74 - O homem invisível

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document.doc 1 / 36 74 O HOMEM INVISÍVEL G.K. CHESTERTON No lusco-fusco do crepúsculo nas duas ruas íngremes de Camden Town, a vitrine da confeitaria da esquina brilhava como a ponta acesa de um charuto, ou melhor dito, de fogos de artifício, porque a luz era de mil cores e tonalidades, refletida por um sem-número de pequenos espelhos cujos raios dançavam alegremente em meio aos bolos e doces coloridos. Contra estes ígneos vidros da vitrine grudavam-se os narizes de muitos moleques, que com os olhos devoravam aqueles saborosos chocolates embrulhados em papéis metálicos vermelhos, verdes e dourados, quase mais atraentes que o próprio chocolate; e o grande bolo branco de casamento no centro da vitrine era ao mesmo tempo inacessível e apetitoso, exatamente como se o Pólo Norte inteirinho fosse bom para comer. Esse verdadeiro arco-íris de cores e de açúcar era uma tentação para a criançada de dez a doze

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Um d'Os 100 Melhores Contos de Crime e Castigo da Literatura Universal.

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74O HOMEM INVISÍVEL

G.K. CHESTERTON

No lusco-fusco do crepúsculo nas duas ruas íngremes de Camden Town, a vitrine da confeitaria da esquina brilhava como a ponta acesa de um charuto, ou melhor dito, de fogos de artifício, porque a luz era de mil cores e tonalidades, refletida por um sem-número de pequenos espelhos cujos raios dançavam alegremente em meio aos bolos e doces coloridos. Contra estes ígneos vidros da vitrine grudavam-se os narizes de muitos moleques, que com os olhos devoravam aqueles saborosos chocolates embrulhados em papéis metálicos vermelhos, verdes e dourados, quase mais atraentes que o próprio chocolate; e o grande bolo branco de casamento no centro da vitrine era ao mesmo tempo inacessível e apetitoso, exatamente como se o Pólo Norte inteirinho fosse bom para comer. Esse verdadeiro arco-íris de cores e de açúcar era uma tentação para a criançada de dez a doze anos da redondeza. Mas a esquina tinha também atrações para jovens de mais idade; assim como para aquele jovem de não menos de vinte e quatro anos que estava parado diante da imantada vitrine. Também para ele a confeitaria era de um encanto ígneo, porém de caráter todo especial, pois ia além dos chocolates sem que, nem por isso, chegasse a desprezá-las.

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Era um rapaz alto, corpulento e ruivo, de fisionomia resoluta, porém de modos descuidados. Levava debaixo do braço uma pasta cinza com esboços de desenhos em preto e branco, que vendia com relativo sucesso a editores, desde que seu tio (que era um almirante) o deserdou por causa de um artigo que ele escrevera sobre a teoria econômica socialista. Seu nome era John Turnbull Angus.

Entrando finalmente, ele caminhou até a parte dos fundos da confeitaria, que era uma espécie de lanchonete, apenas levantando o chapéu para a jovem que ali servia. Ela era uma garota viva, morena, elegante, vestida de preto, corada e com olhos escuros, muito ágeis; e depois do costumeiro intervalo de tempo, ela se aproximou para anotar o seu pedido.

Ela sabia que o seu pedido era o de sempre.

- Quero, por favor - disse, preciso -, um pão doce de meio pennye uma xícara de café pequena.

Antes que a garota se afastasse, ele continuou: - Também quero que você se case comigo.

A jovem da loja retesou-se subitamente e disse: - Piadas deste tipo eu não admito.

O jovem ruivo levantou os olhos cinzentos, impregnados de uma inesperada seriedade, e disse:

- Nada mais verdadeiro. Estou falando sério, tão sério quanto o pedido que fiz de um pãozinho redondo de meio penny. É igualmente caro, como o pãozinho; paga-se por ele. É difícil de se digerir, como o pão em questão. E dói.

A moça não tirava os olhos escuros dele, mas

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parecia estudá-lo com uma precisão quase trágica. Ao final do acurado exame, ela estava quase que com a sombra de um sorriso a iluminar-lhe a expressão; e então ela sentou-se na cadeira em frente à dele.

- Mas não pense - observou Angus, distraidamente - que seja pior do que comer estes pães de meio penny. Eles podem inchar até virar pães de um penny inteiro. Mas prometo que vou abrir mão deste esporte violento quando nos casarmos.

A moça levantou-se e andou até a janela, claramente pensativa, mas sem parecer chateada. Quando finalmente se virou outra vez para o rapaz, seu rosto tinha um ar decidido, que, no entanto, se transformara em pura perplexidade, ao ver o que Angus estava fazendo: com todo o cuidado, ele retirava da vitrine vários pratos de doces coloridos, de sanduíches, as duas misteriosas garrafas de vinho do Porto e de xerez tão peculiares aos doceiros. No centro deste cuidadoso arranjo, ele havia cuidadosamente colocado o enorme bolo branco que constítuía o principal ornamento da vitrine.

- O que você pensa que está fazendo? - perguntou ela.

- O que se deve fazer numa ocasião como esta, minha querida Laura - começou ele.

- Oh, pelo amor de Deus, pare com isso! - gritou ela. - E não me fale desse jeito.

