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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

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Teatro de cordel e formação para a cena:

textos reunidos

ARMINDO BIÃO

Teatro de cordel e formação para a cena:

textos reunidos

P&A Gráfica e Editora

Salvador - Bahia2009

Copyright 2009, Armindo Jorge de Carvalho Bião

Projeto gráficoEditoração eletrônica

Antonio Raimundo Martins Cardoso

Capas e fotoJoão Paulo Perez Cappello

RevisãoHeloisa Prata e Prazeres

Normalização bibliográficaFlávia Catarino Conceição Ferreira

FICHA CATALOGRÁFICA

B473t Bião, Armindo Jorge de Carvalho

Teatro de cordel e foramção para a cena: textos reunidos/

Armindo Jorge de Carvalho Bião, Prefácio Jean-Marie Pradier. –

Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009.

447 p.

ISBN: 978-85-86268-70-0

1. Literatura de cordel. 2. Literatura de cordel – Teatro. 3.

Etnocenologia. I. Pradier, Jean-Marie. II. Título.

CDD 389.5

P & A Gráfica e EditoraEndereço: Av. Iemanjá, 365 – Jardim Armação

CEP 41710-755 – Salvador – BahiaTel.: (71) [email protected]

Para meus alunos,que colaboraram com a maior parte dos textos aqui reunidos,sempre me motivaram a escrever e,mais recentemente,me sugeriram publicá-los.

Para meus professores,Robert Moulton, Elisabeth Nash, Barbara McIntyre, Wesley Balk, DougBerry, David W. Thompson, Glen Gadberry e Charles Nolte,que me ensinaram teatro na universidade.

Para meus mestres de teatroJoão Augusto, Luciano Diniz Borges e Álvaro Guimarães (in memoriam),Deolindo Checcucci, Manoel Lopes Pontes e Vieira Neto,Harildo Deda e Benvindo Siqueira..

E, finalmente, para meu tio-avô, irmão de minha avó paterna,Armindo Valverde Martins, que,através de meu pai,Romeu Martins Bião,me legou sua caderneta e álbuns de viagemdas Olimpíadas de Berlim de 1936,além de outros álbuns e referênciassobre poesia, cinema e a criação de estrelas!

Agradeço a meus tios pelo lado paternoMariath Martins Bião,

que me levou aos primeiros espetáculos teatraise à verdadeira cabeça cortada de Lampião morto ainda não enterrada,

e Eduardo Martins Bião,que me inspirou com seus folhetos de cordel, a sanfona e seu trio

nordestino,e, pelo lado materno,

a Tia Iaiá, Maria Nilda de Carvalho Martins,que armava todo ano o maior e mais misterioso presépio que já

conheci de bem perto,a Tereza Conceição Araújo dos Santos,

que produziu muitos presépios vivos dos quais participei.e a Tio Raul Nobre Martins,

que me mostrou os filmes de Carlitos, entre tantos outros.

Agradeço também a minha mãeDulce Aleluia de Carvalho Bião,

pelo apoio incondicional,a João Paulo Perez Cappelo,

pelas capas, fotos e ajuda com os originaise a Marcos Lopes,

pelo apoio.

SUMÁRIO

Nota do autor sobre a presente edição .......................................................... 11

Prefácio: A vida na obra, A obra na vida ....................................................... 19

Préface: La vie dans l’oeuvre, L’oeuvre la vie .............................................. 27

Do teatro de cordel

A Padilla: história, mito e teatro (2008) .............................................................. 37

Itinerário de Maria Padilha (2008) ........................................................................ 43

Faustos e diabos na encruzilhada dos discursos germânicos e brasileiros

(2007) ........................................................................................................................ 53

“Mulher é o diabo!” (2007) ................................................................................... 77

O oral, o impresso e a cena: pesquisa artística e científica (2006) ..................... 91

Conférence de Tombouctou (2005) ..................................................................... 99

O cordel da vida e o teatro e a palavra bião (2005) ............................................ 121

Sobre quatro entremezes portugueses e a palavra bião (2005) ........................ 135

Sobre o Isto é bom demais! (2005) ..................................................................... 149

Conclusão do livro Teatro de cordel na Bahia e em Lisboa (2005) ................. 157

Isto é bom! um sarau barroco (2002) ................................................................. 161

Da formação para a cena

As artes do espetáculo no Brasil contemporâneo (2008) ................................. 173

ABRACE: avaliação de um percurso e perspectivas (2007) .............................. 207

O teatro do mundo: da importância dos cenários e dos figurinos (2007) .... 221

Fundamentos do discurso sobre as artes cênicas no Brasil (2007) ................. 223

Sobre o teatro e as publicações a seu respeito (2005) ........................................ 239

Indicadores para a avaliação da produção acadêmica da Escola de Teatro da

UFBA 1956/ 1997 (1998) ...................................................................................... 243

A especificidade da pesquisa em artes cênicas no ambiente universitário

brasileiro (1999) ...................................................................................................... 265

Artes cênicas na universidade brasileira comentários sobre parcerias e a

criação de um programa de pós-graduação em artes cênicas na Bahia (1998) 271

A liquidez do mercado e a fúria legislativa: sobre o ensino de artes nos

níveis fundamental, médio, superior e pós-graduação e suas relações com

a formação profissional em artes (1997) ............................................................. 285

A mesa falante (1997) ............................................................................................. 291

Alguns comentários sobre ingresso em curso superior de teatro e pós-

graduação (1993) ..................................................................................................... 303

Dramaturgia Brasileira em Aulas de Interpretação (1984) ............................... 321

Supporting Paper on Spring Romance: a Master of Fine Arts Acting Recital

(1983) ........................................................................................................................ 357

O Ator Nu: Notas Sobre Seu Corpo e Treinamento Nos Anos 80 (1982) .. 371

Miscelânea do mesmo

Sobre o GIPE-CIT para o CNPq em 30 de novembro de 2008 .................... 387

As logomarcas do GIPE-CIT, do PPGAC e da ABRACE ........................... 389

O cordel ainda está muito vivo no Brasil (2008) ............................................... 393

Tentativa de contribuição sobre áreas de conhecimento da Tabela do CNPq

(2007) ........................................................................................................................ 401

Prefácio à edição brasileira de livro francês sobre cordel (2006) ....................... 403

Discurso para os graduados pela Escola de Teatro da UFBA em (2006) ...... 407

Nota histórica sobre a ABRACE (2003) ............................................................. 413

Editorial de Memória ABRACE V: Anais do II Congresso (2002) .............. 415

Editorial de Memória ABRACE IV: Livro de Resumos do II Congresso

(2001) ........................................................................................................................ 417

Editorial de Memória ABRACE III: Como pesquisamos? Os Grupos de

Trabalhos (2001) ..................................................................................................... 419

Editorial de Memória ABRACE II: Anais da I Reunião Científica (2000) ... 421

Editorial de Memória ABRACE I: Anais do I Congresso (2000) ................. 423

Discurso para os graduados pela Escola de Teatro da UFBA em 1999 (1999) 427

O Teatro Mora na Filosofia (1999) ...................................................................... 429

Depoimento sobre Estudo no Exterior (1994) ................................................ 433

Teatro, como arte de comunhão (1984) .............................................................. 439

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Armindo Bião

Nota do autor sobre a presente edição

A “presente edição” à qual se refere este título é a de dois livros,nos quais esta mesma “Nota” aparece: Etnocenologia e a cena baiana

e Teatro de cordel e formação para a cena, ambos com a característicaidêntica, de reunirem textos de um só autor, quase todos já publicadosanteriormente em outros livros e periódicos.

Em Etnocenologia e a cena baiana, estão reunidos 40 textos, jápublicados entre 1988 e 2008 no Brasil e na França (dois dos quais aindano prelo no momento da presente edição), nas linhas de pesquisa quepassei a desenvolver em função de meu doutoramento. Além do campode pesquisa privilegiado que tem sido a Bahia (inclusive seu teatro), focode mais de um quarto dos ensaios, artigos e outros textos aí reunidos,esse livro traz um conjunto de abordagens de caráter epistemológico emetodológico, no horizonte teórico da sociologia relativista ecompreensiva do atual e do cotidiano e da etnociência das artes doespetáculo, a etnocenologia.

Em Teatro de cordel e formação para a cena, estão reunidos52 textos, produzidos entre 1982 e 2008 nos Estados Unidos da Américado Norte, no Brasil e na França (cinco dos quais ainda inéditos nomomento da presente edição), relativos à interpretação teatral, a minhaprática de ator, encenador e professor de artes do espetáculo e às pesquisasque venho desenvolvendo no âmbito da oralidade e da teatralidade daliteratura de cordel. A palavra bião, que identifica minha família paterna eque aparece em textos do teatro de cordel lisboeta do século XVIII, é aímotivo de reflexão pessoal, profissional, antropológica e etnocenológica.

Razões históricas da edição dos dois livros

Ao longo de 30 anos de atuação como docente universitário, naárea das artes do espetáculo, tenho me deparado com o grande problemado texto didático: sua escassez e dificuldade de acesso. Na Bahia, em

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particular, esse problema só me parece ser menor que o de nossasbibliotecas públicas, cuja grandeza só me foi revelada, em toda suadramática extensão, quando estudei, no início dos anos 1980, nasUniversidades de Pittsburgh e Minnesotta, nos Estados Unidos da Américado Norte. De fato, ali, a abundância de textos disponíveis – e a eficienteexistência de bibliotecas, de grande acervo com acesso fácil e ágil, abertasao público de modo quase ininterrupto, com pessoal bem qualificado –surpreenderam-me.

Talvez, e não por mera coincidência, fosse ali e quando eucomeçaria a estudar, de fato, metodologia da pesquisa, passaria a valorizara produção de textos didáticos e a boa manutenção de bibliotecas públicase, além disso, começaria, também, a produzir textos para uso em salas deaulas de cursos de teatro. Daí, resultaram meus artigos “O ator nu: notassobre seu corpo e treinamento nos anos 80” e “Dramaturgia brasileiraem aulas de interpretação”, publicados, respectivamente, em 1982 e 1984,na Revista Art, da então Escola de Música e Artes Cênicas da UniversidadeFederal da Bahia, nossa UFBA.

A plena compreensão da pesquisa, em suas dimensões de purezae aplicabilidade, só me seria revelada um pouco mais tarde, no final dosanos 1980, durante a realização de meu doutorado, nas velhas instalaçõesda Sorbonne, que eu escolhera por conta de sua proximidade física (emParis) de locais onde se praticavam técnicas teatrais de máscara, que euconhecera nos EUA, durante o mestrado, junto à companhia teatral franco-norteamericana Théâtre de la jeune lune. Pois foi ali, apesar de algumadificuldade de acesso ao precioso acervo bibliográfico existente, queaprendi o real e elevado valor da reflexão filosófica, da crítica e do livredebate de ideias.

Minha atração pelo teatro, bem arcaica, quase infantil – segundoamigos adeptos do espiritismo, de minha família, proveniente de outrareencarnação – como se observa no parágrafo anterior, parece ser oeixo norteador do acaso e da necessidade de minha vida acadêmica e deminha produção bibliográfica, como se poderá confirmar no próximoparágrafo. No entanto, a possibilidade de efetiva articulação de teoria eprática, teatro e filosofia, artes do espetáculo e ciências do homem, só se

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Armindo Bião

tornaria realidade para mim a partir de 1995, quando participei do eventono qual se propôs a etnocenologia, também em Paris. Aí e então, teveinício um terceiro momento de minha produção textual, cujo formatomais realizado só começaria a aparecer bem recentemente, em artigoscomo “Um trajeto, muitos projetos” e “Um léxico para a etnocenologia”,ambos de 2008.

Voltando ao momento chave de meu doutoramento, foi tambémna Sorbonne, no final dos anos 1980, que passei a produzir textos numaperspectiva mais teórica, como os ensaios “Le jouir du jouer” (1988) e“Teatralidade e espetacularidade” (1990), religando-me a minha iniciaçãouniversitária no campo da filosofia, curso, aliás, que eu escolhera, em1967, mais uma vez, graças a minha atração primordial pelo teatro, menospelo conteúdo programático do curso e mais pela existência de um atuantegrupo de teatro na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA,conforme relato no texto “O teatro mora na filosofia”, escrito para ascelebrações dos 50 anos da mais antiga universidade baiana, em 1996.Na verdade, essa religação filosofia-teatro-pensamento francês estende-se a minha participação adolescente em dois grupos: um de “teatro deorientação espírita” e outro de estudos sobre “a filosofia de bases científicase consequencias religiosas”, que seria o espiritismo ortodoxo positivistafrancês, segundo a tradição oral e escrita local.

Retornando, de modo mais pontual, à presente edição simultâneade dois livros, reunindo textos (quase todos já publicados), em minhaavaliação, mesmo com o grande avanço tecnológico e telemático, dosúltimos anos, que amplia as possibilidades de acesso a textos didáticos ea acervos bibliográficos, o que vivemos na área das artes do espetáculo,na Bahia sobretudo, em termos de bibliotecas públicas (universitárias ounão), é, ainda, uma situação dramática.

Para mim é muito claro que, atuando, prioritariamente, numametrópole regional brasileira de médio porte, como Salvador, de umlado, nossas dificuldades locais de publicação de livros e de periódicossão enormes. De outro lado, mesmo havendo, aqui, uma efetiva inserçãono avanço tecnológico e telemático ao qual aludi no parágrafo anterior,graças à ampliação do acesso às telemáticas, na verdade, nosso acesso à

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informação, que é o centro de minha atenção na presente “Nota”,permanece problemático. Porque, além de nosso parco hábito de leiturae de escrita, do pequeno conhecimento das metodologias da pesquisa edas múltiplas formas escritas das línguas, em geral, talvez, até comofato correlato, nossa produção bibliográfica pertinente seja muito escassae, o que é muito mais grave, continue a haver uma pequeníssimacirculação dos raros textos didáticos e dos resultados de pesquisaefetivamente publicados, na área das artes do espetáculo.

Mesmo tendo publicado textos de minha autoria fora e dentrodo Brasil, inclusive fora da Bahia, o número pequeno de exemplaresdas edições dos periódicos de nossa área de artes e sua precária circulaçãointernacional (e também até nacional) leva-me a um fato já muitoconhecido também em outras áreas do conhecimento em nosso país.A questão é que, talvez, esse fato seja ainda mais grave em nossa área:dos fenômenos efêmeros do espetáculo. Trata-se do crescimento douso de reproduções em fotocópias, nem sempre de boa qualidade eeventualmente com danosas distorções das referências dos originaiscopiados, de textos didáticos e de resultados de pesquisa.

Aliás, o hábito de professores deixarem, no serviço de reproduçãode textos de sua unidade acadêmica, cópias dos textos indicados paraos alunos, para serem, por sua vez, também, fotocopiadas, tem setornado prática cada vez mais frequente e, até, motivo de pesquisaacadêmica.

Assim, selecionei quase uma centena de textos, publicados desde1982, entre artigos, ensaios, palestras transcritas, entrevistas, editoriais,prefácios, apresentações de livros e similares, por considerá-los dealguma utilidade para as disciplinas que leciono e para as atividades depesquisa e extensão que desenvolvo. Como o volume do material ficoumuito grande para um só livro, fui levado a organizá-lo em dois livros,e não em dois volumes de um mesmo livro, porque, o esforço teórico,prático e pragmático, de seleção e preparação dos originais assim mesugeriu.

É o resultado desse esforço, que só me enriqueceu, e que, graçasao CNPq, à ajuda profissional de, entre outros, Heloísa Prata e Prazeres,e ao apoio técnico de João Paulo Perez Cappello, agora vem a público.

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Razões imediatas da edição dos dois livros

Esta edição teve origem aproximadamente em março de 2008,quando comecei a desenvolver o projeto de pesquisa Mulheres por um

fio: inferno, purgatório e paraíso no Atlântico Negro, com o qualrecebi nova bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, agora deNível 1A, por três anos.

Acompanhada de um grant mensal em recursos financeiros, quepodem ser investidos em publicações, a concessão dessa bolsa mepossibilitava reunir, com objetivo de promover sua edição, tudo (ou quasetudo) o que já havia publicado. O que me permitiria, além de promoverdoações a bibliotecas especializadas, vender o produto editado aosinteressados praticamente pelo preço dos custos não cobertos pelo grant

(serviços de pessoa física, de revisão, normalização e preparação dosoriginais), já que esse cobriria os custos de impressão.

E, para mim, ficava cada vez mais clara a necessidade de um suportedesse tipo para minhas atividades acadêmicas, de pesquisa, ensino eextensão. De modo mais pragmático – confesso – eu também queriafacilitar minha vida de professor e a de meus alunos, sobretudo a demeus orientandos, dando-lhes mais fácil acesso a parte da bibliografiaque eu já lhes indicara e que poderia usar em futuros cursos.

No processo de reunião e seleção dos textos que já publicara,reuni também poemas diversos (publicados e inéditos) de minha autoria,o que resultou num terceiro livro, Bloco mágico e lua e outros poemas,já lançado no final de 2008.

Razões metodológicas

Os textos foram organizados, de acordo com sua temática central,nos dois livros e, dentro de cada um deles, em blocos temáticos (para osartigos, ensaios e similares) e num bloco final, denominado “Miscelânea”,contendo as entrevistas, editoriais e afins. Com a implantação da novaortografia da língua portuguesa a partir de 2009, fiz um grande esforçode adaptação dos textos originais, publicados exclusivamente ou tambémem português, às novas regras hoje em vigor, o que, sem dúvida, se alterao texto de referência já publicado, tirando-lhe algo do sabor de outra

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época, também lhe dá uma atualidade desejável. Do mesmo modo, ostítulos foram revistos, para darem conta ao leitor, do modo mais precisopossível, de seu conteúdo e, eventualmente, de seu contexto, como noscasos de “Prefácio a...”, por exemplo. Quanto aos textos escritos epublicados em francês e em inglês, ainda sem tradução para o português,optei por republicá-los nas línguas em que estão disponíveis.

Quanto aos raros textos escritos e publicados em francês e eminglês, ainda sem tradução para o português, optei por publicá-los naslínguas em que estão disponíveis. Já os prefácios, de Michel Maffesoli,para Etnocenologia e a cena baiana, e de Jean-Marie Pradier, paraTeatro de Cordel e formação para a cena, aparecem em suas versõesoriginais em francês e numa tradução para o português, por conta dosprincipais leitores alvo: sobretudo lusófonos, mas também francófonos.

Com facilidade, o leitor poderá perceber que ideias recorrentes e,até, trechos inteiros, reproduzem-se de um texto para outro. O que melevou a optar por sua organização, dentro da cada bloco de textos, porordem cronológica, na esperança de que se possa acompanhar o processode transformação dessas ideias e formulações do discurso. Por isso aordem de apresentação dos textos em cada um desses blocos écronológica, do mais recente para o mais antigo, o que pode ser visualizadonos Sumários, onde após o título de cada um deles informa-se o ano desua mais recente publicação, entre parênteses. O resultado dos dois livros,assim, acaba por remeter ao universo da arte e da cultura barrocas, quedefiniram a identidade de nosso país e, mais particularmente, de nossaBahia, de nossa Salvador e minha própria.

O fato de divulgar, para acesso e download gratuito, o conteúdode ambos os livros, através de www.gipe-cit.blogspot.com e dewww.teatro.ufba.br/gipe, pode comprovar minha intenção de superaras dificuldades de acesso a textos didáticos e de resultados de pesquisa,que classifiquei como dramáticas na área das artes do espetáculo e naBahia, em particular. É claro que a edição de apenas quinhentos exemplaresde cada um dos livros (para doação a bibliotecas e venda em raras livrarias,através de um esforço muito pessoal e artesanal ou por meio daquelessítios virtuais acima indicados), por uma pequena editora local,

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soteropolitana, não contribuiria de modo decisivo para o enfrentamentodaqueles problemas. Mas, também, fica claro que só a organização domaterial que eu quis publicar no formato de livro me permitiu chegar atésua divulgação pela rede mundial de computadores.

Finalmente, faz-se necessária uma referência à utilização de palavrasnão dicionarizadas. A palavra “espetacularidade”, por exemplo, é definidaem vários dos textos nos quais aparece, em particular em “Um léxicopara a etnocenologia”, como a categoria dos fenômenos sociaisextraordinários. Outras palavras, provindas do vocabulário proposto porMichel Maffesoli e de franca inspiração da filosofia alemã romântica,contudo, merecem aqui uma, ainda que também breve, definição.

Assim, “sensorialidade” é a categoria da percepção sensorial quese distingue de “sensibilidade”, cuja conotação de qualidade, emoção,faculdade perceptiva e reativa e fragilidade é muito forte e distinta doque se pretende compreender com essa nova palavra. Sensorialidade é,mais especificamente, a condição humana de conhecer através dos sentidos.Do mesmo modo, “afetual” é a condição humana, distinta do sensorial,do racional e do emocional, que se refere ao conjunto de empatias,simpatias e antipatias que aproximam e distanciam as pessoas. E“reencantar” e “reencantamento” referem-se a uma nova forma de sever o mundo na cultura ocidental, fortemente marcada pelodesencantamento da modernidade. Depois de um mundo desencantado,estaríamos vivendo um novo momento, o do “reencantamento”, daaceitação do mistério.

Por fim, no âmbito da história do teatro, a palavra “revistógrafo”,que se refere ao especialista em teatro de revista, uma modalidade teatralhoje em desuso, que gerou a palavra dicionarizada “revisteiro”, para designaro autor de peças desse tipo, que aparece em alguns textos sobre esse tipode comédia musical, muito popular do final do século XIX a meados doséculo XX, pode ser bem compreendida ao se conhecer o perfil de XistoBahia (1841-1894), ator, músico, autor, encenador, produtor. Xisto Bahiatambém pode ser considerado um revistógrafo, palavra cujo sufixo remetemais à teoria e à grafia. Ora, teoria (e escrita) e teatro (e vida breve, naprática) são faces da mesma moeda, até por sua origem etimológica. Apresente edição é um tributo a Xisto Bahia, ao teatro e à teoria!

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Herdeiros de uma cultura da verdade revelada, temos tendência aconsiderar as teorias do mesmo modo que um joalheiro usa paracontemplar seus diamantes, sem ter a menor ideia de quem esteve nasminas para extraí-los da terra. A nova perspectiva que nosso grupo deamigos abriu em 1995, denominando-a de “Etnocenologia”, age demodo inverso. Continuando a alusão aos joalheiros, diria que ao contráriodos cristalógrafos que recorrem ao método matemático e descritivopara estudar a estrutura dos cristais em detrimento do método de suaformação, o etnocenólogo se dedica a esclarecer a complexidade dasencarnações do imaginário, sem reduzi-las pela análise a uma mecânicadesvitalizada ou a uma estrutura simbólica sem corpo. Para conseguirisso, é preciso pertencer a algum grupo que compartilhe ideias comuns eter vivenciado pessoalmente algumas experiências.

A obra que Armindo Jorge de Carvalho Bião oferece ao leitor éum opus significativo desse procedimento ao mesmo tempo científico eartístico, racional e sensível. Esta obra me conduz, pelo seu propósito, ame deter num truísmo caro à Antropologia reflexiva contemporâneaque é importante lembrar: –”Toda teoria pressupõe um teórico”.Evidência que se torna um axioma epistemológico de primeiríssimaimportância na área que denominamos “Ciências da Arte”. A palavrateoria, originada do grego, pertence etimologicamente ao campo semânticoda visão, thea. Outrora, esta palavra significava contemplação, observaçãomeditada e refletida, conhecimento pelo olhar. Que o substantivo teatro

dela se origine, leva à reflexão… A neurobiologia contemporânea e apsicobiologia enfatizam que nós só percebemos o que aprendemos aperceber e o que desejamos perceber. Ator – e que ator!–, poeta,universitário, pedagogo, amante da vida, amigo fiel, poliglota, viajante,Armindo Bião não tem o olhar de quem seria o seu oposto. Sua thea lhe

Prefácio:

A Vida na Obra

A Obra na Vida

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

pertence de modo intrínseco e participa da elaboração de sua teoria,entendida não no sentido de doxa imperativa, mas de exposição coerentede um conjunto de conhecimentos, provas e aprendizagens.

O biografismo da Escola Naturalista Francesa considerava queuma relação de causa e efeito unia o autor à sua produção, de tal modoque a explicação de texto passava pelo estudo do escritor em seu meiobiológico, histórico e social. Marcel Proust – Contra Sainte Beuve – foi umdos primeiros a ter contestado essa visão determinista e intelectualista,convidando o leitor a apreender o autor pela sensibilidade.

Diante da curiosidade legítima que leva a se interrogar sobre aorigem das ”coisas” – ideias, fenômenos e comportamentos – parece-me necessário acrescentar o desejo de se apoderar das chaves quepermitem abrir a obra, de dilatá-la para além do que ela pode ter deelíptico e de claro-escuro. Quanto mais uma obra é rica, elaborada, densa,mais ela corre o risco de ser empobrecida pelo leitor que a interpretasegundo seus próprios limites, condicionamentos, hábitos e experiências.A palavra “monastério” escrita com a pena de um monge não tem osmesmos ecos semânticos que tem ao ser inserida num livro de arquiteturaou na narrativa de um ateu. A diversidade do sensível, isto é, a estesia,continua terra incógnita para quem não reconhece o seu próprio, ou dele édesprovido por atimia. Bergson em As Duas Fontes (1932) evocava “...o misticismo não diz nada, absolutamente nada, àquele que dele nãoexperimentou alguma coisa.”

»Neste sentido, qualquer obra lida é na realidade uma obra traduzida,ainda que ela não tenha sido passada para outra língua. A tradução é umafonte de mal-entendidos, aproximações, distorções, ilusões decompreensão, simplificações, castração. É sem dúvida por esta razãoque os discípulos são frequentemente acusados de serem mais dogmáticosque seus mestres. Tradutores da obra, eles esquecem que fomentam umaverdadeira transliteração da intuição primeira do autor: uma transcriçãosigno a signo de um sistema de escrita e de pensamento para outrosistema, o deles. É dessa forma que nascem os papas e a crença nainfalibilidade deles, tal como um criado investido das insígnias do príncipee que se dedicaria a legiferar.

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Armindo Bião

Armindo Jorge de Carvalho Bião, que em 1995 participa docolóquio de criação da Etnocenologia em Paris, é um indivíduo singular.Com isso quero dizer que essa singularidade anima sua adesão e suareflexão e dá ânimo e sangue novo à disciplina. Desde o primeiromomento, sabíamos que a Etnocenologia só poderia ser internacional.Isto é, livre de qualquer influência teórica imperial mas, pelo contrário,alimentada pela multiplicidade de visões do mundo propostas pelospesquisadores. O sabor cresce em função da diferença, escreve VictorSegalen em seu magistral ensaio sobre o Exotismo. O conhecimentotambém. Propósito duvidoso quando nosso tempo conhece sob opretexto de “aldeia global” a erradicação de dessemelhanças sutis. Emnome do universal – proclamado pelos dominantes, não pelos dominados– vivemos o tempo das hegemonias culturais servidas pelas potênciaseconômicas e políticas. O internacionalismo reivindicado é o único meiode aceder ao forte sabor do diferente. A faculdade de sentir o diferente,inerente ao artista é o primeiro antídoto contra a intelectualidade produtorade insípidas sínteses.

O gosto do diferente, o apetite das sensações e a revolta contra oaprisionamento são as chaves biográficas do Armindo pesquisador queeu levo em consideração. Nasceu na Bahia, numa cidade musical, colorida,compósita, sensual que embriaga o visitante. Nela, uma pluralidade dedevoções heterodoxas ocupa os espíritos e os corpos. Recém-nascido,Armindo foi batizado católico. Primeira ruptura. Pouco tempo após seunascimento, seus pais deixam a Igreja de Roma e sua liturgia encantada ese convertem à doutrina de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869),mais conhecido pelo nome de Allan Kardec. Persuadido de ser areencarnação de um druida, cujo nome adotou, Kardec, seduzido pelasmesas giratórias e a prática de comunicação com os espíritos, fundouum movimento positivista invocando a ciência e não a religião. No Brasil,muitos são seus discípulos reunidos em círculos, cuja atividade principalé organizar sessões de comunicação com os mortos. O menino Armindoé assim brutalmente jogado num estranho universo de adeptos reunidosem torno de um médium preocupado em alcançar as trevas do além.

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Aos domingos, enquanto a praia recebe as anatomias desnudasem busca do sol, ar e olhares, Armindo engonçado num terno se encontranuma sala desprovida de ornamentos e de iluminação, na qual ocorre areunião dos crentes, silenciosos, atentos à palavra do mestre e dos mortos.O dirigente professa ensinamentos que soam como lições escolares aosouvidos da criança. Seu tédio é grande. Caminhando ao lado de seuspais, ele cadencia seus passos para afugentar seu tédio, olha sorrateiramentee com inveja a nudez e a indolência dos banhistas. Ele é envolvido nasatividades do círculo espírita: visitas a presídios e hospitais, encontroscom a colônia japonesa. Uma tia solteira que mora com a família cuidadele enquanto o pai e a mãe trabalham. Ela o leva ao teatro, a museus.Um dia, foram à Faculdade de Medicina onde, nas salas abertas ao público,é possível contemplar as cabeças cortadas dos famosos bandidos doSertão, os Cangaceiros. A volta para casa é animada. Os pais ficam furiosos.No entanto, a cabeça cortada de Lampião e a de sua companheira MariaBonita não impressionou o pequenino Armindo mais do que umaexposição itinerante de embriões, da qual ele guarda uma terrívellembrança.

A família possui altas patentes das Forças Armadas, instituiçãosocialmente muito prestigiada, atraída pelos ideais positivistas. O filhofaz dez anos. Imediatamente, é tomada a decisão de enviá-lo à EscolaMilitar, para prosseguir seus estudos. Tempos de violência infligida. Épreciso deixar a tepidez de um meio feminino protetor para entrar nagaiola dos predadores. Os pequeninos machos arrogantes apertados emseus uniformes constituem uma sociedade hierarquizada pela arrogânciae pela força. No baixo escalão, estão os mais meigos, emotivos e sensíveis,dominados sem piedade pelos selvagens seguros de si mesmo. Algunsromances dão o tom. Ernst von Salomon:

Eis, tal e qual foram desde sempre, os cadetes! Podeis vê-los emperfeita ordem, corpo a corpo, em total alinhamento com o homem-base, esses adolescentes com o rosto ainda arredondado, mal lapidados?…Ei-los com suas cabeças raspadas, esses pequenos boçais espremidosem seus uniformes de tecido rústico de cores bárbaras, com botões

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Armindo Bião

dourados abotoados até o rígido colarinho, seus pezinhos nas botascravejadas e sobre suas frágeis espáduas as enormes e desproporcionaisdragonas. (Die Kadetten, postface)

Levantar na alvorada. Resultados escolares deploráveis. Armindo,nos seus pesadelos noturnos, vê-se atravessar a cidade completamentenu para ir à escola. Restam os sábados, dias de descanso. Um tioafortunado, proprietário de uma fábrica de velas e círios, amante decinema, convida a família para almoçar e depois, para sessões de projeção.Chaplin, Laurel e Hardy Comédias Musicais da Metro. Mesa animada,tagarelice, gastronomia, primos, prazer de rirem juntos e de partilharmomentos de viagem no imaginário. Movimentar-se, dançar, cantar. Ooposto da Companhia de Cadetes. Próximo à casa da família, além disso,um amplo terreno baldio recebia os ciganos e seu circo. Não há apenasespetáculos, palhaços, músicos, mas também a vida do clã, os casamentosfestivos que duram dias, as livres cambalhotas das crianças. Espetáculovivo, espetáculo na tela. O imaginário desabrocha sob todas as formas eincita a romper com a secura brutal da Escola Militar e a morbidez dodiálogo com os mortos. Pretender dançar e estudar balé é pedir muito.A dança é impura! Resta o teatro.

Allan Kardec responsabilizara-se pela contabilidade da BaraqueLacaze, pequeno teatro pertencente a um prestidigitador que lhe deu onome. O movimento espírita não era hostil à arte dramática, na qual elevia um meio de educação prosélito. Consultado, o médium responsávelpelo Círculo Espírita frequentado pela família aconselha o jovem ainterrogar os mortos por escrito. Estes dão uma resposta positiva.Armindo teria sido artista dramático numa vida passada. Sua missãoserá difundir a boa nova espírita através do teatro. Os prazeres das praiascontinuam longínquos. Sábados e domingos são dedicados aos palcos eàs práticas cultuais. Ocorrem encontros com os mais diversos cientistas,sempre em nome da busca positivista. Contudo, o responsável peloCírculo se preocupa: – “Não estou aqui para educar uma serpente queme morde”, diz ele a Armindo, no qual ele depositava grandes esperanças.O jovem, não obstante o teatro, não está bem. Ele acumula distúrbios

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psicossomáticos, taquicardia, úlcera do estômago. Finalmente, ele conseguedeixar a Escola Militar, após cinco anos de caserna e acabar seus estudosnum estabelecimento público. O Círculo Espírita é abandonado. Armindodescobre a cultura alemã ao folhear um álbum de fotografias pertencentea um parente que assistiu aos Jogos Olímpicos de Berlim. Ele vai para oInstituo Goethe, frequenta-o, aprende o alemão e começa a cursarFilosofia na Universidade, iluminado pela fenomenologia e sua concepçãodo corpo.

Fim dos anos sessenta. Os militares da linha dura vencem. Elesimpõem ao Marechal Costa e Silva um golpe contra o Congresso deBrasília. A universidade brasileira, os democratas afrontam a ditadura.Estudantes e professores ocupam as faculdades. Em 1969, Armindo épreso e, em seguida, é solto. Um ano mais tarde, após um happening

realizado na rua, nova interpelação. O Chefe da Polícia é um militarespírita. Ele conhece a família e aconselha Armindo a deixar o país. Comalguns amigos, ele decide partir para a Europa, via Rio de Janeiro, apósterem vendido tudo o que lhes foi possível para pagar a travessia. Lisboa,Londres. Viagem iniciática. Sem um tostão. Dormir ao ar livre, nosestacionamentos, nos bancos públicos. Alimentar-se de pão, leite e açúcar.Deixar crescer uma longa cabeleira caindo sobre os ombros. Em Londres,encontram-se Gilberto Gil e Caetano Veloso. O encontro é caloroso.Pequenos trabalhos. Escrever poemas e, sobretudo, dançar. Dançar emqualquer lugar, a qualquer momento numa espécie de abandono, de fuga,de permanente embriaguez. Na Bahia, a família se preocupa. As notíciasrecebidas de Londres são ruins. O filho estaria enlouquecendo? Decidiu-se repatriá-lo e hospitalizá-lo. O retorno apaga as preocupações. Armindoretoma o caminho da universidade. Prossegue suas aprendizagens emartes do espetáculo vivo. Em dança, ele é formado por um artista deorigem alemã Rolf Gelewski (1930-1988), discípulo de Mary Wigman,que chegou ao Brasil em 1960 a fim de ensinar na Escola de Dança daUniversidade Federal da Bahia, na qual ensinou até 1975, dando vida, aomesmo tempo, a uma comunidade espiritual, a Casa Sri Aurobindo.Com um mestre dessa estirpe, Armindo não demorou a atingir uma

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Armindo Bião

qualidade profissional a ponto de a Universidade lhe confiar, em 1979,um curso de Filosofia da Dança. Nova encruzilhada. As circunstâncias oconduzem aos Estados-Unidos. A Fundação Fulbright propõe 10 bolsasde estudos a brasileiros. Após um concurso nacional, cinco bolsas sãoconcedidas à Bahia, das quais uma a Armindo que parte para um períodode dois anos e meio em Minneapolis, Estado de Minnesota, a fim depreparar um Mestrado prático de Teatro. Ou seja, a realização de 7espetáculos! Lá, no Campus Universitário, ele se une a uma trupe franco-americana: o Théâtre de la jeune lune. A Companhia foi fundada em 1978por dois franceses – Dominique Serrand e Vincent Gracieux–, e osamericanos de Minnesota Barbara Berlovitz e Robert Rosen. Todos seformaram na Escola de Jacques Lecoq, em Paris. Infelizmente, cheio dedívidas, o teatro foi forçado a fechar suas portas em 2008, após trintaanos de brilhante criação. A descoberta da máscara neutra inspiraArmindo. Ele decide então ir a Paris a fim de dar continuidade a seusestudos doutorais. A escolha é tão fácil que ele deseja ter como orientadorde tese um professor da Sorbonne, sociólogo tão flamejante quantocontroverso, extraordinário e familiar ao Brasil, que professa algumasideias sobre o mito de Dionísio: Michel Maffesoli. Ele acaba de publicarem 1982 uma obra significativa: A Sombra de Dionísio. Armindo faz contato.O professor aceita almoçar. Será: “A Sombra de Dionísio – Contribuiçãopara uma Sociologia da Orgia”.

Eis brevemente delineada uma das chaves que permitirá ao leitordescobrir nas tintas desses textos a luxuriante experiência que lhes dáuma vida plena.

Jean-Marie PradierProfessor da Universidade de Paris Nord Saint-Denis Villetaneuse

(Paris VIII Vincennes Saint-Denis)

Laboratório de Etnocenologia da Maison des Sciences de l’Homme

Paris Nord

Tradução de Marcia Bértolo Caffé

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Armindo Bião

Préface:La vie dans l’oeuvreL’oeuvre dans la vie

Héritiers d’une culture de la vérité révélée, nous avons tendance àconsidérer les théories à la façon d’un diamantaire tout occupé à contemplerses pierres sans avoir la moindre idée de qui est allé dans les mines lesarracher à la terre. La perspective nouvelle que notre groupe d’amis aouverte en 1995 en l’appelant «ethnoscénologie» procède à l’inverse.Poursuivant l’allusion aux diamantaires, je dirai qu’à la différence descristallographes qui recourent à la méthode mathématique et descriptivepour l’étude de la structure des cristaux en négligant celle de leur formation,l’ethnoscénologue s’attache à démêler la complexité des incarnations del’imaginaire, sans les réduire par l’analyse à une mécanique dévitalisée ouà une structure symbolique sans chair. Il convient pour y parvenird’appartenir à une certaine famille d’esprit et avoir soi-même vécu uncertain nombre d’expériences.

L’ouvrage qu’Armindo Jorge de Carvalho Bião offre au lecteurest un opus significatif de cette démarche à la fois scientifique et artistique,rationnelle et sensible. Elle me conduit à m’arrêter, à son propos, sur untruisme cher à l’anthropologie réflexive contemporaine, utile à rappeler:- «Toute théorie présuppose un théoricien». Evidence qui devient unaxiome épistémologique de toute première importance dans le domainede ce que l’on appelle «les sciences de l’art». Le mot théorie qui nous vientdu grec appartient étymologiquement au champ sémantique de la vue,thea. Il signifiait jadis contemplation, observation méditée et réfléchie,connaissance par le regard. Que le susbtantif théâtre en soit né, donne àréfléchir… La neurobiologie contemporaine, la psychobiologie soulignentle fait que nous ne percevons que ce que nous avons appris à percevoir etque nous désirons percevoir. Comédien – et quel comédien! -, poète,universitaire, pédagogue, amoureux de la vie, ami fidèle, polyglotte,voyageur, Armindo Bião n’a pas le regard de qui serait son contraire. Sa

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

thea lui appartient en propre et participe à l’élaboration de sa théorie,entendue non pas au sens de doxa impérative mais d’exposition cohérented’un ensemble de connaissances, d’épreuves et d’apprentissages.

Le biographisme de l’École Naturaliste Française estimait qu’unerelation de cause à effet unissait l’auteur à sa production, de telle sorteque l’explication de texte passait par l’étude de l’écrivain dans son milieubiologique, historique et social. Marcel Proust - Contre Sainte Beuve -, futl’un des premiers à avoir contesté cette vision déterministe et intellectualiste,en invitant le lecteur à appréhender l’auteur par la sensibilité.

A la curiosité causale légitime qui conduit à s’interroger sur l’originedes « choses » - idées, phénomènes et comportements – il me paraîtnécessaire d’adjoindre le désir de se saisir des clefs qui permettent d’ouvrirl’œuvre, de la dilater au-delà de ce qu’elle peut avoir d’elliptique et declair obscur. Plus une œuvre est riche, fournie, dense et plus elle court lerisque d’être appauvrie par le lecteur qui l’interprète selon ses propreslimites, conditionnements, habitudes et expériences. Le mot « monastère »sous la plume d’un moine n’a pas les mêmes échos sémantiques quelorsqu’il figure dans un livre d’architecture ou le récit d’un athée. Ladiversité du sensible, c’est-à-dire de l’esthésis, reste terra incognita pour quine reconnaît pas le sien propre, ou en est dépourvu par athymie. Bergsondans les Deux Sources (1932) le rappelait: « ... le mysticisme ne dit rien,absolument rien, à celui qui n’en a pas éprouvé quelque chose. »

»En ce sens, toute œuvre lue est en réalité une œuvre traduite sanspour cela qu’elle n’ait fait le passage vers une autre langue. La traductionest source de malentendus, d’approximations, de distorsions, d’illusionsde compréhension, de simplifications, de castration. C’est sans doutepour cette raison que les disciples sont fréquemment accusés d’être plusdogmatiques que leur maître. Traducteurs de l’œuvre, ils oublient qu’ilsfomentent une véritable translittération de l’intuition première de l’auteur :une transcription signe par signe d’un système d’écriture et de pensée enun autre système, le leur. C’est ainsi que naissent les papes et la croyanceen leur infaillibilité, tel un valet revêtu des insignes du prince et qui seprendrait à légiférer.

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Armindo Jorge de Carvalho Bião qui participe en 1995 au colloquede fondation de l’ethnoscénologie à Paris, est un individu singulier. Jeveux dire par là que cette singularité anime son adhésion et sa réflexion etdonne du sang et du souffle à la discipline. Dès le premier moment, noussavions que l’ethnoscénologie ne pouvait qu’être qu’internationale. C’est-à-dire, détachée de toute emprise théorique impériale mais, tout aucontraire, alimentée par la multiplicité des visions du monde proposéespar les chercheurs. La saveur croît en fonction de la différence, écritVictor Segalen dans son magistral essai sur l’Exotisme. La connaissanceégalement. Propos redoutable quant notre temps connaît sous le couvertdu « village global » l’éradication des subtiles dissemblances. Au nom del’universel – proclamé par les dominants, non par les dominés - nousvivons le temps des hégémonies culturelles servies par les puissanceséconomiques et politiques. L’internationalisme revendiqué est le seul moyend’accéder à la forte saveur du divers. La faculté de sentir le divers, propreà l’artiste est le premier antidote contre l’intellectualité productrice defades synthèses.

Le goût du divers, l’appétit des sensations et la révolte contrel’enfermement sont les clefs biographiques d’Armindo chercheur que jeretiens. Il est né à Bahia, dans une ville musicale, colorée, composite, sensuellequi donne l’ivresse au voyageur. Une pluralité de dévotions hétérodoxes yoccupe les esprits et les corps. Nourrisson, Armindo est baptisé catholique.Première rupture. Peu de temps après sa naissance, ses parents quittentl’Eglise de Rome et sa liturgie enchantée pour se convertir à la doctrined’Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), plus connu sous le nomd’Allan Kardec. Persuadé d’être la réincarnation d’un druide, dont il a reprisle nom, Kardec, séduit par les tables tournantes et la pratique decommunication avec les esprits, a fondé un mouvement positiviste qui seréclame de la science, non de la religion. Au Brésil, nombreux sont sesdisciples réunis en des cercles dont la principale activité est d’organiser desséances de communication avec les morts. Le petit garçon Armindo estainsi brutalement jeté dans un étrange univers d’adeptes assemblés autourd’un medium affairé à joindre les ténèbres de l’au-delà.

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Le dimanche, tandis que la plage accueille les anatomies dévêtuesen quête de soleil, d’air, et de regards, Armindo engoncé dans un costumerejoint une salle banale dénuée d’ornements et d’illuminations où se tientla réunion des convaincus, silencieux, attentifs à la parole du maître et desmorts. Le meneur de jeu professe des exposés qui sonnent comme desleçons scolaires aux oreilles de l’enfant. Son ennui est grand. Tout enmarchant aux côtés de ses parents, il rythme ses pas pour chasser sonennui, lorgne avec envie la nudité des baigneurs et leur nonchalance. Il estentraîné dans les activités du cercle spirite: visites aux prisons et auxhôpitaux, rencontre avec la colonie japonaise. Une tante célibataire qui vitavec la famille prend soin de lui tandis que père et mère travaillent. Elle leconduit au théâtre, aux musées. Les voici partis, un jour, à la faculté demédecine où dans les locaux ouverts au public on peut contempler deprès la tête coupée des fameux bandits du Sertão, les Cangaceiros. Leretour à la maison est animé. Les parents sont furieux. Pourtant, le cheftranché de Lampião et de sa compagne Maria Bonita n’a guère plusimpressionné le petit Armindo qu’une exposition itinérante de fœtus dontil garde le souvenir horrifié.

La famille compte de hauts gradés de l’armée, institutionsocialement très honorable, frappée par l’idéal positiviste. Le fils atteintses dix ans. Bientôt, est prise la décision de l’envoyer poursuivre ses étudesau lycée militaire. Temps de violence subie. Il faut quitter la tiédeur d’unmilieu féminin protégé pour entrer dans la cage aux prédateurs. Les petitsmachos arrogants sanglés dans leurs uniformes constituent une sociétéhiérarchisée par la morgue et la force. Au bas de l’échelle se tiennent lesplus tendres, émotifs et sensibles, dominés sans peine par les sauvagessûrs d’eux-mêmes. Quelques romans ont donné le ton. Ernst vonSalomon :

Les voici, tels qu’ils furent depuis toujours, les cadets ! Les voyez-vous dans leur ordre parfait, au coude à coude, bien alignés sur l’hommede tête, ces adolescents au visage encore arrondi, mal dégrossi ? …Lesvoici, avec leur crâne tondu, ces petits mufles étriqués dans leur uniformede tissu rêche aux couleurs barbares, avec des boutons dorés boutonnés

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jusqu’en haut d’un col rigide, leurs petits pieds dans les bottes cloutées etsur leurs frêles épaules l’épaulette large, disproprotionnée. (Die Kadetten,postface)

Lever aux aurores. Résultats scolaires déplorables. Armindo dansses cauchemars nocturnes se voit traverser la ville tout nu pour aller àl’école. Restent le samedi, jour de détente. Un oncle fortuné, propriétaired’une fabrique de bougies et de cierges, amateur de cinéma, invite lafamille à déjeuner puis à des séances de projection. Chaplin, Laurel etHardy Comédies Musicales de la Metro. Table joyeuse, bavarde,gastronomie, cousins, plaisirs de rire ensemble et de partager des momentsde voyage dans l’imaginaire. Bouger, danser, chanter. L’envers de lacompagnie des Cadets. Près de la maison familiale, de plus, un vasteterrain vague accueille les gitans et leur cirque. Il y a non seulement lesspectacles, clowns, musiciens, mais aussi la vie clanique, les mariages festifsqui durent des jours, les libres gambades des enfants. Spectacle vivant,spectacle sur l’écran. L’imaginaire s’épanouit sous toutes ses formes etincite à rompre avec la sécheresse brutale de l’école militaire et la morbiditédu dialogue avec les morts. Prétendre danser et s’entraîner au ballet esttrop demander. La danse est impure ! Reste le théâtre.

Allan Kardec avait tenu la comptabilité de la Baraque Lacaze, petitthéâtre qui appartenait à un prestidigitateur dont il tenait le nom. Lemouvement spirite n’était pas hostile à l’art dramatique en qui il voyait unmoyen d’éducation prosélyte. Consulté, le medium responsable du CercleSpirite fréquenté par la famille conseille au jeune homme d’interroger lesmorts par écrit. Leur réponse est positive. Armindo aurait été artistedramatique dans une vie antérieure. Sa mission sera de diffuser la bonnenouvelle spirite par le théâtre. Les plaisirs de la plage sont toujours éloignés.Samedi et dimanche sont pris par les planches et les pratiques cultuelles.Des rencontres ont lieu avec des scientifiques les plus divers, toujours aunom de la quête positiviste. Le responsable du Cercle s’inquiète toutefois :-« Je ne suis pas là pour élever un serpent qui me mord », déclare-t-il àArmindo en qui il fondait de grands espoirs. Le garçon, en dépit duthéâtre, ne va pas bien. Il accumule les troubles psychosomatiques,

tachycardie, ulcère de l’estomac. Enfin, il parvient à quitter le lycée militaireaprès cinq années d’encasernement et à achever ses études secondairesdans un établissement public. Le Cercle spirite est abandonné. Armindodécouvre la culture allemande au détour d’un album de photos appartenantà un parent qui avait assisté aux jeux olympiques de Berlin. Il se rend auGoethe-Institut, le fréquente, apprend l’allemand et entre en philosophieà l’université, illuminé par la phénoménologie et sa conception du corps.

Fin des années soixante. Les militaires de la linha dura l’emportent.Ils imposent au maréchal Costa e Silva un coup de force contre le Congrèsde Brasília. L’université brésilienne, les démocrates affrontent la dictature.Etudiants et enseignants occupent les facultés. 1969, Armindo est arrêtépuis relâché. Un an plus tard, après un happening réalisé dans la rue,nouvelle interpellation. Le directeur de la police est un militaire spirite. Ilconnaît la famille et conseille à Armindo de quitter le pays. Avec quelquesamis celui-ci décide de partir pour l’Europe, via Rio, après avoir vendutout ce qu’ils pouvaient afin de payer la traversée. Lisbonne, Londres.Voyage initiatique. Sans le sou. Dormir à la belle étoile, dans les parkings,sur les bancs publics. Se nourrir de pain, de lait et de sucre. Laisser pousserune longue chevelure tombant sur les épaules. A Londres se trouventGilberto Gil et Caetano Veloso. La rencontre est chaleureuse. Petits boulots.Ecrire des poèmes, et surtout danser. Danser partout, à tout moment enune sorte d’abandon, de fuite, d’ivresse permanente. A Bahia, la familles’inquiète. Les nouvelles reçues de Londres sont mauvaises. Le filsdeviendrait-il fou ? Il est décidé de le rapatrier et de l’hospitaliser. Leretour efface les inquiétudes. Armindo reprend le chemin de l’université.Poursuit ses apprentissages en arts du spectacle vivant. En danse, il estformé par un artiste d’origine allemande Rolf Gelewski (1930-1988),disciple de Mary Wigman, arrivé au Brésil en 1960 afin d’enseigner àl’Ecole de Danse de l’Université de Bahia où il a exercé jusqu’en 1975,tout en animant une communauté spirituelle, la Casa Sri Aurobindo. Avecun tel maître, Armindo ne tarde pas à atteindre une qualité professionnelleau point que l’université lui confie en 1979 un cours de philosophie de ladanse. Nouveau carrefour. Les circonstances le conduisent vers les Etats-

Unis. La Fondation Fulbright propose 10 bourses d’étude aux Brésiliens.Après un concours national, cinq sont attribuées à Bahia, dont une àArmindo qui part pour deux ans et demi à Minneapolis, dans le Minnesota,afin d’y préparer un Master pratique de théâtre. Soit la réalisation de 7spectacles ! Là, sur le campus, il se lie avec une troupe franco-américaine :le Théâtre de la jeune lune. La Compagnie a été fondée en 1978 par deuxFrançais – Dominique Serrand et Vincent Gracieux -, et les MinnesotainsBarbara Berlovitz et Robert Rosen. Tous ont été formés à l’Ecole deJacques Lecoq, à Paris. Hélas, criblé de dettes, le théâtre a été contraint defermer ses portes en 2008, après trente ans de brillante création. Ladécouverte du masque neutre par Armindo l’inspire. Il décide alors d’allerà Paris afin de poursuivre ses études en doctorat. Le choix est d’autantplus facile qu’il envisage comme directeur de thèse un Professeur de laSorbonne, sociologue aussi flamboyant que controversé, original et familierdu Brésil qui professe une certaine idée du mythe de Dionysos : MichelMaffesoli. Celui-ci vient de publier en 1982 un ouvrage significatif :L’Ombre de Dionysos. Armindo prend contact. Le Professeur accepte undéjeuner. Ce sera : « L’ombre de Dionysos - contribution pour unesociologie de l’orgie ».

Voici brièvement esquissée l’une des clefs qui permettra au lecteurde déceler sous l’encre de ces textes, la luxuriante expérience qui leurdonne une vie pleine.

Jean-Marie PradierProfesseur à l’Université de Paris Nord Villetaneuse Saint Denis

(Paris 8 Vincennes Saint Denis)

Laboratoire d’Ethnoscénologie

à la Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord

DO TEATRO DE CORDEL

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A pesquisa constrói um corpus histórico, antropológico, poético edramatúrgico sobre uma personagem histórica espanhola e uma entidadeda umbanda brasileira.

A personagem histórica2

María Díaz nasceu numa importante família de Castela, provavelmentena região de Palência. Por volta dos 20 anos, em maio de 1352, ficouconhecida como Doña María de Padilla, ao encontrar o jovem Rei DonPedro (com 18 anos incompletos), de quem foi amante até a morte, porcausas naturais, em julho de 1361. Tiveram um filho (falecido criança) etrês filhas (duas das quais se casariam com filhos do Rei Eduardo III, daInglaterra), todos legitimados infantes reais posteriormente (ROS, 2003,p. 163).

D. María foi, segundo todos os que se dedicaram à matéria, a favoritado rei, que teve várias mulheres e cinco filhos reconhecidos (nenhum dosquais com a única incontestavelmente tida em vida como Rainha deCastela, Branca de Bourbon). De fato, D. Pedro só fez de D. MaríaRainha de Castela em abril de 1362 (nove meses após sua morte), aodeclarar, com a aquiescência das autoridades eclesiásticas de Sevilha, teremse casado em segredo, mesmo já tendo se casado duas vezes, formal epublicamente: com a nobre francesa Branca de Bourbon, em junho de1353; e com a portuguesa Joana de Castro (meia-irmã da “linda” Inês,

A Padilla: história, mito e teatro1

1 Comunicação In: CONGRESSO DA ABRACE, 5., 2008. Anais... Grupo de TrabalhoEtnocenologia, Belo Horizonte, 2008.

2 Um dos focos do projeto de pesquisa “Mulheres por um fio: inferno, purgatório eparaíso no Atlântico Negro”, motivo de bolsa de produtividade de pesquisa do CNPq(março de 2008 a fevereiro de 2011).

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

que também, como D. María, fora rainha depois de morta), em 1354(AYALA, 1991, p.100).

D. Pedro foi o único filho legítimo dos primos-irmãos (primos carnaispelos lados paterno e materno) o rei Afonso XI, de Castela, e a princesaportuguesa, Maria (“a fermosíssima Maria” citada em “Os Lusíadas” deLuís de Camões), irmã do também rei Pedro I, o Cruel (o portuguêsPedro de Inês de Castro), tio de seu homônimo espanhol. Além de terordenado a morte de sua legítima esposa, a rainha desprezada Branca,em 1361, D. Pedro foi responsável por outras mortes, dentre as quais ada amante de seu pai, Leonor de Gusmão. Com dois dos filhos ilegítimosde D. Leonor com seu pai, D. Pedro se digladiaria até a morte (em1369), tendo matado um, Don Fadrique, em 1358, e sido morto poroutro, Don Henrique II, de Trastâmara ([1333?]/ 1379), que lhe sucederia(ROS, 2003, p. 166). Talvez não tão curiosamente assim, dado oencadeamento de todo tipo de peripécia e dos muitos casamentosendógenos nesse contexto, o filho deste, o Rei Henrique III, se casariacom Doña Catalina, neta de D. Pedro e de D. María e filha de DoñaConstanza (filha deles) e do Duque de Lancaster (filho do Rei EduardoIII, da Inglaterra), selando, assim, a paz familiar, entre os descendentesdos meio-irmãos Pedro e Henrique, ambos assassinos de meio-irmãose ambos também tataravôs de Isabel, a Católica (1451/ 1504), neta deseus netos Catalina e Henrique III (AUGRAS, 2001, p. 305).

A personagem mítica

O romancero viejo (ROIG, 2007) espanhol, do tipo considerado por Pidal(1968, p. 301) “romances noticiosos” ou, por Díaz-Mas, “romances históricos”(2001, p. 97; s. p. 392), contém todo um Ciclo de Don Pedro el Cruel

(AUGRAS, 2001, p. 305), que prosperou em paralelo ao desenvolvimentodo país a partir do reinado de Henrique II, o inaugurador da dinastiados Trastâmara. Nesse conjunto de histórias cantadas em redondilhamaior, o rei derrotado, Pedro, é sempre descrito como o Cruel e Maríade Padilla como uma adúltera sedutora, dominadora e intrigante,pactuando com o mal. No romanceiro, o mal é a feitiçaria, que seria

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praticada, sobretudo, pelos judeus, relativamente bem toleradosanteriormente e que seriam perseguidos por Henrique II e seusdescendentes, até Isabel, a Católica, que os expulsaria da Espanha. Essesromances apareceram já no século XIV, mas cresceram em número eimaginação e divulgaram-se durantes os séculos XV, XVI e XVII, inclusivepor Portugal (sob o domínio espanhol de 1580 a 1640).

A Inquisição em Portugal e na Espanha deixou registradas invocações de“feiticeiras” a “Maria Padilha com toda sua quadrilha” e, também, àpassagem de algumas dessas mulheres “perigosas” pelo Brasil, entres osséculos XVII e XVIII (SOUZA, 1986, p. 168; AUGRAS, 2001, p. 308 etseq.; MEYER, 1993). Talvez aí resida a eventual relação histórica entre asduas personagens – a da tradição histórica e a do imaginário religioso –que prosperaria em nosso país, no âmbito dos cultos afro-brasileiros.A literatura romântica francesa e a ópera popular, que a partir dela sedesenvolveu, divulgariam, por todo o mundo, as belas “feiticeiras” ciganasandaluzas, tendo Prosper Mérimée, autor de Carmem, não apenasincluído uma nota em sua novela a propósito de Marie Padilla (1965, p.163; 1990, p. 92), como também se dedicado a escrever uma biografiade D. Pedro (1961). Aliás, foi a partir daí que Roberto Motta (1990, p.55; 1995, p. 182; 1998, p.114), pela primeira vez, relacionou a personagemhistórica espanhola à entidade religiosa brasileira.

O teatro espanhol – desde Lope de Vega – e também o francês, sobretudoo do período romântico, fariam de D. Pedro e D. María protagonista ea antagonista (e vice-versa), enfatizando sempre a crueldade do homem ea doçura da mulher. Esse antagonismo deve ter sido inspirado,principalmente, nas Crónicas de Ayala, de acesso mais restrito, contradizendoo muito popular romanceiro velho e, também, de modo radical, aconcepção brasileira – também muito popular - das diabólicas “mariaspadilhas” – e até mesmo a circunstância em que Carmen a invocava nanovela de Mérimée. Bem revelador do caráter bondoso, atribuído porAyala e pelos dramaturgos românticos a D. María de Padilla, é o título desua única biografia, escrita pelo especialista na história de Sevilha CarlosRos: Doña María de Padilla: el ángel bueno de Pedro el Cruel (2003).

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A personagem teatral

O caráter bondoso, de uma vítima do destino e dos desatinos do Rei D.Pedro, de D. María, aparece de modo evidente no repertório do teatro,como, por exemplo, no melodrama em três atos Maria Padilla, impressoem Lisboa em 1845, pela Tipografia de P. A. Borges, numa edição bilíngueitaliana (em versos, de Caetano Rossi) e portuguesa (em prosa), “para serepresentar no R. T. São Carlos”, como libreto da ópera de Caetano Donizetti.

Dividido em três atos, esse melodrama apresenta inicialmente Maria euma sua irmã chamada Inês, na casa de seu pai, celebrando o casamentodessa última e comentando o desejo de Maria de ser rainha, ainda queamando e sendo correspondida nesse amor por um plebeu, na verdadeo futuro Rei D. Pedro disfarçado. Ainda no primeiro ato, acontece orapto de Maria pelo falso plebeu e sua reação indignada, que ameaçamatar-se, mas que enfim se entrega e concorda que fique em segredoesse “matrimônio”.

O segundo ato se passa no Alcázar de Sevilha durante uma festa oferecidapor D. María ao já então proclamado Rei. O pai de Maria declara seudesejo de vingança por ter sido desonrado com o rapto de sua filha. Inêsinforma a Maria que seu marido matou um amigo do rei e Maria lhe dizque o rei o perdoou e que ela irá, em seguida, pedir perdão a seu pai,enquanto este é preso ao atacar o rei. No clímax da festa e da descobertado martírio do pai, Maria amaldiçoa-se e ao rei.No último ato, num quarto, ao lado do pai moribundo, que não a reconhece,Maria mostra-lhe a declaração escrita de seu casamento com o rei, mas seupai a rasga. Fora, louva-se Branca, a jovem rainha, que então se casapublicamente, por motivos de Estado, com D. Pedro. Maria leva seu paiaté a cena do casamento e interpela o rei, que declara preferi-la à novaesposa. Maria morre de emoção e o pai enfim a reconhece3.

3 Em outra peça teatral, em versos, de Villaespesa, da qual é também protagonista,Doña María de Padilla vive um final feliz, ao lado de D. Pedro, de quem não consegue,contudo, reverter a crueldade.

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Conclusão

O perfil de D. María traçado nesse melodrama é exemplar dacaracterização da personagem teatral que nos interessa e que contraria oromanceiro velho espanhol. Relativamente fiel às crônicas de Ayala (1991),esse perfil é também antípoda da caracterização da personagem míticada umbanda brasileira, possivelmente herdeira do imaginário ibérico,enraizado nos romances tradicionais e registrado pelos processosinquisitoriais.

O fato é que as artes do espetáculo, do romanceiro, do teatro, dos ritosreligiosos e dos autos da fé, têm sido boa cena para a história e o mitode Doña María de Padilla a Maria Padilha.

Referências

AUGRAS, Monique R. María Padilla, reina de la magia. Revista Española

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Armindo Bião

Em 1988, em Paris, à noite, próximo a várias encruzilhadas e em voltade uma mesa de lugar público de comes e bebes, com Roberto Motta eMonique Augras, tomo conhecimento de uma possível relação entreMaria Padilha, a entidade da umbanda brasileira, e Doña María de Padilla,que viveu na Espanha ([133_?] / 1361). Também então soube da alusãode Prosper Mérimée, em sua novela Carmem, a esta segunda personagem,como sendo um ente mágico invocado pelas ciganas andaluzas.

Depois disso, lembrei-me de que, em 1970, ao visitar rapidamente aCatedral de Burgos, na Espanha, com Luciano Diniz e Vera Lessa, eurira muito ao ver uma lápide da família Padilla, por associá-la à personagemdo imaginário brasileiro e por considerar a associação um absoluto nonsense.Só em 2002, portanto bem mais tarde, ao visitar os Alcáceres de Sevilha,em companhia de Luciano Diniz, eu percebi a importância de DoñaMaría de Padilla na história espanhola, ao saber que boa parte daqueleconjunto monumental teria sido construído para ela pelo Rei D. Pedro I,de Castela (30.08.1334/ 23.03.1369), conhecido inicialmente como OCruel e depois reabilitado como O Justiceiro.

