um gemido de dor, mas com umatristeza infinita e uma desolao sem cura. A nica coisa que se move, que fala sem parar,que tenta retirar esses personagens e cenrios de seu torpor, a televiso, a equipe deCinico TV, histrinica como se supe que deve ser toda televiso, tentando inutilmentearrancar algum depoimento significativo ou emocionante desses trapos humanos.

    Curiosamente, no h mulheres em Cinico TV. Embora muitos personagens lamentem ofato de nunca terem conseguido uma companhia feminina e freqentemente confessamque gostam de ficar espiando os casais fazerem amor, a mulher est fisicamente excludadesse universo. H vrias cenas de estupro, mas a vtima nunca aparece, ou quandoaparece visivelmente um homem travestido de mulher. Mas mesmo o estupro, quandoacontece, mais um ato banal de violncia por si s, frio e mecnico, sem qualquermotivao ertica ou prazerosa. Conforme segreda Maresco8, esse era um mundo ondeno podia haver desejo, no podia haver Eros. Nada pode ser mais trgico que um mundototalmente monossexual, pois se pelo menos fosse homossexual, haveria ali algum afeto.Na Palermo de Cinico TV, todos esto irremediavelmente abandonados, ilhados em suaprpria solido, no havendo horizonte para qualquer espcie de amor, afeto ou prazer,

    nem sequer companheirismo. Pior ainda: a impossibilidade do erotismo homem/mulher,conforme assinala Maresco9, significa a impossibilidade da esperana, a impossibilidadeda continuidade da espcie, o fim do humano.

    7_ Disponvel na internet. URL: . Consultado em 10Jan. 2011.

    8_ Entrevista a Marta Luca Vlez, em 19/09/2009, na Itlia.

    9_ Idem.

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    Cinico TV um programa cruel, que faz rir pelo absurdo das situaes, mas a suacomicidade trgica. Logo nos damos conta de que estamos rindo da desgraa humana

    e contemos imediatamente o riso, envergonhados. Cipr e Maresco ironizam o sicilianoe o italiano em geral, um povo que, embora cultuado como o bero da civilizaorenascentista e moderna, hoje elege gente como Berlusconi e os famosos pianistas docongresso nacional e v a pior televiso do mundo. Mas a fbula no se restringe apenasao feudo italiano, ela tem alcance mais universal e se aplica a qualquer lugar do mundoonde a marginalidade radical, a solido sem sada e a impossibilidade de mudana fatal. H algo a do teatro do absurdo, de Pirandello a Ionesco, passando pelo Camusde La Peste, mas principalmente por Samuel Beckett, de quem Cipr e Maresco admitemuma filiao incontestvel. O trgico bestirio de Cinico TVpassa a vida toda inutilmenteesperando Godot. Conforme Maresco:

    O que seguramente o pblico mais atento entendeu que ns noapenas levvamos um contedo diferente, uma Siclia diferente, mastambm levvamos uma linguagem diferente. Era uma linguagemcomo a do teatro que naquela poca se chamava beckettiano; o teatrodo uso do espao, do territrio, como ns fazamos.10

    De fato, o mundo de Cinico TV absolutamente parado. Os planos so abertos e fixos(no h mais que meia dzia de panormicas em toda a srie; nenhumzoom), lembrandoo cinema mudo, at mesmo no uso de um difusor que obscurece as bordas do quadro. Apaisagem no se mexe, as nuvens so estticas, as ruas vazias, os trens desabitados, nemmesmo as folhas das rvores tremulam ao vento. Ao fundo, uma viso meio fora de focoda cidade de Palermo paralisada, que poderia ser qualquer outra cidade. Os personagensparecem viver fora do tempo, com um olhar fixo perdido em direo a algum pontoenigmtico do universo. Esto quase sempre rgidos como uma esttua, com exceodos trechos em que danam alguma msica obscura dos anos 1920 ou 1930, commovimentos catatnicos ou robticos, ou quando manifestam algum tipo de espasmo,com se estivessem sofrendo algo como um ataque epilptico. Emitem murmriosafogados, gritos mudos, desafinam quando fingem que cantam, algumas gargalhadasso histrinicas, mas bruscamente interrompidas. Falam apenas para a televiso, quandoso entrevistados, pelo menos os que falam, pois muitos nem falar conseguem. Cospem

    muito freqentemente, uns nas caras dos outros, mas em geral cospem para cima, paraque o cuspe caia na prpria cara.

    10_ Idem.

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    Uma pardia da televiso

    A televiso italiana sempre foi um espao de disputas por poder e controle poltico. SilvioBerlusconi, por ser o primeiro ministro da Itlia durante trs mandatos, controla os trscanais pblicos nacionais, mas tambm o proprietrio do imprio Mediaset, alm dedeter o controle dos principais meios de comunicao privados da Itlia e da Europa,e ainda ser dono de bancos e de empresas de entretenimento, presidente do AC Milan,um dos principais times de futebol do pas, e como se isso tudo no fosse suficiente, freqentemente acusado de conexes com a Mfia. Foi citado pela revista Forbescomoo homem mais rico da Europa, com uma fortuna estimada em 12 bilhes de dlares.As estatsticas demonstraram que Berlusconi, em sua fase urea, controlou cerca de98% da audincia italiana e por isso sempre ganhou as eleies. Ele tambm uma das

    vtimas principais dos ataques de Cinico TV. Num dos episdios, os irmos Zucato (Pietroe Francesco) abrem um processo contra Berlusconi para pedir uma indenizao de umbilho e cem milhes de liras por ter embrutecido o irmo mais jovem, Marcelo, que setornou um dbil mental de tanto ver os programas das televises do primeiro ministro.Isso s foi possvel porque a RAI-TRE, que exibia Cinico TV, a rede que sofre menosinfluncia de Berlusconi, por estar nas mos da oposio (na Itlia, as redes pblicas deteleviso so distribudas entre os principais partidos). No por acaso, ela , dentre as trsredes pblicas, a primeira que Berlusconi cogita privatizar.

    Cinico TV ostensivamente uma pardia crtica dessa televiso que os italianos soobrigados a engolir diariamente. Todos os ingredientes da televiso esto l: as entrevistas,que no servem para nada, pois nem os reprteres sabem o que perguntar, nem osentrevistados tm algo a dizer; os intervalos, que tambm no tm nenhuma funo, a noser interromper o fluxo televisivo, pois no h nada a ser vendido nos breakscomerciais;a estrutura seriada, que s serve para repetir ad infinitumo conhecido calvrio dos pobresdiabos da periferia de Palermo. Aqui ou ali, esboa-se uma infeliz rplica de um videoclipe,com a voz quase inaudvel do pretenso cantor; performances musicais patticas, queesto abaixo de qualquer programa de calouros; um personagem que representa as fezesde um mendigo ou uma camisinha de quinta categoria usada por um casal gay. E, sobretudo,impe-se, o tempo todo, a voz autoritria da televiso, a voz over de um entrevistadorsempre invisvel (interpretado por Franco Maresco), como se fosse o deus beckettiano,

    gritando contra os indigentes, sem nenhuma piedade para com os miserveis expostosvoyeuristicamente diante da cmera, sempre em busca de temas sensacionalistas, comoum homem-bomba, um assassinato ao vivo, um suicida potencial deitado nos trilhos detrem, espera da locomotiva (que sempre se atrasa e quase nunca chega).