Quero saber, o que significa isso?

- Uma mesa segundo o cerimonial, Srta. Hope.

- E o que é aquilo? - perguntou ela impacien-

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temente, apontando para a montanha de doce.

- O bolo de casamento, Sra. Angus - disse ele, calmamente.

A moça dirigiu-se rápida até a mesa, apanhou os pratos e a travessa com certo alarde e recolocou-os de volta na vitrine; então veio sentar-se novamente em frente do rapaz, apoiou os cotovelos, bonitos, aliás, na mesa, e encarou Angus não com animosidade, mas com considerável exasperação.

- Você não me dá nenhum tempo para pensar - disse.

- Não sou tão louco assim - ele respondeu. - Tenho esta humildade cristã.

Ela ainda estava olhando para ele; porém, por detrás do sorriso, se tornara consideravelmente mais séria.

- Sr. Angus - disse firmemente -, antes que haja um minuto a mais desta tolice, tenho que lhe contar algo sobre mim o mais rápido que eu possa.

- Com prazer - respondeu Angus gravemente. - Pode também dizer alguma coisa a meu respeito, já que está com a palavra.

- Ah, veja se segura a sua língua e me escuta - disse ela. - Não é nada de que me envergonhe, e não é nem mesmo algo sobre o que me arrependa especialmente. Mas o que .você diria se houvesse algo que não é da minha conta e que contudo é o meu pesadelo? - Neste caso - disse o homem seriamente -, eu sugeriria que você trouxesse o bolo de volta.

- Bom, você vai ter que ouvir primeiro a história -

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disse Laura, persistente. - Para começar, devo lhe dizer que meu pai era dono da hospedaria Red Fish, em Ludbury, e eu costumava servir as pessoas no bar.

- Muitas vezes me perguntei - disse ele - por que haveria um certo ar cristão nesta confeitaria.

- Ludbury é um pequeno e verde recanto nos Condados do Leste, e o único tipo de gente que chegava até Red Fish eram eventuais caixeiros viajantes e, de resto, o pior tipo de gente que você pode ver, só que você nunca os vê. Quero dizer, gente ociosa, que tem apenas o suficiente para viver e mais nada que fazer além de se encostar em bares e apostar em cavalos, vestidos com roupas baratas, embora mais do que boas para eles. Até que esses pobres jovens imprestáveis não eram muito comuns na nossa casa; mas havia dois deles que eram comuns demais - comuns de todas as maneiras. Ambos viviam de dinheiro próprio e eram irritantemente desocupados e exagerados no vestir. Mesmo assim eu sentia um pouco de pena deles, porque meio que acreditava que eles davam a luz da sua graça no nosso barzinho vazio porque cada um deles tinha uma leve deformidade; o tipo de coisa que faz rir a alguns caipiras. Também não era exatamente uma deformidade; era mais uma esquisitice. Um deles era um homem pequeno demais, assim como um anão, ou pelo menos como um jóquei. Mas ele não era nada engraçado de se olhar; tinha uma cabeleira negra redonda e uma barba negra bem torneada, olhos brilhantes como os de um pássaro; fazia tinir moedas nos bolsos; balançava uma grande corrente de relógio de ouro; e se aparecia vestido como um cavalheiro, era por ser efetivamente um. Mas nada

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bobo, apesar de um fútil imprestável; curiosamente, era esperto para todo o tipo de coisas que não servem para nada; uma espécie de mágico improvisado; fazendo quinze fósforos se acenderem um ao outro como fogos de artifício; ou transformando uma banana ou coisa que o valha numa boneca dançarina. Seu nome era Isidore Smythe; e parece que eu ainda o estou vendo, com seu rostinho moreno, junto ao balcão, fazendo de cinco charutos um canguru saltitante.

"O outro sujeito era mais quieto e mais comum; mas de certa forma ele me assustava mais que o pobrezinho do Smythe. Era muito alto e frágil, e tinha cabelo claro; o nariz bastante aquilino, e poderia ser quase bonito, com ar de fantasma; mas ele tinha um dos mais terríveis estrabismos que já vi na vida. Quando ele nos olhava diretamente, a gente não conseguia saber nem onde mesmo estava, muito menos para o que ele estaria olhando. Eu imagino que esta espécie de desfiguração tornava o pobre tipo um pouco amargu-rado; pois enquanto Smythe estava pronto para exibir suas macaquices em qualquer lugar, James Welkin (era esse o nome do homem vesgo) nunca fez mais nada do que encher a cara na nossa sala de bar e sair para grandes caminhadas a sós por toda aquela área plana e cinzenta nas redondezas. Da mesma forma, acho que o Smythe também era meio sensível por ser tão pequeno, embora levasse a coisa com mais facilidade. E foi assim que fiquei realmente sem ação, um tanto quanto perplexa, e muito triste, quando na mesma semana ambos me pediram em casamento.

Bem, eu fiz o que desde então considero uma besteira. Mas, afinal de contas, aqueles caras esquisitos

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eram de certa forma meus amigos; e eu tinha horror que eles pensassem que eu os recusara pelo motivo real, que era por eles serem tão incrivelmente feios. Eu inventei então uma conversa fiada de outro tipo, que nunca iria me casar com alguém que não tivesse encontrado seu rumo no mundo. Disse que era um ponto de honra para mim não viver de dinheiro que tivesse sido apenas herdado, como o deles. Dois dias depois que eu falei desta maneira bem-intencionada, começou todo o problema. A primeira coisa que ouvi foi que os dois partiram em busca de suas fortunas, como se estivessem em algum tolo conto de fadas.

