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155 7 ANALISANDO DESCRITIVAMENTE A IDEIA 7.1 O CASO – A IDEIA PERSONIFICADA No desenrolar desse último ano, período de julho de 2007 a agosto de 2008, em que transcorreu a geração dos dados desta pesquisa, além da rotina de preparação aos atendimentos para o sujeito na realização deste trabalho e dos estudos, muitas outras coisas aconteceram. Em primeiro lugar, tive a companhia extremamente agradável e persistente de E., que nunca pensou em desistir da proposta de atendimento que lhe ofereci, o que mais ainda me animava, em função de seu empenho e surpresas constantes com suas possibilidades de desenvolvimento. Foram diversas vezes que o sorriso de seus lábios e de seus olhos me diziam que gostava da forma como as coisas se desenrolavam. Sei que o que lhe ofereci em 29 atendimentos foi pouco. Não foi tanto quanto necessário em virtude de tudo o que ele ainda precisa desenvolver e aprender para chegar a ser “autor” em LP, ou que, pelo menos, para usar essa língua em toda sua potencialidade e funcionalmente. Fazendo uma retrospectiva, é possível perceber que o que para mim foi pouco, para ele pode ter sido o empurrão que faltava, pode ter sido muito, tanto que, mesmo cansado depois de um dia longo de trabalho, não desanimava e sempre me elogiava pelo que lhe ensinava e, também, como bom professor que parece ser, pelo que me ensinava da LIBRAS. Foram 29 encontros. Foram 29 encontros de aprendizagem constante e mútua, nessa que é uma via de mão dupla, o processo de ensino-aprendizagem. Quem aprende? Quem ensina? Minha tarefa neste capítulo talvez seja a mais árdua na construção deste relato de pesquisa, pois terei que explicar o que foi vivido neste período de profícuo aprender. Começando este relato, como fonoaudióloga que sou, baseei o trabalho realizado nos atendimentos em sessões de terapia fonoaudiológica, mas, pelo que vi, esses limites foram ultrapassados. Construímos um espaço não apenas terapêutico, mas sim de completa troca, em que não havia um tratamento, alguém sendo tratado e o terapeuta. Também não posso dizer que a relação estabelecida baseou-se na relação de professor e aluno, pois esses papéis, às vezes, se invertiam no momento em que a LIBRAS pairava sob a mesa e E. a mostrava para

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7 ANALISANDO DESCRITIVAMENTE A IDEIA

7.1 O CASO – A IDEIA PERSONIFICADA

No desenrolar desse último ano, período de julho de 2007 a agosto de 2008, em que

transcorreu a geração dos dados desta pesquisa, além da rotina de preparação aos

atendimentos para o sujeito na realização deste trabalho e dos estudos, muitas outras coisas

aconteceram. Em primeiro lugar, tive a companhia extremamente agradável e persistente de

E., que nunca pensou em desistir da proposta de atendimento que lhe ofereci, o que mais

ainda me animava, em função de seu empenho e surpresas constantes com suas possibilidades

de desenvolvimento. Foram diversas vezes que o sorriso de seus lábios e de seus olhos me

diziam que gostava da forma como as coisas se desenrolavam. Sei que o que lhe ofereci em

29 atendimentos foi pouco. Não foi tanto quanto necessário em virtude de tudo o que ele

ainda precisa desenvolver e aprender para chegar a ser “autor” em LP, ou que, pelo menos,

para usar essa língua em toda sua potencialidade e funcionalmente. Fazendo uma

retrospectiva, é possível perceber que o que para mim foi pouco, para ele pode ter sido o

empurrão que faltava, pode ter sido muito, tanto que, mesmo cansado depois de um dia longo

de trabalho, não desanimava e sempre me elogiava pelo que lhe ensinava e, também, como

bom professor que parece ser, pelo que me ensinava da LIBRAS. Foram 29 encontros. Foram

29 encontros de aprendizagem constante e mútua, nessa que é uma via de mão dupla, o

processo de ensino-aprendizagem. Quem aprende? Quem ensina?

Minha tarefa neste capítulo talvez seja a mais árdua na construção deste relato de

pesquisa, pois terei que explicar o que foi vivido neste período de profícuo aprender.

Começando este relato, como fonoaudióloga que sou, baseei o trabalho realizado nos

atendimentos em sessões de terapia fonoaudiológica, mas, pelo que vi, esses limites foram

ultrapassados. Construímos um espaço não apenas terapêutico, mas sim de completa troca, em

que não havia um tratamento, alguém sendo tratado e o terapeuta. Também não posso dizer

que a relação estabelecida baseou-se na relação de professor e aluno, pois esses papéis, às

vezes, se invertiam no momento em que a LIBRAS pairava sob a mesa e E. a mostrava para

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mim, pacientemente e a cada dia, buscando em si mais recursos para levar-me à melhor

compreensão de sua língua. Creio que o que prevaleceu foi o companheirismo e a

disponibilidade de ambas as partes. Sem rótulos. Sem medos. Sem pré-conceitos ou pré-

concepções. Apenas sujeitos sócio-culturais e linguísticos em movimento contínuo e

constante de descoberta.

Tudo começou com a dúvida sobre a possibilidade de os surdos realizarem estratégias

metalinguísticas em LS, pois, por minha experiência clínica, percebia momentos em que isso

acontecia com muitos outros surdos com quem mantive contato e que, pelo fato de poder

expor a língua ao usá-la e usar a língua ao expô-la, de certa forma contribuía para facilitar ou

aproximar o surdo da LP, desmistificando-a e retirando-a do “pedestal” imposto culturalmente

em anos de história de opressão ouvinte sobre os surdos.

Pois bem, esse foi o começo, perceber que algo acontecia quando a LS e a LP

coexistiam em igualdade de condições. O que passei a fazer, então, foi estudar e buscar

literatura que explicasse o ensino de LP como L2 e como LE, mesmo que ainda não

encontrasse leituras diretamente voltadas para os surdos na época (hoje já temos boa literatura

sobre o tema). Em seguida, debrucei-me em estudar a metalinguagem e textos que

comentassem sobre a metalinguagem para surdos. Encontrei tais textos, apesar de poucos,

mas todos diziam que era necessário recorrer a este conhecimento e a este recurso da

metalinguagem, mas não diziam como. Não explicavam este fazer. Não estou certa de

conseguir explicar também, o que então o leitor terá que me desculpar, porém a intenção será

demonstrar, o mais claramente possível, o que acontece com o surdo quando se lhe propõe

analisar sua língua e quais estratégias ou níveis metalinguísticos são preponderantes ou que

mais funcionaram. E isso ocorreu. Não percebi uma linearidade no uso de estratégias, até

porque há alguns aspectos a serem considerados neste caso: estudei apenas um sujeito; estudei

um adulto; o sujeito em questão teve a aquisição da LS aos 15 anos de idade (o que

compromete o desenvolvimento linguístico e cognitivo); o curto período de um ano destinado

à pesquisa; história acadêmica do sujeito, entre outros fatores a serem comentados em

momento oportuno. Hoje eu sei que nem tudo o que, a princípio, planejei deu certo. Muitos

acertos e reformas foram necessários.

7.1.1 Perfil e caracterização inicial do sujeito – Edvan

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Tão logo o sujeito surdo que atendeu aos critérios da investigação e que se chama Edvan

compareceu para iniciar o processo, além de conhecer um pouco de sua história (ver

CAPÍTULO 6), foi necessário verificar sua fluência em LS, o léxico em LS e conhecimentos

sobre a LP. Dessa forma, foi preciso avaliá-lo e, com esse objetivo, realizei:

7.1.1.1 Escrita espontânea a partir da consigna: “Escreva sobre sua escola e professora”

Com essa solicitação feita a E., o objetivo era verificar como ele faz uso da Língua

Portuguesa de forma espontânea. Além disso, desta forma seria possível verificar como

compreende e atende ao solicitado, expressando-se na linguagem escrita. Com esse

instrumento, também seria possível investigar o conhecimento do sujeito sobre a L2, alvo

nesta pesquisa.

Observei, inicialmente, bastante resistência por parte de Edvan para começar a

atividade, justificando não saber. Frente a essa colocação, foi-lhe facultado que escrevesse

sobre o tema da forma que conseguisse, e que eu queria apenas que ele escrevesse. Assim o

fez.

Figura 11 – Avaliação da escrita espontânea

Neste modelo da escrita, observo que o sujeito cita o nome da professora e faz referência

a sua escola, porém usando um léxico bastante reduzido e as frases escritas não apresentam

coesão e coerência entre si de forma a construir um texto conforme solicitado. Inclusive,

acrescento, colocou uma frase que não atende ao solicitado – “Eu mal não feio comir Bom

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muito” – uma vez que o tema proposto foi a escola e a professora, e a inclusão da frase onde

aparece a palavra “comir” não é coerente com a temática. Apesar de não serem foco de meu

interesse, também pode ser relevante observar o uso indiscriminado de letra maiúscula e

ausência de sinais de pontuação. Tais constatações demonstram que, embora esses não sejam

os aspectos mais importantes, é possível perceber a pouca habilidade no uso da L2, sem

atender às regras gramaticais da língua no que diz respeito à coesão e coerência textual, ao

uso de ortografia da LP e à pontuação.

Contudo, chamo atenção que a compreensão sobre o uso que o sujeito fazia da LP não

se deu exclusivamente pela análise desse texto escrito, mas pela funcionalidade da língua na

modalidade escrita feito em todas as oportunidades de tarefas de uso.

7.1.1.2 Escrita espontânea evocada por desenhos

Com esta atividade de escrita espontânea baseada em desenhos selecionados por mim

mesma a partir do critério de serem elementos do dia a dia e de fácil identificação, e/ou em

objetos presentes na sala, evocados em LS, objetivei conhecer o léxico de E. em LP. Os

desenhos apresentados são considerados simples e de fácil conhecimento. São eles: mesa,

cadeira, chave, caneta, telefone, luz, ventilador, sapato, nariz, orelha, coração, faca, boi,

pipoca, copo, sorvete, maçã, peixe, chuva, homem, cachorro, casa, óculos, carro, coco, boca,

coelho. Das 27 palavras aleatórias apresentadas, escreveu apenas 14 delas, sendo que algumas

palavras estão adequadas, outras ele não sabia escrever, e outras ainda, escreveu de forma

equivocada, ou seja, sem ortografia correta da LP. Apesar disso, demonstrou conhecer o sinal

de todas as palavras, o que significa que tais objetos são de seu conhecimento.

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Figura 12 – Avaliação da escrita de palavras evocadas por desenhos

7.1.1.3 Conhecimento do alfabeto em língua portuguesa

Objetivando verificar seu conhecimento do alfabeto em LP e autonomia para organizá-

lo, foi possível observar que, espontaneamente, E. tentou relembrar as letras do alfabeto,

porém sem sucesso, sendo necessário o apoio através do alfabeto datilológico orientado por

mim, sugerindo letra por letra. Isso demonstra que conhece o alfabeto, porém não domina a

sua ordenação.

Com essa informação, não é possível determinar muito sobre seu conhecimento da LP,

apenas que não memorizou todas as letras. Porém, por tratar-se de um adulto, que já cursa a

5ª/6ª série do Ensino Fundamental, espera-se que já tenha esse domínio.

Quanto aos números, apenas foi solicitado que escrevesse os numerais buscando

identificar como realiza o solicitado, se conhece os números, se sabe representá-los, etc.

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Figura 13 – Avaliação da escrita do alfabeto em LP

7.1.1.4 Escrita por extenso de números

A partir do momento que demonstrou conhecimento sobre os numerais, solicitei a

escrita por extenso dos mesmos. Foi feita a solicitação através da LS, porém, como não

entendeu, foi necessário mostrar a ele, dando exemplos de como se escreve o nome dos

numerais. Com esta atividade, foi possível observar que, apesar de conhecê-los, não sabe

nomeá-los em LP, o que de certa forma reflete a pouca habilidade de uso da LP e

conhecimento sobre as possibilidades disponíveis na linguagem escrita.

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Figura 14 – Avaliação da escrita por extenso de números (atividade realizada em 02 de agosto de 2007)

7.1.1.5 Leitura de um texto

O objetivo desta atividade era verificar suas habilidades de leitura da LP. O texto foi

escolhido pelo próprio sujeito, tendo sido sugerido apenas que não precisava ser grande, que

entre as opções disponíveis, poderia escolher o que desejasse. Entre as opções, havia livros de

histórias e revistas, sendo que ele selecionou um livro infantil, o que me permite pensar que o

fez buscando o mais simples (talvez) por tratar-se de texto infantil. Após ter folheado diversas

vezes, fez sua escolha, porém, durante todo esse momento, relatava não saber ler. Hesitou um

pouco em efetuar a leitura e, frente às minhas solicitações, tentou, porém sem sucesso, pois

leu as palavras já conhecidas oralmente, o que me causou certo estranhamento, já que se trata

de uma pessoa surda e que não fala. Contudo, não me admira essa demonstração, pois é

conhecido que grande parte dos surdos adultos tiveram histórico escolar baseado em técnicas

de ensino para ouvintes sem adequação estratégica alguma à sua forma de aprender ou à sua

língua. Tal constatação repercute nos resultados encontrados no sujeito desta pesquisa, porém

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não é o único, infelizmente, a manter esse tipo de postura frente à leitura, mas apenas reflete a

realidade vivida pelos surdos na sociedade.

Ainda tentando insistir um pouco mais na tarefa, solicitei que marcasse palavras

conhecidas, o que fez, identificando, em seguida, tais palavras através da LS, porém não

suficientemente, de forma a oferecer sentido ao texto e à leitura, uma vez que se tratavam de

palavras isoladas e geralmente pronomes e adjetivos. Texto lido: “A dança da primavera”

(ANEXO B).

7.1.1.6 Responder questionário com perguntas pessoais informativas

O uso do questionário (APÊNDICE D) teve por objetivo verificar se o sujeito faz uso

funcional da LP escrita, já que a língua serve também para fornecer e solicitar informações

pessoais, como no preenchimento de fichas de inscrição etc.

Mesmo frente a essa situação simples de uso da LP, o sujeito não consegue ler e

compreender o solicitado quando em LP escrita, sendo necessário que eu lhe explicasse cada

questão em LS. Mesmo assim, ainda apresentou dificuldade na escrita das respostas, para o

qual também foi ajudado de forma a evitar sentir-se constrangido. A ajuda fornecida foi

através da digitalização das palavras desejadas, sendo que nem o nome dos irmãos conseguiu

escrever sozinho, necessitando de ajuda. Aliás, nesse caso, completou o nome de seus irmãos

no encontro seguinte, o que significa que buscou a informação que não tinha.