A partir de então busquei reunir bibliografia sobre as possíveis relaçõesentre as duas figuras, para o que contei com a inestimável ajuda,inicialmente, de Roberto Motta e de Jerusa Pires Ferreira, e,posteriormente, de Marlyse Meyer, Monique Augras e Vivaldo da CostaLima, no Brasil, e de Jesus Cosano Prieto, Jesus Cañete, Carlos Alba eCarlos Ros, na Espanha. Finalmente, em 2007, elaborei um projeto de

Itinerário de María Padilla*

* Texto escrito em homenagem a Marlyse Meyer e em agradecimento a Jerusa PiresFerreira (que me sugeriu o título), por seu convite para participar, em São Paulo, deevento dedicado à pessoa e à obra dessa grande pesquisadora.

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pesquisa para o CNPq1, que comecei a desenvolver em março de 2008e que me possibilitou viajar por parte do itinerário de Doña María dePadilla, na Espanha, durante todo o mês de abril seguinte.

Foi quando, passando pelo Mosteiro de Astudillo, pela Catedral de Burgos,pela Cripta Real da Catedral de Sevilha e pelo Alcázar moçárabe dessacidade, por livrarias e bibliotecas em Paris, Madri, Sevilha e Lisboa, amplieimeu corpus iconográfico e documental de pesquisa. Nesse corpusdestacam-se, principalmente, as crônicas de Jean Froissart (2004) e dePero López Ayala (1991) e as imagens do retábulo e do panteão deAstudillo, do ataúde e dos Baños de Doña María de Padilla, em Sevilha.

O itinerário da vida e descendência de Doña Maria

Maria Díaz nasceu numa importante família de Castela, em local incerto,mas, provavelmente, na região de Palência. Talvez, ainda com menos de20 anos, em maio de 1352, passou a ser conhecida como Doña Maríade Padilla, ao encontrar o também então jovem Rei Don Pedro (entãocom 18 anos incompletos), de quem foi amante até sua morte, por causasnaturais (mas provavelmente em decorrência da peste), em julho de 1361.Tiveram um filho (falecido ainda criança) e três filhas (duas das quais secasariam com filhos do Rei Eduardo III, da Inglaterra), todos legitimadosinfantes reais posteriormente.

D. María foi, segundo todos os autores que se dedicaram à matéria, afavorita do rei, que teve inúmeras mulheres e cinco filhos reconhecidos(nenhum dos quais com sua única mulher realmente conhecida em vidacomo Rainha de Castela, Branca de Bourbon). De fato, D. Pedro só fezde D. María a Rainha de Castela em abril de 1362 (já passados nove

1 O projeto, intitulado: “Mulheres por um fio: purgatório, inferno e paraíso noAtlântico Negro”, foi aprovado pelo CNPq, para financiamento de uma Bolsa deProdutividade em Pesquisa, de nível 1A, para o período de março de 2008 a fevereirode 2011 e prevê, além da constituição e análise de um corpus, a produção de formasde espetáculo relativas a esse corpus.

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meses de sua morte), declarando formalmente, com a aquiescência dasautoridades eclesiásticas de Sevilha, ter se casado em segredo com ela,mesmo tendo sido formal e publicamente casado duas vezes: com anobre francesa Branca de Bourbon, com quem contraiu matrimônio emjunho de 1353, e com a portuguesa Joana de Castro (meia-irmã da “linda”Inês, que também reinara, como D. María, depois de morta), em 1354.

D. Pedro foi o único filho legítimo dos dois primos irmãos (primos carnais,tanto pelo lado paterno quanto materno), o rei Afonso XI, de Castela, e aprincesa portuguesa Maria (“a fermosíssima Maria” citada em “OsLusíadas” de Luís de Camões), irmã do também rei Pedro I, o Cruel (oportuguês Pedro de Inês de Castro), que, assim, era tio do seu homônimoespanhol. Além de ter ordenado a morte de sua legítima esposa, a rainhadesprezada Branca de Bourbon, em 1361, D. Pedro foi responsável poroutras inúmeras mortes, dentre as quais a da amante de seu pai, Leonor deGusmão. Com dois dos filhos ilegítimos que D. Leonor teve com seu paiD. Pedro se digladiaria até a morte, tendo matado um, seu meio irmãoDon Fadrique, em 1358, e sido morto por outro, Don Henrique II, deTrastâmara ([1333?] / 1379), que lhe sucederia como Rei de Castela.

Talvez não tão curiosamente assim, dado ao encadeamento de todo tipode peripécia e dos muitos casamentos endógenos nessa época e nessecontexto, o filho deste último, o Rei Henrique III, se casaria com DoñaCatalina, neta de D. Pedro e de D. María e filha de Doña Constanza(filha deles) e do Duque de Lancaster (filho do Rei Eduardo III, daInglaterra), selando, assim, a paz familiar, entre os descendentes dos meio-irmãos Pedro e Henrique, ambos assassinos de meio-irmãos. Pois, ambostambém seriam tataravôs de Isabel, a Católica (1451 / 1504), neta deseus netos Catalina e Henrique III.

O itinerário do mito de la Padilla

O romancero viejo (ROIG, 2007) espanhol, do tipo considerado por Pidal(1968, p. 301) “romances noticiosos” ou, por Díaz-Mas, “romances históricos”(2001, p. 97 et seq.; p. 392), contém todo um Ciclo de Don Pedro el Cruel

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(AUGRAS, 2001, p. 305 et seq.), que prosperou em paralelo aodesenvolvimento do país a partir do reinado de Henrique III, oinaugurador da dinastia dos Trastâmara. Nesse conjunto de históriascantadas, o rei derrotado, Pedro, é sempre descrito como O Cruel eMaría de Padilla como uma adúltera (“adúltera y concubina”, como achamou o Papa Inocêncio VI) sedutora, dominadora e intrigante,pactuando com o mal.

No romanceiro, o mal é identificado com a feitiçaria, que seria praticada,sobretudo, pelos judeus, relativamente bem tolerados anteriormente (oprincipal tesoureiro de D. Pedro fora um judeu, Samuel Leví (AYALA,1991, p. 85), por exemplo) e que seriam perseguidos por Henrique III eseus descendentes, até Isabel, a Católica, que os expulsaria da Espanha.Esses romances começaram a aparecer já no século XIV, mas cresceramem número e imaginação e divulgaram durante os séculos XV, XVI eXVII, inclusive por Portugal (sob o domínio espanhol de 1580 a 1640).A Inquisição em Portugal e na Espanha deixou registradas invocações de“feiticeiras” a “Maria Padilha com toda sua quadrilha” e, também, àpassagem de algumas dessas mulheres “perigosas” pelo Brasil, entres osséculos XVII e XVIII (MELLO; SOUZA, 1986, p.168; AUGRAS, 2001,p. 308 e s.; MEYER, 1993). Talvez aí resida a eventual relação históricaentre as duas personagens, a da tradição histórica e a do imaginário religioso,que prosperaria em nosso país, no âmbito dos cultos afro-brasileiros.

A literatura romântica francesa e a ópera popular, que a partir dela sedesenvolveu, divulgariam, por todo o mundo, as belas “feiticeiras” ciganasandaluzas, tendo Prosper Mérimée, o autor de Carmem, não apenasincluído uma nota em sua novela a propósito de Marie Padilla (1965, p.163; 1990, p. 92), como também se dedicado a escrever uma biografiade D. Pedro (1961). Aliás, foi a partir daí que Roberto Motta (1990, p.55; 1995, p. 182; 1998, p. 114), pela primeira vez, relacionou a personagemhistórica espanhola à entidade religiosa brasileira.

O teatro espanhol – desde Lope de Vega – e também o francês, sobretudoo do período romântico, fariam de D. Pedro e D. María os protagonistas

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(ou, talvez melhor, o protagonista e a antagonista, e vice-versa), enfatizandosempre a crueldade do homem e a doçura da mulher. Esse antagonismodeve ter sido inspirado, principalmente, nas Crónicas de Ayala, de acessomais restrito, contradizendo o muito popular romanceiro velho e,também, de modo radical, a concepção brasileira – igualmente muitopopular – das diabólicas “marias padilhas” – e até mesmo a circunstânciaem que Carmen a invocava na novela de Mérimée. Bem revelador docaráter bondoso, atribuído por Ayala e pelos dramaturgos românticos aD. María de Padilla, é o título de sua única biografia, escrita pelo especialistana história de Sevilha Carlos Ros: Doña María de Padilla: el ángel buenode Pedro el Cruel.

No itinerário da Padilla

Com a colaboração do pesquisador espanhol Carlos Alba, programamosuma visita ao Real Convento de Santa Clara de Astudillo2, hoje conhecidocomo Monasterio de Santa Clara, Museo y Palácio de Pedro I, após amplarestauração realizada ao longo dos últimos 50 anos, e à Catedral deBurgos, igualmente reformada, em período mais recente. Essa visita foide fato realizada nos dias cinco e seis de abril de 2008.

A 30 km da capital provincial de Palência e com cerca de 1200 habitantes,Astudillo encontra-se na comunidade autônoma de Castela e Leão, noNoroeste da Espanha, entre campinas e cerrados, pequenas elevações eo Rio Pisuerga. Declarada Conjunto Histórico-Artístico, Astudillo mantémboa parte de seu traçado urbano, medieval, e é dominada pelo morro

2 O mosteiro, um inusitado conjunto monumental moçárabe para o lugar em que seencontra, foi mandado construir em 1353 por D. María (que obteve para isso a bênçãopapal já no ano seguinte), na localidade que pertencera a Leonor de Gusmão, pordoação de seu amante o rei Afonso XI, pai de D. Pedro, que mandara matá-la, logoapós a morte de seu pai. D. Pedro, posteriormente, teria doado Astudillo a sua primeirafilha com D. María, Doña Beatriz, que viria a morrer em 1367, com, apenas, 13 a 14anos (OREJÓN, 1984, p. 60-62; ROS, 2003, p.167), agradando, assim, a sua preferida,do mesmo modo que fizera seu pai.

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com as ruínas do Castelo da Mota e as bodegas encravadas na rocha, trêsigrejas e alguns solares e, sobretudo, o Convento de Santa Clara e o Paláciode D. Pedro, onde funciona um museu. Aí fomos recebido pela IrmãMaría Pilar, que nos acompanhou, entusiasmada, numa visita de mais detrês horas, após outras três horas de caminhada e conversas pela cidade.

Dessa brevíssima visita e neste breve itinerário, vale registrar que, hoje,além do convento e do museu, há uma Calle e uma Glorieta de María dePadilla em Astudillo. Também vale registrar que, para nos levar a visitar opanteão de D. María, hoje vazio, pois seus restos mortais foramtranferidos para Sevilha por D. Pedro pouco após a morte de sua predileta,a Irmã María Pilar nos mostrou, por trás de uma parede e de uma portaenvidraçada, suas irmãs de calusura (inclusive as angolanas que ali resideme que ela nos fez questão de indicar), que rezavam e nos viam do outrolado. E, ainda, vale assinalar que o retábulo, que representa D. María e D.Pedro, os caracteriza como mártires da Igreja, portando palmas, e que airmã María Pilar sempre se referia a D. María de Padilla como A Rainha,e que se dispunha a colaborar comigo numa segunda eventual visita,para consulta aos arquivos do mosteiro, o que demandaria autorizaçãoeclesiástica especial. De fato, Simón y Nieto ([1896?]) detalha a existênciaaí de documentos preciosos sobre o itinerário de D. María, suas relaçõescom as autoridades católicas e com os comerciantes judeus.

Quanto à catedral de Burgos, também amplamente reformada desde osanos 1980 e com recentíssimas e radicais intervenções dos anos 2000, oitinerário da visita de cerca de três horas estendeu-se até o Museu deBurgos, numa busca vã da lápide que minha memória teima em registrarcomo tendo sido vista em 1970 – quando também foi motivo de riso.Buscávamos a referência à família ascendente de D. María e sóencontramos, no Museu, como destaque de escultura funerária, oSepulcro de Juan de Padilla, em estilo gótico isabelino de Gil de Siloé.Esse Padilla foi pagem da tataraneta de D. María, a Rainha Isabel, aCatólica e, além de homônimo do pai de nossa protagonista no presenteitinerário, talvez seja seu descendente. Assim, nossa decepção poderia setransformar talvez em esperança...

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Finalmente, chegamos a Sevilha, após seminários e pesquisas em Leiria eCaldas da Rainha, em Portugal, em Madri, na Espanha e em Paris, naFrança, antes de voltar a Portugal, para tentar ler, ao menos, um dosprocessos em que aparece Maria Padilha e toda sua quadrilha. Entre 25e 30 de abril, com a preciosa colaboração do biógrafo de D. María,Don Carlos Ros, que também nos concedeu uma entrevista, comentandoas principais fontes de referência sobre a biografada, tivemos acesso àcripta real que se encontra na Capela Real, normalmente fechada à visitaçãopública, onde se venera a Virgem dos Reis.

Aí, na principal capela da maior de todas as catedrais, sob o valiosoataúde de prata, onde repousam os restos de Fernando III o Santo,insepulto e incorrupto, pudemos, ainda que rapidamente, entre uma missae a abertura da Catedral aos turistas, fotografar os ataúdes de D. María eD. Pedro, que se encontram junto a quatro outros, dos quais apenas umpudemos identificar, por encontrar-se junto ao deles, formando a primeiradas duas filas de três urnas funerárias cada, o do Ynfante Don Fadrique. Osde nosso itinerário são identificados assim: RESTOS DEL REY DONPEDRO 1º. DE CASTILLA e RESTOS DE DA. MARÍA DEPADILLA ESPOSA DE DON PEDRO DE CASTILLA.

Novos giros e giras

Apesar do início deste itinerário ter sido por acaso, em Burgos, na Espanha,há quase 40 anos, seu percurso nos próximos três anos deverá ser feito,primordialmente, na Bahia, com leituras, reflexões, exercícios e jogos teatrais,possivelmente chegando, como previsto, a dramaturgias e a espetáculos.O que não exclui nova visita a Astudillo, Burgos e Sevilha, por exemplo.

O casal, que viveu itinerante e bastardo pelas encruzilhadas castelhanas eandaluzas, há mais de sete séculos, e que hoje repousa como legítimonuma catedral católica, das mais importantes do mundo, deverá serseguramente fonte de inspiração para nossas artes do espetáculo. Já nosfazem sonhar e imaginar soluções técnicas e cênicas (ou cinematográficas)as referências, por exemplo, aos Baños de Doña María de Padilla, no

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Alcázar de Sevilha3, onde “se cuenta que mientras se bañaba la guapa favoritahacían tertulia el rey y sus cortesanos. Y era uma galantería beber los caballeros delágua en el que se había bañado la dama” (ROS, 2003, p. 7).

A eventual parenta brasileira de D. María só poderá ser pesquisada emoutro itinerário, muito provavelmente passando pelo Rio de Janeiro epor Recife e talvez até mesmo pela cidade da Bahia. Mas aí são outrosgiros, novas (velhas?) giras, ainda a serem gerados.

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3 Em abril de 2007, este local do palácio de D. Pedro, se encontrava sinalizado por umaplaca de pedra, identificada com os números 17 e 21, ausente em abril de 2008 pormotivo que não pude investigar.

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Armindo Bião

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Fascinado, na infância, pelos folhetos de feira – a literatura de cordel e,simultaneamente, aterrorizado com as imagens que representavam oinferno e o ameaçador olho divino que tudo vê e vigia, da imagináriacatólica popular brasileira, tão presente no Nordeste – diverti-me muitocom os versos e as músicas que saíam daqueles folhetos, falando danatureza e da história divinas e, mais ainda, do logro do diabo.

Depois vim a descobrir a existência de um verdadeiro ciclo de folhetosde cordel sobre esse tema, o “ciclo do demônio logrado” (FERREIRA,1995, p. 23). Também descobri o grande poder, simultaneamentepedagógico e artístico, dramático e épico, da transposição dos folhetospara a cena teatral e espetacular, na cidade da Bahia, conforme tive aocasião de relatar em livro, resultante de minhas pesquisas (BIÃO, 2005).E, ainda, pude descobrir também a alegria da folia e o desbunde docarnaval de Salvador, onde, todos sabem, o diabo se encontra em suaprópria casa, no quadril dos baianos, como todos cantam1:

Faustos e diabos na encruzilhada dos discursos

germânicos e brasileiros*

* Comunicação apresentada em 24.10.2007, como parte da Programação In: SEMANAINTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS ANGLO-GERMÂNICOS, 15., 2007,realizada de 22 a 26 de outubro de 2007, pela Faculdade de Letras da UFRJ, com otema: Discursos, linguagens, culturas, a convite da professora doutora MariaMonteiro; publicada In: CADERNOS de Letras. Rio de Janeiro, UFRJ v. 23, p.25-48,2007.

1 Assim reza a música de Nizan Guanaes “We Are The World Of Carnaval”, gravadaoriginalmente por Ricardo Chaves, em 1991, e, com inusitado sucesso em nível nacional,pelo cantor Netinho, em seu CD Ao Vivo, em 1996, considerada o “grande hino doaxé e Carnaval de Salvador”, tendo sido gravada por muitos outros artistas baianos(MELO, Erick. Carnasite: aqui tem AXÉ. Salvador, 29 jan. 2007).

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Ah, que bom você chegouBem-vindo a SalvadorCoração do Brasil (do Brasil)Vem, você vai conhecerA cidade de luz e prazerCorrendo atrás do trioVai compreender que o baiano é:Um povo a mais de milEle tem Deus no seu coraçãoE o Diabo no quadrilWe are CarnavalWe are foliaWe are the world of CarnavalWe are Bahia

Pois foi nessa encruzilhada cultural globalizada que fiz, entre surpreso efascinado, outra descoberta: a Alemanha. De fato, nos armários e álbunsde fotografias de minha família se destacava um meu homônimo –Armindo (entre tantos outros – pelo menos mais quatro, em nossa família– desse mesmo prenome). De sobrenome Valverde Martins, esseArmindo, o irmão mais jovem de minha avó paterna, assistiu aos JogosOlímpicos de Berlim de 19362, foi poeta3 e administrador de cinemas,na região do cacau, no sul da Bahia4. Viveu também pelas cidades deIrará, Feira de Santana, Alagoinhas, Caldas de Cipó, Ilhéus e Itabuna,

2 Numa caderneta (em bom estado de conservação), de capa de couro (onde estãoimpressos o ícone da águia nazista, as palavras Olympiade e Berlin e o ano 1936),anotou impressões da viagem, preços de hotel, charutos brasileiros e cinemas; e, numálbum de fotografias (com mais de 50 fotos e em mal estado de conservação), fezmuitas anotações, identificando e comentando locais e pessoas.

3 Em 1945, publicou uma meia dúzia de sonetos, além de mais outros poemas, nosjornais Folha do Norte, de Feira de Santana e Irará Jornal.

4 Armindo Martins deixou álbuns de fotografias com fotos dos Cines Teatros Ilhéos eItabuna e dos cinemas Victoria Palace, Cine Pery e Elite Cinema. Rita Virgínia Argolloo cita como um dos proprietários do Cine Teatro Ilhéus In: ARGOLLO, Rita Virgínia.A Cultura dos Coronéis: O cinema como o “discreto charme da burguesia cacaueira”.Ilhéus, 2005.

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todas na Bahia e circulou, ainda, pelo Rio de Janeiro e São Paulo, naprimeira metade do século XX. Foi casado com sua sobrinha, filha desua irmã e de seu cunhado, um outro Armindo (esse Pedreira DantasBião, mais velho que o nubente, seu jovem cunhado, quase 30 anos). Aainda mais jovem noiva, Elizabeth Martins Bião, depois de casada, teveseus sobrenomes invertidos e passou-se a chamar Elizabeth Bião Martins.Não deixaram descendência.

Terá sido, provavelmente, e ao menos parcialmente, por conta dessainusitada descoberta nos arquivos familiares, que, em 1964 – ou 1965,aproximadamente com 14 anos de idade, fui estudar alemão no InstitutoCultural Brasil-Alemanha de Salvador, afiliado ao Goethe Institut, sediadoem Munique, na Alemanha.

No ICBA de Salvador permaneci então por cinco semestres, conhecinossa homenageada nesta XV Semana Interdisciplinar de Estudos

Anglo-Germânicos, Idalina Azevedo, a quem saúdo, e pude vislumbrarum pouco da língua e da cultura alemãs, inclusive algo – bem superficial– da obra do patrono da instituição, Johann Wolfgang von Goethe(FRANKFURT AM MAIN, 1749 — WEIMAR, 1832), além de umclássico do cinema expressionista, que me marcou profundamente, baseadoem uma das mais famosas obras de Goethe – e também de toda atradição literária alemã, dirigido por Friedrich Wilhelm Murnau (Bielefeld,Alemanha, 1888 – Santa Barbara, Califórnia, 1931), o Faust, de 1926.Assim, em minha encruzilhada pessoal, enredaram-se os anos de:

• 1926 - do filme de Murnau;• 1936 - das Olimpíadas documentadas para sempre (RIEFENSTAHL,

1938); da primeira edição de Mephisto, de Klaus Mann, filho deThomas Mann, autor de outra célebre versão do Fausto; e da primeiraviagem de Stefan Zweig ao Brasil (2006, p. 258);

• 1966 (quando abandonei o estudo do alemão);• e 2006, quando conheci a pesquisadora, nossa conterrânea da Bahia,

Jerusa Pires Ferreira (1995), autora do livro “Fausto no horizonte:razões míticas, texto oral, edições populares”, que me ajudaria a compor

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a parte mais importante dessa trama de fios de vida, que dá base àpresente comunicação.

Na numerologia popular, a repetição do número seis remete ao que sesabe...

Pois foi a partir do desenvolvimento de um projeto de pesquisa, financiadopelo CNPq para o triênio 2005/ 2008, que os personagens dos diabosme atraíram a atenção. Esse projeto, intitulado “Da cena ao impresso edo impresso à cena: teatro e literatura de cordel da Lisboa do séculoXVIII à Salvador do século XXI”, dá continuidade a minhas pesquisasna adaptação de folhetos de cordel para a cena. E, por outro lado,consolida a inserção da etnociência do espetáculo, a etnocenologia, quearticula arte e ciência, teoria e prática, criação e crítica (com a qual venhotrabalhando desde 1995), na grande área de conhecimento do CNPQ,denominada Artes, Letras e Linguística, mais especificamente na área dasArtes (BIÃO, 2007, 2005, 2004, 2000A, 2000B, 1999, 1996;GUINSBURG, 2006).

É fato que, anteriormente, com bons resultados pedagógicos e artísticos,eu já incluíra em trabalhos de sala de aula, com alunos do curso doBacharelado em Artes Cênicas, Habilitação em Interpretação Teatral, daEscola de Teatro da UFBA, o folheto “A História do Satanás Embriagadono Forró” (1997), de Jussandir Raimundo de Souza, publicadooriginalmente em 1982. Nesse folheto, o diabo é ridicularizado: impedidode entrar no forró por não ter convite, ele se disfarça de mulher e consegueter acesso. Ficando bêbado, promove pancadaria, durante a qual osconvivas descobrem tratar-se de um homem e, furiosos, obrigam-no afugir. Conta-nos o poeta:

Satanás desses pinotesQue deu sumiu pelo ar,Inda hoje não se sabePra onde o Cão foi parar[...]Só se sabe que o DiaboEm todas só leva azar.

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Mas a foi a partir de 20015, com a dramatização do folheto de JoséCosta Leite “O encontro de Lampião com a Negra Dum Peito Só”,que meu interesse por esses personagens se ampliou. Esse outro folhetorelata o recurso da população do Nordeste à feitiçaria contra a violênciade Lampião. A intriga culmina com a luta de Lampião com essepersonagem que, eu viria a saber mais recentemente, é uma pomba-gira(exu fêmea, mulher endiabrada)6 dos cultos afro-brasileiros(CAROSO;RODRIGUES, 2004, p. 336)7. Também aí conclui o poeta:

A negra deu uma dentadana venta de Lampiãodepois um galo cantou

5 Praticamente nesse momento, e a propósito da leitura pública de folhetos de cordel,a professora doutora Maria Monteiro, que me acompanhava à mesa durante aapresentação dessa comunicação, recordou-me de um evento datado de 1970. Durantea Semana Santa desse ano, buscando divulgar a apresentação de uma encenação daqual ambos participávamos como atores (a direção era de Haroldo Cardoso), noTeatro Vila Velha, de Salvador, cujo texto (“Joana D’Arc entre as chamas”, de PaulClaudel) havia, então, sido proibido pela censura, saímos (umas oito pessoas) doteatro, a pé, vestidos de roxo e carregando flores coloridas de papel crepom, para asentregarmos à Mulher de Roxo, personagem popular de rua de Salvador, na Rua Chile.Passando pela Praça Castro Alves, nos encontramos com Floripes, outra famosapersonagem de rua da cidade, que transgredia as fronteiras dos comportamentossociais masculinos e femininos e nos reunimos para que eu lesse, em voz alta, como umambulante de feira, um folheto de cordel então recém-lançado, Matou a família e

foi ao cinema, cujo autor não me recordo, que tratava de uma tragédia local,sobre um jovem de família abastada e muito conhecida na cidade, que havia matadovários de seus parentes de uma só vez, em sua própria casa. Juntou muita gente.Fomos todos presos e viramos notícia nos jornais da cidade.

6 CASTRO, Yeda Pessoa de (2001, p. 317) registra que a palavra possui origem linguísticabanto, para “Exu-fêmea”, “variante de Bambojira”, após lhe ter classificado como“entidade congo-angolana, também “Bombojira” e “Maria Padilha” (p. 167) e,finalmente, concluindo: “exerce influência sobre os namoros [...] representada nafigura de uma mulher sedutora, branca [...] protetora das prostitutas” (p. 317). LOPES,Nei (2003, p. 177) informa: “Do quimbundo pambuanjila (MATTA, 1983), pambu anjîla (RIBAS, 1979), encruzilhada”.

7 CAROSO, Carlos ; RODRIGUES, Núbia registram, entre muitas variantes de exus,as femininas “Maria Padilha”, citada no início da lista, e a “Nega de Um Peito Só”, aúltima dentre as listadas.

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e ela ficou sem açãona vista dele despiu-sedeu um estouro e sumiu-sesem deixar sinal no chão.

Em 2002, em novo espetáculo, reunimos dois folhetos de José Pacheco,o “Debate de Lampião com São Pedro” e “A chegada de Lampião noInferno”, concluindo, com um narrador dizendo assim:

Espectadores, vou terminarTratando de Lampião,Muito embora que não possaVos dar a explicação.Olhe: No céu não entrou.No inferno também não ficou.Por certo está no sertão.Quem duvidar dessa história,Pensar que não foi assim,Querer zombar do meu sério,Não acreditando em mim,Vá comprar papel moderno,Escreva para o inferno,Mande saber de Caim.

Esses três fragmentos de discursos brasileiros vieram a se somar a minharedescoberta – quase 20 anos depois da descoberta, através das pesquisasde Roberto Motta e Monique Augras – das muito prováveis relaçõesmatriciais da personagem histórica María de Padilla (1334 – 1361) comnossa Maria Padilha, mais uma pomba-gira (AUGRAS, 2001; MEYER,1993; MOTTA, 1995, 1990, 1988), dos cultos afro-brasileiros (a outraque já citei é a negra Dum Peito Só)8. Assim, apresentei novo projeto de

8 Sobre essa temática apresentei a comunicação “Mulher é o diabo!”, cujo título originalfoi “Feitiço feminino na literatura de cordel”. In: ENCONTRO NACIONAL DEPESQUISADORES DE LITERATURA DE CORDEL. 1, 2007 realizado pelaFundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, nos dias 9 e 10 de agosto na MesaRedonda “O feminino e o masculino na ótica do cordel”.

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pesquisa ao CNPq, intitulado “Mulheres por um fio no purgatório, infernoe paraíso do Atlântico Negro”, para o período de 2008 a 2001, do quala presente comunicação reelabora uma abordagem parcial e preliminar.

Voltemos a nossa encruzilhada Brasil-Alemanha. Encruzilhada essa que éa morada, segundo nosso imaginário afro-brasileiro de Exu. “Senhordas encruzilhadas e, principalmente, da encruzilhada dos sentidos e dosdiscursos, ele é um trickster[...]” (MARTINS, 1995, p. 56), que chegou aser muito impropriamente confundido com o diabo, pois na verdade setrata de um mediador entre o homem e o sobrenatural. A mediação,assim como a tradução, é uma coisa delicada, que merece muito cuidado.Não recebendo a atenção devida, pode se constituir numa grandeconfusão, pois aquele que traduz, em alguma medida, trai (traduttore

traditore).

De fato, a ideia de um cruzamento de caminhos, que permite múltiplasopções, mas que, para que seja ultrapassado, exige que apenas uma dessasalternativas seja a escolhida, é também o lócus da angústia existencialista,tão bem retratada por Jean-Paul Sartre9. E o que distingue uma coisa daoutra é o verbo, é a linguagem. É a linguagem que, simultaneamente, nosprende e nos liberta10. O meio é a mensagem. O mensageiro é Exu, éHermes, o três vezes grande, que nos ajuda a decifrar os textos, é Mercúrio,o deus dos pés – e capacete – alados, que rege o comércio entre asgentes.

E aqui eu começo a arriscar algumas afirmações a propósito do títulode minha comunicação. É como se nos discursos germânicos – queestou certo todos os presentes aqui conhecem mais que eu – prevalecesse,

9 Como, por exemplo, em sua trilogia Les Chemins de la liberté (Os caminhos da Liberdade),composta pelos romances L’âge de Raison (A idade da razão) (1945), Le Sursis (Sursis)(1947) e La Mort dans l’Âme (Com a morte na alma) (1949).

10 A propósito, como considerar a enorme criatividade brasileira na criação e registro deprenomes inusitados, tanto no Nordeste como alhures, tanto nas classes menosfavorecidas quanto nas outras, senão como afirmação libertária, o desejo divino denomear as pessoas – e as coisas – realizado?

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ao lado, dos sábios alquimistas que almejam todo o conhecimento epoder, os diabos em pessoa, parecidos com aqueles aterrorizantes daimaginária católica popular. Enquanto nos discursos brasileiros, registradosnos folhetos de cordel, ao lado dos simples mortais, simbolizados napersonagem maior do ferreiro, que forja os objetos da vida cotidiana,prevalecessem figuras mais prosaicas, também diabos, também parecidoscom aquelas imagens populares, mas, talvez, menos poderosos que osgermânicos, mais infantis, um tanto erês, um tanto exus.

Poderíamos fazer uma aproximação entre alquimistas e ferreiros, comoJerusa Pires Ferreira, que, ao descrever o que denomina de “tecido fáustico”(1995, p. 16), cita um estudo de Mircea Eliade (ano, p.79) intitulado,exatamente, Ferreiros e Alquimistas. Mas não temos competência nemapetência para tanto. Acompanhamos, no entanto, a argumentação dagrande pesquisadora, que nos informa:

Em várias mitologias é o ferreiro um poderoso agente de transformação.Rebelde, ligado ao ato prometeico do roubo do fogo e sua domação.Lúcifer torna-se semelhante aos deuses. Maldito, ao mesmo tempo, poreste domínio e pela aquisição de um ofício mágico. Pode-se lembrarOgum, no panteão ioruba e pensar também em Exu, num mediadorentre os homens e os deuses, indeciso entre perdição e a salvação”. (p.77)

Voltemos a nossa encruzilhada, que transita entre o oral, o impresso e oteatro, ainda seguindo os passos de nossa mestra Ferreira (1995), que nosinforma sobre as muitas edições populares, em diversos países, quecompõem o tecido fáustico, que tão bem descreve. Uma edição matricialseria o Das Volksbuch von Doktor Faust, de Johann Spiess, publicadooriginalmente em 1587, e desenvolvido em larga tradição de uma Teufel

Literatur. Sem dúvida, a obra-prima de Goethe se inscreve nessa mesmatrama, “nas confluências desses vários fios [...] na encruzilhada de muitosatalhos” (FERREIRA, 1995, p. 102). Nesse mesmo enredo fáusticosituam-se duas outras edições populares. Uma é a edição “facilitada” docélebre – e celebrado – Fausto, de 1928, da editora João do Rio de

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Savério Fitipaldi, citada por Ferreira (1995, p. 99). Outra é o “textointegral”, da coleção “A Obra-Prima de Cada Autor”, da editora MartinClaret, do Fausto (1808), de Goethe, traduzido por Agostinho D’Ornellas(Lisboa, 1836/ Niedervalluf, Alemanha, 1901), que nos informa, emuma de suas notas de tradutor: “Em alemão, diabo – Teufel – rima com- Zweifel – dúvida (2006, p. 488). E lugar da dúvida é a encruzilhada.

A opção pela presença do sábio alquimista, como protagonista dosdiscursos germânicos do que Ferreira definiu como tecido fáustico, nãoé sem consequências. Assim como, nos discursos brasileiros, esseprotagonista ser um ferreiro, ou mesmo um homem ou mulher comuns,não o é, sem consequências. Ainda que todos transitem pelas mesmasencruzilhadas que desafiam o ser humano em todas as latitudes. Nosdiscursos brasileiros do cordel, dominantemente picarescos ehumorísticos, que têm chegado, inclusive, ao cinema11, esse tecido fáustico,segundo Ferreira, teria levado Mário Pontes a falar de um verdadeiro“ciclo faustiano”, em seu trabalho intitulado “A presença demoníaca napoesia popular do Nordeste”, que ainda desconhecemos. Nos discursosgermânicos, sempre de acordo com Ferreira, aludindo às análises deHaroldo de Campos sobre o Fausto de Goethe, a “linguagem picarescade Mefisto, que o situa entre pícaro e malandro” ficaria mais circunscrita,ainda que assustadora para todos os autoritarismos. O sábio e o sério, nodiscurso germânico, apenas se aproximariam desse tom, nos diálogosde Fausto com Mefisto, o que, no discurso brasileiro espalha-se e espraia-se, conforme veremos, por toda a tessitura do texto. Aliás, o terrorromântico da moda do suicídio, que teria sido suscitado pelo romance

11 O filme O Homem que Desafiou o Diabo, que estreou em 28.09.2007, narra asaventuras, pelo Nordeste brasileiro, de um caixeiro-viajante, “espécie de malandrocharmoso e de bom coração”, que muda de identidade, invertendo seu sobrenome, deAraújo para Ojuara, e encontrando tanto criaturas míticas, quanto seu grande amor,até cruzar com o diabo, a quem engana, tornando-se seu desafeto. O roteiro, coescritopelo diretor Moacir Góes e por Bráulio Tavares, é baseado no romance As Pelejas deOjuara, de Nei Leandro de Castro. A produção é de Luís e Luci Carlos Barreto , WarnerBrothers e Globo Filmes.

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epistolar do jovem Goethe Os Sofrimentos do Jovem Werther, de1774, que acometeria Stefan Zweig em sua terra escolhida para adoçãoe para o futuro, também cruzaria os caminhos das mesmas encruzilhadas,numa confusa mistura de opção, danação, salvação e maldição, como nocaso da morte de Klaus Mann, “em consequência de uma overdose desoníferos”, em 194912.

O certo é que, seguindo as pistas de Ferreira e nossa própria intuição,vimos constituindo um corpus de folhetos brasileiros de cordel que nostem revelado a predominância, em nosso discurso – brasileiro, de ummisto de humor, amor e destemor. Mistura cruzada essa, que, criandosempre um suspense sobre o futuro (o nosso) e (o dos diabos) – semprepossivelmente à espreita – em nossa vida, constitui-se numa afirmaçãodessa mesma vida e da esperteza das pessoas mais simples, numaconvivência picaresca, de logros sucessivos, da dor, da morte, de todosos males e demônios. Também, de modo distinto em relação ao discursogermânico, no brasileiro aparece, talvez por conta de nossa tradiçãocatólica, barroca, da contra-reforma e da inquisição, a mulher comodiaba.

É aí que se apresenta a Negra Dum Peito Só e que se anuncia a brancaMaria Padilha, de “muitos peitos”, mistura de castelhana, andaluza, judiae cigana, encruzilhada de beleza, sensualidade, traição e feitiçaria(RIBEIRO, 2006; FARELLI, 2002). Essa criatura branca (tão pomba-gira quanto a outra, negra) evoca a amante do rei Pedro I Cruel (MOYA,1974), que para ela construiu o Alcázar de Sevilha (ROS, 2003), assimcomo também evoca a entidade invocada pelas feiticeiras portuguesasperseguidas pela Inquisição e pela cigana da ficção Carmen (MÉRIMÉE,1965). A mulher é aí cheia da tradição judaico-cristã-muçulmana, cheiade graça e de pecado, o diabo feito gente.

Para concluir eu gostaria de realizar para vocês uma leitura dramatizadade um dos seguintes folhetos, que passo agora a citar: “A BRIGA da

12 Conforme consta da segunda orelha da edição brasileira de Mefisto, de 2000.

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mãe do cão com Lampião no inferno”; BORGES, José Francisco. “Amulher que botou o diabo na garrafa”; LEITE, José Costa de. “O encontro de

Lampião com a Negra Dum Peito Só”; MADALENA, Zé da. “Carta de Satanás

ao amigo George Bush”; OLIVEIRA, Hermes Gomes de. “A mulher que o

diabo surrou Ou a Espera da Vingança”; OLIVEIRA, José Edessom de. “A

história do homem que enganou o diabo e ficou sendo rezador” e “A moça brasileira

que engravidou de um jegue na Inglaterra”; OLIVEIRA, Severino Gonçalvesde. “Discussão de Severino Gonçalves com a negra de um Peito Só”; PACHECO,José. “Os mamadores da negra dum peito só”; SANTOS, De Enéias Tavares.“A moça que passou o carnaval no inferno”; SANTOS, Enéias Tavares dos. “O

Encontro dum Feiticeiro com a Negra Dum Peito”, “O amor de Maristela e a luta

de um boiadeiro” e “O homem que morreu duas vezes”; SILVA, MinelvinoFrancisco. “História da mulher xingadeira e o menino que nasceu com dois chifres”;SILVA, José Bernardo da. “A chegada de Lampião no Inferno”; SILVA, JoséBernardo da. “Debate de Lampião com São Pedro e ABC do Amor”; SOARES,de José. “A Negra de um peito Só”; SOUZA, Jussandir Raimundo de. “AHistória do Satanás Embriagado no Forró”; TIJUBINA, MC ; PINTO,Botelho. “Vizita de Satanás ao baile funk”.

Para promover uma inversão bastante expressiva em relação àscaracterísticas dominantes no discurso germânico, eu escolhi, não semuma certa dúvida e alguma angústia, ultrapassar a encruzilhada em queme coloquei aqui perante vocês, lendo o folheto de J. Borges A Mulher

que Botou o Diabo na Garrafa:

• Havia lá no Sertãouma mulher bem casadacom um homem ciumentodesse que não vale nadadesses machão que nuncadeixa a mulher sossegadaA mulher era fielmas ele a tocaiavabrigava sempre com elaela chorando juravamas de toda forma ele

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na mulher não confiavaAté que chegou um pontodele espancar ela um diaela apanhando e dizendoque aquilo não mereciae era de chegar a horaque ela se vingariaE ele bruto como eranão confiava em ninguémtodo dia era uma brigae naquele vai e vemo diabo apareceupara faturar tambémO homem foi trabalharencontrou um molequinhopinotando em sua frenteque ele achou engraçadinhoele pulava e sumiabem no meio do caminhoO homem disse ao moleque:• Você é inteligente

• O menino disse:• Eu sei

tudo quanto você senteme pague que eu lhe sirvoem tudo daqui pra frenteEu sei que és ciumentoe na mulher não confiase me deres tua almaeu tocaio todo diapra onde ela for eu voute juro com garantiaMas para isso é precisoeu ir contigo morareu estando em tua casavocê pode viajare garanto que não deixosua mulher namorar

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• Ele levou o negrinhochegou lá disse a mulher• está vendo este negrinho

ele é cheio de misterele vai seguir seus passosaté quando ele quizer• A mulher disse ao marido• Você não tem jeito nãoÉs ciumento demaisSem alma e sem coraçãoE este moleque é tão feioparece filho do cão• O homem lhe respondeu• ele é quem vai te seguir

amanhã vou viajarporque eu preciso ir• e disse para o moleque• procure bem me servir

• O moleque respondeu-lhe• pode seguir sossegado

deixe sua mulher em casaque eu não saio do ladomesmo que ela não mereçamas por você fui contratado• Na saída da viagemela lhe fez um carinhoe lamentou porque eleia viajar sozinhoe depois ela começouconversar com o negrinhoO negrinho disse a ela• não vou sair do seu lado

e por esse meu trabalhovou ser bem recompensadoseu marido me entregouvocê pra eu ter cuidado• A mulher sorriu e disse:• muito bem meu camarada

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

vou lhe propor uma apostapra ver se você se agrada• O moleque disse:• diga

• e deu uma gargalhadaA mulher disse ao moleque• eu tomei uma atitudete convido para um banhono meio daquele açudeque o banho é necessáriopra se ter melhor saúde• O moleque disse• eu topo

se a senhora for peladae quero saber da senhoraa aposta solicitadae vamos cair na águanessa noite enluarada• A mulher disse:• a apostaé para nós mergulhare se eu sair primeirovocê vai me tocaiarpra o resto da minha vidasem eu lhe atrapalhar• O moleque disse:• aceito

e se eu sair primeiro• ela disse:• eu lhe botonuma garrafa ligeirobato a cortiça; e do mundovocê não sente nem cheiro• O diabo disse:• tá certo

vamos logo ao açudeque estou um pouco sujoe quero lavar meu grude

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e ver também o seu corpoque a qualquer homem ilude• E assim foram ao banhoe a mulher titou a roupao diabo disse:• é muito boa

igualmente pão com sôpavocê é dessas mulheresque faz defunto dá pôpa• O diabo caiu na águamergulhou foi para o fundoa mulher vestiu a roupalargou a perna no mundofoi procurar cabarée ambiente vagabundoPassou a noite na zonafez sexo de todo jeitonamorou 110 homenslevando tudo de eitoe dizendo• aquele maridoé assim que eu lhe ajeito• Procurou se divertirnaquela vida sacanatomando conhaque e vinholicor cerveja e canasem se lembrar do molequepassou mais de uma semanaE depois ela tranzoupor cabarés e motelsaiu dizendo:• eu agoragozei a lua de melvou voltar ao açudee ao marido ser fiel• E chegando no açudetirou a roupa e entroue mergulhou dentro d’água

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o diabo se levantouolhava para todo cantoe com a mulher se espantouDisse ele:• essa mulher

é das que o diabo gosta·naquilo a mulher saiuo diabo estava de costadisse a mulher:·saiu primeiroe eu quem ganhei a aposta·Pegou o pobre molequee na garrafa botoubateu bem a cortiçadentro da água jogoue saiu se rebolandopra sua casa voltouQuando o marido chegouela lhe abraçou chorandodisse• Eu choro é de saudade• e foi logo lhe beijandoe ele pelo molequefoi logo lhe perguntandoA mulher lhe respondeutoda cheia de alegriae disse-lhe• o molequinhome fez boa companhiae ele desapareceudaqui já faz mais um dia• O homem abraçou elae entrou em seu aposentoa cabeça cheia de galhatinha até chifre cinzentomas é isso que mereceo homem que é ciumentoFoi essa mulher que botou

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o diabo na garrafanos cabelos do maridonão entra pente nem marrafahoje é corno chaleiraque aguentou chifre e abafa

O que surpreende, de certo modo, nesse folheto, é uma aparente críticaao machismo, tão recorrente, junto a um caráter conservador e moralista(CAMPOS, 1959; PROENÇA, 1977), politicamente incorreto egeralmente racista (MOURA, 1976; LESSA, 1982; SANTOS, 1989), damaioria dos poetas de cordel. Mas, na verdade, a mulher é apresentadacomo um ser mais “diabólico” que o próprio diabo, que engana, nãosomente a este, mas também a seu marido ciumento.

De todo modo, nem alquimista nem ferreiro, a protagonista desse folhetoé uma mulher simples e comum, de quem o marido “ciúma”.Possivelmente se trata de personagem mais vitoriosa em sua lide – lida –com o diabo do que, por exemplo, Lampião ou o ferreiro dos folhetospopulares do nordeste brasileiro. Pois esses são, de certa forma,condenados à maldição de vagar pelas encruzilhadas, como os própriosdiabos nordestinos, condenados a vagar, sumir e reaparecer. Assim, aí,nessa encruzilhada, demônios e humanos são todos farinha do mesmosaco.

Para concluir, de verdade, e deixar a última palavra com o poeta, eugostaria de retornar a um folheto, considerado um clássico por Ferreira(1995, p. 27 e seguintes) e também por outros pesquisadores, que trataramdo tecido fáustico e do ciclo faustiano, nas diabruras dos discursosbrasileiros. Trata-se de Jesus, São Pedro e o Ferreiro da Maldição, deFrancisco Sales Arêda, cuja primeira edição “teria saído por volta de1950” (p. 28), no ano em que nasci. Nele, o pobre ferreiro acolhe Jesuse São Pedro para descansarem em sua casa e ferra, muito gentilmente ea pedido, o burrinho que os servia. Jesus, como não tinha dinheiro,oferece-lhe atender a três pedidos. São Pedro insiste para que o ferreiropeça o reino do céu. Mas o ferreiro pede:

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• que quem se sente em um seu banco só se levante quando ele quiser;• que quem suba num seu pé de figueira fique lá até quando ele queira;• que quem entre num seu saco, fique dentro até morrer.

Jesus concede os três pedidos, conforme combinado. Sozinho, o ferreiroarrepende-se por não ter pedido riqueza e invoca o diabo para resolverseu problema. O satanaz (sic) atende-o, mediante contrato de 10 anos,em troca de sua alma. Ao cabo desse prazo, ao vir cobrar a alma doferreiro, o satanaz é logrado – com o banco que prendia gente. Novocontrato é feito e novo logro – com a figueira. O terceiro contrato –logrado com o saco, gera proposta do satanaz de jamais lhe perseguir, sefosse solto do saco, o que gerou mais um contrato. Enfim, o ferreiromorre e busca abrigo no céu, mas São Pedro lhe nega entrada. Noinferno, o satanaz também não quer conversa. Acontece então com oferreiro o mesmo que ocorrera com Lampião, no trecho do texto doespetáculo que aqui já li anteriormente. Ele fica vagando para semprepelo sertão do Nordeste.

Enfim, conclui o poeta:Assim ficou o ferreirosem achar colocaçãonem no céu nem no infernonão encontrou proteçãoficou vagando se chamaFerreiro da Maldição

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“Mulher é o diabo!”*

Agradeço muito o honroso convite, parabenizo a organização do eventoe declaro minha alegria de estar aqui com vocês, entretanto, numa situaçãoparadoxal: em casa (pois esta é também a casa de nosso conterrâneo e detodos os brasileiros que prezam o conhecimento e a ética) e com vocês,amigos, colegas, professores, muito à vontade, mas, também, fora dolugar, pois não sou um especialista em literatura de cordel, sou apenasuma pessoa de teatro, interessada no cordel. E meu interesse de pesquisana matéria visa sempre à cena, à encenação.

Minha comunicação está dividida em quatro partes: o sujeito, o trajeto, oobjeto e o projeto, evocando Gilbert Durand e sua ideia de trajetoantropológico (DURAND, 1969, p. 38 et seq.), bem como a etnocenologia(PAVIS, 1999, p. 152; GUINSBURG, 2006, p. 139; BIÃO, 2007, p. 21-42).

O sujeito

Atraído pelas histórias contadas na literatura de cordel desde a infância, videslumbrado, por volta dos 15 anos, essas histórias transpostas para opalco, pelo diretor teatral João Augusto Azevedo (AMARAL FILHO,2005), no Teatro Vila Velha, em Salvador. O que foi sempre – e tambémo era então – motivo de riso se revelou nos comportamentos identificadoscomo masculinos e femininos e nas disputas que se travavam entre aspessoas por questões de desejo sexual, dinheiro e cor da pele.

* O título original dessa comunicação, ainda inédita, para o ENCONTRO NACIONALDE PESQUISADORES DE LITERATURA DE CORDEL, realizado pela FundaçãoCasa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, nos dias 9 e 10 de agosto de 2007, na MesaRedonda “O feminino e o masculino na ótica do cordel”, foi “Feitiço feminino naliteratura de cordel”.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

O trajeto

Tendo participado, como ator, de uma memorável montagem do clássicode Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida, dirigida por MauriceVaneau, em 1979, no Teatro Castro Alves, também em Salvador, iniciei,no ano seguinte minhas atividades como encenador de folhetos de cordel,interessado, inicialmente, pela personagem João Grilo, o fraquinho esperto.Nos anos 1980, estudando o romanceiro baiano com Idelette-MuzartFonseca dos Santos, tomei conhecimento preliminar de metodologia dapesquisa em oralidades, etnotextos e performances poéticas.

Mais recentemente, a partir de projetos de pesquisa, estruturados naperspectiva teórico-prática da etnocenologia (e com apoio do CNPq,passei a me dedicar, de modo regular e contínuo a essa atividade, fazendodas questões de gênero, raça e sexualidade o foco de encenações críticas,baseadas no humor. Graças a meus alunos, também passei a privilegiarfolhetos sobre o maravilhoso e a articular minhas experiências deencenação com a vivência deles, junto aos desenhos de animação datelevisão.

O objeto

Um tipo de personagem viria a se impor nesse contexto: as mulheres.Dentre elas, as mais identificadas com o sobrenatural e o antissocial. Ocaráter conservador e moralista (CAMPOS, 1959; PROENÇA, 1977),politicamente incorreto e geralmente racista (MOURA, 1976; LESSA,1982; SANTOS, 1989), da maioria dos poetas de cordel, parece provocarhumor – e reflexão crítica? – com suas descrições de personagens dessetipo.

Conforme já comprovado, em pesquisas anteriores (BIÃO, 2005), aadaptação de folhetos de cordel para a cena, realizada em conjunto comos atores, pode lhes permitir a experimentação e a prática de algumasdas mais importantes vertentes da interpretação teatral no Ocidente. Uma,de extração clássica, representada pela encenação de textos poéticos com

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rimas e métricas distintas da linguagem cotidiana, e duas outras, dereferência mais contemporânea. Trata-se, por um lado, da proposição deConstantin Stanislavski, definida como dramática (da ação direta depersonagens em interação) e, em boa parte, emotiva e realista, o quedesafia os atores – levados a utilizarem textos em verso nas falas de seuspersonagens, como ocorre usualmente nos folhetos de cordel – assim,então, muito distantes de qualquer perspectiva realístico naturalista. E,por outro lado, trata-se da proposição de Bertolt Brecht, descrita comoépica (centrada na narrativa crítica das ações envolvendo personagens) esocialmente crítica, o que também desafia os jovens atores, ao lidaremcom material dramático e literário, via de regra, de caráter conservador.

O projeto

A partir de jogos e exercícios de aquecimento, relaxamento e improvisação,bem como informados pelo estudo do corpus diretamente pertinente àcriação de personagens, os alunos, atores, serão levados a considerar, porexemplo, de modo preliminar, as características gerais de personagens,que deverão motivar o seu trabalho individual e em grupo. Recentemente,construímos, assim, para estudo e trabalho com novos alunos, três distintoscorpus de folhetos:

• o primeiro, com cinco folhetos dedicados a intriga envolvendopersonagens “ [...] femininos” (FAGUNDES, 2003) e “ [...] diabólicos”(MAIOR, 1975): A briga da mãe do cão com Lampião no inferno,de José Costa Leite; História da mulher xingadeira e o menino

que nasceu com dois chifres, de Minelvino Francisco Silva; A mulher

que o diabo surrou, de Hermes Gomes de Oliveira; A mulher que

botou o diabo na garrafa, de J. Borges; A moça que passou o

carnaval no inferno, de Enéias Tavares (editado por Erotildes Mirandados Santos);

• um segundo corpus: reunindo dois folhetos de matriz tradicional,idealizando a mulher, a História da Donzela Teodora e O poder

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

oculto da mulher bonita, ambos de propriedade de José Bernardoda Silva; e dois, de um de novo modelo, com inspiração feminista,Mulher também faz cordel e A mulher de sete vidas, ambos deSalete Maria da Silva;

• e mais um terceiro corpus, constituído por cinco folhetos no formatodas tradicionais pelejas, opondo um homem e uma mulher (ainda quetambém se encontre, mais raramente, peleja entre duas mulheres, comoé o caso da Peleja de Ana Roxinha com Maria Roxinha, de Caetano):Peleja de José Gustavo com Maria Rôxinha (sic) da Bahia, deJosé GUSTAVO; Peleja de Severino Borges com Patativa do

Norte, de Severino Borges Silva; Peleja de Severino Simeão com

Ana Roxinha, de João José da Silva; Peleja de José Costa com

Ana Roxinha, de José Costa Leite; A peleja entre a mulher e o

marido preguiçoso, de Jotacê.

As primeiras leituras e reflexões sobre essas três opções já nos conduziramà busca de um novo corpus, bem como de um maior aprofundamentosobre o escopo de referência para sua constituição. Assim, já a partir deum superficial conhecimento da classificação de contos de Aarne-Thompson, comentada, retomada e aplicada ao Brasil por Bráulio doNascimento (2005, p. 23-33), identificamos nosso interesse no âmbitodos “contos folclóricos comuns”, particularmente em duas de suas setevariantes: adversários sobrenaturais; e ajudantes sobrenaturais(NASCIMENTO, 2005, p. 33). Por outro lado, identificamos duas obrasfundamentais de referência para nosso trabalho futuro junto aos alunosatores (FERREIRA, 1992; FERREIRA, 1995)1.

Finalmente, construímos um corpus de cinco folhetos, todos tendo emseus títulos o nome de uma personagem do panteão da umbanda

1 Registro os meus mais sinceros agradecimentos a Jerusa Pires Ferreira e a Bráulio doNascimento, que, por sua generosidade, abririam-me caminhos maravilhosos, até entãoinsuspeitados em sua grandiosidade; e a Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, por seucontínuo e enriquecedor estímulo para a pesquisa.

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brasileira, na categoria das pombas-giras2, que, assim, deve ser o foco defuturas encenações: Os mamadores da negra dum peito só, de JoséPacheco; A Negra de um peito Só, de José Soares; Discussão de

Severino Gonçalves com a negra de um Peito Só, de SeverinoGonçalves de Oliveira; O Encontro dum Feiticeiro com a Negra

Dum Peito Só, de Enéias Tavares dos Santos; e O encontro de Lampião

com a Negra Dum Peito Só, de José Costa Leite3.

À guisa de exemplo de organização do texto de um folheto, para leituradramática e encenação, transcrevo, já assim organizado, o texto desseúltimo folheto citado, do qual, neste momento, farei, também, minhaperformance de sua leitura teatral:

• Vamos ouvir a históriada velha Rita Gogóafamada e respeitada na arte de catimbódando toda explicaçãoe a Luta de Lampiãocom a Negra dum Peito Só.

• Sabemos que Lampiãona fama de cangaceiroo seu nome amedrontouo Nordeste Brasileirocom repercussão tamanhaa sua grande façanhaassombrando o mundo inteiro.

• No ano de 32o bandido Lampiãoandava pelo Nordestede bacamarte na mão dizendo:• ninguém me zangue• gravando o nome com sanguena história do sertão.

• A velha Rita Gogóresidia no sertãoera bamba no feitiçoe o povo da regiãosem ter compaixão nem dómandava fazer catimbópara matar Lampião

2 Yeda Pessoa de Castro registra que a palavra possui origem linguística banto, para “Exu-fêmea”, “ [...] variante de Bambojira” (2001, p. 317), “ [...] entidade congo-angolana,também “Bombojira” e “ [...] Maria Padilha” (CASTRO, 2001, p. 167), “exerce influênciasobre os namoros [...] representada na figura de uma mulher sedutora, branca [...]protetora das prostitutas” (CASTRO, 2001, p. 317). Carlos Caroso e Núbia Rodriguesregistram, entre muitas variantes de exus, as femininas “Maria Padilha”, citada no inícioda lista, e a “Nega de Um Peito Só”, a última dentre as listadas (CAROSO;RODRIGUES, 2004, p. 336).

3 Aqui, mais uma vez, devo consignar agradecimentos, agora a toda a equipe da FundaçãoCasa de Rui Barbosa, especialmente a Rachel T. Valença, a Sylvia Nemer, a Judith Mariado Nascimento Kuhn, enfim, a toda a equipe do Centro de Pesquisa e da Biblioteca, queme facilitou o acesso ao precioso acervo da FCRB, permitindo-me constituir, enfim, ocorpus de folhetos citados neste parágrafo, dos quais, até então, eu só conhecia o último.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

• .E a velha começoufazendo uma paneladapra botar pra Lampião ali, numa encruzilhadanuma noite sem ter luae a panelada suafoi ficando preparada.

• Dentro da panela delatinha um rabo de tatuuma unha de macacoum bico de urubuuma pena dum vira-bostauma pimenta da costae um casco de aratu.

• Alecrim de taboleiroduas gias num cordãoduas penas de macucaduas pedras de carvãoduas unhas de veadodois chifres de amancebadoe dois cavalos do cão.

• Três canelas de defunto3 pés de capim assu3 galhos de pinhão roxo3 escamas de mussu3 galhos de mussambê3 bicos de zabelêe 3 penas de jacu.

• Quatro rabos de arraias4 pés de seriema4 maracais de cobra4 folhas de jurema4 caveiras de gente4 dentes de serpentee 4 penas de ema.

• Cinco bicos de socó5 costelas e um papo5 folhas de maconha5 cabelos de sapo5 grilos encangados5 vidros preparadosdo suco do jenipapo.

• A oração do sapo-secoela rezou com cautelabenzeu com a mão esquerdae depois botou na panelao suco de um pepinoa raspa do som do sinoe o leite da favela.

• Rezou mais a oraçãoda cabra preta faladae a de São Ciprianoe foi com a paneladamuito contente e faceiranuma noite de sexta-feirabotar numa encruzilhada.

• A meia noite em pontoela levou a panelabotou na encruzilhadae acendeu uma velabenzeu sua paneladae ficou ali abaixadarezando as orações dela.

• Lampião ia passandoe viu a velha abaixadafez logo o pelo sinale deu uma gargalhadaentão perguntou de cádizendo:• Quem está lá?• e a negra ficou calada.

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• Se não falar eu atiro?• Lampião disse em seguida:a velha pensou consigo• já vi que estou perdida• e logo com medo delepensou.• Eu vou botar elenum beco sem ter saída

• A velha se levantoucom a panela na mãoe foi se aproximandorezando uma oraçãoe com toda astúcia delaquiz rebentar a panelana cara de Lampião.

• Lampião chegou pra pertoe deu-lhe um murro danadoque a velha caiu no chãoe ele já preparadocom o maior ódio delameteu o pé na panelafoi caco pra todo lado.

• A velha se levantoue passou-lhe uma rasteiraque Lampião quase caimas puxou logo a peixeiradisse:• Ninguém te aconselha• cortou logo uma orelhada velha catimbozeira.

• Com a orelha cortadaa velha Rita Gogósaiu em toda carreiragritando de fazer dóvermelha igual uma brasae quando chegou em casaremexeu no catimbó.

• Preparou a bugigangascom água do oceanoe terra do cemitériopimenta, arruda e tutanomexeu durante 3 mesesferveu a água l0 vezese depois coou num pano

• Ela deu 3 fumaçadasno cachimbo Sabe-Tudoe ajoelhou-se chamandoo seu guia• Zé Bochudo• enteado de Canguinhao cachimbo dela tinha5 palmos de canudo.

• E com 2 meses depoiso feitiço estava feitoexaminou com cuidadoe viu que estava perfeitoficou contente na horadizia a velha:• Eu agoradesgraço aquele sujeito.

• Lampião pegou sentiruma dor no mocotóe cada dia que passavaia ficando pióLampião desmantelou-see uma noite encontrou secom a Negra dum Peito Só.

• Era uma negra feiabanguela, só tinha um dentedo cabelo arrepiadoparecia uma serpenteimitava ao Capetaalem de feia e cambetatinha um peito somente.

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• Era um peito bem grandeigual a um mamão caianacom 5 quilos ou maiso Lampião não se enganadisse:• Esta negra é o diaboeu vou arrancar-lhe o rabopra fazer ponche com cana.

• Ia atravessando um rioa uma distância poucaviu a negra e ela disse:• Por você eu vivo loucajá que a hora é chegadalave a boca bem lavadae venha beijar minha boca

• Lampião disse:• Te dana!negra feia desgraçadanão gosto de negra moçaquanto mais velha e peladaé bom que não te esqueçade ti só quero a cabeçapra eu fazer garrafada.

• Ela balançava o peitopor lado de Lampião dizendo:• Quer ou não quer?deixas de cavilaçãoeu vim pra você mamarvocê deve aproveitaresta boa ocasião.

• Lampião lhe disse assim:• Me respeite negra safadaeu não sou de sua igualaeu dou-lhe é uma braçadaveja que sou Lampiãocangaceiro do sertãosujeito da vida errada.

• Lampião dizendo assim:a negra disse:• Sujeito:Não me troco por vocême trata com mais respeitosegure o chapéu na mãopeça desculpa e perdãoe venha mamar no meu peito

• Lampião deu-lhe uma tapaque a negra caiu lá foramas se levantou e disse• Hoje chegou sua horanunca apanhei de ninguémsou pió do que o tremvocê me paga é agora.

Fique sabendo qu’eu souurna negra de respeitovocê desmoralizou-mevai sofrer de qualquer jeitocom sua imbecilidadepor gosto ou contra a vontadetem de mamar no meu peito.

• Botou o peito pra foraque parecia uma jacaLampião se afastoue pegou no cabo da facadizendo:• Dai pra traz• a negra disse:• Rapaz você está feito vaca?

• Lampião disse:• Molecaeu peso igualmente o trem• disse a negra a Lampião• Pois é como cá tambémporque com macho safadoeu sempre tenho tiradoas manhas que ele tem.

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E você vai mamar apulsoveja que sou eu que queroe é pra vir mamar mesmofaz dias que lhe esperovocê diz que tem coragemse não mamar com vantagemem nada lhe considero.

Há dias que venho atrazdo famoso LampiãoPernambucano valenteo assombro do sertãopió do que satanazpra eu tirar seu cartaze a fama de valentão.

• Lampião lhe disse assim:• Negra imunda desgraçadadeixe de tanto cinismocachorra velha peladaeu te matando, bandidaé urna bala perdidaporque tu não vales nada.

• Disse a Negra:• Não se façade valente nem manhosovocê tem nojo de mimmas o meu peito é cheirosodeixe de beocidadepode mamar a vontademeu leite é doce e gostoso.

• Lampião se aproximoude bacamarte na mãoa negra deu-lhe um bofeteque ele caiu no chãoe quando ele tomboua negra se escanchounas costas de Lampião.

Dizendo:• Eu vim vencê-lopor força de catimbóe fazer toda vingançada velha Rita Gogóhoje chegou sua horavocê vai mamar agorana Negra dum Peito Só.

• Lampião ficou tremendodevido a conversa delanunca ninguém lhe fizerauma proposta daquelainda sendo um valentãoe logo ali Lampiãocomeçou fitando ela.

