78575-107848-1-SM

10
CRÍTICA 93 Comunicação, educação, práticas de consumo e cidadania: em perspectiva o rap da periferia paulistana Fernanda Elouise Budag Doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, membro dos Grupos de Pesquisa Midiato − Grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas (ECA-USP) e Comunicação- -Consumo: Educação e Cidadania (ESPM-SP). Docente da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM). E-mail: [email protected] Rosilene Moraes Alves Marcelino Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM-SP, membro do Grupo de Pesquisa Comunicação-Consumo: Educação e Cidadania (ESPM-SP). Docente da ESPM-SP. E-mail: [email protected] Antonio Helio Junqueira Doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, docente da Pós-Graduação da ESPM-SP, Coordenador Acadêmico de Projetos da Escola do Futuro (USP) e membro dos Grupos de Pesquisa Comunicação-Consumo: Educação e Cidadania (ESPM-SP) e Observatório da Cultura Digital (USP). E-mail: [email protected] Resumo: O presente artigo consiste em uma apresentação de resultados parciais de uma pesquisa mais ampla que propõe investigar o universo simbólico do hip hop, atendo-se à vertente do rap. Mais especificamente, analisar, a partir de revisão de literatura e da perspectiva da análise de discurso de linha francesa, as produções de um grupo de rap que nasceu na periferia de São Paulo, os Racionais MC’s, na intenção de compreender como a cultura midiática e a de consumo figuram em suas narrativas (letras das mú- sicas) e, nisso, procurar entender também como se constrói o sentido de cidadania. Palavras-chave: comunicação e práticas de consumo; cidadania; culturas urbanas; mú- sica, rap. Abstract: This paper presents the partial re- sults from a wider research, which proposes to investigate the symbolical universe of hip hop music, particularly the rap music. More specifically, we aim to analyze, from the literature review and from the perspective of French Discourse Analysis, the produc- tions of a rap group from the outskirts of São Paulo, Racionais MC’s. We intend to comprehend how media and consumption cultures appear in their narratives (lyrics) and to understand how the conception of citizenship is constructed. Keywords: communication and consump- tion practices; citizenship; urban cultures; music; rap. Recebido: 27/12/2013 Aprovado: 06/01/2014

description

Comunicação

Transcript of 78575-107848-1-SM

CRTICA93Comunicao, educao, prticas de consumoe cidadania: em perspectiva o rapda periferia paulistanaFernandaElouiseBudag DoutorandaemCinciasdaComunicaopelaECA-USP,membrodosGruposdePesquisa MidiatoGrupodeEstudosdeLinguagem:PrticasMiditicas(ECA-USP)eComunicao- -Consumo:EducaoeCidadania(ESPM-SP).DocentedaFaculdadePaulusdeTecnologia eComunicao(FAPCOM). E-mail:fernanda.budag@gmail.comRosileneMoraesAlvesMarcelinoMestreemComunicaoePrticasdeConsumopelaESPM-SP,membrodoGrupodePesquisa Comunicao-Consumo:EducaoeCidadania(ESPM-SP).DocentedaESPM-SP.E-mail:[email protected] AntonioHelioJunqueiraDoutorandoemCinciasdaComunicaopelaECA-USP,docentedaPs-GraduaodaESPM-SP, CoordenadorAcadmicodeProjetosdaEscoladoFuturo(USP)emembrodosGruposdePesquisa Comunicao-Consumo:EducaoeCidadania(ESPM-SP)eObservatriodaCulturaDigital(USP).E-mail:[email protected]: O presente artigo consiste em uma apresentao de resultados parciais de uma pesquisa mais ampla que prope investigar o universo simblico do hip hop, atendo-se vertentedorap.Maisespecifcamente, analisar, a