Observei também – e isso é característico em crianças ou adultos surdos – que mantém

em seu poder um papel contendo seu endereço e telefones de contato para qualquer situação

de emergência, o que pode ser compreensível para um momento em que, necessitando, não

consiga fazer-se entender. Entretanto, quando solicitada essa informação ao sujeito, ele

também usa esse recurso, demonstrando não saber referir informações como endereço e

formas de contato, mesmo tratando-se de um adulto, demonstrando pouca autonomia e

independência.

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7.1.1.7 Relato de episódio de sua história pessoal redigida por um escriba

Esta atividade teve por objetivo demonstrar para o sujeito que o que é relatado em LS

poderia ser escrito em LP, ou seja, que o conteúdo expresso em LS pode ser colocado também

de outra forma, no caso, a escrita em LP.

Foi possível observar, com esta atividade, que, apesar de usar a língua de forma fluente,

o faz com pouca precisão articulatória, ou seja, a produção do sinal não é clara, o que dificulta

a inteligibilidade do que expressa. Fato relevante, nesse sentido, é que foi solicitado que

contasse qualquer coisa sobre sua vida e mencionou sua história escolar e familiar, o que foi

bastante importante para contextualizar suas dificuldades, tanto linguísticas como de caráter

pessoal e social, o que também não difere da grande maioria dos surdos ainda em nossos dias.

Segue escrita do relatado, sendo que eu fui a escriba.

Relato de E. – 09 de agosto de 2007

Obs.: A escrita que segue não obedece aos critérios de transcrição da LS, tendo sido escrita

usando a LP, mas também não atende à organização da gramática dessa língua.

“PORQUE PASSADO 1994 EU UM SURDO NO GRUPO OUVINTE TRISTE PORQUE

PRECISAR ENSINAR SINAIS FAZER PROVA. EU PERDER TRISTE PAPEL RAIVA

DEPOIS MAMÃE PAPEL LEVAR BRIGAR ESTUDAR PRECISAR APRENDER EU

CHORAR IR CAMA TRISTE NÃO-QUERER COMER 9 ANOS MUITO TRISTE MAMÃE

TENTAR EU COMER COMO OUVINTE FÁCIL SURDO DIFÍCIL EU IR ESTUDAR

PACIÊNCIA PROFESSOR FALAR NÃO-SABIA LS EU CHORAR PROFESSORA INSISTIR

COLEGA DIZER EU BURRO EU MATAR (entendi como forma de expressar sua tristeza)

AMIGO COLEGA ATIRAR SALA-DE-AULA EU COSTAS TENTAR ESCREVER COLEGA

ATIRAR EU CHAMAR PROFESSORA PEDIR AJUDAR COLEGA ACABAR IR CASA

COMER BRINCAR BRIGA COLEGA RUA SOZINHO MACHUCAR OLHO PROFESSORA

NADA FICAR VOAR (no sentido de não ligar) IRMÃO AJUDAR DIZER NÃO-PODER

BRIGAR MÃE CONVERSAR PROFESSORA NADA DEPOIS PROCURAR PROCURAR

ENCONTRAR APADA CHEGAR FALAR AMIGO OI PERGUNTAR QUAL SINAL EU NÃO-

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SABER MAIS OU MENOS 13 ANOS EU OBSERVAR AMIGO SURDO VERGONHA

CONHECER NÃO NADA (essa explicação foi frente a minha pergunta do porquê?)

PROFESSORA ENSINAR FALAR COR AMARELO AZUL VERMELHO EU APRENDER

SENTIR FELIZ DEPOIS MAMÃE ENSINAR IR ESCOLA APADA BRINCAR COLEGA

ADULTO CRIANÇA BRIGAR PROFESSORA FALAR NÃO-PODER DEPOIS MAMÃE

LEVAR FONO APARELHO VOZ APRENDER FALAR NÚMERO TIA AJUDAR

TRABALHAR TIA ENSINAR LER NOME ÔNIBUS 15 ANOS APRENDER LIBRAS

DEVAGAR AMIGO SURDO ENSINAR MÃE CUIDAR NÃO-PODER DROGAS NÃO-

GOSTAR ESCOLA 15 ANOS FALTAR MUITO NÃO-IR ESCOLA MAMÃE PRECISAR

ESCOLA MAMÃE LIGAR ESCOLA PROFESSORA FALAR FALTAR ESCOLA MAMÃE

BATER PAPAI MANDAR MEDO COMEÇAR COPIAR PROFESSORA NÃO-SABER

ENSINAR PORTUGUÊS HISTÓRIA PSICÓLOGA ACONSELHAR (disse isso através de

oralidade) PRECISAR ESTUDAR COMEÇAR ESTUDAR QUERER PASSAR ANO ESTUDAR

DESCULPAR FAMÍLIA MAMÃE PAPAI HOJE MUDAR MAMÃE EU INTELIGENTE

MUDAR QUERER ESTUDAR APRENDER MUDAR APARELHO CORAGEM IR FESTA

VER TODOS RIR GOSTAR SÓ”

Quando lhe apresentei essa escrita, surpreendeu-se por tudo o que estava escrito,

questionando se tinha dito tudo aquilo, e então ofereci o texto para que lesse e, novamente,

buscou ler palavra/palavra (muitas vezes oralizando as que conhecia), identificando algumas e

perguntando o sinal de outras. Porém, quando eu realizei a leitura em LS demonstrando toda a

história que ele contou, manifestou-se dizendo: “VERDADE”. Esse momento foi importante,

porque reflete, mesmo que no início de todo o processo que seria oferecido a ele, a

conscientização em relação à LS ↔ LP.

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7.1.1.8 Narrativa em LS a partir do estímulo pictórico, novamente redigida por um

escriba

Figura 15 - Gravura para eliciar narrativa em LS. Fonte: www.google.com.br/imagens

(Narrativa escrita tal qual recebi em LS)

MULHER CAIR HOMEM PERGUNTAR O-QUE (interrogativa) SOL SUMIR NOITE 6

HORAS CONFUSÃO PREOCUPAR NÃO PASSARINHO PREOCUPAR NÃO EU QUERER

AJUDAR MULHER PODER LUGAR (interrogativa) POR-FAVOR ADORAR JUNTO

CONVERSAR CONVIDAR OBSERVAR VERGONHA MULHER GOSTOSO FOGÃO SERVIR

HOMEM COMER CONVERSAR RIR PERGUNTAR SOZINHA SIM AH (expressão facial de

admiração) PERGUNTAR NAMORADO (interrogativa) SOLTEIRA PERGUNTAR

NAMORAR MULHER VERGONHA OBRIGADA PODER PASSEAR CONVERSAR MULHER

ARRUMAR CABELO ROUPA IR ENCONTRAR ITAIGARA HOMEM PAGAR REAIS

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ÔNIBUS PIZZA HOMEM REAIS MULHER IR BANHEIRO HOMEM CAMINHAR OLHAR

OBSERVAR COMPRAR FLOR PAGAR MULHER SURPRESA HOMEM FALAR AMAR

MULHER MULHER NÃO-PODER NAMORAR PORQUE JOVEM PESSOAS VER HOMEM

MULHER CONVERSAR PASSEAR COMEÇAR NAMORAR TELEFONAR FELIZ (este feliz

me dá a impressão de: “E foram felizes para sempre”)

A partir desses achados, pude perceber que o sujeito, apesar de adulto e de cursar a 5ª/6ª

série, não domina a LP, demonstrando bastante dificuldade no seu uso. Além disso, foi

possível perceber que mantém muitos “vícios” relacionados à escolarização baseada no ensino

a partir de práticas pedagógicas destinadas a ouvintes, como, por exemplo, realizar leitura da

LP palavra/palavra; usar a oralidade (mesmo que não seja essa a sua modalidade

comunicativa); baixa funcionalidade da leitura e escrita em LP; léxico em LP reduzido etc.

Com essas informações, foi possível compreender como Edvan se portava frente à LP e

qual a importância conferida à LS. O que foi marcante desde o início foi o compromisso e o

envolvimento dele na realização das atividades, demonstrados na alegria com que sempre

chegava aos atendimentos, ele mesmo observava, uma vez que conhecia algumas das pessoas

que mantiveram contato comigo, que os outros que haviam desistido estavam perdendo a

oportunidade de aprender, e que ele, então, se desenvolveria mais.

É importante ressaltar que, desde o primeiro momento de encontro, sempre a LIBRAS

foi usada como língua de instrução na comunicação e nas explicações, solicitações ou

qualquer outra atividade, de forma que o sujeito sentia-se à vontade, e ao mesmo tempo viu-se

obrigado a buscar a melhor forma para ser entendido pelo interlocutor, o que por si só exige

progressivamente atividade reflexiva sobre sua língua.

A partir de então, deu-se início aos atendimentos propriamente ditos.

7.2 A INTERVENÇÃO – A IDEIA SENDO COLOCADA EM PRÁTICA

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Cada encontro foi construído tomando como ponto de partida a criação de atividades, ou

a apresentação dessas, de forma a possibilitar e suscitar, além do contato do sujeito com sua

L1, ampliando e aprofundando esse contato, a busca por estratégias pessoais para a

aprendizagem da língua-alvo, L2. Ou seja, as atividades sempre buscaram tornar o sujeito

mais autônomo, descobrindo em si o caminho para chegar a compreender e usar a LP escrita

como sua L2. Ou foi, ainda, estimulado a perceber que as estratégias para a aprendizagem são

dele mesmo, que os caminhos são os que ele conseguir desenvolver para chegar a seus

objetivos e que por mais que o entorno possa contribuir, ou que o outro, seja professor ou

outro sujeito, possa propiciar-lhe situação de aprendizagem com estratégias consideradas

adequadas, ele deverá apropriar-se à sua maneira, com suas possibilidades, tornando a língua-

alvo o mais funcional possível dentro de suas condições e necessidades.

Assim, as atividades iniciais oferecidas objetivavam oferecer situações simples, de

forma a incentivá-lo a vencer as etapas posteriores com níveis de complexidade crescente.

Além disso, cada atendimento promoveu o subsequente, ou seja, com base nos resultados de

um, já se estabeleciam as estratégias para o próximo, o que naturalmente o motivou em alguns

momentos a repetir a mesma atividade em mais de um atendimento, ou ainda a voltar atrás

quando necessário, sem que isso representasse insucesso ou regressão, apenas oportunizando

ao sujeito mais tempo para refletir sobre suas aprendizagens e para buscar estratégias cada vez

mais complexas de interação com sua L1 e com a língua-alvo.

Dessa forma, afirmo que uma das preocupações constantes foi evitar a frustração com o

tipo de atividade oferecida, o que não significa que evitei colocá-lo em situação desafiadora.

Ao contrário, todo o processo buscou desafiá-lo a superar o que apresentava como

dificuldade: ler e escrever em LP. O que quero dizer é que evitar a frustração significa evitar

atividades vazias e descontextualizadas, o que, aliás, o sujeito já havia experimentado

anteriormente em sua vida escolar.

Para que seja possível compreender esse percurso, listei todos os atendimentos

(APÊNDICE E) realizados com o sujeito, buscando oferecer visibilidade sobre o que foi

trabalhado. Tais atendimentos foram listados com seus respectivos objetivos, materiais e

forma de execução das atividades oferecidas, podendo ser analisados também no recorte de

algumas anotações do Diário de Registro1 (APÊNDICE F), desenvolvido após cada

atendimento no decorrer do trabalho.

1 No Apêndice F, apresento um recorte das anotações do Diário de Registro, pois a inclusão desse material

completo acarretaria em um volume muito extenso de material.

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O fruto desses atendimentos é o que será analisado neste capítulo, bem como seus

significados para a aprendizagem da L2 do sujeito.

7.3 A ANÁLISE DAS INTERVENÇÕES

Trabalhar com surdos exige saber sobre a LS, além de domínio e fluência na língua e

conhecimentos sobre a forma de contato com o mundo que o surdo tem, sempre através da

experiência visual, que difere da dos ouvintes por causa da audição, obviamente.

Dessa forma, é necessário compreender que essa língua gestual, visual, espacial e

complexa exige do outro, quando ouvinte, uma ação extrema que vai além da atenção,

exigindo capacidade de entendimento da mensagem que envolve não apenas os movimentos

manuais, mas também os movimentos corporais, as expressões faciais, o ritmo impresso ao

movimento, o local onde está sendo produzido, a direção do movimento, enfim, a língua em

ação, ocorrendo com todas as suas riquezas e nuances e, ainda, sob uma perspectiva viso-

espacial.

Nesse sentido, aspectos que nos parecem simples como ouvintes (pois os gestos são

assim considerados pelo senso comum) dentro do contexto da comunicação gestual, tornam-

se densos, sendo que, nessa circunstância, temos a iniciativa de prestar atenção em cada sinal,

detalhadamente, tentando “decifrar” sinal/sinal e buscando significá-los a partir da nossa base

linguística, o que não difere do processo inicial de aprendizagem de qualquer língua

estrangeira para qualquer pessoa, ouvinte ou surda.

O que ocorre nesse momento, então, é que o ouvinte, no início da aprendizagem da LS,

perde grande parte do discurso, pois mantém-se atento a cada sinal numa tentativa de

“traduzir” para compreender o que está sendo comunicado. O mesmo não ocorre quando faz

uso de sua língua nativa, pois não se fixa no entendimento isolado das palavras ouvidas, mas

sim no todo a partir do qual vai construindo o sentido.

Isso, como já mencionei acima, chama a atenção para o fato de que a LS, para os

ouvintes, se caracteriza como uma LE e, portanto, funcionamos como aprendizes quando nos

deparamos com ela enquanto não a dominamos. Com algumas exceções, não é comum

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convivermos muito próximos aos surdos e dispostos ao diálogo na LS, o que dificulta ainda

mais o domínio e o contato com esse sistema linguístico. Assim sendo, as pessoas ouvintes

que desenvolvem fluência na LS, geralmente trabalham com surdos, têm um familiar surdo

ou, de alguma maneira e por algum motivo, se viram envolvidos na comunidade surda.

Porém, é fato que a LIBRAS fascina a todos que assistem a um diálogo entre surdos e a todos

que mantêm algum contato com ela. É o mistério de comunicar sem usar a fala, de comunicar

no silêncio. “Como é que pode?” Assim se perguntam as pessoas no dia a dia. A curiosidade

ajuda, pois desperta o desejo de conhecer e, talvez, através dessa motivação, mais e mais

pessoas irão se aproximando dos surdos, das comunidades surdas e da LS, tornando-a parte da

nossa rotina como ouvintes, mas também por vivermos em uma sociedade diversificada.