Disse a negra:• É isso mesmodiga se mama ou não mamase não quiser, mama apulsoporque esse é meu programadizem que você é mauhoje, debaixo do pauvocê mama e não reclama.

• Ela começou a fumarno cachimbo Sabe-Tudoera um cachimbo que tinha5 palmos de canudoali foi se ajoelhandona mesma hora chamandoo seu guia• Zé Bochudo.

• A negra botou o peitona boca de LampiãoLampião deu-lhe um murrocom toda força da mãoele deu um grito roucoe quando afracou um poucoele tomou posição.

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Lampião se escanchouna negra na mesma horadizendo:• Negra danadavocê me paga é agorade você pode vir dez• a negra meteu-lhe os pésque ele caiu lá fora.

Foi serrado o tiroteiobala vinha e bala iao fumaceiro cobriuninguém ali se rendiaLampião metia balanegro caía sem falae nem a pestana batia

• Chegou o diabo Cambetae trouxe a negra Carijóe o diabo Três Contigoirmão de Forrobodóo negro gritou de lá• Lampião vai mamar jána Negra dum Peito Só.

• A negra Carijó tirouum cabelo do corpo delanão sei se foi da pestanado umbigo ou da “titela”e avançou pra Lampiãocom o cabelo na mãomas Lampião chutou ela.

• A negra tirou a saiae fez um sassaricadoquando puxou o facãoLampião pulou de ladodizendo:• Negra safadaeu sou bamba na brigadae o meu braço é pesado.

• Veio a negra Maricotada bunda de tanajuracom uma mão de pilãoe um facão na cinturaera uma negra até boa.vinha igualmente urna leoaquando sai da furna escura.

• Cambeta partiu danadoLampião deu-lhe um socoque ele subiu 10 metrose caiu sentado num tocose acabou em seguidapois quando cuidou na vidaa metade estava oco.

• Diabo Cueca Sujachegou trazendo um chicotedizendo assim:• Lampiãovocê hoje errou o bote• Lampião estava loucodeu-lhe um monstruoso soco,que ele saiu de trote.

• Cara Preta e Rabo Finoarmados de mosquetãode vez em quando atiravana cara de Lampião.Lampião já enfadadolutava muito cansadoda grande revolução.

• Lampião viu um molequepor traz dum muro atirandoLampião atirou neleque ele caiu berrandoficou ciscando e tremendochorando e se maldizendosorrindo e assobiando

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• A Negra dum Peito Sóchegou como um furacãoquerendo botar o peitona boca de Lampiãopra fazer ele mamarele quiz lhe segurarela deu-lhe um empurrão.

• Já tinha morrido diabode causar tristeza e dóoutros fizeram carreiraque subiu nuvem de póno meio da confusãoficou somente Lampiãocom a Negra dum Peito Só.

• Lampião agarrou a negracom toda disposiçãoquando puxou o punhala negra entrou em açãodisse:• Vou borrar seu mapa• na cara deu-lhe uma tapae tomou-lhe o punhal da mão.

Era uma luta danadaque só mesmo o leitor vendoLampião dava e levavacada bofete tremendoe a negra desgraçadaficou com a cara inchadae a munheca doendo.

• Lampião pegou a negrasem ter compaixão nem dódizendo:• Eu não acreditoem feitiço nem catimbó• veloz como um furacãotomou o punhal da mãoda Negra dum Peito Só.

• A negra deu uma dentadana venta de Lampiãodepois um galo cantoue ela ficou sem açãona vista dele despiu-sedeu um estouro e sumiu-sesem deixar sinal no chão.

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NASCIMENTO, Bráulio do. Catálogo do conto popular brasileiro.Rio de Janeiro: IBECC; Tempo Brasileiro; UNESCO, 2005.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. 2. ed. Rio de Janeiro:Ed. Brasília; Rio, 1977.

SANTOS, Olga de Jesus; VIANNA, Marilena. O negro na literatura

de cordel. Rio de Janeiro: FCRB, 1989.

.

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O oral, o impresso e a cena:

pesquisa artística e científica*

A oralidade, a imprensa e a cena cruzam-se no fio cordial que liga ator eencenador no teatro de cordel, na lusofonia de Salvador, Bahia, Brasil eLisboa, Portugal.

O teatro de cordel lisboeta (séc. XVIII a XIX) é uma designaçãobibliográfica (SAMPAIO, 1922, p. 9), com mais de 500 obras (CRUZ,1983, p. 95), sobretudo entremezes (BIÃO, 2005, p. 31). A literatura decordel brasileira é fenômeno editorial a partir do final do séc. XIX(SANTOS, 1997, p. 61) e também designação bibliográfica para milharesde obras de muitos gêneros, formatos e classificações, sem clara conexãocom o teatro. Seus repentistas, cantadores e poetas inspiram, desde osanos 1950, dramaturgos, como Suassuna, cujos textos são produzidosem todo o país e fora dele e encenadores, como João Augusto, que,desde os anos 1960, na Bahia, adaptam o cordel para a cena, realizando,com seus atores, a dramaturgia/ encenação. A pesquisa, neles inspirada,gera montagens teatrais, leituras dramatizadas e reflexões teóricas, e formaatores e pesquisadores de teatro épico e dramático, no campo daetnocenologia e da problemática personagem/ gênero/ negritude/ Bahia.

Dramaturgia é o que permite, para além da experiência teatral ao vivo esuas cada vez mais variadas formas de documentação, a permanênciamais óbvia para reflexões teóricas e novas encenações. Os impressos decordel usados para montagens e os impressos a partir de espetáculos

* Comunicação oral para o Grupo de Trabalho Dramaturgia, tradição e contempo-raneidade, publicada In: BIÃO, A. CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRADE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS – ABRACE, 4.,2006, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p. 22 – 23. (MEMÓRIAABRACE IV e X. Congresso: “Os trabalhos e os dias” das artes cênicas: ensinar, fazere pesquisar dança e teatro e suas relações).

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

encenados são a nossa base dramatúrgica. Lerei um texto, que, em 2002,meus alunos do Bacharelado em Artes Cênicas de Interpretação Teatral,da Escola de Teatro da UFBA, e eu, criamos a partir do folheto de JoséGustavo, impresso em Juazeiro do Norte, Ceará [19_?], “A peleja de JoséGustavo com Maria Roxinha”. Peço atenção para uma forma de humorpossível sobre os preconceitos raciais que caracterizam a Bahia. Noespetáculo “Isto é bom demais!” (mais de cem apresentações em na Bahiade 2002 a 2004), duas atrizes fizeram esses repentistas, caracterizadas porperucas (black power, a da mulher1; rastafari a do homem):

ROXINHA – Do boi se espera a pontada,

Do vulcão, lava e cratera.

Da cobra se espera o bote,

E da montanha, uma fera.

Do burro se espera o coice,

E do negro o que se espera?

PRETINHO – Roxinha, não é a cor

Que recomenda o sujeito,

Pois a sua mãe é branca,

E que miséria tem feito,

Que por causa duma delas

Você nasceu deste jeito?

R – Eu não gosto de quem canta

Falando em mãe e avó,

Se pessoalmente ofendo,

Recebo a ofensa só.

Vem agora este crioulo,

Chumbregar meu caritó.

P – Eu também nunca fiz isso,

Mas agora fui forçado

Para ver se a senhora

Se lembrava do passado,

Que é melhor ser preto puro

Que um branco misturado.

1 Luciana Comim, por sua Roxinha, foi Troféu Brasken de Teatro 2003 de Melhor

Atriz Coadjuvante na Bahia.

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O segundo fragmento que lerei é uma nota publicada originalmentenum Jornal da Bahia, de 1857, e citada por Verger (1981, p. 183). Noespetáculo, era uma locução improvisada de um apresentador detelevisão popular da Bahia. Ressalte-se aqui a questão étnica e a críticacomportamental.

VARELA – Isto é indecente e imoral! No dia 10 do corrente, às 4 horasda tarde, quem passasse pela ladeira da Misericórdia ficaria surpreendidode ver a cena de imoralidade e indecência que ali se dava. Dois soldadosda Segunda linha, um pardo e outro crioulo, davam um espetáculo quemerece punição. O primeiro, calças arreadas até o artelho, e com a camisae a farda arregaçadas, de modo que estava descomposto, estava decócoras no princípio da calçada do segundo lance da ladeira, e aí, semcerimônia, operava. O segundo, urinava em frente ao mesmo! (VERGER,1981, p. 183).

Do teatro de cordel lisboeta, que trabalhamos com alunos dasUniversidades Federal da Bahia e Paris 10 Nanterre, em Salvador e emParis, de 2003 a 2005, lerei um fragmento de diálogo de entremez.Para muitos um gênero menor, complementar, associado adivertimentos entre os pratos de um banquete (entremesa), ou para serapresentado entre – ou após – peças do teatro “sério”, o entremez é,talvez, um subconjunto da literatura dramática cômica, próximo ao“teatro ligeiro”, com, quase sempre, números musicais. Vale lembrarque o entremez, na lusofonia, não se restringe ao teatro de cordel,sendo encontrado antes e depois deste. Seu linguajar é o da oralidadecotidiana de seu tempo, por isso mesmo fácil – em sua época – para opúblico mais simples e admitindo improvisações. Daí a dificuldadepara nossa atual compreensão.

Compulsei uns cem textos do acervo de teatro de cordel conhecido eencontradiço, principalmente, no Teatro Nacional D. Maria II2, na Torre

2 1929 exemplares, 32 caixas, em 2002, a partir do acervo de Albino Forjaz Sampaio.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

do Tombo3, na Biblioteca da Fundação Gulbenkian4 e na BibliotecaNacional de Lisboa5. Reuni um corpus de referência de 53 desses textos(quase todos efetivamente impressos), por conta de seus curiosos títulos,pelas referências a eles feitas por Tinhorão (1988), pela recorrência depersonagens como o Preto Caiador e pela inserção de números musicaise referências à fofa e ao lundu, de interesse para as artes cênicas na Bahia.Lendo e ouvindo ler dez desses textos, nossa oralidade contemporâneacontribuiu para compreendermos alguns de seus sentidos obscuros auma primeira leitura.

O Novo Entremez Intitulado Um Engano Astuto ou o Modo de Nunca pagar,fonte de nosso fragmento, foi muito provavelmente escrito antes de1768, não se conhecendo dele até 2005 qualquer versão publicada (haviaem 2002 um exemplar manuscrito na Torre do Tombo e uma sua cópiana Biblioteca da Fundação Gulbenkian). Pode-se especular, a partir daexpressão Novo Entremez Intitulado, que inicia seu título, que se trataria deuma nova versão, fruto talvez do sucesso, de um entremez mais antigo.É possível que, conforme sugere Tinhorão (1997, p. 306), o manuscritotenha sido proibido de impressão, pelo que viria a ser a Real MesaCensória. Talvez por essa mesma razão seu autor continue desconhecido.Foi seguindo essa pista, que a ele tive acesso.

Seu texto contém três personagens com nomes declarados: SenhorPirralho - o protagonista, estereótipo do velho rico, poderoso, mentiroso,avarento e corcunda; Lapone (ou Laponi) – o fiel criado do Letrado,que se revela um dos credores do protagonista; e Gaspar Galego, umestrangeiro. Os outros personagens são identificados apenas por umacaracterística ou função: uma Velha; um Letrado – advogado; umSapateiro; um Cabo de Ronda; um Preto; um Coadrilheiro; e Rondistas.

3 O corpus de referência, matriz do acervo da Biblioteca da Fundação Gulbenkian.4 Organizado em Catálogos. V. In: “LITERATURA de Cordel”: Separata do Boletim

Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira. Lisboa, v. 11, n. 3, 1970. (Digitalizado.

Base para o cálculo de CRUZ, 1983).5 166 títulos disponíveis, em 2005, em Monografia Geral e Manuscritos.

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A intriga é o assédio dos credores ao velho, que se declara falido,recusando-se a honrar suas dívidas e buscando amparo legal para suarecusa. Os credores ameaçam-no com a justiça, representada por umenganador de clientes e de credores, que também tenta enganar o avarento,que é enfim preso.

O Galego e o Preto falam “mal” o português, constituindo-se em fontede humor, incluindo-se assim este entremez entre os textos teatrais quefazem humor da presença de personagens estrangeiros, o que foicomentado, por exemplo, por Aristóteles, quando alertava em sua Poéticapara o perigo de as tragédias incluírem personagens estrangeiros eprovocarem – indevidamente – o riso; e o que foi utilizado, por exemplo,por William Shakespeare, em seu Henry V, cujas montagens sempreprovocam riso com a ridicularização do inimigo, aí representado peloSoldado Francês (BIÃO, 1990). Vale destacar, além do conflito de classe,o jocoso da denominação do Senhor Pirralho, epíteto muito provavelmenteentão identificado, como ainda hoje o é no Brasil, com uma formapejorativa de designar-se uma criança pequena, ou, como ainda se dizem Portugal, um miúdo, ou um puto.

Batem à porta.Pirralho Quem será? (À parte) É provável que seja algumcredor...Abre a Porta.Sai um preto com um bião de cal e com o fato sujos de cal.Preto· Guarde Deus a V.m.! Estimo que vozó tenha passadobem.Pi Guardes Deus, paizinho. (À parte) Quem será esta lesma?Pr·Meu sioro, tomo os suas ordens como um seu livrecativo...Pi·· Que dizes? Fala alto! Hein? Já te disse, responde!Pr·· Eu via aqui pala que me pagues o meu trabaio, poisnão tano nem dé réi para os marufo.Pi Então, que trabalho é que tens feito? (À parte) Acha-teenganado...

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Pr É de asiare os cazas que tinha Santopéia de Parmo.Pi·· Quaes casas nem meias casas! Põe-te fora sem demorano meio da rua! E se me tornares aqui aparecer, verás oque te sucede!Pr·· Meo sioro branco, antão eu ede perder, o meu trabaioe não ede receber gimbo ninium as Contas Delle.Pi Ô, cachorro, põe-te fora que te não devo nada! E nãoquero satisfações!Pr·· Meo sioro, sevozo não queri espagar por bem, pagarazipor mal, que vou fazeri um petição para o mandari sitar,que vozo antão ha de espagar por força. (Vai-se.)

Estas leituras permitem múltiplas leituras. O oral, matriz do impressoque é lido e relido, em sua própria língua, adquire nova vida de oralidade,transgredindo a história, que lhe transforma apenas parcialmente ossentidos. O escrito lido permite a dinâmica maravilhosa da vida que fazda letra de forma forma de verbo. O teatro de cordel lisboeta revive noâmbito da criação contemporânea. Os jovens atores beneficiam-se doconhecimento de sua tradição teatral, dramatúrgica e literária, em suaformação dramática e épica, descobrindo as oralidades histórica e atualde sua arte. E a candente questão étnica da negritude na Bahia pode serabordada com um humor possível que torna passível de destruição opreconceito. Compare-se o linguajar dos personagens negros das duasépocas e locais distintos, o amadurecimento linguístico que se operou, ospreconceitos que se explicitaram... Perceba-se a predominância do mundomasculino nesse universo. A pesquisa pode, enfim, ser até adjetivada comosimultaneamente artística e científica.

Referências

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BIÃO, A. Théâtralité et spectacularité: une aventure tribalecontemporaine à Bahia. Paris: Sorbonne, 1990.

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SAMPAIO, A. F. de. Subsídios para a história do teatro português:Teatro de cordel Lisboa: INL, 1922. (Catálogo da Coleção do Autor).

SANTOS, I. M.-F. dos. La littérature de cordel au Brésil. Paris:L’Harmattan, 1997.

TINHORÃO, J. R. Os negros em Portugal: uma presença silenciosa.Lisboa: Caminho, 1988/ 1997.

VERGER, P. Notícias da Bahia de 1850. Salvador: Corrupio/ F. C.BA, 1981.

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Conférence de Tombouctou*

1. Bonjour mes sœurs, mes frères, mes cousines et mes cousins detoute l’Afrique et des 5 Continents.

2. Je remercie pour l’invitation et félicite les organisateurs pour laréalisation de ce grand événement d’implantation de l’UniversitéOuverte des 5 Continents, à Tombouctou, au Mali, en Afrique, du14 au 21 novembre 2005. Je vous remercie également, vous qui êtestous ici présents.

3. Je vous propose une sorte d’atelier-conférence autour des principauxobjets de mes recherches, depuis déjà une trentaine d’années: lalittérature de colportage; le théâtre en tant qu’activité économique etprofessionnelle ; la formation des comédiens et chercheurs dans ledomaine des arts du spectacle vivant ; ainsi que l’imaginaire collectifà Bahia, où la présence négro-africaine est prédominante.

4. Mon approche est plus compréhensive qu’explicative, et relativisteplutôt que positiviste. En effet, je m’inscris dans le cadre d’uneapproche à la fois théorique et pratique, artistique et scientifique, quenous appelons – mes collègues des universités de Paris 8, Saint Denis,et Paris 10, Nanterre, en France, et de l’Université Fédérale de Bahia,au Brésil ainsi que moi-même – Ethnoscénologie, l’ethnoscience des

* Texte inédit d’une conférence prononcée le 19 nov. 2005, dans le cadre de l’Université

des 5 Continents (14 au 21 nov. 2005), à l’Assemblée Régionale à Tombouctou, au

Mali, en réponse à une indication du Consulat Général de France pour le Nord-Est à

Recife, Brésil. Je tiens à remercier le Consul Général, Monsieur Patrick Howlett-

Martin et L’Attaché à la Coopération et à l’Action Culturelle, Monsieur Réné Quirin.

Je remercie également Sergio Guedes et Ariel de Bigault, qui m’ont aidé pour la

version définitive de cette conférence.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

pratiques et des comportements humains spectaculaires organisés. Cettenouvelle approche est bien sûr transdisciplinaire et fait, depuis maintenant10 ans, l’objet de colloques internationaux à Paris, à l’UNESCO, à laMaison des Cultures du Monde et à Paris 8, en France ; au Mexique,dans la ville de Cuernavaca, dans l’État de Morelos ; et au Brésil, dansma ville de naissance et de résidence principale, Salvador de Bahia.Dans ce réseau international d’artistes et chercheurs nous développonsquelques dizaines de projets de recherche, aboutissant à des spectacles,des publications, des mémoires de deuxième cycle, des DEA et desMaster, ainsi que des thèses de Doctorat.

5. Mais avant d’entrer dans le vif du sujet, je veux partager avec vousquelques données concernant le Brésil et la ville de Salvador de Bahia,pour ensuite, vous faire part de mon trajet anthropologique, le pontentre sujet et objet. Pour ce qui est de mon propre projet - la littératurede colportage – elle vous sera présentée avec la participation de quelquesétudiants volontaires qui voudraient bien lire avec moi des extraits quej’ai choisis, pour la pertinence de leur problématique ethnique. Si nousavons le temps, j’aimerais aussi vous montrer quelques documents, etensuite échanger nos expériences et réflexions, à partir de ma modestecontribution sous la forme de cette conférence-atelier.

6. Voilà, le Brésil occupe le quatrième rang mondial en superficie. Unétendue continue qui fait environ 16 fois la superficie de la France,autrement dit, presque 8 millions de km². Par sa population, notrepays se situe au cinquième rang mondial, avec environ 185 millionsd’habitants, dont plus de 70% vivent en milieu urbain. Avec sa taillepresque écrasante, la ville de São Paulo et sa région métropolitaineréunissent près de 10% du total de la population du pays, autrementdit, plus de 17 millions d’habitants. Il s’agit sans doute actuellementde l’une des plus grandes mégapoles au monde. Après São Paulo, laplus grande ville brésilienne est Rio de Janeiro, avec 7 millionsd’habitants. Toutes deux, São Paulo et Rio, se trouvent dans la régionSud-Est, la plus riche du pays. Le climat de cette région est sub-tropical. Au Sud, très développé, le climat est tempéré avec des

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températures approchant parfois de zéro degré. Au Nord, l’Amazonieest la plus vaste forêt tropicale au monde. C’est la région la moinspeuplée, où se trouve le plus grand nombre de tribus amérindiennes.On trouve encore actuellement, dans tout le Brésil, quelque 200 tribus,avec une population croissante d’environ 400 000 personnes, dont lemétissage depuis trois à quatre siècles est moins important que chezd’autres groupes de populations brésiliennes. Le Centre-Ouest dupays, où se trouve la très moderne capitale du pays, Brasília, est lanouvelle frontière de développement socio-économique au Brésil.Enfin, la région Nord-Est, la plus pauvre, connaît un climat plutôtsec à l’intérieur des terres et tropical humide sur la côte atlantique.C’est là que se trouve la ville de Salvador de Bahia, dont la régionmétropolitaine compte trois millions d’habitants, et où la températurese maintient entre 25º et 35º, avec très peu de variations.

7. Parmi plus d’une centaine de pays dont la qualité de vie est étudiée, leBrésil occupe un rang intermédiaire, même si, en terme de produitinterne brut, c’est la onzième économie au monde. Néanmoins, sil’on considère les écarts socio-économiques, extrêmement importants,notre pays se situe aux derniers rangs de tous les pays étudiés, encoreque l’on constate, depuis une douzaine d’années, de petites – voiretrès faibles – réductions des distances entre les groupes les plusriches et les plus pauvres. Grand pays exportateur de produitsagroalimentaires, de musique, et de footballeurs, le Brésil commenceà exporter aussi des produits industriels, y compris des avions. Maisla corruption et les atteintes à l’environnement sont encore trèspréoccupantes. Voilà, nous avons des très bons atouts, y comprisune nature très généreuse, mais nous avons de très mauvaises habitudesdont la corruption, par exemple, et une importante violence urbainedûe aux considérables écarts économiques, visible surtout à São Pauloet Rio de Janeiro, puisque riches et pauvres s’y côtoient un peu partout.

8. Maintenant, pour aborder notre champ géographique de recherche,la ville de Salvador de Bahia, parlons un peu de notre formationethnique.

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9. Il faut rappeler que les dernières études de génétique sur l’ensemblede la population de notre planète démontrent que toute l’humanitéactuelle descend d’un seul petit groupe d’individus ayant vécu, il y afort longtemps, dans le centre de l’Afrique. Cette terre a donc étépeuplée par de successives vagues de migrations et par la lente, maiscertaine, croissance de la population issue de ces individus. Aprèsl’Asie et l’Europe, les Amériques ont commencé à se peupler il y aenviron 30 000 ans. Voilà l’origine des Amérindiens, qui, à l’époquede l’arrivée des Européens, à partir de la fin de XVe siècle, comptaientenviron 5 millions de personnes. C’est le groupe matriciel pour laformation du peuple brésilien. Le deuxième grand groupe depopulations, qui forme le Brésil contemporain, est celui des Portugaiset de ses voisins Espagnols, métissés avant même leur arrivée auBrésil de populations celtes, ibères, latines, godes, juives, maures ouarabo-musulmanes et berbères. Ils se sont installés dans notre paysnon seulement avant la fin de la période coloniale, donc avant 1822,mais aussi jusqu’à la première moitié du XXe siècle. Enfin, le troisièmegrand groupe humain, qui est à la base de la formation ethnique dupeuple brésilien, est celui des Africains ; d’ethnies diverses et,certainement, pour la vaste majorité, avec aussi des épisodescentenaires de métissage. Entre 1538 et 1888, environ 4 millionsd’Africains ont été amenés de force au Brésil, c’est-à-dire, plus d’untiers de tous les Africains de la diaspora atlantique. L’esclavage, cetteterrible invention humaine sous toutes les latitudes, existait bien entenduaussi en Afrique, avant l’arrivée massive des esclaves africains au Brésil.Elle a été organisée par les Portugais et par d’autres peuples d’Europeoccidentale, surtout entre le seizième et le dix-huitième siècles, commele principal moteur de création de richesses au monde. Il faut direaussi que quelques Brésiliens et quelques Africains ont été des complicesactifs de cette barbarie. Pour conclure cette déjà trop longue etnéanmoins nécessaire introduction, rappelons aussi qu’à partir de lafin progressive de l’esclavage au Brésil, au cours de la deuxième moitiédu XIXe siècle, d’autres ethnies sont venues s’installer chez nous,quelques centaines de Français et des Hollandais, qui, à l´époquecoloniale, avaient échoué dans leurs intentions de coloniser le Brésil.

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Quelques dizaines, voire des centaines de milliers d’Italiens etd’Allemands ; de Polonais et d’Ukrainiens, de Japonais et de Coréenset, plus récemment, des immigrants d’Amérique latine. Ces derniersgroupes de populations européennes, asiatiques et latino-américainesse sont installés surtout dans le Sud et le Sud-Est du pays. Avec commerésultat actuel, par exemple, que la plus grande ville japonaise dumonde située hors du Japon se trouve dans la plus importantemégapole brésilienne, São Paulo.

10. Nous arrivons enfin à Bahia, qui doit son nom à la grande baie – baíaen Portugais – dont la ville occupe l’entrée nord. Nommée Baie – Baía– de Tous les Saints par Americo Vespuccio, le jour de la Toussaint - lepremier novembre 1501 - cette région a été choisie par les Portugaispour y installer leur capitale coloniale, entre 1549 et 1763. C’était leprincipal port d’entrée des Africains, au Brésil et, vers 1750, c’était de laplus grande ville de tout l’Hémisphère Sud, la plus grande villeeuropéenne hors d’Europe et la plus grande ville africaine hors d’Afrique,plaque tournante incontournable du commerce mondial qui se faisaitentre l’Orient (Japon, Chine et Inde compris), l’Afrique de l’Est et del’Ouest, l’Europe et les Amériques, surtout Centrale et du Sud.

11. Une anecdote peut étayer cette affirmation : la célèbre œuvred’aventure de l’écrivain britannique Daniel Defoe, autour dupersonnage de Robinson Crusoé, révèle l’importance du port deSalvador et des plantations sucrières autour de la Baie de Tous lesSaints. Propriétaire d’un moulin à Bahia, Robinson Crusoé décida departir pour l’Afrique chercher ses propres esclaves, étant donné lesprix élevés pratiqués par les négriers. Au cours du voyage, il faitnaufrage et reste isolé pendant des années sur une île dans la régionde la Mer des Antilles. Après son sauvetage il réussit à vendre sonmoulin à sucre à Bahia, sans y retourner lui-même. Il a vécu encorelongtemps en menant un train de vie aisé.

12. Nos identités brésilienne et bahianaise se sont constituées à la limitedu XVIIIe et du XIXe siècles, sur quatre grands piliers:

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Premièrement: la cruauté de l’esclavage;

‘Deuxièmement: la richesse matérielle et spirituelle, y compris ethnique,de l’art baroque;

Troisièmement: une très forte oralité, qui rapproche corporellementles gens; l’oralité sur des bases amérindienne, africaine et lusophone(le Portugais est la plus jeune des langues néo-latines);

Finalement: le métissage très répandu, avec bien sûr des prédominancesterritoriales, comme par exemple la présence marquée d’Européensau Sud, d’Amérindiens au Nord, et d’Africains au Nord-Est, dontSalvador, sa plus grande ville, réunit environ ¾ de personnes dontles traits ont visiblement été identifiés aux ethnies négro-africaines.Les enquêtes et recensements de l’auto-définition raciale et ethniqueont construit un répertoire de presque 200 dénominations différentes,correspondant à une vaste et subtile gradation d’apparencescorporelles.

En fait, n’importe qui peut être Brésilien. C’est la raison pour laquelleles prix de nos passeports sur le marché de l’immigrantion clandestinesont si élevés. Notre fort métissage fait que parmi les enfants d’unmême couple, on peut trouver des individus aux apparences trèsdifférenciées.

13. Actuellement la ville de Salvador de Bahia est la capitale de l’État,également dénommé Bahia, dont la superficie est semblable à cellede la France, avec une population d’environ 14 millions d’habitants.Salvador de Bahia est connue comme la Rome noire, surnom dû augrand nombre de lieux religieux afro-brésiliens, ainsi qu’au grandnombre d’églises catholiques sur son territoire. 365 dit-on, une églisepour chaque jour de l’année, dans lesquelles l’art baroque révèle -sous les traits de saints catholiques - certains traits ethniques négro-africains ainsi que des traits amérindiens, voire même asiatiques, et ceen raison de pères jésuites voyageurs qui ont vécu à Bahia. Foyer deculture, Salvador est connue hors du Brésil par la littérature de JorgeAmado, le cinéma de Glauber Rocha et surtout par sa musique

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populaire, univers d’où vient, par exemple, le ministre brésilien de laculture Gilberto Gil. Importante destination touristique nationale etinternationale, Salvador a connu pendant environ un siècle, jusqu’aumilieu du XXe siècle, une situation nommée par Roger Bastide« société en conserve », parce que les courants d’immigration se sontpratiquement arrêtés et que la ville a connu une très longue périoded’isolement, international tout d’abord. À partir des années 1950,Bahia a repris son rôle de grand centre commercial, ouvert sur lemonde, sur les nouvelles technologies de communication et sur lesnouveaux mouvements artistiques mondiaux. Au cours de dernièresdécennies, donc, les politiques publiques concernant la culture, letourisme et le développement socio-économique se sont rapprochéespuisqu’il est impossible, à Bahia, de penser et d’agir dans l’un de cesdomaines sans penser et agir aussi dans les autres. Son destin de croiséedes cultures, traditionnellement consacré à la diversité, à sa très richeet terrible histoire de l’humanité et aux nouveaux apports de toutessortes, me fait naturellement penser, à Tombouctou, la mystérieuseville aux 333 saints.

14. Passons maintenant au sujet qui nous intéresse. Issu de couches socio-économiques moyennes et d’un métissage qui m’a déjà fait, ici àTombouctou, passer pour un Maghrébin, je descends des Portugais,donc des Maures, mais aussi des Amérindiens. Par ailleurs, j’ai descousins qui arborent des traits ethniques proches de traits négro-africains. L’apparence corporelle et le statut socio-économique sontles aspects qui comptent le plus au Brésil pour définir l’appartenanceraciale. Récemment, la revendication individuelle commence aussi àcompter et, dans ma génération, depuis plus d’une trentaine d’années,j’ai participé avec le théâtre, avec l’activité politique et la productionlittéraire à l’affirmation positive de nos matrices négro-africaines.Donc, si mon apparence ne paraît pas légitimer ma participation àl’implantation de l’Université des 5 Continents à Tombouctou, jerevendique mon essence, mon existence et ma parenté pour melégitimer dans ce rôle très sincère que je joue devant vous ici etmaintenant, et cela même si je ne suis pas du tout un spécialiste de

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l’Afrique. Pour arriver ici, il m’a fallu faire un très long voyage entre leBrésil, la France et le Portugal. Je suis parti de chez moi le 22 octobredernier et, encore aujourd’hui, presque un mois après, je suis arrivéau septième lieu de logement. Pour rentrer chez, moi il me faudraencore passer par un huitième hôtel. C’est pour cela - et même entenant compte de notre différence d’âge - que je pense comprendreles difficultés par lesquelles vous, les étudiants, avez dû passer pourparticiper à cette Université Ouverte des 5 Continents.

15. Entrons enfin dans le vif du sujet, la littérature de colportage, ou decordel. Il s’agit d’un phénomène qui, dans le monde de la péninsuleibérique, prend ses racines au XVe siècle, en fixant par écrit des poèmesdes premiers chansonniers, diffusés ainsi de façon rapide etéconomique sous la forme de feuilles volantes - profitant del’imprimerie inventée par les Chinois et perfectionnée en Europe,comme nous apprend Idelette Muzart Fonseca dos Santos, la grandespécialiste en la matière. Au XVIIIe siècle, ce type de littérature connaîtun grand essor au Portugal avec le succès des spectacles de théâtre,dont les textes joués sur scène étaient aussi vendus imprimés sur lesdeux côtés d’une feuille de papier bon marché, mesurant 22 x 32centimètres. Cette feuille est pliée deux fois, formant un petit livre dehuit pages, chacune de ces pages mesurant 11 x 16cm. Voilà ce qu’estun folheto – l’imprimé du cordel. Le nombre de pages des livres qui enrésultaient était alors au minimum donc de huit et augmentaitnaturellement toujours par des multiples de 8 (16, 24, 32, 40, 48, 56,jusqu’à 64 pages). En Espagne l’expression courante pour ce type delittérature était « pliegos sueltos ». En France l’expression était « littératurede colportage » parce que les vendeurs de ces petits livres les portaientau col. Au Portugal ces livres étaient vendus à cheval sur une ficelleoù une cordelette, désignés dès le XIIIe siècle dans la région deValence, en Espagne, par le terme cordel.

16. Au Brésil, le phénomène apparaît au milieu du XIXe siècle et jusqu’àla moitié du XXe il devient connu un peu partout dans le Nord-Estdu pays. Vendus toujours dans des lieux fréquentés, sur les marchés

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populaires, dans les lieux à grande circulation de transports publics,les gares routières, par exemple, les livres de la littérature de colportage– « literatura de cordel » en Portugais, sont aussi connus comme feuilletsde marché, ou en Portugais « folhetos de feira ».

17. En raison de la migration du Nord-Est vers la ville de São Paulo aucours des dernières décennies, c’est dans cette ville que se trouveaujourd’hui le plus grand centre producteur et consommateur de cetype de littérature. Bien que bon nombre d’intellectuels brésilienscraintifs aient annoncé à plusieurs reprises sa disparition, le littératurede cordel est toujours vivante et continue à se répandre.

18. Les textes concernant des événements réels et imaginaires, actuels ethistoriques, y compris l’épopée carolingienne, sont d’habitude rimés.Leur métrique peut aller de cinq jusqu’à 12 syllabes par vers et dequatre à 12 vers par strophe. Les auteurs sont aussi des chanteurs, quichantent par cœur et qui improvisent devant leur public. Ils peuvents’accompagner d’instruments musicaux comme la guitare, dont ilexiste une grande variété au Brésil.

19. Au Portugal, le phénomène de la littérature et du théâtre de cordel adisparu. Au Brésil, le théâtre, depuis les années 1960, principalementdans le Nord-Est et plus particulièrement à Bahia, a apporté unenouvel élan au cordel. En effet, plusieurs écrivains et dramaturges s’ensont inspirés et nous utilisons beaucoup de ces textes pour la formationde jeunes comédiens.

20. Pour la plupart, les textes de cordel contiennent des morceauxnarratifs et des dialogues, ce qui permet aux comédiens des’entraîner, tant pour le théâtre épique que dramatique.Traditionnellement, ces textes sont emplis de préjugés racistes,sexistes et sociaux, révélant un conservatisme qui laisse apparaîtrenéanmoins, ici et là, paradoxalement, quelques bribes de critiquesociale. Le matériel est donc très riche pour les travaux de créationet de critique au théâtre.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

21. Il faut revenir sur le cadre social au Brésil autour de deux axes. Lepremier est celui de cette société multi et pluri-raciale, très inégalitaire,où plus on monte dans la pyramide sociale plus on trouve des gensà la peau claire et inversement, plus on descend dans l’échelle sociale,plus on trouve des gens aux teints noirs. Ce schéma commence àconnaître des subtils, encore qu’épisodiques et exceptionnels,renversements. Le deuxième axe de cette réflexion concerne les sensdu mot nègre - negro ou nêgo en Portugais, qui apparaissent autantdans le langage quotidien que dans le texte de corde :

• Tout d’abord, on peut penser aux sens historiques qui associentles Nègres aux Maures et aux Amérindiens;

• Ensuite, on peut penser à trois sens différents, que l’on trouvefacilement dans le langage quotidien au Brésil :

- de manière intime, affectueuse et amoureuse, voir sexuelle, lesamants s’appellent « mon nègre » - meu nêgo, « ma négresse » -minha nêga, ce qui peut renvoyer à une sorte de perversion dela cruauté et de la débauche de l’esclavage ; et cela même si lesamoureux ne portent sur leurs corps aucun signed’appartenance ethnique négro-africaine ;

- un autre sens renvoie à l’individualisme moderne où chacuneet chacun et n’importe qui est comme tout le monde - Nêgofaz isso « Le Nègre fait ceci », Nêgo quer aquilo « Le Nègre veutcelà », par exemple;

- et un autre sens, que l’on trouve encore dans le langage quotidienmais qui commence à tomber en désuétude, qui est le sens del’insulte, disons à la façon nord-américaine du mot nigger;

• Par ailleurs, le racisme diffus existant au Brésil se révèle, sans doute,par cette multiplicité des sens, mais il faut encore approfondir laquestion. La musique et les arts du spectacle, y compris le cinéma,

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aux États-Unis d’Amérique du Nord, ont fait apparaître uneidentification entre les juifs et les Afro-américains, d’après la lecturede la bible judéo-chrétienne. Certains signes de reconnaissance,dus à la discrimination raciste et à l’esclavage, ont donné naissancepar exemple à la puissante musique de negro spirituals. Or, le Brésilconsomme de manière massive, depuis la Première GrandeGuerre, la culture nord-américaine, et cette identification Juifs/Afro-américains a été en quelque sorte assimilée par l’imaginairebrésilien. Par ailleurs, les plus récents mouvements du black power,du rap et du hip-hop ne sont que le développement historique decette niche du marché du travail, source de revenus pour les négro-américains et pour les afro-brésiliens qui prend sans doute sesracines dans des poches de survie et de convivialité représentéespar cette identification de tous ceux qui se retrouvent entre eux àla marge de la société : les Juifs, les Noirs et les artistes. L’art engénéral et les arts du spectacle en particulier sont cet espace liminal,d’après le concenpt de Victor Turner, qui opère la transition entrele monde de l’exclusion et le monde de l’inclusion sociale, parexemple. Dans ce sens, dont l’origine est la bible judéo-chrétienne,les Juifs, les Noirs et les artistes sont le peuple élu par excellence,qui a souffert de l’injustice innommable de l’esclavage.

• Finalement, depuis une trentaine d’années, à Bahia, la revendicationd’appartenance ethnique à la matrice africaine est devenue undiscours et une pratique. À Salvador de Bahia, il est facile detrouver des t-shirts avec des phrases telles que : Je suis 1/4 nègre, 1/8 nègre, à moitié ou même Je suis 100% nègre.

22. L’émotion et la raison travaillent ensemble. Reprenons maintenantquelques données de la réalité concrète. Nous vivons au Brésil unedémocratie apparemment consolidée depuis un peu plus de 20 ans.Depuis 10 ans la situation économique se stabilise avec le contrôle del’inflation, la maîtrise des taux de change et de croissance, et la lente -néanmoins apparemment certaine - amélioration progressive desindicateurs, des indices, des taux de références socio-économiques.

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Mais il y a encore un très long chemin à parcourir pour réduirel’énorme injustice sociale existante surtout envers nos parents brésiliensafro-descendants. Et pour avancer dans cette voie, le principal obstacleà vaincre est sans l’ombre d’un doute la corruption encore presqueendémique. Pour contribuer à la réduction de la honteuse inégaliténous utilisons tous l’émotion et la raison.

23. Pour ma part, c’est par la recherche et le théâtre que je peux contribuer.Je vous propose maintenant de lire ensemble, si possible, des extraitsde littérature de cordel. Le premier, traditionnel, concerne la disputeentre un noir et un mulâtre, un – soi-disant – blanc de la terrebrésilienne. Je lirai le soi-disant blanc et vous lirez l’autre personnage.Le deuxième morceau, qui se prétend, disons, politiquement correct,concerne notre héros national Zumbi, dont la date de célébration estle 20 novembre – demain donc, connue comme le « Jour de laConscience Nègre ». Nous lirons ensemble des morceaux de sonépopée. Peut-on le faire?!

(Extraits de Romano e Ignacio da Catingueira, de Leandro Gomes

de Barros, 1910. Traduit par Jean Orecchioni*)

• Nègre, cette joute avec toic’est de ma part un sacrificeà la demande d’un ami,tant pis si tu dois en souffrir,je frappe où ça fait le plus mal,je tape tant que tu remueras.

• Monsieur blanc, suivez mon conseilne prenez pas un pareil risquemais priez Dieu qu’il vous délivre

1 L’étudiante Mariam a accepté le défi et m’a aidé la lecture proposée.2 In : SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca dos. La Littérature de Cordel Au Brésil :

Mémoire des voix, grenier d’histoires. Paris: Éditions L’Harmattan, 1997. p. 150-153.

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de cet ennemi qui vous tient,mieux vaut pendre au bout d’une cordeque de se mesurer à moi.

• Moi, si j’accroche un cantador,j’arrache ses dents une à une,ensuite la langue et les dentset les babines pour finir,je ne lui laisse que les ospour en faire un épouvantail.

• Moi s’il m’en tombe un sous la griffequand je le lâche, il est à point,je l’expédie dans des endroitsque le charognard même l’éviteet s’il en réchappe un morceau,quand il tombe, c’est en bouillie.

• Il est déjà plus de minuit,tu dois commencer à mollir,ton maître peut se réveilleret vouloir te faire appeler,et si jamais tu n’es pas làdemain tu auras droit au fouet.

• M’sieur Romano, je suis un nèg’,la maît’esse elle m’a élevéet mon maît’ il me voit sortirmais jamais il m’a empêché.Si je suis là en train d’chanter,c’est qu’il m’a lui-même envoyé.

• C’est ce que disent tous les nègres,mais personne ne doit y croire,j’ai un esclave moi aussimais je l’oblige à travailler,et dès que j’ai le dos tourné,il ne pense qu’à s’amuser.

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• Ce que dit là monsieur Romanoest une chose assez banale,les esclaves de bien des genspassent la semaine à jeûner,mon maître, lui, a vingt esclaveset m’sieur Romano n’en a qu’un.

• Négro, mesure tes paroles,regarde un peu où est ta place,moi je suis blanc, je suis quelqu’unau regard de la société.En venant chanter avec toi,je ne fais que me rabaisser.

• Ce que vous dites maintenantme paraît plutôt surprenant,pour être un blanc, mon bon monsieur,vous avez le cuir bien foncé,le nez un peu trop aplatiet le cheveu pas mal frisé.

• Je m’en vais te clouer le bec,et sans discuter davantagepassons à la géographie,qui intéresse l’assistance.Voyons donc si tu t’y connais,si tu peux m’expliquer les choses.

• Je me souviens, monsieur Romano,de ce que mon maître disait,le monde comprend cinq parties,qui sont : Asie, Océanie,Amérique, Europe et Afrique,voilà pour la géographie.

• Alors tu dois bien t’y connaîtreEn caps et détroits, mers et golfes,pouvoir nommer toutes les races,

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tu dois savoir par cœur,mets de l’ordre dans ta cervelle,je vais te poser des questions.

• Patron, il vaut mieux arrêter,ces trucs-là ne sont pas pour moi,vous voudriez que je vous disece qu’on ne m’a jamais appris,là où je suis, c’est difficilede savoir la géographie.

• Inácio, j’en étais bien sûr,Tu n’as pas le souffle qu’il faut,ces choses-à sont pour Romano,qui chante sans se démonter.D’où je suis, nul ne me déloge,nœud que j’ai nul ne dénoue.

• Cest bien vrai que dans ce pays,c’est vous qui tenez la vedette,depuis tout petit, vous chantezen quatrains, sizains ou dizains,mais attachez avec les mains,moi, je détache avec les pieds.

(Extraits de Le Roi Zumbi héros de la république de Palmares de

Franklin Maxado Nordestino3)

Je vais narrer un récitDe l’histoire de ma nation:La guerre contre ZumbiUn roi qui fut général,Mena les Nègres marronsCombattre le Portugal

3 In: CHARLEMAGNE, Lampião & autres Bandits, histoires populaires brésiliennes.Traduit du Portugais (Brésil) par : Anne-Marie Lemos et Annick Moreau. Paris :Editions Chandeigne, 2005. p. 51-59. (Série illustrée dirigée par Anne Lima).

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C’est en l’année 1600Que trente esclaves s’enfuirentVers la Serra Barriga.Ils bâtirent à cet endroitQuelques cabanes en boisEt sur la guerre s’instruisirent

Au combat ils s’entraînèrentArcs et flèches ils fabriquèrent,Pour faire face aux rabatteursQue les traquaient à toute heure.Ils vivaient donc retirésAu milieu de palmeraies

Pour briser l’isolementIls décidèrent d’enleverDes femmes pour les aimer.Ils allèrent les chercherDans les proches propriétés,Les moulins environnants

Le sucre était transportéVers l’Europe dominantePuis en Afrique on troquaitAu profit du négrierEsclaves contre tabacOu eau-de-vie enivrante

Ce trafic très fertileAttira les HollandaisQui envahirent le Brésil,Triomphèrent des Portugais.Les esclaves en profitèrentPour s’évanouir dans les airs

À cette époque s’évadaAqualtune, une princesseDe la plus haute noblesseQue sa lignée désignaAussitôt pour dirigerL’un des bourgs en liberté

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Aqualtune eut des enfants.Parmi eux, Ganga ZumbaAinsi que Gana ZonaDevinrent les chefs de sangD’un peuple qui s’accroissaitEt qu’ils surent organiser.

D’une de ses filles naquitLe très prestigieux ZumbiLe chef le plus estiméDe ceux qui furent désignésComme successeurs, iciOù nul parti n’existait

Tous les habitants plantaientRécoltaient confectionnaient,Céréales, fruits et objetsQu’ils emportaient et vendaientDans les plus proches citésDes villages où ils vivaient

Ils ach’taient des instrumentsDes armes et des munitionsPour se défendre sur le champEn cas de persécutionsPour étendre leurs plantationsAugmenter leur production

La guerre contr’les HollandaisLes laissait vivre en forêt,Accueillir les fugitifsLes Blancs comme les Métis,Vivre d’la terre, du mineraiChez les Indiens, et en paix

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Parmi les bêtes dans la forêtPalmares en état s’érigeaitUn seul homme gouvernaitTous les puissant villagesZumbi le chef désignéPour sa lignée, son courage

Palmares comptait déjàCinquante mille habitantsÉtablis dans les étatsD’Pernambouc, d’Alagoas,Produisant des alimentsEt d’excellents instruments

La capitale se nommaitMacaco, gros villageQui deux mille huttes comptait.Pieux, fossé, marécagesEt palissades l’entouraientC’était un lieu bien gardé

Mais cette paix fut briséeDès que furent expulsésLes Bataves de la contréeEt Palmares l’insoumisFut de nouveau assailliSitôt le pays conquis

Dans l’un des combats ZumbiReçut deux balles de plein fouet.Indemne, la légende en fitLe plus vaillant des guerriers,Le meneur le plus hardi,Le général des archers

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Ganga Zumba, lui, signaLe traité des PortugaisZumbi refusa la paixEt les siens répliquèrentEn tuant Ganga Zumba.Zumbi commanda ses frères,

A leur tête il envahitToute la périphérie.Les propriétaires unisPour mater la rébellionEn mille six cent quatre-vingt-Six, trouvent une solution

Ils ne purent s’introduireQu’en quatre-vingt-quatorzeQuand au canon ils ouvrirentUne funeste percéeDans la clôture en piquetsÉdifiée pour protéger

La bataille fut cruelleElle dura deux jours puis vingtLes femmes jetaient de l’eauBouillante et les sentinellesLançaient pierres et javelotsMitraille, tessons, gourdins

Beaucoup cherchaient à s’enfuirMais Zumbi bien que blesséNe capitula jamaisIl résista sans faiblirJusqu’à l’heure sans issueOù il vit son peuple perdu

Certains disent qu’il s’approchaJusqu’au bord d’un précipiceEt de là-haut se jetaPour terminer son suppliceMourir sans capituler.La parade était trouvée...

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Ils est écrit cependantQue Zumbi réussit à fuirAvec quelques habitantsEt qu’ailleurs ils construisirentDe modestes pied-à-terreQui leur servirent de repères

Quatre-vingt-quinze fut l’annéeOù un vieux noir qui mendiaitÀ Penedo fut arrêté.Complètement terrifiéPour gagner sa libertéIl trahit tout le secret

Il dit où était ZumbiEt celui-ci fut surprisEn dépit de vingt guerriers.Il fut enfin écraséPuis sa tête sur un piquetEn ville fut exposée

Faut’de documentationOn dit qu’il aurait grandiComme esclave chez un curéLequel fit son instructionEt le latin lui appritPour qu’il soit mieux respecté.

Il était, dit-on aussi,De race bantoue d’AngolaOn dit même que ZumbiEn dehors de tout écrit« Dieu de la Guerre » signifieL’être que tue et tuera

Tous à Palmares parlaientL’idiome des peuples CongosAppelé le kimbundoQui laissa des traces subtilesDans les parlers et les motsDu Nordeste du Brésil

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24. Pour finir je vous propose de faire circuler trois livres illustrés, l’unsur l’héritage africain au Brésil, l’autre sur les couvertures de livrets decordel et le troisième sur la capoeira, l’emblème corporel de l’art afro-bahianais, à la fois une danse, une lutte, un art martial et un sport, d’ailleursle sport national par décret depuis les années 1930.

25. Je suis ouvert à vos questions et commentaires, dans cette très agréableambiance de liberté d’expression et de tolérance universitaire. Depuislundi, ici, à Tombouctou, je me sens bien à l’aise, chez moi, comme àBahia. Merci!4

4 Un débat animé et courtois et l’échange des coordonnées professionnelles ont eulieu à partir des questions posées par les étudiants présents. La plupart de cesquestions concernaient les possibilités d’échanges universitaires entre les paysd’Afrique representés à Tombouctou et le Brésil et, notamment de la part desétudiants maliens, l’éventuelle et actuelle existence au Brésil des communautésdescendantes des Africains qu’y seraient arrivés avant les Portugais. À l’occasion, lachercheuse Alida Jay Boye, de l’Université d’Oslo, coordonnatrice du projet Timbuktu

Manuscripts Project for the preservation of Historic Arabic documents from Timbuktu, m’aoffert une copie de son travail en cours, intitulé The Tainting of History: The case of

the quest for Abubakari II et je l’en remercie vivement. Abubakari II est le nom arabede Mande Bori, Le Marin Roi du Mali, qui, selon un manuscrit de l’historien syrienal-Omari, daté de 1335, aurait organisé une expédition de 2000 bateaux et croisél’Océan Atlantique. Dans ce travail, la chercheuse présente une bibliographieraisonnée concernant l’éventuelle présence africaine pré-colombienne auxAmériques, dont les titres suivants :

• LAWRENCE, H. Mandinga Voyages Across the Atlantic In: African Presence in

Early America. New Brunswick, NJ: Transaction Books, 1987. p. 55-81.• VAN SERTIMA, Ivan. African Presence in Early America : They came before

Columbus. New York : Random• MACGAFFEY, Wyatt. Red and Black in the New World, Review of Van Sertimas

African Presence in Early America, Journal of African History, [S.l], p. 173-174, 1989.

• MALLOY, Stewart C. Traditional African Watercraft: A New Look. NewBrunswick (U.S.A.): Transaction Books: 1984. p. 163-176.

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O cordel da vida e o teatro e a palavra bião*

* Palestra realizada em 16 out. 2003, na Academia de Letras da Bahia, publicada In:BIÃO, Armindo, Teatro de cordel na Bahia e em Lisboa. Salvador: SCT/FUNCEB, 2005. p. 23-45.

Saudação

Digníssimo Presidente desta Academia, Monsieur le professeur

Cláudio Veiga, a quem manifesto meu agradecimento pelo convite paraesta palestra;

Digníssimas Senhoras e Digníssimos Senhores Acadêmicos, quemuito me honram com suas presenças;

a quem peço perdoem-me a liberdade de, em particular epublicamente, transmitir a Dona Zélia Gattai, o convite do Ministro dasRelações Exteriores do Reino do Marrocos Mohamed Benaïssa, paraque retorne em visita à cidade de Assilah. Trata-se da cidadezinha deArzila, na costa marroquina atlântica, entre Tânger e Rabat, onde o reiDom Sebastião esteve pouco antes de desaparecer na Batalha de AlcácerQuibir em 1578; e onde estive há um mês, num colóquio internacionalsobre patrimônio cultural imaterial, do qual darei notícia posteriormente;

Digníssimas Senhoras;Meus senhores:

Apresentação

Excitado e comovido eu me proponho, aqui e agora, a apresentar àssenhoras e aos senhores algumas reflexões, ainda preliminares, fruto deminhas mais recentes pesquisas sobre quatro temas correlatos:

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

1. O primeiro tema é a literatura de cordel brasileira, particularmentepróspera no século XX;

2. O segundo tema é o teatro de cordel lisboeta, cujo apogeu parececoincidir com o século XVIII;

3. O terceiro tema é o teatro baiano contemporâneo, do qual tenhopodido participar como artista ou público ao longo de quase 50 anos;

4. E, finalmente, o quarto e último tema são as metodologias hoje emuso e discussão na área de conhecimento das ciências do homem e davida, que propõem, como Gilbert Durand, por exemplo, um trajetoantropológico entre o sujeito e o objeto. Assim, ousarei ter como fiocondutor desta palestra a minha própria vida, que, como demonstrareia seguir, encontra-se intrinsecamente associada aos quatro temas aquianunciados.

Por isso o título proposto: o cordel da vida e o teatro. O cordel é o fio,o cordão, o eco do coração. E o coração é o emblema mesmo da vidae, pode sê-lo também, da cordialidade que caracteriza este ambiente emque nos encontramos. Pois é este cordel, numa perspectiva absolutamentepessoal, simultaneamente interativa e “trajetiva”, entre o sujeito e o objeto,que me servirá de cavalo para chegar até as artes do espetáculo, matériae disciplina de minha predileção, atendendo a tão generoso convite dodoutor Cláudio Veiga.

Histórico

Nasci em Salvador, de um homem do Agreste, do Pedrão de Irará,nascido na Fazenda Desterro, e de uma mulher do Recôncavo, do Iguapedo Paraguaçu, de Maragogipe.

Na infância vivi em Roma, um bairro então de imigração recente, napenínsula de Itapagipe, e visitei, com frequência, minhas avós, ambasviúvas e vivendo no interior do Estado. A materna, Evangelina, emMaragogipe, no verão. A paterna, e madrinha, Jesuína, em Alagoinhas,

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no inverno, no entorno das festas de Santo Antônio. Pois, foi na sala deconvívio da casa de Vó Dindinha que conheci – deslumbrado – osalmanaques e folhetos de feira. E foi no alpendre de seu sítio, ainda nosanos 50, que vi e ouvi um tio paterno folgar com seu trio nordestino.Estes objetos e sujeitos pareciam acenar-me com um mundo maravilhoso,do qual, eu tinha certeza, participaria um dia. Para o aluno de uma escolaparticular católica – a Nossa Senhora da Guia, no bairro da Boa Viagem,e de acordeom, no bairro vizinho do Mont Serrat – mais afeto ao mundofeminino da casa, bem na tradição moçárabe, aquele mundo contido noimpresso transformava-se – como a mim – em gente do mundomasculino: da varanda e da rua e mostrava-se misterioso e estimulante.As lapinhas, fotos, quadros religiosos e folhetos, de Alagoinhas,transformavam-se então, com a música e a poesia, em cenas vivas, que sódepois eu relacionaria com os presépios e quadros vivos dos dramasescolares católicos, da matriz maragogipana da família.

As diferentes culturas, tradições esotéricas, conselhos úteis para a lavoura ea pesca, trechos de grandes autores e calendários, dos almanaques,articulavam-se com as histórias maravilhosas dos folhetos, na cena abertade minha imaginação. Aí eu me via chefe de trem, militar, artista da cena,diplomata... Na cena mais fechada do drama da vida, eu vivia o paradoxode um núcleo familiar espírita, ortodoxo, positivista inscrever-se numambiente familiar mais largo e comunitário, barroco. O ingresso naadolescência, dos 10 aos 15 anos, implicou o contato cotidiano com omundo masculino do Colégio Militar de Salvador (primeiro em Pitangueiras,depois na Pituba), com o mundo da rua, do ônibus e do Elevador Lacerda,no qual eu reencontrei o mistério do espetáculo da poesia e da cena.

Foi quando e onde presenciei, algumas vezes marcantes, curioso efascinado, contar, cantar e vender folhetos, aquela pessoa de chapéu cocoque se parecia com o Carlitos. Carlitos que eu já conhecia de um cinemaimprovisado na casa de um tio materno no bairro de Roma. A pessoaera Ele, o Tal, Cuíca de Santo Amaro. O cinema, familiar e de vizinhança,era a escada e a área de circulação entre a fábrica de velas Nova Aurora,de meu tio, no andar térreo e a residência de sua família, no andar superior.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

A alternativa, até então, fora o presépio vivo, o casamento na roça e oteatro espírita, de Leopoldo Machado e outros. Mas, a partir de 1965,com o conhecimento do Cinema de Arte da Bahia, do Instituto CulturalBrasil-Alemanha, do Instituto de Cultura Hispânica, da Aliança Francesa,do Vila Velha, dos espetáculos na Escola de Teatro e concertos naReitoria da UFBA, as alternativas multiplicaram-se, e o maravilhosofez-se cena real e verdadeira. De fato, em 1966, já aluno do ColégioEstadual da Bahia, o renomado Central – e ator do Grupo Amadorde Teatro Estudantil da Bahia – GATEB – testemunhei encantado o“Lançamento do Teatro de Cordel”, na expressão de João AugustoAzevedo, então diretor do Teatro Vila Velha e do Teatro dos Novos,com quem eu trabalharia, entre 1967 e 1979, em pelo menos quatroespetáculos e outros tantos eventos artístico-político-culturais. O ritmo,personagens, atores, musicalidade, colorido e ecos do cordel de minhavida, presentes naquele espetáculo, de 66, e em outros, que a ele seseguiram, me deram a consciência de ser testemunha e partícipe deuma coisa boa, bela, útil e importante para mim, para a Bahia, para oBrasil e para o mundo.

Entre 1978 e 1979, tive a enorme satisfação de fazer João Grilo namontagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, dirigida porMaurice Vaneau, então diretor do Teatro Castro Alves, e aceitei o desafiode ser diretor e protagonista de uma encenação do folheto As Proezas de

João Grilo, de João Martins Athayde, apresentada em refeitórios de fábricasdo Centro Industrial de Aratu, com patrocínio da Fundação Cultural doEstado e, com produção independente, em escolas e praças públicas deSalvador e Recôncavo baiano. As boas críticas ao espetáculo do TCA ea receptividade a minha primeira experiência como diretor teatralasseguraram-me de que o bom caminho começara a ser trilhado,fortalecendo, assim, o cordel de minha vida.

Mais recentemente, desde os anos 90, já com o título de doutor, passei adesenvolver pesquisas de caráter histórico e de encenação, lecionandopara jovens estudantes de teatro, na Universidade Federal da Bahia, etratando com as possibilidades épicas (narrativas) e dramáticas (de ação)

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do cordel. Deste trabalho resultaram as encenações que fiz com meusalunos/ atores: Isto é bom!, em 2001 (no Teatro do SESI); e Isto é bom

demais! em 2002 e em 2003 (na Sala 5 da Escola de Teatro, Teatro doSESI, Cine-Teatro Boa Vista, Sala do Coro do Teatro Castro Alves,Praça Pedro Arcanjo, no Pelourinho, Bienal do Livro e salas deespetáculos em Ilhéus, Itabuna e Vitória da Conquista). É tambémresultado desta história, a publicação de 33 folhetos do cordelistasantoamarense Antônio Vieira, através da linha editorial Cordel daSuperintendência de Cultura da Secretaria da Cultura e Turismo doEstado da Bahia – SUDECULT. O primeiro volume desta publicação,com 18 dos 33 folhetos, foi lançado há duas semanas, por ocasião daBienal Nacional do Livro da Bahia.

A literatura de cordel brasileira

Permita-me lembrar-lhes, de que a denominação Literatura de Cordel

aparece, no Brasil, entre 1879 e 1880, utilizada pelo folclorista SílvioRomero, inspirado por seu mestre português, Teófilo Braga, para designaro conjunto de folhetos de feira, com, habitualmente, de 8 a 64 páginas, 11 X16cm, de origem portuguesa, que passam a circular pelo Nordestebrasileiro em meados do século XIX. Entre 1893 e 1908, segundo apesquisadora Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, surge de fato umaliteratura de cordel, brasileira, com a publicação dos primeiros folhetos detrês poetas paraibanos: Leandro Gomes de Barros, Francisco das ChagasBatista e João Martins de Athayde. Há fenômenos equivalentes não sóem Portugal, mas também na França (littérature de colportage, literalmente“literatura em tabuleiro pendurado no pescoço”) e na Espanha (pliegos

sueltos, “folhas de papel – dobradas ao meio – soltas”). Em português,entende-se a expressão a partir da leitura do trecho abaixo do poema OBilhar de Nicolau Tolentino (1740/ 1811):

[...]E todos os formosos EntremezesQue, no Arsenal, ao vago caminhanteSe vendem a cavalo num barbante.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Neste texto, o curioso é a referência, provavelmente do final do séculoXVIII, ao texto de uma peça teatral, um quase gênero teatral, o entremez,comercializado na forma de um folheto dependurado num cordão.

O mito familiar

Habituei-me a ouvir de meu pai, falecido há mais de dez anos, umalenda familiar que dava conta da origem do sobrenome Bião. Segundoele, bião seria o nome de um pássaro da Amazônia, adotado pela famíliaapós a Independência do Brasil em 1822, em lugar de seu sobrenomeportuguês, desconhecido. E este pássaro, de canto feio e aparênciamisteriosa, se encontraria em extinção. Assim como ele, o nome Biãoem nossa família também se encontraria em extinção, pois haveria entreos parentes vivos deste sobrenome, menos homens que mulheres, poucoshomens casados, desses, poucos com filhos e poucos com filhos homens.

O fato é que pesquisei em vão em diversas fontes, inclusive na BibliotecaNacional no Rio de Janeiro. Parecia-me que o tal pássaro realmente nuncaexistira para além de nosso mito familiar. Em 1990, fui presenteado, porum primo distante da família Bião, com um livro de José Ramos Tinhorão,sobre os negros em Portugal, com generosos textos dedicados à literaturade cordel lusófona e ao teatro de cordel em Portugal. E aí eu vi a primeirareferência impressa à palavra bião. Segundo o autor, esta palavra atéentão (1988) nunca fora dicionarizada. Bião era um termo recorrentenos entremezes lisboetas dos séculos XVIII e XIX para designar ovasilhame de carregar cal, portado pelos popularíssimos personagensdeste teatro de cordel, os negros caiadores, que também usavam comoadereços uma escada e um pincel. Esta palavra poderia ser uma adaptaçãoao linguajar típico dos personagens negros dos entremezes portuguesesde palavras como boião e bujão, que designam vasilhas cilíndricas deboca larga para porte de tintas, outros líquidos, objetos pastosos e,também, sólidos de pequeno porte, em outros termos, um simples eprosaico balde.

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O teatro de cordel lisboeta

Albino Forjaz Sampaio afirma que “Teatro de cordel não é um gênerode teatro, é uma designação bibliográfica”. De fato, Duarte Ivo Cruzinforma que a expressão Teatro de Cordel engloba mais de “500 obras,entre originais, traduções e adaptações de comédias, farsas, peças deevocação histórica ou religiosa, dramas, parábolas ou provérbios, elogiosdramáticos...”. Sua apresentação é semelhante à dos folhetos da literatura

de cordel brasileira, embora, habitualmente, com quase o dobro de suasdimensões (15 X 20cm). É fato que em Portugal houve maior variedadede dimensões dos folhetos, bem como de seus números de páginas, queno Brasil, conforme se pode comprovar com a análise do Catálogo deCordel da Fundação Gulbenkian e em visitas aos acervos existentes naBiblioteca Nacional, na Torre do Tombo, no Teatro D. Maria II e nosalfarrábios do Bairro Alto, em Lisboa.