    O tempo, em Cinico TV, controlado de uma maneira contraditria. Como costumaacontecer na televiso, o tempo ditado pela metralhadora de cortes dos spotspublicitrios, ele escasso, preciso correr, editar muito rpido, no deixar nenhuma pausaou intervalo de silncio. Cada segundo, em televiso, vale muito dinheiro. A maior vtima

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    _21Televiso: Formas Audiovisuais de Fico e de Documentrio Volume I

    o personagem Carlo Giordano, que nunca consegue responder a nenhuma pergunta doentrevistador, pois o tempo de Cinico TVj acabou. Mas, contraditoriamente, h enormes

    seqncias em que nada acontece, programas inteiros onde se v apenas um personagemcuspindo sobre si prprio, ou comendo freneticamente sem parar, at vomitar em direo cmera. Tudo muito rpido, mas de repente tudo pra e no h mais nada a ver ououvir. como se Cinico TVquisesse, em alguns momentos mais privilegiados, colocar umfreio na televiso, barrar o fluxo, em nome de uma oportunidade de reflexo.

    Dois cinfilos na televiso

    Se Cinico TVpode ser visto como uma pardia da televiso, o programa no fica apenasnisso. H alguma coisa a mais que tem a ver com suas qualidades intrnsecas enquantouma obra de arte audiovisual. Cinfilos declarados, alm de muita experincia no cinema11,Cipr e Maresco trazem para a televiso toda uma experincia de visualidade que nasceucom o cinema, como o caso do preto e branco, da profundidade de campo, do esmeronos enquadramentos, do tratamento plstico da imagem e do plano contemplativo, semefeitos. Nesse sentido, so um pouco subversivos com relao ao que se supe ser umaesttica especfica da televiso e que tem sido definida como: a nfase no primeiroplano, a imagem chapada e sem profundidade, o quadro hbrido e repleto de efeitos desuperposio, a cor quente epope assim por diante. Cinico TV, quando aparece na tela

    de televiso, tem um ar um tanto dmod, parece um filme velho dos anos 1930 ou 1940,com uma esttica marcadamente cinematogrfica, mas j com rupturas experimentais,lembrando o primeiro Buuel, ou Maya Deren, Brakhage, Godard e Pasolini. Desde oincio, a paixo que unia Cipr e Maresco era o cinema, sobretudo o cinema experimental,mas os recursos a que tinham acesso na empobrecida Palermo eram apenas as cmerasde vdeo da TVM e a possibilidade de exibir na televiso. Por que ento no combinar asduas coisas? Por que no assumir uma tcnica e uma esttica da televiso, mas trazendopara dentro desse meio uma sensibilidade que o cinema destilou durante mais de cemanos? Evidentemente, os recursos expressivos da televiso no foram rechaados, htodo um trabalho com o gro videogrfico, com as distores eletrnicas dos sinais deimagem e som, uma nfase na fragmentao, na serialidade e na interrupo do programapara os intervalos. Foi o que fizeram tambm Rosselini, Bergman, Godard, Kluge, entreoutros cineastas que tiveram uma passagem pela televiso, mas com Cipr e Marescoessa investida sistemtica e sem nenhum tipo de concesso, apontando para algo assimcomo uma televiso experimental. Eis um depoimento significativo de Maresco:

    11_ Cipr e Maresco foram assistentes de direo de Pasolini em alguns filmes (e dedicaram a ele um docu-mentrio de longa metragem) e dirigiram vrios longa metragens em cinema, como Le zio de Brooklyn(1995) e Il ritorno di Cagliostro(2003), sendo mais conhecido o Tot che visse due volte(1998), princi-palmente por causa da polmica gerada pela sua proibio pela Comisso de Censura da Itlia.

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    Eu no me interessava por vdeo ou por eletrnica, mas por razesque j disse, de fazer da necessidade uma virtude, utilizamos o vdeo

    como se fosse cinema. Da precisamente o uso do preto e branco, ouso de alguns dgradse o uso de filtros e de algumas lentes. Maso que caracterizou CinicoTVfoi a utilizao de um enquadramentoessencialmente cinematogrfico. Com o uso de dgradse filtros, ecom o preto e branco, buscamos recriar o grande preto e branco docinema clssico.12

    Mas ainda que Cipr e Maresco ressaltem seu parentesco com o cinema, essa vinculaono ingnua, nem isenta de crtica. Freqentemente o cinema por eles utilizado comomatria de burla e pardia, como, por exemplo, no episdio Lalba del killer, onde os

    personagens Giudice, Tirone e Martino espancam Pietro Giordano com as coronhas deseus revlveres, exatamente como os macacos o fizeram com seus ossos no comeode 2001, a space odissey, inclusive ao som da mesma msica, Also sprach Zaratustra, deRichard Strauss. Como reconhece Maresco:

    Ironizamos, fizemos muita ironia citando aquele cinema. Porque bvio que citvamos esse cinema como em uma composio de

    jazz. No jazz existe o hbito de citar. Ento, tnhamos um gosto pelacitao.13

    Alm disso, Cipr e Maresco so muito freqentemente citados na Itlia como vinculadosao movimento italiano da vdeo-arte (por exemplo, em Lischi, 1996: 29; Sossai, 2002:111-113). De fato, a crtica implacvel televiso, mas de dentro da prpria televisoe com os recursos da televiso, a subverso dos recursos expressivos desse meio e,sobretudo, a temtica apocalptica aproximam Cinico TVde uma boa parte da produoitaliana de vdeo-arte. Nos primeiros trabalhos que Cipr e Maresco fizeram para a TVMh programas mais conceituais e mais prximos da arte do vdeo do que do cinema. Porexemplo, quando algo raro como uma bicicleta passa em movimento sobre os cenriosimveis da cidade de Palermo, a cmera de vdeo produz um efeito lag(permanncia naimagem das fases imediatamente anteriores do movimento, como se o deslocamentodo objeto deixasse um rastro atrs), impossvel de se obter com os recursos do cinema.Os prprios realizadores admitem essa filiao, quando afirmam:

    Ns trouxemos para a televiso nossa sensibilidade de visionrios, decinfilos. Por que no levar para l a pesquisa da imagem, o sentidodo enquadramento, a composio? Ns trouxemos a contaminao,

    12_ Entrevista a Marta Luca Vlez, em 19/09/2009, na Itlia.

    13_ Idem.

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    a possibilidade de inserir o cinema, o vdeo e a vdeo-arte no interiordo palimpsesto televisivo. Isso porque cremos que tambm possvel

    experimentar fazendo televiso, pois esta no s lixo. (apudMorreale,2003: 78).