Essa introdução contextualiza, para os ouvintes, as mesmas dificuldades enfrentadas

pelos surdos no momento em que mantêm contato com a LP, com o agravante de que esses

nem sempre podem contar com uma língua anterior que a sustente, em virtude de que muitos

surdos ainda mantêm atrasos importantes de linguagem, vindo a estabelecer contato com a

comunidade surda e com a língua geralmente na adolescência. Isso já foi bastante comentado

ao longo de todo esse trabalho.

Nesse processo de contato com a segunda língua (L2), muitas situações ocorrem com o

sujeito na tentativa de familiarizar-se com a nova língua, buscando torná-la natural, torná-la

próxima ou, ainda, na tentativa de desestrangeirizá-la, podendo então usá-la de forma menos

densa e complexa para si.

No decorrer deste trabalho de pesquisa, a geração dos dados, compartilhada com essa

pessoa adulta surda por alguns meses, período esse que também pode ser lido como 13 meses,

52 semanas, ou 52 horas, sendo necessário considerar todas as faltas, o que resulta então em

29 horas de trabalho, foram insuficientes para torná-lo usuário proficiente da LP em

modalidade escrita, assim como para tornar-me fluente em LS. Como já expliquei

anteriormente, utilizei esse recurso para a pesquisa, mas é importante lembrar que sei

LIBRAS e me comunico bem com os surdos, muito melhor com as crianças surdas, mas não

sou fluente. Assim, nessas 29 horas destinadas à coleta dos dados, busquei entender os

processos pelo qual o sujeito passou para aproximar-se mais da LP escrita, a partir dos

instrumentos que lhe proporcionei e de tantos outros que ele mesmo dispunha para tal, como

sujeito linguístico que é.

Nessa exposição e análise, criei algumas categorias que facilitaram a ordenação dos

fatos para tentar contribuir teoricamente com os estudos sobre educação de surdos.

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7.3.1 Categorias de Análise

As categorias servem como um roteiro, como um instrumento para o pesquisador num

trabalho de caráter qualitativo para aproximar-se dos dados, lê-los e analisá-los

profundamente, tomando-os de forma bastante próxima e deleitando-se no prazer constante da

descoberta dos achados, frutos de seu empenho e trabalho. A possibilidade concedida por este

tipo de pesquisa e análise concede autonomia ao pesquisador, mas, mais que isso, oportuniza

a possibilidade de expressar seu pensamento, suas ideias, suas crenças, conferindo

autoconfiança para ele mesmo construir, a partir de sua experiência de pesquisa, uma própria

base teórica. Isso significa muito quando se pensa que, tomando uma linha de análise

positivista o pesquisador fica preso a normas, pouco livre para criar e extrapolar o próprio

planejamento inicial, além de preocupar-se apenas com o produto e não com o processo.

Assim, a partir daqui, me sinto capaz de criar, sobre os dados, os caminhos para

responder às minhas perguntas e inquietações iniciais.

Penso que os dados apresentam diferentes possibilidades de interpretação e análise e

que, certamente, muitos detalhes podem ter passado despercebidos, ou mesmo terem sido

desconsiderados em prol de outros. Aqui proponho um percurso, uma análise, de forma a

atender, como já falei, aos objetivos estabelecidos desde o princípio.

As categorias de análise, explicadas em detalhes a partir do próximo item, são:

♦ Insumos fornecidos

♦ Produção

♦ Estratégias metalinguísticas

o estratégias metalinguísticas de tipo 1 (LS → LS);

o estratégias metalinguísticas de tipo 2 (LS → L1);

o estratégias metalinguísticas de tipo 3 (LS → LP);

o estratégias metalinguísticas de tipo 4 (LP → L2).

♦ Interação

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♦ Atitude de valoração e reconhecimento da L1 e da relação da L1 e L2

7.4 AS ESTRATÉGIAS METALINGUÍSTICAS VISTAS ATRAVÉS DAS CATEGORIAS

A partir daqui, tomando como base cada categoria, busco, nas transcrições dos

atendimentos ocorridos de julho de 2007 a agosto de 2008, exemplos que demonstram

momentos em que as situações expressas através das categorias aparecem. Cada exemplo,

então, é colocado aqui de forma a ilustrar e prestar-se à análise e interpretação dos fatos que

levaram à construção da aproximação na aprendizagem da LP através das estratégias

metalinguísticas em LS. Nesses exemplos, aparecem: minhas manifestações em LS, ou

explicando algo ou como interlocutora, sendo representada pela letra P, enquanto Edvan,

sujeito da pesquisa, está representado pela letra E. A monitora, estudante do curso de

Fonoaudiologia da UFBA, está representada pela letra M. Ressalto, conforme já mencionado

no Capítulo 6, que, nas transcrições, usei o “Sistema de notação em palavras”. (FELIPE,

2007)

Então, passo agora a analisar os acontecimentos transcorridos na investigação através da

análise interpretativa das categorias: insumos fornecidos, produção, estratégias

metalinguísticas, interação e atitude de valoração e reconhecimento da L1, e a relação da L1 e

L2.

Na análise de todo o material transcrito, observo uma variedade enorme de situações

importantes, interessantes, significativas, porém é praticamente impossível analisar todas, pois

resultaria em um trabalho muito extenso e volumoso. Por isso, tive que colocar algumas,

selecionadas por sua relevância e por serem exemplificadoras das categorias de análise. Outro

fato a ser considerado nessa análise é que muitas (ou provavelmente todas) situações

demonstram ou exemplificam não apenas uma categoria, mas geralmente é possível constatar

a presença do insumo, da resposta (produção), da estratégia metalinguística, da interação e do

movimento de aproximação à L1 e L2, ou seja, posso verificar todas as categorias

selecionadas em cada fragmento da coleta de dados, o que para mim é bastante importante,

172

visto que demonstra a riqueza de situação interativa de ensino-aprendizagem estabelecida,

bem como a validade do proposto.

De qualquer forma, tentei ser o mais didática possível, separando as situações,

obedecendo as categorias elencadas. Além disso, não apresentei os fragmentos de forma

progressiva de evolução, apesar de acreditar que isso pode ser observado, mas apenas as

coloquei em acordo com cada categoria, em sequência cronológica.

7.4.1 Insumos fornecidos

Quando a categoria insumo foi estabelecida, minha intenção foi apresentar o tipo de

informação oferecida e a significância do que foi apresentado ao sujeito com quem trabalhei.

Assim, por insumo entendo todo o oferecimento de atividade, de reflexão,

questionamento que possam suscitar no sujeito reação, nesse caso, preferencialmente, reação

linguística e de posicionamento do sujeito frente a sua linguagem, a linguagem do outro e a

nova linguagem que se lhe apresenta – língua-alvo.

Insumo é o que é oferecido de significativo, pressupondo que é relevante. Nesse sentido,

compreendo que os insumos oferecidos servem como “gatilho” para a reflexão e

aprendizagem da língua-alvo.

As atividades oferecidas como insumo, antes de tudo, dizem respeito a situações

bastante próximas (a partir do conhecido) ao sujeito e que possam refletir ou estar em

conformidade com seu desenvolvimento e necessidades. Por isso, ver o insumo como

“gatilho” é relevante, uma vez que é o disparador da ação de ensinar/aprender, ao mesmo

tempo em que é a própria atividade para alcançar esse fim.

Quando se pensa no tipo de atividades a serem oferecidas a um adulto surdo que ainda

não domina a escrita da LP, deve-se pensar em todos os aspectos que estão envolvidos, como:

nível de desenvolvimento do sistema linguístico, proximidade com o sistema alvo,

experiências e preferências, além do envolvimento cultural do sujeito com a língua-alvo. Por

isso, considerar um insumo produtivo é ter em conta tais aspectos de forma a que alcancem o

173

aprendiz e promovam um verdadeiro diálogo entre as línguas, entre os sujeitos envolvidos na

ação de ensino-aprendizagem e, finalmente, entre as culturas. Outro aspecto a ser considerado

é a organização de tais insumos a partir do olhar sobre o sentido mais que sobre a estrutura da

língua. Isso em função da significância, tomando como ponto de partida a interação e não o

ensino de língua a partir de concepções rígidas e estáticas.

Além disso, o entendimento que se tem nesse trabalho é que os insumos não são apenas

oferecidos pelo terapeuta/professor, mas também criados pelo próprio sujeito na interação e,

mais ainda, originados nesse processo constante de relação que se estabelece na díade ensino-

aprendizagem. Ou seja, insumos são também oportunidades criadas na situação dialógica

entre os elementos em contato: sujeito/pesquisador; sujeito/pesquisador/atividades com vistas

a oportunizar a ocorrência de diferentes circunstâncias que promovam e levem à análise da

língua-alvo e à realização ou obtenção da aprendizagem. Por isso, mais que as atividades

oferecidas e que eliciam as situações comunicativas em que o novo sistema linguístico está

em foco, a própria interação transforma-se em insumo importante para alcançar esse fim.

Portanto, as atividades oferecidas constituem o insumo, assim como as formas de

questionamento do próprio sujeito ou do pesquisador sobre as ocorrências encontradas, se

certas ou erradas, qual é o melhor caminho para alcançar os objetivos, além dos momentos em

que ocorrem a demonstração das atividades e as reflexões nas suas mais variadas

possibilidades, etc.

Obviamente que a entrada da informação variou em dependência do tipo de atividade

proposta e da dificuldade que o sujeito apresentou para realizá-la. Às vezes, apenas

explicando através da LS foi suficiente, outras, explicava em LS e ainda tinha que demonstrar

como fazer, especialmente quando se tratava de atividades envolvendo a LP. No caso de

atividades com desenhos ou sinais, a explicação por si só promovia a resposta esperada, o que

já demonstra a importância do domínio da L1 para a aprendizagem da L2.

Tais considerações são fundamentais ao analisarmos a função da língua de sinais no

processo de aquisição da escrita pelos surdos. A internalização de significados,

conceitos, valores e conhecimentos será realizada através do domínio dessa

modalidade de língua que servirá como suporte cognitivo para a aprendizagem de

um sistema de signos, que, embora organizado a partir da oralidade, guarda

características específicas que permitem sua relativa autonomia do sistema que lhe

deu origem, permitindo sua apropriação por pessoas surdas que desconhecem o

valor sonoro das palavras. (FERNANDES, 1999, p. 66)

Na execução de todo o trabalho, houve uma variabilidade na apresentação dos insumos.

Houve oferecimento de atividades com desenhos de objetos, alimentos, animais, situações

174

concretas, uso de alfabeto datilológico disponibilizado em cartões individuais, criados através

da Fonte do Word LIBRAS 2002, cartões individuais com as letras do alfabeto, cartões

individuais com as configurações de mão, cartões com palavras em LP, cartões com frases em

LP, pequenos textos de revista, logomarcas de diferentes produtos comerciais e desenhos

representativos da LS, entre outros. Cada um desses prestando-se para diferentes estímulos e

propósitos.

Uma das formas de oferecimento de atividade foi através dos desenhos representativos

da LS, o que despertou bastante interesse em E., por demonstrar não saber que poderia

representar o sinal, que a ideia expressa no sinal poderia ser grafada ou que poderia

compreender tal ideia ao receber um desenho e realizar o sinal. Assim, é possível

compreender que, a princípio, o sujeito não conhecia suas possibilidades linguísticas, mesmo

utilizando uma língua rica, completa e complexa para se expressar. Porém, com a

disponibilização de situações de reflexão, não apenas esse sujeito se descobre, mas descobre

também as possibilidades que tem, literalmente, em suas mãos.

Com essa observação, entendo que o sujeito com quem trabalhei nesse período se

surpreendeu por perceber sua língua de uma forma diferente do que percebia até então, desde

os encontros de avaliação. Além disso, a possibilidade de representação da ideia expressa em

LS através de um desenho ou, por outro lado, a possibilidade de identificar tais significados

através desses, foi mobilizando-o de forma a ver a língua como tal, conferindo-lhe status de

importância a partir dessas descobertas. Isso pode ser ilustrado com o exemplo do momento

inicial, quando realizei a avaliação diagnóstica de Edvan, em que contou um fato em LS e

depois recebeu a transcrição desse fato, surpreendendo-se com a quantidade de informação e,

mais ainda, com a precisão do conteúdo presente tal qual havia relatado. Também é possível

perceber essa pouca relevância conferida para a língua de sinais quando eu faço uso da mesma

de forma errônea, pois ele ainda não consegue chamar minha atenção para tal fato, sendo

necessário, por diversas vezes, solicitar-lhe esse posicionamento. Ainda nesse sentido, quando

usa uma expressão em LS que eu não entendo, imediatamente desiste de explicar-me de outra

forma, com outros recursos, como se fosse pouco importante fazer-se entender ou como se

não soubesse como realizá-lo de forma mais eficiente.

Inicialmente, os insumos oferecidos partiram de uma diferenciação entre desenhos,

letras, palavras em LP, textos em LP, LS, alfabeto datilológico, buscando, dessa forma, iniciar

a diferenciação entre as línguas e suscitar a análise do próprio sujeito para as línguas que

175

(Início do atendimento em que E. segura um cartão contendo data e ordem do atendimento e, em seguida,

iniciamos um diálogo introdutório sobre qualquer tema livre.) E: BO@ TARDE (realiza seu sinal) NOME E-D-V-A-N (datilologia) HOJE DIA QUINTA-FEIRA REUNIÃO COMO 1ENSINAR3 Bo@ HOJE SETEMBRO 2007 P: HOJE SEPARAR FIGURA NÃO-PODER LETRA PALAVRA NADA SÓ FIGURA (As figuras estavam misturadas com as palavras e letras, e E. começou a procurar apenas o solicitado.) P: SEPARAR FIGURA CERT@interrogativa OK E: OK E: SANDUÍCHE – (Olhando a figura e sinalizando para P). P: PARECER E: CHUVA P: QUAL FIGURAinterrogativa (Edvan começou a colocar as figuras perto de P, que faz sinal de afirmação para E. de que ele estava realmente

selecionando as figuras.) E: NÃO-TER MAIS FIGURA

(P. indica outro desenho e sinaliza) FILH@ NOME PORTUGUÊS ESCREVER (E. faz expressão de quem não sabe) P: LEMBRAR NÃOinterrogativa ESFORÇAR ESFORÇAR ESCREVER E: ESFORÇAR P: CORAGEM EU 1AJUDAR2 VOCÊ

estão ao seu redor. O que pode ser comprovado no atendimento nº 5, no qual ofereço

diferentes formas, como as citadas acima, e peço a Edvan que separe apenas os desenhos.

Também pode ser observado, nesse mesmo atendimento, outra situação em que solicito

a escrita em LP referente a uma das gravuras apresentadas nesse exemplo, e frente à negativa

para realizar a ação. Aí, assumo postura de incentivo e apoio para que, mesmo sendo difícil ou

não sabendo como realizar, disponha-se para isso.