Sintoma do cosmopolitismo de Lisboa nos séculos XVIII e XIX, ondeum público consumidor mantinha teatros e a produção em série decópias de textos de espetáculos, o teatro de cordel português parece terse revelado no Brasil longe da expressão lisboeta “teatro de cordel”,apenas na forma de montagem de entremezes, com elencos luso-brasileiros nos teatros das maiores cidades do país, como Salvador, porexemplo. De fato, um dos quatro entremezes portugueses sobre os quaisvenho trabalhando com meus alunos, o famosíssimo Entremez Novo da

Castanheira ou a Brites Papagaia (1798), de João Caetano de Figueiredo,com música de Marcos de Portugal, foi “copiado” em Salvador, noTeatro São João, em 1813, conforme constatou o músico e musicólogoLucas Robatto, em sua pesquisa com a documentação do Teatro SãoJoão, recentemente restaurada e à disposição dos pesquisadores noArquivo Público da Fundação Pedro Calmon, Centro de Memória eArquivo Público do Estado da Bahia. Há também indícios da produçãodeste mesmo entremez tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro, nestamesma época.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Conclusão

Os outros textos com os quais estou trabalhando, com transcriçõesdiplomáticas, atualizações e revisões ortográficas e leituras dramáticas,são o Entremez intitulado Os Cazadinhos (sic) da Moda (1784), de LeonardoJosé Pimenta e Antas, a Nova e graciosa pessa (sic) As convulções (sic), desmaios

e desgostos de huma (sic) peralta da moda, na infausta morte de seu cãozinho (sic)chamado Cupido, obra celebre (sic), divertida e de gosto a todas as apaixonadas dos

ditos dengues (1786), de autor desconhecido e o Novo Entremez Intitulado

Hum Enganho (sic) Astuto o (sic) o Modo de Nunca Pagar, sem data ou autorconhecidos. Consegui localizar este último, seguindo a pista de Tinhorãosobre os negros caiadores, nos arquivos da Mesa Censória, na Torre doTombo, em Lisboa. Contudo, trata-se de um manuscrito que não portasinal de ter sido submetido à Mesa.

Como sugere aquele pesquisador brasileiro, este entremez deve ter sidoescrito, provavelmente, antes de 1768, e talvez não tenha sido entãoimpresso por conta das críticas que apresentava aos poderosos dodinheiro e da justiça. A peça dá conta das ameaças do pobre pintor deparedes, cumpridas, embora em vão, de recorrer à lei e à justiça parareceber o pagamento devido por seu trabalho e não pago peloproprietário da casa que caiara, um velho avarento, corruptor do notário,que, no desenrolar do entremez, também “enrola” outros credores. Éprovavelmente o texto mais antigo que registra a palavra bião.

E é possível que um verdadeiro pintor, um negro caiador, ou mulato, oubranco caiador ou outro tipo de pintor de paredes ou mistura étnica,por exemplo, tenha recebido e adotado o nome de seu instrumento detrabalho como apelido, depois sobrenome familiar. Bião é de fato osobrenome de um pintor, de cuja existência há indícios na história daBasílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na Cidade Baixa, onde,aliás, meus pais se casaram. Talvez se trate do mesmo sobrenome queme identifica. Seria uma hipótese possível.

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Armindo Bião

Diferentemente do teatro de cordel lisboeta, que muito provavelmenteexistiu antes na cena e depois no folheto, o teatro de cordel “lançado”por João Augusto e, em boa parte, o que eu e muitos outros continuamosa fazer na Bahia, é a adaptação de folhetos da literatura de cordel brasileirapara a cena. Como demonstração, pediria a permissão aos senhorespara ler alguns trechos de um folheto de Antônio Vieira, a seguir.

Ainda, antes de concluir, gostaria de situar as pesquisas aqui brevementerelatadas no campo da etnocenologia, uma Etnociência das artes, práticase comportamentos espetaculares, que desde 1995 tem sido motivo detrabalho de um conjunto multinacional de pesquisadores. Em colóquiosque realizamos, desde então, na França, no México, aqui na Bahia e noMarrocos, e em pesquisas acadêmicas e artísticas, inclusive de mestradoe doutorado, temos procurado associar teoria e prática, ação e reflexão,o discurso e a vida do homem comum, com o discurso e a vida doartista praticante e do pesquisador, pertencente ou estrangeiro àcomunidade em estudo, gerando um conhecimento novo eexperimentando novas metodologias transdisciplinares.

O conceito de patrimônio cultural imaterial, em fase de normalizaçãono âmbito da UNESCO, com previsão de divulgação para outubropróximo, é, por um lado, um sintoma do fortalecimento dos paradigmasde base da etnocenologia, a perspectiva compreensiva e relativista, a“trajetividade” e a pluralidade, as identificações e as alteridades, a inserçãogeopolítica das pesquisas, objetos e fenômenos culturais e a interconexãoe sobreposição natureza/ cultura. Por outro lado, é um indicador daconfusão teórico-metodológica contemporânea e dos jogos de podernos usos e abusos das línguas e das palavras. Foi o que pude constatarrecentemente no colóquio de Arzila, dentro do 25° Moussem CulturelInternational d’Assilah. Passemos agora à leitura dos trechos do folhetoA peleja da ciência com a sabedoria popular, que anunciei: TRECHOSDO FOLHETO “A PELEJA DA CIÊNCIA COM A SABEDORIAPOPULAR”, de Antônio Vieira [transcritos para a presente publicaçãocom autorização de seu autor]

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Trata-se duma pelejaTravada através dos temposOnde as duas contenderasAndam atrás de um consensoContudo, as duas partesDão banho de ensinamentos

As duas são importantesDo mundo, elas são molaDe um lado a ciênciaQue tem por sede a escolaDo outro a sapiênciaQue o povo tem na caixola

Ambas são imprescindíveisRepresentam a própria vidaO debate entre elasDeixa a coisa esclarecidaNão pode ter vaidadeTer preconceito ou intriga

As duas se complementamSe equivalem, tambémQuando uma está ausenteQuem procura a outra temUma sempre anda na frenteSabendo que a outra vem

As duas vêm travandoAcirrada discussãoQuerendo ser cada umaDona da situaçãoE no final sempre empatamSempre as duas têm razão

A ciência iniciouCom toda sua teoriaProcurando ignorarA natural sabedoriaQue se manteve serenaRespondendo o que sabia

Foi logo se apresentando:-Eu sou a grande ciênciaO que eu digo tem valorSou a própria sapiênciaQuem não estiver comigoPra falar só com licença!...

Então a sabedoriaPopular se apresentou:-Eu represento a mim mesmaDesde quando aqui estouConfesso que vim primeiroDo que qualquer um doutor!

O tema inicialProposto pela ciênciaFez com que a sabedoriaJulgasse ser a saliênciaPor isso sua respostaFoi forte e com tendência

A pergunta foi mortalA sabedoria, em cimaRespondeu com precisãoE numa linguagem finaO que foi argumentadoIncidiu na medicina:

C: Você precisa entenderQue sua vez acabouFique quietinha em seu cantoQuem cura agora é doutorCharlatanismo é crime!...Dá licença, por favor!...

S: E você aonde estavaQue não veio para cáQuando isso era só mataO céu azul e o marE eu curava doençasSomente à base e chá?!...

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Armindo Bião

C: Isso foi naquele tempo!...Do bumba, do charlatãoDar chá agora a doenteÉ uma contravençãoSe eu lhe pego fazendoDou-lhe é voz de prisão!...

S: Continua enganadaIncisiva e é radical!...Tudo que existe na terraTem uma função naturalAté hoje tem quem queiraO meu chá medicinal!

C: Amiga, não tenho culpaSe alguém não tem acessoAos avanços da ciênciaNão vou dar jeito, confessoProcure ganhar dinheiroQue assim terá ingresso

S: Só pra complementarResumir essa pendengaVou mostrar para vocêE não è nenhuma arengaEmbora a ciência existaO mundo anda capenga

C: Se o mundo anda capengaA culpa é minha, agora?!...È dá natureza humanaDo egoísmo que assolaDa busca pelo dinheiroDa luta pra andar na moda!...

C: Entenda que a ciênciaAo mundo presenteouCom a física, com a químicaNa lua o homem pisou!...Em todo ramo existe:Um Phd, um doutor!...

S: Se partirmos para a físicaPro ramo da energiaO sol já estava aquiAs planetas já existiamQuando a ciência chegou,Muita coisa eu já sabia!...

C: Os remédios eficazes,As soluções, as misturas,Cosméticos e similaresQue promovem a formosuraE faz a mulher mais belaIsso é ciência da pura!

C: E as ciências exatas,Que fazem conta, calculam...Desde o grão do cerealAo foguete, nas alturasSe não fosse a ciênciaNão seria uma picula?

S: Matemática?!...nem fale:Tudo veio calculadoA ciência fez apenas:Dar compasso e esquadroPorquanto a matéria-primaDeus nos deu como legado!...

S: Biologia, um exemploVocê pode achar ruimContudo ele me bastaÉ um mistério sem fimUma casa de abelhaUm munduru de cupim

C: E da Ética, amiga...Conceitue, vamos lá!...O que você me diz dela...De quem estudando estáTanto pra ganhar a vida,Quanto para governar?!...

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

S: Qualquer instituiçãoQue se for esmiuçarInfelizmente, aliDeveremos encontrarMuita falcatrua grossaPra gente se envergonhar

C: Isso também não é comigoEu ensino a andar certoSe depois o cidadãoDizendo que é espertoPratica a corrupçãoEu não estou mais por perto!...

S: E por que radicalismoPra defender a ciênciaSe a escola dá diplomaA muitos sem consciênciaQuanto mais eles aprendem,Mais aumenta a inadimplência?

C: Se aquilo que eu ensinoPara a vida melhorarO homem faz o mal usoA ponto até de roubarO responsável é eleQue não soube utilizar

S: Eu concordo com vocêNão posso lhe condenarCada um tem seu arbítrioPara usar e abusarMas vamos falar agora:De poesia popular

C: Poesia Popular?!...O que tem essa de raro,Dela eu conheço tudoNão precisei de preparoQualquer um pode faze-laÉ como jogar baralho!

S: Eu sei que você, ciênciaQuer ser a dona da bolaMas tem coisas que acontecemMesmo você estando foraPoesia, por exemploIndepende da senhora!

C: Se independe de mim?!Por isso é que escrevo erradoNão aprende a pontuarNão sabe fazer ditadoTrocam letras e palavrasComete gafe adoidado!

S: O poeta popularPode até cometer gafesDe pronúncia, de acentoEsquecer algumas partesMas mesmo sem a gramáticaInda faz obra de arte

C: Mas voltando a falarDe nossa antiga disputaConfesso não ter a baseDa poesia matutaMinha praia são poemasDa literatura culta

S: Carlos Drummond de AndradeEm setenta e seis diziaQuando elegeram BilacO príncipe da poesiaQue aquela homenagemA Leandro caberia

C: E quem é esse LeandroVeja só que disparatePoesia é coisa finaÉ ouro de bom quilateCarece de muita rimaMuito mimo no arremate!

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Armindo Bião

S: Leandro Gomes de BarrosAtaíde escreveuFoi o bardo mais fecundoQue o Brasil conheceuCanções não se sabem quantasForam seiscentas e tantasAs obras que escreveu

C: Infelizmente, amigaDele nunca ouvir falarEstou ouvindo, agoraSeu nome pronunciarPeço que me compreendaPor favor, não se ofendaEu não posso adivinhar!

S: Por isso disse DrummondJurados mal informadosNão conheciam o NordesteNem seu poeta afamadoFicar restrito ao RioComo se todo o BrasilFosse ali representado

E nesse exato momentoAs duas deram as mãosA platéia delirouHouve choro de emoçõesA sabedoria viuQue a ciência anuiuA sua argumentação

Referências

BIÃO, Armindo; GREINER, Christine, (Orgs.). Etnocenologia, textos

selecionados. São Paulo: Annablume, 1998.

CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6.ed. São Paulo: EDUSP, 1988.

LISBOA. Fundação Calouste Gulbenkian. Catálogos V: Literatura deCordel. Separata do Boletim Internacional de Biografia Luso- Brasileira,Lisboa, v. 11, n. 3, 1970.

CRUZ, Duarte Ivo. História do Teatro Português. Lisboa: Verbo,2001.

SAMPAIO, Albino Forjaz de. Subsídios para a História do TeatroPortuguês: teatro de Cordel. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1922.(Catálogo da Coleção do Autor).

SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca dos. La littérature de cordel au

Brésil. Paris: L’Harmattan, 1997.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

TINHORÃO, José Ramos. Os Negros em Portugal: uma presençasilenciosa. Lisboa: Caminho, 1988.

TINHORÃO, José Ramos. Os Negros em Portugal: uma presençasilenciosa. 2 ed. Lisboa: Caminho, 1997.

VIEIRA, Antônio. A Peleja da Ciência com a Sabedoria Popular. Salvador:Ed. do autor, 2002.

VIEIRA, Antônio. Histórias que o povo conta.Salvador: SUDECULT/SCT, 2003. v.1.

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Armindo Bião

Apesar do teatro de cordel português não se constituir em um gêneroliterário, pois é de fato mais especificamente um formato editorial, aexpressão “teatro de cordel” é habitualmente relacionada ao que se poderiadefinir como um dos muito variados gêneros da literatura dramática, oentremez1. Considerado frequentemente como um gênero menor, decaráter apenas complementar, posto que historicamente associado adivertimentos entre os pratos de um banquete, ou destinado a serapresentado entre – ou após – peças do teatro dito sério, o entremezpode ser classificado como um subconjunto da literatura dramática dogênero cômico, podendo ainda ser identificado ao chamado teatro ligeiro,incluindo, constantemente, números musicais. Vale ainda que se registreque os entremezes, no mundo lusófono, não se restringem à suaidentificação com o teatro de cordel lisboeta, dos séculos XVIII e XIX,podendo ser encontrados, antes e depois desses séculos, em contextosdiversos.

Sua linguagem remete sempre à oralidade, à língua falada em seu entornocultural, do tempo em que foi escrito e produzido em cena, por issomesmo extremamente compreensível com facilidade – pelo público maissimples e de menos ampla formação intelectual – podendo ser afirmado

Sobre quatro entremezes portugueses

e a palavra bião*

* Excertos de BIÃO, Armindo. Teatro de cordel na Bahia e em Lisboa. Salvador:SCT, 2005. 264 p, a propósito dos textos de quatro entremezes, que foram objeto deleituras dramatizadas no Gabinete Português de Leitura, de Salvador, Bahia, comalunos atores da Escola de Teatro da UFBA, publicados nesse livro.

1 “encenação de jograis ou bufões, realizada entre um curso de pratos e outro, nosbanquetes [...] peça curta [... intervalo [...] aquilo que preenche esse intervalo [... ]farsada [...] alimento entre as refeições [...] entretenimento entre os atos de uma peçade teatro...”: In: DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,2001. p. 1167.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

que seus textos são via de regra datados e bastante simples, muitoprovavelmente admitindo improvisações de seus atores, com certafrequência. Daí a dificuldade que encontramos para a completacompreensão contemporânea desses textos, alguns escritos há mais de230 anos, do outro lado do Atlântico e do globo terrestre, na capitalportuguesa.

Buscando ampliar as condições para sua compreensão, foi realizado –pela equipe diretamente envolvida com a realização das leituras dramáticas– um intenso trabalho de revisão ortográfica, no qual, dessacralizando-se as normas gramaticais e linguísticas desses documentos, experimentou-se a atualização ortográfica, da acentuação e da pontuação, inserindo-seum componente lúdico que, certamente, facilitou o enfrentamento dapretensiosa proposta a que nos impusemos.

Tendo compulsado uma centena de entremezes do teatro de cordellisboeta hoje conhecidos, equivalendo a 20% de seu total, dos acervosdo Teatro Nacional D. Maria II2, da Torre do Tombo3, da Biblioteca daFundação Gulbenkian4 e da Biblioteca Nacional de Lisboa5, e tendoconsultado os catálogos de Albino Forjaz Sampaio e da FundaçãoGulbenkian, reuni – mais ou menos aleatoriamente – cópias de cinquentae três textos, a maioria dos quais efetivamente impressos. Ora por contada curiosidade despertada pelos títulos, ora por conta de referências aeles feitas por José Ramos Tinhorão, em sua obra Os Negros em Portugal:

Uma Presença Silenciosa (.1988/ 1997), ora pela existência neles depersonagens recorrentes, como o Preto Caiador ou, ainda, pela inserção

2 Composto a partir do acervo original de Albino Forjaz Sampaio, este acervo reunia em2002 929 exemplares do corpus então conhecido, acondicionados em 32 caixas.

3 Trata-se do acervo de referência para o corpus conhecido mais organizado, matriz, porexemplo, do acervo da Biblioteca da Fundação Gulbenkian.

4 Acervo organizado em catálogo: Catálogos. V. Literatura de Cordel. Separata doBoletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira. vol. 11, n. 3. Lisboa: FCK,1970. (digitalizado).

5 166 títulos disponíveis para consulta, em abril de 2005, em Monografia Geral e

Manuscritos.

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Armindo Bião

de números musicais e referências à fofa e ao lundu, de interesse históricopara as pesquisas sobre as artes cênicas na Bahia, dez desses entremezesforam selecionados para a pesquisa com a equipe do projeto integrado.

Esta equipe envolveu, particularmente, alunos – e ex-alunos – degraduação da Escola de Teatro da UFBA, na qualidade de bolsistas deiniciação científica ou mesmo de pesquisadores voluntários, valendo, aqui,citar Iara de Carvalho Villaça, Ednei Alessandro Pinto Santos, MarconiAraponga, Dílson Néri, Nelito Reis, Ana Waneska de Almeida, Felipe deAssis, Daniel Caliban, Vitória Bispo, Majó Sesan, Marcelo Augusto, VictorCayres, Amós Heber, Márcia Libório, Rilná Valois, Luciana Hortélio,Ângelo Flávio, Liliana Mattos e Leonardo Cunha.

Lendo com eles, e ouvindo-os ler, ampliei minha compreensão –ampliamos todos nossa compreensão – do conteúdo dos entremezesaté então selecionados. De comum acordo entre todos os pesquisadoresenvolvidos, quatro desses entremezes foram escolhidos para comporemo repertório das leituras dramáticas públicas, a serem realizadas noGabinete Português de Leitura, em Salvador, com entrada franca. Decerto modo, o exercício de nossa oralidade, mesmo contemporânea ebrasileira, contribuía para recuperarmos o sentido da oralidade históricalisboeta.

A seguir, encontram-se publicados os textos dos quatro entremezes lidospublicamente em Salvador em 2003, sem as atualizações realizadas emtempo para essas leituras dramáticas, antecedidos de breves comentáriose dos respectivos programas distribuídos na ocasião de suas respectivasleituras. Vale destacar que, por iniciativa dos estudantes/ atores, foramservidos ao público, nessas ocasiões, acepipes, como forma de recordar– em caráter privado, mas em ambiente público – que os entremezesforam, em algum momento da história do teatro, servidos entre pratosde uma grande refeição pública.

Vale destacar ainda que, igualmente por iniciativa dos jovenspesquisadores, os responsáveis diretos por essas leituras identificaram

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

seus respectivos programas como cardápios, nos quais, o prato do diaera sempre o entremez a ser lido, na ocasião da distribuição do respectivoprograma.

Essa série de leituras dramáticas, nas quais buscou-se sempre inserir peçasmusicais em piano inspiradas pelos textos dos entremezes, foi realizadapor iniciativa dos bolsistas Nelito Reis e Ana Waneska de Almeida, doex-bolsista Felipe de Assis e do colega ator Gideon Rosa, da Escola deTeatro da UFBA, que coordenava então um projeto de leituras dramáticascom jovens graduandos recém-ingressos na Escola, bem como graçasao apoio do Real Gabinete Português de Leitura, de Salvador, que colocoua nossa disposição suas belas instalações na Praça da Piedade, no centroda cidade.

Ao final deste livro, em sua quarta parte, dedicada às ilustrações, apósdois conjuntos de fotografias, um do espetáculo Isto é Bom Demais! outrodessas leituras dramáticas, podem ser vistas imagens de alguns dospersonagens recorrentes dos entremezes do teatro de cordel lisboetados séculos XVIII e XIX: o Preto Caiador (presente no primeiro e noúltimo dos textos aqui publicados), a Preta Vendedora de Mexilhões(que faz constantemente par com o Preto Caiador, com o qual apareceno último desses entremezes), o Marujo e a Castanheira (o par deenamorados protagonista de um dos mais populares de todos essestextos, que encerra a brevíssima coletânea aqui publicada).

Sobre O Engano Astuto

Um Engano Astuto ou o Modo de Nunca pagar foi muito provavelmente

escrito antes de 1768, não se conhecendo até o presente momento

qualquer versão sua já então publicada, o que reveste de importância

especial sua – inédita, ressalte-se – publicação nesta presente obra

bibliográfica. Acrescente-se que o único acervo no qual se encontrava,

até 2002, exemplar manuscrito desse entremez era o da Torre do Tombo,

podendo ser encontrada cópia apenas na Biblioteca da Fundação

Gulbenkian.

139

Armindo Bião

Pode-se especular, a partir da expressão “Novo Entremez Intitulado”,

que antecede seu título, que seria uma nova versão, justificada possivelmente

por seu eventual sucesso, de um entremez ainda mais antigo. No entanto,

não se conhece outra versão do mesmo texto ou título, manuscrito ou

impresso, embora muitos sejam os entremezes nos quais aparecem um

de seus personagens, o Preto Caiador.

Possivelmente, conforme sugere José Ramos Tinhorão, (1988/ 1997),

seu manuscrito teria sido proibido de ser impresso, por conta do que

viria a se constituir formalmente na Real Mesa Censória. Também, em

boa parte talvez por essa mesma razão, seu autor continua desconhecido.

Foi justamente seguindo a pista registrada por Tinhorão, que tive acesso

a esse manuscrito, na Torre do Tombo, cuja generosa disponibilidade

institucional permitiu-me, de modo surpreendentemente simples, ágil e

rápido, fotocopiá-lo.

Este entremez apresenta três personagens com nomes declarados. Há o

seu protagonista, o Senhor Pirralho, estereótipo do velho rico, poderoso,

mentiroso, avarento e corcunda. E também há Lapone, ou Laponi, o fiel

criado do Letrado, que também se revela um dos credores do protagonista,

além de Gaspar Galego, um estrangeiro. Os outros personagens não são

identificados nominalmente, mas apenas por alguma de suas características

principais ou funções sociais. Há uma Velha, um Letrado (entendido em

letras e leis, uma espécie de advogado), um Sapateiro, um Cabo de Ronda,

um Preto e um Coadrilheiro, além de Rondistas.

Foi certamente o texto que apresentou maiores dificuldades para sua

transcrição diplomática, na forma de digitação, por conta de tratar-se de

um texto manuscrito e de ser o exemplar com o registro em português

mais arcaico com que nos deparamos – até o momento, em nossas

pesquisas.

A intriga deste entremez consiste no assédio dos credores ao velho

avarento, que se declara recentemente chegado à falência, recusando-se a

honrar suas dívidas e buscando amparo legal para tanto. Seus credores

140

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

ameaçam-no com a justiça, representada, no entremez, por um enganador

profissional tanto de clientes quanto de credores, a quem também tenta

enganar o Senhor Pirralho, de quem se constitui o Letrado naturalmente

em novo credor. O avarento é enfim preso pela guarda de ronda, alertada

pela violenta reação dos credores iludidos, aparentemente também levados

presos, embora secundando o Cabo, o Coadrilheiro e os Rondistas, em

sua tarefa de prenderem o Senhor Pirralho. Os estudantes ressaltaram

sempre a atualidade desse material dramatúrgico – inclusive a solidariedade

de classe dos rondistas – com a maioria dos credores.

Vale destacar que o Galego e o Preto falam em português fora da norma

habitual da língua então certamente falada em Lisboa, constituindo-se,

naturalmente, em fonte adicional de humor, incluindo-se assim este

entremez na família de textos teatrais que extraem humor da presença

neles de personagens estrangeiros, o que foi comentado, por exemplo,

por Aristóteles, quando alertava em sua Poética para o perigo de as

tragédias incluírem personagens estrangeiros e provocarem –

indevidamente – o riso do público; e o que foi utilizado, por exemplo,

por William Shakespeare, em seu Henry V, cujas montagens sempre

provocam riso com a ridicularização do inimigo, aí representado pelo

personagem do Soldado Francês.

Vale igualmente destacar o jocoso da denominação do ridículo – corcunda

– e poderoso Senhor Pirralho, epíteto muito provavelmente então

identificado, como ainda hoje o é no Brasil, com uma forma pejorativa

de designar-se uma criança pequena, ou, como ainda se diz em Portugal,

um miúdo, ou um puto.

Trata-se do texto em que, mais uma vez de acordo com as descobertas

de Tinhorão, aparece, pela primeira vez a palavra bião, até hoje ainda

não dicionarizada, designando um dos instrumentos de trabalho do Preto

Caiador (os outros sendo a escada e o pincel).

Realmente, não obtivemos qualquer sucesso em nossas buscas nesse

sentido em muitos dicionários. Evidentemente, minha curiosidade pessoal

141

Armindo Bião

pode ser facilmente compreendida, pelos motivos expostos anteriormenteaqui mesmo neste livrinho, no texto da palestra que proferi na Academiade Letras da Bahia sobre a matéria maior que, também aqui, nos interessa,qual seja o teatro e a literatura de cordel no mundo lusófono.

No entanto, numa manhã de domingo, na feira de livros manuseados daRua Augusta, na Baixa Pombalina de Lisboa, deparei-me com exemplaresda terceira edição, datada de fevereiro de 2003, do Tratado das Alcunhas

Alentejanas de Francisco Martins Ramos e Carlos Alberto da Silva, dasEdições Colibri, patrocinado pelo Ministério da Cultura, pela DelegaçãoRegional da Cultura do Alentejo, pelo Instituto Camões (do Ministériodos Negócios Estrangeiros) e pela Associação de Defesa dos Interessesde Monsaraz. E aí descubro impressa a palavra bião (RAMOS, SILVA,2003, p. 100), recolhida no Concelho de Serpa, Distrito de Beja, eidentificada como uma alcunha aplicada a um indivíduo do sexomasculino, um cognome individual, uma alcunha adquirida, umadesignação rejeitada, uma alcunha de referência, entretanto, sem elementossuficientes para uma classificação completa.

Permitindo-me, ainda, aqui, em consonância com meu comentário notexto da palestra aqui publicado logo após a apresentação deste livrinho,uma digressão, sobretudo de caráter pessoal, por conta de meu interesseno sobrenome que me foi transmitido por minha família paterna, mastambém de interesse mais amplo, por conta da inserção desta palavra notexto mais antigo – bem como em outros, de forma recorrente – dereferência para nossa pesquisa, avançaria duas hipóteses sobre a prováveltransformação desta alcunha (também apelido no Brasil contemporâneo)em apelido (também sobrenome em nosso país atualmente). Ambas ashipóteses consideram o que registra o Tratado das Alcunhas Alentejanas emquestão, particularmente no que se refere a tratar-se de “uma designaçãorejeitada”, portanto remetendo a algum sinal de desprestígio social emseu contexto de origem.

A primeira hipótese remete a uma das formas mais usuais de atribuiçãode alcunhas às pessoas, por seu porte físico, particularmente quandofugindo aos padrões habituais, sobretudo aqueles de prestígio. Não teria

142

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

sido o primeiro Bião um indivíduo cujo físico poderia remeter ao objetotípico dos negros caiadores, uma profissão certamente das não maisprestigiadas e prestigiosas, desde pelo menos o século XVIII em Portugal?Remeter exatamente ao recipiente por eles usados para transportar cal,meio um balde meio um bujão? De fato, dentre as alcunhas reunidasnesse Tratado ao qual aqui nos referimos, dentre aquelas recolhidas noAlentejo, relacionadas com a estrutura física e morfológica dos receptores,pelo fato de serem gordos, encontramos: “Alguidar, [...], Barril, [...],Caldeirão, [...], Panela Inchada, [...], Pipa, [...], Pote, [...]” (SILVA; RAMOS,2003, p. 39); todos esses exemplos de recipientes que poderiam igualmenteremeter ao bião de cal. E essa hipótese pode ser considerada mesmopara um indivíduo que não fosse um negro caiador.

A segunda hipótese, não menos desprezível, remete à possibilidade deatribuição da alcunha à pessoa por conta de um de seus objetos deidentificação profissional, no caso uma profissão de negros no séculoXVIII em Lisboa. Assim, por exemplo, em qualquer contexto e época,um marceneiro poderia ser conhecido como Martelo, um ferreiro comoBigorna, um Barbeiro como Tesoura, um feirante como Balança, umascensorista como Elevador, um motorista como Automóvel, um taxistacomo Táxi, um porteiro como Porta, uma secretária como Secretária e– por que não? – um preto caiador como Bião. Se, mais uma vez noâmbito da história pessoal e familiar, eu remetesse à vaga referência deter visto na adolescência, em texto de divulgação publicado num catálogotelefônico na Bahia, sobre a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, emSalvador, o nome de um pintor de sobrenome Bião, esta segunda hipótesese robusteceria e abriria pistas para uma pesquisa nos arquivos daquelaigreja, em outro momento e circunstância. Quanto à possível ascendência,na família Bião, à qual pertenço, de pessoas de origem negro-africana,muitas vezes já acreditei ter reconhecido indícios, mais ou menos evidentes,sobre os quais naturalmente só poderei comentar em outra oportunidade.

De todo modo, O Engano Astuto, que poderá ser lido a seguir, além derepresentar um humilde pintor de paredes, negro, na Lisboa do séculoXVIII, que ameaça seu devedor poderoso com a justiça, traz também,

associado a esse personagem, tantas vezes representado em entremezes

143

Armindo Bião

portugueses e em gravuras e desenhos que representam o povo lisboeta,

conforme pode ser comprovado neste presente trabalho, uma palavra

ainda não dicionarizada, hoje em desuso para o objeto que designa no

contexto em tela, mas viva no sobrenome deste pesquisador6. A mesma

palavra, associada ao mesmo personagem, aparece igualmente no último

entremez aqui publicado, o famoso A Brites Papagaia.

Sobre Os Casadinhos da Moda

A versão desse entremez, com a qual trabalhamos, é uma cópia que nos

foi doada por José Móra Ramos e pela organização Cena Lusófona,

proveniente do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa7. Nela, há

indicação de ser o impresso proveniente da Oficina de Antonio Gomes

e o texto de autoria de L. J. P. Já José Ramos Tinhorão informa ter tido

acesso a uma versão desse entremez impressa na Oficina de Francisco

Luiz Ameno e datada de 17848 (1988, pág. 436, CMT-UC-9272-AFS-

6 No documento genealógico conhecido como “Árvore genealógica das principais famíliasdo Pedrão”, de autoria do Vigário Cônego José Baptista da Silva Carneiro, datado deinício do século XX, pertencente ao acervo documental do Instituto Geográfico eHistórico da Bahia, há referências a este sobrenome a partir do último quartel doséculo XIX (ver MEMÓRIA Histórica e Genealógica dos Mendonça Bezerra Ferreira deMoura – uma saga de religiosidade e colonização – desenvolvimento e atualização da árvoregenealógica das principais famílias do Pedrão. 2.ed. Salvador: Núcleo de EstudosGenealógicos e Heráldicos da Bahia, 2003. (Biblioteca Genealógica Baiana; V. 1) ; emcatálogos telefônicos da Bahia há cerca de 40 registros com este sobrenome (sobretudoem Salvador e Feira de Santana), um terço dos quais já conhecidos pelo pesquisadorcomo dessa mesma família, que possui igualmente quatro registros em São Paulo,Brasil; nos registros telefônicos de Portugal este sobrenome aparece uma vez em cadauma das seguintes quatro cidades: Porto, Lisboa, Bom Sucesso e Cacem, mas, até omomento, sem qualquer indício de parentesco com o mesmo sobrenome no Brasil.

7 Na Biblioteca Nacional de Lisboa, em abril de 2005, constatamos existirem as seguintesreferências: Entremez intitulado Os cazadinhos da moda em Manuscritos (emicrofilme), exemplar de 1790 (16 p. 19 cm), da Off. De António Gomes (F. 5979;F5080); e Os cazadinhos da moda (De L. J. P.) em Monografia Geral, exemplar, exemplarde 17.. (1v 40) da Offi. De Antonio Gomes (L. 8004V); há igualmente um exemplardessa versão no acervo do Teatro D. Maria II (caixa 666).

8 Também no acervo do Teatro D. Maria II há um exemplar dessa versão (caixa 645).

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

91.BNL-L. 3004 V.). O Portugal – Dicionário Histórico associa as iniciais L.

J. P. a Leonardo José Pimenta e Antas, mestre de escrita no Real Colégio

dos Nobres e autor de vários outros entremezes como As Desordens dos

Peraltas, de 1771, e Chocalho dos annos de D. Lesma, de 1783. Trata-se sem

dúvida de um texto aprovado pela Real Mesa Censória, que deu licença

para sua divulgação e encenação em espaços públicos ou privados.

São três as principais características deste entremez. Em primeiro lugar,

trata-se de um texto inteiramente escrito em versos, que variam de 10 a

12 sílabas. Em segundo lugar, este entremez se caracteriza por incluir

muitos números musicais (cinco), com referências, por exemplo, à moda,

à modinha, à fofa, à filhota, ao minueto e ao lundum. Finalmente,

cumprindo o que é norma de todos os entremezes do teatro de cordel

lisboeta, tratar da atualidade, este se caracteriza por tratar de modo

explícito e específico do francesismo, ou seja, do grande prestígio –

entre os jovens lisboetas de então – das modas de origem francesa. Vale

situar que sua publicação antecede de cinco anos a Revolução Francesa e

de 14 anos a verdadeira invasão de Portugal pela França, cuja ameaça

ocasionaria a fuga da família real para o Brasil.

Como os demais entremezes analisados, este traz na designação de seus

personagens comentários e modos de cumplicidade com o público.

Assim, neste, que reúne sete personagens, encontra-se, por exemplo, o

jovem André Caquillo (grafado por Tinhorão com um esse a mais:

Casquilho; 1988, p. 436), genro do velho Pandorga, tido por este como

um peralvilho da moda, um homem dado a mulheres, a nenhum trabalho

e a injustificadas vaidades no vestir. Em cumplicidade com sua mulher,

Tarella, a despreocupada que se finge de grávida, ele faz de tudo para

sobreviverem às expensas do sogro. André seria de fato o “homem que

esbanja dinheiro com mulheres” e Caquillo, ou Casquillo, o “peralta

afetado nos modos e no vestir e que vive no ócio”. Zangão, pai de

André, seria “aquele que vive às custas de outrem”, e que na trama se

revela a viver assim. Pandorga, pai de Tarella é o conservador. Sem

145

Armindo Bião

terem nomes de reconhecimento há ainda o cabeleireiro francês, a criada

e a preta vendedora de caranguejos (outro personagem recorrente nos

teatro de cordel lisboeta).

A história passa-se na sala da casa do velho avarento, Pandorga, onde

o seu genro André espera impacientemente o cabeleireiro francês. O

sogro reclama da vadiagem do rapaz e este, por sua vez, busca

desconversar. Pandorga reclama também da exploração de sua filha,

Tarella. Esta vem à cena quando, após a chegada do profissional, a

dança instala-se em casa. Ao ouvir o pregão da Preta vendedora de

caranguejo, Tarella pede ao pai que os compre, valendo-se dos seus

desejos de grávida, e é atendida. Todos se servem, menos o velho, a

quem restará pagar e praguejar. A filha revela ser falsa sua gravidez e o

pai a põe e a seu marido para fora de casa. Os dois demonstram

arrependimento e são novamente acolhidos. Todos cantam e dançam

e parece restar uma divertida crítica resignada à hipocrisia. Ou a

conversão dos jovens à norma de Pandorga seria verdadeira? Percebe-

se existirem pontos de semelhança à contemporânea dramaturgia da

televisão brasileira, que trata de assuntos relativos à convivência

contemporânea de pais e filhos casados.

Curiosa é a referência ao uso de cabeleiras como marca bem

comportada da tradição e do conservadorismo, que parece vencer ao

fim do entremez. A novidade, que seria o usar-se em público os cabelos

naturais, parece ser rejeitada.

Sobre O Cãozinho Cupido

Licenciado pela Real Mesa da Comissão Geral Sobre o Exame e a

Censura dos Livros em 1789 e impresso na Oficina de Lino da Silva

Godinho, este entremez se encontra entre os doados para esta pesquisa

por José Móra Ramos e pela Cena Lusófona, do Acervo da Biblioteca

Nacional Portuguesa em Lisboa, onde consta haver apenas esse

exemplar, em Manuscrito (também em microfilme, 1789, 16 p. 19

cm.; F5080).

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Diferentemente dos dois entremezes anteriores neste livrinho, neste, todosos personagens (cinco) possuem nomes próprios e merecem, do pontode vista dramatúrgico, um tratamento bastante equilibrado por parte deseu autor. Todos possuem similar completude e coerência, permitindoaos atores, semelhante e amplo trabalho de elaboração.

Mas, tal qual os outros entremezes aqui estudados, e muito provavelmentecomo todos os demais do teatro de cordel lisboeta, este também retratasituações e tipos comuns à época. Agora uma jovem rica, Esmeraldina,sofre aflita pelo medo da perda de seu cãozinho, de nome Cupido, que,por estar doente, não tem apetite e força para comer.

A crítica aos costumes das moças afortunadas e fúteis, como aprotagonista deste entremez, é “ouvida” nas vozes dos criados, Andrezae Gerigoto, e do pai da moçoila, o senhor Otávio, que, ao passo que ajovem se desespera, praguejam sobre o Cupido e sua dona: o pai emfunção das exageradas despesas com os animais a suas custas; os criados,dissimulados, por se sentirem magoados e revoltados devido aos mausmodos com os quais a malcriada patroa os trata. O autor conclui atrama com a lição do pai a respeito dos desequilíbrios, destemperos emimos da filha, que deveria amar mais as pessoas que a seus tão bemtratados cãezinhos, aos quais ela se refere como mimos e não “cães”.

A história passa-se na casa do pai da moça, onde esta solicita aos criadostodo cuidado e atenção ao Cupido no intuito de curá-lo, ordenando aGerigoto que vá buscar a Preta, “mezinheira das moléstias” dos animais,para reavivar o “totozinho”. A preta Luíza, chegando, depara-se com oanimal e o chama de “cão”. Esmeraldina, indignada pela “ofensa” aobicho, briga com a curandeira. Ao longo da discussão das duas, o bichomorre. A mulher foge e a moça, que desmaiara, é acordada pelo pai,que encerra a peça com um discurso moralizante.

Sobre A Brites Papagaia

Trata-se de uma versão datada de 1826, impressa na Oficina de Lino daSilva Godinho, do famoso Entremez Novo da Castanheira ou a Brites Papagaia

147

Armindo Bião

(de 1798), de João Caetano de Figueiredo, com música de Marcos dePortugal. De todos os entremezes com os quais trabalhamos, este é aqueledo qual se encontra disponível maior número de versões, datadas de 1826a 18439. A equipe identificou a complexidade da escrita deste entremezcom a de O Engano Astuto, com o qual possui alguns pontos em comum,como o fato de trazer em seu título a expressão “Novo”, indicando tratar-se, muito provavelmente, de uma nova versão de uma peça de grandesucesso; de possuir em seu elenco de personagens a figura do Preto Caiador;e de extrair humor da presença de personagens, que são o Preto e o Inglês,que falam o idioma português com variantes. Mas, diferentemente de OEngano, o entremez da Brites tem todo o seu texto versificado emredondilhas, maiores e menores – de sete e cinco sílabas métricas, e apresentanúmeros musicais.

Quando dos contatos de nossa equipe com a equipe do projeto de pesquisacoordenado pelo colega professor da UFBA e músico da FundaçãoCultural do Estado da Bahia, Lucas Robatto, constatamos que uma versãodeste entremez fora copiada em Salvador, no Teatro São João, em 1813,e que havia ainda indícios da produção deste mesmo entremez, tanto naBahia quanto no Rio de Janeiro nesta mesma época. A versão com a qualtrabalhamos indica existir a devida licença, para circulação e encenação, daReal Mesa da Comissão Geral Sobre Exame e Censura de Livros.

Dos sete personagens, quatro possuem nomes, Zabumba, o marujo,

Perluxo, o taberneiro, Papagaia, a castanheira e Isabel, a preta. Os demais

são um inglês, um preto e um cabo da ronda. A vendedora de mexilhões

e o caiador de casas formam aqui o famoso par de personagens negros,

responsável por números musicais de grande sucesso.

9 Na Biblioteca Nacional portuguesa de Lisboa há três referências OLIVEIRA, A. L:Entremez novo da castanheira ou a Brites Papagaia, Lisboa, 1826, off. 16 p., 20 cm.,F5084, Manuscrito, microfilme; AZEVEDO, Filippe da Silva e . Entremez novo daCastanheira ou a Brites Papagaia, 18.., off. , 16 p., 22 cm, L.10460//16V., SILVA,Mathias José Marques da. Monografia Geral; Novo entremez da Castanheira ou a BritesPapagaia, 1843, tip., 1V., 20 cm, L.3007/14V, MONOGRAFIA Geral; no Acervo doTeatro D. Maria II, há exemplares nas caixas 645 (1843) e 666 (1826).

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

A Papagaia inicia a trama queixando-se do sumiço do seu amado, o

marujo Zabumba, ao rival deste, o taberneiro Perluxo, que tenta induzi-

la a trocar de amante. A moça aceita acompanhá-lo à mesa em sua taberna,

onde bebem e deixam que a espontaneidade provocada pelo álcool os

faça mais próximos. Todavia, apaixonada por Zabumba, a cortejada

não cede à sedução e mais uma vez declara seu amor por aquele que vive

de porto em porto. O marinheiro retorna e, procurando sua amada,

encontra a Preta Isabel, que lhe adverte que Perluxo e Papagaia estão

juntos na taberna. Ciente dos riscos que corre aquele que muito se ausenta,

com ciúmes, vai então ao bar, onde ocorre a pancadaria, comum aos

desfechos dos entremezes. Um freguês, o Inglês, e um Cabo de Ronda

também participam da “festa”, porém o último é expulso e

desmoralizado, por sua soberba. Dá-se a vitória do amor dos amantes.

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Armindo Bião

Sobre o Isto é Bom Demais!*

O espetáculo Isto é Bom Demais! foi uma montagem didática, produzidacomo requisito parcial da disciplina Desempenho de Papéis I, de 120 horas,da grade de disciplinas especificamente dedicadas à interpretação, doBacharelado em Artes Cênicas com Habilitação em Interpretação Teatral,da Escola de Teatro da UFBA, oferecida pelo Departamento deFundamentos do Teatro no semestre letivo 2002.1. Essa Habilitação deBacharelado, cuja implantação ocorreu em 1984, tem na prática derealização de espetáculos para público o eixo da formação de atores. Ametodologia da construção das montagens didáticas foi magistralmenteestudada, e defendida enquanto dissertação de mestrado, pela professoraHebe Alves, atriz, diretora teatral e colega do mesmo Departamento naEscola de Teatro da UFBA, no trabalho intitulado InSônia - A Pesquisa

Sistemática e Planejada numa Montagem Didática na Escola de Teatro da UFBA1,que tive o prazer e a honra de orientar.

Em paralelo a esse estreito contato com Professora Hebe, responsável,juntamente com o também ator, diretor teatral e nosso colega deDepartamento, Harildo Deda, pela maioria das montagens didáticasda grade de interpretação teatral da Escola de Teatro da UFBA, tive,por dois anos consecutivos, ocasião de trabalhar na penúltima dasdisciplinas dessa grade, em torno das minhas pesquisas com o cordel.

* Publicado em BIÃO, Armindo, Teatro de cordel na Bahia e em Lisboa. Salvador:SCT/ FUNCEB, 2005. p. 49-52 e 62-65.

1 A montagem InSônia – que realizou diversas temporadas em Salvador e em outrascidades brasileiras, amealhando várias premiações – teve elenco exclusivamentefeminino, e como texto de referência o monólogo de autoria de RODRIGUES,Nelson. Valsa número seis, cuja protagonista se chama Sônia. Há projetos derealização de novas temporadas.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Disto resultou os espetáculos Isto é Bom!, no ano de 2001 e o espetáculoIsto é Bom Demais!, cujo programa e respectivo texto, além de algumasfotografias, a seguir se apresentam.

O grupo responsável por essa montagem foi composto por alunosregulares da disciplina, por atores já formados pela Escola, quevoluntariamente se agregaram aos primeiros, além de por outros alunosda Escola, também voluntariamente envolvidos nessa montagem. Apósa realização da temporada regularmente estabelecida para as montagensdidáticas na Escola de Teatro, esse grupo decidiu continuar a aventura derealização do espetáculo para um público mais vasto, de modo que, emtorno de um ano, até finais de 2003, foram realizadas 90 apresentaçõesem Salvador e cidades do interior da Bahia, conforme o detalhamentoque se segue, atingindo um público de mais de 12.000 espectadores,com aproximadamente 220 espectadores, em média, por apresentação(12.950: 90 = 221,66).

Ao longo das diversas temporadas o elenco sofreu variações notadamentecom a substituição de Ednei A. P. Santos por Alan Miranda e,posteriormente, com a inclusão de Cibele Marina – como sexta pessoado elenco. Luciana Comim, por seu trabalho em Isto é Bom Demais!, foiconsiderada Melhor Atriz Coadjuvante do Teatro Baiano de 2002, peloTroféu BRASKEM de Teatro.

De acordo com o que Hebe Alves teve ocasião de demonstrar em seutrabalho de conclusão de mestrado, as montagens didáticas sãonecessariamente uma articulação dos pilares da academia, a saber: o ensino,a pesquisa e a extensão. No que se refere a Isto é Bom Demais!, a disciplinaDesempenho de Papéis I representa o quesito ensino dentre esses três pilaresacadêmicos. O quesito pesquisa corresponde, sobretudo, ao projeto depesquisa Matrizes Estéticas na Cena Baiana Contemporânea, realizado de 1999a 2002. E o quesito extensão é justamente a ocasião de levar o produtoda pesquisa e do ensino para um público mais vasto. Assim, Isto é Bom

Demais! realizou-se perfeitamente enquanto produção acadêmica, emtodos os níveis, completando-se agora com a presente publicação.

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Armindo Bião

Quadro 1:

Temporadas: Isto é Bom Demais! em 2002 - 2003

Fonte: Autor.

As matrizes do Isto é bom demais!

A formação universitária de atores é uma opção. A regulamentação daprofissão do ator, de 1978, só exige o nível médio de formação. Odiferencial da universitária deve se localizar então, além da preparação deprofissionais para o mercado de trabalho, ainda que esta deva continuar

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

a ser um objetivo central também neste nível. Isto é bom demais! tem comodiferencial o estudo e a experimentação de três matrizes das artes dosespetáculos contemporâneos na Bahia.

A primeira matriz é a ibérica, de poetas/ cantores/ músicos/ dançarinos/atores profissionais, que gerou, a partir do século XIX, a tradição brasileirada literatura de cordel. A segunda é a afro-lusa dos entremezes e lundus,do teatro profissional de Lisboa e Salvador (nos séculos XVIII e XIX),bastante depreciada pela crítica acadêmica, embora muito popular. EmPortugal, usou-se a expressão teatro de cordel para este tipo de teatro cômicoe musical de espetáculos com seus textos impressos em folhetos de baixocusto, vendidos “a cavalo num barbante”, expostos em vias públicassobre cordéis. No século XIX, mesmo sem se usar a expressão teatro decordel, parte desse repertório lisboeta foi encenado também em Salvador,sobretudo no Teatro São João, como testemunha Afonso Ruy (1959)quando se refere ao repertório habitual de entremezes e à proibição doslundus no grande teatro da cidade da Bahia, entre 1836 e 1840, narrandoo escândalo que provocara Joana Castiga com o lundu que dizia “castiga,meu bem, castiga, ai, ai, ai”. Esta tradição espetacular poderia serconsiderada, de certo modo e até certo ponto, como matriz do teatrobesteirol e do espetáculo do axé e do pagode, de caráter profissional,contemporâneo.

O que ficou conhecido na Bahia como teatro de cordel é outra coisa.Esta jovem tradição, a terceira matriz de Isto é bom demais!, é a da encenaçãode folhetos de cordel (ou de feira), inaugurada em Salvador por JoãoAugusto e o Teatro dos Novos, no Teatro Vila Velha, em 1966.

Essas três matrizes estéticas (a ibérica da literatura de cordel brasileira, aafro-lusitana do teatro de cordel lisboeta e a do teatro de cordel baiano)são temas de projetos integrados de pesquisa dedicados à etnocenologiae à etnociência do espetáculo – e às artes do espetáculo na Bahia.Financiados pelo CNPq, desde 1997, estes projetos geram publicações(BIÃO 2000; BIÃO 2001) e espetáculos (Jogralesca 2000, Isto é bom! 2001),entre os quais, Isto é bom demais!

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Armindo Bião

Além dessas matrizes estéticas, tais espetáculos têm como matrizestemáticas o amor, o Nordeste mítico, a inteligência e a sexualidade dosmais humildes, as pelejas de brincadeira e o imaginário maravilhoso –discutindo o conservadorismo, o machismo e o racismo característicosdos poetas populares.

No que tange a matrizes étnicas, a montagem Isto é bom demais! revela demodo mais acentuado a presença étnica ibérica, de modo sutil, a indígenae, apenas como um vislumbre, a africana, enquanto, na tradição espetacularlisboeta e soteropolitana dos séculos XVIII e XIX, presume-se que apresença da matriz étnica africana era tão ou mais acentuada que a ibérica,ficando a indígena aparente, embora de modo sempre sutil. Assim comomuitos poetas da literatura de cordel, muitos atores e músicos do teatrode cordel também eram negros e mulatos que acabavam por contribuirpara a reprodução de antigos preconceitos. Isto é bom demais! seria melhorse cobrisse um espectro étnico mais próximo dessa matriz, e pior, se nãorefletisse sobre os preconceitos – tão óbvios e primários – dos textosencenados. Os seis folhetos de cordel encenados nesta montagem didáticasão parte do que já reunimos: 224 folhetos brasileiros e 56 fotocópias deentremezes do teatro de cordel português (da Biblioteca Nacional deLisboa e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo), num total de 278textos disponíveis, além de uma relação de 942 títulos (do Teatro NacionalD. Maria II) e da referência de mais 162 entremezes, todos do teatro decordel português (oriundos da Torre do Tombo).

27 out.2002, Salvador, Bahia

Referências

Sobre lundus

ANTICÁLIA, Conjunto mus. LP Modinha e Lundu Bahia Musical:Séc. XVIII e XIX. Salvador: COPENE; WR, 1984.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

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BORBA, T. F. L. GRAÇA. Verbete lundum. Dicionário de música.Lisboa: Mário Figueirinhas Ed., 1996. p. 145-146.

BRANCO, J. F. História da música portuguesa. Portugal: Europa;América, 1995.

CALADO, C. O jazz como espetáculo. São Paulo: Perspectiva; SEC,1990.

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CRUZ, D. I. Introdução à história do teatro português. Lisboa:Guimarães Ed., 1983.

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Armindo Bião

REBELLO, L. F. História do teatro português. Lisboa: Ed. SIT, 1967.

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TINHORÃO, J. R. Os negros em Portugal: uma presença silenciosa.

2. ed. Lisboa: Caminho Ed., 1988 - 1997.

Sobre literatura de cordel brasileira

ANTOLOGIA baiana de literatura de cordel. Salvador: Graf. e Ed.Pallotti, 1997.

BARROS, L. G de. Literatura popular em verso: antologia. Rio de Janeiro:Fundação Casa de Rui Barbosa, 1981. 5 vol.

MATOS, E. Ele, o tal Cuíca de Santo Amaro. Salvador: EGBA, 1998.

SANTOS, I. M.-F. dos. La littérature de cordel au Brésil: Mémoiredes voix, grenier d’histoires. Paris: L’Harmattan, 1997.

Até o ano 2000, a editora Hedra, de São Paulo, já editara oito volumesde sua Biblioteca de cordel dedicados a Patativa do Assaré, Cuíca deSanto Amaro, Manoel Caboclo, Rodolfo Coelho Cavalcante, Zé Vicente,João Martins de Athayde, Minelvino Francisco Silva e Expedito Sebastiãoda Silva, anunciando mais sete volumes dedicados a Leandro Gomes deBarros, Raimundo Santa Helena, Chico Traíra, Ignácio da Catingueira,José Gonçalves, José Honório e João de Cristo Rei.

Sobre o teatro na Bahia

ARAÚJO, N. História do Teatro. 2. ed. rev., ampl., Salvador: EGBA,1991.

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BIÃO, Armindo, “Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade”. In:BIÃO, A.; PEREIRA, A, L.; CAJAIBA, C.; PITOMBO, R. (Orgs.). Temas

em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade. São Paulo:Annabulme, 2000. p. 15-30.

BIÃO, Armindo, “O papel do teatro baiano contemporâneo no dramae na comédia da contínua reconstrução da baianidade”. Pré-textos para

discussão, v. 6, n. 11, p. 27-41, 2001.

CACCIAGLIA, Mario. Pequena História do Teatro Brasileiro. SãoPaulo: EDUSP, 1986.

FRANCO, A. O teatro na Bahia através da imprensa: século XX.Salvador: FCJA; COFIC; FCEBA, 1994.

RUY, Afonso. História do Teatro na Bahia. Salvador: UniversidadeFederal da Bahia, 1959.

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Armindo Bião

Olhando o conjunto deste livrinho, acreditamos que sua maior valia é oregistro de dois tipos de dramaturgia, utilizados no treinamento de atoressob as formas de encenação e de leitura dramática, sendo esta um tipode performance que pressupõe um menor tempo dedicado a ensaios eo uso do texto em cena pelos atores para acompanharem seu desenrolare dele lerem suas falas – inclusive as rubricas, posto que não são encenadas,nessas condições, todas as indicações do autor – não se fazendoevidentemente necessária a memorização integral do texto por parte dosatores. Assim, embora a leitura dramática envolva alguma movimentaçãodo elenco, do tipo de marcações habituais de deslocamentos e gestos,ela não chega a ser uma encenação, que normalmente prescinda totalmentedo objeto “texto” em cena. É muito comum que cadeiras sejam utilizadaspelos atores, em parte ou no todo da realização da leitura dramática. Asduas formas de dramaturgia aqui publicadas correspondem a suafinalidade de apresentação pública.

Por isso, o texto do Isto é bom demais!, que é uma adaptação e colagem defolhetos de cordel, de lundus e de outros textos de origem diversa(correspondências, jornais, sermões, poemas etc.), encontra-se aquitranscrito em sua última versão, utilizada pelos atores em ensaios comomaterial de referência para a memorização e a encenação. Já os textosdos entremezes são aqui apresentados na forma de sua publicação, oumanuscrito, original, que é a mais próxima daquilo que os espectadoresperceberam das leituras dramáticas, posto que essas usaram versões comalgumas atualizações de ortografia e pontuação, restando possíveldefasagem entre a acentuação de palavras usada pelos atores nas leituras

Conclusão do livro Teatro de cordel na Bahia e

em Lisboa*

* Em BIÃO, Armindo. Teatro de cordel na Bahia e em Lisboa. Salvador: SCT/FUNCEB, 2005. p. 235-238.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

e aquela que se encontra em sua versão escrita. Mas fizemos a opção dedar à contemporaneidade a oportunidade de leitura desses documentossobre um suporte – impresso – que permita seu uso para novas leiturase talvez mesmo encenações, deixando aos eventuais interessados a iniciativade reverem e revisarem esses textos. Quanto ao texto do “Isto é bom

demais!”, considerando-se seu eventual uso do jeito em que se encontraou de outro qualquer jeito, é importante que fique claro para nossoscolegas usuários que esse material retrata um longo trabalho coletivo e omomento em que nossa equipe o considerou pronto – mas nuncadefinitivo – para a encenação. Ser um fenômeno coletivo vivo é acaracterística mais importante do teatro. Os textos que lhe servem, maisque simples pretextos, são documentos para futuros exercícios de criaçãoteatral. Que se possa fazer bom uso desse material é o que todossinceramente esperamos.

À guisa de conclusão vale repetir o que os estudiosos da literatura associadaao teatro de cordel lisboeta e da literatura de cordel brasileira costumamafirmar: o caráter testemunhal desses textos é seu aspecto forte e maispositivo; o caráter conservador e preconceituoso – agora sou eu quem,em nome da equipe envolvida em nosso projeto, afirmo – é seu aspectofraco e negativo. Embora, relembrando o físico dinamarquês, Niels Bohr,tão querido tanto por um polêmico sociólogo como Michel Maffesoliquanto por um ousado homem de teatro como Eugenio Barba, “contraria

1 Ver: BIÃO, A.; GREINER, Christine, (Orgs.). Etnocenologia: textos selecionados.São Paulo: Annablume, 1998. BIÃO, A.,et al (Orgs.). Temas em

contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000.BIÃO, A. O Papel do Teatro Baiano Contemporâneo no Drama e na Comédia daContínua Reconstrução da Baianidade. In: PRÉ-TEXTOS para Discussão. Salvador:UNIFACS, 2001 V. 6. p. 27-41. VIEIRA, A. O Cordel Remoçado: histórias que opovo conta. BIÃO, A. (Org.) Salvador: SUDECULT; SCT; EGBA, 2003 -2004. - vol.1 – 2. BIÃO, A., “Xisto Bahia 1841-1894: teatrólogo, ator e músico”. Revista da

Bahia, Salvador, v. 37, p. 4-14;. 2003. BIÃO, A. “Uma encruzilhada chamada Bahia”.Revista da Bahia, Salvador, v. 38, p. 16-23, 2004. BIÃO, A., “Un carrefour nomméBahia”,. In: INTERNATIONALE de l’imaginaire. Nouvelle série: Paris, 2004. p.175-187.

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sunt complementa”. É de fato o princípio da complementaridade que nosfaz compreender que esses aspectos são indissociáveis. E é aí que residesua riqueza. Trata-se de textos que expõem a estética e a ética de umtempo e de um lugar, aquilo que une as pessoas em torno de padrões debeleza compartilhados, de sentimentos e sentidos comuns. É para issoque acreditamos contribuir, oferecendo ao leitor uma pequena obra dereferência sobre o teatro de cordel na Bahia e em Lisboa, ainda que aquinão tenhamos traçado o amplo panorama desses fenômenos, mas apenasrevelado uma pequena parte vivida e experimentada de uma pesquisaque continua, tanto através do diálogo com especialistas, como o quemotiva o Encontro Internacional – de outubro de 2005 no CentroCultural Português em Paris – quanto através do apoio da maior agênciabrasileira de fomento à pesquisa, o CNPq, para o período de 2005 a2008, a nosso projeto, que agora continua sob o título “Da Cena ao Impresso

e do Impresso à Cena”.

Finalmente, do ponto de vista metodológico, o trajeto antropológicoque aqui se revela, envolvendo os sujeitos e objetos da pesquisa, é maisque uma opção contemporaneamente aceitável. É na verdade um sintomadaquilo que pretendemos com a etnocenologia1, a etnociência do que éespetacular, somando e multiplicando os pares teoria & prática, ação &reflexão, criação & crítica, arte & ciência, tradição & contemporaneidade,discurso do praticante & discurso do teórico, discurso de dentro &discurso de fora, e que se encontra, como impressão digital, material eespiritual, no coração de todos os comportamentos e práticas humanosespetaculares organizados, inclusive do teatro. Aí, de modo claro – eobscuro (não será mais possível esquecermos que os contrários sãocomplementares) – o sujeito encontra-se plenamente implicado em seuobjeto. Por isso, tudo o que se encontra entre mais de um dos múltiplosuniversos – paralelos – de realidade (do cotidiano, do sonho, do delírioetc.) é simultaneamente perigoso e maravilhoso. É assim, de modo aomesmo tempo humilde e pretensioso, que ofereço este trabalho coletivoà criação e à crítica, reservando, por dever de obrigação, todas as eventuaisavaliações positivas a meus alunos e colaboradores, posto que as demaisdeverão ser atribuídas unicamente a mim.

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A presente comunicação, ao Grupo de Trabalho Dramaturgia, Tradiçãoe Contemporaneidade, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas- ABRACE, quando da realização de seu IICongresso, em Salvador, Bahia, de 8 a 11 de outubro de 2001, temcomo objeto o produto artístico de um projeto de pesquisa emetnocenologia sobre as matrizes da cena baiana contemporânea (1999/2001)1. Esta produção artística de pesquisa é uma montagem teatral decaráter didático, caracterizada, em termos acadêmicos, como atividadede extensão, resultante de uma atividade de ensino: a disciplina degraduação do Bacharelado em Artes Cênicas, Habilitação emInterpretação Teatral, da Escola de Teatro da Universidade Federal daBahia, denominada Desempenho de Papéis I, oferecida no semestre letivo2001.1 (abril/ agosto).

Com carga horária de 120 horas, Desempenho de Papéis I é a disciplina eixodo sétimo semestre de uma grade curricular organizada para a formaçãode atores em oito semestres. Esta disciplina prevê que os alunos seexercitem em sala de aula, ensaios e apresentações públicas,experimentando vários papéis e personagens, com material dramatúrgicode origem dramática, literária de outros gêneros, musical, etc. Essadiversidade deve compreender a interpretação teatral em canções,monólogos, diálogos e cenas de grupo.

Isto é bom! Um sarau barroco:

dramaturgia, tradição e contemporaneidade*

* Publicado originalmente em Memória ABRACE V In: CONGRESSO BRASILEIRODE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 2., 2001, Salvador.Anais... Salvador: ABRACE, 2002. p. 131-137.

1 Projeto Integrado de Pesquisa Etnocenologia no Nordeste: Dramaturgia eEncenação, financiado com quatro bolsas de Produtividade de Pesquisa, três deIniciação Científica e uma de Apoio Técnico, pelo CNPq, para o biênio 1999/2001.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

No semestre letivo de 2001.1, a disciplina em pauta demandou oacréscimo de 60 horas de trabalho e teve como resultado o espetáculoIsto é bom!, com duração de aproximadamente 90 minutos, que foiapresentado no Teatro SESI, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador,Bahia, com entrada franca (como é de praxe para as montagens didáticasda Escola de Teatro da UFBA), às 19h00, aos dias 13, 14, 20 e 21 deagosto de 2001.