    Os protagonistas principais

    O elenco de Cinico TV formado por um grupo de atores no profissionais, pessoascomuns da comunidade de Palermo que se dispuseram a interpretar os papis mais ex-cntricos e degradantes. Alguns tm fisionomia grotesca, outros so cheios de tiques

    e espasmos, outros simplesmente fogem dos estandartes geralmente utilizados na te-leviso. Eles formam um bestirio aterrorizador, ainda que irnico e cmico, que mostraos abismos infernais nos quais um ser humano pode afundar. No dizer de Sossai (2002:111), eles so flagrados pela cmera,

    [...] na imobilidade de uma condio de transe mstico, no ato dedesabafo das pulses de tipo manacas, ou de uma fisiologia elementare animalesca. O dilogo perde a sua primeira funo comunicativapara se transformar num longo interrogatrio e numa mortificanteautodefesa.

    Francesco Tironerepresenta o ciclista, personagem de um fortssimo acento plebeu, masum dos poucos que falam no programa, alm de tambm cantar (de modo horroroso).Interpreta tambm o Mafiaman, o super-heri que ajuda no se sabe se os bons ouos maus, porque em Cinico TVa fronteira entre ambos indiscernvel. Quase sempreconclui ossketchesem que aparece com a frase que o caracteriza: Ah! Ah! Siamo davveropietosi! (Ah! Ah! Somos verdadeiramente piedosos).

    Pietro Giordano o mais lamentvel de todos. Poderepresentar um corcunda, um estu-prador, um voyeur, um excremento, um preservativo usado, o dono de um cachorro

    morto, uma bomba esperando a chegada de um magistrado, o presidente da associaodos italianos fracasados, o ridculo Tarzan de Palermo, ou simplesmente um miseravelmudo, que passa seus dias chorando e cuspindo sobre a prpria cara.

    Marcello Miranda o maisrgido e silencioso, a personificao da desolao mais abso-luta. No fala, no se mexe, no olha para ningum, nem para lugar algum. Tem os braosrendidos para baixo e os ombros arqueados. Quando algum lhe cospe na cara, ele ape-nas pega seu leno e se limpa, voltando prostrao anterior. aquele que os irmosconsideraram imbecilizado pelos programas de Berlusconi e que, por essa razo, pediramindenizao. J tentou suicdio com uma bomba de gs.

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    Carlo Giordano o mais velho do grupo. Aparece s vezes com um punhado de balesde ar, sempre estourados por uma mo annima que vem de fora do quadro com um

    alfinete. Seu sonho poder voar, mas nunca tem bales suficientes. Gosta de contar pia-das indecentes e de ver revistas pornogrficas, e, quando comea a rir, ri como um aluci-nado e s pra quando a voz do entrevistador, fora de campo, lhe faz alguma pergunta.A pergunta termina sempre com a frase: Giordano, siamo al tramonto del sole e abbiamosoltanto un minuto. Prego. (Giordano, osol est se pondo e temos apenas um minuto.Por favor). Mas Carlo Giordano nunca consegue terminar a sua resposta, pois a televisoo coloca fora do ar no meio da frase.

    Giovanni Logiudice um cantor lrico e aparece quase sempre em uma espcie desimulacro de videoclipe, cantando canes cafonas e fazendo gestos estereotipados,

    lembrando mais um calouro de programa de auditrio, sempre em meio aos cenriosdesolados e aos escombros.

    Giuseppe Paviglianiti um semi-ano gordo, queaparece quase sempre semi-nu, mos-trando a barriga obscena, freqentemente comendo e bebendo sem parar, obviamentepeidando, com um olhar perdido no horizonte. H um especial de Cinico TV, um dosmais escatolgicos, em que ele come desvairadamente durante quase uma hora, arrota evomita diante da cmera, e volta novamente a comer.

    Giuseppe Fillangieri o personagem mais jovem, mas j com culos de lentes exagerada-

    mente grossas. um mstico, s fala (quando fala) de coisas do alm, mas vive permanen-temente amedrontado e intimidado pelas perguntas indiscretas da voz fora de campo.Quase nunca consegue responder a nenhuma pergunta, porque gagueja e fica com a vozbloqueada. Quando fala, sempre com uma voz frgil, tmida e quase inaudvel.

    Os irmos Abbate, Franco e Rosolino Abbate, so funcionrios de uma funerria e preparamos corpos dos inmeros mortos dirios de Palermo para os enterros. So ridculos, falam osdois ao mesmo tempo e repetem sempre os mesmos discursos, com a voz exageradamentealta, como se estivessem gritando de histeria. O nico problema deles quando precisampreparar um cadver feminino (que nunca aparece), pois ficam constrangidos.

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    Consideraes finais

    Cinico TVfoi, enfim, uma demonstrao de que a televiso pode ser outra coisa, podeser experimental e criativa, pode arriscar-se em direo a um audiovisual de insubmissoao gosto padronizado, um audiovisual de expresso de inquietudes no catalogadas,de modo a provar que h tambm vida inteligente na tela pequena. Os autoresdefenderam a idia de que a demanda comercial e o contexto industrial no inviabilizamnecessariamente a criao artstica, a menos que identifiquemos a arte com o artesanatoou com a aura do objeto nico. A arte de cada poca feita no apenas com os meios, osrecursos e as demandas dessa poca, mas tambm no interior dos modelos econmicose institucionais nela vigentes, mesmo quando essa arte francamente contestatria emrelao a eles. Por mais severa que possa ser a nossa crtica indstria do entretenimento

    de massa, no se pode esquecer que essa indstria no um monolito. Por ser complexa,ela est repleta de contradies internas e nessas suas brechas que os verdadeiroscriadores podem penetrar para propor alternativas qualitativas. Assim, no h nenhumarazo porque, no interior da indstria do entretenimento, no possam despontarprodutos como o caso de Cinico TV que em termos de qualidade, originalidadee densidade significante rivalizem com a melhor arte sria de nosso tempo. No htambm nenhuma razo porque esses produtos qualitativos da comunicao de massano possam ser considerados as verdadeiras obras criativas do nosso tempo, sejam elasconsideradas arte ou no.

    Referncias

    FAVA, Vladimir (1993). Il libro di Blob. Torino: Nuova Eri.

    GRASSO, Aldo (1992). Storia della televisione italiana. Milano: Garzanti.

    GUEZZI, Enrico (1997). Il mezzo laria.Milano: Bompiani.______ (2003). Paura e desiderio. Cose (Mai) Viste.Milano: Bompiani.

    LISCHI, Sandra (1996). Cine ma video.Pisa: ETS.

    MORREALE, Emiliano (2003). Cipr e Maresco. Alessandria: Falsopiano.

    SOSSAI, Maria Rosa (2002).Artevideo. Storie e culture del video dartista in Italia.Milano:Silvana Editoriale.

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    O recurso fico em doisfilmes documentais portugueses

    Eduardo Cintra Torres

    Basta que uma realidade seja intermediada pelo discurso para que intervenha apotncia

    da fico, pois uma realidade descrita, narrada ou analisada por palavras, sons ouimagens, deixa de ser essa realidade. Assim, a fico espreita em toda a intermediao.Metz pode afirmar, por essa razo, que todo o filme um filme de fico (1980: 57).Podemos aplicar aos contedos audiovisuais os princpios de ficcionalidade da literatura,abordando quer o ponto de vista do autor, quer fixando-nos no texto que ele criou, quero ponto de vista da recepo.