Esse tipo de incentivo é importante por demonstrar ao sujeito que, mesmo sem ter

certeza sobre a escrita pretendida, é necessário tentar, e também que pode contar com apoio

do outro, nesse caso, a mediadora, para aprimorar seus conhecimentos em LP. Com o passar

do processo, é possível perceber que esse momento inicial foi crucial para, de certa forma,

suscitar motivação e autonomia de Edvan no contato com a LP.

Outro fato a ser considerado quando se pensa na conscientização do sujeito sobre a

diferenciação entre sua L1 e a língua-alvo é demarcar que não são iguais, sendo necessário

estimulá-lo a perceber isso, uma vez, que espontaneamente, até esse momento, não conseguia

perceber sua língua como tal, nem que há correlação entre a LS e a LP, ou que não

necessariamente uma palavra corresponde a um sinal e vice-versa. Esse insumo é possível ser

verificado no atendimento nº 6, que está apresentado a seguir:

176

(Atividade de identificação e diferenciação entre LS e LP.) P: BO@ PROCURAR AQUI (indicando o local na mesa) JUNTAR LINGUA-DE-SINAIS O-QUEinterrogativa (Solicitando que E. procurasse o sinal em LIBRAS e juntasse ao seu correspondente em LP. Porém, antes disso,

P questionou se ele sabia em que língua aquelas palavras anteriormente trabalhadas estavam escritas.) P: ESTE (indicando um cartão) O QUEinterrogativa (questionando novamente) P: TUDO (indicando para determinado espaço sobre a mesa em que havia diversos cartões) PALAVRA PORTUGUÊS LEMBRARinterrogativa (E. fez expressão de que tinha compreendido) P: LEMBRAR 1EXPLICAR2 AQUI (indicando espaço) PORTUGUÊS AQUI (indicando espaço) LÍNGUA-DE-SINAIS E: LÍNGUA-DE-SINAISinterrogativa P: CERT@ ENTENDERinterrogativa E: ENTENDER P: JUNTAR E: MAÇÃ JUNTARinterrogativa E: JUNTAR MAÇÃ AQUI (indicando espaço sobre a mesa) P: JUNTAR P: LEGAL

Quando o sujeito pergunta “LÍNGUA-DE-SINAIS”, está querendo confirmação para seu

entendimento, uma vez que até então não fazia diferença entre essas modalidades linguísticas,

Isso é fundamental para que se torne fluente em sua L1, dominando-a como usuário

competente de forma a, a partir desse domínio, ser capaz de identificar como as línguas se

estruturam e em que contrastam.

Quando se fala em dominar uma língua, é possível falar também em ser capaz de falar

sobre ela, esmiuçando seus detalhes e falando sobre ela, refletindo inclusive sobre seus

constituintes, além das possibilidades de usá-la de forma fluente. No caso desse momento que

apresento a seguir, o sujeito ainda não tem esse domínio, por isso a intervenção do outro se

mostra extremamente importante para alcançar esse entendimento. Peixoto (2006, p. 227) faz

análise semelhante quando afirma:

Conforme sugere Góes (1999) mesmo em surdos adultos já alfabetizados não parece existir compreensão de que escrita e LS não são apenas modalidades diferentes. Essa é uma compreensão metalingüística, que certamente não se dá espontaneamente, mas na medida em que a escola orienta suas práticas pedagógicas para promover sua compreensão.

O fato recortado a seguir ocorreu também no atendimento nº 6 e, nesse caso, é possível

observar a oferta de análise da escrita em LP, na verdade ainda não com esse interesse

específico, mas de forma a que o sujeito pudesse refletir sobre sua produção, o que também

remete à categoria 2, Produção, não a antecipando, porém demonstrando que os

acontecimentos não são isolados, mas fazem parte de um todo que é o processo de

desenvolvimento de um sujeito linguístico. Nesse exemplo, observa-se:

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[...] E: (digitaliza) B-I-S-C-O-I-T-O P: CERT@ PALAVRA GRANDE E: PEQUEN@ (negativa realizada com movimento da cabeça) TOD@ CERT@ P: CERT@ QUAL LETRAinterrogativa (mostra as duas palavras escritas e sinaliza) NÃO-TER UM LETRA QUALinterrogativa

E: (começa a digitalizar novamente) B-I-S (porém parece não entender quando P. pergunta qual letra está

faltando na palavra escrita) P: (digitaliza) B (e indica as letras das duas palavras escritas no papel e faz sinal) CERT@ P: (digitaliza) I (e indica as letras das duas palavras escritas no papel e faz sinal) CERT@ P: (digitaliza) S (e indica as letras das duas palavras escritas no papel e faz sinal) CERT@ P: (sinaliza) LETRA (e indica a comparação e sinaliza) CERT@ (e indica duas letras e sinaliza) LETRA O IGUAL (comparando duas letras escritas e sinaliza) IGUAL CERT@ (compara as duas palavras escritas e

sinaliza) NÃO-TER LETRA I FALTAR E: (indica a palavra escrita por ele e sinaliza) ERRAD@ P: (volta para as duas palavras escritas e sinaliza) QUAL FALTAR LETRA I FALTARinterrogativa E: (digitaliza a letra) T P: T CERT@ P: (digitaliza) O (e indicando as letras das duas palavras escritas no papel e sinaliza) CERT@ P: QUAL LETRA FALTARinterrogativa P: I SÓ FALTAR LETRA I P: (mostra entre as duas palavras escritas sinalizando) NÃO-TER I P: (sinaliza) ESQUECER (significando que ele tinha esquecido de colocar a letra) I P: LETRA I NÃO-TER ESQUECER FALTAR ENTENDERinterrogativa

Como o processo de estímulo se iniciava, percebi duas questões nesse exemplo acima,

primeiro, o desconhecimento do conceito de letra em LP, uma vez que em LS não há letra e,

como segundo aspecto, o uso da datilologia, que na LS é uma forma de representar

gestualmente palavras que não possuem sinal ainda ou nomes próprios. Também é usada a

datilologia em LS, como um empréstimo tomado da LP, o que não significa que é fiel à

escrita da palavra, já que seu objetivo não é “escrever” a palavra através de configurações das

mãos, gestos, mas sim representá-la manualmente. A partir dessas reflexões, é possível

perceber que o sujeito não conseguia notar a ausência de uma letra na sua escrita da palavra

solicitada e mesmo com o estímulo de comparar letra-por-letra, não conseguia chegar até essa

resposta. Na medida em que foi se apropriando desses conceitos, sua relação se modificou

com a LS e com a LP, embora o suporte na datilologia se mantenha. Porém é levado a refletir

sobre a datilologia relacionando-a à LS e não à LP.

Ainda no atendimento nº 6, outro fato relevante que aponta para a importância do

insumo oferecido é o que está no exemplo a seguir:

178

(P escolhe outro desenho de sinal e oferece a E.) E: PÃO P: PÃO E: (escreve e, mostrando a P., sinaliza) CERT@interrogativa E: PÃO CERT@interrogativa P: LER (indicando que fará a leitura do que foi escrito por E.) P: PALAVRA PORTUGUÊS VOCÊ ESCREVER ENTENDERinterrogativa E: ENTENDER P: VOCÊ ESCREVER MÃO (indicando a sua mão) (E. repete o gesto feito por P., confirmando a informação.) P: PARECER PÃO P: LETRA COMEÇAR DIFERENTE PÃO COMEÇAR LETRA P E: P-A (fica pensando e faz expressão de compreensão e digitaliza) P-A-O OUTRA-VEZ CERT@ (P. indica o papel onde ele tinha escrito e indica a sua mão.) E: ESQUECER DESCULPAR MÃO DESCULPAR (E. repete esse sinal diversas vezes) P: LEGAL CALMA E: P-A-O (E. escreve corretamente a palavra) P: (sinaliza) CERT@ E: ESQUECER LEMBRAR P: IMPORTANTE PORTUGUÊS DOIS PALAVRA DIFERENTE SIGNIFICADO DIFERENTE MÃO OUTR@ PÃO COMER EU PODER MÃO COMERinterrogativa E: NÃO PÃO PODER P: SIGNIFICADO DIFERENTE P: DIFERENTE UM@ LETRA COMEÇAR DIFERENTE P:UM@ LETRA COMEÇAR M UM@ LETRA COMEÇAR P DIFERENTE SIGNIFICADO E: SIGNIFICADO P: PALAVRA PARECER IGUAL (indica as duas palavras escritas “pão” e “mão” e sinaliza) A IGUAL (indicando as duas letras A das duas palavras e sinaliza) O IGUAL (indicando as duas letras O das duas

palavras) (OBS: Enquanto P. sinaliza, E. copia os sinais, reforçando o que está sendo sinalizando.)

Nesse fragmento é possível perceber que significar a escrita construída pelo sentido

conferido dentro de um contexto faz com que o sujeito perceba que, mudando uma letra, o

significado prestado à palavra também se altera. Além disso, essa ação promove a reflexão

sobre sua própria produção em LP, chamando a atenção para os sentidos resultantes. A

intervenção, então, paira sobre a contextualização da escrita e não à mera substituição de uma

letra por outra, colaborando de forma mais eficiente para a interiorização da língua.

Esse tipo de situação ocorreu diversas vezes, possibilitando que sua produção fosse

insumo bastante eficiente para trabalhar seu conhecimento de LP. Também é possível

perceber essa característica em atividades nas quais o insumo caracterizou-se pelo

oferecimento das CM, um dos parâmetros da LS, para ser analisado em confronto com os

sinais. Um exemplo dessa situação ocorreu no atendimento nº 7, que está apresentado a

seguir.

179

P: VOCÊ LEMBRAR ÚLTIMA REUNIÃOinterrogativa E: REUNIÃO LEMBRAR PASSADO P: LEMBRAR TER PASSADO DESENHO PALAVRA TER SINAL DESENHO LEMBRAR HOJE VOCÊ TRABALHAR DESENHO SINAL SEPARAR EU 1EXPLICAR2

(P. pega um postal com configurações de mão e apresenta a E., e pergunta) CONHECERinterrogativa E: CONHECER NÃO P: COMO MÃO PODER SINALinterrogativa (indicando as duas mãos) P: EXEMPLO SINAL DESCULPAR (indica com a CM mão em Y e procura no postal a configuração de mão

correspondente e E. encontra.) P: DESCULPAR OUTR@ APRENDER (E. repete o sinal) P: MÃO COMEÇAR (procura a CM correspondente. Os dois encontram.) P: OUTR@ SINAL SÁBADO OU LARANJA (E. repete) (P. reforça o sinal e pede para E. procurar a CM.) E: (localiza e sinaliza) IGUAL APRENDER (indica a CM) P: OLHAR APRENDER E: PARECER SÁBADO APRENDER IGUAL P: LUGAR (indica a testa) APRENDER OU SÁBADO (e indica a boca) DIFERENTE P: AMOR E: (sinaliza) AMOR P: AMOR LUGAR DIFERENTE (indica a mão e indica a testa, boca ou lado esquerdo do peito) IGUAL interrogativa (indicando os lugares para os sinais de: aprender, sábado e amor) P: ENTENDER P: (indica o postal, mostra diversas CM e sinaliza) DIFERENTE (repetidas vezes) E.: ENTENDER SINAL P: PODER COMEÇAR SINAL EXEMPLO (indica o desenho do sinal) SUMIR (e pergunta a E.) QUAL MÃO interrogativa (para que ele procure a CM no postal.)

Esta situação aqui representada demonstra um primeiro momento em que a LS é

analisada a partir de um de seus parâmetros, a CM, possibilidade que, até então, não era do

conhecimento do sujeito da investigação. Tal estímulo provocou uma atitude de análise

também do parâmetro PA, demonstrando que, apesar de os sinais evocados iniciarem a partir

da mesma CM, se produzidos em locais diferentes, apresentam significados diferentes

também. Esse insumo, baseado no estímulo a uma atividade metalinguística na própria L1, do

sujeito, fomentando a consciência fonológica da LS, através da análise comparativa dos

diferentes sinais, faz com que ele veja sua língua e a analise, surgindo então diferentes

possibilidades, como evocar sinais a partir de uma determinada CM, separar sinais já

previamente selecionados a partir da CM, identificar sinais que tenham mesma CM, mas M

diferente, e assim sucessivamente.

Esse tipo de análise ocorre também com ouvintes sobre sua língua oral e, muitas vezes,

sem necessitar de um estímulo específico para que ocorra, porém a escola e o processo

educacional também promovem essa análise de forma às crianças serem capazes de refletir

sobre a língua que usam e, a partir disso, manipulá-la. Se a análise da língua não contribui

diretamente na aprendizagem da linguagem escrita, contribui para as reflexões da criança

frente a essa nova forma de expressão linguística. O mesmo pode ocorrer com o surdo, tanto

180

P: SINAL VOCÊ PROCURAR ENCONTRAR SINAL COMEÇAR MÃO IGUAL AGORA PROCURAR PALAVRA PORTUGUÊS COMEÇAR LETRA IGUAL E: IGUAL LETRA P: EXEMPLO PALAVRA PROFESSO@ PALAVRA PORTUGUÊS P-R-O-F-E-S-S-O-R-A E: PROFESSO@ P: COMEÇAR LETRA IGUAL FOTO (P. faz um sinal equivocado) P: DESCULPAR ERRAR P: PAT@ P-A-T-O (E. repete o sinal) E: IGUAL PAPEL PAT@ (P. apresenta dois desenhos de sinal e pergunta) PALAVRA QUALinterrogativa E: MARÇO P: COMEÇAR LETRA QUALinterrogativa E: M E: COMBINAR IGUAL JUNTO (referindo-se aos dois desenhos de sinal apresentados) P: PALAVRA DIFERENTE MÊS MAIO (indicando um desenho) MÊS MARÇO DIFERENTE COMEÇAR SÓ LETRA IGUAL P: OUTR@ COMEÇAR PALAVRA COMEÇAR OUTR@ M QUALinterrogativa (E. procura entre os desenhos e sinaliza) COMBINAR (aponta para um desenho) (P. coloca o desenho do sinal de maio, sinal de março e o sinal apresentado por E. juntos.) P: O-QUEinterrogativa E: COMBINAR COMEÇAR M E: DIFERENTE COMBINAR DIFERENTE M M-U-L-H P: PRIMEIR@ LETRA IGUAL (P. anota a palavra no papel) E: COMBINAR M COMBINAR P: (pergunta) O-QUEinterrogativa (indicando as palavras agrupadas a partir da letra inicial) E: JUNTO IGUAL M M M JUNTO IGUAL

no que diz respeito à análise e reflexão da LS, quanto da LP. O exemplo abaixo, ainda no

atendimento nº 7, mostra insumo oferecido através dos desenhos representativos de sinais, de

forma a evocar palavras em LP e a posterior escrita dessas, já conhecidas e trabalhadas

anteriormente, buscando as que se iniciem com a mesma letra, desde o oferecimento. Ressalto

que nesse insumo a palavra foi evocada a partir do léxico em LP já conhecido pelo sujeito,

pois a evocação das palavras se deu pelos desenhos dos sinais, partindo do próprio sujeito da

pesquisa essa busca a partir do solicitado por mim.