Para a seleção e organização do diversificado material requerido peladisciplina, elegemos como fontes de pesquisa dramatúrgica documentosfundadores da tradição espetacular baiana, que enfatizassem a vida coletiva,a miscigenação, a sexualidade, as desigualdades sociais e a violência, basedos processos tradicionais de transculturação da cena baiana. Muitos dessesdocumentos – poemas, sermões, correspondências, relatos de viajantes,depoimentos para a Inquisição, notícias de jornal, reflexões antropológicas– já faziam parte do corpus de pesquisa reunido por sucessivos projetosde investigação, no campo da etnocenologia, desenvolvidos desde 19952.

O título

Sendo a musicalidade um elemento fundamental do modo espetacularbaiano, particularmente em sua articulação de tradição cultural, estética econtemporaneidade tecnológica, foi escolhido para a abertura do

2 A etnociência das práticas e comportamentos espetaculares foi lançada em 1995, naUNESCO, em Paris, com a participação deste pesquisador, motivando mais doiscolóquios internacionais (Cuernavaca, Morelos, México, 1996; e Salvador, Bahia,Brasil, 1997), além de outros eventos no Brasil e na França e inúmeras publicações.No âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federalda Bahia, já foi desenvolvido outro Projeto Integrado de Pesquisa tendo comohorizonte teórico-metodológico a etnocenologia (além do citado na nota anterior, foirealizado no biênio 1997/1999, também com apoio do CNPq, o ProjetoEtnocenologia, Culturas e Encenação na Cidade da Bahia). Entre 1998 e2000, como professor e pesquisador convidado pela Universidade de Paris 8, emSaint Denis, França, também tive a oportunidade de experimentar dramaturgias eencenações em etnocenologia, barroco e cultura baiana, a partir de poemas de Gregóriode Matos e sermões de Antônio Vieira.

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espetáculo, para ser interpretado por todo o elenco, o lundu Isto é bom,de autoria do ator e músico baiano do século XIX Xisto Bahia. Trata-seda primeira música gravada no Brasil, em 1902, na Casa Edison do Riode Janeiro. Sendo o lundu um ritmo muito presente nos teatros baianosao longo do século XIX, motivo de muitas polêmicas e proibiçõesfundadas em sua prosaica licenciosidade, o que nos remete à músicapopular baiana contemporânea, nada melhor que ele para abrir umespetáculo sobre as matrizes culturais baianas. Ainda mais pelo que olundu escolhido possui de referência a essas matrizes: seu compositortem Bahia como sobrenome; e seu intérprete, na histórica gravação, foio “cantor mais popular do Brasil do início do século XX”, Cícero deAlmeida (1870 – 1944), natural de Santo Amaro da Purificação (assimcomo Caetano Veloso, outro ícone da cultura e da música popularbrasileira) e era conhecido pelo público simplesmente como Bahiano3.

O barroco, imagens, figurino e cenografia

Como as montagens didáticas da Escola de Teatro da UFBA, mesmo asde conclusão de curso, contam com escassos recursos financeiros, optou-se pela utilização, para figurino, de uma malha barata de bom caimentoe variada gama de possibilidades de planejamento, que, usada sobmúltiplas formas, poderia remeter a imagens sacras, como a imagináriado Cristo crucificado, dos santos católicos, da santa ceia e da pietá,reafirmando a matriz barroca da identidade baiana, brasileira e latino-americana. Outras referências de imagem foram a de escravossemidesnudos e a de turbantes remetendo aos mouros ibéricos e aosindianos asiáticos, presentes na tradição imaginária baiana.

Para a representação dos três folhetos de cordel selecionados, acrescentou-se, a esse figurino básico, peças de vestuário e adereços do acervo daEscola, como chapéus e coletes, por exemplo.

3 Ver GIRON, L. A. Mário Reis, o fino do samba. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 19 ep. 58.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Para a cenografia, a opção foi a confecção de nove quase cubos demadeira, com uma das faces aberta e dois buracos para a manipulaçãopelos atores, que poderão servir para outras montagens didáticas futurase, quando não sendo usados em cena, também poderão servir comoestante. Esses “cubos”, confeccionados pelo cenotécnico da Escola deTeatro, serviram de assento, de pedestal e, quando todos juntos, depequena plataforma para a atuação dos narradores dos folhetos de cordel.

Os recursos, em torno de R$ 500,00 (quinhentos reais), utilizados paracobrir as despesas com cenografia e figurino, bem como as despesas dedivulgação, foram providos pelo Grupo Interdisciplinar de Pesquisa eExtensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade (GIPE-CIT).

A equipe

O elenco foi composto pelos nove atores matriculados na disciplina,inclusive um bolsista de Iniciação Científica do Projeto de Pesquisa aoqual já nos referimos e uma atriz estudante da Universidade de Paris 10em Nanterre, na França, participando de programa de intercâmbio quevalida créditos da UFBA naquela Universidade (e vice- versa de acordocom o convênio assinado em 2000)4. Para coordenar a produção edesenvolver parte de sua pesquisa sobre máscaras baianas foi convidadaa doutoranda do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas daUFBA Isa Maria Faria Trigo, que atuou também como assistente dedireção.

Para a realização dos figurinos foi convidado o mestrando, também doPPGAC/ UFBA, Marcondes Lima, matriculado na disciplina TrabalhoIndividual Orientado (a cargo deste pesquisador) do PPGAC e especialistaem figurinos e mamulengos. O doutorando em música Pablo Sotuyo

4 Além destes, participaram de Isto é bom!: Analu tavares, Débora Santiago, GustavoGranjeiro, Hilton Souza, Larissa Garcia, Majó Sesan, Marita Ventura.

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Blanco, também matriculado em Trabalho Individual Orientado, comeste pesquisador, contribuiu com suas pesquisas sobre música barrocana Bahia para a definição da estrutura do espetáculo em jornadas, comreferência ao tríduo tridentino da Paixão (A Última Ceia, A Via Crúcis eAs Trevas). Já para a direção musical convocou-se o músico e funcionárioda Escola de Teatro da UFBA, Luciano Salvador Bahia, que fez osarranjos e treinou todo o elenco para o canto e dois atores para a execuçãomusical, ao vivo, em cena, um encarregado da percussão (Majó Sesan),outro do violão (Gustavo Granjeiro).

A equipe contou com o cenotécnico Ademir Pereira França e, ainda,com a consultoria da professora encarregada desta disciplina em semestresanteriores Hebe Alves, também mestranda do PPGAC, com GeraldoSimões (fotos para divulgação), Lucas Hirata (programação visual dobanner), Antonio Kika, do SESI (iluminação), Adelaide Sant’Ana, doGIPE-CIT, e Verônica Abu-Chacra Câmara, secretária do PPGAC/UFBA (apoio).

A dramaturgia

Isto é Bom! Um Sarau Barroco organizou-se em 27 cenas, divididasem um prólogo, cinco jornadas (termo também usado para identificaras diversas partes de alguns folguedos nordestinos, como, por exemplo,os pastoris da Zona da Mata pernambucana) e um epílogo. O prólogoreuniu todo o elenco em um número musical e de dança a partir dolundu Isto é bom, além do quadro vivo (forma de representação decenas nas quais os atores permanecem imóveis por algum tempo parafixar a imagem de uma pintura), também com todo o elenco, remetendoa diversas representações renascentistas e barrocas da Última Ceia.

A primeira jornada, intitulada A Última Ceia, com seis cenas, reuniu, nasequência: trechos do Sermão do Espírito Santo, pregado pelo PadreAntônio Vieira na Cidade de São Luís do Maranhão, na igreja daCompanhia de Jesus entre 1656 e 1661, interpretados pelos quatro atores;

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

trechos de poemas de Gregório de Matos sobre a licenciosidade dasfreiras em Salvador do século XVII, interpretados por duas atrizes; trechosdo Sermão Vigésimo Sétimo, com o Santíssimo Sacramento Exposto,da Série “Maria, Rosa Mística”, dirigido à Irmandade dos Negros doRosário (de Salvador), em 1963, e reescrito pelo Padre Antônio Vieira,para publicação, nos anos 1670, interpretados pelas cinco atrizes; umaJogralesca, remetendo à iniciativa de Glauber Rocha, Paulo Gil Soares,Calazans Neto e Fernando da Rocha Peres, que fizeram as célebresJogralescas no Colégio da Bahia nos anos 1960, na forma de umacolagem de trechos de depoimentos registrados pela Inquisição na Bahia,notícias de jornais novecentistas de Salvador, coletadas por Pierre Verger,cartas de Manuel de Nóbrega, José de Anchieta e viajantes, trechos desermões de Vieira e de textos de Gilberto Freyre sobre sexualidade,interligados por dramaturgia, deste pesquisador, com participação detodo o elenco; e, finalmente, as canções Súplica Cearense, deGordurinha, sobre a seca no Nordeste, e Procissão, de Gilberto Gil eJoão Augusto, sobre a religiosidade brasileira, ambas interpretadas naforma de solo acompanhado de coro.

A segunda jornada, A Via Crúcis, reuniu nove cenas, tendo como temáticacentral o amor, na seguinte sequência: um poema (romance) de Gregóriode Matos sobre a definição do amor, por atrizes; o diálogo daCommedia dell’Arte recolhido por Andrea Perucci em Dell’arte

representativa em 1699 (PEZIN, 1984) Do amor Correspondido; odueto Quando penso na Bahia, de Ary Barroso e Luiz Peixoto, naforma de duo e coro; o diálogo da Commedia dell’Arte Do Desprezo

contra o Desprezo; o dito amoroso também da Commedia dell’ArteDa Resistência e da Indignação; o diálogo Do Desdém e da

Reconciliação; o dito amoroso Do ciúme; o diálogo Do Amor

Recíproco; o dito amoroso Da Partida5; o poema de Gregório de

5 Diálogos e ditos amorosos da Commedia dell’Arte foram traduzidos do francês para oportuguês pelo autor.

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Matos O Homem mais a Mulher, sobre os órgãos genitais,interpretados por um ator e uma atriz mascarados como zanni daCommedia dell’Arte; e, finalmente, a Ária à Laranjeira, de HenriqueEulálio Gusmão, na forma de solo e coro.

A terceira jornada, As Trevas, reuniu quatro cenas: um diálogo deBranca Dias e do Padre Bernardo, de O Santo Inquérito, de DiasGomes; a canção de Adoniram Barbosa As Mariposas, na qual ohomem é comparado a uma “lâmpida”, que atrai as mulheres, “asmariposa (sic)”, na forma de solo e coro: o folheto de cordel A Mulher

que fez a Barba do Marido e a Pulso, de Rodolfo Coelho Cavalcante,com três atores como narradores e os demais atores interpretando aspersonagens; e uma canção tradicional de autoria desconhecida sobrecasamentos que provocam complexas relações de parentesco, na formade solo e coro.

A quarta jornada, intitulada Jovens Atores Endiabrados, reuniu tambémquatro cenas: uma canção interpretada por todo o elenco, o Macatum

Zê Zê, criação do grupo do Macatum Zê Zê de Mucugê, na ChapadaDiamantina da Bahia, liderado por Aloísio (Lói) Paraguassu (visitadopela doutoranda Isa Maria Faria Trigo durante o período de preparaçãode Isto é Bom!), que anualmente representa uma “audiência do inferno”,com prestação de contas, “frevor (sic) “ em caldeirões do inferno ebanho de rio desfazendo a maquiagem facial e corporal de fuligem eazeite, usada pelos participantes – à guisa de informação sobre esteparticular elemento da dramaturgia do espetáculo, transcrevemos abaixoduas estrofes da música, que “se dá em dois andamentos, um lento comointrodução e fim e outro mais animado, a alegre marchinha do corpoprincipal” (DANTAS, 1998):

Vamos cantar, vamos cantar o Macutum Zê Zê...Com coragem entramos no infernoBotamos fogo e transformamos num braseiroComo prova, nós deixamos vivoLucifer e o trouxemos prisioneiro

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Esse ato para nós foi uma vitóriaAcabou com o inferno brasileiroE o Brasil ficando sem infernoVai fazer inveja ao estrangeiro [...]

O folheto de cordel A História do Satanás Embriagado no Forró,de Jussandir Raimundo de Souza, com três atrizes como narradoras e osdemais atores interpretando as personagens; a canção de Raul Seixas Éfim de mês (vale registrar que as canções foram majoritariamentesugestões dos próprios alunos), na forma de solo e coro; o folheto decordel O Encontro de Lampião com a Negra dum Peito Só, deJosé Costa Leite, com um ator e duas atrizes como os narradores e osdemais atores interpretando as personagens. Segue uma amostra dadramaturgia deste folheto.

– Marita – diabo Cueca Suja

Chegou trazendo um chicotedizendo assim:– Débora – Lampião você hoje errou o bote

– Majó – Lampião estava louco

deu-lhe um monstruoso soco,que ele caiu de trote.– Analu – Cara Preta e Rabo Fino

armados de mosquetãode vez em quando atiravana cara de Lampião.– Dilson – A negra deu uma dentada

na venta de Lampião.– Marita – depois um galo cantou

e ela ficou sem ação– Analu – na vista dele despiu-se

– Dilson – deu um estouro e sumiu-se

– Os 3 Narradores – sem deixar sinal no chão.

A quinta jornada, intitulada Anjos Brutos, compôs-se de uma únicacena, tendo como dramaturgia partes do poema Ao Santíssimo

Sacramento, de José de Anchieta e como coreografia as imagens de

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quatro diferentes pietá, feitas por quatro pares ator/ atriz e de uma NossaSenhora, feita por uma atriz.

Finalmente, o epílogo constituiu-se também em uma única cena, a cançãode Nino Rota e T. Amurri, letra em português de Caetano Veloso, Come

tu me vuoi (Que não se vê), do filme de Frederico Fellini La dolce

vita, cantada em italiano pela solista e em português pelo coro, comtodo o elenco inicialmente no fundo do palco em linha reta, paralela aoproscênio, formando no final deste deslocamento uma diagonal da direitabaixa à esquerda alta, ocupando a solista o extremo esquerdo dessa linha.O tom romântico e misterioso dessa canção transformava-se lentamenteno tom jocoso do lundu do prólogo, do qual o elenco entoava o refrãomalicioso “Isto é bom que dói”, com a melodia de Come tu me voi,com os atores discretamente se acariciando até um suave grito emuníssono, fechando-se assim o espetáculo: “Isto é bom que dói, Ai!”.

Tradição e contemporaneidade

Reunindo textos sobre a Bahia: do século XVI, de Manoel da Nóbregae José de Anchieta; do século XVII, de Gregório de Matos e AntonioVieira; desses dois séculos, também sobre a Bahia, de depoimentos paraa Inquisição; também do século XVII, os diálogos e ditos amorosos daCommedia dell’Arte (única parte sem referência dramatúrgica explícita àBahia); do século XIX, de viajantes e de notícias de jornal sobre a Bahia,além do lundu que deu título à montagem; do século XX, como ascitações de Gilberto Freyre, a maioria das canções e os três folhetos decordel; a dramaturgia de Isto é Bom! cobriu cinco séculos de referências,tendo como matrizes temáticas a cultura baiana, o Barroco daContrarreforma e as figuras diabólicas da cultura popular nordestina, ecomo matrizes estéticas o trabalho teatral com máscaras e o teatro épicobrechtiano. O tradicional binômio sensualidade/ musicalidade – tãotradicional e contemporâneo, em termos de baianidade – pontuando aencenação resultante como a pesquisa da dramaturgia aqui descrita, serviupara o lançamento público de nove novos atores em fase de conclusãode sua formação acadêmica.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

[...]É a vez de uma estrelaGuarda o nome dela[...].A voz dessa luz, sem fim, sem fim[...]Uma intensa luz que não se vêPassa pela voz ao se calar[...]Isto é bom que dói, ai!

Referências

BAHIA. Secretaria da Cultura e Turismo. Antropologia Baiana de

Literatura de Cordel. Salvador: SCT, 1997.

ARAÚJO, Emanuel. O Teatro dos Vícios: transgressão e transigênciana sociedade urbana colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

BAHIA Singular e Plural, [Salvador]: IRDEB, 1998. n.1. 1 CD (50min).

DESBANS, Vivette; SOUZA-GALLOT, Miriam; AUBOIRE, G.röm.Dezoito poemas erótico-irônicos atribuídos a Gregório de Matos.Ed. Bilíngue. Paris: Paranóia Mondiale, 1999.

HAUPT, Jean (Trad.). Sermon de Saint Antoine aux poisons. Ed.Bilingue. Paris: Chandeigne, 1998.

PEZIN, Patrick (Org. e trad.). Scènes de la comeedia dell’arte. Cazilhac:Bouffoneries, 1984.

VELOSO, Caetano. Federico e Giulieta. [São Paulo]: Universal Music,1999. 1 CD (66 min)

VERGER, Pierre. Notícias da Bahia: 1850. Salvador: Corrupio, 1981.

DA FORMAÇÃO PARA A CENA

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As Artes do espetáculo no Brasil contemporâneo*

Abordagem panorâmica do teatro no Brasil contemporâneo, de suainserção no ambiente universitário, nas três vertentes acadêmicas, dapesquisa, do ensino e da extensão, à criação, em 1998, de uma associaçãonacional, que reúne pesquisadores e programas de pós-graduação e naqual se encontram estruturados 11 grupos de trabalho, dedicados àsmais recentes e importantes tendências para a pesquisa em artes doespetáculo.

1 As matrizes do teatro brasileiro

A maioria dos pesquisadores que têm lidado com a história do teatro noBrasil afirma que, aqui, o teatro profissional – como atividade regular,contínua, permanente, com prédios próprios, construídos para sua prática,e organizados como meio de vida para seus praticantes – é um eventoda segunda metade do século XVIII (SOUZA, 1968, p. 121;CACCIAGLIA, 1986; ARAÚJO, 1991, p. 181-182; CAFEZEIRO, 1996,p. 113). Também concordam que o teatro brasileiro autêntico, “refletindonossa realidade política e social, com uma dimensão culturalespecificamente nossa, começou com a comédia de costumes de MartinsPena e a interpretação de João Caetano” (CARMO, 1968, p. 92;MAGALDI, 1997, p. 42), portanto apenas na década de 30 do séculoXIX. No entanto, para se iniciar uma abordagem, ainda que panorâmica,sobre o teatro brasileiro, contemporâneo, mister se faz uma notíciahistórica a respeito das artes do espetáculo no Brasil, entre as quais oteatro, buscando-se identificar suas matrizes, bem como uma brevecaracterização do contexto em que se encontra o país.

* Inédito, para Cadernos de Cenologia, Leiria, Portugal, Instituto Politécnico deLeiria, 2008.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

1.1 O contexto

Maior nação da América do Sul, com aproximadamente metade(8.514.215,3 km2) de sua área e população (estimada em 2007 em 190milhões de habitantes), o Brasil possui 23.102 km de fronteiras, das quais7.367 km com o Oceano Atlântico e 15.735 km com 10 países dessecontinente (todos, exceto o Chile e o Equador)1. Um dos maiores paísesdo mundo, em área e população, abriga grande variedade de climas:desde o tropical, quente e úmido, da região amazônica (42% do total dopaís), o tropical, quente e seco do sertão nordestino, o tropical e amenodo litoral atlântico, até o clima temperado das serras do Sudeste, o climafrio do Extremo-Sul e os microclimas frios de altitude, em diversas desuas regiões.

O país é caracterizado, por um lado, por uma população em constante eintensa miscigenação, o que tem sido amplamente considerado comocaracterística positiva. Por outro lado, é também caracterizado por umadas mais excessivas concentrações de renda do planeta e vergonhososindicadores educacionais. No entanto, o Brasil se encontra em situaçãopolítica e econômica estável, apresentando bons índices de crescimentoe de melhoria da qualidade de vida, após intenso processo de urbanização,que gerou grandes centros urbanos em todas as suas regiões.

Dentre os mais importantes centros urbanos brasileiros destacam-se SãoPaulo e Rio de Janeiro, com populações estimadas, em 2007, em 11 e 7milhões de habitantes, respectivamente. A seguir, também se destacam,sob o ponto de vista populacional, Salvador, Belo Horizonte, Fortalezae Brasília, com entre 2 e 3 milhões habitantes, e Curitiba, Recife, PortoAlegre e Belém, contando em torno de 1 milhão e meio de habitantes –em 2007 – cada uma. É aí onde se concentra boa parte do teatro

1 Para esses e outros dados estatísticos, consultar o site do IBGE. Disponível em: <www.ibge.gov.br>.

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profissional no Brasil contemporâneo, cujas matrizes estéticas sãoameríndias, negro-africanas e lusófonas, com forte predominância culturalda oralidade e importante marca artística do barroco.

1.2 A matriz ameríndia

Quando, documentadamente, chegaram os europeus ao Brasil, em 1500,aproximadamente dois milhões e meio de ameríndios, de diversas culturas,aí viviam (HEMMINGS, 1978). Desse primeiro encontro de doisuniversos culturais distintos, na Carta de Pero Vaz Caminha, de 1º. demaio de 1500, ficou o registro de nativos “ [...] dançando e folgando” ede um português, “homem gracioso e de prazer [...que...] Levou consigoum gaiteiro [...] e meteu-se com eles a dançar [..] “ (AMADO;FIGUEIREDO, 2001, p. 92-97). Vale já aqui assinalar que esse homem“gracioso” seria, segundo Carlos Francisco Moura (2000, p. 25), umator profissional.

Sem sombra de risco, pode-se admitir que muito dessas danças e folguedoslocais iria informar o teatro jesuítico, dos séculos XVI a XVIII, no Brasil,bem como a futura cultura espetacular e festiva do país. De fato, osameríndios foram um dos mais importantes públicos-alvos desse teatropedagógico, catequético e religioso católico da Contrareforma, mastambém foram atores, músicos e fonte de línguas, personagens e intrigas,usados pelos jesuítas em seu teatro, constituindo-se, sem sombra dedúvida, em uma das matrizes do teatro brasileiro.

Outro registro importante sobre danças, cantos e adereços ameríndiosbrasileiros, compartilhados (nesse caso de modo compulsório) comestrangeiros – um alemão em busca do caminho das índias através deLisboa – encontra-se no clássico relato de viagem de Hans Staden.Publicado originalmente em 1556, esse importantíssimo documento,particularmente em seu Capítulo 23, “Como as mulheres dançaramcomigo diante da cabana em que eles louvavam seus deuses”, dá contade um dos ritos preparatórios para o banquete antropofágico no qualseria servido seu próprio autor (1998, p.66).

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

1.3 A matriz africana

Outra matriz estruturante do teatro brasileiro é constituída pelosimportantíssimos aportes à cultura brasileira, trazidos por cerca de quatromilhões de africanos, sobretudo bantos e sudaneses, que vieram paraBrasil, entres os séculos XVI e XIX, a maioria absoluta dos quais comoescravos (PIERSON, 1967). Sua contribuição para a cultura brasileira,inclusive para a música e a dança (TINHORÃO, 1990, p. 63-90;CALADO, 1990, p. 231), bem como para o teatro (MENDES, 1982, p.2-3, 1993, p. 11-12; MARTINS, 1995, p. 97-102), tem sido cada vezmais estudada e ressaltada, inclusive o persistente preconceito contra osnegros, revelado pela dramaturgia brasileira considerada como de melhornível literário e maior sobrevivência à efemeridade do espetáculo teatral.Os folguedos e festejos desses africanos e de seus descendentes foramfartamente registrados ao longo da história do Brasil, como, por exemplo,em 1760, especificamente no que se refere à atividade teatral, de caráterpopular, realizada por negros, na Bahia (ARAÚJO, 1978, p. 169).

Mas, tão importante quanto esses registros é o fato de – formados porjesuítas, muitos negros e, especialmente, mulatos e outros grupos mestiços– tornarem-se os melhores artesãos, pintores, escultores, músicos e atoresno Brasil colonial. A presença de atores negros e mulatos nos primeiroselencos profissionais brasileiros é, de fato, fartamente documentada(MENDES, 1982). Associados ao universo do trabalho – atividadeprecípua do escravo – esses artistas gozavam de prestígio apenas um poucosuperior ao dos demais trabalhadores, efetivamente escravos. Talvez porisso – pelo preconceito contra o trabalho (atividade de escravo) – não setenha guardado no léxico da língua portuguesa uma expressão equivalenteaos lúdicos to play inglês, jouer francês e spielen alemão. Aqui, fala-se de“trabalhar” em teatro. Brincar e folgar, conforme se referem os vocábulosfolguedos, brinquedos, brincadeiras, brincantes e brincadores, no que diz respeito aoteatro, em português, são palavras restritas ao âmbito do amadorismo.

De todo modo, a matriz negro-africana se inscreveria nos corpos dosprimeiros atores profissionais brasileiros e na composição da sociedade

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brasileira do início da consolidação de nosso teatro profissional2 (nocomeço do século XIX, um terço da população eram escravos,majoritariamente, negros). Mas essa matriz também marcaria as artes doespetáculo, enquanto meio de vida e profissão no Brasil, com o sensual elúbrico lundu, presente durante boa parte do século XIX, nos programasde sucesso dos teatros comerciais brasileiros, também conformeabundantemente registrado (RUY, 1959; TINHORÃO, 1990).

1.4 A matriz lusófona

A matriz europeia no teatro brasileiro inaugura-se com o teatro jesuíticoportuguês, que combinava a tradição popular ibérica medieval, traçosda influência moura, o drama romano, a vocação humanista doRenascimento e a reação barroca às reformas protestantes, para convertere educar. Seu alvo, no Brasil, eram os ameríndios, os colonos (inclusiveaventureiros, degredados e desertores, alguns até possuidores de algumavivência teatral) e os proprietários das novas terras do Brasil.

Entre 1549 (quando chegaram os primeiros) e 1759 (quando foramexpulsos do Brasil), os jesuítas produziram peças, das quais são conhecidoscerca de 30 títulos (poucos em sua versão integral), notadamente autos(quase a metade). Escritos em português, tupi, espanhol e provavelmentetambém em idioma dos negros de Angola, esses autos eramrepresentados, geralmente, ao ar livre, sobre carretas e/ ou plataformascom fundo móvel, constantemente numa das áreas principais das cidades.Outras peças jesuíticas eram escritas em português ou latim, seguindo-semodelos romanos: comédias, tragédias, tragicomédias, dramas, histórias,

2 Araújo (1191, p.184) informa, com riqueza de detalhes a contribuição de muitosdesses profissionais para a inserção “do teatro à maneira europeia em certas regiõesafricanas, para onde retornaram já livres”, destacando o caso da atual Nigéria, onde,entre 1880 e 1882, essa contribuição foi fartamente documentada. Também sobreesse tipo de teatro na Nigéria, vale ler o ensaio de Bernard “O teatro tradicional iorubána Nigéria Contemporânea” (BIÃO, 2007, p. 463-478).

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églogas e diálogos. Essas eram prioritariamente representadas dentrodos colégios jesuítas, para alunos, parentes, agregados e autoridades,principalmente nos atuais estados da Bahia, Pernambuco, Maranhão,Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, mas seus maiores centros dedifusão eram Salvador, na Bahia, e Recife e Olinda, em Pernambuco(SOUZA, 1968, p. 89-156).

Os jesuítas também costumavam produzir presépios, espetáculosmusicais tratando dos eventos natalinos, particularmente da visita dosreis magos (gênero ainda hoje muito popular no Nordeste brasileiro) eprocissões (matriz barroca sempre tão presente na cultura brasileira),com personagens em ricos trajes, carretas decoradas, comédias,entremezes e danças (HESSEL; READERS, 1974, p. 27; CAMPOS,2001, p. 45-50).

1.5 A matriz barroca da oralidade afro-ameríndia e dos entremezes3

ibéricos

A consolidação de uma ideia de identidade brasileira está relacionada aoBarroco tardio, cujo apogeu nessa parte do novo mundo data apenas dasegunda metade do século XVIII, exatamente o período em que aatividade teatral regular também tem início no país. Esse primeiromovimento artístico globalizado, que já começa a se configurar na Europana segunda metade do século XVI, remete, efetivamente, à complexidadedos novos mundos então recém- descobertos, à descoberta da existênciados antípodas e, até, da atualidade da antropofagia – brasileira.

3 Segundo Moura (2000, p. 73), há divergências sobre a etimologia da palavra entremez,usada para designar representações teatrais em Portugal já no século XV: “Alguns dãoa palavra como derivada do italiano intermezzo [...outros...] do francês entremets, ‘pratoque se serve entre dois outros [...] um espetáculo que se dava entre os diferentesserviços de um festim’”. Assim, a palavra entremez poderia ser usada em portuguêstanto no sentido de entremeios quanto de entremesas... Bastos (1994, p. 58), em seudicionário de referência, informa: “Entremez – Classificação que n’outro tempo sedava às farças (sic) ou comedias (sic) pequenas e jocosas”.

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Mais que um estilo ou gênero, o Barroco integra elementos pictóricos queremetem a todo o mundo então conhecido e aos misteriosos elos dovisível com o invisível, dirigindo-se ao público para maravilhá-lo, seduzi-lo, conquistá-lo (WÖLFLIN, 1988; HAUSER, 2000, p. 442 et seq.). Amatriz barroca é, de certo modo, e sob múltiplos pontos de vista, a grandereferência estética para a construção da nacionalidade brasileira e, também,para a configuração do conjunto de artes do espetáculo identificadas como país, entre as quais o teatro e o carnaval, por exemplo.

A oralidade ameríndia foi a marca maior da “língua geral”, de baselinguística tupi e protegida pelos jesuítas, falada no Brasil até meados doséculo XVIII, quando a língua portuguesa passa a ser de fato, a línguadominante, graças, entre outras razões, à necessidade dos africanos e deseus descendentes de comunicarem-se entre si próprios, em sua novaterra. De fato, só em 1758, a “língua geral” de base ameríndia foi proibidaem todo o Brasil e, só ano seguinte, perderia, enfim, seus grandesprotetores, com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal(TEYSSIER, 1980, p. 97).

A diversidade linguística dos grupos africanos trazidos, em sua absolutamaioria, à força para o Brasil, levou seus falantes a – uma vez aprendidaa língua portuguesa – falarem entre si esse novo idioma, já, inclusive,conhecido de alguns africanos em seu próprio continente. Acrescente-se,então, à oralidade das diversas línguas e culturas ameríndias aquela dosdiversos grupos linguísticos e culturais africanos, entre os quais, mesmoos islamizados, dominavam apenas rudimentos do árabe para gravaremfragmentos do Alcorão.

A língua portuguesa, talvez a mais jovem das línguas neolatinas, conformenos revela o poeta, só se formaria como escrita por volta de 1350, apóspouco mais de um século de seu embrião, o galaico-português(TEYSSIER, 1980, p.43). Assinale-se que, até o século XVIII, semimprensa e sem universidades, o Brasil conhecia o portuguêspredominantemente em sua forma oral, sendo o domínio da leitura e daescrita extremamente restritos.

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Assim, o Brasil se forma, sobretudo, enquanto uma cultura da oralidade,que privilegia a multissensorialidade, o mistério e o passado. As culturasda oralidade – e também as culturas das escritas icônicas, são culturasteocêntricas, das festas, dos folguedos e dos rituais, das comunidades depessoas e não de indivíduos, de sujeitos separados dos objetos (BERQUE,1986, p. 147-153). Em oposição às culturas da escrita fonética, que sãoantropocêntricas, privilegiam o futuro e a pedagogia, o teatro e a teoria,seguindo sua matriz grega da Paideia (JAEGER, 1986), que criou oalfabeto fonético e deu maior prestígio ao sentido da visão, do olhar,realizando uma verdadeira revolução sensorial (KERCKHOVE, 1983).Teoria é ver, é um sujeito que vê um objeto. Teatro é o espaço – opróprio prédio, por exemplo – e é a ação, organizados para o olhar.

É como se essa revolução sensorial, da Grécia clássica e do Renascimento,só começasse a chegar, no Brasil, junto com o teatro, no final do séculoXVIII. Doravante, iriam conviver ambas as matrizes: a teocêntrica,multissensorial, do mistério, das festas, rituais e folguedos, com aantropocêntrica, do privilégio do sentido da visão, do olhar, da perspectiva(PANOFSKY, 1975), da razão pedagógica (basta-nos lembrar do principalinstrumento da catequese jesuítica), do teatro e da teoria. Assim, estaríamosem boa situação para valorizarmos o presente (MAFFESOLI, 1979), comoo fazem todas as culturas contemporâneas, ecocêntricas, reunindo alfabetosfonéticos, escritas icônicas e redes que balançam e dão vertigem, nasencruzilhadas reais e virtuais dos novos mundos de cada dia.

Aqui, algumas palavras sobre a encruzilhada, imagem e conceitoimportantes para a compreensão do Brasil e do mundo contemporâneos.Exu, entidade do panteão ioruba, muito popular no Brasil, é “Senhordas encruzilhadas e, principalmente, da encruzilhada dos sentidos e dosdiscursos, ele é um trickster [...]” (MARTINS, 1995, p. 56), confundido,equivocadamente, com o diabo. Trata-se, na verdade, de um mediador,que, como um tradutor, é coisa – gente – delicada, merecedora de atenção,para evitar-se confusão (traduttore traditore). Para sair-se da encruzilhada,há que se escolher um dos caminhos que se cruzam nesse lugar de angústia,como, por exemplo, teorizou o existencialismo de Jean-Paul Sartre em

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Les Chemins de la liberté (nos romances L’âge de Raison - 1945, Le Sursis -1947 e La Mort dans l’Âme – 1949). Há que se distinguir um caminhopossível do outro, também possível enquanto opção potencial. Ora, oque distingue uma coisa da outra é o verbo, é a linguagem. É ela, alinguagem, que, simultaneamente, nos prende e nos liberta. O meio – docaminho – é – o lugar dele, o mensageiro: Exu, ou Hermes (o três vezesgrande), que nos ajuda a decifrar os textos, ou Mercúrio (o dos pés – ecapacete – alados), que protege o comércio e as artes.

A propósito da linguagem mediadora, como considerar a enormecriatividade brasileira na criação e registro de prenomes inusitados, senãocomo afirmação libertária, o desejo divino – realizado – de nomear aspessoas – e as coisas? Seriam os brasileiros, como outros povos, também,gente das encruzilhadas. Como os da diáspora, do comércio e das artes, osjudeus, os ciganos e os negros africanos, por exemplo. Ou, ainda, como oslusitanos, os ibéricos e os mediterrâneos navegadores, que cruzaram todasas encruzilhadas líquidas do planeta? Ou, enfim, também como oscomerciantes, os artistas, os sacerdotes e os que vendem seu corpo – e suaalma? Roger Bastide (1957) já usara como epígrafe, a idéia de que, para sefalar da cultura brasileira, no lugar de conceitos rígidos, seria necessáriodescobrir noções, de alguma forma, líquidas, capazes de descreverfenômenos de fusão, ebulição, interpenetração, moldando-se numa realidadeviva, em perpétua transformação, concluindo que o sociólogo que quisessecompreender o Brasil deveria se transformar em poeta.

Moura (2000) tratou exatamente do teatro documentadamente realizadoa bordo de naus portuguesas4 entre os séculos XV e XVIII, naencruzilhada misteriosa dos oceanos. Indicando, para além da armadade Pedro Álvares Cabral, onde veio um “gracioso”, conforme registra aCarta de Caminha, sete naus para o século XVI, duas para o século XVII

4 Aliás, conforme sugere uma visita ao Teatro Municipal Garcia de Resende, sede doCentro Dramático de Évora (CENDREV), em Portugal, a arquitetura teatral e aarquitetura naval desenvolveram-se de modo paralelo e integrado na Europa a partirdas conquistas tecnológicas mediterrâneas das grandes navegações.

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e mais duas para o XVIII, onde documentos registram a produção deteatro religioso e profano, o pesquisador convence o leitor de que aí háapenas breves indícios, posto que só os relatos de naufrágios ocupam-sedessa temática. Assim, parece provável que a produção de jograis, bobos,truões, chocarreiros, bufões graciosos, em momos, diálogos, autos,entremezes e comédias, tenha sido bem maior daquilo que ele nos fazconhecer. Se as naus eram portuguesas, os que nelas viajavam era de origensas mais diversas. Consta, por exemplo, que foi nessas encruzilhadas líquidasibero-luso-afro-brasileiras, onde também se teria dançado, cantado e tocado,entre inúmeras formas musicais e coreográficas, aquela que ficaria sendo amarca da própria identidade portuguesa, o fado (BRITO, 1994; PAIS,1997, p. 33 et seq .; TINHORÃO, 1990, 1997, 2006).

Moura também anota que para bordo levou-se folhetos de cordel (2000:91 e s.) contendo textos de peças teatrais, profanas e religiosas, e tambémde rezas, relatos pios e canções, o mesmo meio que difundiria nos séculosXVIII e XIX, entre outras formas teatrais e musicais, o entremez – teatral,musical e coreográfico, a forma de teatro popular, de grande sucesso, emPortugal e no Brasil, que misturou “diversas heranças ibéricas” (LEVIN,2005, p. 15). Esses entremezes, matrizes da comédia de costumes brasileira,ao lado dos lundus, que apenas compunham o programa de uma sessãocompleta no teatro, mas que integravam matrizes africanas e ibéricas, ficariamcomo a grande marca das artes profissionais do espetáculo – e da própriaidentidade cultural – no Brasil, para o olhar atento de estrangeiros, quepassaram, por exemplo, na Bahia do século XIX. Huell (2007, p. 228 etseq.) e que nos legariam uma descrição sensual e apaixonada de seuenvolvimento com o lundu, durante os festejos do Bonfim, em Salvador.Já Tollenare (1978, p. 213-218) anotava em 10 ago. 1817:

Quem quisesse julgar dos costumes dos povos pelos seus teatros,teria que passar em revista as tragédias políticas dos ingleses, osdramas românticos e exaltados, dos alemães, as comédias maliciosasdos franceses e os entremeses (sic) licenciosos dos brasileiros. Mas,não nos aventuremos a generalizar juízos sobre os costumes dasnações, principalmente depois que elas têm entre si tão frequentes

comunicações.

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Lundus e entremezes seriam, também, matrizes de múltiplas formas deespetáculo, existentes no Brasil contemporâneo; e não só o teatro,abrangendo do maxixe e do samba ao axé, ao pagode e ao arrocha, doteatro besteirol ao humorismo cearense. E, numa permanência barrocade grande força, tudo se reuniria nos desfiles das escolas de samba docarnaval do Rio de Janeiro.

1.6 Mais matrizes europeias

Até o final do século XVIII, a matriz europeia incluiria a presençaespanhola, que ultrapassou, em mais um século, o período do domínioespanhol da península ibérica (1580-1640), italiana (nos modelospredominantes no século XVIII), francesa (predominante já a partir dofinal do século XVIII) e holandesa (muito superficial, apesar do domínioholandês no Nordeste de 1630 a 1654). É o que demonstra, por exemplo,o fato do primeiro dramaturgo brasileiro, com obra a ser, então, publicada(o baiano Manuel Botelho de Oliveira, 1636-1711) tendo-o feito emespanhol: duas comédias fortemente influenciadas por Rojas Zorilla. Éo que também revela a encenação, no Brasil, de peças de Calderón e deoutros dramaturgos espanhóis até a primeira metade do século XVIII,quando o foco de influência passou, inicialmente para a Itália e, depois,para a França (SOUZA, 1968, p. 140).

1.7 O surgimento do teatro como atividade regular

Com a Idade do Ouro no Brasil, por conta da descoberta das MinasGerais, a partir de 1690, o país começa a se interiorizar e a avançar maispara o Sul e para o Norte. O teatro – barroco – avança para novoscentros produtores, como as ricas cidades das Minas, a então remotaCuiabá, no Mato Grosso e Belém do Pará, na Amazônia. Esse períodoatinge o apogeu em 1750 e, em 1763, a capital do país transfere-se deSalvador para o Rio de Janeiro, embora, em 1724, a Academia Brasílicados Esquecidos, a primeira nos moldes das academias iluministaseuropeias, tivesse sido fundada na Bahia (BURNS, 1966). Esse modelode ação cultural, reunindo artistas e cientistas, também se repetiria pelo

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país, ao longo do século XVIII, que conheceu a produção teatral deAntonio José da Silva, o Judeu (brasileiro educado em Portugal), antes edepois de sua morte pela Inquisição, em 1739.

Pois seria esse dramaturgo luso-brasileiro o herói do primeiro dramahistórico romântico brasileiro, “Antnio José ou o Poeta e a Inquisição”,de Gonçalves de Magalhães, produzido no Rio de Janeiro, em 1838,pela Companhia de João Caetano, que também produz as comédias decostumes de Martins Pena e está na origem da busca de um estilo deinterpretação mais “moderno”, menos “exagerado” e mais de acordocom a influência predominante em seu tempo no Ocidente, a francesa(HESSEL, READERS, 1974, p. 14; p. 38-41; p. 47; 51; p. 62).

Ao ar livre, ou no interior de templos e conventos, as cerimônias barrocasbrasileiras conheceriam uma duração histórica inaudita, alongando-se atéo início do século XIX. Nessas ocasiões, frequentemente motivadas poreventos ligados à família real e à visita de personalidades ilustres, produzia-se teatro.

Os primeiros teatros permanentes no Brasil foram construídos, a partirde 1748, no Rio de Janeiro, na Bahia, em São Paulo, Rio Grande do Sul,Pernambuco e Minas Gerais. A adaptação de um salão, com a construçãode um palco, com proscênio, e de uma plateia, com três áreas, no Paláciodo Governo da capital da Bahia, Salvador, entre 1729 e 1733, teria sidoum indicador dessa tendência, dos teatros permanentes, que ainda levaria20 anos para se efetivar. A partir de então, começam a circular pelo paíscompanhias teatrais regulares, majoritariamente portuguesas (mas tambémitalianas e francesas), em cujos elencos a presença feminina ainda era umararidade – uma das quais teria retornado a Portugal, rica, em 1794(SOUZA, 1968, p. 121-157). Todas as principais cidades passaram entãoa contar com sua “casa de ópera”.

Nesse período foram traduzidos autores italianos e franceses, comoMetastasio, Maffei, Goldoni, Molière e Voltaire, e alguns dramas gregos(SOUZA, 1968, p. 141). A ópera italiana começaria a aparecer e, em

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seguida, viriam a ópera alemã, a influência romântica e Shakespeare, já naprimeira metade do século XIX.

Enfim, as matrizes do teatro brasileiro contemporâneo haviam seconsolidado para gerar uma nova tradição teatral, produto do longoprocesso de transculturação, do qual buscamos aqui, até agora, esboçaro panorama, segundo o horizonte teórico-metodológico daetnocenologia (PAVIS, 1999, p. 152; GUINSBURG, 2006, p. 139).

1.8 O panorama contemporâneo

Se 1838 é considerado o ano da fundação de um “verdadeiro” teatronacional no Brasil, é também reconhecido que o “renascimento do teatronacional só chegaria aos palcos lisboetas em 1838, com o drama deGarret” (LEVIN, 2005, p.11).

No entanto, só em 1943, com a produção da peça teatral “Álbum deFamília”, de Nelson Rodrigues, os críticos consideram que o teatrobrasileiro enfim se modernizou: “A maioria dos críticos e dos intelectuaisconcorda em datar do aparecimento do grupo Os Comediantes, no Rio deJaneiro, o início do bom teatro contemporâneo, no Brasil” (MAGALDI,1997, p. 207). As sessões de espetáculos teatrais atingirão, provavelmente,nesse período dos anos 1940, seu auge quantitativo, no Brasil, com sessõesde terça a domingo e várias sessões nos fins de semana.

Outras datas históricas são 1945, quando é criado, no Rio de Janeiro, oTeatro Experimental do Negro, 1946, quando surge o Teatro doEstudante de Pernambuco, e 1948 (ARAÚJO, 199, p. 354), quando secria, em São Paulo, o “Teatro Brasileiro de Comédias, cuja história nãosó domina o panorama nacional dos últimos anos, mas tem sido fontede outras companhias jovens de mérito” (MAGALDI, 1997, p. 209). Apartir dos anos 50, o teatro brasileiro vive a efervescência da novadramaturgia como, por exemplo, a dos autores nordestinos, ArianoSuassuna (inspirada em boa parte na literatura de cordel) e NelsonRodrigues (unindo mitologias clássicas e o cotidiano brasileiro da

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atualidade), bem como a criação dos muito fecundos grupos paulistasArena e Oficina (ARAÚJO, 1991, p.354-357).

Essa efervescência, concentrada, sobretudo, no Rio de Janeiro e SãoPaulo, ao longo dos anos 60 e 70 estende-se para outras capitais do país,que também participam da movimentação teatral contra a ditadura militare pela regulamentação da profissão dos artistas. Enfim, e assim, a Lei nº6.533, de 24 de maio de 1978, que regulamentou as Profissões de Artistae de Técnico em Espetáculos de Diversões no Brasil, pode ser consideradaum marco fundamental para as artes do espetáculo no Brasilcontemporâneo. Mais um marco importante será a implantação doprimeiro doutorado na área no país, em 1980, em São Paulo.

Finalmente, esse período, que buscamos focar no presente trabalho comosendo contemporâneo, encontrará sua referência maior na criação, em1998, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em ArtesCênicas (ABRACE), em Salvador, Bahia. Nesse período, de apenas dezanos, dois conjuntos de atividades profissionais, relativos às artes doespetáculo, consolidaram-se plenamente no Brasil: a indústria fonográfica– e dos grandes concertos, shows e festas musicais; e a indústria doaudiovisual vinculada à televisão. O cinema brasileiro retomou, aindaque timidamente, seu rumo e ritmo de produção e sucesso de público ede crítica. O circo e a ópera mantiveram seu ritmo lento de manutenção.A indústria do turismo, que mobiliza artistas e técnicos em espetáculosde diversão, revela grande potencial de crescimento.

A dança – emergente como forma autônoma de espetáculo e área deconhecimento plena e independente – e o teatro fortalecem-se nosgrandes centros do Sudeste, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro,mas também em Belo Horizonte e, subsidiariamente, em todas as demaisregiões. No Sul, o movimento concentra-se em capitais como Curitiba,Porto Alegre, Florianópolis, mas também em polos regionais comoLondrina e Blumenau. No Nordeste, a maior movimentação ocorreem Salvador, Fortaleza e Recife. No Norte, Belém é o polo e, noCentro-Oeste, Brasília.

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Festivais, editais, leis de incentivo à cultura mediante renúncia fiscal eoutras diversas formas de mecenato, público e privado, somam-se aparcerias com outros ramos mais consolidados das artes do espetáculono país, para seu fortalecimento no Brasil contemporâneo. É nessepanorama que se fortalece, também, a área de conhecimento das artesdo espetáculo na universidade brasileira, que celebra, em 2008, apenas200 anos de existência.

2 As artes do espetáculo e a pesquisa na universidade

Comentemos as especificidades da pesquisa em – ou sobre – artes, dapesquisa artística, ou, enfim, da pesquisa (científica) na área de conhecimentodas artes, de acordo com a terminologia utilizada, no Brasil, pelo ConselhoNacional de desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq5. Nossointuito é o de distinguir e articular o caráter artístico e o caráter científicodas pesquisas, na área das artes, mais particularmente na subárea dasartes do espetáculo. É claro que não se faz arte sem pesquisa, sobretudona Universidade. O que é escasso nesse tipo de pesquisa é o processorotineiro de sistematização, através de projetos e de relatórios específicos,segundo os modelos e rotinas das ciências ditas “duras”, com destaquepara a área de ciência e tecnologia.

A pesquisa implica em procedimentos de escritura e editoria relativos àsinformações reunidas, em função de objetivos, sejam eles teóricos,pragmáticos, críticos, tecnológicos ou artísticos, cujo ponto de partida éa elaboração de um projeto, explicitando esses objetivos e descrevendoo processo planejado, suas perspectivas metodológicas, os recursosprevistos, o cronograma pretendido, as referências bibliográficas e demaismateriais e fontes de consultas previstos. Esses procedimentoscomplementam-se com a elaboração dos respectivos relatórios e

5 De acordo com o que hoje é a classificação de referência da agência brasileira defomento à pesquisa, o CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia, trata-se dagrande área denominada “Linguística, Letras e Artes”, que, obviamente, compreendea área propriamente dita de “Artes”.

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prestações de contas, referentes aos recursos utilizados. Ora, projetos erelatórios não são, necessariamente, parte de um processo de criaçãoartística.

Vale ressaltar, mais uma vez, contudo, que o substantivo pesquisa sugerefrequentemente, no ambiente universitário, o adjetivo científico. De fato, jáse firma uma tradição de pesquisas científicas sobre as artes,particularmente as musicais e literárias, mas também as plásticas e suaconstelação temática, envolvendo desde a história da arte e a computaçãográfica à restauração e teoria da arquitetura. Assim, também se identificampesquisas científicas, cujo caráter histórico, antropológico, sociológico,psicológico ou pedagógico é o que de hábito sobressai. O grande desafio,para quem se interessa pela inclusão da criação artística em seus projetosde pesquisa, é a criação de espaço e tempo – nesses projetos – para asuspensão, temporária, do juízo crítico e o livre exercício da criatividade(sempre necessária em qualquer campo de atividade humana, inclusive aciência), mas da criatividade tipicamente artística.

2.1 O inefável da arte e as dificuldades que daí decorrem

A arte, como fenômeno revelador, constitutivo da vida, da vivência e daconvivência humanas, configura um universo de realidade e de sentido,cujas dimensões ultrapassam as de outros universos, paralelos, a saber:

• o da precisão, clareza e univocidade da ciência;• o do caráter teleológico, didático e ético da educação;• o da prática e teoria da política;• o das certezas dogmáticas da religião e da ideologia;• o da intencionalidade e do acaso dinâmico da mídia;• o do inefável e do não racional dos sonhos e delírios;• e o próprio universo da coerência meridiana do sensato, do razoável e

do racional da vida cotidiana.

A arte pode eventualmente submeter-se a um desses universos, quenormalmente a constrangem, e aí reduzir, provisoriamente, suas

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dimensões artísticas a outras dimensões do imaginário e do simbólico,mais específicas, dos discursos e dos fenômenos da ciência, da educação,da política, da religião, da mídia, dos sonhos e do dia a dia, sem, contudo,nessas outras dimensões, diluir-se completamente. O resíduo – ou mesmoparte daquilo que é caracteristicamente – artístico poderá sempre persistir,imiscuir-se de maneira pouco perceptível e – até mesmo – ultrapassar oslimites dessas outras esferas. E isto se as fronteiras entre umas e outraspuderem ser bem definidas, o que se apresenta de modo particularmentemais difícil na contemporaneidade.

Se levarmos em conta que uma das características da arte é a liminalidade(TURNER, 1982), a de encontrar-se numa encruzilhada misteriosa, paraalém das linguagens, concluiremos que sua especificidade “artística” é ade situar-se nesse espaço-tempo de ninguém, entre os diversos mundos,em todas as suas dimensões, sugerindo, de modo quase inapelável,abordagens transdisciplinares, multidiciplinares e/ ou interdisciplinares.É esse seu caráter intermediário e limite, assim como o de outrasinstituições e fenômenos humanos (mitos e ritos, por exemplo), que lhepermite escapar dos vários universos de coerência com que convive,passando de um nível de significado, de realidade ou de imaginário, aoutro nível, colocando-se em contato íntimo com esses espaços intersticiaisda realidade e do sentido.

De qualquer modo, afirmamos que a arte pode se servir de todos osparadigmas simbólicos e imaginários, sem se submeter a nenhum deles.O que, por conseguinte, implica que sua prática e aprendizagem nãopossam, do mesmo modo, submeter-se integralmente a instituições que,como a universidade, por exemplo, não têm como objetivo central aprodução e a difusão do conhecimento artístico6. Mas, por seu própriocaráter universalista e humanista, cabe, perfeitamente, nas universidades,a pesquisa, o ensino e a extensão (as três vertentes da atividade acadêmica

6 Para uma estimulante reflexão sobre a relação da arte com outros “discursos” e aintertextualidade dos discursos teatrais, míticos, históricos, jornalísticos e “midiáticos”,consultar PALÁCIOS (1993).

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segundo a Constituição brasileira de 1988), nas diversas áreas das artes,inclusive as do espetáculo. O desafio é a humildade necessária para seatuar dentro do possível, sem a pretensão da explicação absoluta dofenômeno artístico. Há necessidade de laboratórios (teatros, por exemplo),de salas de aula (para teoria e exercícios práticos), de estudo (equipadascom recursos de informática, por exemplo) e de reunião (paraadministração, colegiados, grupos de trabalho). Que se façam os projetose relatórios devidos, utilizando-se as formas de discurso cabíveis.

2.2 A entrada das artes na universidade

As universidades firmaram sua tradição histórica, utilizando-se do termoarte para designar a gramática, a retórica, as “belas” letras, o estilo e a lógica.Nesse sentido, o termo arte não cobriria o direito, a medicina, a teologia, nemmesmo compreenderia o que a tradição greco-latina clássica associou àconstelação pedagógica matemática/ geometria/ astronomia/ música. E artestambém não seriam as ciências da física, da metafísica, da filosofia e da moral.

2.3 A especificidade da música

A música singularizou-se por sua familiaridade com a matemática,desenvolvendo uma tradição de “teoria musical” de vasta literatura denotações e partituras. Sua vocação para a pesquisa universitária, que gerou,entre outras disciplinas, por exemplo, a musicologia e a etnomusicologia, atingeos campos da educação, da informática, do canto, da prática deinstrumentos, da composição e da regência, e da própria “teoria”específica, afirmando-se, simultaneamente, nos terrenos “científico” e“artístico”.

2.4 O caso das letras

O texto escrito (inicialmente manuscrito depois impresso) sempre interessouà academia. Secundariamente, esta sempre se interessou pela performanceoral e corporal do texto escrito, incluindo a dicção, a inflexão, o ritmo, a postura,o gestual e a aparência pessoal. Mas, foi em função do texto escrito, a matéria

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por excelência das Faculdades de Artes, que se firmou o domíniouniversitário da arte. As “belas” letras, mais que a música, participaram daprópria fundação de uma tradição universitária. Não é de surpreender quesua vocação para a pesquisa se firmasse de modo irresistível.

2.5 A quase ausência da criação nas letras e sua pequena presença

na música

Na universidade, letras e música desdobraram-se em disciplinas específicase abordagens interdisciplinares. Por outro lado, pode-se constatar que,sobretudo no caso das letras, declinou-se, em grande parte, no ambienteuniversitário, da criação, para investir-se, basicamente, na reflexão, decaráter predominantemente teórico-crítico. A música manteria, para alémda análise e dos estudos teórico-críticos, um bom espaço para a execuçãoe a prática interpretativa, sem fechar, completamente, as portas, à criaçãoartística, no entanto, majoritariamente, secundária.

2.6 Enfim, as belas artes plásticas e as – simplesmente – artes do

espetáculo

As “belas” artes, designando especificamente as artes plásticas, só seinstituíram como academia no século XIX. Já as artes cênicas, ou do espetáculo,só no século XX, através das “belas letras”, da educação física e da pedagogia,penetraram os muros universitários (BAYEN, 1970; CARVALHO, 1989).Talvez a tardia e recente incorporação acadêmica dessas artes darepresentação pictórica e dramática, para quem a criação parece serprioritária, seja um indicador da especificidade de suas vocações para apesquisa.

2.7 Experiências norte-americanas, brasileiras e francesas

No contexto acadêmico norte-americano, no qual obtive o grau de Masterof Fine Artes, em Theater arts, em 1983, na Universidade de Minnesota,em Minneapolis, articula-se, ainda que, do ponto de vista da escrita, apenascom supporting papers, performance artística e pesquisa sobre a arte que se

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

pratica. É, provavelmente, também, o que ocorre na área dos performancestudies, uma criação acadêmica norte-americana, que articulou antropologiae estudos – e prática de vanguarda – teatrais. Mas, nesse mesmo contexto,uma pesquisa científica, que inclua, em seu processo laboratorial, umresultado artístico e que gere um discurso escrito – não apenas de suporte,mas também de inovação metodológica, como uma tese, dissertação ouensaio, por exemplo, ainda parece ser uma novidade. É a essa novidadeque pretende atender, por exemplo, a etnocenologia, uma perspectivatransdisciplinar, proposta em 1995 com a publicação de um manifesto(PRADIER, 1995) e a realização de um colóquio na UNESCO, tambémem 1995, em Paris7.

A Universidade tem objetivos humanísticos ambiciosos nos campos dasciências em geral, e da educação em particular, que podem se interessarpela arte do ponto de vista pedagógico e científico, e até mesmo permitirsua experimentação in vivo e in vitro, destinando eventualmente um espaçono próprio ambiente acadêmico para reflexão/ produção/ difusão daprática artística. Mas, via de regra, essa vocação para o conhecimentoartístico é certamente secundária à vocação central da academia para aciência e a educação, como sugerem os exemplos históricos econtemporâneos, particularmente no Brasil.

No que se refere às artes cênicas, estudos teóricos, históricos, críticos epedagógicos são, apesar de alguma movimentação objetivando a inserçãoda prática no ambiente acadêmico nas universidades francesas, ainda,predominantes, nas universidades europeias, que convivem, em quasetoda parte, com conservatórios profissionalizantes de arte dramática, decaráter não universitário.

7 Desde então, foram realizados mais quatro colóquios internacionais (Cuernavaca,Morelos, México, em 1996; Salvador, Bahia, Brasil, em 1997; Paris, França, em 2005e Salvador, Bahia, Brasil, em 2007) e publicadas quatro obras coletivas (MCM, 1996;MCM, 2001; GIPE-CIT, 1998; BIÃO, 2007), dedicadas à etnocenologia; e encontra-se em preparação um novo colóquio (Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2009).

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Já nos Estados Unidos da América do Norte, prática artística e teoriaprocuram se equilibrar, tanto nos cursos de graduação quanto de pós-graduação, com as leis do mercado da indústria do show business.

Esses referenciais são apenas subsídios para o debate. A cultura brasileira,em sua modalidade do imaginário comum (ou cotidiano ou popular)consagrou, em ritmo musical, a crença de que “samba não se aprendeno colégio”, e consolidou esta instituição “liminal”, que tem interfacescom o artístico, o lúdico, o marginal, o proibido e o político, que é a“escola de samba”.

Admite-se não se poder aprender arte na academia porque, maisfrequentemente, na universidade brasileira, não se investiu em ensiná-lae praticá-la ao mesmo tempo em que sobre ela se teoriza. Arte aprende-se a fazer fazendo. O fazer e o refletir não são incompatíveis, apenasnão ocorrem simultaneamente, o tempo todo, de modo que umareflexão crítica e criativa, em forma de pesquisa, deve acontecer comoantecedente e consequência da criação artística pesquisada. Criação ecrítica, em termos pragmáticos, só coexistem alterando-se no tempo.A arte implica, principalmente, em ação e criação crítica, e a pesquisaimplica, sobretudo, reflexão e criatividade crítica. Acreditamos serpossível articular as perspectivas científica e artística e de pesquisa,constatando a necessidade da pesquisa cientifica sobre a arte, mas,também, a necessidade de laboratórios de criação artística, nos quais sedesenvolva, ao menos em parte, projetos de pesquisa plenos, científicossim, mas, também, tipicamente da área das artes, no caso as doespetáculo.

Há contemporaneamente uma grande transformação em curso nasuniversidades europeias e brasileiras, decorrente de um esforço decompatibilidade internacional de currículos, otimização de recursos edemocratização de acesso, o que está ocorrendo em meio a muitadiscussão, polêmica e dificuldades de todo tipo. Bom momento, o decrise, para a transformação para melhor. É para isso que pretendemoscontribuir com as reflexões contidas neste trabalho.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

3 As artes do espetáculo no Brasil desde 19988

Com vistas à celebração dos dez anos de criação de ABRACE, emoutubro de 2008, vale refletir sobre o panorama das artes do espetáculona universidade brasileira, nesse período, em que a Associação realizouquatro congressos e três reuniões científicas (em São Paulo, Salvador,Florianópolis e Rio de Janeiro). Para isso, considere-se, como unidadesde referência conceitual, os cursos de pós-graduação (onde se agrupam– e são formados – pesquisadores de todos os níveis) e as bolsas deprodutividade de pesquisa (PQ) do CNPq (que revelam o reconhecimentoinstitucional – em nível nacional – e o reconhecimento – conhecimentoque renova aquele que conhece durante o processo em que este transformao desconhecido em conhecido – de seus próprios pares).

3.1 Os cursos de pós-graduação

Os primeiros cursos de pós-graduação9, específicos para a área das artesdo espetáculo, e com o devido reconhecimento institucional do governobrasileiro, foram criados na Universidade de São Paulo (USP) (o mestradoem 1972 e o doutorado, em TEATRO, em 1980). Ainda antes da criaçãoda ABRACE, surgiram mais três mestrados: em 1980, na UniversidadeEstadual de Campinas (UNICAMP) (em ARTES, entre as quais asCÊNICAS e as CORPORAIS, ao lado das VISUAIS e da MÚSICA);

8 Boa parte dos dados aqui apresentados foi coletada para a IV Reunião Científica daABRACE (UFMG, junho de 2007), graças a Fredric M. Litto (USP), Sérgio Farias(UFBA), Maurício Loureiro (UFMG), Sonia Pereira (UFRJ), Marta Isaacsson de Souzae Silva (UFRGS), Alberto Ferreira da Rocha Júnior (UFSJ), aos técnicos do CNPq,Vera Fonseca e Luiz Ricardo Costa Ribeiro, e a Marcos Aurélio dos Santos Lopes.

9 Apesar de algumas iniciativas isoladas de cursos de formação de atores já apareceremno Brasil (No Rio de Janeiro e na Bahia, por exemplo) a partir de meados do séculoXIX, só na primeira metade do século XX, cursos organizados passam a existir, sobretudono Rio de Janeiro e São Paulo. A partir dos anos 1950, começa a haver algum tipo deiniciativa universitária (na Bahia, por exemplo). Mas os primeiros cursos de graduaçãosó se formalizam entre os anos 1960 e 1970, na Bahia, no Rio de Janeiro e São Paulo,reunindo iniciativas de cursos profissionalizantes já existentes e os primeiros vislumbresde um verdadeiro espírito universitário, aliando ensino a pesquisa e a extensão(CARVALHO, 1989).

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em 1991, na Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO) (em TEATRO);e, em 1997, na Universidade Federal da Bahia (UFBA) (em ARTESCÊNICAS, reunindo DANÇA e TEATRO).

Desde então, foram criados mais três doutorados e quatro mestrados:em 1999, na UFBA (doutorado em ARTES CÊNICAS, reunindoDANÇA e TEATRO); em 2000, na UNIRIO (doutorado emTEATRO); em 2002, na Universidade do Estado de Santa Catarina(UDESC) (mestrado em TEATRO); em 2004, na UNICAMP(doutorado em ARTES - CÊNICAS e CORPORAIS); em 2005, naUFBA (mestrado em DANÇA); em 2006, na Universidade Federal doRio Grande do Sul (UFRGS) (mestrado em ARTES CÊNICAS, reunindoDANÇA e TEATRO); e, em 2007, na – Universidade Federal do RioGrande do Norte (UFRN) (também um mestrado em artes cênicas,reunindo DANÇA e TEATRO). Assim, em 10 anos, houve umcrescimento de 75% do número de mestrados e de 200% do númerode doutorados em ARTES CÊNICAS no Brasil, o que revela,quantitativamente, o vigor da área de artes do espetáculo10 no país.