    Segundo Searle (1999: 66), absurdo supor que um crtico pode ignorar completamenteas intenes do autor ao examinar uma obra de fico. Pode aplicar-se este princpio deintencionalidade (Reis e Lopes, 2000: 160) a uma obra de qualquer gnero, ficcional ou

    no-ficcional. Deste modo, o critrio de identificao de uma obra como fico ou no-fico resultaria das intenes do autor, claramente expressas dentro ou fora do texto.Reis e Lopes acrescentam a abordagem de tipo contratualista: o acordo tcito entreautor e leitor sobre o carcter do texto (ibidem). Esse acordo incerto, pois dependetanto do mundo do texto como do mundo do leitor, criando-se o problema da fusode dois horizontes, da sua interseco, que afinal onde ocorre a mimesis (Ricoeur,1990: 79, 71). No caso das actividades culturais mais fortemente industriais, como ocinema, interfere tambm o contrato entre as partes envolvidas na produo.

    Quer a intencionalidade, quer o contratualismo, esto aqum e alm do texto, mas ava-

    liam-se em primeiro lugar pelo contacto com o prprio texto. O mesmo sucede quanto avaliao da fico como jogo diferenciado da mentira. Essa diferenciao ocorre atra-vs de uma srie de convenes que permitem ao autor fazer declaraes que ele sabeno serem verdadeiras apesar de no ter qualquer inteno de enganar (Searle, 1999: 67).

    A fico, no sendo identificvel como tal quando a sua referencialidade realista, pro-jecta tambm uma dimenso tica: o autor, em princpio, no pretende enganar porque afico um jogo; e o leitor no quer ser enganado excepto quando suspende voluntaria-mente a descrena. A tica ganha um importante lugar neste debate, mesmo que no sejareferida enquanto tal: Richard McCann diz que no importante a autenticidade do ma-

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    terial, mas a autenticidade do resultado, ou seja, o efeito provocado pelo filme (McCannapudPenafria, 1999: 32). Estamos de novo no domnio da recepo, agora ao abrigo do

    consequencialismo, atitude filosfica segundo a qual o valor duma aco deriva inteira-mente do valor das suas consequncias (Blackburn, 1996: 77).

    Entremos agora um pouco mais no texto. A fico um recurso generalizado na comuni-cao humana por ser particularmente prxima das formas narrativas: So sobretudo ostextos narrativos que melhores condies renem para encenarem a ficcionalidade pormeio da construo de mundos possveis (Reis e Lopes, 2000: 161). Deste modo, a fico a mais fcil forma de narrar, de apresentar o que o autor considera importante dizer. Porisso, muitos autores recorreram fico para exprimirem as suas ideias polticas, sociaisou outras. Por exemplo, o futuro primeiro-ministro britnico Benjamin Disraeli escreveu

    romances porque a fico, na ndole do tempo, oferecia a melhor chance de influenciara opinio [pblica] (apudBriggs, 1975: 98). Tambm o naturalismo tornava acessvel aosburgueses oitocentistas o outro mundo, o dos pobres, que eles desconheciam e de que,de outra forma, rejeitariam o conhecimento.

    O filme documentrio surgiu como contraponto fico, com o objectivo de dar aconhecer aspectos da factualidade do mundo real, sem recurso ao jogo da fico. Essecarcter tornou-se parte do contrato com o espectador. Deixamos de lado os cdigostcnicos e cinemticos da imagem, porque no campo da diferena formal no possvel diferenciar os filmes de fico dos de no-fico (Carroll, 2005: 73). O jogo,no caso do documentrio, tornou-se em geral o de pressupor que no se recorre sconvenes da fico criadoras de mundos paralelos, essencialmente metafricos, osquais se sobrepem ao mundo real. O documentrio apresenta-se como um filme deno-fico, um editorial ou um ponto de vista do autor sobre uma realidade bruta.Pode recorrer a elementos de fico, sendo apenas citada a reconstruo (Penafria,1999: 22-29). A reconstruo o recurso ficcional menos incmodo, pois visa aumentara realidade bruta pelo facto de o documentarista no poder ter presenciado o evento;, pois, uma espcie de ltimorecurso, como o dos jornais que contratam desenhadores(artistas) que ilustrem notcias sobre julgamentos onde as cmaras no so permitidas.

    No caso dos documentrios no mbito televisivo um tema que em si mesmo con-troverso, pois do lado da comunidade cinematogrfica os documentrios so filmes a flexibilidade em relao fico tem outra amplitude. So referidas tcnicasficcionais, mas em geral estruturantes de todo o contedo, como a dramatizao nosdocudramas e dramadocs (Casey et al, 2002: 70). A teoria do documentrio poderter alguma dificuldade em lidar com o tema da ficcionalidade devido s dificuldadesde distino entre fico e no-fico quando se analisam os mtodos de construodos respectivos textos: O documentrio pode depender da estrutura narrativa para asua organizao bsica, pode tambm incorporar conceitos de desenvolvimento esubjetividade de personagens, edio de continuidade ou montagem, e a invocao de

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    _29Televiso: Formas Audiovisuais de Fico e de Documentrio Volume I

    espao fora do ecr, pode tambm sugerir que as suas percepes e valores pertencems suas personagens, ou aderir ao prprio mundo histrico (Nichols, 1991: 6). Nos Estu-

    dos Televisivos a questo vista sem controvrsia, dada a crueza com que o tema secoloca diariamente nos ecrs, devido hibridizao dos gneros: Os documentriostambm so como fico por se organizarem em narrativas escreve-se num manual deEstudos Televisivos, acrescentando-se: No processo de construo de uma narrativa,que envolve essencialmente fazer uma estria a partir dos materiais envolvidos, asreivindicaes de objetividade so difceis de sustentar (Casey etal., 2002: 68). Por isso,um manual de cinema afirma que a experincia televisiva caracteriza-se por tirar partidoda flagrante identidade entre a fico e a realidade! (Monaco, 2000: 492). Valorizandoo conceito documentarymais como adjectivo do que como substantivo, Corner inclui odocumentrio como diverso entre as funes desta esfera criativa audiovisual. Destemodo, considera no mbito do documentaltelevisivo toda uma srie de programas quede alguma forma espelham o real, incluindo o Bigbrother e outros reality games(Corner,2002: 260). No aqui o lugar para debater a classificao como documentrio desse tipode programas, que necessariamente contestvel, mas tambm inegvel que Corner

    justifica eficazmente a proximidade do entretenimento inscrito no real s tendnciashistricas anteriores do gnero. Entre elas est o recurso ao estilo das narrativas de acodramtica, como nos programas sobre aces policiais, o mimetismo de caractersticasdo ritmo da telenovela e do talk show, a informalidade dos intervenientes, uma construotemporal para fornecer narrativa uma estrutura e uma urgncia de enredo e umdesafio maioria dos protocolos do documentarismo atravs de desempates por vezesescondidos entre autenticidade e artifcio. Em consequncia, torna-se complicado

    reconhecer um documentrio (ibidem: 261-2).