partir de reviso de literatura e da perspectivadaanlisedediscursodelinha francesa, as produes de um grupo de rap quenasceunaperiferiadeSoPaulo,os Racionais MCs, na inteno de compreender comoaculturamiditicaeadeconsumo fguramemsuasnarrativas(letrasdasm-sicas)e,nisso,procurarentendertambm comoseconstriosentidodecidadania.Palavras-chave:comunicaoeprticasde consumo;cidadania;culturasurbanas;m-sica,rap.Abstract: This paper presents the partial re-sults from a wider research, which proposes to investigate the symbolical universe of hip hop music, particularly the rap music. More specifcally,weaimtoanalyze,fromthe literaturereviewandfromtheperspective ofFrenchDiscourseAnalysis,theproduc-tionsofarapgroupfromtheoutskirtsof SoPaulo,RacionaisMCs.Weintendto comprehend how media and consumption culturesappearintheirnarratives(lyrics) andtounderstandhowtheconceptionof citizenshipisconstructed.Keywords:communicationandconsump-tionpractices;citizenship;urbancultures; music;rap.Recebido:27/12/2013Aprovado:06/01/201494comunicao&educaoAnoXIXnmero1jan/jun20141.INTRODUONossosescritosresultamdeumprojetomaior,aindaemandamento, queprocededenossaparticipaojuntoaogrupodepesquisaComunicao, Educao,PrticasdeConsumoeCidadania,iniciativadaESPMformalizada juntoaoCNPqecoordenadapelasprofessorasMariaAparecidaBaccegae MarciaPerencinTondato.Asdiscussesamobilizadasgestaramnossodesejo delanarmo-nosnacidadedeSoPaulo,compreendendo-a,naacepode Martn-Barbero1,comoespaocomunicacional,constitudodediversosterrit-rioscapazesdenosdesvelarintercmbioseexcluses.Pordentrodaproduo cultural dos bairros, intencionamos nos aproximar da chamada reciclagem cultural apontadaporMartn-Barbero,naqualseentretecemvcioseresistnciasque, apesardeeventuaisesquematismos,trazem-nosrelatosquefalamdemestia-gensentreaviolnciaquesesofreeaquelaoutracomaqualseresiste,edas transformaesmoraissemasquaisresultaimpossvelsobrevivernacidade2.Dentreasdiversaspossibilidadesdeimersonacenapaulistana,optamos pelamsica,atrelando-nosaumgnerocapilarizadonasperiferias:orap(do ingls,rhythmandpoetry,"ritmoepoesia").Alis,aoutilizarmosaquiaexpres-soperiferia,reconhecemososeutrasladardeoposioaocentro,ondese concentramosrecursosmateriaisesimblicosparaconstituir-senoapenas comoafirmaodepertencimentoterritorial,mastambmdeumanova vertentedeproduoartsticaecultural3.Estavertentemusical,orap,nasce naJamaicanadcadade1960echegaaosbairrospobresdeNovaYork,nos EstadosUnidos.NoBrasil,oritmoincorporadoemSoPauloem1986,de acordocomaCufa(CentralnicadasFavelas)4.Comumabatidarpidaeacelerada,aletratomaformadeumdiscursoe preocupa-seemtrazermaisinformaoemenosmelodia.Emgeral,emmeio aefeitossonorosemixagens,asletrasrelatamasdificuldadesdavidados habitantesdebairrospobresdasgrandescidades5. Assim,aquipretendemoscolocarlentesnessegneromusicale,attulo dedelimitao,elegemosumgrupobrasileirosurgidoem1988,osRacionais MCs.Nossosolharesvoltam-sediscografiaoficialdabanda,e,operandoum recorte,nossocorpuscompreendeletrasdetrslbunsdeestdio,queseriam osmaisrepresentativosnapercepodeestudantesapreciadoresdogneroe quecolaboraramcomassugestesdasmsicas,cobrindopraticamentetodaa trajetriadabanda:Holocaustourbano(1990),Sobrevivendonoinferno(1997)e Nadacomoumdiaapsooutro(2002)6.Entreasmsicasanalisadas,temos:Ra-cistasotrios,Captulo4versculo3,Frmulamgicadapaz,Mgicode Oz, Periferia periferia, T ouvindo algum me chamar, A vida desafio, Ocrimevaiocrimevem,Vidaloka,partes1e2.Nesteconjunto,pudemos identificarumpercursodelutasquerearticulamsocialmenteaordemdodis-cursosobreaperiferia,tensionandoealterandooseuequilbriohegemnico