É importante salientar que tais atividades obviamente não se prestam para ensinar

português especificamente. Contudo, servem para despertar a análise da língua para que tenha

algum sentido no momento em que a criança se depara com LP.

Num movimento de incentivo à leitura em LP, o insumo oferecido nesse caso constituiu-

se em chamar atenção do sujeito para ler uma sentença, buscando elementos já conhecidos,

para, a partir deles, construir o contexto, assim como segue no fragmento de oferecimento de

insumo ocorrido no atendimento nº 11:

181

P: EU ESCREVER FRASE (aponta para as palavras anteriormente trabalhadas e depois aponta para as frases,

mostrando que as primeiras estavam incluídas nestas últimas) EXEMPLO (mostra uma das frases para E.) P: VOCÊ CONHECER PALAVRAinterrogativa E: (observa a frase e sinaliza) SÁBADO P: CERT@ VOCÊ ESCREVER P: CERT@ TOD@ FRASE TER PALAVRA (e aponta para as palavras anteriormente trabalhadas) P: FRASE O-QUE ESCREVER O-QUE VERinterrogativa (questionando o conteúdo da frase) E: CONHECER NÃO P: CONHECER NÃO EU ESCREVER FRASE PORTUGUÊS TER PALAVRA VOCÊ CONHECER SABER P: AQUI FRASE TER MUIT@ FRUTA EU ESCOLHER LARANJA ENTENDERinterrogativa E: LARANJA ESCOLHER P: EU GOSTAR LARANJA ENTENDERinterrogativa (como E. não conseguiu ler, P explicou a frase) P: OUTRA (e mostra outra frase para E.)

É possível perceber que há uma grande resistência da parte dos surdos para a leitura em

LP, especialmente os adultos que já tiveram uma larga experiência educacional baseada em

práticas que relacionam a leitura e escrita à língua oral. Isso significa dizer que, normalmente,

nesses casos, há uma maior preocupação com a “forma” do lido (articulação) mais do que

com o sentido ou com o conteúdo expresso pela escrita em LP. Isso se caracteriza pela

necessidade de “ler” todas as palavras ou sinalizá-las, o que não contribui para compreensão,

mas, ao contrário, dificulta ainda mais. Ou seja, depois de completa a ação da leitura, o sujeito

não sabe dizer o que leu. No caso aqui apresentado não é diferente, ou até me atrevo a dizer

que esse é bastante característico, pois, do início ao fim da coleta de dados, foi necessário

chamar a atenção do sujeito para a tentativa de ler contextualmente e não buscar sinalizar

palavra-por-palavra (o que é entendido pelo sujeito como ler em LP). Observo que o

desconhecimento da LP provoca um afastamento do sujeito do objeto de leitura, ou melhor,

uma reação negativa e de rechaço à aproximação para o desenvolvimento de ações que

promovam o uso funcional da escrita. Esses sujeitos aceitam apenas ler o que “dominam”, ou

melhor, “lêem”2 quando conhecem todas as palavras que compõem o texto.

Portanto, o processo de chegar até a compreensão da escrita da LP não é simples para o

surdo. Depende, em primeiro lugar, de que tenha domínio de sua L1 e da língua-alvo e

também que consiga construir os sentidos nela, ou seja, que seja capaz de contextualizar a

língua. Por isso, o incentivo a que busque pontos de referência no texto para tentar construir

os sentidos implica em estimulá-lo a que leia a língua-alvo contextualmente, e não palavra por

palavra, como geralmente faz. Assim, poderá tornar-se mais competente e motivado sobre

suas possibilidades de efetuar leitura nessa segunda língua. Exemplo disso ocorreu diversas

vezes, uma delas está no fragmento do atendimento nº 23:

2 Esclareço que a palavra “lêem” está entre aspas para chamar atenção para dois processos opostos/contíguos: a ação do sujeito de decodificar a escrita ao que chamam de leitura, e a não compreensão do “lido”. Ou seja, dessa forma, não ocorre leitura, uma vez que não alcançam os sentidos expressos no texto, o que, então, não é funcional para o sujeito surdo.

182

E: (E. estava lendo a outra frase) EU GOSTAR PROFESS@Rinterrogativa (questiona dirigindo-se a P como

para confirmar sua leitura e entendimento) P: LEMBRAR NÃO-PODER LER PALAVRA PALAVRA PALAVRA P: VOCÊ PRECISAR OLHAR LER TUDO FRASE O-QUE CONHECER ENTENDER O-QUEinterrogativa E: CONHECER NÃO P: OUTRA

Nesse exemplo, é possível observar que chamo a atenção de Edvan para seu movimento

de ler e sinalizar cada palavra como se os sentidos pudessem ser traduzidos linearmente: para

cada palavra, um sinal, já que é por sua L1 que estabelece sentido. A leitura realizada dessa

forma implica no não acesso à compreensão pretendida, ou seja, na realidade, não acontece

leitura, e sim uma tradução de uma língua para outra, que não é compreensível do ponto de

vista interpretativo das línguas. Essa estratégia de leitura foi frequentemente usada pelo

sujeito, do início ao final do processo, refletindo mais do que uma estratégia pessoal, mas o

resultado de uma prática pedagógica baseada num entendimento de que ler é falar, ou melhor,

de que ler é decifrar e transformar em fala o lido, ao invés de estimular a leitura contextual,

como fonte de informação e compreensão linguística. Ou seja, nessa situação, mais que o

insumo, é possível verificar a presença de estratégia do sujeito. O que considero como

insumo, nesse caso, é o estímulo à busca pela compreensão sobre a língua-alvo, promovendo,

através disso, a análise e reflexão metalinguística.

Apesar de esta investigação tratar-se de um caso, um sujeito em estudo, pode-se

observar que uma grande parcela de surdos mantém essa característica de estratégia de leitura,

como consequência das práticas pedagógicas a que foi submetida. Vale uma ressalva aqui,

pois, falando no passado – foi submetida – estou dizendo que atualmente a educação de

surdos não é mais dessa forma, ou melhor, que a escola em que os surdos estudam já não mais

utiliza uma pedagogia de ensino de LP baseada no ensino de LM, assim como realiza (e é

correto) com os alunos ouvintes. Isso, infelizmente, não condiz com a realidade, com exceção

das escolas de surdos (consideradas pelo Sistema Educacional Brasileiro como escolas

especiais) que, além de terem a LS como língua de instrução, adequam suas práticas e

estratégias às necessidades dos alunos surdos. Contudo, grande parte das crianças, jovens e

adultos surdos, geralmente, frequenta o ensino regular, em sistema de inclusão escolar, em

que os professores, além de não saberem a LS (e seria minimamente necessário que

dominassem essa língua), também não conhecem as peculiaridades do ensino para esse aluno.

Como se ainda fosse pouco, os professores da escola regular têm também alunos ouvintes que

têm outra forma de aprender e outras tantas solicitações, o que significa que, geralmente, não

183

há uma atenção específica ao surdo na sala de aula. Mesmo que se conte com as salas de

apoio, com pessoas preparadas para trabalhar em reforço educacional com surdos, elas não

dão conta da demanda de cada aluno surdo existente nas salas de aula ou de cada disciplina

curricular, de acordo com a necessidade individual dos alunos. Enfim, na realidade do Estado

da Bahia, ainda temos número insuficiente de escolas públicas específicas para surdos. E a

tendência ainda é de diminuir esse número em vista das políticas públicas vigentes. Porém,

apesar de ser pertinente, esse tema não será discutido neste trabalho.

As observações quanto à leitura dos surdos são também apresentadas por Faria (2006, p.

262), que relata as características de leitura nos surdos:

A naturalidade com que muitos surdos traduzem palavra por palavra da LP para a LSB3 pode ser explicada como resultado da prática de interpretação estanque e descontextualizada a qual foram e têm sido submetidos nos métodos de comunicação total que preconizam o português sinalizado como técnica importante para o acesso à língua-alvo para os surdos. Nessa abordagem, a LSB não passa de um trampolim para se chegar à LP, é apenas um instrumento para o aprendizado da LP. [...] Essa estratégia dificulta a identificação da coerência do texto lido, exigindo dos surdos, verdadeiros malabarismos mentais para atribuírem sentido coerente a seqüências de palavras, sem elo.

Da mesma forma, Svartholm (1999, p. 21), falando sobre os surdos suecos,

Eles tentavam transformar o texto palavra por palavra usando sinais discretos. Quando solicitados a explicar o conteúdo, ou seja, o que os sinais realmente significavam, ficou provado que não tinham compreendido o que eles mesmos tinham transformado usando esse método. É provável que os estudantes tivessem sido encorajados a usar essa “técnica de leitura” em seus primeiros anos na escola [...].

Outro insumo recorrente trazido para o trabalho pelo próprio sujeito da pesquisa foi o

alfabeto datilológico, muito utilizado por ele para escrever em LP ou na tentativa de

compreender a escrita das palavras até então desconhecidas. Esse recurso merece uma atenção

especial, pois, apesar de ser constantemente usado pelos surdos para a escrita em LP, não

pode ser visto como uma forma de acesso direto ou de fácil acesso a essa língua.

No exemplo a seguir, ocorrido no atendimento nº 11, é possível verificar essa

solicitação.

3 A autora citada usa em seu trabalho a sigla LSB – Língua de Sinais Brasileira, sendo, portanto, mantida na citação.

184

E: CONVERSAR NOMEinterrogativa (E. solicita a P. como escrever a palavra “conversar” em LP) P: CONVERSAR NOME PORTUGUÊSinterrogativa E: PORTUGUÊS NOME P: C-O-N-V-E-R-S-A-R (E. repetia a palavra digitalizada enquanto P. realizava a datilologia) E: C-O... P: OUTRA-VEZ OUTRA-VEZ C-O-N-V-E-R-S-A-R E: C-O-N-V-O... P: E E: V-E... P: V-E-R-S-A-R (E. repetiu junto com P. a palavra digitalizada e, enquanto escrevia, digitalizava...E-A-R-O-N-C-O-V...) P: NÃO...C-O-N... E: O-C-N-V...V-E-A-D... P: C-O-N-V-E-R-S-A-R E: C-O-N-V-E-R-A-Rinterrogativa E: C-O-N-V-E-R-A... P: C-O-N-V-E-R-S-A-R (E. volta a escrever e no decorrer torna a realizar sinais discretos para algumas palavras) E: PRAIA NOMEinterrogativa P: NOME PORTUGUÊS P-R-A-I-A OUTRA-VEZ P-R-A-I-A (E. repete a datilologia da palavra) P: PALAVRA CURTA E: P-A.. P: P-R-A-I-A (enquanto E. repetia junto com P.) E: P-R-A-I.... P: P-R-A-I-A E: P-R-A-I P: A E: A (E. volta a escrever) E: P-E-S-S-O-A (pergunta a P., confirmando a escrita correta dessa palavra)

O que quero chamar atenção nesse momento é que a datilologia citada por diversos

autores como fato importante e que auxilia o surdo na aprendizagem da LP escrita deve ser

estimulada desde muito cedo, desde que a criança é bastante pequena. Porém, deve-se lembrar

de transformar esse uso em algo construtivo para a criança, pois o simples fato de usar a

datilologia não significa que saberá usá-la de forma efetiva na aprendizagem dessa língua.

Isso significa dizer que a datilologia, a princípio, cria para o surdo uma forma visual da

palavra, o que não caracteriza uma relação alfabética entre a datilologia e a palavra

pretendida. Aliás, esse tem sido um questionamento constante que tenho ao perceber que o

sujeito da pesquisa sabe digitalizar uma palavra, porém, no momento em que se solicita sua

escrita, ele não usa esse conhecimento para grafá-la em LP. Ou seja, se sabe a datilologia da

palavra, por que não saberia escrevê-la? Porque esse recurso caracteriza para o surdo apenas a

forma para a palavra pretendida, mas não a palavra em si, alfabeticamente pensando.

Da mesma forma, o que grafa com o apoio da datilologia (exemplo disso é quando me

solicita a escrita de determinada palavra através desse recurso, como explicitado no exemplo

185

anterior) também não oferece sentido, não contribui para a construção do significado da

palavra, não contribui para o entendimento da palavra quando realiza leitura. Isso se explica

pelo que já esbocei anteriormente, quando, numa tentativa de aproximação entre as duas

línguas, a sua L1 – LS e a língua-alvo – LP, o surdo busca uma forma de trazer a escrita da

língua-alvo ainda não bem compreendida para o que lhe é familiar (a gestualidade). Essa

forma é a datilologia, o que implica em ver a palavra como uma construção manual e não

como uma construção alfabética. Contudo, como também já mencionei, não significa que não

se use a datilologia quando necessário, nem que não se ofereça essa opção às crianças surdas.

Ao contrário, vejo como algo positivo que desde muito precocemente a criança tenha contato

com o alfabeto datilológico, porém de forma contextualizada e contrastando com a LP.

Entretanto, apoiar a aprendizagem da segunda língua nessa forma não sustentará o

conhecimento necessário para a compreensão da língua-alvo.

Em geral, percebe-se que adultos surdos que usam muito a datilologia, seja como

estratégia mnemônica, seja como recurso para tentar escrever em LP, não a veem como um

passo para chegar à escrita da LP. Eles não conseguem transpor do alfabeto digital para a

escrita propriamente dita porque isso não lhes oferece sentido alfabético da palavra, mas

apenas a “forma” da palavra.

De certo modo, o questionamento do por que os surdos conseguem digitalizar palavras

mas não sabem escrevê-las implica em que, na verdade, a digitalização, nesse caso, refere-se à

visualização gestual da palavra e não à palavra em si. Esse fato pode ser comparado também a

que os surdos não compreendem, a princípio, que a escrita é uma representação da linguagem

ou uma outra possibilidade de usar a linguagem. Isso significa que não se pode basear a

aprendizagem da escrita nesse recurso ou vê-lo como estratégia, pois confere apenas uma

imagem à palavra, e não seu sentido ou sua interpretação.

Essa constatação é ratificada por Stumpf (2005, p. 44) quando afirma que “mesmo que a

criança surda, quando lê uma língua oral, consiga converter as letras na soletração digital

correspondente ela não vai obter o sinal lexical que ela está acostumada a usar no dia a dia em

sua língua de sinais, e essa é uma crucial diferença em relação à criança ouvinte”.