Bem, nunca mais vi qualquer um eles, até hoje. Mas recebi duas cartas do homenzinho chamado Smythe, e elas eram realmente bem interessantes.

- Teve alguma notícia do outro homem? - perguntou Angus.

- Não, ele nunca escreveu - disse a moça, depois de um instante de hesitação. - A primeira carta do Smythe era apenas para dizer que ele começara andando com o Welkin para Londres; mas Welkin era tão andarilho que o homenzinho desistiu e parou para um descanso ao lado da estrada. Acabou por ser levado por um show itinerante, e, em parte porque ele era quase um anão e em parte porque ele era realmente esperto, deu-se muito bem no negócio de espetáculos e logo ascendeu ao Aquarium, para fazer alguns truques que eu não me lembro. Esta foi a sua primeira carta. A segunda foi de um espanto ainda maior, e só a recebi na semana passada.

O homem chamado Angus esvaziou sua xícara de

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café e olhava-a com olhos ternos e pacientes. A boca da moça deu uma ligeira torcida de riso, enquanto ela prosseguia:

- Imagino que você já viu nos cartazes tudo sobre este "Serviço Silencioso do Smythe" ? Senão, você é a única pessoa que não viu. Ah, eu não sei muita coisa sobre o assunto, é uma invenção com uma espécie de mecanismo de corda para fazer todo o trabalho doméstico. Sabe essa espécie de coisa: "Aperte um Botão - Um Mordomo que Nunca Bebe." "Gire a Manivela - Dez Empregadas que Nunca Namoram." Você deve ter visto os anúncios. Bem, seja lá o que for, estas máquinas estão fazendo rios de dinheiro; e estão fazendo tudo isso para aquele duendezinho que conheci lá em Ludbury. Não posso deixar de me sentir contente com a sorte que o pobre sujeitinho teve; mas o caso em si é que estou apavorada que ele apareça a qualquer minuto, me dizendo que já conseguiu vencer na vida, como eu tinha exigido.

- E o outro homem?- repetiu Angus com uma espécie de calma obstinada. Laura Hope levantou-se de repente.

- Meu amigo - disse ela -, acho que você é meio adivinho. Sim, você está certo. Eu não vi uma única linha escrita de Welkin; e não sei se está vivo ou morto ou onde possa estar. Mas é dele que eu tenho medo. É ele que está sempre no meu caminho e me deixa meio louca. Na verdade, eu acho que ele está querendo me enlouquecer; porque eu sinto ele por perto embora não o possa ver, e ouço sua voz sem entender como.

- Bem, minha querida - disse o jovem carinhosa-

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mente -, se ele for o próprio Satanás em pessoa, agora que você já contou para alguém, ele está definitivamente perdido. A gente só fica louco quando está completamente sozinho, minha querida. Mas quando foi que você imaginou ter sentido ou ouvido a voz do seu amigo vesgo?

- Eu ouvi tão nitidamente James Welkin rindo quanto estou escutando você falar - disse a moça com firmeza. - Não havia ninguém por perto, pois eu estava lá fora, bem na esquina, e podia ver as duas ruas ao mesmo tempo. Eu tinha esquecido como ele ria, apesar de o riso dele ser tão esquisito quanto o seu estrabismo. Sequer tinha pensado nele durante quase um ano. Mas a verdade é que isso aconteceu segundos depois que terminei de ler a primeira carta de Smythe.

- Alguma coisa provocou o riso, a fala ou qualquer ruído do fantasma? - perguntou Angus com certo interesse.

Laura de repente estremeceu, e em seguida falou, com uma voz firme:

- Sim. Assim que acabei de ler a segunda carta de Isidore Smythe, anunciando o seu sucesso, exatamente nesse momento, escutei Welkin dizer: "Ainda assim, ele não a terá." Ouvi isso muito claro, como se ele estivesse na sala. Foi horrível, pensei que estivesse louca.

- Se você estivesse realmente louca - disse o jovem - você se acharia normal. Mas o que me parece é que há algo um pouco estranho em relação a este cavalheiro que não se vê. Duas cabeças são melhores que uma, e se você me permitir, como um homem resoluto e prático, vou tirar novamente o bolo de

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noivado da vitrine ...

Enquanto falava, houve uma espécie de um chiado de freios do lado de fora, e um pequeno veículo, que vinha em velocidade vertiginosa, parou na porta da confeitaria e ali ficou. No mesmo instante, um pequeno homem com uma cartola alta e brilhante apareceu na sala de entrada da confeitaria.