contraditrioeinstvel,apontando,qui,paraatransformaopossvel dasrelaessociaisexistentes.1.MART N- BARBERO, Jess.Of ci odecar-t gr af o: t r aves s i a s l ati no- ameri canasda comunicaonacultura. SoPaulo:Loyola,2004.2.Idem,pp.285-286.3. REYES, Celia R. Quatro jovens, quatro trajetrias. In:CadernoGloboUni-versidade.Subrbiose identidades:umolhar multidisciplinarsobre ahistriaeacultura dosubrbioesuare-presentaonacons-truodoi magi nrio socialbrasileiro.Uma reflexocombasena minissrieSuburbia,p. 11.Disponvelem:espe-cial.globouniversidade.redegl obo.gl obo.com/CadernoGUSuburbia.pdf. Acessoem:out.2013..4. MI CHELLI , C nt i a. Oquerap?(2009). Disponvelem:.Acessoem:set. 2013.5.Idem,ibidem.6.VAGALUME.Raci o-nais MCs. Disponvel em: . Acessoem:set.2013.95Assim,aoabrangeradennciacomocrticaaopensamentohegemnico sobreavidaeoindivduoperifricosapartirdeduasdesuasprincipaisdi-mensesaviolnciaeapobreza,odiscursomusicalpassaaincorporar, tambm,apotnciaeapossibilidadedesuperao.E,assim,oconsumoea cidadaniacomopotencialidades.2.ORAP:PROBLEMATIZANDONOSSO OBJETODEESTUDOConforme j situado, o presente objeto de estudo a ser problematizado o hiphopmaisespecificamenteorap,umdeseuspilaresenquantoexpresso daculturapopularurbana,sobretudojuvenil,eseusdiscursos.Essegneromusicalganhaumsentidomaissociopoltico,constituindo-seem umaespciedetrilhasonoradetemposmaisconflituosos,nosquaisaideiade conciliao social substituda pelo discurso do confronto, afastando-se de certa vertentecordialdosambaeMPB7.Nessecontexto,questesquenosinteressammaisdepertoso:comose manifestamnasletrasdasmsicasdohiphopmaisespecificamentedorap elementosdacenamiditicaedaculturadoconsumo?E,nessadireo,como seconstriosentidodecidadaniaapartirdesseuniversomusical?Propomoscomoobjetivodenossapesquisa,atravsdorap,colocarem perspectivaasproduesculturaisemergidasnacenaperifricapaulistanaa fim de entender as produes de sentido constitudas na dialogia do cotidiano.Afimdedarmoscontadoproblemadeinvestigaoeobjetivopropostos, optamos por uma pesquisa de abordagem qualitativa que acaba assumindo um carterexploratrio,umavezquevisaampliarreflexessobreofenmenoem questo. Nas palavras de Severino8, uma pesquisa exploratria busca [...] levan-tarinformaessobreumdeterminadoobjeto,delimitandoassimumcampo detrabalho,mapeandoascondiesdemanifestaodesseobjeto. A partir desse desenho, estruturamos o estudo em trs etapas metodolgicas: (1)pesquisabibliogrfica,(2)pesquisadocumentale(3)anlisedocorpus.A pesquisa bibliogrfica foi caracterizada por uma reviso de literatura em torno de conceitos e autores que discutem as temticas afins ao nosso objeto de estu-do, agregando-lhe sustentao. Na segunda etapa, pesquisa documental, fizemos umlevantamentodemsicasderapdaperiferiapaulistanacentrando-nos naproduodogrupoRacionaisMCs,queforam,porfim(terceiraetapa), analisadassegundooaportetericodaanlisedediscursodelinhafrancesa (ADF).AoelegermosaADF,reconhecemosalinguagemcomoaspecto-chave paraacompreensodenossarealidade,vistoconstituir-secomoespaode articulaotantodeprocessosideolgicoscomodefenmenoslingusticos9. EndossamosaperspectivadeOrlandi,paraquemaspalavrassimplesdoco-tidianojchegamatnscarregadasdesentidosquenosabemoscomose constituramequenoentantosignificamemnseparans10.Comunicao, educao, prticas de consumo e cidadania F. Budag, R. Marcelino e A. Junqueira7.HERSCHMAN,Micael; GALVO,Tatiana.Algu-masconsideraessobre a cultura hip hop no Brasil hoje. In: BORELLI, Silvia H. S.;FREIREFILHO,Joo. Culturas juvenis no scu-loXXI.SoPaulo:Educ, 2008,pp.196-197.8.SEVERINO,Antnio Joa quim.Metodologia dotrabalhocientfico. 