Nesse período de 10 anos de referência houve também uma expressivaampliação da distribuição regional desses programas, estendendo-se deSão Paulo e Campinas, no estado de São Paulo, Rio de Janeiro, no estadohomônimo, e Salvador, na Bahia, para Florianópolis, em Santa Catarina,Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e Natal, no Rio Grande do Norte.O mesmo se verifica na existência de linhas de pesquisa em ARTESCÊNICAS em programas de pós-graduação de outras “áreas” doconhecimento. Pois, se em 1998, nesse caso, havia apenas o mestrado edoutorado em COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA, na PUC/ SP, nesses10 anos surgiram mais três mestrados (em ARTES, na UFMG, naUNESP e na UNB) e um doutorado (em ARTES, na UFMG), com umcrescimento, respectivamente, de 300% e 100%. No entanto, percebe-seque, até 2007, não há programas de pós-graduação específicos, nem deoutras áreas com linhas de pesquisa específicas, dedicadas às artes do

10 As expressões artes do espetáculo e artes cênicas são equivalentes, sendo a segunda maisusual, tanto na denominação dos cursos quanto no próprio intitulado da ABRACE.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

espetáculo, na região Norte do país. Ainda que seja possível que existam,em todas as regiões do país e em outros programas de pós-graduação,das “áreas” de letras e linguística, comunicação, história, antropologia esociologia, dentre outros, por exemplo, linhas, grupos ou projetos depesquisa relativos às ARTES CÊNICAS.

Para poder-se visualizar o atual panorama dos programas reconhecidos erecomendados pela CAPES, a fundação de capacitação e desenvolvimentodo pessoal de ensino superior, do Ministério da Educação, que os avalia,trienalmente, observe-se o atual panorama dos Programas de Pós-Graduação da Área das Artes do Espetáculo no Brasil, em 2007, resultadoda avaliação referente aos anos de 2004 a 2006. Aqui estão consideradosos programas que possuem, de modo explícito, linhas de pesquisa específicae as denominações Artes, Artes Cênicas, Teatro e Dança:

Quadro 1:

Resultado da avaliação referente aos anos de 2004 a 2006: Programa

de Pós-Graduação em Artes, Artes Cênicas, Teatro e Dança.

Região Estado Instituição Programa Nível11 Nota Status

CTC12 Jurídico

Nordeste Bahia UFBA Artes Cênicas M/ D 6 Federal

Sudeste Minas Gerais UFMG Artes M/ D 5 Federal

Sudeste Rio de Janeiro UNIRIO Teatro M/ D 5 Federal

Sudeste São Paulo USP Artes Cênicas M/ D 5 Estadual

Sudeste São Paulo UNESP Artes M 4 Estadual

Sudeste São Paulo UNICAMP Artes M/ D 4 Estadual

Sul Santa Catarina UDESC Teatro M 4 Estadual

Nordeste Bahia UFBA Dança M 3 Federal

Sul Rio G. do Sul UFRGS Artes Cênicas M 3 Federal

Nordeste Rio G. do Norte UFRN Artes Cênicas M 3 Federal

Fonte: CNPq (2004-2006)

11 M = Mestrado/ D = Doutorado.12 Conselho Técnico Científico, da CAPES, que utiliza uma escala de notas de 1 a 5,

atribuídas em função da excelência e produtividade do programa (tempo médio detitulação, produção bibliográfica, técnica e artística); excepcionalmente usando as notas6 e 7 para programas de expressivas liderança nacional e inserção internacional.

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O quadro acima revela, entre outras coisas, que todos os programasbrasileiros de pós-graduação na área das artes do espetáculo encontram-se em universidades públicas e gratuitas, com predomínio das instituiçõesde status jurídico federal (60%). Por outro lado, percebe-se o destaquedo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, quemereceu conceito 6 e que se encontra na origem da criação da ABRACE,que aí teve sede de 1998 a 2002.

3.2 As bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq

A tabela de “áreas” de conhecimento do CNPq situa as ARTESCÊNICAS no âmbito da “área” de ARTES, um dos três subgrupos da“grande área de conhecimento”, intitulada LINGUÍSTICA, LETRASE ARTES. Mas, no que tange à avaliação, o CNPq inclui a “área” deARTES numa “grande área de avaliação”, de caráter claramentemultidisciplinar, denominada ARTES, COMUNICAÇÃO, CIÊNCIASDA INFORMAÇÃO, MUSEOLOGIA E TURISMO. A cada “grandeárea de avaliação” dedica-se um Comitê Assessor (CA), formado porpesquisadores das respectivas “áreas” nele reunidas e que, a partir dacriação da ABRACE, passou a contar, na categoria de suplente ouconvidado, com pesquisadores da “subárea” das ARTES CÊNICAS,posto que anteriormente, só pesquisadores de MÚSICA e de ARTESVISUAIS dele participavam.

Habitualmente, as demandas de bolsas de Produtividade em Pesquisa(PQ) são analisadas a partir do pedido do pesquisador, que encaminhaseu projeto ao CNPq. Por sua vez, essa agência submete a demanda àavaliação de dois pareceristas ad hoc, selecionados, geralmente, dentro doquadro de pesquisadores já bolsistas PQ. A área técnica do CNPq preparao material on- line para o Comitê Assessor, que examina os pareceres ad

hoc e o currículo do candidato, disponível na Plataforma Lattes13,

13 Em homenagem ao grande cientista brasileiro César Lattes, o CNPq criou uma base dedados de currículos e instituições das áreas de ciência e tecnologia, que intitulouPlataforma Lattes, accessível através do sítio virtual do CNPq: www.cnpq.br.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

consultando sempre que necessário o projeto apresentado. Com baseem análises comparativas dentro da “grande área”, da “área” deARTES e de cada “subárea”, o CA exara parecer conclusivo “favorável”ou “desfavorável” ao atendimento da demanda, ordenando os pedidoscom parecer favorável por ordem de prioridade, ficando a efetivaimplementação da bolsa na dependência de recursos por parte daagência.

De maneira sintética, são os seguintes os critérios usados para aidentificação da demanda recomendada de pesquisadores para as bolsasPQ CNPq:

1. Doutores atuantes na “área” das ARTES CÊNICAS nos últimoscinco anos, para os níveis14 1 (A, B, C e D) e nos últimos dois anos,para o nível 2;

2. Com projetos de pesquisa concluídos e em andamento, relevantes emeritórios;

3. Com produção bibliográfica e eventualmente artística, resultante dosprojetos de pesquisa concluídos e ou em andamento, diversificadaem sua tipologia e expressiva em termos quantitativos e qualitativos;

4. Com capacidade comprovada de formar novos pesquisadores, nosmais diversos níveis, principalmente de doutorado, mestrado e iniciaçãocientífica;

14 Atualmente são seis os níveis de bolsas PQ no CNPq, que são, habitualmente, concedidaspor períodos de três anos (níveis 1 e 2) ou de modo vitalício (nível Sênior). À bolsa denível (ou categoria) 2 corresponde o valor mensal de R$976,00, Aos quatro níveis 1 (D,C, B e A), correspondem, respectivamente, os valores de R$1.011,00, R$1.116,00,R$1.185,00 e R$1.254,00, acrescidos sempre de um valor adicional de bancada de1.000,00, para o nível 1D, de R$1.100,00 para os níveis 1C e 1B e de R$1.300,00, parao nível 1A. Já ao sexto nível (criado mais recentemente), o Sênior, considerado vitalíciopara os pesquisadores que, durante 15 anos, se encontraram entre os níveis 1A e 1B,pode ser concedido apenas o valor adicional de bancada de R$1.300,00, valendo registrarque não há até o momento pesquisadores da “área” das ARTES nesse nível.

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5. Com inserção local, regional, nacional e internacional, em termos departicipação em programas institucionais de intercâmbio e atividadesde pesquisa, docência e extensão; em bancas de pós-graduação, eventosacadêmicos e comissões de avaliação e consultoria;

6. Com compromisso institucional e com capacidade de liderança,devidamente comprovados, em termos de participação em instânciascolegiadas, instituições acadêmicas e entidades científicas da “área”das ARTES CÊNICAS.

As “subáreas” das ARTES VISUAIS e da MÚSICA encontram-se, defato, consolidadas há mais tempo do que a “subárea” das ARTESCÊNICAS, o que será ilustrado, a seguir, com dados comparativos sobreos respectivos números de bolsas PQ CNPq, para os anos de 2005,2006 e 2007. No entanto, ao comparar-se os índices de crescimento da“subárea” das ARTES CÊNICAS com os da “área” de ARTES, nessestrês anos, verifica-se o crescimento de nossa “subárea” em taxas superioresa 100% ao crescimento médio da “área”: 9,1% para 4,3%, de 2005 para2006; e 16,7% para 7,3%, de 2006 para 2007:

Tabela 1

Índices de crescimento da “subárea”: Artes Cênicas e Artes.

Anos ARTES Percentuais de Percentuais de

CÊNICAS crescimento ARTES crescimento

em AC em ARTES

2005 11 - 65 -

2006 12 9,1% 68 4,3%

2007 14 16,7% 73 7,3%

Fonte: CNPq (2004-2006)

Mas, o mais importante, considerando-se o número de bolsas PQ/CNPq, simultaneamente, como um indicador quantitativo e qualitativo,

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é sua expressiva ampliação, de três, em 1998, para 14, em 2007, com opercentual extremamente significativo de 466,66%, revelador doimportante crescimento da pesquisa em artes do espetáculo no Brasilcontemporâneo.

A distribuição das bolsas PQ CNPq pelas diversas regiões do país, na“subárea” das ARTES CÊNICAS, em 2007, é coerente com ascircunstâncias históricas e geográficas do desenvolvimento da “sub área”(que revela, ainda, expressiva concentração nas regiões Sudeste - 8 bolsas,57,1% - e Nordeste - 5 bolsas, 35,7%):

Quadro 2

Bolsas PQ CNPq

Região Estado Quantidade Instituições

SUDESTE São Paulo 6 3-UNICAMP2-USP1-UNESP

SUDESTE Rio de Janeiro 2 1-UNIRIO1-UERJ

NORDESTE Bahia 5 5-UFBASUL Santa Catarina 1 1-UDESC

Fonte: CNPq (2004-2006)

Duas importantes observações no que tange às bolsas PQ CNPq valemser registradas. Considerando-se os dados de 2006 (disponíveis no sítiovirtual do CNPq, no âmbito das “estatísticas e indicadores do fomento”),verifica-se que a nossa grande “área” das ARTES detém apenasaproximadamente 0,8% do total de 9.073 de bolsas PQ então em curso,cabendo a nossa “subárea” das ARTES CÊNICAS cerca 0,16%, o queé estatisticamente quase desprezível. E, no entanto, os dados aqui reunidosrevelam, sem sombra de dúvida, o crescimento de nossa “subárea” aolongo do percurso de quase dez anos de existência da ABRACE.

201

Armindo Bião

3.4 Os Grupos de Trabalho - GTs da ABRACE

Em 2001, a ABRACE começou a se organizar em GTS, como a maioriade suas congêneres brasileiras, as sociedades científicas devidamenteinstitucionalizadas e organizadas. Em publicação específica (ABRACE,2001), foram então apresentados seus sete primeiros GTs, cuja simpleslistagem revela palavras-chaves e tendências da pesquisa em artes doespetáculo no Brasil contemporâneo:

1. Dramaturgia, tradição e contemporaneidade;2. História das artes do espetáculo;3. Processos da criação e expressão cênicas;4. Pedagogia do teatro e teatro e educação;5. Territórios e fronteiras;6. Pesquisa em dança no Brasil;7. Teatro brasileiro.

Posteriormente surgiriam mais três GTs, que viriam a completar o númerode 11 GTs da associação (que atualmente já reúne quase 500 associados),com os seguintes enunciados:

8. Dança e novas tecnologias;9. Teorias do espetáculo e da recepção;10. Estudos da performance;11.Etnocenologia.

Percebe-se, nessa enunciação, um paradoxal conjunto de recortestemáticos (dramaturgia, história, pedagogia, educação, dança, teatro),conceituais (processos, fronteiras) e geográficos (Brasil), por exemplo,sugerindo a possibilidade de superposições de problemáticas depesquisa. Observa-se também uma série de palavras-chaves, quesugerem opções teórico-metodológicas (recepção, performance,etnocenologia). De todo modo, trata-se, sem dúvida, de uma imagemfiel das tendências das pesquisas no conjunto das artes do espetáculono Brasil contemporâneo.

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4 Conclusão

Na Universidade deve-se pesquisar, formar novos pesquisadores, atravésdo ensino, e intercambiar conhecimentos, patrimônios e necessidades,com a comunidade, através das atividades de extensão, em todas as áreasdo conhecimento. Poderíamos, à guisa de conclusão, arriscar umaafirmação: na área das artes do espetáculo, sem que se realize, plenamente,essa tríplice vocação acadêmica, nada tem valor. Nessa área, tudo écoletivo e busca contínua: o jovem só aprende com o mais velho e, semo público, nada se cria nem se transforma. O desafio será sempre aduplicidade da vocação do artista do espetáculo e cientista universitário,que, constantemente, ainda é levado a transfigurar-se em gestor, na buscado financiamento para suas pesquisas. Além de fazer, provar o feito,justificá-lo, financiá-lo e prestar contas, de modo permanente. Viverentrando e saindo das encruzilhadas, criar e produzir, esse é o destino.Evoé! Axé! Auê! Salamaleque! Shalom! Salve!

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Armindo Bião

ABRACE:

avaliação de um percurso e perspectivas*

Armindo Bião1

Ao nos aproximarmos dos dez anos de criação da Associação Brasileirade Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), o queefetivamente celebraremos em outubro do próximo ano, 2008, valeexplicitar a seguinte questão: Como estão as ARTES CÊNICAS no Brasil,desde a realização, pela ABRACE, de quatro congressos e três reuniõescientíficas, nas cidades de São Paulo, Salvador, Florianópolis e Rio deJaneiro? E já poderíamos adiantar uma possível resposta: em termosacadêmicos, nesses quase 10 anos, as ARTES CÊNICAS no Brasil têmvivido importante processo de crescimento e um emergente processode descentralização, mas, ainda faltam bancos de dados devidamentesistematizados! E completaríamos: talvez a ABRACE possa contribuirpara preenchermos devidamente essa lacuna.

Comecemos com duas unidades de referência conceitual: os cursos de

pós-graduação, onde se agrupam – e são formados – pesquisadores

* Texto inédito: Comunicação para a mesa redonda de abertura da IV Reunião Científica daAssociação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), realizadano Conservatório de Música da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, em 5 dejunho de 2007, de 13h30 às 15h. Trata-se, simultaneamente de uma humilde – e pretensiosa– contribuição, com a qual eu saúdo nosso colega pioneiro Fredric M. Litto (USP) eagradeço a colaboração de nossos colegas Sérgio Farias (artes cênicas UFBA), MaurícioLoureiro (música UFMG) e Sonia Pereira (artes visuais UFRJ) e dos técnicos do CNPqVera Fonseca e Luiz Ricardo Costa Ribeiro. Agradeço também aos colegas Marta Isaacssonde Souza e Silva (UFRGS) e Alberto Ferreira da Rocha Júnior (UFSJ), que, após aapresentação oral desta comunicação, contribuíram para seu enriquecimento cominformações complementares e questionamentos. E, ainda, agradeço a Marcos Auréliodos Santos Lopes, por sua ajuda no tratamento dos dados primários e na elaboração dastabelas.

1 Pesquisador CNPq/ BR e Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord – MSHPN/ FR,Professor Titular Participante Especial do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas daUniversidade Federal da Bahia –PPGAC/ UFBA, Presidente da ABRACE de 1998 a 2002.

208

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

de todos os níveis; e as bolsas de produtividade de pesquisa do CNPq,que revelam um reconhecimento institucional – em nível nacional – bemcomo o reconhecimento (conhecimento que renova aquele que conhecedurante o processo em que este transforma o desconhecido emconhecido) de nossos próprios pares.

Os cursos de pós-graduação em ARTES CÊNICAS no Brasil

Os primórdios encontram-se na criação dos cursos de pós-graduaçãoespecíficos, inicialmente na USP, o mestrado em TEATRO, entre 1972e 1973, e o doutorado em TEATRO, em 1980. E, ainda antes da criaçãoda ABRACE, na criação de mais três mestrados:

• em 1980, na UNICAMP, um mestrado em ARTES, entre as quais asARTES CÊNICAS e as ARTES CORPORAIS, ao lado das ARTESVISUAIS e da MÚSICA;

• em 1991, na UNIRIO, o mestrado em TEATRO;• e, entre 1996 e 1997, na UFBA, o mestrado em ARTES CÊNICAS,

reunindo DANÇA e TEATRO.

Desde então, foram criados mais três doutorados e três mestrados, aquilistados por ordem cronológica:

• entre 1999 e 2000, na UFBA, o doutorado em ARTES CÊNICAS,reunindo DANÇA e TEATRO;

• em 2000, na UNIRIO, o doutorado em TEATRO;• em 2002, na UDESC, o mestrado em TEATRO;• entre 2003 e 2004, na UNICAMP, o doutorado em ARTES

(CÊNICAS e CORPORAIS);• em 2005, na UFBA, o mestrado em DANÇA;• e, entre 2006 e 2007, na UFRGS, o mestrado em ARTES CÊNICAS,

também reunindo, como na UFBA, DANÇA e TEATRO.

Assim, coincide com o percurso da ABRACE, desde 1998, o crescimentode 75% do número de mestrados e de 200% do número de doutorados

209

Armindo Bião

em ARTES CÊNICAS no Brasil, o que pode ser bem compreendidocom a visualização da tabela e do quadro apresentados a seguir.

Tabela 1:

Criação de Programas de Pós-Graduação em ARTES CÊNICAS

no Brasil

Cursos de Antes de No percurso da Percentuais de

Pós-Graduação em 1998 ABRACE crescimento

ARTES CÊNICAS no percurso

Mestrados 4 3 75%

Doutorados 1 3 200%

Fonte: CNPq (1995).

Quadro 1:

Comparativo quantitativo 1998/ 2007

Programas de

Pós-Graduação em Em 1998 Em 2007

ARTES CÊNICAS

Mestrados 4 7Doutorados 1 4Totais 5 11

Fonte: CNPq (1995).

Já a ampliação da distribuição regional foi menos expressiva nesse período,pois, se antes de 1998, só havia pós-graduação em ARTES CÊNICASno Sudeste (em São Paulo e no Rio de Janeiro) e no Nordeste (emSalvador, Bahia), ao longo do percurso da ABRACE, passou também ahaver apenas no Sul (em Florianópolis, Santa Catarina e em Porto Alegre,Rio Grande do Sul). Esse pouco expressivo processo de descentralizaçãoé também verificado quando se identifica a existência de linhas de pesquisaem ARTES CÊNICAS em programas de pós-graduação de outras“áreas” do conhecimento, o que ampliou nossa presença, em termos

210

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

geográficos, apenas para Minas Gerais, no Sudeste, e para Brasília, noCentro-Oeste brasileiro, como se pode observar na tabela abaixo. Aconstituição de grupos de pesquisa, a partir desses programas, específicose afins, em outros locais dessas regiões e das regiões Norte e Nordestedo país, ainda não foi suficiente para gerar novos programas e/ oulinhas de pesquisa em ARTES CÊNICAS, que pudessem de fato ampliaresse processo.

Tabela 2:

PPG de outras “áreas” com linhas de pesquisa

em ARTES CÊNICAS

Programas Em 1998 Em 2007

Mestrados 1 4PUC/ SP PUC/ SP; UFMG; UNESP; UNB

Doutorados 1 2PUC/ SP PUC/ SP; UFMG

Totais 2 6

Mais 200%

Fonte: CNPq (1995).

O percurso dos cursos de pós-graduação em ARTES CÊNICAS noBrasil, aqui brevemente esboçado, ainda pode apresentar lacunas, como,por exemplo, provavelmente, no que se refere a um curso de pós-graduação, na “área” de letras, da Universidade do Estado do Rio deJaneiro (UERJ), onde há um pesquisador bolsista de produtividade empesquisa do CNPq, ou, ainda, quanto à existência de outros programasde pós-graduação, das “áreas” de letras e linguística, comunicação, história,antropologia e sociologia, dentre outros, também eventualmenteabrigando linhas, grupos ou projetos de pesquisa relativos às ARTESCÊNICAS. Essas lacunas - e eventuais equívocos, certamenteinvoluntários, poderão ser preenchidos - e sanados - com a contribuiçãode todos nós, integrantes da ABRACE.

211

Armindo Bião

Graças ao crescente número de pós-graduados (originários de todas asregiões do país e também do exterior), formados pelos atuais programasde pós-graduação em ARTES CÊNICAS no Brasil, presumo existiremboas perspectivas para o crescimento quantitativo, qualitativo e dedistribuição regional, para a pós-graduação em ARTES CÊNICAS noBrasil, inclusive com a ampliação de sua inserção internacional!

As bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq

Todos os pesquisadores integrantes da ABRACE certamente conhecema tabela de “áreas” de conhecimento do CNPq atualmente em vigor,que nos situa no âmbito “área” de ARTES, um dos três subgrupos da“grande área de conhecimento”, intitulada LINGUÍSTICA, LETRASE ARTES. Mas, no que tange à avaliação de nossas demandas, o CNPqinclui a “área” de ARTES numa “grande área de avaliação”, de caráterclaramente multidisciplinar, denominada ARTES, COMUNICAÇÃO,CIÊNCIAS DA INFORMAÇÃO, MUSEOLOGIA E TURISMO. Acada “grande área de avaliação” dedica-se um Comitê Assessor (CA),formado por pesquisadores das respectivas “áreas” nele reunidas. Denosso comitê participam, como TITULARES, dois pesquisadores da“área” de ARTES, sempre, até hoje, das subáreas de ARTES VISUAISe de MÚSICA2. Desde a criação da ABRACE, pesquisadores da“subárea” das ARTES CÊNICAS passaram a ser eventualmenteconvidados3 para reuniões desse comitê, até que, a partir de 2004,

2 Salvo equívoco de minha parte, ao longo do percurso de existência da ABRACE,ocuparam essa posição, pela “subárea” das ARTES VISUAIS, os pesquisadoresAnnateresa Fabris (USP), Maria Lúcia Bastos Kern (PUC/ RS) e Sonia Gomes Pereira(UFRJ) e, pela “sub área” de MÚSICA, Cristina Gerling (UFRGS), José Maria Neves(UNIRIO) e Maurício Alves Loureiro (UFMG).

3 Eu próprio fui convidado – cerca de quatro vezes – para “representar” a “subárea” dasARTES CÊNICAS, assim como outros pesquisadores foram também eventualmenteconvidados, esses para substituir seus colegas titulares ausentes por algum motivo,como, por exemplo, das “subáreas” das ARTES VISUAIS (Carlos Zílio [UFRJ]) e daMÚSICA (Maria Elizabeth Lucas [UFRGS]).

212

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

formalizou-se, nesse comitê, a presença de um pesquisador desta nossa“subárea”, na categoria de SUPLENTE4, o que, de todo modo, é maisum indicador do recente crescimento das ARTES CÊNICAS em nossopaís.

Habitualmente, as demandas de bolsas de Produtividade em Pesquisa(PQ) são analisadas em dois momentos a cada ano, nas chamadasdemandas de maio e de outubro (05.XX e 10.XX; sendo XX os doisúltimos dígitos do respectivo ano). O pesquisador encaminha seu projetoao CNPq, que, por sua vez, o submete à avaliação de dois pareceristas ad

hoc, selecionados, geralmente, dentro do quadro de pesquisadores jábolsistas PQ. A área técnica do CNPq prepara o material on-line para oComitê Assessor, que examina os pareceres ad hoc e o currículo docandidato, disponível na plataforma Lattes, consultando sempre quenecessário o projeto apresentado. Com base em análises comparativasdentro da “grande área”, da “área” de ARTES e de cada “subárea”, oCA exara parecer conclusivo “favorável” ou “desfavorável” aoatendimento da demanda, ordenando os pedidos com parecer favorávelpor ordem de prioridade, ficando a efetiva implementação da bolsa nadependência de recursos por parte da agência.

No sentido de conhecer-se com clareza e completude o panorama geralquantitativo e distributivo das bolsas PQ/ CNPq da “área” de ARTESe de nossa “subárea”, ao longo do percurso da ABRACE, o ideal seriase compor um quadro com a “identificação de cada demanda”,rotineiramente realizada nos meses de maio e outubro de cada ano,contendo os dados gerais de toda a “área” e de cada “subárea”, relativosàs “bolsas em curso” (então efetivamente implantadas) e à “demandaem análise”. Abaixo, esboça-se esse possível quadro (por enquantonecessariamente incompleto, visto inexistirem bancos de dados completose confiáveis, em séries históricas construídas com base nos mesmoscritérios):

4 FARIAS, Sérgio (UFBA), para o período de 2004 a 2007.

213

Armindo Bião

Quadro 2:

Identificação de demanda: Bolsas PQ / CNPQ

Bolsas em Dados da Demanda em Análise

Identificação Curso

da Demanda ARTES/ Potencial Efetiva Recomendada Atendida

ARTES A/ AC A/ AC A/ AC A/ AC

CÊNICAS

10/ 98 - - - - -

05/ 99 - - - - -

10/ 99 - - - - -

05/ 00 - - - - -

10/ 00 - - 30 10 -

05/ 01 52 - 39 - -

10/ 01 - - 34 11 -

05/ 02 - - 17/ 03 12/ 02 -

10/ 02 - - 21/ 06 11/ 03 05/ 03

05/ 03 - 30/ 07 19/ 05 -

10/ 03 - - - - —/ 01

05/ 04 - - - - -

10/ 04 - - 86 19 -

05/ 05 65/ 11 - - - -

10/ 05 - - 64 24 -

05/ 06 68/ 12 - - - -

10/ 06 - - 92/ 20 66/ 14 -

05/ 07 73/ 14 - - - -

Fonte: CNPq (1995).

Essa “demanda em análise” possuiria, assim, diversas subdivisões,entre as quais uma dedicada ao que seria a “demanda potencial”, muitodifícil ser quantificada, posto que dela fariam parte todos os pesquisadoresbrasileiros ou estrangeiros em situação regular no país, com ou semvínculo empregatício, das mais diversas “áreas” de conhecimento, atuandono campo das ARTES CÊNICAS – cujos grandes critérios para aidentificação de sua “produtividade” se encontram a seguir detalhados.As demais subdivisões dessa “demanda em análise” seriam a “demandaefetiva” (pesquisadores que efetivamente se apresentaram comocandidatos), a “demanda recomendada” (aquelas propostas merecedorasde parecer “favorável” por parte do CA) e, finalmente, a “demandaatendida” (as bolsas PQ efetivamente implantadas, o que só ocorre

214

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

posteriormente à reunião presencial do CA, quando as instâncias técnicase dirigentes do CNPq identificam os recursos de fato disponíveis e asreais possibilidades de atendimento da “demanda recomendada” peloCA, que sempre a organiza por ordem de prioridade e observando acomposição da “área” de ARTES em suas diversas “subáreas”, deARTES VISUAIS, MÚSICA e ARTES CÊNICAS, que, por sua vez,compreende o TEATRO, a DANÇA, o CIRCO e as interfaces daÓPERA, DANÇA-TEATRO, HAPPENINGS/ PERFORMANCES).

De maneira sintética, são os seguintes os critérios usados para aidentificação da demanda recomendada de pesquisadores para as bolsasPQ CNPq:

1. Doutores atuantes na “área” das ARTES CÊNICAS nos últimoscinco anos, para os níveis 1 (A, B, C e D) e nos últimos dois anos,para o nível 2;

2. Com projetos de pesquisa concluídos e em andamento, relevantes emeritórios;

3. Com produção bibliográfica e eventualmente artística, resultante dosprojetos de pesquisa concluídos e ou em andamento, diversificadaem sua tipologia e expressivo em termos quantitativos e qualitativos;

4. Com capacidade comprovada de formar novos pesquisadores, nosmais diversos níveis, principalmente de doutorado, mestrado e iniciaçãocientífica;

5. Com inserção local, regional, nacional e internacional, em termos departicipação em programas institucionais de intercâmbio e atividadesde pesquisa, docência e extensão; em bancas de pós-graduação, eventosacadêmicos e comissões de avaliação e consultoria;

6. Com compromisso institucional e com capacidade de liderança,devidamente comprovados, em termos de participação em instânciascolegiadas, instituições acadêmicas e entidades científicas da “área”das ARTES CÊNICAS.

215

Armindo Bião

As “subáreas” das ARTES VISUAIS e da MÚSICA encontram-se, defato, consolidadas há mais tempo do que a “subárea” das ARTESCÊNICAS, o que será ilustrado, a seguir, com dados comparativos sobreos respectivos números de bolsas de produtividade de pesquisa. Essesdados também revelam a emergente consolidação da “subárea” dasARTES CÊNICAS, consequência de seu expressivo crescimento, maiorque o crescimento da média de toda a “área” de ARTES.

Quadro 3:

Bolsas em curso em 2005 por “subárea” e por nível5

“Subáreas” 1A 1B 1C 1D 2 Totais

ARTES CÊNICAS 1 0 4 2 4 11

ARTES VISUAIS 5 1 6 5 9 26

MÚSICA 3 2 9 7 7 28

Quadro 4:

Bolsas em curso em 2006 por “subárea” e por nível

“Subáreas” 1A 1B 1C 1D 2 Totais

ARTES CÊNICAS 1 1 4 0 6 12

ARTES VISUAIS 5 2 5 4 11 27

MÚSICA 3 2 10 6 8 29

5 Atualmente são seis os níveis de bolsas PQ no CNPq, que são, habitualmente, concedidaspor períodos de três anos (níveis 1 e 2) ou de modo vitalício (nível Sênior). À bolsa denível (ou categoria) 2 corresponde o valor mensal de R$976,00, Aos quatro níveis 1(D, C, B e A), correspondem, respectivamente, os valores de R$1.011,00, R$1.116,00,R$1.185,00 e R$1.254,00, acrescidos sempre de um valor adicional de bancada de1.000,00, para o nível 1D, de R$1.100,00 para os níveis 1C e 1B e de R$1.300,00,para o nível 1A. Já ao sexto nível (criado mais recentemente), o Sênior, consideradovitalício para os pesquisadores que, durante 15 anos, se encontraram entre os níveis1A e 1B, pode ser concedido apenas o valor adicional de bancada de R$1.300,00,valendo registrar que não há até o momento pesquisadores da “área” das ARTESnesse nível.

216

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Quadro 5:

Bolsas em curso em 2007 por “subárea” e por nível

“Subáreas” 1A 1B 1C 1D 2 Totais

ARTES CÊNICAS 1 1 4 0 8 14ARTES VISUAIS 5 2 6 3 13 29MÚSICA 3 2 11 5 9 30Totais 9 5 21 8 30 73

Fonte: CNPq (1995).

Quadro 6:

Variação das bolsas de ARTES CÊNICAS por nível

de 2005 a 2007

Identificação daDemanda 1A 1B 1C 1D 2 Totais

Maio 2005 1 0 4 2 4 11Outubro 2006 1 1 4 0 6 12Maio 2007 1 1 4 0 8 14

Fonte: CNPq (1995).

Ao se comparar os índices de crescimento da “subárea” das ARTESCÊNICAS com os da “área” de ARTES, nos últimos três anos, verifica-se facilmente o crescimento da “subárea” em taxas superiores a 100%ao crescimento médio da “área”: 9,1% para 4,3%, de 2005 para 2006; e16,7% para 7,3%, de 2006 para 2007:

Tabela 3:

Percentuais de crescimento: Artes cênicas e Artes

ARTES Percentuais Percentuais

Anos CÊNICAS de crescimento ARTES de crescimento

2005 11 - 65 -

2006 12 9,1% 68 4,3%

2007 14 16,7% 73 7,3%

Fonte: CNPq (1995).

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Armindo Bião

A análise dos dados, ainda que esparsos, disponíveis nos relatórios dosCA de ARTES6, revela também o muito expressivo crescimento dademanda efetiva de bolsas PQ CNPq, por parte dos pesquisadores denossa “subárea” das ARTES CÊNICAS, como se pode observar coma análise dos dados contidos na tabela abaixo, que revela um crescimentoda ordem de 566,7% dessa demanda, num período de pouco mais dequatro anos, enquanto o também expressivo crescimento da demandaefetiva de toda a “área” de ARTES, no mesmo período, da ordem de441,1%, fica aquém:

Tabela 4:

Crescimento da demanda efetiva de bolsas: Artes Cênicas e Artes

Identificação Demanda Efetiva Percentuais de crescimento

da Demanda

ARTES ARTES

CÊNICAS ARTES CÊNICAS ARTES

O5/ 02 3 17 - -10/ 06 20 92 566,7% 441,1%

Fonte: CNPq (1995).

Finalmente, a distribuição das bolsas de produtividade de pesquisa doCNPq, pelas diversas regiões do país, na “subárea” das ARTESCÊNICAS, em maio de 2007, é coerente com as circunstâncias históricase geográficas do desenvolvimento da “subárea”, revelando, ainda,expressiva concentração nas regiões Sudeste (8 bolsas, 57,1%) e Nordeste(5 bolsas, 35,7%).

6 Para preparar esta comunicação, tive acesso a relatórios parcialmente ou plenamentecompletos das seguintes demandas identificadas: 10/ 95, 05/ 96, 10/ 96, 10/ 00, 05/01, 09/ 01, 11/ 01, 05/ 02, 10/ 02, 05/ 03, 10/ 03, 10/ 04, 05/ 05, 10/06, 05/ 07.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Quadro 7:

Distribuição das bolsas PQ de ARTES CÊNICAS em maio de

2007 por região

Região Estado Número Instituições

SUDESTE São Paulo 6 3 - UNICAMP2 - USP1-UNESP

SUDESTE Rio de Janeiro 2 1 - UNIRIO1 - UERJ

NORDESTE Bahia 5 5 - UFBASUL Santa Catarina 1 1 - UDESC

Fonte: CNPq (1995).

Ainda duas importantes observações no que tange às bolsas PQ CNPqvalem ser registradas. Considerando-se os dados de 2006 (inclusivedisponíveis no site do CNPq, no âmbito das “estatísticas e indicadoresdo fomento”), verifica-se que a nossa grande “área” das ARTES detémapenas aproximadamente 0,8% do total de 9.073 de bolsas PQ entãoem curso, cabendo a nossa “subárea” das ARTES CÊNICAS cerca0,16%, o que é estatisticamente quase desprezível. E, no entanto, os dadosaqui reunidos revelam, sem sombra de dúvida, o crescimento de nossa“subárea” ao longo do percurso de quase dez anos de existência daABRACE.

Conclusão

O conjunto dos dados aqui apresentados, relativo às bolsas deprodutividade em pesquisa do CNPq pode – e deve – sercomplementado, com séries estatísticas mais completas, com a ajuda daABRACE e do CNPq. Mesmo com muitas lacunas, e sem consideraroutras possíveis unidades de referência conceitual, como, por exemplo,os grupos de pesquisa da “subárea” registrados no Diretório do CNPq,as bolsas de iniciação científica, de diversas instituições, e as bolsas de

219

Armindo Bião

produtividade em pesquisa das fundações estaduais, fica demonstrado oefetivo crescimento da “subárea” das ARTES CÊNICAS no Brasil, emparalelo ao percurso de quase 10 anos da ABRACE e a sua consolidação.

Com o crescimento e a consolidação de seus programas de pós-graduação e grupos de pesquisa, bem como com o consequente aumentoda demanda de bolsas PQ, as ARTES CÊNICAS, ou, como tambémse poderia chamar, as ARTES DO ESPETÁCULO (incluindo-se aí,sobretudo, o TEATRO e a DANÇA, mas também o CIRCO e até aÓPERA, além de outras possíveis formas de espetáculo em interface

com a MÚSICA, as ARTES VISUAIS e as ARTES

AUDIOVISUAIS), parecem reunir boas perspectivas de crescimentoquantitativo, qualitativo, de distribuição regional e de inserção internacional.

Referência

BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia. Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Disponível em:<http://www.cnpq.br>. Acesso em: 10 mar. 1995.

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Armindo Bião

A tradição oral assegura que não há espetáculo teatral sem ator e público.É fato. Mas também se conhece experiência de vanguarda de espetáculosem ator – apenas com cenário, iluminação e público. Este seria então oelemento indispensável para o espetáculo teatral: o público. E o artista, éclaro, ainda que invisível.

Na cena, a vida é a do ator, que dá corpo e alma a personagens. Mas oator é apenas um dos membros de uma equipe, que geralmente reúnepelo menos um encenador e um responsável pelas “vestimentas” dopalco: luz, cenário, figurinos, adereços, maquiagem etc. Eventualmente –e isto não é raro – o próprio ator pode ser tudo isso, na mesma pessoa.Mas a função de “vestir” a cena é imprescindível, seja ela exercida poresse artista solitário, ator e tudo o mais, ou por um especialista ouprofissional, o que seria sempre – ou na maioria absoluta das vezes –mais desejável.

Alguém tem que decidir e produzir a aparência do ator em cena ou,talvez, mais radicalmente, da própria cena em si. Despido ou vestido,num palco vazio ou cheio de coisas, o ator – e o espetáculo – só secompletam com o público, que testemunha sua forma e aparência nahora do “vamos ver”. É nesse processo que se percebe a importânciados cenários e figurinos, que paradoxalmente serão os melhores domundo, quando servirem ao espetáculo como um todo, sem destacarem-se como uma simples obra plástica, visual, e sim compondo um conjuntoespetacular. O bom trabalho é aquele que não aparece. Aquele que parecese tratar de um puro encantamento, que se desencantaria, saindo da sombra

O teatro do mundo:

da importância dos cenários e dos figurinos*

* BIÃO, Armindo. Inédito: escrito por demanda para a realização de um evento.Salvador, 21 out. 2007.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

das ideias, para maravilhar a realidade do público, e divertir, alertar, sugerir,ensinar...

Assim é o teatro, como a vida coletiva, da qual é metáfora preciosa ereveladora; e espelho translúcido: todos juntos fazemos o espetáculo e avida social. Podemos acumular papéis, mas desempenharemos, sempre,pelo menos, um deles. Um dos mais importantes é, sem dúvida, o docenógrafo e do figurinista, igualmente essenciais na concepção e naexecução (confecção, elaboração) dos objetos cênicos e utilitários, quenos orientam no espaço e se posicionam entre nós e nossa percepção domundo – e da arte.

A estética, enquanto sensibilidade e partilha de padrões de beleza, é, porexcelência, o mundo das sensações e dos sentidos, vividos e vivenciadoscoletivamente. Essa é a ética – o que nos une e dá sentido – da estética.Cenários (ainda que ausentes) e figurinos (mesmo se inexistentes) são aintermediação, o que permite que se viva e vivencie o mundo e seuresumo e síntese: o teatro.

223

Armindo Bião

Preâmbulo

Agradeço o convite e registro minha alegria de estar ao lado de Paulo daCosta Lima e Manoel José Carvalho, meus colegas da UniversidadeFederal da Bahia – e sucessores em nossa Pró-Reitoria de Extensão, e derever outros colegas, como Roberto Albergaria, por exemplo, além demuitos das Escolas de Dança e de Teatro. Congratulo-me com a iniciativada Pró-Reitoria de Extensão da UFBA, dessa Série Brasil,compreendendo palestras sobre artes e eventos artísticos, o grande desafiode sempre em nossa área, na universidade, promover a aliança entreteoria e prática.

Resisti em aceitar o convite porque o enunciado do tema – fundamentosdo discurso – me fez duvidar sobre minha competência para tratá-lo,por ser temática do campo das letras e das ciências humanas numaperspectiva teórica que não é a minha, mas ousei enfim aceitar o desafio.Minha perspectiva científica é compreensiva, relativista, fenomenológicae pragmática, dedicada às artes do espetáculo, dentro do campo deconhecimento do imaginário, do atual e do cotidiano. Em suma, trata-seda etnocenologia, que tenta aliar sujeito e objeto, trajeto e projeto, ciênciae arte, teoria e prática, criação e crítica, ação e reflexão, e até tradição econtemporaneidade, algo, digamos, assim, muito pretensioso e algocabotino. Só aceitei esse convite após convencer meus anfitriões de queminha contribuição estaria circunscrita por grandes grades e filtros.

Fundamentos do discurso sobre as

artes cênicas no Brasil*

* Para o amigo Vivaldo da Costa Lima, texto revisto da transcrição de palestra (InstitutoCultural Brasil-Alemanha, Salvador, Bahia, 27.09.2004), publicado originalmente In:BACELAR, Jefferson; PEREIRA, Cláudio (Orgs.). Vivaldo da Costa Lima:intérprete do Afro-Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. p. 161-175.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Fundamentos dos fundamentos

O primeiro filtro que me circunscreve aqui e agora é o lógico e linguístico,de base greco-latina, ibérica, lusófona. Quero dizer que a língua é mãe –e pai, e por isso também é grade, que permite certa liberdade, mas exigerepertório comum de códigos. Expresso-me, exprimo-me, espremo-me, em português, língua neolatina (a mais jovem – dizem) marcada poruma oralidade tradicional muito forte e – também muito fortemente –por dois outros mundos da oralidade, o “nativo” do Brasil e o dasculturas provenientes de África. Esta língua possui, pois, específicas formasde conotação e de denotação, constituindo um universo lusófonoassociado ao mundo dos celtiberos, muito marcado por grande influênciamoura e judaica.

O segundo filtro, que pode me revelar um cabotino da maior marca, oque eventualmente poderá ser confirmado pela leitura das notas aopresente texto – em que transformei os comentários que fiz quando deminha palestra, é o autobiográfico. É o filtro da expressão e da experiênciacorporal do ator, professor e diretor de teatro, que nasce na PenínsulaItapagipana, então, nos anos 50, área de transição urbana compreendendobairros de imigração recente, como os de Roma e dos Mares, porexemplo, de pessoas vindas do interior da Bahia, meu pai do Agreste,do Pedrão, de Irará, minha mãe do Recôncavo, do Iguape, de Maragogipe.Fui criado num universo espírita kardecista ortodoxo, filiado aopositivismo francês – que tenta afastar-se de rituais e de imagens, se querfilosofia de base científica e consequências religiosas e que se desenvolveentre os anos 50 e 60 nos bairros do Machado, de Roma e da Calçada.É daí que, também marcado pela tradição rural do catolicismo populare das carreiras da área médica e militar na família, “índio da CidadeBaixa”, passo a frequentar – inusitadamente – este ICBA (que tantoenriqueceu minha formação) aos 14 anos de idade.

O terceiro filtro será minha leitura dos termos do intitulado – Fundamentos

e Discurso, começando com o que o senso comum tem registrado em

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Armindo Bião

dicionários. Lerei em fundamentos, de acordo com Houaiss (2001, p. 1404)1,seus sentidos de fundação, base firme, conjunto de regras básicas, deprincípios, causa, fundo, motivo, razão, demonstração de veracidade,prova, forma significada em comum a muitas coisas e – ressalto – “grupode objetos sobre os quais a força divina dos orixás, de outras divindadesdo campo afro-brasileiro é supostamente assentada e que fica enterradano centro ou em lugar especial no local do culto constituindo suasfundações místicas”. Reitero principalmente as ideias de conjuntos deprincípios e de objetos míticos escondidos.

Em discurso (HOUAISS 2001: p. 1054)2, lerei seus sentidos de mensagemoral e solene, peça de oratória, sermão, oração, série de enunciadossignificativos, estudo, tratado, dissertação, raciocínio sequencial, língua emação. Reitero a ideia de enunciado escrito e anuncio meu último filtro, oda língua escrita, retornando ao primeiro, o da grade lógica linguística,lusófona, ibérica, de base greco-latina, com tudo o que ela molda comoforma de ver o mundo e de organizar o pensamento.

Voltemos brevemente à Grécia clássica, quando a língua escritatransforma-se num conjunto de signos para representar a fala, e nãomais só as coisas – ou coisas e sons simultaneamente – e produz-se umaenorme revolução sensorial e intelectual. Dominando-se esses signos esuas regras pode-se não só construir discursos, mas também pensar ofuturo – até a liberdade em relação ao destino – e criar as palavras teatro(espaço organizado para o olhar) e teoria (o olhar dos sujeitos sobre osobjetos), ambas do conjunto semântico do sentido da visão. Os últimosdos grandes trágicos gregos – Sófocles, Ésquilo e Eurípides – vãorepresentar justamente a libertação do homem em relação à divindade.Essa matriz de língua escrita – posteriormente greco-latina – enfatiza apossibilidade de intervenção humana no mundo e no futuro, enquantoos universos da oralidade – e de outras escritas “menos fonéticas”

1 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua

Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.2 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Ibid. p. 1054.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

privilegiam o passado. Contemporaneamente, quando todas essasmatrizes linguísticas se comunicam muito velozmente, tende-se a valorizar,sobretudo, o presente, quando, mesmo no Ocidente de grande tradiçãoiconoclasta, volta-se a valorizar a imagem, os ícones e a comunicaçãonão verbal3.

Aceitando-se essas grades e filtros como chão e esteio, leiamos juntosagora alguns fragmentos de documentos que dão base aos fundamentosdo discurso sobre a cultura brasileira.

Mosaico fundamental e discursivo

O primeiro documento é uma das matrizes do que viria a se chamar decultura brasileira, a Carta de Pero Vaz de Caminha (AMADO;FIGUEIREDO, 2001, p. 92- 97)4. Leiamos nosso fragmento:

Frei Henrique disse com voz entoada [...] a qual missa, segundomeu parecer foi ouvida por todo mundo com muito prazer edevoção... Depois de acabada a missa, assentados, nós, à pregação,alevantaram-se muitos deles tangeram... buzina, começaram a saltare a dançar um pedaço... Além do rio, andavam muitos delesdançando e folgando, uns ante outros sem se tomarem pelas mãose faziam-no bem. Então Diogo Dias, almoxarife que foi deSacavém, que é homem gracioso e de prazer, passou-se além do rio.Levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita e meteu-se comeles a dançar, tomando-os pelas mãos. Eles folgavam, riam eandavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarfez-lhe ali andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real deque eles se espantavam, riam e folgavam muito. Conquanto aquilomuito os segurou e lhe afagou tomavam logo uma esquiveza,como monteses, e foram para sempre”. Esse episódio aparece no

3 Esta questão foi tratada longamente em minha tese de doutorado, orientada porMichel Maffesoli, e defendida em 1990 na Sorbonne: Théâtralité et spectacularité:une aventure tribale contemporaine à Bahia.

4 AMADO, Janaína; FIGUEIREDO, Luís (Org.). Brasil 1500: quarenta documentos.Brasília EDUNB; São Paulo: IOSP, 2001. (Carta 92 97).

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filme de Humberto Mauro, Descobrimento do Brasil, de 1937, umadas mais belas cenas do filme. Aí está nosso primeiro fragmento deum discurso alusivamente amoroso.

O segundo documento é um tratado proposto por escravos numa revoltaem 1789 e que consta da publicação Brasil, 500 Anos em Documentos

(ALVES FILHO, 1999, p. 131)5. Este é o nosso fragmento: “Poderemosbrincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos, sem que nosimpeça e nem seja preciso licença”.

O terceiro fragmento é do manifesto da poesia Pau-brasil (ALVES FILHO1999, p. 356-357)6:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nosverdes da favela sob o azul cabralino, são fatos estéticos [...] OCarnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça Pau-Brasil.Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso.A formação étnica rica [...] A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança...O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. [...] Ariqueza dos bailes e das frases. Negras de jóquei. Odaliscas noCatumbi. Falar difícil [...] A nunca exportação de poesia. A poesiaoculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudadeuniversitária... A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia,críticos, crítica, dona-de-casa tratando de cozinha. A poesia para ospoetas. Alegria dos que não sabem e descobrem. Tinha havido ainversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de tese e a luta nopalco entre morais e imorais [...] Ágil o teatro, rilho do saltimbanco.Ágil e ilógico. Ágil o romance nascido da invenção. Ágil a poesia. APoesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.

De documento de 1937, que estabelece o que é patrimônio histórico noBrasil (ALVES FILHO, 1999, p 464)7, leiamos: “Bens móveis e imóveis

5 ALVES FILHO, Ivan. Brasil, 500 anos em documentos. 2.ed. Rio de Janeiro:Mauad, 1999.

6 Id., Ibid., p. 131.7 Id., Ibid., p. 464.

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inscritos nos livros do tombo do patrimônio histórico e artístico nacional”,sem aí se incluir as artes do espetáculo, que só apareceriam integrando oconceito de patrimônio, nos anos 70, como patrimônio imaterial, emdiscussões no âmbito da UNESCO.

Mais um fragmento mínimo dessa grande obra de referência, que é aBrasiliana (PEREIRA, 2001)8 e que reúne os documentos que constamda coleção da Biblioteca Nacional com referência ao Brasil e à culturabrasileira: “Xisto Bahia foi um dos mais completos compositoresexclusivamente populares do início da MPB do Brasil”. Violonista,compositor e ator, este mestiço começou sua carreira em Salvador, ondenasceu em 1842, e fez sucesso no Ceará, no Maranhão, no Pará, emMinas Gerais e no Rio de Janeiro. Morreu muito pobre. Enfim, umúltimo fragmento, do livro de Luiz Américo Lisboa Júnior, A Presença da

Bahia na Música Popular Brasileira (LISBOA 1990, p. 7)9:

Atualmente estamos diante de um fato que transformou o cenáriomusical brasileiro. Falamos da avalanche de artistas baianos quetêm se lançado no mercado fonográfico. Falar de música baianahoje em dia é falar também de nossa cultura urbana de nossasraízes culturais, dos nossos costumes e, acima de tudo, nossaafricanização. [...] Mas a presença da Bahia na música popular não éocorrência de hoje, pois nossa importância dentro do contexto dahistória da música popular brasileira vem desde o século passado,XIX [...] Falar-se da Bahia, de suas lendas e tradições foi motivo deinspiração de muitos artistas [...], muito antes até de 1939, quandoCarmem Miranda gravou o célebre samba de Dorival Caymmi, Oque é que a baiana tem. Para citarmos alguns exemplos poderíamosdizer que o primeiro disco gravado no Brasil foi interpretado porum artista baiano, chamado Manuel Pedro dos Santos,popularmente conhecido pelo apelido de Baihano. E a música era

8 PEREIRA, Paulo Roberto (Org.). Brasiliana da Biblioteca Nacional. Rio deJaneiro: FBN; Nova Fronteira, 2001.

9 LISBOA JÚNIOR, Luiz Américo. A Presença da Bahia na Música Popular

Brasileira. Brasília: MusiMed/ Linha Gráfica Editora, 1990. p.7.

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um lundu intitulado Isto é bom. De um autor também baiano, nascidosobre o nome de Xisto Bahia. Isso tudo em 1902. Outro dadointeressante está no fato de que o primeiro disco de Francisco Alves,gravado em 1919, quando o artista tinha apenas 20 anos de idade,era um samba do Sinhô, José Barbosa da Silva, chamado Fala meu

louro, em que o autor fazia uma sátira ao eminente baiano RuiBarbosa. E para não nos alongarmos mais nos exemplos, pois,são muitos, diríamos que o cantor das multidões, nosso OrlandoSilva, iniciou sua carreira fonográfica em 1935, aos 19 anos de idade,também interpretando a canção com motivos baianos, chamadaOlha a Baiana, de autoria de Kid Pepe e Germano Augusto.

O mosaico formado por esses fragmentos revela a musicalidade e aludicidade do encontro transcultural, a ludicidade reivindicada após arevolta, a alegoria do conflito e da teatralidade e a importância da Bahiano patrimônio imaginário e da indústria cultural do Brasil10.

Discurso dos discursos

Vamos enfim ao meu próprio discurso. Sobre a cultura brasileira,sobretudo em relação às artes cênicas, destaco, como seu maiorfundamento, o Barroco, como gênero, como estilo e como período dahistória da arte, que se desenvolve a partir já de fins do século XV naEuropa Ocidental, sobretudo na Europa Meridional, mas também naEuropa Central, e que, no Brasil, vai ter longuíssima vida (até Aleijadinhoé barroco, já no início do século XIX). Há um grande historiador da arte,Heinrich Wölflin (1988)11, que discute se o Barroco seria a decadência doClássico ou se o Barroco seria um estilo em si mesmo. O Barroco vai sedesenvolver justamente quando o homem descobre a existência doantípoda, aquele que está do outro lado de seu pé, a partir da constatação

10 A questão é abordada em meu ensaio “Matrizes estéticas e o espetáculo da baianidade”.In: BIÃO, A. Temas em, Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade. SãoPaulo: Annablume; Salvador: GIPE-CIT, 2000. p. 15-30.

11 WÖLFFLIN, Heinrich. Traduzido por:. G. Ballangé. Renaissance et baroque.

Paris: Gerard Monfort, 1988

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de que o globo é uma esfera e de que existe gente no Japão, na Américas,uma revolução cultural profunda. É também quando a imprensa vaivulgarizar a possibilidade daquele padrão lógico linguístico greco-latino,fazendo com que muita gente tenha a ideia de que pode interferir nomundo, pensar e construir um futuro, agora podendo conhecer coisasexóticas, como, por exemplo, a antropofagia. O Barroco vai ser umamistura de influências, de estranhos e encontra-se na base do discursosobre o Brasil e todas as suas artes.

Outro fundamento importante para as artes cênicas brasileiras, que aliouo conservadorismo católico e a reação à Reforma Protestante à matrizclássica grega daquele padrão lógico e linguístico, foi a presença em nossasterras e mentes dos jesuítas, com seu educar deleitando, horaciano, romano.Seu interessar-se pelo outro, no caso os indígenas brasileiros, em primeirolugar, era para transformá-los em si próprios, era esse o projetocatequético dos soldados de Cristo, conhecer – (re) nascer com – amitologia indígena, as músicas, instrumentos e danças dos índios, paratransformá-los em jesuítas. Com isso eles desenvolveram toda umapedagogia, como os primeiros homens modernos, de acordo com JeanBaudrillard (1982, p. 32-33)12, que usa o teatro numa perspectivapedagógica. O fato é que eles registraram para a história do mundo nãosomente a língua tupi, mas também seus instrumentos musicais, todauma mitologia, e, aí, nesta guerra barroca entre oralidade e escrituraracional, reside um dos fundamentos da cultura brasileira e também dasartes cênicas no Brasil.

Outro fundamento de nosso discurso remete à transculturação napenínsula ibérica, que deriva parte de sua denominação da palavraceltibero, nome genérico de povos que aí se formaram, descendentes,provavelmente – como toda a humanidade, daquele único e pequenogrupo matricial que teria saído do centro da África há milhões de anos e

12 BAUDRILLARD, Jean. Fin de la modernité ou l’ère de la simulation. In: LAMODERNITÉ ou l’esprit du temps, catálogo da Bienal de Paris. Paris: L’Equerre,1982.

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que teria se espalhado pelo globo terrestre e que, chegando aí, ao fim domundo, ao finisterra, não tinha mais para onde ir. E ali se encontrariamdepois com os mouros, que invadem a Península Ibérica e lá permanecemdurante séculos, e os judeus, em sua infinita diáspora, tudo mais ou menosmisturado e destinado para navegar mundo afora, a partir dascontribuições chinesas, árabes e de todos os povos da Europa e daÁfrica do Norte, de suas universidades, inclusive de Ibn Khaldun, oprofessor e grande pensador, também chamado de sociólogo, quedesenvolve a ideia de consciência individual e de consciência coletiva. Énessa mistura na Andaluzia e em Toledo, por exemplo, que, durante pelomenos alguns decênios, conviveram cristãos, mouros e judeus, negociandoe comerciando. Há registro de uma produção artística híbrida muitoforte, de bibliotecas, de produção de conhecimento pelo menos duranteuns 150 anos. O Brasil descende disso. Há um documento que narra achegada de um ritmo afro-baiano saindo de Salvador e chegando emLisboa, a fofa (TINHORÃO, 1988, p. 325 et seq.)13, uma dançamimodrámatica do sexo, dos séculos XVII e XVIII e que, segundo JoséRamos Tinhorão (pesquisador muito importante embora deteste muitosexpoentes da MPB e da cultura baiana), encontra-se na raiz do fado, quedescenderia, assim, de um ritmo afro-baiano. As culturas lusófonas ebrasileira têm fundamento aí, nessa circulação marítima e de paradoxaisformas de tolerância e de musicalidade. E a Bahia seria um consequenteberço natural e transcultural, de aluguel, compra e venda de múltiplasartes e cenas.

Outro fundamento, associado ao anterior, é relativo a uma possívelvocação artística do povo judeu, excluído da agricultura, da propriedadede terras e que se dedicaria ao comércio, às medicinas e às artes doespetáculo. A primeira codificação da dança que se conhece, aOrchésographie, é criada por um judeu, Thoinot Arbeau (1588)14. Apesarda cultura judaica proibir a representação, a partir do Purim, uma festaalgo carnavalesca, que admite o jogo de representação, vai se desenvolver

13 TINHORÃO, José Ramos. Os negros em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa:Caminho, 1988.

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o humor judaico, que se pode identificar em Chaplin e em Woody Allen,ou em todo o teatro profissional da Broadway, ou mesmo emHollywood, por exemplo. Chaplin diz que descobriu que podia ganhardinheiro cantando e distraindo os outros quando sua mãe, alcoólatra,cantora de cabaré em Londres, numa noite, não conseguiu cantar, e ele,que sabia a música, pois, sempre a acompanhava, cantou e, após terminaro número, correu para o público – ele descreve isso de modo emocionantee patético, como nos melhores momentos de seu próprio cinema – comsuas mãozinhas pequenas pedindo dinheiro o que fez com que o públicoo aplaudisse muito e lhe atendesse. Aí ele descobriu o que depois viria adesenvolver, não para mudar a história do cinema, nem a história dacultura cinematográfica e artísticas contemporâneas, mas para viver, parasobreviver (CHAPLIN 2005)15. Este é um fundamento das artes doespetáculo no Ocidente em geral e também no Brasil, que recebeu muitosjudeus no período colonial. Mais uma vez dá base a um fundamento dasartes cênicas a musicalidade, ao que se somam agora o humor e a emoção.

Mais um fundamento de caráter étnico pode ser exposto, desta vezremetendo à ideia de negro no mundo lusófono, onde, como em toda aEuropa, remete sempre ao outro (como sempre o teatro também) eespecificamente aos negros da terra, no caso do Brasil os índios, aosnegros mouros, que são os berberes e os árabes, e aos negros da Ásia, osindianos. Já a ideia de preto, que surge associada aos negros de África, é,sem dúvida, muito importante para as artes cênicas no Brasil, onde osprimeiros elencos profissionais foram compostos predominantementepor negros e mestiços, a partir do final do século XVIII e até o final doséculo XIX. Os viajantes, que passavam pela Bahia ou pelo Rio de Janeiroou por Minas Gerais, fizeram muitas referências a esse fato. CláudioManoel da Costa, em suas Cartas Chilenas, fala sobre os mais belos versossendo estropiados por bocas de mulatos16. Este fenômeno situa,

14 ARBEAU, Thoinot. Orchésographie. Paris: Langres, 1588.15 CHAPLIN, Charles. Minha vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.16 Publiquei pequeno trabalho a esse respeito: “Teatro e Negritude na Bahia”, in Bando

de Teatro Olodum, Trilogia do Pelô, Salvador: FCJA/ COPENE, 1995, p. 15-21.

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historicamente e linguisticamente, o teatro brasileiro no campo do trabalho.Mas também aproxima os pretos brasileiros dos judeus, o que tambémocorreu nos Estados Unidos da América do Norte, sobretudo nas artesdo espetáculo e da música (CALADO 1990)17. Essa coisa terrível, que éa escravidão, bem testemunhada pela Bíblia, aproxima os escravos judeusdos niggers, como se percebe na música, no cinema e teatro norte-americanos. A violência da escravidão marca tanto nossa cultura, inclusivecom o prazer do jugo sobre o outro, da violência também sexual, daobscenidade, daquilo que não pode estar em cena, mas aparece poroutra via, pela perversão, também funda nossas artes cênicas. Sobre issolerei um breve trecho do mais antigo texto de teatro que se conhece emlíngua portuguesa, no qual há um personagem negro, de autoria de Anriqueda Mota, O Pranto do Clérigo (TINHORÃO, 1988, p. 255 et seq)18. Aqui oclérigo chega a sua casa e, vendo o vinho derramado, culpa sua a criada:

Ó perra de manicongoTu entonaste este vinhoUa posta de toucinhoTe hei-de gastar nesse lombo.

Derreter a gordura de uma posta de toucinho nas costas de alguém éuma tortura terrível. Entre suas fontes de prazer, o clérigo valoriza menosa mulher que o vinho, pois lhe custava dinheiro e a satisfação sexual coma negra seria apenas parte do seu direito de posse. Esta lhe responde:

Aqui estar juiz de foraA mim logo vai até láMim também falar mourinho(TINHORÃO, 1988, p. 255 et seq.)

Quer dizer, vou me queixar ao juiz ao meirinho, que ela chama demourinho. E o que o clérigo faz depois dessas ameaças?

17 Calado, Carlos. O jazz como espetáculo. São Paulo: Perspectiva, 1990.18 TINHORÃO, Ibid. p. 255.

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O siso será calar,Para non buscar desculpas,Pois a negra non tem culpa.(TINHORÃO, 1988, p. 255 et seq)

Essa terrível relação entre prazer, violência e crueldade, que marca semdúvida a cultura brasileira, é aqui – não no teatro de maior prestígioentre os intelectuais, mas no teatro chamado de cordel, em Portugal dosséculos XVIII e XIX.

Em português não se guardou para o ator a ideia de player, de schauspieler,de jeu d’acteur, mas sim a ideia de trabalho, trabajo, travail, do latim tripalium,um instrumento de castigar escravos. Por isso talvez nossos primeirosatores profissionais foram não necessariamente escravos, pois em suagrande maioria eram provavelmente libertos, mas enfim tinham umamarca daquilo que ficou como estigma da cor, da raça, associado àescravidão. A palavra folgar, que está naquele documento dos escravosde 1789, e as palavras brincadeira e brincante, que se encontram noNordeste, não estão associadas ao trabalho do profissional da cena nomundo lusófono. É verdade que Antônio Nóbrega com seu Brincante

inspira- se nessa tradição de arte do espetáculo como lazer. Aliás, valedestacar que eu critico os discursos conservadores e reacionários deAntônio Nóbrega, mas admiro muito seu trabalho cênico. O que aquiimporta em meu discurso sobre o fundamento da negritude e do caráterde trabalho das artes cênicas profissionais no Brasil é que em línguaportuguesa não se reteve aquela referência ao lúdico.

Outro fundamento para nosso discurso refere-se à questão da educaçãoe do mercado, que hierarquiza o teatro para transformar outrem em sipróprio, como o jesuítico, como o de maior prestígio, e o teatro paradele se ganhar a vida como uma desgraça, um horror. A pequena históriado teatro brasileiro do italiano Mario Cacciaglia (1986)19 compila obrasde referência sobre teatro brasileiro como profissão, sem se ater ao nível

19 CACCIAGLIA, Mario. Pequena história do teatro brasileiro. São Paulo: EDUSP,1986.

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de prestígio do teatro de forma escrita e de caráter messiânico. Há umgrupo de pesquisa na UNIRIO, coordenado por Beti Rabetti, que trabalhasobre o teatro de grande popularidade, que o moderno teatro brasileiropretendeu destruir, aquele teatro ligado ao circo, às vedetes, às estrelas,tipo Dercy Gonçalves, por exemplo, um teatro de mercado desprezadopela intelectualidade e que, no entanto, é um fundamento para se refletirsobre a cultura brasileira e sobre a sua arte cênica.