    No caso do recurso ficcional, a oposio ou, se se preferir, a relao entre o documentrioe a fico ainda uma questo em aberto e est longe de resoluo. A produo, quer defico, quer de documentrios, desafia e testa a capacidade de resistncia de qualquerenquadramento terico (Penafria, 1999: 30). Ultrapassando um enquadramento rgido,Carroll prope que a soluo para a questo fico/no-fico passa por uma novadenominao, propondo o nome, de som bastante adstringente, de cinema de asseropressuposta, justificando-o pelo facto de o pblico presumir que um filme nessa categoriadeve entreter o seu contedo preposicional como assertivo, mas porque pode tambm

    mentir. Ou seja, acrescenta, presumimos que envolvam assunes, mesmo nos casosem que o cineasta est intencionalmente dissimulando e, ao mesmo tempo, sinalizandoa inteno assertiva (Carroll, 2005: 89). Em qualquer caso, a criatividade dos criadoresultrapassa o policiamento terico dos gneros, prprio da crtica e da academia, mastambm da prpria indstria cultural, como veremos.

    No apenas na recepo que se resolve a classificao genrica, mas na tradeinstitucionalidade-texto-audincia (Mittell, 2004), tipificada pelos Estudos Televisivoscom uma nfase que no se encontra noutras reas disciplinares dos estudos culturais.Essa relao triangular inclui: na institucionalidade, a produo, a distribuio e a crtica

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    jornalstica e acadmica, entre outras instncias de agenciamento; no texto, os autorese o seu trabalho (realizao, argumento, etc.); a audincia, com as suas expectativas

    genricas, contribui para o receio da produo e da distribuio quanto instabilidadegnerica do texto (se houver), por aceitar priori as ortodoxias de classificao, bemcomo as suas diferentes interpretaes.

    Neste trabalho, procurmos cingir-nos ao texto para analisar as incidncias ficcionaisnos dois trabalhos do autor portugus Jos Barahona. Recorremos ao prprio autor,em entrevista e emails, mas apenas como prova de confirmao e acrescento da anlisetextual.1

    Incio MacGuffin, entre a realidade e a verdade

    Jos Barahona apresenta Buenos Aires zero hour(2002-3) e Milho(2008) como filmes.A classificao surge no incio de cada um deles, pelo que os espectadores estoavisados. o prprio autor, atravs do contedo, quem faz a promessa genrica. Mas seMilho um filme, a empresa produtora, Filmes do Tejo, apresenta-o como documentriona capa do DVD. Segundo o autor, essa capa foi feita sem a sua aprovao e entreguecomo facto consumado. Para o universo institucional, disse, as coisas tm de encaixarnas prateleiras e ns [os autores] queremos estragar essa arrumao O autor teve de

    enfrentar a oposio de diversas pessoas envolvidas na produo de Milhoao processonarrativo ficcional (JB2010). Quer Buenos Aires,quer Milhocriam instabilidade genricacom o uso da fico em filmes tendencialmente de realidade.

    A narrativa de Buenos Airesorganiza-se a partir da procura de Incio Lopes de Andrade,um suposto descendente dos colonizadores portugueses em Sacramento, Uruguai, queteria partido para a capital argentina. O narrador, na primeira pessoa, diz, ao receber ainformao sobre Incio, pensei ter encontrado o personagem ideal para o filme quequeria fazer, seguindo o rasto dos portugueses em zonas da Amrica Latina de influnciaespanhola. Este desgnio apresenta-se como documental, no sentido inicial dos discursos

    de sobriedade do documentrio (Nichols, 1991: 50). O narrador e a cmara procuram-noem Sacramento, num prlogo. Depois do carto com o ttulo do filme, o filme esqueceIncio e percorre as ruas de Buenos Aires noite:

    1_ Entrevista ao autor, 23.08.2010, e mensagens ao autor em Janeiro e Setembro de 2010, citadasneste artigo com sua autorizao. As citaes surgem com a referncia (JB2010). Os filmes BuenosAires zero houre Milhosero a partir daqui identificados como Buenos Airese Milho. O primeiro foiapresentado na RTP2 em 25.04.2010 e o segundo em 12.12.2009.

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    _31Televiso: Formas Audiovisuais de Fico e de Documentrio Volume I

    O que vejo atravs da minha cmara so pequenos fragmentos quefacilmente assumem o estatuto de realidade. Pode-se sempre olhar

    de vrias maneiras, de distintos lugares. Mas a cidade a est [], na suahora zero. preciso ver e ouvir muito mais.

    Assim, o autor prope-se procurar mais realidade para construir a sua verdade sobre acidade.

    Ver e ouvir o qu? Embora sem o mencionar, grande parte das realidades centram-seem desaparecidos. Incio est desaparecido. Televisores mostram notcias de crimes,nomeadamente de um desaparecido, sendo a televiso o meio de acesso a essas histrias.O televisor surge diversas vezes como ecr dentro do ecr. Tony, amigo do cartelero

    Roberto (que tambm anda procura no seu caso de ferro-velho), no est no mercadoonde devia estar. Na Praa de Maio esto os familiares dos desaparecidos assassinadospela ditadura militar. Os laos dos emigrantes antigos com Portugal desaparecem.O hotel de emigrantes onde ficavam chegada desapareceu. agora um arquivo, comoeste filme , de algum modo. Com um dispositivo de viagem do autor, o filme percorre demotorizada e de automvel as ruas da cidade, e tambm de txi, sendo os taxistas fontehabitual para viajantes, e percorre a p as ruas com cartelerosque recolhem velharias eprodutos reciclveis.

    O isco do filme, a busca de Incio junto da comunidade de origem portuguesa, atravs

    da rdio e em locais populares, vai esmorecendo. O narrador ainda diz No consigoabandonar a ideia de encontrar este homem, mas apenas para centrar como tema a suaviagem em Buenos Aires: Esta cidade mostra-me ela prpria as suas histrias e as suaspersonagens.

    A ideia de que a viagem e a busca so constantes da vida acentua-se quando a cmarasegue Roberto num mercado escuro e sinuoso procura de uma personagem do mer-cado, como o prprio carteleroo define. Anda desaparecido, o Tony. Sempre na bus-ca. O narrador diz: Tal como eu, Roberto no conseguia encontrar o seu personagem.O realizador afirmou depois que Roberto encontrou de facto o amigo, mas esse encon-

    tro, essa cena no deu nada. No era interessante para o filme (JB2010). Omitindo oencontro, o amigo desaparecido, tal como Incio, torna-se uma metfora dos desapa-recidos no labirinto que a cidade. Desta forma, atravs da omisso do final de umapequena sub-intriga da narrativa (omisso que cria um pequeno elemento ficcional), averdade surge aqui em linguagem alusiva, talvez metafrica, atravs da substituio dosautnticos desaparecidos por um desaparecido no labirinto do mercado.