23.ed.rev.eatual.So Paulo:Cortez,2007,p. 123.9.BRANDO,HelenaH. N.Introduoanlise dodiscurso.Campinas: Ed.daUnicamp,2004.10. ORLANDI, Eni P. An-lisedediscurso:princ-pioseprocedimentos. 8.ed.SoPaulo:Pontes, 2009,p.20.96comunicao&educaoAnoXIXnmero1jan/jun2014Oqueapresentamosnasequnciaumrecorteinicialqueperpassouto-dasessasfases.Ouseja,apresentamosnossabasetericaderefernciae,em seguida,nossasprimeirasimpressesanalticasdasletrasdasmsicas.3.CULTURA:AJUSTANDONOSSOCALEIDOSCPIOComo pano de fundo, temos a cultura. E iniciamos buscando nas palavras dePauloFreireassignificaesparaexpressotoplural.Alis,apresena dograndeeducadorbrasileironabasedenossopensamentofazsentidopara pensar, desde j, o dilogo entre comunicao, educao, consumo e cidadania. NomomentoemqueFreirediscutiasobrearealizaodeumanovaproposta deeducaoparaosanalfabetos,chegouconclusodequeaprimeiradi-mensodocontedodessaeducaoqueestavadefendendoseriaoconceito antropolgicodecultura.Aculturacomooacrescentamentoqueohomem fazaomundoquenofez.[...]culturatodacriaohumana11.Portanto,prticas,experinciaseproduessimblicasdetodoequalquer ator social. Nesses termos, fica claro que tanto as produes miditicas mainstream quantoasproduesperifricasdorapnoapenasestoimersasnumacultura como so elas prprias cultura. E, no panorama atual, podemos ainda trazer para acontextualizaooconceitodeculturadamdia,nostermossustentadospor Kellner12,quedefendecertaprevalnciadamdianocenriocontemporneo, locus que reflete e refrata elementos para os demais mbitos culturais. Adicionadas aocenrioqueoautorconstri,asnovasplataformasmiditicas,osgadgetseas redessociaismaiscolaborativasequejustamenteabremespaocapacidade inovadoradosatoressociaisaosquaisossujeitoscontemporneostendema estarcadavezmaisconectados,culturadamdia(ainda)fazsentido.E, inseridas nesse espao, as produes dos rappers, objeto de nosso estudo, comeam, de certa maneira, trabalhando nas brechas do sistema miditico para depois ganharem exposio maior, ou mesmo, como localiza Certeau13, podem ser criaes annimas [...] que irrompem com vivacidade e no se capitalizam.4.RACIONAIS:OSUJEITOPERIFRICO ESEUSDISCURSOSNesta etapa, inspirados pela ADF, colocamos em perspectiva a constituio da identidade do sujeito da periferia apresentada pelos Racionais. Embora sejam muitasaspossibilidadesdeabordagemtrazidaspelascomposiesdogrupo, aqui,devidoaoslimitescaractersticosdeumartigo,deteremo-nosemalguns doselementosidentitrios:osonho,af,opreconceitoracialedeclasse.OsRacionaisnosdescortinam,emsuasletras,umindivduosonhador,de-pendentedouniversoonricoparasuportarasadversidadesdoseucotidiano.Na periferia, sem o sonho, no se vive, ratifica-nos, em primeira pessoa do singular, o grupo: Sempre fui sonhador, isso que me mantm vivo. Mas esse sentido de esperana 11.FREIRE,Paulo.Edu-caocomoprticada liberdade. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp.108-109.12. KELLNER, Douglas. A culturadamdiaEstu-dos culturais: identidade e poltica entre o moder-noeops-moderno. Bauru:Edusc,2001.13.CERTEAU,Michelde. A inveno do cotidiano: artesdefazer.13.ed. Petrpolis:Vozes,2007, p.13.97atreladoaosonhonolinear,poishmomentosemqueprecisosonharou sobreviver. Da aspirao de ser jogador de futebol, dos tempos de pivete, ao crime, em busca da satisfao rpida dos sonhos de consumo, nos mostrado um sujeito queprocuraresistir,quevaiseesquivandodociclovicioso,masquecedeaalgumas representaesdemundoquelheparecemtransversais:ocapitalismomeobrigou aserbem-sucedido[...]osonhodetodopobreserrico.Mas,nasmsicas,opapelde vtima fica de lado e se sobressai o discurso de que o crime no compensa: um dinheiro amaldioado. Quanto mais eu ganhava, mais eu gastava [...] 