Angus, que até então mantivera um ar divertido, por questões de higiene mental, revelou a tensão que lhe ia na alma ao levantar-se bruscamente e se confrontar com o recém-chegado. Um rápido olhar foi o suficiente para confirmar as conjecturas de um homem apaixonado. Aquela figura ao mesmo tempo elegante e nanica, com a ponta da barba negra insolentemente empinada, e os vivos e inquietos olhos, os dedos limpos mas muito nervosos, não poderia ser nenhuma outra pessoa que o homem que acabara de lhe ser descrito: Isidore Smythe, que fazia bonecas de cascas de banana e fogos de caixas de fósforos; Isidore Smythe, que ganhava milhões com mordomos que não bebiam e empregadas que não perdiam tempo namorando. Por um momento, os dois homens, compreendendo instintivamente o ar superior de cada um, olharam-se com aquela curiosa e fria generosidade que é a alma de toda rivalidade.

Mas o Sr. Smythe não fez nenhuma alusão ao derradeiro motivo do antagonismo entre eles, mas disse apenas, enfático:

- Srta. Hope, viu aquilo lá na vitrine?

- Na vitrine? - repetiu o espantado Angus.

- Não há tempo para maiores explicações - disse o

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pequeno milionário, secamente. - É uma estupidez que precisa ser investigada.

Apontou a bengala reluzente para a vitrine, recentemente desarrumada pelos preparativos de noivado do próprio Sr. Angus; e este cavalheiro ficou espantado de ver por toda a frente da vitrine uma longa faixa de papel grudado, que com certeza não estava lá alguns segundos antes. Seguindo o enérgico Smythe até a rua, pôde ler numa faixa de papel colada no lado de fora do vidro, escrita numa caligrafia bastante inclinada: "Se você se casar com Smythe, ele morrerá."

- Laura - gritou Angus, pondo a cabeça grande e vermelha pela porta da loja -, você não está louca, não.

- É a letra daquele sujeito, Welkin - disse Smythe asperamente. - Eu não o vejo há um ano, mas ele está sempre me perturbando de alguma maneira. Por cinco vezes nesses últimos quinze dias ele tem me ameaçado com cartas que alguém põe debaixo da minha porta, sem que eu saiba quem, a não ser que seja o próprio Welkin ... O porteiro do prédio jura que nenhum tipo suspeito foi visto, e aqui na rua ele acaba de fazer uma decoração especial na vitrine, enquanto as pessoas dentro da loja tomavam chá ...

- É isso mesmo - disse Angus humildemente. - Enquanto as pessoas dentro da loja tomavam chá. Bem, senhor, posso assegurar-lhe que aprecio o seu bom senso em lidar com este assunto. Podemos falar sobre outras coisas mais tarde. O sujeito não pode estar ainda muito longe, pois eu juro que não havia nenhum papel ali quando me dirigi pela última vez à vitrine, cerca de dez ou quinze minutos atrás. Por outro lado, ele está

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muito distante para ser perseguido, uma vez que nem sabemos que direção tomou. Se quiser seguir o meu conselho, Sr. Smythe, o senhor deverá colocar imediatamente o caso nas mãos de um detetive eficiente, resoluto e particular, que é melhor do que um detetive oficial. Conheço um sujeito extremamente inteligente, que tem escritório a cinco minutos de carro daqui. O nome dele é Flambeau, e embora sua juventude tenha sido meio tempestuosa, ele agora é um homem rigorosamente honesto e seu cérebro vale ouro. Ele mora em Lucknow Mansions, Hampstead.

- Ótimo - disse o homenzinho, arqueando as sobrancelhas negras. - Eu mesmo moro em Himylaya Mansions, virando a esquina. Talvez o senhor queira me acompanhar; posso ir à minha casa e separar as cartas que este excêntrico tem me escrito, enquanto o senhor vai buscar o seu amigo detetive.

- Tem razão - disse Angus polidamente. - E o quanto antes agirmos, melhor.

Os dois homens, cordialmente, se despediram da dama, e ambos pularam dentro do rápido carro. Enquanto Smythe manobrava e viravam a esquina, Angus divertia-se ao ver o gigantesco cartaz do "Serviço Silencioso Smythe", com o retrato de uma enorme boneca de ferro sem cabeça, segurando uma panela, com a legenda "A Cozinheira que Nunca fica Ma l-Humorada".

- Eu mesmo uso estas invenções na minha casa - disse o barbudinho, rindo -, em parte pela propaganda e em parte por uma real conveniência. Honestamente, e acima de tudo, essas minhas grandes bonecas

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mecânicas fazem sua cama e mesa e seus horários com mais rapidez que quaisquer empregados vivos que eu conheça, se você souber apertar o botão certo. Porém, nunca vou negar, aqui entre nós, que tais empregados também têm as suas desvantagens.

- É mesmo? - disse Angus. - Existe alguma coisa que eles não saibam fazer?

- Sim - respondeu Smythe friamente; - eles não podem me dizer quem deixou aquelas cartas ameaça-doras no meu apartamento.