    Centremo-nos agora no elemento que mais nos interessa, a criao de fico no filme:o portugus Incio no existe, uma inveno do autor. Segundo um crtico do filme,Incio funciona como um MacGuffin, um pretexto para as viagens de Barahona. No

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    faz mal!2 O filme usa actores para representar pessoas que o teriam conhecido emSacramento e Buenos Aires e usa uma fotografia em que outro homem, um transeunte

    a quem Barahona pediu para entrar na foto de um casal amigo (JB2010), identificadocomo Incio. Nenhum destes elementos referido aos inquiridos no-actores emBuenos Aires. Deste modo, as pessoas reais, nomeadamente os emigrantes de origemportuguesa, so interrogadas acerca de Incio e respondem com honestidade que no oconhecem. Os espectadores s so informados no final do filme se lerem na ficha tcnicauma lista de actores, que era suposto no serem actores. Barahona pretendeu tornar afico ainda mais credvel com o recurso ao transeunte de Buenos Aires na foto de Incio:Poderia acontecer a coincidncia de na rodagem algum conhecer esse transeunte. Masno aconteceu (JB2010). O engano dos no-actores com a referncia ao inexistenteIncio coincide com uma estratgia antiga de programas televisivos, os apanhados oucandid camera, nos quais, para provocar o riso, pessoas no-actores so inadvertidamentecolocadas em situaes ficcionais, o que confirma a anlise de Corner (2002) sobre ocrescente recurso dos documentrios s tcnicas dos programas de entretenimento.O objectivo em Buenos Aires, porm, no o riso nem a humilhao dos no-actores,mas antes motiv-los para uma conversa orientada: para a vida real dos emigrantes, oconfronto com uma fotografia de algum procurado na voragem da emigrao e da vidanas grandes cidades perfeitamente aceitvel. Os entrevistados acabam por falar das suasexperincias de vida. Incio deixa de ser importante. Tambm a busca de Tony por Robertono mercado, no encenada, colabora de forma feliz com a narrativa do filme, dando-lheum pouco de verdade autntica verdade metafrica da busca dos desparecidos.

    O realizador muito afirmativo sobre a classificao do seu trabalho como filme, mash indcios de que partilha a instabilidade genrica do filme em resultado dos recursosficcionais. Em exrdio, incluiu uma citao do romancista Georges Simenon nasMemrias de Maigret: A verdade nunca parece verdadeira. Conte uma histria a algum.Se a transformar um pouco, ela parecer mais verdadeira que a verdade.3No contextodo filme, a frase implica que transformaes da factualidade reforam a prpria essnciada verdade, estando ambas, verdade e factualidade, associadas. De algum modo, implicatambm que o filme se apresenta como um projecto que pretende dizer a verdade sobre

    2_ PMC. [em linha]. [Consultado em 23 set. 2010]. Disponvel na internet: URL: .

    3_ A citao feita uma simplificao. Ela aparece neste contexto: Je nignore pas que [m]es livressont bourrs dinexactitudes techniques. Il est inutile den faire le compte. Sachez quelles sontvoulues, et je vais vous en donner la raison. La vrit ne parat jamais vraie. Je ne parle pas seulementen littrature ou en peinture. Je ne vous citerai pas non plus le cas des colonnes doriques dont leslignes nous semblent rigoureusement perpendiculaires et qui ne donnent cette impression que parcequelles sont lgrement courbes. Cest, si elles taient droites, que notre il les verrait renfles,comprenez-vous ? Racontez nimporte quelle histoire quelquun. Si vous ne larrangez pas, onla trouvera incroyable, artificielle. Arrangez-la, et elle fera plus vrai que nature. (Les Mmoires deMaigret, 151). [em linha]. [Consultado em 24 set. 2010]. Disponvel na internet: URL: .

    http://www.sneersnipe.co.uk/review_title.php?id=62http://www.sneersnipe.co.uk/review_title.php?id=62http://www.reperages.ch/simenon/clindoeil%202.shtmlhttp://www.reperages.ch/simenon/clindoeil%202.shtmlhttp://www.reperages.ch/simenon/clindoeil%202.shtmlhttp://www.reperages.ch/simenon/clindoeil%202.shtmlhttp://www.sneersnipe.co.uk/review_title.php?id=62http://www.sneersnipe.co.uk/review_title.php?id=62
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    _33Televiso: Formas Audiovisuais de Fico e de Documentrio Volume I

    alguma coisa, neste caso sobre a cidade de Buenos Aires, no sobre Incio MacGuffin. Estapersonagem ficcional foi a porta de acesso viagem para Buenos Aires e sua verdade.

    Em mensagem ao autor, o realizador escreveu sobre o filme a minha ideia de cidade, ahistria que eu quero contar, assim englobando numa frase as concepes do que dodomnio documental (a cidade), do ponto de vista (a minha ideia) e da narrativa que poderecorrer fico (a histria que eu quero contar).

    Transgnico, transgenrico

    Em Milhoo uso da fico tem dois nveis. O primeiro semelhante ao de Buenos Aires.

    Numa pseudo-reportagem de televiso, apresentada como enquanto real, so ouvidasem vox populialguns consumidores num supermercado. difcil ao espectador, para nodizer impossvel, reconhecer essas pessoas como actores. O realizador confirmou emmensagem electrnica:

    So actores encarnando o seu prprio personagem, no sentido em quecada vez que se liga uma cmara todos ns comeamos a representaro nosso prprio papel. Se reparar engraado porque nestes casos aspessoas muitas vezes representam o que acham que se espera delas(JB2010).

    Este recurso fica-se por essa cena, servindo para fomentar a ideia de que h uma questopblica, j a no nvel popular, sobre o milho transgnico.

    Num segundo nvel de criao ficcional, tratou-se de encenar uma famlia, me, filho epai (este apenas referido), em casa e s compras num supermercado. Os dilogos sointerpolados com o grosso da documentao do filme, cenas de realidade, junto deplantadores e especialistas do cereal, no Brasil, Mxico, Estados Unidos e Portugal. Nascenas com a famlia da D. Ana (tambm ela da grande famlia MacGuffin, claro), o realizadorusa de novo a televiso como veculo da realidade do mundo real, colocando no televisor

    da casa da famlia ficcional uma notcia igualmente ficcional sobre a comercializaocomo alimento humano de milho transgnico. Dado que o filme pretende apresentar-se numa posio de equilbrio a respeito dos transgnicos, esta opo permitiu simularcomo exteriores ao prprio filme alguns argumentos contra e a favor dos transgnicos.A televiso serve tambm como polo de ateno e como fonte de autoridade, que transferida para o prprio filme, dado que se entrelaam os elementos narrativos evisuais da televiso dentro do filme e do filme sem televiso. A confuso apenas destaexplicao, pois o filme flui naturalmente.

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    A fico da famlia assumida plenamente quando o narrador, a voz de autoridade dosdocumentrios, entra em dilogo, da sua posio de deus ex machina, com a personagem

    Ana. Esta e o filho como que entram na narrativa documental, reagindo narrao emoffe s informaes e opinies da reportagem televisiva. Atravs da montagem, Milhochega mesmo a colocar no ar uma pergunta que respondida pelo depoimento de umprofessor da Universidade do Wisconsin.