14 anos de recluso. Os Racionais colocam-se como um exemplo e na condio de conselheiro, procu-randomanteracapacidadedesonharcomofiocondutordaesperanapordias melhoresentreseusconcidados:Oaprendizadofoiduroemesmodiantedesserevs no parei de sonhar, fui persistente porque o fraco no alcana a meta. Atravs do rap corri atrs do preju e pude realizar o meu sonho por isso que eu, Afro-X, nunca deixo de sonhar. Comunicao, educao, prticas de consumo e cidadania F. Budag, R. Marcelino e A. JunqueiraDivulgao.Asletrasnosmostramaindaumaespciedelimbopsquiconoqualviveo sujeito perifrico: entre o sonho e a merda da sobrevivncia. Essa sobrevida sofrida, comoapalavramerdanosresumecurta:Vinteeseteanoscontrariandoa estatstica. Sobreviver ao inferno, como um de seus lbuns nos aponta, caminhar por um campo minado, um territrio em que ser criminoso parece ser bem mais prtico.Nessecenrio,surgeoindivduodotadodef.Eessaf,pluralnafala dosRacionaisqueabraaanjos,Deus,pastores,crentes,orixs,tomacerta centralidadeeaela,emparte,atribudaoesquivodeumdestinotrgico:Os anjosdocuguiaosmeuspassosandandonoinferno/AgradeoaDeuseaosorixs, pareinomeiodocaminhoenemolheipratrsmeusoutrosmanostodosforamlonge demais,cemitrioSoLus,aquijaz/FemDeusqueelejusto[...]Tenhafporque nolixonasceumaflor.Orepornspastor[...]Admirooscrente. O racismo outro aspecto discutido pelos Racionais. A populao da periferia sofrepreconceitoeprincipalmenteosnegrosnotmpraticamenteespaonaso-ciedade,comoogrupo,emtomdedennciaerecorrendoemparteafalasentre aspas, nos traz: 60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais j sofreram violncia 98comunicao&educaoAnoXIXnmero1jan/jun2014policial. A cada quatro pessoas mortas pela polcia, trs so negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos so negros. A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente emSoPaulo.AquiquemfalaPrimoPreto,maisumsobrevivente.Ogruponosvai desvelando um perfil emblemtico das periferias: a pele negra, o rosto talhado pelo sofrimento,asroupassimples:Edurantemeiahoraolheiumporumeoquetodasas senhoras tinham em comum: a roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura. Cabeobservarque,conformenosapresentaocientistasocialDAndrea14,o movimento hip hop, a partir dos anos 1990 especialmente a partir do lanamento do lbum Raio-X Brasil, do grupo de rap Racionais MCs , foi um dos principais responsveis pela apropriao poltica do termo periferia at ento fortemente restritoadiferentescamposdaacademiapelosseusprpriosmoradores.Demaneiradireta,osRacionaisclamamqueracistasotriosdeixema periferiaempazeaindatrazemluzcomodifcilaoindivduoperifrico fazer frente a essa realidade e postular-se como cidado em meio a uma atmos-feraemqueadesinformaoimpera:Portodaautoridadeopreconceitoeterno. Ederepenteonossoespaosetransformanumverdadeiroinfernoereclamardireitosde queforma.Sesomosmeroscidados.Eles,osistema.Eessadesinformaoomaior problema.Opreconceito,percebemosedestacamos,remeteacordapelee pobreza,poisemumapassagemogrupofaladaindiferenaporgentecarente. Aironiaemcimadasupostanaturalizaodenossamisturaracialbrasileira tambmperpassaasletras:OBrasilumpastropicalonderaassemisturam naturalmenteenohpreconceitoracial.Haha[simulandorisos].Masoracismo