Batista e Costa (2003) também chamam a atenção para esse aspecto, explicando que a

imagem produzida pela datilologia não é capaz de evocar o sinal que o surdo utiliza na

comunicação, ou seja, não contribui na compreensão do que está escrito em LP. As autoras

acrescentam que

186

[...] mesmo que a criança surda decomponha as palavras em suas letras, e converta

as letras na soletração digital correspondente, quando ela fizer a soletração digital

da palavra como um todo, ela não obterá diretamente o sinal que está acostumada a

ver e emitir em situações comunicativas. (BATISTA e COSTA 2003, p. 158)

De qualquer forma, muitas foram as situações de oferecimento de atividades ou insumos

ao sujeito a fim de contribuir nesse processo de construção da L2. Acabaria tornando-se muito

extenso listá-los aqui, mas podem ser conferidos através das atividades apresentadas no

Capítulo 6, analisadas pelos exemplos apresentados no Diário de Registro (APÊNDICE F) ou

na relação das atividades desenvolvidas (APÊNDICE B) e ainda no recorte apresentado das

transcrições4 (APÊNDICE G).

Ressalto, finalmente, que foi possível observar maior dificuldade de manuseio da língua

nos momentos em que dizem respeito à leitura da LP. Por exemplo, no atendimento nº 25

(não está filmado, pois foi algo ocorrido fora do contexto do atendimento), como o sujeito

demorou muito a chegar, deixei um bilhete na porta para orientá-lo de que, apesar de não estar

ali no local onde sempre o esperava, estava presente na instituição onde semanalmente nos

reuníamos. Porém, ele não compreendeu o bilhete que deixei, ao que lhe chamei a atenção

para alguns aspectos como seu nome e o meu nome, dados que poderiam ter lhe sido

significativos. O que percebi é que, em virtude de tratar-se de LP e de essa ainda lhe ser

pouco funcional, ele não tentou buscar seu conteúdo, lendo, não representando valor

informativo algum nesse momento. Como fruto dessa experiência, os atendimentos nº 27 e 28

foram destinados ao uso desse gênero de texto, por tratar-se de uso da LP com linguagem

simples, de fácil empregabilidade e funcionalidade para sua vida quotidiana. Eles serão

analisados na categoria 2 – Produção.

7.4.2 Produção

A partir do oferecimento de insumos já analisados anteriormente, espero observar as

respostas que podem ser entendidas como tais desde a compreensão do solicitado até a

4 No Apêndice G, apresento um recorte com uma parte dos 29 atendimentos realizados com E. como exemplo,

pois a apresentação da transcrição completa dos vídeos acarretaria em um volume muito extenso de material.

187

execução das tarefas e eliciação de outras além do proposto. O que significa que não

considero como resposta apenas a “escrita” da LP, mas sim o movimento do sujeito em prol

de compreender a LP como sua segunda língua e o significado que isso terá em sua vida.

Então, considero esse processo como produção.

Neste sentido, não penso encontrar uma forma determinada de resposta ou uma resposta

específica para um tipo de estímulo específico, especialmente porque o mesmo insumo pode

gerar uma grande variedade de respostas em diferentes sujeitos. Ou seja, busco compreender

as respostas obtidas com os estímulos de uma forma geral, sejam elas positivas ou não, as

esperadas para a atividade ou não, seja em LS ou em LP. De qualquer maneira, elas também

podem suscitar outros questionamentos em mim como sujeito/pesquisador em interação com

o sujeito da pesquisa, ou ainda identificar algum tipo de comportamento que demonstre,

finalmente, como ou que efeito o estímulo ou insumo produziu. Isso é o que espero analisar

nessa categoria.

Parece claro levantar a categoria Produção e buscar este comportamento na análise das

atividades desenvolvidas com o sujeito, porém, mais que localizá-las e identificá-las, me

interessa interpretá-las e colocá-las frente a frente com o conjunto de estímulos oferecidos.

Desse modo, acredito chegar ao entendimento do processo pelo qual o sujeito vai passando na

construção da compreensão da língua-alvo.

Contudo, é importante ressaltar que o mais importante no processo foi a riqueza de

experiências desenvolvidas e vividas por ambas as partes, sujeito e pesquisador, mais que

qualquer resposta específica.

Para chegar a essa compreensão, a análise interpretativa das situações dialógicas

constitui-se no fio principal que levará à visualização dos acontecimentos de forma a tornar

claro o que acontece com o sujeito no processo de aprendizagem. Assim, sem antecipar as

análises, é possível que o sujeito tenha produzido diferentes respostas frente aos variados

insumos oferecidos, e que essas respostas tenham sido algumas vezes coerentes e, em outras,

não tanto, mas o importante é a possibilidade de análise constante do processo que essas

observações geraram. Portanto, quando me refiro à categoria de produção, quero buscar

analisar e interpretar tudo o que ocorreu como resultado da estimulação concedida,

independente de produto ou tipo de resposta.

188

(P. e E. estão construindo palavras a partir de letras soltas, como no atendimento anterior. P faz a sugestão de

diversas palavras, algumas a própria P. constrói, outras E. constrói. Em seguida, P. constrói a palavra

“mamãe”.) E: MAMÃE E: (separa “m”, “a”, “e”, sinaliza) MÃE SIGNIFICADO IGUAL (E. com essa produção demonstra o entendimento de que as palavras “mamãe” ou “mãe” em LP mantêm o

mesmo significado, embora com a escrita um pouco diferente.)

Nesse sentido, me refiro à produção de uma forma genérica, pois não busco

restritamente a produção em LP, mas também a atitude do sujeito frente à própria L1, sua

relação com ela, e como ele vai se movimentando rumo à aprendizagem da L2.

Um momento em que é possível observar esse movimento ocorre no atendimento nº 15,

em que, com letras do alfabeto, estimulo a construção de palavras em LP e, mesmo que em

situação simples, Edvan já demonstra começar a refletir sobre essa língua, como no fragmento

abaixo:

Em primeiro lugar, o fragmento exemplificado apresenta o uso do conceito

“significado” pelo sujeito, sendo que demonstra compreensão do sentido da palavra desde o

atendimento número sete. Vale ressaltar que, no início do processo, esse conceito não fazia

parte do léxico em LS de E., tendo-lhe sido por mim apresentado durante a realização das

atividades de forma contextualizada desde o início do processo e, mais constantemente, a

partir do quinto atendimento. Pelo uso feito aqui, denota interiorização do sentido sem que

tenha sido necessário qualquer explicação adicional. Esse momento demonstra também a

iniciativa do próprio sujeito na observação da língua-alvo, chamando a atenção para o

significado em LP de duas formas diferentes para referir-se ao conceito “mãe”. Essa é uma

situação simples, mas que mostra como o sujeito vai percebendo as possibilidades e variações

que podem ocorrer na língua-alvo, da mesma forma que também ocorrem na sua L1,

apontando para uma atitude reflexiva que já é, espontaneamente, capaz de apresentar no uso

da LP.

Outro exemplo de como o sujeito se movimenta no sentido de responder aos insumos

oferecidos está expresso no fragmento do mesmo atendimento (nº 15), em que se construiu

uma “cruzadinha” (palavras cruzadas em que, a partir da construção de uma palavra,

utilizando suas letras, se constroem outras). Essa atividade não foi previamente planejada

dessa forma, pois a intenção era apenas a construção de palavras a partir de letras soltas, para

oferecer-lhe a noção de letras e palavras. Porém, surtiu efeito bastante positivo esse tipo de

elaboração, apontando para a eficiência desse tipo de insumo.

189

(P. indica a letra “t” da palavra “gosto”) e E: (sinaliza) TRABALHAR (P. sugere a letra “l” de trabalho) e E: (sugere) LARANJA E: (vendo a cruzadinha que estava construindo e as palavras presentes, sinaliza) PENSAR ORGANIZAR P: VOCÊ PODER ORGANIZAR PALAVRA INTELIGENTE (diz isso indicando a palavra “laranja” e como

E. demonstra não saber como fazer, P. o ajuda, dizendo) PEGAR ORGANIZAR (indicando o local, a letra “n”

da palavra “laranja”). P: (digitaliza) I-N-T-E-L-I-G-E-N-T-E LEMBRAR SEMANA PASSADOinterrogativa E: IMPORTANTE P: IMPORTANTE DIFERENTE INTELIGENTE (E., analisando a palavra “laranja”, percebe que pode construir a palavra “inteligente” com a letra “n” da

primeira, antes mesmo que a P. precisasse auxiliá-lo.)

Nesse fragmento, percebe-se que o sujeito é capaz de compreender a construção de

palavras na língua-alvo utilizando um léxico que já lhe é familiar. Afora isso, demonstra

maior domínio de uso da modalidade escrita e a possibilidade de manipulação da LP, além de,

em cada situação desenvolvida, o próprio sujeito acrescentar possibilidades de ampliação do

vocabulário na L2, bem como de aprofundamento das análises dessas palavras, a partir de sua

L1, na L2.

Seguindo o processo constante de análise da L1, que permite refletir a L2, na atividade

oferecida no atendimento nº 21, apresentei desenhos representativos da LS e fomos

construindo sentenças, obedecendo a estrutura sintática dessa língua.

O objetivo desse insumo foi facilitar e promover a organização sintática em LS a partir

do que já é do domínio do sujeito e, posteriormente, ser possível contrastar com a mesma

organização da língua-alvo.

Quando eu fiz as construções usando os desenhos representativos da LS, fiz com base na

organização da língua portuguesa escrita, obedecendo os critérios de linearidade da língua

com a ordenação dos desenhos da esquerda para a direita e em sentido horizontal, assim como

escrevo em LP (demonstrei assim a influência da minha L1 na utilização da L2). Ao solicitar

que E. fizesse também essas construções, me surpreendi com a estruturação, pois o fez

distribuindo os desenhos de sinais em sentido vertical. A princípio, vi como equívoco, porém

a cautela me levou a analisar melhor essa situação, mesmo que de forma bastante rápida,

percebendo então que, ao invés de uma organização sintática equivocada, na verdade E. teve

como sustentação a gramática da sua L1, a LS, que não é linear, mas ocorre em

simultaneidade.

Visto por esse prisma, reconheci essa resposta como natural, pois eu também havia

sofrido influência da minha L1 na construção, servindo como apoio para estruturar a sentença.

Isso ocorre com todo aprendiz de uma língua estrangeira até que se aproprie progressivamente

190

(Ofereço os desenhos representativos dos sinais como estímulo para a construção de sentenças em LS através

deles. E. está realizando uma construção em LS, entregando sinal/sinal à P. e é possível observar que faz a

construção ao “montar” a sentença nessa língua, em sentido vertical, colocando um sinal abaixo do outro,

conforme segue, mesmo eu já anteriormente tendo oferecido um exemplo com o mesmo estímulo organizado na

horizontal, como a representação gráfica da LP):

PRIMO

ESQUECER

DESCULPAR

AMIGO

da gramática da língua-alvo. Mais ainda, percebi que não estava solicitando nesse momento

que ele escrevesse em LP, recaindo sobre mim, na verdade, o equívoco.

Essa observação me faz refletir que “aprendemos quando ensinamos e ensinamos

quando aprendemos” (MENDES, 2004, p. 172), e felizmente esse não foi o único momento

em que me coloquei no papel de aprendiz da LS e também aprendiz na interação com sujeitos

linguísticos, reforçando a riqueza das experiências quando nos disponibilizamos a estar

abertos e atentos às variações promovidas pela diversidade linguística.

Abaixo, apresento fragmento da situação vivenciada no atendimento 21:

Apesar de já ser ciente dessa influência e saber que a L1 influenciará a L2, me

surpreendi com esse achado. Stumpf (2005), que estuda a escrita da LS representada através

do sign-writting, ratifica que a forma de representação da LS contribui muito para o

desenvolvimento da aprendizagem da L2. A autora afirma, em sua tese de Doutorado:

as crianças surdas que se comunicam por sinais precisam poder representar pela

escrita a fala delas que é visoespacial. Quando as crianças conseguem aprender uma

escrita que é representação de sua língua natural têm oportunidade de melhorar todo

o seu desenvolvimento cognitivo. (STUMPF, 2005, p. 44)

Assim, é possível compreender, de forma espontânea, pela oportunidade de manipulação

dos desenhos de sinais oferecida ao sujeito da pesquisa, que ele representasse sua “fala”, e

isso o fez obedecendo a essa estrutura espontaneamente, e não a que eu determinava. Vejo,

nesse sentido, a busca pela significação do que lhe é novo a partir do que ele já domina, para

depois ser possível compreender a L2 e realizar as elaborações a partir da gramática dessa

língua.

Especificamente no que está demonstrado pelo exemplo apresentado, a escrita em sinais

é grafada também no sentido vertical, demonstrando o quanto esse sistema de representação

pode ser considerado como importante para o surdo, a ponto de que ele mesmo,

espontaneamente, tem a tendência de também representar dessa forma. Porém, convém

ressaltar que não foi um ato isolado, pois no atendimento nº 8, quando proposta uma atividade

191

de diferenciação entre palavras em LP, eu as escrevo e, ao lado, faço os desenhos

correspondentes. Quando solicito ao sujeito o mesmo processo, ele, não sabendo como

representar através de desenho o significado da palavra, faz o desenho da CM, e, em seguida,

o desenho da realização do sinal, dando-se por satisfeito por ter expressado dessa forma o

significado pretendido.

Peixoto (2006), que também observa esse dado em sua pesquisa, afirma que essa é uma

ação derivada da característica visual da LS, sendo próprio que os surdos façam essa

representação ao desejar expressar uma ideia e, não conseguindo expressá-la através do

desenho ou não conseguindo colocar no desenho o significado pretendido, desenham o

próprio sinal. Isso é significativo, pois, segundo ela, demonstra a compreensão de que a

escrita representa a linguagem, os nomes, e não o objeto mesmo, o que também chama a

atenção para a arbitrariedade do signo linguístico, uma vez que nem tudo é possível de ser

desenhado, representado do real, mas que, quando assim o é, há a linguagem para representá-

lo e cumprir com esse objetivo.

Nesse sentido, entendo que, mesmo fazendo o uso do sinal – que é o significante – para

expressar o significado, mesmo que em outra modalidade (nesse caso, a escrita), demonstra a

compreensão de que é necessário algo que expresse essa ideia. Isso ocorre porque nesse

momento é mais acessível para ele usar a LS (desenhada), já que ainda não consegue

expressá-la através da LP. E esse pode ser compreendido como um caminho para chegar às

elaborações necessárias para a construção da escrita.