    A famlia ficcional aparece sete vezes antes do impulso de ir s compras, resultante daautoridade da televiso e do narrador: depois de ver e ouvir o real no prprio filme emque personagem, Ana afirma que preciso saber escolher os alimentos. Numa dascenas caseiras, recorre-se tambm animao, para mostrar personagem a gama deprodutos em que se usam transgnicos. No supermercado, me e filho continuam a ver

    o mesmo programa televisivo a que estavam assistindo em casa, isto , o prprio filme deque fazem parte. Neste novo cenrio, o carcter de instrumento ficcional torna-se maisvisvel na sua funcionalidade. Barahona colocou o material do filme a passar nos ecrsque enchem duas paredes do supermercado. A famlia passa em frente dos LCDs, fazendoassim parte deste filme transgenrico em que h filme dentro do filme, fico dentro domundo real, mundo real dentro da fico criada para o filme, numa tal mistura de gnerosque o narrador fala s personagens ficcionais e estas dizem, mesmo no final, que isso uma novidade dos tempos modernos, como o transgnico: Dantes no havia televiso,nem bilogos, nem agrnomos para fazer filmes sobre o milho, nem voz offpara falarcom as pessoas Deste modo, Milhousa a mise-en-abymeda notcia ficcional como sefosse real dentro da parte do filme que ficcional (a famlia de Ana) mas desconstri, num

    apontamento ps-moderno, o que possa sobrar de verosimilhana na fico da famlia,indicando que dantes a mistura de gneros e de registos no acontecia.

    Concluses

    Nos dois contedos analisados, o realizador d pistas no prprio texto sobre os recursosdo dispositivo narrativo adoptado. Em BuenosAiresavisa, atravs da frase de Simenon,

    que poder haver mistura de real e ficcional. Em Milhoinclui um metadiscurso do narradore das personagens ficcionais sobre o assunto. Barahona usou a fico para facilitar anarrativizao e, optando pela classificao de filme e afastando a de documentrio,evitou debates sobre questes de gnero. Filme um conceito demasiado lato, permitindoa instabilidade genrica, que funciona aqui como passaporte para a liberdade criativa.Chamando-lhes apenas filmes, o autor pretende legitimar a prioria expresso artsticae o uso de elementos ficcionais em contedos que so primordialmente de no-fico,um sobre uma cidade, o outro sobre um cereal, o milho. O autor exerce a sua autoridadepara ultrapassar a hibridez genrica entre fico e documentalizao. Categoriza os seuscontedos como filmes e no como outra coisa, nomeadamente como documentrios.

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    Se o recurso fico interessava a Barahona pela facilitao de narrativas que cativassemo espectador para as suas estrias no ficcionais, o uso da fico tambm significa

    um reforoda autoridade autoral. De facto, a fico jamais poderia estar disponvel nafactualidade para um filme documentrio, pois no faz parte do domnio do histrico e dopresente. Tem de ser criada pelo autor. Se considerarmos a autoridade como a matria daexistncia do autor enquanto autor, a fico, num filme assente no documental isto ,assente em realidades no negociveis enquanto tais , acrescenta autoridade ao pontode vista do autor. A fico refora o carcter, tambm ele no negocivel, do ponto devista autoral.

    Ambos os filmes so pontos de vista sobre realidades e em ambos os filmes as ficesso dispositivos narrativos que no alteram a essncia documental. As fices no tm a

    inteno de enganar os espectadores, mas aproxim-los mais dos temas do mundo realde que os filmes tratam. A inteno do autor , nos dois filmes, de apresentar pontos devista sobre aspectos da vida real e no a de criar universos alternativos. Nestes doisfilmes, as fices no criam mundos alternativos, autotlicos, servindo antes de iscos pararevelar um ponto de vista sobre a realidade que se pretende mais verdadeiro do que seno se usasse a fico.

    A hibridez genrica resulta da necessidade de captar a ateno do espectador atravsde narrativas com suspense (BuenosAires) ou com dilogos (Milho), mas a balanapende para o lado do documental, logo do documentrio. A fico foi, nas palavras doautor a forma mais eficaz de contar aquela histria (JB2010), fez parte das ferramentasdisponveis ao realizador para cativar o espectador para realidades do mundo real. A ficono tem de ser um fim em si, ela pode ser um meio, uma techn, para filmar realidadesdocumentadas, como sucede nestes dois filmes.

    A intencionalidade do autor, quer quanto aos filmes em geral, quer quanto aos processosnarrativos, pode ser avaliada eticamente. Embora se afirme que a tica uma questo deconscincia pessoal do realizador de documentrios (Mouro, 2009: 226), na verdade atica do autor s est acessvel ao receptor na obra, s atravs dela se avalia a tica. Osvalores morais implcitos nestes dois filmes de Barahona so a transmisso de pontosde vista sobre a realidade sem enganar a respeito dessa realidade, mesmo com recurso ficcionalidade no abertamente indicada. Enquanto o documentrio poderia assumiruma autoridade de verdade universal, pela assuno original de mostrao da realidade,estes filmes, particularmente BuenosAires, evitam essa arrogncia pela assuno dasubjectividade pessoal. Avaliando pelas consequncias, os filmes alcanam esse objectivopara alm do engano ficcional.

    Deste modo, cumprindo a funo de policiamento genrico que impende sobre a crtica,pode concluir-se que ambos so filmes documentrios, filmes da vida: fornecem pontosde vista sobre aspectos da realidade exterior. BuenosAires aproxima-se da funo do

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    documentrio como interrogao radical e perspectiva alternativa (Corner, 2002: 259),ao deixar de lado a atitude de reportagem jornalstica, ao autodiminuir a capacidade do

    filme em mostrar a realidade no seu conjunto (ele diz ser apenas um de uma infinidadede pontos de vista), ao recorrer ao registo ficcional e ao estilo do cinema-directo; Milhoaproxima-se da funo do documentrio como inqurito e exposio jornalsticos(ibidem: 259), ao apresentar vrios pontos de vista, incluindo contraditrios, no seuseio, sem escolher abertamente entre eles, e ao usar a recolha de depoimentos deespecialistas num registo de recolha de depoimentos habitual no jornalismo televisivo.

    A classificao destes filmes como documentrios permite reflectir sobre a necessidadeda prpria classificao: necessria? Dissemos que esta funo impende sobre acrtica. De facto, no h como evit-la. A crtica tem por misso elucidar e, portanto,

    deve organizar o mundo que analisa, furtando-o ao caos. A classificao genrica resulta,afinal, da prpria anlise dos contedos. A verificao dos seus objectivos e mtodos, averificao da linguagem do texto e, em se conhecendo, do autor, tornam inevitvel crtica, pela sua prpria natureza, abordar o gnero, uma tarefa iniciada h mais de vintee trs sculos por Aristteles.

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    Linha direta justiae a reconstruodo regime militar brasileiro,

    ou quando o fazer justia cria uma memria da histria

    Mnica Almeida Kornis

    A vocao da histria para o cinema e para a televiso no propriamente uma novidade:j quase centenria se pensarmos em termos de cinema, alm de demonstrar maturidadeno mbito dos programas televisivos, entre vrios gneros e formatos, da fico aodocumental, passando pelo experimental e pelo jornalstico.