O veículo do homem era pequeno e rápido como ele mesmo; de fato, assim como o serviço doméstico, era uma invenção sua. Se ele era um charlatão da publicidade, pelo menos acreditava nos seus próprios produtos. A sensação de estar em algo pequeno e voador foi se acentuando enquanto eles deslizavam pelas longas curvas brancas da estrada, nas luzes acesas porém mortiças do entardecer. Logo as curvas brancas ficaram mais acentuadas e de causar mais tontura; pareciam ascender em espiral, como dizem nas religiões modernas. Porque, de fato, estavam alçando um canto de Londres que é quase tão escarpado quanto Edimburgo, e tão pitoresco quanto. Plataformas após plataformas de casas se sucediam, e a torre de apartamentos que procuravam se erguia acima de todos, quase como um monumento egípcio, dourada pelo pôr-do-sol. A mutação, quando viraram a esquina e entraram na curva perigosa de Himylaya Mansions, foi tão abrupta quanto a abertura repentina de uma janela; porque viram aqueles apartamentos empilhados, instalados sobre Londres como sobre um mar verde de ardósia. Do lado oposto, do outro lado da curva

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perigosa de cascalho, havia um amontoado de arbustos, mais parecendo uma íngreme cerca viva ou um dique do que um jardim, e em algum lugar abaixo corria uma linha de água artificial, uma espécie de canal como o fosso das fortalezas em arcos. Enquanto o carro corria pela curva, eles passaram pela solitária banca de um homem vendendo castanhas; e logo adiante, no outro final da curva, Angus podia ver um policial de azul-escuro andando vagarosamente. Eram as únicas formas humanas naquela solidão do alto subúrbio; mas ele teve um sentimento irracional de que eles expressavam a muda poesia de Londres. Sentia como se fossem personagens de um conto.

O carrinho freou como uma bala na casa certa, e despejou seu proprietário como uma bomba. Imediata-mente, ele começou a inquirir um funcionário alto uniformizado com galões brilhantes e um porteiro baixo em mangas de camisa se alguém ou alguma coisa havia procurado pelo seu apartamento. Foi-lhe assegurado que ninguém e nada havia passado por estes funcionários desde que ele perguntara pela última vez; donde ele e o ligeiramente desnorteado Angus foram despachados de elevador, como num foguete, até que chegaram ao último andar.

- Entre por um minuto - disse um Smythe sem-fôlego. - Quero lhe mostrar aquelas cartas do Welkin. Depois você poderá ir até a esquina e buscar o seu amigo. - Ele apertou um botão escondido na parede e a porta se abriu sozinha.

Abriu-se para uma longa e aconchegante ante-sala, cujo único aspecto que chamava a atenção, por assim dizer, eram as fileiras de altas figuras mecânicas meio

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humanas que estavam de pé de ambos os lados, como manequins de alfaiate. Como manequins, não tinham cabeça; e como manequins, tinham uma generosa e desnecessária corcova nos ombros e uma protuberância peito-de-pomba como peitoral; mas fora isso, não eram muito mais parecidas com a figura humana do que qualquer máquina automática de posto de estrada que tivesse a altura humana. Tinham como braços dois grandes ganchos, para carregar bandejas; e eram pintados de verde-ervilha, ou vermelho-alaranjado, ou preto, pela conveniência de diferenciá-Ios; de qualquer modo, eram apenas máquinas automáticas e ninguém lhes daria muita atenção. Naquela ocasião, pelo menos, ninguém o fez. Porque entre as duas fileiras desses manequins domésticos jazia algo mais interessante do que a maioria dos mecanismos do mundo. Era um pedaço de papel branco rasgado, rabiscado em tinta vermelha; e o ágil inventor o havia apanhado assim que a porta se abrira. Ele o entregou a Angus sem uma palavra. A tinta vermelha na verdade ainda não estava seca, e a mensagem dizia: "Se você foi vê-la hoje, eu o matarei."

Houve um breve silêncio e então Isidore Smythe falou mansamente: - Você gostaria de um uisquezinho? Eu realmente gostaria ...

- Obrigado; eu prefiro ir logo ver Flambeau - disse Angus, soturnamente. - Este negócio me parece estar se tornando bem grave. Vou sair logo para buscá-lo.

- Certo - disse o outro, com admirável animação. - Traga-o aqui o mais rápido que puder.

Enquanto Angus fechava a porta da frente, ele viu

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Smythe empurrar um botão, e uma das figuras de corda deslocou-se do lugar e deslizou sobre um trilho embutido no chão, carregando uma bandeja com sifão e a bebida. Parecia haver algo realmente meio fatídico em deixar o homenzinho a sós com os serviçais mortos que iam despertando para a vida enquanto a porta se fechava.

Seis degraus abaixo do andar de Smythe, o homem em mangas de camisa fazia alguma coisa com um balde. Angus parou para extrair uma promessa, reforçada por uma perspectiva de gorjeta, de que ele permaneceria naquele lugar até o seu retorno com o detetive e daria conta de qualquer tipo estranho que subisse aqueles degraus. Precipitando-se para a portaria principal, ele deu a mesma tarefa ao encarregado da portaria, de quem soube que a situação se simplificava, uma vez que não havia porta de fundos. Não satisfeito com isso, parou o policial de rua e convenceu-o a permanecer do outro lado da entrada, vigiando-a; e finalmente parou um instante para comprar uns trocados de castanha, e fez uma pergunta sobre quanto tempo o vendedor iria permanecer por ali.

O vendedor de castanha, subindo a gola do casaco, disse-lhe que provavelmente sairia dali em breve, já que achava que ia nevar. De fato, a noite estava se tornando cinza e amarga, porém Angus, com toda a sua eloqüência, empenhou-se em segurar o homem da castanha no seu posto.