Isso significa um avanço nas análises do sujeito para o uso da escrita, pois percebe que

as duas línguas e/ou modalidades de expressão linguísticas constituem-se em sistemas

diferentes. Então, há a compreensão de que sua linguagem pode ser representada graficamente

e que, dessa forma, outras pessoas podem compartilhar desse significado, compreendendo o

que ele quis dizer. Dessa forma, essa ação ou produção do sujeito é significativa para a

compreensão geral da LP, porém ainda não o leva ao uso da escrita alfabética, que é desejado

nesse caso, mas contribui para o desenvolvimento do processo até lá.

Exemplifico tal situação, apresentando agora o desenho mencionado:

192

(E. coloca os desenhos de sinais: VÍDEO-CASSETE GRITAR COBRA e diz para P. que está faltando o sinal de TELEVISÃO). E: FALTAR TELEVISAO NÃO-TER FALTAR (e continua procurando entre os sinais distribuídos pela mesa. Como não encontrou o sinal desejado, propõe colocar suas mãos configuradas para esse significado no lugar devido, na sentença onde deveria ir). E: TELEVISÃO (e indica sua mão, dirige o sinal para o lugar da frase onde está faltando). E: PROCURAR NÃO-TER TELEVISÃO (colocando a mão configurada para representar o sinal de TELEVISÃO no lugar correspondente) MELHORexclamativa E: PROBLEMA NÃOinterrogativa (P. organiza os sinais colocados por ele para a sentença, abrindo o espaço correspondente ao desenho do sinal de TELEVISÃO para que E. coloque sua mão configurada).

Figura 16 - Desenho expressando o significado de palavras escritas em LP

Além desse, outro momento no atendimento nº 15, na construção da “cruzadinha” já

mencionada, em que, a partir da letra “x” da palavra “abacaxi”, faço a palavra “Xuxa”, que é

imediatamente reconhecida por E. Porém, ao percebermos que faltava mais uma letra “a” para

o final da palavra, ele coloca sua mão configurada em “A”, substituindo-a.

Ainda outro exemplo ilustrativo desse mesmo fato ocorre no atendimento nº 21:

Fernandes (1999, p. 66) traz observação importante também com relação à função da LS

no processo de aprendizagem da LP pelos surdos:

[...] A internalização de significados, conceitos, valores e conhecimentos será realizada através do domínio dessa modalidade de língua que servirá como suporte cognitivo para a aprendizagem de um sistema de signos, que, embora organizado a

193

partir da oralidade, guarda características específicas que permitem sua relativa

autonomia do sistema que lhe deu origem, permitindo sua apropriação por pessoas

surdas que desconhecem o valor sonoro das palavras.

É possível também observar a produção do sujeito da pesquisa através de sua escrita em

LP expressa pelas atividades desenvolvidas nos atendimentos e ainda através das mensagens

enviadas por ele através de celular5. Considero, contudo, conforme salienta Stumpf (2005, p.

44),

A principal dificuldade dos surdos, quando escrevem uma língua oral não é o léxico

e sim a sintaxe. Como é pela sintaxe que a língua se define, pois a função geradora

está contida no campo sintático, a dificuldade em adquirir a sintaxe da língua falada

é o que acontece de mais grave na escrita do surdo, o que faz com que seus textos

sejam muitas vezes incompreensíveis.

Exemplos de sua escrita em atividade nos atendimentos é o produzido nos dias 29 de

novembro de 2007, 24 de janeiro de 2008, 03 de julho de 2008 e 07 de agosto de 2008, sendo

que, neste último, faz uso de estrutura de texto “bilhete”, que foi trabalhado durante os

atendimentos, demonstrando sua apropriação não apenas do gênero textual, mas também da

funcionalidade do gênero relacionado à sua vida.

Figura 17 - Escrita espontânea (29 de novembro de 2007)

5 As mensagens recebidas pelo celular são aqui apresentadas como elemento adicional de análise, visto que não

haviam sido planejadas, mas demonstram aproximação importante do sujeito da investigação ao uso funcional da

LP.

194

Figura 18 - Escrita espontânea (24 de janeiro de 2008)

Figura 19 - Escrita espontânea (03 de julho de 2008)

195

Figura 20 - Escrita espontânea (07 de agosto de 2008)

Os textos aqui apresentados refletem exemplos de como progressivamente E. vai se

aproximando do uso da LP, demonstrando, na análise dessa categoria, maior facilidade de uso

da língua-alvo e domínio não apenas lexical, mas, de certa forma, da própria estrutura

gramatical da língua. Cada uma dessas escritas foi eliciada a partir de minha solicitação para

que escrevesse sobre o que havia aprendido naquele dia (29 de novembro de 2007, 03 de julho

de 2008 e 07 de agosto de 2008) ou sobre alguma experiência particular (24 de janeiro de

2008).

A princípio, é possível observar, na primeira escrita, em termos de forma, que repete a

estrutura usada nos textos de mensagens instantâneas pela internet, como por exemplo quando

usa “vc" por “você” e quando acrescenta ao final da primeira linha “RSRSR”, significando

“risos”. Embora essa seja uma forma de utilização da LP escrita, vê-se superficial e bastante

breve, além do fato de que foi solicitado que escrevesse sobre tudo o que havia aprendido

naquele dia, ao que, a princípio, não atende. Também se observa o uso de léxico em LP

bastante reduzido, ausência de uso de pontuação, bem como de letras maiúsculas no início da

sentença. Contudo, essa foi uma de suas primeiras produções e é importante para comparar

seu desenvolvimento até o final do processo.

196

No segundo exemplo, E. escreveu, por minha solicitação, sobre evento ocorrido em seu

período de recesso, em que realizou um passeio de barco com seu irmão. Nessa produção, é

possível perceber que desenvolve um texto muito mais extenso, com maior variabilidade

lexical, porém faz uso indiscriminado de maiúsculas, não diferenciando início de sentenças, o

que também é possível ser percebido por não usar pontuação em toda a produção escrita.

Contudo, já é possível constatar maior facilidade de uso da LP e menos medo de arriscar a

construir ideias usando a LP escrita, conseguindo expressar-se melhor na língua, apesar da

excessiva repetição de palavras e até mesmo de conteúdo.

No texto posterior, a mesma solicitação foi feita: escrever sobre o que havia aprendido.

E. inicia sua escrita desculpando-se por faltas anteriores, acrescentando sua impressão sobre o

processo, sendo expresso pelo uso de “aprender gosta”, demonstrando já ter maior

consciência sobre o que lhe foi solicitado e sobre o que significa para ele cada encontro. Além

disso, é possível perceber melhor organização das ideias expostas, maior variedade lexical em

LP, uso de pontuação e maior controle do uso de maiúsculas e minúsculas. Isso evidencia

cuidado do ponto de vista de uso da escrita como forma de expressar seu pensamento ao outro

e também algum cuidado com a forma e estrutura da língua.

Já nesse último exemplo de escrita, E. escreve no final do processo, também pela

solicitação de análise sobre sua aprendizagem, porém expressa mais profundamente o

significado das aprendizagens para sua vida. Observo também que utiliza a estrutura de

bilhete que fora trabalhada durante os atendimentos, usando despedida ao final, demonstrando

aplicabilidade do aprendido. Do ponto de vista do conteúdo expresso, já desenvolve melhor

ainda o pensamento, usando vocabulário mais complexo (embora tenha solicitado minha

ajuda para escrever palavras como “desenvolver”, partiu dele a necessidade de uso desse

significante para expressar a ideia). Nesse texto também é possível perceber que fez uso de

pontuação e de flexão verbal. Contudo, ainda usa indiscriminadamente maiúsculas nas

sentenças.

Ponto importante a ser destacado nesse momento é que, na primeira solicitação para que

escrevesse sobre suas aprendizagens, Edvan demonstrou bastante resistência a realizá-lo,

apresentando dificuldade em construir seu pensamento de forma a escrever em LP. Esse fato

já não mais se observou nos atendimentos subsequentes (realizados nos meses de julho e

agosto), sendo mais rápido na organização das ideias e sabendo melhor o que queria escrever,

mesmo que não soubesse como grafar determinada palavra em LP, solicitando a mim, então, a

datilologia da palavra desejada.

197

Assim, esses exemplos mostram como, progressivamente, o sujeito vai se apropriando

da LP e mostrando-se mais capaz de usá-la de forma contextualizada para expressar seu

pensamento. Nessas produções, não me interessa observar a qualidade ou a correção do uso

da LP, pois esse não foi meu objetivo. O que pretendi foi constatar como o sujeito surdo, a

partir da estimulação da metalinguagem, pode refletir melhor e de forma mais eficiente sobre

a LP e que conteúdo consegue acrescentar às suas produções. Além disso, tenho consciência

de que, nesse processo de construção da aprendizagem da língua-alvo, está presente de forma

significativa, como no caso de qualquer aprendiz de uma língua estrangeira, o que se chama

de “interlíngua”, ou seja, o que a princípio pode ser visto como “erro” na escrita da L2, na

verdade caracteriza-se como um processo intermediário entre a sua L1 e a língua-alvo.

Retomando anterior explicação, interlíngua é a criação de uma gramática própria,

intermediária, entre a L1 e a L2 de quem está aprendendo uma língua estrangeira, tomando os

conhecimentos que já domina da primeira para conseguir estruturar e aproximar-se da

segunda.

Julgo relevante comentar sobre esse aspecto aqui, pois grande parte dos professores

considera a escrita do surdo em LP errada. Entretanto, ele, na tentativa de aproximação da L2,

inicialmente usa os conhecimentos que já tem da sua primeira língua para sustentar a segunda,

que então apresentará as características daquela, para, progressivamente, ser apropriada com

sua gramática própria.

Morita (2002, p. 84) explica:

Aprender uma LE pode ainda significar estabelecer comparações. Essa comparação

inevitável com a Língua Materna (LM) pode ser positiva ou negativa. Ela pode ser

positiva porque o aprendiz vem à aula de LE com um conhecimento de mundo que

o ajuda/facilita a entender uma outra cultura. Dessa forma, a vivência histórico-

cultural do aprendiz pode ser o ponto de partida do processo de

ensino/aprendizagem da LE, ajudando-o na construção/aquisição da nova língua.

Entretanto, ela se torna negativa na medida em que o aprendiz não consegue

desvincular-se da sua LM, transferindo literalmente não só as formas lingüísticas

como também a cultura e o pensamento da LM para a LE

A autora supra citada chama a atenção para outro aspecto relevante na aprendizagem de

uma L2, que é a cultura subjacente à língua. Na medida em que a língua-alvo é aprendida,

também é desejável que o sujeito possa conhecer e compartilhar culturalmente com a

comunidade usuária da nova língua, usando-a dentro desse contexto, sem, contudo, deixar sua

cultura, a da comunidade de pertencimento. Porém, conhecendo as semelhanças e diferenças

entre elas, assim como os significados culturais pertinentes a cada uma, o que possibilita a

198

ampliação de suas possibilidades de inserção nos meios culturais e também, por que não

dizer, educacionais relativos à sua L1 e também à sua L2.

Dechandt (2006) também comenta que os erros cometidos pelos surdos não são como os

observados na escrita dos ouvintes, pois, para aqueles, as características de escrita são mais

baseadas em trocas com características visuais e influenciadas pela memória visual, diferente

do que ocorre com os ouvintes.

É preciso compreender que, na escrita dos surdos, a princípio, não se percebe a

colocação de artigos, as pessoas podem aparecer na forma de pronomes nem sempre

adequados ao contexto quando se toma a LP por base ou pela própria flexão verbal, de gênero

e de número, que também não são utilizados, além de que a organização sintática obedecerá à

organização da L1. (FERNANDES, 1999) Essa autora acrescenta que “nesse sentido,

defendemos a ideia de que a interlíngua produzida pelos surdos não seja ignorada em seu

processo de aprendizagem do português, mas, sim, considerada como parte de um percurso de

aquisição de uma segunda língua que tem no ponto de partida sua língua natural”.

(FERNANDES, 1999, p. 76) E isso é positivo.

Contudo, é importante ressaltar que se deve encorajar os surdos a escreverem primeiro

por fluência, depois por clareza da mensagem e, por fim, buscando a gramática correta, o que

então solicita a presença do outro fluente em LS e em LP como mediador do processo.

É certo que não consegui, no meu trabalho, a fluência na leitura de E., mas esse não era

um objetivo, o que significa apenas que o trabalho deve prosseguir. Porém, deve-se considerar

que o sujeito da pesquisa apresenta reflexos de muitos anos de escolarização sustentada no

uso exclusivo da LP nas atividades escolares, sem ter ninguém com quem compartilhar, no

ambiente educacional, sua L1, a LS, o que dificulta ainda mais o processo. Nessas condições,

foi ensinado que a LP deve ser lida em português, porém, como uma estratégia própria, o

aluno surdo (de forma geral) acaba fazendo uma “tradução” para a LS das palavras do texto

numa tentativa de construir sentido. Mesmo assim, isso nem sempre é obtido em virtude do

reduzido léxico em LP, das poucas experiências com a língua e do fato de que nem sempre se

pode traduzir “ao pé da letra” uma língua para a outra, pela estrutura gramatical das línguas

em contato. Especialmente se tratando de uma língua gestual e de outra grafada

alfabeticamente, o que pode resultar, muitas vezes, numa leitura ineficiente e que não oferece

ao leitor surdo qualquer sentido ou significado.

199

Apresento ainda outra evidência das produções do sujeito, em que traz características de

hipergeneralização no uso da LP.

Há marcas de instabilidade que refletem uma competência transicional e

demonstram que o aprendiz não aprende uma língua mecanicamente, mas que se

utiliza de estratégias da L1, de estratégias de simplificação, estratégias de

hipergeneralização e estratégias de transferência de instrução. (DECHANDT, 2006,

p. 292)

Figura 21 – Escrita de frases (09 de abril de 2008)

200

Observei, nessa escrita do sujeito, uma hipergeneralização das regras da LP, além das

outras características de escrita já mencionadas anteriormente, pois, a partir de um modelo,

todas as outras produções seguem a mesma estrutura dada. Percebo ainda, pelo resultado de

sua produção, que vê (pelo exposto no exemplo) a LP como “rígida”, como uma fôrma onde

se pudessem colocar todos os ingredientes e o resultado seria sempre o mesmo, o “bolo bonito

e gostoso” ou a escrita a partir do modelo, servindo igualmente a diferentes interesses,

situações e autores. Essa constatação também é apresentada por Fernandes (1999, p. 69)

quando afirma que “[...] há a predominância da primeira e terceira pessoas do singular, o que

remete à conhecida estratégia de reprodução do modelo escolar que prioriza tais construções,

ocorrendo, algumas vezes, uma espécie de hipercorreção [...]”. Contudo, acredita-se que

pode ser superado com a continuidade do processo, mas que, de certa forma, pode ser

percebido, mesmo que ainda sutil, na continuidade de suas produções.