    No caso especfico da televiso, cujo objetivo atingir amplas platias e em geral atenders demandas de mercado, consolidou-se ao longo de dcadas uma retrica comum aocinema industrial, que consiste na criao de um discurso narrativo de reconstruohistrica centrado em fatos e eventos histricos, ou mesmo ambientaes histricas,

    cujo foco a verossimilhana. Novelas, seriados e minissries foram assim produzidos emlarga escala, o que no significa a inexistncia de variaes entre esses produtos, a partirde contextos diferenciados e de diferentes olhares do ponto de vista narrativo e esttico,que conferem importncia elaborao de anlises internas de cada um deles. Mas aprpria indstria televisiva produz novidades que merecem ateno, ao criar estruturasdramticas no tratamento da histria que extrapolam o formato da fico televisiva.

    Refiro-me ao programa Linha direta. Pouco ou praticamente nada - se examinou so-bre a presena da histria recente brasileira nesse popular programa, criado em 1990pela Rede Globo. Inspirado em programas de sucesso norte-americanos, propunha-se

    reconstituio de crimes cujo objetivo era incentivar os telespectadores a fornecerempistas para que as autoridades reabrissem investigaes e solucionassem casos ainda emaberto. Com uma narrativa de reconstituio dos casos envolta em clima de suspense emistrio e em tom realista, a primeira fase do programa durou quatro meses. Retornou grade de programao em 1999 e, trabalhando tambm com depoimentos, jornalismo edramaturgia, priorizava o carter de servio de utilidade pblica. Associando uma dimen-so social idia de entretenimento at o ano de 2008, quando saiu do ar, o programapermitiu que criminosos procurados pela justia por crimes de assassinato, estupro e se-qestro fossem localizados, o que revela sua popularidade e a bem-sucedida marca deinteratividade por ele proposta.

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    Dentro do mesmo formato, foi criada a srie Linha direta justiaque, exibida entre os anosde 2003 e 2007 em cerca de 40 ttulos, tinha como caracterstica central a dramatizao

    de crimes de distintas naturezas ocorridos do sculo XIX at os anos 1990. Entre oscrimes passionais, figuraram os famosos casos da Ladeira do Sacop, Aida Curi e Danade Tef ocorridos nos anos 1950 no Rio de Janeiro at os desaparecimentos dos jovensCarlinhos e Ana Ldia, todos com ampla repercusso na mdia impressa e televisivaquando aconteceram. J entre os crimes ou mortes de natureza poltica, houve umapredominncia da exibio de casos ocorridos durante o regime militar, no qual figuramos assassinatos de Zuzu Angel e Wladimir Herzog, o episdio da bomba do Riocentro,o suicdio de Frei Tito e a traio do Cabo Anselmo. Por essa razo, esse foi o programada Rede Globo que mais tematizou a ditadura militar, superando inclusive a produoficcional seriada com alguns poucos ttulos ambientados durante esse perodo, apesarde prdiga a partir dos anos 1980 no tratamento de questes ligadas histria do pas.

    Refletir sobre essa produo parece-me fundamental, apesar do pouco interesse mani-festo pelos estudos acadmicos em enfrentar os desafios em trabalhar com a chamadahistria de grande circulao cujos parmetros diferem da histria acadmica. Termosutilizados por Beatriz Sarlo, apontam no primeiro caso para uma histria de snteses ecertezas, por oposio a uma histria de dvidas e hipteses. O programa Linha direta,em seu segmento Justia, um importante exemplar dessa histria de grande circu-lao, e cabe-nos examinar mais de perto comose expressa esse movimento de sntesehistrica no interior desse formato.

    Dramatizao e jornalismo o binmio que sustenta a narrativa de Linha direta, cujo eixo a reconstruo de crimes em busca de seus culpados e cujo objetivo final fazer justia,o que significa o restabelecimento da ordem social. O clima de suspense e mistrio atraio espectador por meio de uma sonorizao que transmite tenso, uma edio veloz e umtom realista, que seguidas vezes recorre marcasimulaopara conferir verossimilhanas cenas. H uma narrao em offque se soma do jornalista ncora do programa, eambos conduzem os fatos, corroborados pelos depoimentos de pessoas que de algumamaneira se relacionam com as vtimas. No caso do segmento Justia, voltado para areconstruo de casos ocorridos no passado, alguns outros elementos so acionadospara conferir verossimilhana, tais como hbitos e trajes de poca, alm de imagens de

    arquivos fotogrficos, mesmo que sejam secundrias. Esse em linhas gerais o formatodo programa que, ao mesclar uma dimenso de drama e de relato dos fatos, cria umaimpresso de realidade que merece algumas consideraes, antes de nos determos nasquestes que dizem respeito reconstruo da histria do regime militar nesse caso. Osparmetros do formato se configuram numa matriz de natureza melodramtica que pautaespetculos do tipo popular no domnio do teatro, do cinema e da televiso, cujo aspectocentral a construo de uma narrativa na qual a ordem moral prevalece, em textos clarose com apelo emoo, na qual a dimenso trgica pode tambm se impor. Virtude, vcio,heris, viles, inocncia, fatalidade, recompensa e castigo se realizam nessas narrativas,que se estruturam de forma maniquesta e esquemtica. Essas polaridades esto expressas

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    _41Televiso: Formas Audiovisuais de Fico e de Documentrio Volume I

    no programa de forma plena, inclusive no prprio excesso tpico do melodrama que podecorresponder dimenso sensacionalista deste produto, na qual a idia de fazer justia

    corresponde possibilidade de vitria de uma ordem moral, mesmo em situaes quepossam se colocar como adversas. O aposto justia indicativo assim de como a histriaser ali tratada.

    Linha direta justiae o regime militar

    Como essa retrica se realiza no caso do tratamento de casos histricos, criando assimuma sntese de casos reais ocorridos durante o regime militar? Como vitria de uma

    ordem moral, o fazer justia se faz duplamente: no relato dos casos que contrapemvtimas a culpados, cuja justia j pode ter se realizado num momento do passado, eno prprio momento de reconstruo do caso pelo programa. Nesse grande esquema,depoimentos de familiares, advogados, juristas, religiosos e figuras com algumavisibilidade pblica, como diretores de cinema e jornalistas referem-se sobretudo aoscasos e/ou s personalidades em questo, tendo como moldura de fundo uma tonalidadesaturada de vermelho e uma sonorizao de suspense. Articulados com a narraoem off que privilegia a referncia ao contexto e a fala condutora do jornalista ncora,Domingos Meirelles, esses depoimentos estruturam uma narrativa sobre quem so essespersonagens, revelando aspectos sobre suas vidas e imediatamente apontando para as

    razes pelas quais figuram no panteo de Linha direta justia, isto , sero heris outraidores, vtimas ou sobreviventes de conflitos polticos no muito detalhados, apesar dareferncia a agentes da represso, rgos de tortura e regime militar. So menesmais ou menos constantes, muitas vezes como bordes que situam cada um dos casoshistoricamente, proferidos pela voz offe pelo jornalista ncora. Ao dram