- Mantenha-se aquecido com as suas castanhas - disse com determinação. Coma todo o seu estoque; eu compensarei sua permanência. Vou lhe dar um bom trocado se esperar aqui até eu voltar, e então me contar

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se qualquer homem, mulher ou criança entrou naquele prédio onde se encontra o porteiro.

Ele então se afastou rápido, dando um último olhar para a torre sitiada.

- De qualquer forma, fiz um anel de proteção no local - disse. - Não é possível que todos os quatro sejam cúmplices do Sr. Welkin.

Lucknow Mansions estava, por assim dizer, num patamar mais baixo daquela colina de casas, das quais a Himylaya Mansions poderia ser chamada de o topo. O apartamento meio escritório do Sr. Flambeau ficava no térreo e apresentava sob todos os aspectos um marcante contraste com a maquinaria americana e fria do apartamento tipo hotel de luxo do Serviço Silencioso. Flambeau, que era amigo de Angus, recebeu-o num recanto rococó atrás de seu escritório, onde os ornamentos eram sabres, arcabuzes, curiosidades orientais, garrafas de vinho italiano, panelas de cozinha primitivas, um gato persa cor de ameixa, e um pequeno padre católico-romano de aparência empoeirada, que parecia ali especialmente deslocado.

- Este é o meu amigo padre Brown - disse Flambeau. - Muitas vezes quis que você o conhecesse. Ótimo este tempo meio gelado para um pobre sulista como eu, não é mesmo? - É, acho que vai se manter limpo - disse Angus, sentando-se num sofá oriental de listas violetas.

- Não - disse o padre mansamente -, já começou a nevar.

E, realmente, os primeiros flocos de neve batiam na vidraça, como previra o vendedor de castanhas.

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- Bem - disse Angus pesadamente. - Lamento, mas vim aqui a negócio, e um negócio um tanto preocupante. O fato, Flambeau, é que a um passo da sua casa há um sujeito que precisa urgentemente da sua ajuda; ele está sendo continuamente perseguido e ameaçado por um inimigo invisível - um patife que ninguém nunca viu.

Enquanto Angus prosseguia contando a trajetória de Smythe e Welkin, começando com a história de Laura e passando pela sua própria, pelo riso sobrenatural na esquina de duas ruas vazias, as palavras estranhas claramente ditas numa sala vazia, Flambeau ficava cada vez mais preocupado, e o pequeno padre parecia deixado de lado, como uma peça de mobília. Quando chegou na parte do papel timbrado colado na vitrine, Flambeau levantou-se, parecendo encher a sala com seus amplos ombros.

- Se você não se incomodar - disse -, acho melhor você me contar o resto no caminho para a casa desse homem. Estou sentindo que não há tempo a perder.

- Com prazer - disse Angus, também se levantando -, embora ele esteja bem a salvo no momento, já que deixei quatro homens vigiando a única entrada da sua toca.

Foram para a rua, o pequeno padre andando atrás deles com a docilidade de um cachorrinho. Apenas disse, de maneira animadora, como alguém tentando entabular uma conversa:

- Com que rapidez a neve se adensa no chão.

Enquanto passavam com dificuldade pelas calçadas íngremes já empoadas de neve, Angus terminou a

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história; e quando chegaram à curva com as torres de apartamentos, teve tempo de voltar a atenção aos quatro sentinelas. O vendedor de castanha, tanto antes como depois de receber os trocados, jurou de pé junto que ele havia vigiado a portaria e não tinha visto nenhum visitante entrar. O policial foi ainda mais enfático. Disse que tinha experiência com "meliantes" de todo o tipo, cartolas ou "pés-de-chinelo"; não era tão inexperiente para achar que os tipos suspeitos se mostrassem suspeitos; ele estava alerta para qualquer um e, verdade seja dita, não havia passado ninguém. E quando os três homens rodearam o vistoso encarre-gado, que ainda permanecia sorrindo atravessado à entrada, o veredicto foi ainda mais conclusivo.

- Tenho o direito de perguntar a qualquer um, lorde ou lixeiro, o que ele quer aqui - disse o cordial e engalanado gigante -, e juro que não houve ninguém a quem perguntar desde que este cavalheiro saiu.

O insignificante padre Brown, que permanecia atrás, olhando timidamente a calçada, neste momento aventurou-se humildemente a dizer:

- Ninguém então subiu e desceu os degraus, desde que a neve começou a cair? Começou a nevar quando estávamos na casa de Flambeau.

- Ninguém esteve aqui, senhor, pode me acreditar - disse o encarregado com sorridente autoridade.

- Então me pergunto o que é isso? - disse o padre olhando para o chão já completamente coberto de neve.

Os outros todos olharam também para o chão; e Flambeau soltou uma furiosa exclamação inglesa e um

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gesto francês. Pois era verdade inquestionável que pelo meio da entrada vigiada pelo homem de galões dourados, na verdade entre as arrogantes, extensas pernas daquele colosso, estendia-se uma viscosa série de pegadas cinzas sobre a neve branca.

- Meu Deus! - gritou Angus involuntariamente. - O Homem Invisivel!

Sem qualquer outra palavra ele se voltou e precipitou-se escadas acima, com Flambeau atrás; mas o padre Brown ficou ainda olhando a rua vestida de neve a sua volta, como se tivesse perdido o interesse na investigação.