denunciadocarrega,aponta-nosogrupo,umadicotomia,poisnegroebranco pobreseparecem,masnosoiguais.Sonhador, sobrevivente, imerso em preconceitos social e de classe, dotado de resilincia,sofrido,deriva.Emmeioacondiesdspareseadversas,emerge--nosnosfiltrosdavozdosRacionaisumsujeitodef.Sujeitocambiante, comooprpriogruposepostula:Umsdico,umanjo,umbandidodocu,[...] revolucionrio,insanooumarginal,antigoemoderno,imortal,[quevive]nafronteira do cu com o inferno, [...] violentamente pacfico, [que veio] para sabotar o seu raciocnio, [...][para]abalarseusistemanervosoesanguneo.Issoratifica-nosaperspectivade Hall15, para quem a identidade na contemporaneidade transformada continua-mente em relao s formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemasculturaisquenosrodeiam;[somos,porassimdizer]confrontadospor umamultiplicidadedesconcertanteecambiantedeidentidadespossveis,com cadaumadasquaispoderamosnosidentificaraomenostemporariamente.Traada a identidade de quem enuncia os discursos das msicas, continua-mosanalisandoasnarrativasletrasquenodeixamdesersuashistriasde vida,umretratodavidanaperiferiapaulistana,agoraemtornodoseixos quesodenossoespecialinteresse(emvirtudedenossainseroterica): educao,comunicao(publicidade),consumoecidadania.Podemos perceber que, no geral, a educao assim como o trabalho no encaradacomvalorizao.Oumelhor,napercepodessessujeitosperifri-cos,noseriaaeducaoagranderesponsvelporumcrescimentopessoal, 14.DANDREA,Tiaraj Pablo.Aformaodos sujeitosperifricos:cul-tura e poltica na periferia de So Paulo. 309 fl. Tese (Doutorado)apresentada aoDepartamentodeSo-ciologiadaFaculdadede Filosofia,LetraseCin-cias Humanas (FFLCH), da Universidade de So Paulo (USP),2013. 15.HALL,Stuart.Aiden-tidadeculturalnaps--modernidade. 11. ed. Rio deJaneiro:DP&A,2006, pp.12-13.99social ou profissional. Cristalizada na figura da escola, vemos esse descaso com aeducaoem: Vriosbotecosabertos.Vriasescolasvazias.Emcertosentido,aeducaoformalparecenoterimportnciatambm porque,defato,parasobreviveremmeioaessarealidadetransgressora,s transgredindotambm.Oquecontamesmoamalandragem,aexperin-cianocrime;visoquevemosconcretizadanasmetforasdosversos:Prestou vestibularnoassaltodobuso.Numaagnciabancriaseformouladro.Continuando,agoracomatemticadacomunicao/consumo,entreas vriasrepresentaespossveis,destacamosaqueenxergaapublicidadecomo evidnciaexplcitadaexclusodoconsumo:foda,fodaassistirapropaganda ever.Nodprateraquilopravoc.Oconsumofiguracomodesejodebens materiais,muitasvezesmarcadospeloluxo;mas,aomesmotempo,tambmse fazpresenteumafacesimblicadoconsumodecoisassimplesnavida.ImaginanisdeAudiOudeCitronIndoaqui,indoali[...]DetetosolarsvezeseuachoQuetodopretocomoeuSquerumterrenonomatoSseuSemluxo,descalo,nadarnumriachoSemfomePegandoasfrutanocachoAtruta,oqueeuachoQuerotambmDe qualquer forma, permeando ambas as vertentes de abordagem do consu-mo ostentao e simplicidade , o que predomina a excluso. O seu contrrio, ouseja,aincluso,quandovislumbrada,spossibilitadapelacriminalidade, pelo dinheiro roubado, pelo trfico de drogas. Em verdade, a palavra consumo propriamente dita, quando explicitamente mencionada nas letras, est claramente se referindo ao consumo de drogas: Sem demora, a a pedra. O consumo aumenta a cadahora.Representaodeconsumo,portanto,naversodaperiferia.Por fim, articulando educao, comunicao e consumo, temos a cidadania. Cidadania enquanto condio de sujeito ativo politicamente e que tem garantidos os seus direitos. Nesse sentido, percebemos nesses sujeitos uma relativa