Daí pode-se desvelar mais um fundamento, associado ao autoritarismointelectual, que, por exemplo, pôde gerar a legislação brasileira sobrepatrimônio cultural e sobre estruturas públicas de fomento e“administração” das artes cênicas, esboçadas sobretudo sob a ditaduraVargas (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000)20. Governosautoritários costumam valorizar a cultura popular e tradicional. Intelectuaisteimam em saber o que é melhor para o povo. A certeza nesse campo ésempre restritiva, mas é também um dos fundamentos da cultura brasileirae mesmo das artes em muitos momentos e lugares – é fato queShakespeare e Molière estão associados ao despotismo esclarecido desua época. Mas a permissão para que os negros baianos fizessemlivremente suas festas musicais é também indicador de um despotismocínico, pois pretendia fomentar a afirmação de identidades étnicas distintase, assim, enfraquecer, o conjunto da população local de matriz africana,para um eventual confronto com as elites mestiças de pele mais clara.Ainda recentemente, diversas iniciativas federais tentaram regulamentar,de modo centralizador, revelador de um projeto autoritário de poder,tanto a imprensa quanto o audiovisual, atualizando a fúria legislatória eautoritária de matriz lusófona e africana. Ora, as artes cênicas sãofenômenos liminares, são coisas da encruzilhada, que por isso sofrem adificuldade de submissão ao discurso, mais mesmo que outras formasde arte, também sempre de difícil submissão21. E as artes do espetáculo

20 SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria Bousquet; COSTA. Vanda MariaRibeiro. Tempos da Capanema. São Paulo: FGV/ Paz e Terra, 2000.

21 Comentei essa questão e outras a ela correlatas em “As fronteiras e territórios daslinguagens artísticas”, in Revista da Fundarte v. 4 no. 7, Montenegro, RS: FUNDARTE,2004, p. 4-9.

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nunca são um animal morto – em sacrifício - mas um fenômeno vivo,que só existe plenamente ao vivo, o que lhe é específico.

Conclusão

Todo comportamento humano de interação pressupõe uma consciênciado outro. Qualquer pessoa quando interage ajusta seu gestual e sua vozao outro, para seduzi-lo ou agredi-lo, mas sempre em relação ao outro.Existe aí uma consciência do olhar do outro. Isto é a teatralidade, umespaço pessoal organizado para o outro. Em alguns momentos toma-seconsciência disso e então essa teatralidade ganha contornos extraordinários,espetaculares. É a partir do momento em que se reflete sobre seu impactono outro que se transforma esse ordinário cotidiano da comunicação detodo momento numa coisa espetacular e que se desenvolve o sentido dareflexividade. Não é à toa que em todas as culturas em que há códigosorganizados para a representação, para as artes cênicas, percebe-se tambémaí existir reflexão sobre essas mesmas sociedades. A reflexão sobre aidentidade da cultura, sobre a identidade de uma criatura e suas diferençasquanto às demais, está na base do que, desde 1995, chamamos deetnocenologia22, uma etnociência, assim como a etnolinguística, aetnobotânica, a etnomatemática, a etnoculinária (ou etnocozinha ou, ainda,como sugere de modo bem-humorado Vivaldo da Costa Lima,etnocibologia ou etnotrofologia (LIMA, 1998, p. 74)23 e a etno-história,que se preocupa com a transmissão do conhecimento.

À guisa de conclusão, e nessa perspectiva etnocenológica, eu diria que adificuldade do discurso para dar conta da cultura brasileira, sobretudodas artes cênicas, é principalmente o seu caráter de fenômeno vivo. Rafael

22 Ver Armindo Bião e Christine Greiner, (Org.) Etnocenologia – textos selecionados. SãoPaulo: Annablume; Salvador: GIPE-CIT, 1988.

23 LIMA, Vivaldo da Costa, Ëtnocenologia e etnoculinária do Acarajé”. In: BIÃO,Armindo; GREINER, Christine (Orgs.). Etnocenologia: textos selecionados. SãoPaulo: Annablume; Salvador: GIPE-CIT, 1988. p. 63-74.

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Mandressi (1988)24 diz que o local do prazer no corpo só pode serverificado num corpo vivo, de forma difusa, e que as artes do espetáculocompartilham essa característica com o corpo. Trata-se bem de umfenômeno vivo e de fronteira, entre a realidade e o sonho, de encruzilhada,que é esse lugar de Exu e de Dionísio, como dizia José Celso MartinezCorreia, recentemente, num terreiro de candomblé, em nossa cidade,em cerimônia pública. Por isso mesmo e também apesar disso, vejo asnovas tecnologias da comunicação como meio de ampliação do discurso,dos fundamentos, da vida e da sobrevivência das artes do espetáculo25.Porque tudo é perigoso, mas tudo é também, como dizia o poeta, divinomaravilhoso. O problema é que o medo do perigo e do risco podeameaçar a realização de uma boa aliança das artes cênicas com as novastecnologias. E quem tem fundamento tem medo. E sem medo não existiriaarte. E sem destemor não haveria arte do espetáculo.

Para realmente concluir, eu diria que:

1. as artes cênicas podem contribuir para uma maior consciência no Brasile na Bahia sobre nossa própria cultura e sobre a vida humana emgeral, bem como para a melhoria de qualidade de vida, da geração derenda e emprego e para a redução das desigualdades sociais – estapossibilidade é que me anima, dá-me ar e vida;

2. os filtros lógico, linguístico e autobiográfico somam-se ao mosaicode fragmentos de referência que escolhi para construir um discurso,como um conjunto de objetos revelados ainda que fundamentalmentemíticos, quase místicos;

24 MANDRESSI, Rafael. “La mirada del anatomista, la etnoescenologia y la construcciónde objetos muertos”. In: BIÃO, Armindo; GREINER, Christine (Org.).Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume; Salvador: GIPE-CIT,1988. p. 33-54.

25 Dediquei reflexão a esse propósito em “Um carrefour nommé Bahia: enjeux,problématiques ainsi que certaines pratiques concernant lê patrimoine culturelimmatériel à Bahia (Brésil)”. In: INTERNATIONALE de lÌmaginaire. Nouvelle série,n. 17, p. 175-187, Paris, MCM, 2004,

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3. a carta de Caminha, as reivindicações de escravos para poderem folgar,o manifesto Pau-brasil, os conceitos de patrimônio, o conjunto deobras de referência sobre o Brasil e a figura do mestiço artista polivalenteda cena, Xisto Bahia, compõem o conjunto de objetos sobre os quaisa força divina é assentada no centro de meu discurso e do que entendoserem os fundamentos do discurso sobre as artes cênicas no Brasil, noqual o local especial do culto matricial é a Bahia;

4. os fundamentos do discurso sobre as artes cênicas no Brasil são oBarroco, a moderna pedagogia jesuítica, a tradicional transculturaçãoceltibera, o inusitado humor judeu, a musicalidade e a ubiquidade dasartes na vida cotidiana de matriz africana, a crueldade da escravidão, oestigma contra o trabalho e o mercado, o desejo de poder e autoridade,a fúria legislatória, a nostalgia da tolerância, a ambiguidade da atraçãopelo – e do horror ao – sensualismo, a encruzilhada dos bens e dosmales, os limites da autocrítica da identidade e da inveja do outro, ocomplexo de inferioridade e a paixão pelo olhar do outro, o gozomais ou menos consciente com o olhar do outro, a facilidadenovidadeira de absorção de novas tecnologias e modismos, a vivanecessidade de renda e emprego, de brincadeira e trabalho e, enfim, amitificação do berço baiano espetacular da cultura brasileira.

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A primeira, para designar o espaço organizado para o olhar, a segunda,para referir-se ao olhar de um sujeito sobre um objeto, as palavras teatroe teoria surgiram provavelmente ao mesmo tempo no mundo clássicogrego, quando se passou a valorizar a visão como o sentido mais nobree mais complexo entre os humanos, isto inclusive graças às primeirasdissecações de cadáveres conhecidas.

Por outro lado, mas no mesmo contexto cultural, a invenção do alfabetoe da escrita em linha horizontal, da esquerda para a direita, com signosrepresentando sobretudo – e todos – os sons da fala (e não mais comoentão ocorria no mundo das linguagens escritas, principalmente as coisassobre o que se fala), iriam permitir, num mais largo horizonte temporal,a difusão do domínio da língua escrita, a facilitação da aprendizagemdas línguas em geral, e mesmo a invenção da imprensa.

A perspectiva, como invenção renascentista de uma técnica gráfica derepresentação do espaço tridimensional, surgiria na mesma esteira histórica.Aliás, os teatros e a arquitetura italianos iriam reproduzir ao infinito essaperspectiva espacial – e temporal – em cenários e padrões de construçãoe encenação.

O texto escrito – e sua publicação – e o teatro encontram-se, portanto,intrinsecamente conectados e interdependentes.

No Brasil, onde a popularização da escrita e da imprensa seria fenômenotardio em sua história, os primeiros homens modernos – os jesuítas

Sobre o teatro e as publicações a seu respeito*

* Publicado parcialmente em Cenaberta, Coimbra, Cena Lusófona, 22.04.2005.Disponível em <http://www.cenalusofona.pt/cenaberta/detalhe.asp?id=178&idcanal=17>. Acesso em: 21.10.2008.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

(segundo Jean Baudrillard) –, desde o século XVI, difundiriam o teatro,a pedagogia e a oralidade de matrizes cristãs e europeias. Em 500 anos,a última flor do Lácio, desenvolvida em ambiente cultural próximo aofinisterra e fortemente marcada pela oralidade, se misturaria com astradições orais nativas e africanas, constituindo-se em berço linguísticode múltiplos e diversificados jogos espetaculares.

Desde fins do século XVIII, o teatro, um dos rebentos deste berço,passaria a se desenvolver em associação ao crescimento das possibilidadesde educação e publicação no país. Hoje, no Brasil, já existe um sistema,inclusive universitário, de ensino do teatro, de teoria e prática da pesquisae de publicações sobre as artes cênicas. Desde o século XIX, a produçãobibliográfica, de viajantes, estudiosos, dramaturgos, jornalistas, críticos ehistoriadores, além de documentar, anima e revela nosso teatro.

Contemporaneamente, diversas editoras – concentradas particularmenteem São Paulo, mas também no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul ena Bahia – publicam peças teatrais, análises e registros diversos.

Na Bahia, duas instituições, uma de âmbito estadual, a Secretaria da Culturae Turismo, e outra de âmbito nacional, a Universidade Federal da Bahia,são responsáveis pelo fomento à produção bibliográfica na área teatral,em regime de cooperação mútua e de parceria com organizaçõesprofissionais da área, como o Teatro Vila Velha e o Teatro XVIII.

É nesse contexto que vale destacar os periódicos do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, das Escolas de Teatro e de Dança, daUniversidade Federal da Bahia, publicados regularmente desde 1997: aRevista Repertório Teatro & Dança e os Cadernos do GIPE-CIT – Grupo

Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e

Teatralidade, respectivamente com sete e com doze números publicados.Ambas essas publicações divulgam ensaios, resenhas de livros e deespetáculos, perfis de artistas cênicos, pesquisas concluídas e emandamento, além de peças de autores teatrais atuantes nas artes cênicasda Bahia.

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Vale igualmente destacar a publicação, pela Secretaria da Cultura e Turismo,através de sua Superintendência de Cultura, de livros contendo peçasteatrais, já produzidas e devidamente documentadas, inclusive comfotografias, de dramaturgos residentes em Salvador, Bahia, baianos ounão. Desde 2003, foram lançados livros com obras de Cleise Mendes,Cláudio Simões, Paulo Henrique Alcântara, Luís Sérgio Ramos, IldásioTavares e Luciano Diniz Borges. Também de 2003 para cá, o Teatro VilaVelha publicou em sua coleção, Cadernos do Vila, peças teatrais dadramaturga Haidil Linhares; a Fundação Cultural do Estado da Bahiapublicou um número da Revista da Bahia inteiramente dedicado ao teatrobaiano e realizou um Concurso Nacional de Literatura, dedicado àdramaturgia, que premiou quatro autores, dois dos quais da Bahia, umdo Rio de Janeiro e um de São Paulo.

Estes indicadores de publicações, três periódicos com um total de 20edições e 11 autores com peças teatrais publicadas, em menos de 10anos, se somados ao historicamente fundamental livro de Aninha FrancoHistória do Teatro na Bahia através da imprensa 1900/ 1990 (Salvador: FCJA,COFIC, FCEBA, 1994), são simultaneamente sintoma e revelação deque a atividade teatral em Salvador da Bahia encontra-se em pleno processode consolidação. De fato, o teatro soteropolitano, nos últimos quatroanos, com uma média de 60 produções teatrais anuais, com temporadasmínimas de duas semanas, em 25 salas de espetáculos com boas condiçõestécnicas e de conforto, participa plenamente do circuito brasileiro deteatro profissional, fornecendo artistas e técnicos – inclusive para o centrometropolitano tradicional do chamado eixo Rio/ São Paulo.

Assim, pelo exemplo acima rapidamente apresentado, fica claro que teatroprofissional, como atividade regular e permanente, é coisa de metrópoleconsolidada ou em fase de consolidação. E que a publicação regular econtinuada de livros e periódicos relativos ao teatro é uma atividadecorrelata a este fenômeno. A cidade de Salvador da Bahia, a maior cidade– simultaneamente europeia e africana – nas Américas e ao sul doEquador em meados do século XVIII atinge o século XXI como topose lócus da arte teatral e da prática editorial a seu respeito.

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Apresentação

Dando continuidade ao projeto de pesquisa “A Produção Acadêmicada Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e suaRepercussão”, finalizado em 1996, que identificou a necessidade deconstituição de um corpus detalhado sobre essa produção, o presenteprojeto recebeu três bolsas PIBIC, que viabilizaram, inicialmente, otreinamento da equipe para a construção de bancos de dados emlinguagem Access, relativos à produção artística e bibliográfica e aoscorpos docente, funcional e discente da Escola, imprescindíveis para seupleno desenvolvimento. O período de referência foi ampliado, em relaçãoao projeto anterior, em mais dois anos (1996 e 1997) e buscou-se, enfim,revelar indicadores para a avaliação dessa produção acadêmica ecaracterizar, através de análises, a relevância social, estética e artístico-pedagógica da instituição.

Tendo como fonte de referência a documentação da CAPES relativa aoSistema de Avaliação dos Programas de Pós-Graduação, particularmentedo documento intitulado “Programa I”, foram classificados osindicadores da pesquisa como de dois tipos:

* Excertos do Relatório de Pesquisa do Projeto Indicadores para a Avaliação daprodução acadêmica da Escola de Teatro da UFBA 1956/ 1997, financiado peloCNPq e realizado no período de 1996 a 1998, reunindo a parte substancial dasanálises e excluindo os bancos de dados bastante detalhados do corpus de referência.Fizeram parte da equipe, como bolsistas de Iniciação Científica e pesquisadoravoluntária as estudantes de graduação da Escola: Adelice Souza, Viviane Paraguaçu,Tânia Soares e Cecília Maria de Araújo Ferreira.

Indicadores para a Avaliação da produção

acadêmica da Escola de Teatro

da UFBA 1956/ 1997*

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

• Os Indicadores de Adequação, que observam:- a titulação, dedicação e perfil de atuação dos recursos humanos da

instituição, em termos de corpo docente e funcional;- a abrangência das linhas e projetos de pesquisa;- e a estrutura curricular das disciplinas efetivamente ministradas.

• Os Indicadores de Desempenho, que mensuram:- as atividades realizadas;- os resultados obtidos, em termos de produção bibliográfica, artística

e técnica;- os índices de evasão, o fluxo dos alunos em cada curso e o perfil de

atuação do corpo discente.

Desse conjunto de indicadores, ficaram ausentes aqueles relativos ainstalações e equipamentos, móveis utensílios e acessórios, a serem,necessariamente e em outro momento oportuno, motivo de pesquisacomplementar, ainda que, de importância fundamental, para umaavaliação completa do objeto em tela.

De modo muito genérico e, ainda preliminar, já se pode afirmar que ahipótese inicial, que atribuía à Escola de Teatro, unidade da área de Artes,de forte tradição na UFBA, mas com uma incipiente atuação no âmbitoda pós-graduação, possuiria bons indicadores de desempenho, emtermos de produção artística e técnica, mas de fracos indicadores quantoà produção bibliográfica, verificou-se plenamente.

A pesquisa teve como corpus estrutural dados quantitativos, colhidosjunto ao Centro de Processamento de Dados e ao Centro de Estatísticada UFBA e dados qualitativos captados em jornais, folhetos e entrevistas,além de referências bibliográficas contidas no Banco de Textos da própriaEscola e diversas outras publicações. Esse corpus deu base à construçãometodológica dos seguintes Indicadores:

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• de Adequação;- Corpo Docente (titulação, dedicação e perfil de atuação);- Técnicos (perfil de atuação).

• de Desempenho;- Espetáculos (profissionais e atividades de extensão), montagens

didáticas e leituras dramáticas;- Publicações;- Corpo Discente (diplomação e índices de evasão).

Caracterização e periodização da Escola de Teatro

A análise do material reunido e organizado permitiu a caracterização dohistórico da Escola de Teatro em sete períodos, a seguir sumariamentedescritos. Certamente arbitrária e apenas uma de muitas outraspossibilidades, essa periodização (com tempo de duração tão desigual,de, aproximadamente: 7; 9; 2; 10; 4; 8; e 1 anos) teve como critériofundamental para sua organização, as características maiores que foramatribuídas a cada um desses momentos, distinguindo-os dos demais.

1. A fundação da Escola (1956/ 1963)

Esse primeiro período é caracterizado por uma constante, contínua e regularprodução de espetáculos, entendidos como laboratório para a formaçãode artistas e técnicos e documentados em pequenas publicações (programas,com farta documentação informativa) e exposições (embrião do que seria,de acordo com a intenção declarada de seu diretor fundador, Eros MartinsGonçalves, ou Martim Gonçalves, um museu) e pela manutenção de umcurso de nível médio para a formação de atores e de cursos livres, detécnicas de espetáculo. Apesar dos elevados índices de evasão desses cursos,o período é considerado pela opinião pública como os “áureos tempos”,os anos dourados da companhia oficial da Escola – A Barca, compatrocínio da Fundação Rockfeller e a proteção institucional do MagníficoReitor Edgard Santos. É nesse período que, através do surgimento deuma dissidência do modelo original da Escola, com a liderança do professor

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

João Augusto Azevedo, surge o Grupo dos Novos, reunido integrantesdos corpos docente e discente. Na verdade, esse grupo iria confirmar oprojeto pedagógico original, constituindo um repertório baseado numnúcleo de companhia permanente, organizado e treinado cotidianamentee atento à cultura local, regional e nacional. A revista Repertório,inicialmente em formato de programa informativo-pedagógico, compoucas páginas, acompanhando a realização dos espetáculos oficiais daEscola, transformou-se num periódico acadêmico, publicadoindependentemente da estreia de novos espetáculos, ampliando o númerode páginas (que chegou a 111) e reunindo artigos, ensaios, documentosrelativos ao teatro na Bahia, na Brasil e no exterior e às tendênciascontemporâneas do teatro, além do texto integral de uma peça teatral. AEscola funciona nos porões da Reitoria até 1958, quando é inaugurada asede que ocupa até hoje, onde é inaugurado o Teatro Santo Antonio.Esse período corresponde às gestões dos diretores Martim Gonçalves(1956/ 1961) e Nilda Spencer (1961/ 1963).

2. A implantação da graduação (1963/ 1972)

Caracterizado pela criação do curso de nível superior de graduação paraa formação de diretores teatrais, o período é também marcado peloafastamento da Fundação Rockfeller da Escola, que lhe reduz a capacidadede financiamento, pelo processo de instalação da ditadura militar noBrasil, cujos ecos disciplinadores/ repressores atingiram-na com a erealização da Reforma Universitária, em 1969, que transforma a Escolanum Departamento de uma então criada Escola de Música e Artes Cênicas– EMAC e pelo surgimento de manifestações de contracultura. Aprodução de espetáculos mantém-se quantitativamente nos mesmospatamares do período anterior. No entanto, há uma marcanteirregularidade de ano para ano, que não existia anteriormente, e umquestionamento de sua qualidade pela opinião pública. As publicaçõesdesaparecem. Os núcleos de formação e animação teatral consolidam-se na cidade, fora da Escola. Os Novos inauguram o Teatro Vila Velha- TVV, em 1965. O Teatro Castro Alves é inaugurado em 1967. A classe

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teatral de Salvador mobiliza-se, em 1970, num plano piloto de articulaçãopolítica, que gera a produção do polêmico espetáculo Macbeth, noTCA. O movimento amador intensifica-se. O período corresponde àsgestões de Nilda Spencer (1963/ 1965), Antonio Barros (1965/ 1969),Jesus Chediak (1969/ 1970) e Anatólio Oliveira (1970/ 1972).

3. A revitalização artística (1972/ 1974)

Caracterizado pela liderança do jovem diretor teatral paulista José PossiNeto, o período é identificado também pela redução quantitativa de suaprodução de espetáculos, que, no entanto, tiveram suas temporadasampliadas de modo muito significativo e pela repercussão extremamentepositiva dessa produção artística, em nível local e nacional, que, ademais,revelava expressiva articulação entre as vertentes acadêmicas do ensino,da pesquisa e da extensão. Os indicadores de documentação da pesquisareduzem-se à acumulação de fontes primárias e à publicação de raros esimplificados programas de espetáculos. Os indicadores de ensino, emtermos de conclusão dos cursos de graduação (direção teatral) e de nívelmédio (formação de atores) são mais positivos que os do período anterior.Os indicadores de extensão são, qualitativamente, excelentes. O períodocorresponde à gestão de José Possi Neto.

4. A revisão pedagógica (1974/ 1984)

Nesse período a produção acadêmica mantém-se, em termos deindicadores quantitativos, ainda que com repercussão menos abrangentee positiva. O número de espetáculos, inclusive de montagens didáticas,amplia-se. Prepara-se a criação de uma segunda Habilitação, paraInterpretação Teatral, que, em 1984, soma-se à Habilitação já implantada,de Direção Teatral, do Bacharelado de Artes Cênicas. De 1974 a 1980, oDepartamento de Teatro funde-se com o Departamento de Dança, numnovo Departamento, então denominado de Artes Cênicas. Em 1980, osdois Departamentos voltam a se separar, mas, ainda, no âmbito daEMAC. As atividades de extensão contam com apoio de programa de

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

bolsas arte do governo federal. Destaca-se, nesse período, a criação daCompanhia de Teatro da UFBA, retomando-se, em novos moldes oprojeto de seu fundador com a Companhia A Barca, para integrarprofessores, alunos, artistas e técnicos contratados em espetáculos abertosa toda a comunidade de dentro e de fora da Universidade. Correspondeàs gestões de Lia Robatto (1974/ 1976), Dulce Aquino (1976/ 1980) eNilda Spencer (1980/ 1984).

5. A ampliação e consolidação da graduação e da produção

artística (1984/ 1988)

Ainda na condição de Departamento de Teatro da EMAC, a Escola temesse período caracterizado pela implantação de dois novos cursos degraduação: em 1984, a Habilitação em Interpretação Teatral, doBacharelado de Artes Cênicas; e, em 1986, a Licenciatura em Teatro. Operíodo é também identificado pela ampliação dos núcleos de pesquisa eextensão e a implantação do Curso Livre de Teatro, de caráter anual,atividades diárias no turno da noite, resultando num espetáculo com todosos participantes concluintes, em 1985. É também nesse período que serealiza uma primeira experiência de curso de pós-graduação, no nível lato

sensu, com a realização do Curso de Especialização em Cenografia, emparceria com a UNIRIO. Crescem os indicadores de titulação do corpodocente e publicam-se as pesquisas do professor Nelson de Araújo, sobreas práticas espetaculares do estado da Bahia. Destaca-se, ainda, comocaracterística desse período, a expressiva ampliação quantitativa daprodução de espetáculos, que atingiu então os mais elevados indicadoresnuméricos de toda a época considerada na pesquisa. Corresponde àsgestões, em nível do departamento de Teatro, de Nilda Spencer (1984/1985), Cleise Mendes (1985/ 1987) e Carlos Nascimento (1987/ 1988).Em nível da EMAC, pela primeira vez, sua direção foi ocupada por umprofessor desse Departamento: Paulo Dourado, que liderou o esforçocoletivo para a separação das antigas Escolas de Teatro, Dança e Músicae a extinção da EMAC, o que ocorre em 1988.

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6. A preparação de um novo projeto para a Escola (1988/ 1996)

Esse período caracteriza-se por uma ampla reestruturação administrativa(a novamente criada Escola divide-se em dois Departamentos: deFundamentos do Teatro e de Técnicas do Espetáculo) e uma tambémampla revisão pedagógica, com a consolidação dos núcleos de pesquisae extensão (Curso Livre, Oficina de Preparação do Ator, Núcleo deTeatro para Crianças e Adolescentes, Grupo de Estudos sobre TeatroPopular, Teatro para a Terceira Idade e Grupo Interdisciplinar de Pesquisae Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade – GIPE-CIT), inclusive com os primeiros projetos, elaborados e aprovados, parao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC, daUFBA, com apoio do CNPq (com bolsas de 20 horas para pesquisapara os alunos dos cursos de graduação), e o expressivo aumento dademanda de novos candidatos para os cursos de graduação e de extensãooferecidos pela Escola. Em termos públicos, esse período também secaracteriza pelo questionamento, feito por lideranças atuantes e importantesdo teatro baiano, fora do âmbito da Escola, sobre seu papel, relevância,produção acadêmica artística. Destaca-se, ainda, nesse período, a construçãode um projeto de curso de pós-graduação stricto sensu, no âmbito doGIPE-CIT. Corresponde às gestões dos diretores de Paulo Dourado(1988/ 1990) e Carlos Nascimento (1990/ 1996) e dos chefes dedepartamentos, de Fundamentos, Cleise Mendes, Harildo Deda e CleiseMendes e, de Técnicas, de Deolindo Checcucci e Jorge Gáspari.

7. A consolidação da pesquisa e a implantação da pós-graduação

(1996/ 1997)

Esse período, o mais curto e mais recente da periodização aqui proposta,caracteriza-se pela consolidação do GIPE-CIT, que passa a receber apoiodo CNPq, pela ampliação da presença da Escola no PIBIC e, com apoioda CAPES, pela implantação do Programa de Pós-Graduação em ArtesCênicas, em parceria com a Escola de Dança, em nível de mestrado(imediatamente recomendado) e de doutorado. Celebra-se, em 1996, 40anos da Escola, com intensa programação de espetáculos, com apoio do

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Governo do Estado da Bahia, com melhorias no Teatro Santo Antonio,que passa a se chamar Teatro Martim Gonçalves, com a construção deuma estrutura para espetáculos nos jardins da Escola, o Palco Verde,coma retomada do projeto de leituras dramáticas, agora com adenominação de Contexto Cênico e a criação de um projeto estudantilpermanente, com a apresentação semanal de cenas dirigidas einterpretadas pelos estudantes, o Ato de 4. Corresponde, parcialmente,às gestões do diretor Deolindo Checcucci, dos chefes de departamentoHebe Alves e Carlos Petrovich e dos coordenadores dos colegiados degraduação, Eduardo Tudella e de pós-graduação, Armindo Bião.

Indicadores de Adequação

Corpo Docente (titulação, dedicação e perfil de atuação)

Dos 69 docentes que atuaram na Escola, desde 1956, em 1997, 20 aindaatuavam. Dentre os grandes nomes de artistas de grande experiênciaprofissional, no Brasil e no exterior, ainda que de pouca vivência acadêmica,destacam-se Agostinho da Silva, Gianni Ratto, João Augusto Azevedo,José Possi Neto, Martim Gonçalves e Yanka Rudzka, além de, mesmoque de passagem, Juana de Laban, filha do coreógrafo Rudolf VonLaban. Progressivamente, o corpo docente da Escola foi mudando seuperfil para artistas com maior vivência e titulação acadêmicas. Assim,dos 21 docentes atuantes em 1997, em termos de maior titulação, 4possuíam diploma de doutorado (3 dos quais obtidos no exterior e 1 naUSP), 8 de mestrado (4 obtidos no exterior, 3 na UFBA e 1 na USP), 1de especialização e 9 apenas de graduação. No cômputo geral, 57%possuíam mestrado (38%) ou doutorado (19%), configurando-se umpanorama positivo, inclusive porque 4 dos mestres já se encontravamem processo de doutoramento.

Acrescente-se a essa avaliação positiva, o fato de que 19 dos 21professores, ou mais de 90%, encontravam-se então no Regime deTrabalho de Dedicação Exclusiva, com apenas dois professores comcontratos de 20 horas. Esses indicadores permitem a constatação deexistirem mais de 42,9% dos docentes, com formação no exterior ou

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fora da UFBA, o que se configura em pequeno risco endógeno e emboa oxigenação de seu professorado, que, além disso, conta com o recursode contratação eventual de professores substitutos e tem se beneficiado,em função de sua alta produtividade da abertura de concursos para acontratação de novos professores, sete dos quais foram contratados nosúltimos cinco anos, desde 1992.

Técnicos (perfil de atuação)

No momento de elaboração do presente relatório, a Escola contava, emseu quadro funcional permanente, com três cenotécnicos, três costureiras,um técnico de iluminação e um assistente de produção, num total deoito técnicos em atuação permanente, nas áreas de corte e costura,carpintaria, marcenaria, eletricidade, iluminação, sonorização e produção.Fundamentais para a manutenção da intensa programação de espetáculosda Escola, esses técnicos costumam ser secundados, constantemente, porprofessores e alunos e pessoal eventualmente contratado. A discussãosobre a abertura de concursos, sobre as profissões típicas do serviçopúblico, sobre a terceirização de serviços e sobre os reais contornos deuma prevista autonomia universitária permeou o desenvolvimento detodo o projeto, sendo o quadro técnico da Escola um de seus maioresmotivos, por ser considerado reduzido em demasia.

Indicadores de Desempenho

Espetáculos (profissionais e atividades de extensão), montagens

didáticas e leituras dramáticas

Nessa grande categoria de indicadores da produção acadêmica da Escolade Teatro da UFBA, há que se distinguir os espetáculos da companhiaprofissional, os resultados das atividades dos diversos núcleos de pesquisae extensão, as montagens didáticas e as leituras dramáticas. No entanto,para uma visualização inicial, apresenta-se o gráfico a seguir, que revelauma mudança de patamar quantitativo a partir de 1979, quando se passaa superar, de maneira estável, a marca de 10 novos espetáculos por anoe de outro, a partir de 1985, que se estabilizando de 1992 em diante, como número médio de 20 novos espetáculos por ano:

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

• Buscou-se organizar um banco de dados, com os espetáculos daCompanhia A Barca, dos primeiros anos da Escola, outros espetáculossubsequentes dirigidos pelos diretores da Escola ou seus convidados eespeciais e, a partir de 1981, com os espetáculos da Companhia deTeatro da UFBA, gerando-se o gráfico que é apresentado a seguir, querevela que, no mínimo, um espetáculo desse tipo foi produzido porano, percebendo-se um maior volume entre os anos de 1958 (quandoé inaugurado o Teatro Santo Antonio) e 1963 (quando se encerra oprimeiro período, o de Fundação da Escola, que então contava comforte apoio financeiro e institucional), com a média de 4,5 espetáculospor ano. A partir da criação da Companhia de Teatro da UFBA, em1981, a média é de 2,9 espetáculos por ano, elevando o patamar médiode 1,6 espetáculo por ano entre esses dois períodos.

Figura 1

Espetáculos da Escola de Teatro da UFBA

espetáculos por ano

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Armindo Bião

As montagens didáticas estão diretamente relacionadas ao currículo doscursos de bacharelado, que formam atores e diretores, e são resultadodas diversas disciplinas, apresentados semestralmente. A pesquisa constatouque ocorreu, ao longo do período estudado e, particularmente, nosúltimos anos, um importante incremento no número dessas montagens,certamente associado à redução dos índices de evasão nesses cursos e node licenciatura (como se verá a seguir), também, posto que seus alunosinteragem com os colegas atores e diretores, participando ativamentedas diversas montagens. No gráfico a seguir se percebe bem o crescimentodo número de montagens didáticas, a partir de 1980, quando osDepartamentos de Teatro e de Dança se separam, acabando-se oDepartamento de Artes Cênicas, que existia desde 1969, no âmbito daEMAC e, de novo, a partir de 1984, quando é criada a Habilitação emInterpretação Teatral, do Bacharelado de Artes Cênicas.

Figura 2

Companhia de Teatro da UFBA

(ou espetáculols oficiais da Escola)

espetáculos por ano

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

• O projeto “Leitura Dramática” pode ser dividido em três períodos.O primeiro, com uma leitura dramática isolada da qual se possui registronos arquivos da escola, em 1968. O segundo, de 1988 a 1990, com amédia de duas leituras dramáticas por ano, coordenado por DeolindoCheccucci e Yumara Rodrigues, tinha como objetivo contribuir paramaior conhecimento do texto teatral, seu estilo e temática, tendo comoeixo o personagem e sua significação no universo dramatúrgico,contribuindo para a formação do estudante ator, através da realizaçãode uma oficina semestral de leitura dramática. O terceiro, com o total de28 leituras dramáticas, coordenado por Deolindo Checcucci e o estudantede direção teatral, Jorge Borges, teve início em março de 1997, buscando-se também atrair o grande público para conhecer os textos apresentados,semanalmente, no Teatro Martim Gonçalves, com a direção de diversosprofessores e alunos do curso de direção teatral da Escola, com aparticipação de alunos, professores e convidados no elenco.

Figura 3

Montagens Didáticas

Espetáculos por ano

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• Os espetáculos resultantes das atividades dos núcleos de pesquisa eextensão possuem sete tipos de registros:

- O Curso Livre Teatro, que dura nove meses por ano, com a cargahorária semanal de aproximadamente 15 horas, comaproximadamente quatro candidatos para cada uma das 30 vagas,habitualmente produz um espetáculo no final do curso e, pelo menos,uma mostra de seu processo de trabalho, também na forma de umespetáculo para o público;

- O Núcleo de Estudos sobre Teatro para Crianças e Adolescentes,desde sua criação em 1988, também produz anualmente, pelo menos,um espetáculo;

- O Núcleo de Estudos sobre o Teatro Popular, criado em 1983,produziu oito espetáculos desde então;

- O Núcleo de Exercício para o Ator, criado em 1990, como umaespécie de continuação do Curso Livre, produziu quatro espetáculosdesde então;

- O Projeto Maturarte, para a terceira idade, produziu dois espetáculosdesde 1993;

- As Oficinas de Preparação do Ator, desde 1989, produziram seteespetáculos;

- O Projeto Ato de 4, desde 1996, já produziu 33 mostras de cenasdos alunos da Escola.

A maioria desses espetáculos é apresentada no Teatro Martim Gonçalves,como o Teatro Santo Antonio passou a ser denominado em 1996, durantea celebração dos 40 anos da Escola, usando-se, alternativamente, outrosespaços da própria Escola, como a Sala 5 e o Palco Verde.

• Eventualmente, esses espaços são cedidos para a apresentação deespetáculos visitantes, sem conexão acadêmica com as atividadesregulares de ensino, pesquisa e extensão da Escola, com cujos dados seconstruiu o gráfico apresentado a seguir, que revela, ainda que de mododescontínuo, a existência dessa categoria, que, apenas em 1982 e 1997,ultrapassou o número de três espetáculos por ano:

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Publicações

Afirmação corrente e considerada uma obviedade perfeitamente aceitáveldava conta de que a Escola de Teatro da UFBA, em função de seu perfilnitidamente profissionalizante, tendo a produção artística de espetáculoscomo eixo estruturante, teria, certamente, pequeno índice de publicações,o que de fato a pesquisa constatou. Apenas a produção bibliográficaisolada do professor Nelson de Araújo possuía maior relevância até 1994,a partir de quando, com o surgimento do GIPE-CIT e o processo deimplantação do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, esseíndice começaria a apresentar um crescimento significativo.

Do período em tela há registros de 75 publicações, entre livros, capítulosde livros, artigos em periódicos nacionais e estrangeiros e textos emprogramas de espetáculos.

Figura 4

Espetáculos Visitantes

Espetáculos por ano

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Corpo Discente (diplomação e índices de evasão)

De toda a pesquisa, que gerou diversos bancos de dados e análises, osresultados mais surpreendentes referem-se às taxas de evasão dos cursosde graduação, apresentados a seguir, de modo parcialmenteautoexplicativo, com os indicadores quantitativos dos percentuais de evasãoapresentados separadamente para cada um dos três cursos consideradose em conjunto, para viabilizar uma análise comparativa.

Do ponto de vista metodológico é mister explicitar-se que os critériosutilizados para a Avaliação dos Índices de Evasão dos cursos de graduaçãoda Escola de Teatro da UFBA foram extraídos do documento daComissão Especial de Estudos sobre a evasão nas universidades PúblicasBrasileiras, registrado pela ANDIFES/ ABRUEM/ SESU/ MEC.

As informações precisas só foram detectadas a partir de 1971, ano emque foi informatizado o sistema de controle da vida escolar dos alunosda UFBA, inclusive os ingressantes e diplomados da Escola de Teatro,no Centro de Processamento de dados da UFBA. Os novos critériosforam estabelecidos de acordo com José Lino O. Bueno (“A evasão dosalunos”, Jornal da USP, São Paulo, 14.06.1993), que distingue evasão

de exclusão, posto que a primeira corresponde “a uma postura ativado aluno que decide desligar-se por sua própria responsabilidade” e asegunda “implica a admissão de uma responsabilidade da escola”.

Este relatório também usou o conceito de evasão como “abandonodos estudos pelo aluno”, de modo amplo, ignorando, por exemplo, oscasos em que essa evasão se constituiu em mobilidade, “fenômeno damigração do aluno para outro curso da mesma escola, seguindo, assim,parcialmente, a experiência já consolidada da UNICAMP nesse tipo deestudos.

Para a criação dos indicadores quantitativos foram usadas séries numéricasde ingressantes e de concluintes, de sete em sete anos, tempo consideradocomo máximo para a integralização dos créditos dos respectivos cursos.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Figura 5

Gráfico de Evasão Escolar – 71 a 97

Bacharelado em Artes Cênicas com Habilitação em Direção

Figura 6

Gráfico de Evasão Escolar – 84 a 97

Bacharelado em Artes Cênicas com Habilitação em Interpretação

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Figura 7

Gráfico de Evasão Escolar – 86 a 97

Licenciatura em Teatro

Figura 8

Gráfico Comparativo de Evasão

Direção – Interpretação – Licenciatura

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Os gráficos evidenciam a expressiva redução dos índices de evasão nosúltimos anos, notadamente a partir do final da década de 1980. Noentanto, vale considerar que, mesmo um pouco antes, parte dessa evasão

ocultava o fenômeno da mobilidade, posto que com a ampliação dasopções de cursos de graduação, que passaram a ser dois em 1984 e trêsem 1986, ocorreu forte migração interna de alunos de um curso paraoutro. Assim, na verdade, esses gráficos, à exceção do relativo ao cursode Direção Teatral, cujo índice de evasão oscilou em torno de 50%enquanto foi a única opção, revelam, sempre, constante tendência deredução da evasão escolar nos cursos de graduação da Escola de Teatroda UFBA.

O curso de licenciatura é o que apresenta o menor desses índices,alcançando no último ano de referência o percentual de 13%, o quepode ser adjetivado como ótimo, quando o MEC considera até 20%como índice aceitável. A situação dos cursos de direção e de interpretação,com os índices, respectivamente, de 24% e de 27%, também pode serbem avaliada, como bastante razoável considerando-se o parâmetro doMEC e a majoritária tendência de queda.

A licenciatura, cujo mercado de trabalho é o mais amplo, apresenta omelhor índice, por, entre outros motivos, provavelmente, haver aexigência de diploma universitário, para o exercício profissional, o quenão ocorre com os egressos do bacharelado, posto que o mercado exigeprioritariamente o Registro na Delegacia Regional do Trabalho, que podeser obtido com o diploma universitário, mas, também, com acomprovação de prática cênica reconhecida pelo sindicato da categoriados artistas e técnicos em espetáculos de diversão.

Vale, ainda, ressaltar o crescimento do número de vagas, de ingressantese de candidatos por vaga, sobretudo a partir de 1990, quando se chegaa 10 vagas para alunos de direção e 20 para alunos de interpretação emais 20 para os de licenciatura. A partir de 1994, todas essas vagas vêmsendo regularmente preenchidas e a demanda de candidatos por vagaaproxima-se da demanda dos candidatos para o Curso Livre, com uma

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média de quatro candidatos por vaga para os três cursos, nos últimoscinco anos.

Conclusões

O projeto comprova a eficácia institucional da Escola enquanto centroformador de diretores, atores e professores de teatro, desde a implantaçãodos cursos de graduação, e polo produtor de espetáculos, desde o iníciode sua história.

De fato, em termos de ensino universitário formal, vale registrar que ocurso de nível médio para a Formação do Ator, que existiu,provavelmente, de 1963 a 1984, e pelo qual passaram alguns expoentesdas artes cênicas baianas e brasileiras e da vida pública, chegou a matricular340 alunos, dos quais apenas 46 o concluíram. Provavelmente, essaesmagadora evasão foi a causa de sua extinção.

Os espetáculos oriundos da Escola têm sido premiados, constantemente,em todos os contextos em que se apresenta, como as premiações dosmelhores do teatro baiano, do teatro universitário brasileiro, no játradicional Festival Universitário de Teatro de Blumenau, Santa Catarinae no Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, Ceará e, maisepisodicamente, em outros festivais, como o Internacional de Teatro deCuritiba, Paraná, e o Isnard de Azevedo, de Florianópolis, Santa Catarina,por exemplo.

O fato é que a escola é presença constante na mídia local e, eventualmente,nacional e internacional. A análise dos conflitos entre a Escola e a mídia,como na época do afastamento de seu primeiro diretor, MartimGonçalves (no início dos anos 1960), quando se destacou a fúria críticade Paulo Francis, que a acusava de pretensão provinciana, ou, maisrecentemente, no momento do grande sucesso de público de espetáculosbaianos, do qual a Escola parecia alijada, quando sua parceira, a dramaturgae grande mulher de teatro, Aninha Franco, acusava-a de pouco relevante,ainda precisa ser mais aprofundada. No primeiro caso, a importância

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

regional, nacional e internacional, que a Escola revelaria possuir, com opassar do tempo, contestaram Paulo Francis. No segundo, a constanteintegração de alunos e professores da Escola com todos os eventos eprojetos na área de teatro na Bahia responde à crítica.

O projeto confirmou, também, a necessidade da documentação constantee de seu tratamento analítico, como base para planejamentos futuros.Efetivamente, seus resultados beneficiam o projeto de reforma curriculardos cursos de graduação e a implantação de seu programa de pós-graduação, ambos já em curso.

As referências bibliográficas, a seguir apresentadas, foram organizadasem torno de dois temas: a avaliação de produção acadêmica e aprodução acadêmica da Escola de Teatro da UFBA; e dão conta docorpus que, juntamente com os bancos de dados relativos aos espetáculos,publicações e corpos docentes, discente e funcional, e os relatóriosindividuais dos participantes da pesquisa, constituem o Relatório Final,em três tomos, do projeto de pesquisa: Indicadores para a Avaliação

da produção acadêmica da Escola de Teatro da UFBA 1956/ 1997.

Referências

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

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SANTOS, Adailton. 40 Anos de teatro. A Tarde Cultural, Salvador, p.5, 31 ago. 1996.

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A pesquisa universitária, desenvolvida em paralelo à produção de artescênicas, no ambiente universitário brasileiro, só se institucionalizou com acriação do primeiro mestrado na área e a consequente implantação dodoutorado (USP, UNICAMP, 1989 e UNIRIO, 1991). Mais recentemente,este processo estendeu-se para além do eixo Rio-São Paulo (UFBA,1997) em termos de mais um mestrado e doutorado específicos. Éverdade que outros programas de pós-graduação de áreas correlatastambém têm contribuído para a ampliação e institucionalização desteprocesso (PUC/SP, ECO/RJ, UFF, FACOM/UFBA, por exemplo.Hoje, estas ações, de forma mais ou menos articulada, consolidam apesquisa universitária na área das artes cênicas no Brasil, assegurando suasingularidade e sua capacidade de interlocução com as demais áreas deconhecimento, tanto no campo da pesquisa científica, quanto da pesquisaartística). Esta comunicação pretende contribuir para a análise das diversaslinhas de pesquisa em desenvolvimento no âmbito dos programas depós-graduação em artes cênicas existentes no país, visando à definitivaconsolidação desta emergente área do conhecimento no ambienteuniversitário brasileiro. Teceremos inicialmente comentários sobre as especificidades da pesquisaem artes, ou da pesquisa sobre artes ou, ainda, da pesquisa artística, temaque tem ocupado pesquisadores universitários como o doutor FredricM. Litto, da Universidade de São Paulo, desde os anos 70 e, maisrecentemente, a doutora Mônica Allende Serra, da Universidade deCampinas, sempre no sentido de distinguir e, simultaneamente, articularo caráter científico da pesquisa em artes e de fomentar a pesquisaacadêmica nessa área.

A especificidade da pesquisa em artes cênicas

no ambiente universitário brasileiro*

* Publicado originalmente in: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA EARTES CÊNICAS, 1., 1999. Anais...Salvador: Memória ABRACE I, 2000. p. 254-257.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Pesquisar é, simplesmente, “ [...] Estabelecer fatos ou princípios relativosa um campo qualquer do conhecimento [...] “, através da “ [...] buscaminuciosa para averiguação da realidade [...]” ou de “ [...] investigação eestudo, minudentes e sistemáticos” (AURÉLIO, 1986, p. 1320). E issonão é estrangeiro à criação e produção artísticas. Não se faz arte sempesquisa, sobretudo na Universidade; o que é escasso é o processorotineiro de sistematização, através de projetos e de relatórios específicos,segundo os modelos e rotinas criados para as artes cênicas ditas “duras”,com destaque para a área de ciência e tecnologia. A pesquisa implica em procedimentos redacionais e editoriais relativosàs informações reunidas em função de objetivos, sejam eles teóricos,tecnológicos ou artísticos, cujo ponto de partida é a elaboração de umprojeto explicitando esses objetivos, descrevendo o processo planejadoe anunciando abordagens, metodologias, recursos, cronograma ereferenciais bibliográficos e dos demais materiais e fontes para consulta. A arte, como fenômeno revelador e constitutivo da vida, da vivência eda convivência humanas, configura um universo de realidade e de sentidocujas dimensões ultrapassam as de outros universos paralelos, a saber: • o da precisão, clareza e univocidade da ciência;• o do caráter teleológico, didático e ético da educação;• o da prática e teoria da política;• o das certezas dogmáticas da religião e da ideologia;• o da intencionalidade e do acaso dinâmico da mídia;• o do inefável e do não-racional dos sonhos e delírios;• e o próprio universo da coerência meridiana do sensato, do razoável e

do racional na vida cotidiana. A arte pode eventualmente submeter-se a um desses universos, quenormalmente a constrangem, e aí reduzir suas dimensões artísticas a outrasdimensões do imaginário e do simbólico mais específicas dos discursose dos fenômenos da ciência, da educação, da política, da religião, damídia, dos sonhos e do dia-a-dia, sem, contudo nessas outras dimensõesdiluir-se completamente.

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O resíduo artístico pode persistir e imiscuir-se nessas outras esferas. Istose as fronteiras entre umas e outras puderem ser bem definidas, o que seapresenta de modo particularmente difícil na contemporaneidade. E, se levarmos em conta uma das características da arte, a da“liminalidade”, que é o termo considerado para designar o caráterintermediário e limite de determinadas instituições e fenômenos humanos,como mitos e ritos, que escapam a vários universos de coerência comque convivem, permitindo a passagem de um nível de significado, derealidade ou de imaginário, a outro nível (TURNER, 1982), colocando-a em contato íntimo com esses espaços intersticiais da realidade e dosentido, concluímos que sua especificidade “artística” é a de situar-senesse espaço-tempo de ninguém: entre os diversos mundos, em todas assuas dimensões; sugerindo de modo quase inapelável, abordagenstransdisciplinares, multidisciplinares e/ou interdisciplinares. De qualquer maneira, afirmamos que a arte pode se servir de todos ospós-paradigmas simbólicos e imaginários sem se submeter a nenhumdeles; o que implica que sua prática e aprendizagem não possam, domesmo modo, submeter-se integralmente a instituições que, como auniversidade, por exemplo, não tenham como objetivo central a produçãoe difusão do conhecimento artístico (para uma intertextualidade dosdiscursos teatrais, míticos, históricos, jornalísticos e “midiáticos”, consultar:PALÁCIOS, 1993). As universidades firmaram sua tradição utilizando-se do termo ARTEpara designar a gramática, a retórica, as “belas” letras, o estilo e a

lógica. Nesse sentido, o termo ARTE não cobriria o direito, a medicina,a teologia, nem mesmo compreendia o que a tradição clássica greco-latina associou à constelação semântica matemática-geometria-astronomia-música. E ARTE também não seriam as ciências da física,da metafísica, da filosofia e da moral. A MÚSICA singularizou-se por sua familiaridade com a matemática,desenvolvendo uma tradição de “teoria musical” de vasta literatura de

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

notações e partituras. Sua vocação para a pesquisa universitária, que gerou,entre outras disciplinas, a etnomusicologia, atinge os campos da educação,da informática, do campo, da prática de instrumentos, da composição eda regência, e da própria “teoria” específica, afirmando-se,simultaneamente, nos termos “científico” e “artístico”. O texto escrito (inicialmente manuscrito depois de impresso) sempreinteressou à Academia. Secundariamente, esta também sempre seinteressou pela performance, incluindo a dicção, a inflexão, o ritmo,

a postura, o gestual e a aparência pessoal. Mas foi em função dotexto escrito, a matéria por excelência das Faculdades de Artes, que sefirmou o domínio universitário da ARTE. As “BELAS” LETRAS, mais que a MÚSICA, participaram da própriafundação de uma tradição universitária. Não é de surpreender que suavocação para a pesquisa se firmasse de modo irresistível, desdobrando-se em disciplinas específicas e sugerindo abordagens interdisciplinares,principalmente quando se constata que nessa área declinou-se, em grandeparte, no ambiente universitário, da criação para investir-se na reflexão. As “BELAS” ARTES, designando especificamente as artes plásticas, sóse instituíram como Academia no século XIX. Já as ARTES CÊNICAS,só neste século XX, através das “belas letras, mas também através daeducação física e da pedagogia, penetraram os muros universitários(BAYEN, 1970; CARVALHO, 1989). Talvez a tardia, e recenteincorporação acadêmica dessas artes da representação pictórica e dramáticaseja um indicador da especificidade de suas vocações para a pesquisa. Vale relembrar, contudo, que o substantivo pesquisa no ambienteuniversitário sugere frequentemente o adjetivo científica. De fato, já sefirma uma tradição de pesquisas científicas sobre as artes, particularmenteas musicais e literárias, mas também as plásticas – e sua constelação temáticaenvolvendo desde a história da arte e da computação gráfica à restauraçãoe a teoria da arquitetura. Assim também se identificam pesquisas científicassobre as artes cênicas, cujo caráter histórico, antropológico, sociológico,

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psicológico ou pedagógico é o que de hábito sobressai. Já o referencialnorte-americano de formação acadêmica em nível de pós-graduaçãoarticula performance e “pesquisa artística” com a “pesquisa científica”sobre a arte que se pratica. A universidade tem objetivos humanísticos ambiciosos nos campos dasciências em geral, e da educação em particular, que podem se interessarpela arte do ponto de vista pedagógico e científico, e até mesmo permitirsua experimentação in vivo e in vitro, destinando eventualmente um espaçono próprio ambiente acadêmico para a reflexão/produção/difusão daprática artística. Mas, via de regra, essa vocação para o conhecimentoartístico é certamente secundária central da academia para a ciência e aeducação, como sugerem os exemplos históricos e contemporâneos,particularmente no Brasil. No que se refere às artes cênicas, estudos teóricos, históricos, críticos epedagógicos são dominantes nas universidades europeias, que convivemcom conservatórios profissionalizantes de arte dramática, de caráter não-universitário. Em contrapartida, nos Estados Unidos da América doNorte, prática artística e teoria procuram se equilibrar, tanto nos cursosde graduação quanto de pós-graduação, com as leis do mercado daindústria do show business. Esses referenciais, ainda que correspondendoa outras realidades culturais diferentes da nossa, funcionam como modelosestruturais experimentados e subsídio para o debate no Brasil. A cultura brasileira, em sua modalidade do imaginário comum (oucotidiano, ou popular) consagrou, em ritmo musical, a crença de que“samba não se aprende no colégio”, e consolidou esta instituição liminal

que tem interfaces com o artístico, o lúdico, o marginal, o proibido e opolítico, que é a “escola de samba”. Admite-se que se não se pode aprender arte na academia porque, maisfrequentemente, na universidade brasileira, não se investiu em ensiná-la epraticá-la ao mesmo tempo em que sobre ela se teoriza. Arte aprende-sefazendo. O fazer e o refletir não são incompatíveis, apenas não ocorrem

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

simultaneamente, o tempo todo, de modo que uma reflexão crítica ecriativa em forma de pesquisa deve acontecer como antecedente econsequência da criação artística pesquisada. Criação e crítica, em termospragmáticos, só coexistem alternando-se no tempo. Arte implica,principalmente, em ação e crítica e criação e a pesquisa implica, sobretudo,em reflexão e criatividade crítica. Acreditamos ser possível articular asperspectivas artística e de pesquisa, constatando a necessidade da pesquisacientífica sobre a arte e de um espaço acadêmico para a pesquisa,tipicamente, artística. É o que demonstra o quadro comparativo dasáreas de concentração e das linhas de pesquisa dos programas de pós-graduação da USP, da UNICAMP, da UNIRIO, da UFF e da UFBA. Éo que revela a leitura dos títulos e resumos das dissertações e tesesdefendidas e aprovadas nesses programas.

Referências

BAYEN, I. Histoire des Universités: Que sais-je 1996. Paris: PUF,1970. CARVALHO, Ênio. História Formação do Ator. São Paulo: Ática,1989.

NOVO Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1986. PALACIOS, Marcos. Comunicação e sociabilidade em McLuhan parauso e abuso dos comunicólogos. Textos de Cultura e Comunicação,

Salvador, n. 29, p. 85-95, 1993. TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: The Human Seriousnessof Play. New York: PAJ, 1982.

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Em primeiro lugar, gostaria de falar do prazer de estar aqui nesta mesa,nesta companhia, neste teatro, nesta cidade, neste dia, neste evento, revendotantos colegas, amigos e conhecendo novos.

Em segundo lugar, gostaria de falar do momento que estamos vivendoem relação ao tema desta mesa redonda, Teatro e Universidade, todo oproblema que as universidades federais estão vivendo – as estaduaispaulistas também, com questões de contratação de professores, decondições de trabalho e a situação político-estratégica – digamos, tudoo que nos impele a assumir todas as possibilidades de articulação entrenós. Parece-me que o momento é de crise – naturalmente institucional ede avaliação – e acho que nós, enquanto artistas universitários, temos aresponsabilidade imensa de superarar um grande atraso, também de nossaresponsabilidade, em relação à avaliação de nossos cursos e dosprofissionais que formamos, pesquisadores que formamos, e obras quecriamos. Por isso é que toda forma de articulação vale a pena: as não-institucionais, através das possibilidades de redes informais de telemáticas,ou as de associação formal, seja um sindicato, seja uma associação deprogramas de graduação, de pós-graduação. Todo mecanismo, todaforma de articulação vale a pena, senão a gente não ultrapassa a dificuldadedo momento.

Em seguida, vou falar sobre a criação da pós-graduação em artes cênicasna UFBA. Eu trouxe um material impresso que vou distribuir e exibirem transparência e que também estará à disposição de todos vocês através

Artes cênicas na universidade brasileira:

comentários sobre parcerias e a criação de um programa

de pós-graduação em artes cênicas na Bahia*

* Comunicação apresentada ao ECUM – Encontro Mundial das Artes Cênicas, realizadode 25 de maio a 08 de junho de 1998, no Centro de Cultura Nansen Araújo –Sesiminas, em Belo Horizonte, Minas Gerais: CD-ROM Ecum 98. Belo Horizonte:Fundacão Renato Azeredo, 1998.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

de nosso sítio virtual: www.ufba.br/~teatro. Este material é um folhetosobre nossa Escola de Teatro, que foi criada em 1956 e que mantém,juntamente com a Escola de Dança da Universidade, esse programa depós-graduação. Esta outra brochura, da qual tenho cerca de 50 exemplaresaqui, é sobre o programa de pós-graduação em Artes Cênicas daUniversidade Federal da Bahia. O terceiro material impresso é o boletimdo GIPE-CIT, o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão emContemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, que sustenta a pós-graduação e que dá razão de ser a todo nosso trabalho. Estes três impressossão na verdade três máscaras para uma mesma coisa, que num momentoé uma Escola de Teatro, em outro momento é um Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, envolvendo teatro e a dança, e em outromomento é um grupo de pesquisa institucionalizado, reconhecido efinanciado pelo Programa Nordeste do CNPq, grupo que dá vida eexistência a todo o programa de pesquisa e pós-graduação.

A origem

A UFBA, em 1956, criou uma Escola de Teatro e uma Escola de Dançadentro de uma proposta que era o projeto da cidade da Bahia, eu diria,como grande porto do período colonial brasileiro, e com isso uma cidademuito aberta às novidades em termos de absorver coisas novas e decriar também moda – é a tradição da cidade da Bahia – como porto deserviços: para o bem e para o mal. Eu acho que até o despotismoesclarecido eventualmente, e constantemente, no poder na Bahia, entendeessa importância da produção cultural, em termos de geração deempregos, em termos de afirmação eu diria até étnica.

Quando o reitor Edgard Santos cria as Escolas de Teatro e Dança nosanos 50, ele traz algumas pessoas para lhe darem vida, o grande mestreKoelreutter para a Escola de Música, Ianka Rudzka da dançaexpressionista na Europa para a Escola de Dança e Martim Gonçalves,que foi um dos criadores com Maria Clara Machado, do Teatro Tablado,um grande artista pernambucano, que foi o primeiro diretor da Escolade Teatro.

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Oferecemos hoje três cursos, três formações regulares, em nível degraduação. Há dois cursos de bacharelado, um com habilitação eminterpretação teatral, implantado em 1984, outro com habilitação emdireção, implantado já em 1963. A terceira formação, a mais recente,implantada em 1986, é uma licenciatura em teatro – e não em educaçãoartística. Todos esses cursos vêm tendo uma queda nas taxas de evasãomuito significativa. Os indicadores atuais (dados de séries até 1997) sãode 14% na licenciatura, 24% no bacharelado em direção e 27% nobacharelado para atores. Esses índices revelam uma redução de cerca dametade dos índices identificados no início dos anos 90.

As razões para a redução desses índices em cerca de oito anos são muitase várias: há o crescimento de interesse dos jovens pelo mundo doespetáculo, a repercussão do trabalho de artistas baianos – muitos ligadosà Escola e à Universidade – na mídia nacional, a ampliação e qualificaçãodo corpo docente, o desenvolvimento da pesquisa, o apoio institucionalda própria UFBA, as parcerias formais e informais, uma série de fatoresque também explicam historicamente o estado atual de nosso trabalho,particularmente a criação do programa de pós-graduação.

Vou lhes mostrar transparências sobre as taxas de evasão na graduação,com dados reunidos a partir da informatização da universidade em 1971.A linha vermelha, que é a mais longa, mostra a taxa de evasão no curso dedireção teatral, que ficou durante muitos anos em torno de 50 a 60% e, apartir do início dos anos 90, caiu, chegando abaixo do patamar dos 30%.A linha verde mostra o bacharelado em interpretação teatral, que é maisrecente, datando do fim do curso de nível médio em 1983/ 1984, começouna faixa dos 40% e hoje também está abaixo de 30%. A linha amarela élicenciatura em teatro, que é o curso mais recente, de 1986, começando nafaixa dos 30% e hoje está abaixo de 20%. Vale dizer que o MEC consideracomo taxa de evasão aceitável 20%. Isso é muito importante em termosda avaliação – com a qual estamos cada vez mais sendo confrontados.Para comparar, vou também mostrar uma outra transparência, do cursode formação do ator de nível médio, que mantivemos de 1956 a 1984: ostraços em azul indicam o número de ingresso, foram 340 alunos que

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

ingressaram nesse curso: e apenas 46 o concluíram, que são os númerosindicados em vermelho. Essa altíssima evasão foi uma das razões pelasquais o curso foi extinto – e foi criado o bacharelado de interpretaçãoteatral. Estou apresentando esses dados de evasão para mostrar que há,por um lado, uma otimização dos recursos na área da graduação em nossauniversidade em termos de artes cênicas, inclusive o aumento expressivoda demanda, embora não cheguemos ao nível da EAD – com 700candidatos para 20 vagas – mas temos tido 300 a 400 candidatos para 50vagas, o que faz com que se tenha uma opção maior de seleção de pessoascom real vocação, porque na seleção do vestibular nós temos um teste dehabilidade artística específica, que dura de três a cinco dias, a depender daárea, o que nos permite conhecer bem os candidatos.

Linhas de pesquisa

Para a criação da pós-graduação em 1997, articulamos nossos professoresrecém-pós-graduados, doutores, sete entre a Escola de Teatro e a deDança da Bahia, com diplomas de pós-graduação expedidos por escolasnorte-americanas – através da Fundação Fullbright – de universidadesfrancesas e da USP, que formou dois de nossos professores doutores.

Esse grupo de doutores, que se qualifica nos anos 80, retornando – ouse instalando – na Bahia, nos anos 90, começa a tentar desenvolver projetosde pesquisa integrados. Em 1992 fizemos o primeiro encontro de pesquisana nossa universidade, com o objetivo de avaliarmos as possibilidadesde implantação da pós-graduação, convidando a USP e a UNICAMP –que já tinham alguma experiência. Em 1994 conseguimos criar um grupode pesquisa que é o berço da pós-graduação. Hoje, temos duas linhas depesquisa. A primeira linha, intitulada “formas de espetáculo”, integraestudos sobre a singularidade e a diversidade dramática e espetacular datradição e da contemporaneidade, principalmente na Bahia. A outra linhade pesquisa se intitula “processos de encenação” e reúne estudos sobre aconcepção e a realização de espetáculos, tendo como eixo de investigaçãoos processos criativos e os métodos de montagem que espelhamtendências contemporâneas de encenação.