Flambeau estava claramente disposto a arrombar a porta com os seus grandes ombros; mas o escocês, mais pela razão do que pela intuição, apalpou desajeitadamente a moldura da porta até encontrar o botão invisível; e a porta girou, abrindo-se lentamente.

Apareceu, em essência, o mesmo interior carregado; a entrada estava mais escura, embora ainda fosse tocada aqui e ali pelos últimos feixes de luz avermelhada do pôr-do-sol, e uma ou duas das máquinas sem cabeça haviam, por um motivo ou outro, mudado de lugar, e permaneciam aqui e ali pelo sombrio local. O verde e o vermelho das suas roupas escureceram-se com o crepúsculo; e sua semelhança a formas humanas aumentara pela própria falta de forma. Porém, no meio delas todas, exatamente onde o papel com tinta vermelha estivera, jazia alguma coisa que parecia tinta vermelha espirrada do tinteiro. Mas não era tinta vermelha.

Com uma combinação francesa de raciocinio e

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violência, Flambeau simplesmente disse "Assassinato!", e, irrompendo apartamento adentro, em cinco minutos explorou cada canto e armário. Mas se esperava encontrar algum cadáver, não encontrou nenhum. Isidore Smythe não estava lá, nem morto nem vivo. Após busca mais minuciosa, os dois homens se encontraram no corredor externo, com gotas de suor deslizando nos rostos e os olhos de espanto.

- Meu amigo - disse Flambeau, falando em francês na sua excitação -, não apenas o seu assassino é invisível, como ele também torna invisível o homem assassinado.

Angus olhou em torno do cômodo escurecido cheio de manequins e em algum canto celta da sua alma escocesa sentiu temor. Um dos bonecos de tamanho real estava imediatamente sombreando a mancha de sangue, chamado, talvez, pelo homem assassinado um instante após ele ter caído. Um dos ganchos do ombro alto do boneco, utilizado como braço, estava ligeiramente levantado, e Angus, de repente, criou a terrível fantasia de que o próprio filho de ferro do pobre Smythe o teria abatido. A matéria teria se rebelado e essas máquinas teriam assassinado o seu criador. Porém, mesmo assim, o que teriam feito dele?

- Devorado? - disse o pesadelo no seu ouvido; e ele enojou-se por um instante com a idéia de dilacerados restos humanos, esmagados e absorvidos por todos aqueles mecanismos acéfalos.

Recuperou sua saúde mental com um significativo esforço e disse a Flambeau:

- Bem, a história é esta: o pobre sujeito evaporou-se

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como uma nuvem e deixou um rastro vermelho no chão. Esta história não pertence a este mundo.

- Só há uma coisa a fazer - disse Flambeau -, pertença a este mundo ou ao outro. Tenho que descer e falar com meu amigo.

Desceram, passando pelo homem com um balde, que novamente confirmou que não havia deixado passar nenhum intruso, chegando até o encarregado e o homem das castanhas estacionado, que firmemente reafirmaram ter estado vigilantes. Mas quando Angus procurou pela quarta confirmação, não a pôde ver, e gritou com certo nervosismo:

- Onde está o policial?

- Peço-lhe perdão - disse o padre Brown -; é minha culpa. Acabo de mandá-lo rua abaixo para investigar algo que apenas pensei que valeria a pena investigar.

- Bem, ele precisa voltar logo - disse Angus rispidamente -, pois o desgraçado lá de cima não apenas foi assassinado, como deram sumiço com ele.

- Como? - perguntou o religioso.

- Padre - disse Flambeau depois de uma pausa -, do fundo da minha alma acredito que o assunto seja mais do seu departamento do que do meu. Nenhum amigo nem inimigo entrou no prédio, porém Smythe foi-se, como que raptado por duendes. Se isto não é sobrenatural, eu ...

Enquanto ele falava, foram todos surpreendidos por uma visão incomum; o grande policial azul virou a esquina da rua em curva abrupta, correndo. Veio direto para Brown. - O senhor tinha razão - ele ofegou -;

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acabaram de encontrar o corpo do pobre Sr. Smythe no canal lá de baixo.

Angus pôs a mão na cabeça, em desespero.

- Será que ele correu para lá e se afogou? - perguntou.

- Ele não desceu, posso jurar - disse o policial -, e também não se afogou, pois morreu de uma grande facada no coração.

- E ainda diz que não viu ninguém entrar? - disse Flambeau com uma voz tumular.

- Vamos andar um pouco pela rua - disse o padre.

Quando alcançaram o outro lado da curva, ele observou subitamente:

- Como sou estúpido! Esqueci de perguntar ao policial uma coisa. Queria saber se encontraram um saco marrom-claro.

- Por que um saco marrom-claro? - perguntou Angus, espantado.

- Porque se for qualquer outra cor, devo começar tudo novamente - disse o padre Brown -; porém se for um saco marrom-claro, bem, o caso está encerrado.

- Fico satisfeito em saber disso - disse Angus, com fina ironia. - No que me tange, ainda não começou.

- Você tem que nos contar tudo - disse Flambeau com uma estranha porém sincera simplicidade na voz.