conscin-ciadedireitos,conscinciadequesofremracismoedequeosistemanoest doseulado.Mas,aomesmotempo,umaausnciadeengajamentoparauma mudanamacrossocial.E,nesseexerccio,pois,acidadanianoseconcretiza. Portodaautoridadeopreconceitoeterno[...]Somosmeroscidadoseeles,osistema.Ea nossadesinformaoomaiorproblema.Comunicao, educao, prticas de consumo e cidadania F. Budag, R. Marcelino e A. Junqueira100comunicao&educaoAnoXIXnmero1jan/jun2014EssaporraumcampominadoQuantasvezeseupenseiemmejogardaqui,mas,a,minhareatudooqueeutenho.Aqui a educao, desvalorizada, como apresentamos h pouco, materializa os resultadosdesuaausncia.Elapoderiaseroarticuladorparaainserodesses sujeitos na esfera da comunicao/consumo, assim como na instncia da cidadania.5.CONSIDERAESFINAISEmtodaadiscografiadosRacionais,aperiferiaocenrioestruturantedo cotidiano e da vida, lcus material e simblico da existncia possvel. Essa categoria de aglomerao urbana to presente na realidade das populaes socioeconomi-camente marginalizadas adquire verdadeiro estatuto tautolgico, no qual, entre-tanto,habitatodasortedeambiguidadesgnica.A,aperiferiaqueperiferiase define,tambm,comolugardemilharesdecasasamontoadas,degentepobre,de vriosbotecosabertoseescolasvazias,demeschorandoedeirmossematando. No contexto, a condio perifrica se define espacial e geograficamente nas citaesdosinmerosbairrospaulistanosqueacompem,masprincipalemais significativamente se institui discursivamente como lugar da pobreza, da misria, daviolncia,dadesesperanaedaexclusosocial.Consumoecidadaniaemer-gemcomoaspiraeslegtimaseresilientes,aindaquevagas,opacas,oscilantes. Porm,aeducaoeoempregonopertencemaoscamposdoimaginrioeda representaodocaminhodaintegraoedoacessosocialaomundodosbens. H aqui descrena, negao, constatao da inocuidade da agncia do sujeito em venceresuperarasagrurasdapobrezaedodesamparopeloseuesforo,traba-lho e dedicao. O mal cuja demonizao se concretiza na ambio (que como umvucegaosirmosenavaidade(amedospecadocapital)semprevencer.Roubaramodinheirodaqueletio!Queseesforasolasol,semdescansar!NossaSenhoraoilumine,nadavaifaltar.umapena.Ummsinteirodetrabalho.Jogadotudodentrodeumcachimbo,caralho!Odiotomacontadeumtrabalhador,Escravourbano.Umsimplesnordestino.Nas narrativas construdas, as possibilidades de ganho e de acesso ao consumo advindas do trfico apresentadas como as mais disponveis e fceis (ser criminoso aquibemmaisprtico/rpido,sdico,ousimplesmenteesquemattico/pedirdinheiro mais fcil que roubar, mano! Roubar mais fcil que trampar, mano!) so traioeiras e levam, inescapavelmente, ao colapso, condenao e morte dos indivduos (vrios desanda,vacilaeviracaa).Talvez,ento,anicasadavivelparaescapardo abismosejaadavitriapessoalpelafamaadquiridanosesportes(noesporteno boxeounofutebol;algumsonhandocomumamedalha,oseulugaraosol)ounorap. Oaprendizadofoiduroemesmodiantedesse revsnopareidesonhar,fuipersistente porqueofraconoalcanaameta 101AtravsdorapcorriatrsdoprejuepuderealizaromeusonhoE desse lugar, que o grupo musical posiciona sua fala enquanto sujeito social. Elessovencedores,sobreviventes;eles,dealgumamaneirachegaraml(Cheguei aos 27, sou um vencedor, t ligado mano!!!!). Conheceram o inferno, mas com a ajuda dosanjosconheceramtambmoparaso(conhecioparasoeconheooinferno;vi Jesusdecalabegeeodiabodeterno;eufuiorgia,brio,louco,mashojeandosbrio). E podem, assim, narrar a tragdia cotidiana da periferia e apontar o destino fatal queabraaaquasetodososseusmembros,dosquaisamaioriaseparececomigo. Porisso,odiscursodasletrasmusicaisdosRacionaisadquireotomdapro-fecia