E finalizando a análise dessa categoria, apresento as mensagens enviadas6 por E. através

de celular para mim, comunicando sua presença ou sua ausência aos atendimentos, o que já

aponta para uma maior familiarização com a LP e a compreensão de sua funcionalidade. É

importante lembrar que esse dado não fez parte diretamente da investigação, porém revelou-se

de extrema significância. Acrescentei-o, pois, em primeiro lugar, foi espontâneo do sujeito e

lhe conferiu possibilidades até então não utilizadas de refletir sobre as condições de uso real e

contextualizado da língua com a qual já se sente mais à vontade.

Por exemplo, mensagem enviada em 20 de fevereiro de 2008, às 19:16: “eu vou, mas

ufba?”. Esta foi uma mensagem em resposta a outra enviada por mim, em que o questionava

se iria à UFBA. Foi a primeira vez que viu a sigla UFBA e, por não conhecer o nome da

instituição onde nos encontrávamos semanalmente, no contato confirmado nessa mensagem

perguntou-me pessoalmente o que era e eu expliquei-lhe que referia-se ao nome da

universidade, lugar onde nos encontrávamos, oferecendo, inclusive, o sinal correspondente e

já conhecido entre a comunidade surda.

Outra mensagem enviada em 13 de março de 2008, às 15:29: “vou-hoje-vida-ok”.

Como não entendi a colocação da palavra vida neste contexto, evidentemente influenciada

pela gramática da L1 do sujeito, o questionei sobre o que quis dizer com isso no encontro

seguinte (a explicação e a devida análise serão apresentadas na CAT 3, MT tipo 2). Em LS, é

usado o sinal TER-VIDA para expressar a presença em determinado lugar, e seu uso nessa

situação demonstrou que estaria presente naquele dia. Nessa construção, usou o que conhecia 6 Todas as mensagens recebidas estão listadas no Anexo D.

201

como significante em LP, para um sinal que não tinha o léxico apropriado na língua que

queria escrever, conseguindo, assim, expressar o conceito apropriadamente e, como não podia

recorrer ao sinal, o apresentou dessa forma, sendo então por mim compreendido na medida

em que eu também fui desenvolvendo maior domínio de uso da LS como minha L2. Faço a

análise dessa mensagem na MT tipo 2, pois reflete de forma bastante relevante não apenas a

fluência e domínio progressivo da LS e da LP por E., como também evidencia a troca de

papéis que tal domínio permite pela possibilidade de explicar sua língua.

E, finalmente, neste próximo exemplo, em mensagem enviada em 16 de julho de 2008,

às 12:43: “desculpa-amanha-não-meu-namorado-rosana-ter-festa-vou-amanha-seu-

rosana-casa,vou-ufba-pode-hj-resp-”. Observo, nesta mensagem, a inclusão da necessidade

de resposta em virtude de que, em outro dia diferente do inicialmente combinado, ele não

poderia comparecer. Notei, assim, seu desejo em não interromper o atendimento faltando uma

semana, além de ter feito o uso de uma justificativa para sua ausência.

Tais exemplos demonstram o quanto E. consegue, progressivamente, utilizar a LP de

forma eficiente. Mesmo que ainda bastante influenciado pela gramática da LS, compõe

conteúdo significativo e funcional na língua-alvo de forma a ser possível compartilhar e

interagir adequadamente nessa língua, além de evidenciar maiores possibilidades de uso

funcional da LP.

Segue, agora, a análise das estratégias metalinguísticas apresentadas pelo sujeito

durante o processo de estimulação para a sua aproximação da LP como L2.

7.4.3 Estratégias metalinguísticas

Conforme já amplamente discutido no Capítulo 4, metalinguagem é a ação de refletir e

analisar a língua através da própria língua. Pois bem, chegar até aqui exigiu um trabalho de

construção progressiva sobre a aprendizagem da LP pelo surdo através do estímulo da

metalinguagem. Para tal, foi necessário não apenas identificar o uso dessas estratégias, mas

também compreender a efetividade das atividades oferecidas e o efeito produzido sobre o

sujeito. Isso significa que, apesar de a análise das estratégias metalinguísticas ser o cerne

202

dessa investigação, ela só pode ser compreendida a partir do processo como um todo. Penso

também que esse seja o ponto mais importante nesta análise, pois pretendo responder e

demonstrar as questões: “Os surdos realizam metalinguagem em LS?”, “Como acontece a

metalinguagem em LS?”, “Como a metalinguagem pode contribuir com a aprendizagem da

L2 para os surdos?”. Mesmo que na literatura já tenham sido apresentadas evidências de que

ocorra metalinguagem em LS, o que busco na análise que farei a partir daqui é: Como isso

acontece? Busco responder essa questão, pois questiono até que ponto os especialistas, ou

mesmo os professores, estão prontos para valorizar os acontecimentos de análise reflexiva do

surdo com a LS para a LP? Acredito que nas situações do dia a dia não paramos para valorizar

estes momentos que acontecem, algumas vezes, naturalmente, outras vezes eliciados por

estimulação do interlocutor ou das atividades, mas que podem se transformar em recursos

positivos para a aprendizagem do sujeito surdo como um todo. Podem também promover seu

próprio desenvolvimento como sujeito linguístico, especialmente no caso das crianças,

tornando-as competentes linguisticamente desde muito cedo. Preciso deixar bastante claro

aqui que, apesar de entender esse processo cognitivo, o vejo e o entendo apenas a partir da

interação com o outro, demonstrando que ambos, neste caso específico, sujeito e pesquisador,

compartilham e interagem, promovendo mutuamente reflexão metalinguística.

A partir desse entendimento, busquei organizar as situações encontradas de análise

metalinguística de E. em quatro tipos:

a) Metalinguagem tipo 1 (MT 1) – LS → LS

Este tipo de estratégia metalinguística – MT 1, diz respeito a ações que são realizadas com a

LS para compreensão da própria LS. Caracteriza-se como a base no processo evolutivo do

sujeito linguístico, promovendo momentos reflexivos que levam à conscientização sobre a LS,

conferindo-lhe lugar de língua importante, assim como as línguas orais. A partir disso,

promove situação de análise dessa língua, em que o sujeito, ampliando seus conhecimentos,

percebendo sua estrutura e contextos em que ocorre, pode dominá-la e desenvolver maior

consciência como sujeito linguístico, além da própria fluência.

b) Metalinguagem tipo 2 (MT 2) – LS → L1

A estratégia metalinguística de tipo 2 – MT 2 – apesar de fazer menção à LS como L1, o que

pode confundir com a MT 1 (LS → LS), já que nos dois casos a LS é a L1, essa segunda sub-

categoria relaciona-se ao desenvolvimento da proficiência na língua, ao desenvolvimento do

sujeito como usuário fluente da sua L1, adquirindo competências na própria L1, o que

203

também demonstra avanços importantes no aprendizado da mesma. A primeira, MT 1, por

outro lado, diz respeito ao processo do sujeito de apropriação da LS como língua. A MT 2

promove também maiores possibilidades de contato com a L2 – LP escrita, a língua-alvo

neste contexto. Assim sendo, será observado nesta subcategoria, como o domínio progressivo

do sujeito com a língua lhe confere maiores possibilidades de reflexão, ou seja, como evolui

nessa situação. Dessa forma, são os avanços com a própria língua que estão em foco, como

pensa, progressivamente e de forma mais complexa, sobre a sua língua, ampliando-a e

dominando-a em todos os seus níveis: lexical, sintático, semântico, pragmático.

c) Metalinguagem tipo 3 (MT 3) – LS → LP

Na estratégia metalinguística de tipo 3 – MT 3 – observei como o sujeito aproveita, ou

melhor, como usa a sua L1 para chegar à L2. Em outras palavras, é a análise das situações em

que a LS serviu para analisar a LP. Isso significa um importante progresso do sujeito com

relação à aprendizagem da modalidade escrita da LP. No caso desta investigação, não me

interessa a evolução do uso da escrita em LP propriamente dita, embora isso também

aparecerá, mas, mais que isso, como ele se aproxima da língua, como faz uso da sua L1 para

refletir sobre a L2, o que é de extrema relevância, uma vez que os estudos sobre

aprendizagem de uma L2 ou de uma LE demonstram a importância de que esse processo

ocorra com base na L1.

d) Metalinguagem tipo 4 (MT 4) – LP → L2

Esta subcategoria – MT 4 – mostra um passo adiante na evolução da aproximação e do uso da

LP, pois, a partir dela, busco compreender as análises feitas pelo sujeito em LS, mas acerca da

própria LP. Dessa forma mostro, a partir da descrição e análise de situações em que ocorreram

estratégias metalinguísticas de tipo 4, como, na relação dialógica, o sujeito conseguiu ver a LP

de um lugar mais familiar, tomando-a e tornando-a familiar também, de forma a conseguir vê-

la, analisá-la e até manipulá-la, mas, principalmente, conferindo sentidos às ocorrências. Essa

análise me proporcionou imensa satisfação ao identificá-la e, mais ainda, analisá-la e

descrevê-la, uma vez que mostra que, efetivamente, a metalinguagem em LS contribui para a

apropriação da LP escrita pelo surdo.

Dessa forma, creio que aqui cabe uma reflexão sobre o que estou tomando como

estratégia. De acordo com Brown (2000, p.113),

Estratégias são métodos específicos de chegar a um problema ou tarefa, modos de

operação para obter um fim particular, projetos planejados para controlar e

manipular certas informações. Elas são “planos de batalha” contextualizados que

204

podem variar de momento a outro, ou de dia a dia, ou de ano a ano. As estratégias

variam individualmente; cada um de nós tem um número de caminhos possíveis

para resolver um problema, e nós escolhemos um deles – ou vários em seqüência –

para um problema dado 7.(tradução nossa)

É considerado um bom aprendiz da linguagem, referindo-se a uma segunda língua, o

sujeito que encontra seus próprios caminhos para a aprendizagem, consegue organizar as

informações sobre a linguagem, demonstra ser criativo buscando situações para experimentar

as aprendizagens linguísticas dentro e fora de contextos educacionais, sabe conviver bem com

as dificuldades encontradas com a nova língua e consegue compreendê-la mesmo que não a

entenda completamente. Isso significa que o aprendiz da linguagem é capaz também de tomar

os contextos como base para análise e compreensão das situações, usando estratégias

mnemônicas e de reflexão para o aprendizado, podendo cometer erros, mas conseguindo

compreendê-los como parte do processo e, mais ainda, que fazem parte da sua evolução na

língua-alvo. Esse aprendiz mostra-se capaz de usar os conhecimentos linguísticos da sua L1

para o aprendizado da L2, conjecturando de forma cada vez mais complexa sobre a língua,

aprendendo-a em sua totalidade, desenvolvendo estratégias para ser eficiente na língua-alvo,

mesmo que não a domine, e conseguindo perceber as várias formas nela usadas, bem como

seus diferentes estilos. (BROWN, 2000)

Certo que o sujeito em questão apresenta algumas dessas características ou qualidades

como sujeito linguístico, porém, mais do que apresentá-las, considero importante a

disponibilidade para aprender e a motivação oriunda do desejo em superar as dificuldades

impostas por fatores negativos. Atraso na aquisição da L1 e as estratégias pedagógicas

inadequadas utilizadas até então são alguns desses fatores que deixaram marcas importantes

na sua forma de relacionar-se com a aprendizagem e com a língua.

Então, com base nessas explanações, é possível entender que cada sujeito tem sua forma

de encarar e resolver os problemas que se lhe apresentam, tem seus próprios caminhos para

chegar a esse objetivo, buscando a melhor forma de enfrentá-los e resolvê-los. Quando falo

em estratégias metalinguísticas, me refiro especificamente às formas de enfrentar as questões

linguísticas, numa tarefa de reflexão e manipulação da língua pela própria língua e para a

mesma e, ainda, para uma LE ou L2.

7 “Strategies are specific methods of approaching a problem or task, modes of operation for achieving a

particular end, planned designs for controlling and manipulating certain information. They are contextualized

‘battle plans’ that might vary from moment to moment, or day to day, or year to year. Strategies vary

intraindividually; each of us has a number of possible ways to solve a particular problem, and we choose one-or

several in sequence-for a given problem.” (BROWN, 2000, p.113)

205

Na tentativa de entender as formas de resolver os problemas linguísticos enfrentados

pelo sujeito quando confrontado com sua L1 ou com a língua-alvo é que esta categoria busca

esclarecer, pela interpretação dos momentos em que ocorreram as estratégias metalinguísticas,

como é possível classificá-las ou nomeá-las para entender melhor o processo de acordo com

os tipos citados anteriormente.

Essa classificação foi elaborada na construção desta investigação à medida que os

momentos de confronto apareceram, com o objetivo didático de facilitar a compreensão e a

explicação dos achados, bem como para visualizar as ocorrências e permitir descrevê-las e

interpretá-las mais adequadamente. Ou melhor, especificamente essa categoria foi criada para

conhecer como o sujeito investigado fez uso das estratégias metalinguísticas e, a partir de

então, compreender o processo de aprendizagem da L2.

Aqui considero importante um esclarecimento sobre por que classifiquei dessa forma as

estratégias metalinguísticas usadas e não pelos níveis de consciência fonológica, consciência

da palavra, consciência da forma ou morfológica e consciência pragmática, para explicar e

apresentar os achados nessa investigação. Usei esse tipo de classificação por entender que

dividir as estratégias metalinguísticas em 4 tipos (LS > LS; LS > L1; LS > LP e LP > L2)

facilitou compreender mais amplamente os acontecimentos ao invés de buscar consciências

isoladas como a fonológica. Ao mesmo tempo, penso que em cada um dos tipos de estratégia

metalinguística elencadas podem estar contemplados os níveis de consciência metalinguística

que menciono no início do parágrafo, pois posso encontrá-los ocorrendo na LS como forma

de ampliação do domínio dessa língua, por exemplo, ou da LP. Esclarecido isso, sigo nas

análises.

Creio que aqui também não será possível apresentar todas as situações em que ocorreu

metalinguagem na interação com o sujeito da pesquisa, em vista de que foram inúmeras as

situações e para minha surpresa, não ocorreram apenas com relação à LS, que era o esperado.

Foi possível ir além, ou melhor, o próprio sujeito foi além disso, na medida em que se tornou

mais competente na língua-alvo a ponto de sentir-se capaz para analisá-la. Tentarei,

progressivamente, apresentar sua evolução, partindo de situações em que aparecem

estratégias metalinguísticas de tipo 1, contextualizando dessa forma sua evolução.