Inconscientemente estavam andando com passos que se aceleravam rua abaixo na longa inclinação do outro lado da curva abrupta, sob a liderança animada,

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embora silenciosa, do padre Brown. Finalmente ele falou com uma delicadeza quase tocante:

- Bem, temo que vocês achem tudo isto muito prosaico. Sempre começamos no lado abstrato das coisas, e não se pode começar esta história por nenhum outro.

"Vocês já repararam que as pessoas nunca respondem ao que se lhes pergunta? Respondem ao que se quer dizer com a pergunta que se faz - ou pelo menos aquilo que acham que você pretende saber. Suponhamos uma dama perguntando à outra, numa casa de campo, "Alguém está aqui com você?", a dama não responderia "Sim; o mordomo, os três serviçais de libré, a copeira", e assim por diante, embora a copeira pudesse estar presente na sala, ou o mordomo atrás de uma cadeira. Ela diria "Não, não há ninguém aqui conosco", querendo dizer ninguém daqueles que você pretende saber. Mas suponha um médico querendo saber sobre uma epidemia, perguntando: "Quem está na casa?", então a senhora se lembraria do mordomo, da empregada, e de todo o resto. Qualquer língua é usada assim; você nunca conseguirá ter uma questão literalmente respondida, mesmo quando obtiver a resposta honesta. Quando aqueles quatro homens bastante honestos disseram que nenhum homem havia entrado no prédio, não significava realmente que nenhum homem passara por eles. Queriam dizer nenhum homem de quem eles poderiam suspeitar que fosse o nosso homem. Um homem realmente entrou no prédio, e saiu dele, porém eles nem o notaram."

- Um homem invisível? - questionou Angus, levantando suas sobrancelhas ruivas.

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- Um homem mentalmente invisível - disse o padre Brown.

Um ou dois minutos depois ele voltou a falar no mesmo tom de voz despretensioso, como alguém pensando em voz alta.

- Claro que você não pode pensar numa tal pessoa, até que você pense nela. É daí que vem sua esperteza. Mas eu vim a pensar nele através de duas ou três coisas na história que o Sr. Angus nos contou. Primeiro, foi o fato de que o Sr. Welkin era dado a longas caminhadas. E então havia a vasta quantidade de papel timbrado na vidraça. E então, acima de tudo, havia duas coisas que a jovem dissera - coisas que não poderiam ser verdadeiras. Não fique aborrecido - ele ajuntou rapidamente, notando um súbito movimento de cabeça do escocês -; ela pensava que era verdade. Uma pessoa não pode estar absolutamente sozinha na rua um segundo antes de receber uma carta. Não pode estar absolutamente sozinha numa rua quando começa a ler a carta que acaba de receber. Deve haver alguém bem próximo a ela; ele deve ser mentalmente invisível.

- Por que deveria haver alguém perto dela? - perguntou Angus.

- Porque - disse o padre Brown -, tirando os pombos-correio, alguém teria que lhe ter trazido a carta.

- Você quer realmente dizer - perguntou Flambeau, com firmeza - que Welkin levou as cartas do rival para sua amada?

- Sim - disse o padre. - Welkin levou as cartas do rival para a amada. Veja, só ele poderia fazê-lo.

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- Ah, não agüento mais isso - explodiu Flambeau. - Quem é este sujeito? Qual é a sua aparência? Qual é o traje habitual de um homem mentalmente invisível?

- Ele se veste bem vistosamente de vermelho, azul e ouro - respondeu o padre prontamente e com precisão -, e neste traje de chamar atenção, até espalhafatoso, ele adentrou em Himylaya Mansions debaixo de oito olhos humanos; ele matou Smythe a sangue-frio, e saiu para a rua outra vez carregando o corpo morto em seus braços ...

- Reverendo - exclamou Angus, exaltado -, o senhor está totalmente louco ou o louco serei eu?

- O senhor não está louco - disse Brown -, apenas desatento. Não notou um tipo como este, por exemplo.

Deu três rápidos passos largos adiante e colocou a mão no ombro de um carteiro comum, que havia passado apressado por eles sem ser notado, sob a sombra das árvores. - De alguma forma, ninguém nota os carteiros - disse pensativamente -; contudo, eles têm paixões como os outros homens, e até carregam sacolas grandes onde um pequeno cadáver pode ser escondido bem facilmente.

O carteiro, em vez de se virar naturalmente, abaixou a cabeça e se atirou de encontro a cerca do jardim. Era um homem magro, bem-barbeado, com uma aparência bastante comum, porém quando ele virou o rosto alarmado sobre o ombro, todos os três homens foram cravados por um olhar estrábico quase diabólico. Welkin, todos souberam então, tinha dotes natos de grande ator, e provavelmente desenvolvera também à maestria a arte do ventriloquismo. Mas agora,

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apavorado pela surpresa, não podia ser nada mais além dele mesmo.

* * *

Flambeau retornou aos seus sabres, tapetes púrpuros e a seu gato persa, e mil e outras coisas que tinha para fazer. John Turnbull Angus retornou à dama da confeitaria, com quem aquele imprudente jovem conseguia sentir-se extremamente à vontade.

Enquanto o padre Brown continuou andando a esmo por aquelas colinas cobertas de neve, sob as estrelas, ao lado de um criminoso, por muitas horas, e o que disseram um ao outro ninguém saberá jamais.

Tradução de Fani Baratz