e a modulao das falas bblicas. Eles so os anunciadores/enunciadores dos vaticnios(eaprofeciasefezcomoprevisto;1997depoisdeCristo/Afrianegrares-suscita outra vez / Racionais captulo 4 versculo 3 / Aleluia...aleluia... Racionais no ar). So eles os porta-vozes da condenao eterna, da dor e do inexorvel extermnio.Ainda assim, sobrevivem e vazam tnues sopros de esperana. Para alm do reconhecimentodeterminsticodavulnerabilidadesocialedainevitabilidadeda tragdia e da morte, h um fiapo de sonho. Um sonho que, no entanto, se cons-triesquizofrnico,numremendoderetalhosdediscursosmgicos,evanglicos e de fragmentos da neurocincia e da autoajuda vulgarizados na mdia cotidiana. QueriaqueDeusouvisseaminhavoz,EtransformasseaquinumMundoMgicodeOz.Opensamentoaforacriadora Oamanhilusrio Porqueaindanoexiste Ohojereal arealidadequevocpodeinterferir Asoportunidadesdemudana Tnopresente Noespereofuturomudarsuavida Porqueofuturoseraconsequnciadopresente Parasitahoje Umcoitadoamanh Corridahoje Vitriaamanh Nuncaesqueadisso,irmo.ComoapontaFairclough16,osujeitointerpeladoemvriasposiesepu-xado,simultaneamente,emdiferentesdireestendeaproduzirumdiscurso reveladordaexperinciadaconfusoedaincerteza,queproblematizaascon-veneseanaturalizaodosensocomum.Prticaquenoapenasrepresentaomundomasquelheatribuisignifica-oequeinstituiidentidadeserelaessociais,odiscursodepende,tambm,da constituiohegemnicadesujeitos-intrpretescapazesdeprocedersualeitura coerente,demodoquepossafazersentido17.Dessaforma,artistasdorapeseu pblico se constroem mtua e simultaneamente no e pelo discurso musical analisado.Comunicao, educao, prticas de consumo e cidadania F. Budag, R. Marcelino e A. Junqueira16.FAIRCLOUGH,Nor-man. Discurso e mudana social.Braslia:Editora UniversidadedeBraslia, 2008,p.121.17.Idem,op.cit.,p.113.102comunicao&educaoAnoXIXnmero1jan/jun2014REFERNCIASBRANDO,HelenaH.N.Introduoanlisedodiscurso.Campinas:Ed.da Unicamp, 2004.CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: artes de fazer. 13. ed. Petrpolis: Vozes, 2007.DANDREA, Tiaraj Pablo. A formao dos sujeitos perifricos: cultura e poltica na periferia de So Paulo. 309 fl. Tese (Doutorado) apresentada ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH), da Universidade de So Paulo (USP), 2013. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudana social. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2008.FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.HERSCHMAN, Micael; GALVO, Tatiana. Algumas consideraes sobre a cultura hip hop no Brasil hoje. In: BORELLI, Silvia H. S.; FREIRE FILHO, Joo. Culturas juvenis no sculo XXI. So Paulo: Educ, 2008.KELLNER, Douglas. A cultura da mdia Estudos culturais: identidade e poltica entre o moderno e o ps-moderno. Bauru: Edusc, 2001.MARTN-BARBERO, Jess. Ofcio de cartgrafo: travessias latino-americanas da comunicao na cultura. So Paulo: Loyola, 2004.MICHELLI,Cntia.Oquerap?(2009).Disponvelem:. Acesso em: set. 2013.ORLANDI,EniP.Anlisedediscurso:princpioseprocedimentos.8.ed.So Paulo: Pontes, 2009.REYES,CeliaR.Quatrojovens,quatrotrajetrias.In:CadernoGloboUniversidade. Subrbioseidentidades:umolharmultidisciplinarsobreahistriaeaculturado subrbio e sua representao na construo do imaginrio social brasileiro. Uma reflexo com base na minissrie Suburbia. Disponvel em: . Acesso em: out. 2013.SEVERINO, Antnio Joaquim. Metodologia do trabalho cientfico. 23. ed. rev. e atual. So Paulo: Cortez, 2007.VAGALUME. Racionais MCs. Disponvel em: . Acesso em: set. 2013.