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A primeira linha de pesquisa, que trabalha com as formas do espetáculo,tem como eixo disciplinar ou eixo científico o que estamos chamandode etnocenologia, que é uma proposição feita por Jean Duvignaud, Jean-Marie Pradier e outros colegas, em 1995, com o apoio da UNESCO,em Paris, para a criação de uma etnociência do espetáculo, que nadamais é do que uma vertente interdisciplinar, que tenta estudar osespetáculos sem colocar o teatro ocidental como o grande modelo, masreconhecendo que todas as culturas desenvolvem e têm práticasespetaculares específicas.

A segunda linha é mais vinculada – de fato – à produção de espetáculos,aos processos de encenação que vão resultar em espetáculos. Ambas aslinhas caracterizam-se por possuírem, simultaneamente, um caráter teóricoe um caráter prático, possibilitando a finalização tradicional com umadissertação ou outra forma de finalização, na qual a dissertação éacompanhada de uma encenação.

Estrutura curricular do mestrado

Agora vou apresentar para vocês, rapidamente, a estrutura curricular domestrado. Nossa proposta é a de um programa integrado, com mestradoe doutorado, que foi aprovado e implantado em 1997 na UFBA, comoresultado, portanto, de cinco anos de trabalho em termos de articulaçãoe de instalação de um grupo de pesquisa institucional. Já em dezembrode 1997, tivemos o reconhecimento do nível de mestrado pela CAPES,tendo o curso se iniciado no segundo semestre deste mesmo ano. Temosuma estrutura curricular de mestrado muito leve, em termos de creditaçãoem disciplinas, apenas 14 créditos, o que significa uma carga horária emdisciplinas de apenas 210 horas. A nossa maior carga horária é ematividades programadas, que são atividades obrigatórias, como semináriode pesquisa em andamento, projeto de dissertação e a pesquisa orientada.Temos duas vertentes de finalização, como já informei: o estudante podeterminar com a dissertação de mestrado – acompanhada ou não deobra artística. As atividades programadas variam de acordo com a opção

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em termos do procedimento de finalização. A proposta do mestradoestá estruturada de tal maneira que, em três semestres, todos os créditosde disciplinas e atividades programadas podem ser cumpridos, de maneiraque até o quarto semestre o aluno possa concluir o seu curso. Nós nosdemos conta, a USP também, recentemente, de que tínhamos no Brasilum mestrado superdimensionado, em comparação com o mercadointernacional.

Temos dissertações de mestrado que são quase teses de doutorado, quelevam cinco a seis anos para serem feitas, e que resultam em trabalhos de400, 500, 600 páginas, e que têm no mercado acadêmico internacionalum valor muito baixo porque o mestrado nos EUA é feito usualmenteem dois anos, o que é muito comum. Na Inglaterra em termos de ArtesCênicas, há mestrados para artes que duram um ano e, na França, aequivalência de mestrado é dada a um programa, que é a introdução aodoutorado, que dura apenas um ano, ou, eventualmente, dois anos, oDiplôme d’Études Approffondies, o DEA. Então, o que percebemos éque a proposta do mestrado pode ser mais enxuta para tentar-se, inclusive,uma aproximação em relação aos parâmetros internacionais, e que sepode também aproveitar o fato de que hoje nas universidades brasileirashá programas de iniciação científica e de bolsas de pesquisa que treinamo estudante da graduação na pesquisa, na elaboração de relatórios, e emmonografias, o que faz com que eles possam já entrar no mestrado maishabilitados a concluírem rapidamente o seu programa.

Estrutura do doutorado

A estrutura do doutorado tem uma ampliação para sete semestres. Ospróprios parâmetros hoje – de bolsas da CAPES para o mestrado – sãode 24 meses e, para o doutorado isso também tem se reduzido muito,ficando em torno de três a quatro anos para abreviar o tempo médio docurso, que é um dos grandes problemas da pós-graduação no Brasil. NaUFBA, são 25 créditos para o doutorado, 375 horas em disciplinas, maisuma carga horária também muito grande em atividades obrigatórias.

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Disciplinas

Cada linha de pesquisa é articulada a uma das disciplinas obrigatórias nodoutorado, Formas de Espetáculo e Processo de Encenação. Há umaterceira disciplina, Seminários Avançados II, que otimiza o potencial dosdocentes – disponível naquele momento – abordando, de formapanorâmica, assuntos nos quais cada professor tem um conhecimentomonográfico mais aprofundado. Pesquisa em Artes Cênicas é umadisciplina de caráter mais metodológico, e serve tanto ao doutoradoquanto ao mestrado. Este também possui uma disciplina de caráterpanorâmico em sua essência, mas que soma conhecimentos monográficosde dois ou mais docentes, o que chamamos de Seminários Avançados I.

Dentro do elenco de disciplinas optativas, para ambos os níveis de nossoprograma de pós-graduação, a grande novidade é trabalhar com aperspectiva da etnocenologia. A etnomusicologia já está muitoconsolidada, assim como a etnolinguística e a etnobotânica. Trata-se aíde conceitos, temáticas e palavras que surgem e desaparecem no mercadointelectual. Não há nenhum fetiche sobre esse termo, esse conceito, masé uma perspectiva que há quase cinco anos vem sendo debatida,notadamente na França, no México, no Brasil e nos países da África doNorte, uma perspectiva de valorizar os estudos sobre o teatro tradicionale sobre formas espetaculares que não são desenvolvidas a partir domodelo tradicional greco-romano renascentista, digamos assim.

Nossas disciplinas optativas são, então: Etnocenologia, Encenação eCenografia, Corpo e Criatividade, Composição Coreográfica, DançasTradicionais, Dança-Teatro Contemporâneo, Análise do Movimento,Teorias do Espetáculo, Interpretação e Direção na Cena Contemporânea,Tradição e Contemporaneidade na Dramaturgia, Trabalho IndividualOrientado, Arte e Educação, Interpretação Cênica com Máscaras eTópicos Especiais em Artes Cênicas. De acordo com cada projeto depesquisa em desenvolvimento e com a orientação do professorresponsável, o aluno pode cursar disciplina optativa de outro programaexistente em nossa Universidade.

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Nossas disciplinas foram criadas a partir da capacidade de conhecimentoinstalada no corpo docente de nosso programa.

Corpo docente

Então, para Encenação e Cenografia, temos o professor Ewald Hackler,que é um alemão radicado na Bahia, há quase 30 anos, e que temdoutorado por Berkeley, CA, pela Universidade da Califórnia, e quetrabalha nas áreas de encenação e cenografia com uma produção artísticamuito grande – reconhecida nacional e internacionalmente. Corpo eCriatividade, Composição Coreográfica e Danças Tradicionais sãodisciplinas oferecidas pelas professoras Leda Iannitelli e Suzana Martins,formadas pela Temple University,PA. Para Dança, Teatro Contemporâneoe Análise do Movimento, disciplinas baseadas em Laban e em PinaBaucher, temos a professora Ciane Fernandes, com doutorado pela NewYork University, NY com especialidade nessa área.

Interpretação e Direção na Cena Contemporânea e Arte e Educaçãoestão no campo de especialidades do professor Sérgio Farias, doutoradopela USP. Tradição e Contemporaneidade na Dramaturgia é a área deatuação central da professora Catarina Sant’Anna, também formada pelaUSP. Minhas disciplinas centrais neste elenco de disciplinas optativas sãoEtnocenologia e Interpretação Cênica com Máscaras. Trabalho IndividualOrientado é uma disciplina vazia que depende do professor, do projetoe do aluno. Tópicos Especiais em Artes Cênicas é também uma disciplinade caráter aberto, que depende da oportunidade de presença de umprofessor visitante com uma habilidade específica, por exemplo.Praticamente todas essas disciplinas têm – vinculadas a elas – projetos depesquisa que vou mostrar, a seguir.

Seleção

O primeiro processo de seleção para o mestrado e para o doutoradoocorreu em julho de 1997. A próxima seleção está prevista para julho de1999. Para o mestrado, exigimos um anteprojeto, o curriculum vitae com

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material complementar ilustrativo, o domínio de uma língua estrangeira– porque é necessário ampliarmos nossa bibliografia em português edialogarmos com os países de outras línguas –, uma prova escrita comquestões alternativas, uma entrevista e o teste de aptidão para encenação,caso o projeto do aluno envolva obra artística acompanhando adissertação.

Para o doutorado, excluindo-se a prova escrita, a tudo isso se acrescentaa avaliação e análise do memorial – um memorial da vida acadêmica eartística do candidato – e mais uma língua estrangeira, porque para odoutorado exigimos duas línguas estrangeiras. Naturalmente, osanteprojetos devem estar vinculados às áreas de atuação do programa,às linhas de pesquisa e aos projetos dos professores já emdesenvolvimento, porque essa é a tendência internacional de fazer comque os programas articulem os projetos em níveis de professores titulares,doutores, doutorandos, mestrandos e, inclusive, alunos da graduação. Aintegração com a graduação é uma necessidade que tem sido identificadacomo muito importante, particularmente no Brasil.

Projetos

Apresento agora, também rapidamente, os projetos de pesquisa dosalunos de nosso programa, por professor orientador, e vou ler algunstítulos para vocês terem uma ideia e eventualmente termos material paraconversarmos um pouco. Adailton Santos trabalha com “Pequenosmundos, grandes encenações – a contribuição de Nelson de Araújo paraa etnocenologia, como modelo de inventário de processos de encenaçõespopulares do Recôncavo baiano”. Nelson de Araújo é dramaturgo,historiador, editor, jornalista e professor universitário, um especialistaem teatro tradicional e teatro popular na Bahia, que tem uma série detrês livros intitulados Pequenos Mundos. Este projeto é um trabalhosobre a contribuição deste nosso ex-professor da Escola de Teatro daUFBA, recentemente falecido. Nos anos 70 ele propunha o termo‘etnoteatralogia’ ou ‘sociologia teatral’ para tentar classificar e organizarum campo de conhecimento para o estudo das práticas espetaculares.

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Um outro projeto é intitulado “O poder da máscara – três estudos deuso das técnicas de máscara neutra e expressiva no aprimoramento dotrabalho do ator”. É um trabalho sobre Jacques Lecoq e Mario Gonsalez– com quem tive a honra e o prazer de trabalhar durante a realização demeu doutorado na França, no final dos anos 90 – que está sendodesenvolvido por Isa Maria Faria Trigo, que fez oficinas comigo e como pessoal do Théâtre du Soleil, Georges Bigot e Arianne Mnouchkine.

Uma outra pesquisa, visando a uma tese de doutorado, é sobre o MalêDebalê, um grupo afro-carnavalesco baiano, “Reflexo da tradição e daresistência negra na cultura popular baiana contemporânea”. O MalêDebalê tem um grande envolvimento com o pessoal da Escola de Dançae de Teatro, da Universidade. O desfile deles no carnaval é na verdadeum espetáculo itinerante.

A professora Catarina Sant’Anna orienta uma dissertação sobre a “Poéticado incesto no teatro de Nelson Rodrigues”, e uma outra sobre “O teatroígneo em Vau da Sarapalha – do conto à encenação – A travessia deSarapalha em Guimarães Rosa”. É sobre a relação literatura, teatro,adaptação.

Leda Iannitelli orienta dois projetos, um de mestrado sobre a mulher noteatro musical baiano dos anos 80 e 90, que se intitula “Sorriso de mulher– tipos femininos na comédia musical baiana de 80 e 90”; e um dedoutorado, sobre um grupo de dança da Bahia que tem característicasda dança pós-moderna norte-americana e é sobre a caracterizaçãoconceitual da dança pós-moderna e o estudo da produção desse grupo.

Professor Hackler orienta uma dissertação de mestrado sobre o perfildo professor encenador na Bahia hoje, sua teoria e sua prática cênica, nocurso livre da escola que é um curso anual, de nove meses de duração, euma tese de doutorado sobre a “estética da destruição no teatro”, umafenomenologia dos princípios da desmontagem física como convençãocênica. O doutorando, que é também professor da Escola de Teatro daUFBA, montou “O casamento do pequeno burguês” e “Mãe Coragem”,

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por exemplo, e tem feito muito sucesso. É um encenador muitoimportante na Bahia e seu projeto de tese de doutorado é acompanhadode uma obra de arte, de um espetáculo.

A professora Suzana Martins, de Dança, orienta uma dissertação sobre adança no contexto socioeducacional, que relata uma experiência comjovens em privação de liberdade, que são jovens em institutos paraadolescentes com problema de criminalidade.

As outras duas pesquisas são orientadas, uma por Ciane Fernandes:“Prometeu acorrentado, ação dramática e gestual na criação cênica”, queé um projeto de encenação também; e por Sérgio Farias: uma tese sobrea arquitetura de metáforas para encenação. A pesquisadora que faz estedoutorado é uma professora da área de artes cênicas e visuais, professorada própria Escola de Teatro da UFBA, que associa em sua pesquisa alinguagem da performance à instalação.

ABRACE

Hoje existem no Brasil o mestrado e doutorado na USP, o mestrado naUNICMAP, o mestrado na UNIRIO e o nosso mestrado e doutorado– embora apenas o mestrado por enquanto esteja reconhecido. Mas nósidentificamos outros núcleos de pesquisa em programas de pós-graduação,por exemplo, na Federal do Rio Grande do Sul, na Estadual de SantaCatarina e na Federal do Rio Grande do Norte, em uma série de lugares.Todos juntos, fizemos uma reunião na Bahia, no dia 21 de abril de 1997,dos programas de pós-graduação em artes cênicas do Brasil. Foram 13universidades que participaram e, com apoio do CNPq, que financiou oencontro em Salvador, criamos um dos mecanismos de articulação, entretantos outros possíveis, que é a Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas – ABRACE. Já implantamos nosso sítiovirtual, ligado ao endereço que já informei a vocês, registramos a entidadeem cartório e estamos organizando nosso primeiro Congresso de 15 a17 de setembro de 1999, em São Paulo. Ter interlocução, articulada como MEC, com as instâncias institucionais, dá muito trabalho e é uma das

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possibilidades de articulação puramente institucional, mas vale a pena.Nós temos programado este primeiro congresso com a apresentaçãode pesquisas de artistas pesquisadores de graduação de nossa área, depós-graduandos, de professores mestres doutores e titulares, enfim umcongresso realmente acadêmico, ABRACEM ESTA IDEIA.

Parcerias

A única possibilidade que nos permite viver hoje em termos de Teatro naUniversidade é a existência de parcerias, como a que temos com o CNPq,que financia nosso grupo de pesquisa; nós temos mais de 20 bolsistas, dedesenvolvimento científico regional enquanto doutores ou mestres, deaperfeiçoamento e de iniciação científica. Temos 11 projetos com apoiodo CNPq – em termos de bolsa ou auxílio à pesquisa. Outros parceirosnossos são o Instituto Goethe, que em nível local apoia muitas produçõesde teatro, também a Associação Cultural Brasil-Estados Unidos, asuniversidades de Santa Catarina, tanto a estadual quanto a federal comtrabalho na área de dança, do teatro e da educação, com British Council ecom universidades da França e da Inglaterra. Nós entramos nesse circuitoque é noticiado aqui no boletim do GIPE-CIT, sobre o seminário e ocurso que fazemos anualmente no Departamento de Estudos Teatrais eCoreográficos da Universidade de Paris VIII. E também recebemos deParis VIII os professores Jean-Marie Pradier e Patrice Pavis, este que tambémparticipou deste evento. Assim, mantemos interlocução permanente comdiversos grupos de pesquisa sobre a etnocenologia, por exemplo, eexploramos outras possibilidades que vêm da iniciativa privada e dainiciativa pública, do meio informal e do meio institucional.

Uma nova face

Este momento, em que uma Universidade Pública Federal conseguiuarticular duas escolas, de Teatro e de Dança, quatro departamentos,Fundamentos do Teatro e Técnicas do Espetáculo, Teoria e CriaçãoCoreográfica e Técnicas da Dança, é um momento de busca eexperimentação de novas formas de arquitetura diplomática institucional.

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A organização em termos de grupo e de projetos integrados de pesquisa,que é o que tem dado sustentação a nossa pós-graduação, é o elementofundamental desta nova arquitetura. Outro elemento fundamental é arealização de certa maneira de uma vocação que é muito da Bahia. Aprofessora Leda fez referência à cultura como setor econômico, e é bemsabido que a cultura já é o setor que emprega mais e que mais gera rendae emprego, a partir dessa virada de milênio, que se aproxima. Claro queisso nos coloca em confrontação com a questão do mercado – e eutinha dito no início que Salvador é um porto de serviços há muitos anos,para o bem e para o mal. Eu diria agora que haveria uma certapromiscuidade e um certo ecumenismo da produção cultural da Bahia,havendo interfaces entre todos os níveis de música, de produção dedança e de teatro. Há uma efervescência muito grande em termos deprodução, de abertura de novas salas de espetáculos e sem dúvida queisso é um elemento que também se soma a essa mudança de patamar dequalidade das artes cênicas na Bahia, a partir do início dos anos 90, e éum pouco a razão pela qual nós podemos criar hoje a nossa pós-graduação.

Eu sei que o caso da Bahia é muito particular em termos desse aspectomeio promíscuo entre o mercado e a instituição, o despotismo, aexploração turística e a produção acadêmica, mas sem dúvida temosalguns mecanismos de financiamento que permitem que estejamosconseguindo ter uma visão otimista para os próximos anos. Temos trêsde nossos colegas docentes nas Escolas de Teatro e Dança da UFBAconcluindo doutorado e devemos então ter um corpo de dez docentesaté o ano de 1999, o que é muito positivo. A ABRACE e este EncontroMundial de Teatro em Belo Horizonte, que possibilitou a criação deuma lista informal de discussão de Formadores em Artes Cênicas, aFACE, são outras das razões de meu otimismo e da crença absoluta nasparcerias.

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A jovem e imatura universidade brasileira, vivendo violenta transformaçãoneste final de século, começa a perceber a contemporaneidade em tornode duas questões fundamentais.

- a cruel concentração de renda em escala mundial, particularmenteampliada no Brasil;- e a volatilização do dinheiro numa verdade virtual que faz do mercadomundial uma realidade.

A arte, por sua vez, com seu caráter liminal (TURNER, 1982) que a fazparticipar de todas as esferas da realidade, continua a anunciar o futurobaseado em sua própria tradição, circulando no mercado de benssimbólicos e utilitários bem à vontade.

No atual panorama legal, o artista e o técnico em espetáculos de diversãotem sua profissão regulamentada desde 1978; já a universidade, pelaConstituição de 1988, deve se organizar articulando ensino (de graduaçãoe de pós-graduação), pesquisa e extensão.

O consumo artístico, enquanto atividade ligada ao prazer, à propagandainstitucional, à indústria do turismo, à busca do inefável e à acumulaçãode patrimônio vive dias de euforia globalizada, na qual se insereperfeitamente o Brasil. A Bahia, como campo de pesquisa nesta área, éprivilegiada.

A liquidez do mercado e a fúria legislativa:sobre o ensino de artes nos níveis fundamental, médio,

superior e pós-graduação e suas relações com aformação profissional em artes*

* Publicado originalmente in: SEMINÁRIO SOBRE O ENSINO SUPERIOR DEARTES E DESIGN NO BRASIL, 1., 1997. Anais... Salvador, BA, Brasil:CEEARTES, 1997. v.1. p. 22 – 24.

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O acesso à arte no nível fundamental inscreve-se na compreensãopedagógica de sua importância para plena formação da criança enquantopessoa. No nível médio, de acordo com a legislação e o mercado, oensino de arte deve cobrir duas vertentes: a primeira similar àquela associadaao nível fundamental, a segunda dedicada à formação de artistas e técnicosprofissionais. Neste nível, o artista modelo é o ator, o técnico é aquelehabituado à prática cênica necessária para a realização de espetáculos:sonoplastia, iluminação, cenotécnica.

No nível superior, a formação deve restringir-se ao artista propriamentedito e ao professor de artes, este sendo um prolongamento daquele.Compreendendo a universidade enquanto ensino, pesquisa e extensão e,também a arte – em sua dimensão de comunicação – compreenderemosque, neste nível, intrinsecamente, arte implica ensino e extensão. A pesquisa,no Brasil particularmente, é que tem sido menos compreendida esistematizada. Se a Universidade forma Cientistas e Professores de Ciência,ambos com treinamento em pesquisa sistemática, também pode formarartistas e Professores de Artes, também com treinamento em pesquisasistemática. Aí reside um debate cujas questões essenciais são:

- a possibilidade de existirem pesquisas científicas, artísticas (LITTO, 1993)e, paralelamente, científicas e artísticas;

- os níveis da graduação e da pós-graduação, as modalidadesmetodológicas e as linhas de pesquisa.

Em nível de graduação, o Brasil, hoje, dispõe de cursos de licenciaturaem artes, licenciatura em educação artística – com habilitações específicas– bem como cursos de bacharelado, também com habilitaçõesespecializadas. Nossa opinião (DOURADO; FARIAS, 1997) é quepoderíamos ter apenas formação de bacharéis com duração de três aquatro anos (a depender da arte e de sua habilitação), complementados,opcionalmente, por mais um ano de estudos direcionados para a

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licenciatura. Assim, formaríamos tanto artistas como professores de arteshabilitados para a pesquisa.

Em nível de pós-graduação, teríamos igualmente a possibilidade deformarmos artistas e professores – com a diferença adjetiva essencial deque seriam não apenas habilitados para a pesquisa – mas, sim,compreendidos como artistas pesquisadores e como professorespesquisadores.

Em termos nacionais, poderíamos ter grandes parâmetros curriculares –estabelecendo limites de carga horária e a sequência do bacharelado (comduração de três a quatro anos) até a licenciatura (acrescida de mais umano) – extinguindo-se a distinção entre licenciatura em artes e licenciaturaem educação artística.

Do mesmo modo seriam definidos os perfis dos cursos, em seus diversosníveis:

- em nível fundamental – habilitação pedagógica para a formação dapessoa;

- em nível médio – habilitação pedagógica para a formação da pessoa ehabilitação profissionalizante para técnicos e algumas categorias artísticas(ator, por exemplo);

- em nível superior (de graduação) – formação profissionalizante deartistas e de professores de artes com treinamento em pesquisa;

- em nível superior (de pós-graduação) – formação de artistas-pesquisadores e de professores-pesquisadores.

No que se refere à formação profissional de nível médio, particularmente,no Nordeste brasileiro, não se pode perder de vista a importância daindústria do turismo e seu necessário insumo que é a produção artística.O próprio mercado, como o da Bahia, por exemplo, vem se incumbindode formar técnicos e artistas, mas a Escola pode aprender com estaexperiência espontânea e colaborar para qualificá-la melhor.

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Ao lado do mercado educacional (acadêmico-superior e de segundo grau)e do mercado profissional do espetáculo (artístico, publicitário, político),outras vertentes têm se definido em termos de mercado de trabalho parao profissional de nível médio e de nível superior – em artes – no mundocontemporâneo, inclusive no Brasil: a produção e a administração no âmbitoda cultura artística, a animação e a educação não-formal de caráter públicoe privado, governamental e não-governamental.

No âmbito do nível superior, é preciso uma atenção maior às questõesde mercado de trabalho, garantindo-se a permanente reflexão e areelaboração das matrizes estéticas que, historicamente, determinaram operfil dos cursos superiores de arte no Brasil. Pesquisas, de caráter científico,por exemplo, sobre essas questões, são uma urgência e, afortunadamente,uma emergência.

Ainda nesse âmbito do terceiro grau, vale ressaltar a importância do teatrouniversitário – não relacionado a cursos de graduação e raramente vinculadoa projetos de pesquisa das áreas de educação, letras e ciências humanas –que existe em muitas universidades brasileiras, públicas e privadas. Estetipo de prática, comum no Brasil, possui marcantes interfaces com oensino formal de graduação e pós-graduação e é um dos esteios, porexemplo, do Festival Universitário de Teatro, realizado pela UniversidadeRegional de Blumenau, anualmente, há onze anos, e tão importante paraa difusão de técnicas e de opções estéticas e para o intercâmbio entre osdiversos cursos de licenciatura e de bacharelado existentes.

Uns poucos, uns felizes poucos, somos nós – artistas universitáriosbrasileiros, que precisamos nos articular nacional, regional, local einternacionalmente – porque nossa atividade acadêmica (científica, artísticae administrativa) pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida epara uma melhor distribuição de renda no país. Ou enfrentamos essedesafio contemporâneo ou nos converteremos em cena aberta e seremosmartirizados, como São Genésio, o comediante.

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Referências

LITTO, Frederic M. Pesquisa Científica e Pesquisa Artística. Art, Salvador,n.15, 1993.

DOURADO, Paulo; FARIAS, Farias (Orgs.). Reestruturação Curricular

dos Cursos de Teatro da UFBA. Salvador: UFBA, [20_?]. (in progress).

TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: the human seriousness ofplay. New York: PAJ, 1982.

THURSTON, S.J.; HERBERT, J.; ATTWATER, Donald . Vida dos

Santos de Butler. Trad. Attílio Brunetta. Petrópolis: Vozes, 1992. 12 vol.

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A oportunidade de participar do festival universitário de teatro deBlumenau, promovido pela Universidade Regional anualmente eregularmente há onze anos, deve ser celebrada com saudações a Dionísioe a Todos-os-Santos da Bahia e do mundo, particularmente a São Genésio,comediante e mártir1. Em seguida, deve ser motivo de congratulaçõesentusiasmadas e de agradecimentos sinceros, dedicados a todos os quetêm assegurado sua continuidade e que, direta ou indiretamente,viabilizaram minha participação como debatedor do 11º FUTB, deTerezinha Heimann, Rute Zendron, Lauro Góes e Noemi Kellermann atodos os teatreiros2 participantes, Por fim, esta oportunidade demandaser registrada com uma contribuição escrita sobre o festival, destacandoprincipalmente uma apreciação panorâmica da mostra oficial, que reuniudez espetáculos, e dos debates subsequentes.

A mesa falante:

sobre a mostra oficial do 11º Festival Universitário

de Blumenau*

* Publicado originalmente in: O TEATRO Transcende, Blumenau, v.6, p. 17-21,1997

1 Diversos autores entre 1895 e 1910 narraram a história de São Genésio, o Comediante,Mártir (séc. III/IV DC), considerada “romance imaginoso pelo Pe. Delehaye (BUTLER,1992, p. 213-214): um ator romano, em um espetáculo ridicularizando ritos cristãos,converte-se ao cristianismo – durante cena do batismo, ao ter uma revelação, após aqual exorta o Imperador Diocleciano (245-313 DC) também a converter-se, sendopor este condenado ao martírio. Há duas peças teatrais sobre o assunto: Saint Genest

(ROTROU, 1646) e Le Comédien et la Grâce (GHÉON, 1925). A propósito dodramaturgo francês Jean Genet (1910-1986), seu colega Jean-Paul Sartre (1905-1980) escreveu o ensaio Saint Genet, comédien et martyr, aludindo ao santo católicoGenest ou Genés, em francês.

2 Palavra não dicionarizada: neologismo usado tradicionalmente no FUTB para designartodos os artistas, técnicos e promotores do teatro, conotando, possivelmente, o caráterfabril artesanal desta arte cênica.

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Enquanto ator e diretor, sempre tive dificuldades em entender a críticajornalística profissional referente ao teatro. Mas como professor epesquisador fui levado a realizar um esforço para compreendê-la comouma das variantes da tradição crítica desta arte cênica milenar, cujosparadigmas clássicos foram definidos desde o berço grego (críticadescritiva versus crítica prescritiva)3, constituindo-se numa habilidadeespecífica e profissional (a do crítico de teatro, como Sábato Magaldi eBárbara Heliodora, por exemplo), diferente da que se requer para umator, um diretor ou mesmo para um professor, e com a qual,pessoalmente, não me identifico. É verdade que uma mesma pessoapode desempenhar os dois papéis (os críticos citados são tambémprofessores), mas as funções distinguem-se entre si: um poucogrosseiramente, o crítico publica sua avaliação pela mídia, o professorde teatro comunica-se em relações face a face.

O que nós, professores universitários de teatro, convidados comodebatedores, pretendemos fazer, em Blumenau, após cada espetáculono Teatro Carlos Gomes, foi, a meu ver, uma mistura de avaliaçõescríticas, de múltiplo caráter: analítico, estruturalista, formalista, histórico,textual, prescritivo e até mesmo mítico (VASCONCELLOS, 1987), alémde provocações para reflexão, com o objetivo de contribuir para ocrescimento qualitativo e quantitativo do teatro universitário e deaprendermos, na mesma medida, sobre seus projetos, processos eprodutos, assumindo nossa função profissional de artista cênico,universitário, pesquisador e professor. Esperamos que tenhamos atingidointegralmente o objetivo. Quanto ao que aprendi, o balanço éextremamente positivo e gostaria de compartilhar com todos os colegas,participantes ou não de nossa convivência intensa durante o 11º FUTB,algumas reflexões, apreciações e comentários.

3 Ver excelente síntese comparativa e pertinente proposta de tipologia in:VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. Porto Alegre: L&PM, 1987. p.61-63.

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Sobre a Representatividade do Festival

Reunindo oficinas de práticas cênicas, palestras e encontros com artistasconhecidos, eventos diversos como lançamento de livros, além deespetáculos apresentados em múltiplos horários e em variados espaços,o FUTB apresentou, em 1997, quatorze trabalhos na Mostra Paralela edez na Mostra Oficial, de quase todas as regiões do Brasil e de doispaíses do cone sul, o Chile e a Argentina. Constituiu-se em evento únicoe singular em todo o país por sua abrangência geográfica, impacto locale regional, alcance internacional, amplitude e variedade das atividadesorganizadas em torno da vivência de mais de duas dúzias de espetáculos,ao longo de quase dez dias. No que se refere à representatividade doFestival, vale destacar aspectos mais detalhados em relação à MostraOficial do Festival.

1. Representatividade Regional

À exceção do Centro-Oeste, todas as regiões do Brasil foramrepresentadas na Mostra Oficial, com três espetáculos da região Sul,quatro da região Sudeste, dois da região Nordeste e um da regiãoNorte. Dois fatores contribuem para a maior participação das regiõesSul (30%) e sudeste (40%): a proximidade de Blumenau e o elevadonúmero (em relação às demais regiões) de experiências de integraçãoteatro-universidade. O caráter nacional do FUTB já se encontra,inclusive, ultrapassado, pois o festival vem recebendo, nos últimos anos,vários grupos do Cone Sul. Sua representatividade tende a crescer, nãosomente atingindo a região Centro-Oeste do Brasil, mas também todaa América do Sul4. Mas seu caráter brasileiro e blumenauense é o queconstitui a sua marca, os vizinhos hispano-americanos são e serãosempre bem-vindos.

4 Esta ampliação do âmbito do Festival foi divulgada pelo Magnífico Reitor Prof. Dr.Mércio Jacobsen, em encontro com os debatedores (10 jul.1997).

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2. Representatividade Institucional

A observação atenta dos grupos – com mostra de espetáculos na MostraOficial do Festival – revela a existência de ampla variedade de vínculosinstitucionais e de processos de montagem dos trabalhos apresentados,com a predominância de projetos de extensão desvinculados de atividadesde ensino de graduação e de pós-graduação e de pesquisas sistematizadasna área de conhecimento do teatro e mesmo de pesquisas científicas, emoutras áreas que tenham por objeto total ou parcialmente elementos doteatro. Classificar esses vínculos tem sido preocupação de habituaisparticipantes do Festival (MONTAGNARI, 1996). Uma possívelclassificação seria optar-se por dois tipos básicos de vínculos institucionais/processos de montagem:

- Tipo 1 – o projeto de extensão de uma universidade que não mantémcurso de graduação em teatro, feito exclusivamente com estudantes eprofessores universitários – é o caso do Teatro Universitário de Maringá(PR) e da Companhia Teatral a Rã Qi Ri (AM) – 20% – ou com aparticipação de artistas e de outros interessados da comunidade(profissionais ou não) – é o caso do grupo da Universidade de PassoFundo (RS), da Companhia de Teatro em Aberto (RJ), do SagaranaProduções Teatrais (PB) e do grupo Mosaico (RJ) – 40%. Este tipogenérico de projeto é, de fato, o tipo predominante no teatro universitáriobrasileiro, cujo paradigma de referência pode ser o Teatro da UniversidadeCatólica de São Paulo dos anos 60, o TUCA. Sua flexibilidade e, deacordo com cada universidade, seu variado grau de formalizaçãoinstitucional são elementos facilitadores para a viabilização do teatroamador, em sua melhor vertente do voluntariado e a da ação comunitária,e justificam sua importância seminal com 60% de ocorrência na MostraOficial do Festival. No que pese a diretriz constitucional de 1988 deorganização da vida acadêmica em torno de três vertentes (ensino,pesquisa, extensão) e a regulamentação da profissão de artista e técnicoem espetáculos de diversão, de 1978, a informalidade acadêmica/profissionalizante destes projetos, e sua exuberância tanto quantitativaquanto qualitativa, revelam a existência de uma demanda comunitária e

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de táticas institucionais variadas para suprir a oferta de professores/diretores/ mestres de técnicas cênicas específicas/ coordenadores/patrocinadores, que poderão gerar, via atividade de extensão, a pesquisasistemática e o ensino formal de graduação e pós-graduação na área,como as ocorrências que geraram, por exemplo, os cursos de teatro daUniversidade Federal da Bahia (exclusivamente livres de 1956 a 1962;livres – de extensão – e de graduação, desde 1963; também de pós-graduação sticto sensu, a partir de 1997).

- Tipo II – a montagem vinculada a projeto de pesquisa ou a curso degraduação: seja de educação artística com habilitação em teatro, comoocorre em 20% da Mostra Oficial, com o grupo (E) xperiência Subterrânea(SC) e o Laboratório de Artes Cênicas do Departamento de Artes (PB);seja de licenciatura em teatro ou de bacharelado em artes cênicas, emquaisquer de suas habilitações específicas, como ocorre também em 20%da Mostra, com os grupos da UNI-RIO (RJ) e da USP, Companhia dosArautos – Artes Cênicas (SP). Este segundo tipo de projeto de extensãoarticula o ensino de graduação e pós-graduação com a pesquisa acadêmicana área e implica um grau maior de institucionalização e de articulaçãocom o mercado profissional específico do teatro, tanto no âmbitouniversitário quanto artístico, representando 40% do corpus da MostraOficial do Festival.

3. Representatividade Setorial

As transformações do jovem e imaturo sistema universitário brasileiro,que estamos vivendo tão rapidamente, estão presentes no 11º FUTB.Organizado por uma universidade privada, o Festival reúne em sua MostraOficial três universidades públicas federais, sendo duas do Norte-Nordeste (a do Amazonas e a da Paraíba – esta com dois espetáculos) euma do Sudeste (a UNI-RIO); três públicas estaduais do Sul-Sudeste (ade Maringá, a de Santa Catarina – UDESC e a de São Paulo – USP); eduas privadas também do Sul-Sudeste (a Veiga de Almeida – RJ e a dePasso Fundo – RS). As públicas predominam (75%) e as da região Sul-Sudeste são a maioria (três quartos das oito universidades representadas,

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

mas não a mesma amostra das públicas de igual percentual de 75%). AFURB, que é privada, com apoio do poder público – municipal, estaduale federal – viabiliza a realização do Festival. Já a Veiga de Almeida, tambémprivada, apoiou a inscrição e a participação de dois grupos do Rio deJaneiro, estreitamente vinculados à UNI-RIO, e a de Passo Fundo enviouespetáculos para ambas as Mostras, a Oficial e a Paralela. A predominânciado setor público deve ser revitalizada nesta análise, considerando-se aimportância qualitativa do papel desempenhado por essas trêsuniversidades particulares, inclusive o elevado grau de interação que seestabeleceu entre todas as universidades, de ambos os setores, em funçãodo FUTB.

4. Representatividade Setorial na Premiação

Juntas, as duas universidades privadas, levaram 40% dos prêmios (MelhorEspetáculo, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante e MelhorFigurino). Os demais 60% dos prêmios ficaram com as universidadespúblicas, sendo que as federais levaram três prêmios (Melhor Ator, MelhorAtriz, Melhor Cenografia) e as estaduais os outros três (Melhor Direção,Melhor Trilha Sonora, denominação mais apropriada que sonoplastia –e Melhor Iluminação). A região Sul-Sudeste ficou com quase todos osprêmios (95%) e o grande destaque foi a UNI-RIO, com três espetáculos(Don Juan, Os Ossos do Barão e Muito Barulho por Nada) e cincoprêmios (50% do total de prêmios), se contados os recebidos pelosgrupos patrocinados pela Universidade Veiga de Almeida, com seusalunos e ex-alunos.

Neste item destaca-se a concentração esmagadora da premiação da regiãoSul-Sudeste, apenas atenuada com os dois prêmios extras oferecidospela Organização do Festival: o de Destaque da Mostra Paralela, para ogrupo de Preparação do Ator I e II da Escola de Teatro da UniversidadeFederal da Bahia, que apresentou O Buraco é Mais Embaixo, de JoãoSanches, e o prêmio especial de animação para dois atores de Pernambuco,vinculados ao curso de teatro de sua Universidade Federal, queapresentaram Chapeuzinho Verde, de Jô Soares. Observe-se que ambos

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os prêmios extras, além de contemplarem a região Nordeste, contemplamtambém igualmente experiências que articulam ensino e extensão e,potencialmente, pesquisa, e que utilizam textos brasileiroscontemporâneos.

5. De volta à Representatividade Regional e Institucional (itens 1

e 2)

O desequilíbrio regional na premiação talvez se deva a duas constataçõescomuns na abordagem da história do teatro: enquanto atividade regularprofissional permanente, o teatro é fenômeno das metrópoles(DUVGNAUD, 1965 e 1973); enquanto modelo civilizatório, o brasileirosegue o que se desenvolveu na Europa Ocidental, ao longo dos últimoscinco séculos (ELIAS, 1969/75). Uma constatação mais recente, nestamesma linha de análise é a que podemos fazer: enquanto campo propíciopara o teatro experimental, amador e de caráter pedagógico e tambémpara momentos de intercâmbio, cidades menores são mais aconchegantes:Blumenau (teatro internacional de animação), Avignon (teatro francês),Holstebro (International School of Theatre Anthropology), Pontedera (Centrodi Riccerca Teatrale), Morelos (Teatro Campesino). Outra tendência, emtermos de constatação, no que se refere ao FUTB, é a emergência de umpeso maior dos cursos de graduação e de pós-graduação, assim comodos projetos de pesquisa, como vertente acadêmica formalizada eproduzindo extensão com a comunidade, em relação aos projetos decursos e montagens teatrais livres, ou apenas de extensão, que, repito, sãoo berço e o estuário do teatro universitário, devendo manter suapredominância no âmbito do FUTB, no mínimo, por mais onze anos,configurando o perfil do próprio festival.

6. Representatividade Dramatúrgica

A dramaturgia clássica/moderna conviveu com novas experiênciasdramatúrgicas no repertório de montagens da Mostra Oficial. Os textosde Molière, Cervantes, Strindberg, Jorge de Andrade e Shakespearegarantiram metade da qualidade do repertório (50%). A adaptação de

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um conto de Anton Tchecov e as propostas de textos de Nereide Santiago,Tarcísio Pereira, Edson Bueno e Zé Roberto Pereira são tentativasestimulantes e estimuladoras (50%) para o crescimento quantitativo equalitativo da dramaturgia no Brasil e na América Latina. Já se cogitoude uma premiação para melhor texto original para o teatro no âmbitodo FUTB. Continua-se a cogitar.

7. Representatividade da Brasilidade e da Contemporaneidade

O Brasil enquanto temática apareceu em apenas 30% dos espetáculos(Os Ossos do Barão, Um Dia Serei Suzana e Os Teus Olhos Eu QueroComer!... É Bom!... Ou Nem Deus Nem Diabo em Terra-Bamba).Enquanto matriz de práticas espetaculares identificadoras, o Brasilapareceu colorido e musical em Muito Barulho Por Nada. Tem-se aimpressão de que é pouco. O mundo e o teatro são de fato muitomaiores que o Brasil, mas assim como as grandes questões dacontemporaneidade, tem-se a impressão de que também as grandesquestões do Brasil poderiam ter aparecido um pouco mais no repertórioda Mostra Oficial. A expressão desta impressão permite-me afirmarque o teatro universitário, tanto em termos substantivos quanto adjetivos,é espaço privilegiado para a vivência estética dessas questões ligadas aoaqui e ao agora, principalmente nos tempos mais contemporâneos,nos quais se pode estar aqui e, em realidades sensoriais, imaginárias evirtuais, no cosmos de todos os tempos. A presença – no mesmotempo e espaço de artistas cênicos e seu público – é traço decisivo doperfil das práticas espetaculares tradicionais, entre as quais se encontrao teatro. O cinema, a televisão, os disco-vídeos e as telemáticas são, emcerta medida, suas extensões.

8. Representatividade Paradigmática

Se os temas políticos e as montagens experimentais dos anos 60 e 70encontram-se em retração enquanto paradigmas, no contexto da MostraOficial do 11º FUTB, com total ausência neste ano de espetáculos deanimação e não-verbais, por exemplo, as vertentes da dança-teatro, do

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uso cênico de práticas espetaculares tradicionais do Brasil e do teatroinfluenciado pela televisão (enquanto modelo e escoadouro profissional)e, ainda, pelo videoclipe, não chegam a constituir um novo paradigma,que seguramente, encontra-se em gestação conforme os debatespareceram-me indicar.

Sobre os Debates

Mais difícil do que participar de Comissão de Seleção, de BancaExaminadora ou de Comissão Julgadora é participar de mesa debatedorano FUTB:

1. O público é comparativamente maior, aproximando-se em algunscasos e momentos do público do espetáculo; isto amplifica osaplausos, as demais reações e, também, os malentendidos. Debatenão é, mas pode ser confundido com combate, abate...

2. Coordenar um diálogo entre debatedores, equipe do espetáculo epúblico é tarefa estimulante e muito dura. É fazer um discursoassinalando pontos para o debate sobre um espetáculo, que acabade ser visto. É reunir impressões e análises, críticas, eventualmentesugestões e questões, numa estrutura rapidamente (des)organizada.É ouvir colegas, refletir e reavaliar suas próprias afirmações; e,sempre que possível, responder, assegurando o objetivo pedagógico,a elegância acadêmica, a cumplicidade profissional, o amor e ohumor; e, sempre e metodologicamente, ensinando e aprendendosimultaneamente.

3. Todo mundo cita Nelson Rodrigues a respeito da unanimidade, masos debatedores, sentados atrás da mesa viram uma só entidadeamalgamada a um objeto momentaneamente animado (infelizmentenão graças ao talento de Ana Maria Amaral), a própria mesa, como umtable tournante da origem do espiritismo na França do século XIX. AMesa reuniu professores artistas cênicos pesquisadores de cincouniversidades públicas brasileiras, (UFRGS, UNICAMP, UFRJ, UFBA

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e UFPE)5, o que parece confirmar uma intuição muito comum entre aspessoas de teatro: a pesquisa sistemática e o ensino formal de teatroencontram-se muito no setor público do sistema de ensino superior dopaís.

4. O espetáculo determina o debate; sua energia contagia o público,inclusive, os próprios debatedores, enquanto também público. Assim,reunindo algumas palavras, repassemos, pela ordem de apresentação,os títulos e climas das montagens da Mostra Oficial:

• Exuberância amazônica, confusão, contemporaneidade – Os Teus OlhosEU Quero Comer!...É Bom...Ou Nem Deus Nem Diabo Em Terra-Bamba;

• Risco, desespero, pesquisa – A Destruição de Numância;• Sensualidade, simplificação, transgressão – Don Juan;• Requinte, humor, extensão – A Obra de Arte;• Partitura, graduação, educação – A Mais Forte;• Violência, pobreza, preconceito – Um Dia Serei Suzana;• Tradição, profissionalização, avaliação – Os Ossos do Barão;• Poder, razão, sexualidade – A Rainha Louca;• Urbanidade, televisão, pesadelo – A Diferença Que Um Dia Faz;• Brasilidade, musicalidade, colorido – Muito Barulho Por Nada.

Este é o mosaico que representa os debates do 11º FUTB. Como seusmodelos gregos, o festival de Blumenau, de 1997, provocou polêmicase garantiu a sobrevivência não somente do teatro universitário, mas dopróprio teatro.

Referências

AMARAL, Ana Maria. Teatro de Animação. São Paulo: Ateliê, 1997.

DUVIGNAUD, Jean. L’acteur, sociologie du comédien. Paris:Gallimard, 1965.

5 Respectivamente: Irene Brietzke, Sílvia Telesi, José Henrique Ferreira Barbosa Moreira,Armindo Jorge de Carvalho Bião e Marcondes Gomes Lima.

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ELIAS, Nrbert. La dynamique de l’Occident. Trad. Pierre Kamnitzer.Paris: Calmann-Lévy, 1975. (Ed. Original em alemão, 1969).

MONTAGNARI, Eduardo. O Teatro Transcende, Blumenau, n. 5, p.8-9, 1996. (Notas de um Selecionador).

VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. Porto Alegre:L&PM, 1987.

VIDA dos Santos de Butler. Petrópolis: Vozes, 1992. 12 v.

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Gostaria de frisar minha satisfação de estar aqui, porque, no ano passado,quando participei deste mesmo festival, vi enriquecer-se não apenas abibliografia brasileira, à qual eu não tinha acesso, como também mebeneficiei de um certo panorama do ensino de teatro em nível nacional.Estabelecer contatos com outros colegas e criar amizades muito mehonram e alegram. Friso a importância deste Encontro.

Minha intervenção será dividida em três partes. Inicialmente, farei algumasconsiderações de ordem metodológica; a seguir, relatarei três experiênciasque vivi, em termos de seleção para ingresso em Escola Superior, ou dehabilitação específica para pós-graduação – um caso americano, outrofrancês e um terceiro, brasileiro –; finalmente, apresentarei uma propostaquanto à habilitação específica para ingresso em Escola de Teatro e paraconclusão de pós-graduação, ou seja, defesa de tese.

Meu ponto de vista não será o da objetividade total. Na medida em queestou implicado com o ensino de Teatro, não poderia estar distanciadoo suficiente para ter uma neutralidade metodológica. Por outro lado,não quero estabelecer como ponto de partida a minha subjetividade,nem pretendo apresentar aqui uma visão impressionista.

Em termos de método, partirei de um “curto-circuito” entresubjetividade e objetividade, que eu chamaria de “trajetividade”, conceitode Gilbert Durand sobre o trajeto antropológico, que favorece a utilização

Alguns comentários sobre ingresso em curso

superior de teatro e pós graduação*

* Palestra proferida In: FESTIVAL UNIVERSITÁRIO DE TEATRO DEBLUMENAU, 5., 1992. Transcrita e publicada In: POIESIS - Revista da AssociaçãoNacional de Professores e Diretores de Teatro Universitário, Blumenau, FURB/POIESIS, v.1, p. 49–63, 1993.

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da experiência pessoal e de vida de cada um, ao mesmo tempo quetambém aspectos menos pessoais, numa referência à teoria, imprimindoconsequencia à “trajetividade”.

Por isso mesmo, qualquer generalização referente a Escolas de Teatro ésempre muito perigosa. É um engano tratar no plural generalizante “asEscolas de Teatro”. Nós não as conhecemos. Apesar do privilégio deencontrarmo-nos aqui, não conhecemos as diversas Escolas existentesno país, nem temos a dimensão de seu funcionamento. Logo, todageneralização, em termos de Escolas de Teatro, é falsa e perigosa. Éexatamente o intercâmbio, como o que ora praticamos, que permitiráque se potencializem os recursos de que dispomos nas diversas Escolasbrasileiras.

Passo agora a referir-me às três experiências citadas no início da palestra.

A primeira, uma experiência norte-americana: com uma bolsa daFundação Fulbright, fiz um Mestrado de Teatro na Universidade deMinnesota, no centro-norte dos Estados Unidos e tive a oportunidadede estudar também um tempo em Pittsburgh e Nova York.

Do ponto de vista bibliográfico, cito o livro de Ênio Carvalho (1989),“História e Formação do Ator”, publicado pela Ática em São Paulo,que apresenta referências comparativas sobre o ensino de teatro em diversaspartes do mundo. Há também a tese de Paulo Luís de Freitas, ainda nãoacessível – não foi editada. Sei que há outras teses, mas há um grave problemaquanto à divulgação da produção acadêmica na área de teatro, problemaque é geral no âmbito das universidades brasileiras. É importanteestimularmos a publicação desses trabalhos, posto que isso representará asocialização do conhecimento e a real troca de experiências. Nesse sentido,parece-me que apenas o livro do Ênio Carvalho oferece um panoramado ensino de Teatro em diversos países e no Brasil, particularmente.

A segunda é uma experiência francesa, relato de quando tive aoportunidade de fazer meu Doutorado em Paris V, a Sorbonne velha,

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frequentando também a Paris III, a Sorbonne nova, Paris VIII, que é aUniversidade de Saint Denis e, finalmente, o Conservatório NacionalSuperior de Arte Dramática de Paris, onde tive a oportunidade de trabalharna área de máscaras, de interpretação com máscaras, que é para mim amaior atração no ensino de teatro.

Dentro do Brasil, como não poderia deixar de ser, a terceira experiênciafoi vivida na UFBA, onde trabalho e ensino já há alguns anos, emboranão tenha sido formado por essa Escola, faço questão de frisar. Em1968, quando me habilitei a ingressar no ensino Superior, optei pelaFaculdade de Filosofia e Ciências Humanas, onde havia um movimentocultural importante e, sobretudo, um teatro universitário muito atuante.Minha opção, naquele momento, foi fazer Teatro Universitário e nãoEscola de Teatro.

A partir dessas experiências chegarei a uma proposta, ao final da minhaintervenção. Resumindo essa proposta, que a seguir detalharei, ahabilitação específica para ingresso pode ser feita de quatro maneirasdiferentes: através de uma audição, de uma entrevista, de uma análise decurrículo ou de uma prova para testar habilidade ou possibilidade deum candidato prosseguir em um curso de formação em teatro.

No que tange à pós-graduação, considero fundamental um trabalhoprático, seguido de um registro escrito. Um memorial analítico sobre aelaboração ou, opcionalmente, apenas uma dissertação ou teseeminentemente teórica.

O mercado profissional de teatro está estabelecido com uma tradição muitoforte nos Estados Unidos, desde o final do século XIX. Os circuitos dascostas Leste e Oeste permitiam a circulação de trupes profissionais eformavam seus próprios atores. É importante assinalar que, no caso particularde Nova York, a imigração de judeus europeus congregou-se em tornodo que viria a ser, posteriormente, o show business do musical norte-americano.Era um mercado profissional, que entrou em crise com a I Grande Guerra;só após o final da I Guerra surgiram as Escolas de teatro organizadas.

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Ênio Carvalho analisa, privilegiadamente, sem dúvida, Nova York, umgrande centro de formação. Ele cita particularmente cinco instituiçõesuniversitárias que cuidam da formação do ator de teatro, cinema e televisão,posto que, em termos de currículo e mesmo de carga horária, há diferençasna formação do ator para teatro e para televisão, por exemplo.

Além de Nova York, tive a oportunidade de estudar e conhecer, durantedois anos, outras universidades. A Universidade de Minnesota, entre elas,criada nos anos 1920, é uma das maiores universidades médias americanas.Para o ingresso em seus cursos de graduação e pós-graduação, éobrigatória uma audição, a realização de uma entrevista e a apresentaçãode um currículo compreendendo material fotográfico e impresso sobretrabalhos realizados anteriormente pelo candidato. Isso só não se aplicaa candidatos de outro país. Em nosso caso, não fizemos a audição:brasileiros bolsistas da Fundação Fulbright em 1981, não fizemos aaudição; apenas enviamos nosso currículo e fomos entrevistados aqui noBrasil por uma pessoa ligada ao sistema LASPAU – Latin AmericanScholarship Program for American Universities. Para os estudantes estrangeirosque pretendem ingressar em muitas das universidades norte-americanasque mantêm cursos de teatro, não se exige audição, apenas análise decurrículo e uma entrevista.

No que tange à graduação e à pós-graduação, há diferenças. Esses cursosresultam em dois tipos de diplomas, o B.A. – diploma de Bachelor ofArts (Bacharel em Artes) ou o B. F. A. - Bachelor of Fine Arts (Bacharel emArtes Superiores). A Universidade tem como que filiais distintas, queformam diferentes profissionais para o mercado de trabalho. Uma, formaprofissionais, como diretores, atores, cenógrafos, etc. a outra, outro tipode profissionais, como professores de teatro, pesquisadores universitários,acadêmicos. Há diferenças de grade curricular e de colocação no mercadode trabalho. No primeiro caso, o grau terminal é o Mestrado, cujodiploma – o M. F. A. – Master of Fine Arts (Mestre em Belas Artes) euobtive nos Estados Unidos. A conclusão do curso é feita através de umrecital, para os atores, ou de um espetáculo, para os diretores. O recitaltem normas bastante rígidas, o aluno tendo que apresentar cenas de

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diversos estilos e de diversos períodos, além de fazer um número demímica, podendo – e devendo – utilizar para isso colegas de direçãopara dirigir o recital. Esse recital ou espetáculo é apresentado duas vezese é acompanhado de um documento – supporting paper –, representandouma espécie de memorial onde se explicita a maneira utilizada paraselecionar os textos, trabalhar as cenas, para preparar, enfim, o recital ouo espetáculo. Na Universidade de Minnesota, assim como em inúmerasoutras, nos Estados Unidos, existe a possibilidade de uma graduaçãosem tese, sem dissertação, apenas um trabalho prático acompanhado deum memorial escrito.

Uma outra filial da Universidade, chamemos assim, levará ao Doutorado,ao M. A. – Master of Arts (Mestre em Artes), cujo pré-requisito é umadissertação. Esta dispensa os trabalhos práticos, a conclusão do cursoculminando com a apresentação de uma dissertação e com a realizaçãode provas escritas. Esta segunda formação americana é eminentementeteórica e acadêmica, enquanto a primeira é eminentemente artística eprofissionalizante. Como área comum, além da prática vocal e deinterpretação, há uma disciplina chamada “Introdução à pesquisa”,que leva o aluno a visitar, no caso de Minnesota, as inúmeras bibliotecasexistentes – especializadas ou não – e a escolher um tema sobre o qualdesenvolverá uma pesquisa bibliográfica, um projeto de pesquisapropriamente dita, a redigir e a publicar dois artigos (um pequeno e umgrande). Chamo a atenção para este ponto, justamente o diferencial entreo ensino de teatro fora e dentro da universidade, que é a possibilidade eo dever da produção, geração e reprodução de conhecimento crítico eanalítico sobre o próprio fazer artístico que, a meu ver, compete àcomunidade universitária. Esse elemento diferenciador do ensino artísticona universidade implica a possibilidade de reflexão crítica e analítica sobreo próprio fazer e a instrumentalização para o registro desse conhecimento,para que a experiência artística seja documentada, publicada e divulgada,independentemente da própria apresentação de um espetáculo ou desua gravação em vídeo. Em ambas as formações para o Mestrado emArtes Cênicas na Universidade de Minnesota existe a obrigatoriedade derealização desse curso de pesquisa.

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No mais, remeto ao livro de Ênio Carvalho, que analisa com dadosbem precisos a formação em outros importante centros americanos,representando alternativas profissionalizantes, ligadas ou não àuniversidade. Porém, generalizando, pode-se afirmar que a maioria dasUniversidades americanas é privada e paga. Quando frequentei aUniversidade de Minnesota, por exemplo, a matrícula anual era de US$5.000,00, paga pela Fundação Fulbright, já que o montante era inacessívelpara nós (a bolsa era da CAPES).

Passemos agora ao segundo caso, uma experiência francesa. ÊnioCarvalho oferece também inúmeras informações sobre o ensino de teatrona França, que remonta ao século XVII ou XVIII, com formalizações (oConservatório foi fundado em 1808, com Napoleão). Em resumo, opanorama do ensino de teatro hoje, na França, é o seguinte: existemConservatórios Nacionais, como o de Paris e o de Stasbourg, porexemplo, que não exigem uma formação em nível de 2º grau; o candidato,que tem um limite de idade – geralmente entre 16 e 23 anos –, submete-se a uma audição e a uma entrevista para seleção pelos Conservatórios.

Para mim, esses pressupostos eram muito interessantes, porque eupretendia uma formação artístico-prática na França, mas por uma questãode idade encontrava-me totalmente fora dessa possibilidade. Assim, quaiseram para mim as opções, em matéria de formação teatral, fora dosConservatórios de Paris ou de Strasbourg?

As universidades francesas, ao contrário das americanas, são públicas egratuitas em sua maioria e os cursos de teatro existentes são ministradosnessas universidades públicas e gratuitas. A formação que a Universidadede Paris III – que é a Sorbonne nova – oferece na área do teatro éeminentemente teórica. Deparei-me então com a alternativa de fazer umDoutorado (teórico) sobre teatro. Mas eu não pretendia fazer esseDoutorado a partir de um ponto de vista de dentro da própria áreateatral; é possível fazer um trabalho sob um ponto de vista histórico,antropológico, sociológico... Assim, preferi candidatar-me não a umDoutorado em Teatro, mas a um Doutorado na área de Ciências

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Humanas, chamada na época em que estudei em Paris V (entre 1986-1990), de Antropologia Social e Sociologia Comparada. Desenvolvi minhatese sobre a Teatralidade na Vida Cotidiana, com uma grande introduçãoteórica sobre a interface Teatro/ Ciências Humanas. Propus, em seguida,uma grade de análise da teatralidade e da espetacularidade da vida social eapliquei essa grade ao estudo das ocorrências no meio teatral baiano dosanos 70. Como vemos, minha tese não foi sobre teatro.

Como se dá o ingresso para formação teatral na França? No caso dosConservatórios, a audição é fundamental. No caso de Universidadescomo Paris III ou Paris V, que oferecem cursos eminentemente teóricos,o fundamental é uma entrevista e o fato de o candidato conseguir umprofessor orientador, após o que ele pode habilitar-se a uma matrículaem Paris III, Paris V ou Paris VIII. Neste caso, a audição não faz partedo teste de seleção; não existe habilitação específica, apenas um contatodo candidato com os professores do Departamento, podendo um delesdispor-se a dirigir o trabalho desse candidato, seja em nível de graduação,seja de pós-graduação (Doutorado).

Não encontramos uma correspondência clara entre os Mestradosbrasileiro e norte-americano e o que se chama na França de D. E. A. –Diplôme d’Etudes Approfondies (Diploma de Altos Estudos), pré-requisitopara o Doutorado, na realidade um curso de um ano, durante o qual seassiste a aulas e escreve-se uma dissertação (mémoire), mas que nãocorresponde exatamente a nosso Mestrado. Em termos de carga horáriae de trabalho acadêmico, é menos do que o Mestrado e mais do queuma graduação. No caso francês, não existe audição para o ingresso naUniversidade, apenas para os Conservatórios, que são chamados de“superiores” – Conservatório Nacional Superior de Arte Dramática.São superiores, sim, mas não podemos identificá-los com o quechamamos no Brasil de 3º grau, na medida em que, com 16 anos, e semse possuir o 2º grau completo, pode-se estar habilitado a ingressar neles.

Há na França inúmeras outras possibilidades mais ou menos formais,como escolas ou ateliês, mas, na verdade, para o que nos interessa no

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momento, cabe notar que o modelo americano é pago, exige uma audição,oferece a possibilidade de uma formação prática dentro da Universidade,e o francês é gratuito, não exige uma audição, nem oferece possibilidadepráticas dentro da Universidade, que não dispõe de teatro ou salasadequadas.

No período em que permaneci em Paris, além do trabalho teórico como Doutorado, trabalhei no Conservatório, em particular junto ao ProfessorMario Gonzalez, de Interpretação com Máscaras, e com o Professorespecialista em Arte-Educação de Paris III Richard Monod. Muitas dasatividades que ambos realizavam eram mais ou menos informais,utilizando eventualmente uma carga horária de disciplina universitária e,enquanto trabalho prático, realizavam-nas em algum espaço de subúrbioparisiense. Tentavam conciliar, dessa forma, a realização da prática coma teoria, porque é tranquilamente possível concluir a realização de umDoutorado em Teatro na França sem se praticar nada relativo ao teatro.A formação é eminentemente teórica e crítica e de História do Teatro.

Passo agora ao terceiro referencial, que me permitirá apresentar umaproposta final, que é o caso brasileiro. Ao longo do século XIX tivemosuma tentativa mais ou menos dispersa de criação de escolas. O ano de1857 remete a João Caetano e ao Conservatório Dramático da Bahia,que tinha uma proposta de formação, sobretudo na área de dramaturgia.Porém, somente a partir de 1911, com a criação da Escola DramáticaMunicipal do Rio de Janeiro, temos efetivamente a formalização desseensino. Em nível universitário, em 1955 é criada a Escola de Teatro daUFBA e, nos anos 60, a partir de 1968 e 1969, alguns cursos existentesno Rio de Janeiro e em São Paulo são incorporados a universidades,passando a ser considerados também como Cursos Superiores de ArtesCênicas. Hoje, existem seis Cursos formais de graduação e três de pós-graduação, que são os da USP, da UNICAMP e UNIRIO.

Como funciona a habilitação específica para a Escola de Teatro da UFBA,onde tenho trabalhado e tive oportunidade de participar da Comissãode Seleção, não apenas da Escola de Teatro, mas também da Escola de

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Dança, que é uma unidade à parte dentro da Universidade? Lá existe aobrigatoriedade de uma audição, de uma prova escrita e de uma entrevista.Esses são os três requisitos para a habilitação específica. Curioso é que oteste prático cresceu muito ultimamente; se, originalmente, o candidatofazia uma audição em um dia, hoje, para o ingresso no curso de graduação,ele faz o teste prático em uma semana. Na realidade, trata-se de umasimulação de curso.

Darei um outro exemplo, do Curso Livre, um curso de extensão que aEscola mantém há oito anos e que tem um grande prestígio nacomunidade, mais até do que o próprio curso de graduação. Temosuma média de 200, 250 candidatos para 20, 30 vagas no curso deextensão, enquanto que na graduação esse número é menor, tanto absolutaquanto proporcionalmente. No caso do Curso Livre, aumentamos otempo de teste de uma para duas semanas, sendo que neste ano utilizamostrês semanas para o teste. O Curso funciona com professores de corpo,de voz e de interpretação, que dão aulas e que, ao longo de uma semana,avaliam a resposta do aluno aos seus estímulos. Na segunda semana éfeita uma audição, a partir de um repertório de monólogos ou diálogos.Nesse momento, o professor de direção intervém e sugere modificações,exercícios, mudanças no espaço, indicações em nível psicológico, paraverificar a resposta do candidato à intervenção do diretor. Percebemosque às vezes um candidato apresenta uma excelente audição, mas se mostracompletamente impermeável a uma orientação, ao ensino. Por essa razão,decidimos também avaliar a capacidade de reação do candidato. Atendência, na UFBA, é crescer esse teste prático para habilitação, é fazercom que ele ganhe espaço. Neste ano, por exemplo, ao cabo da segundasemana já se pode fazer uma pré-seleção – dos 211 candidatos inscritospermaneceram 120, que fizeram efetivamente o teste da terceira semana.

Ainda não temos o curso de pós-graduação implantado, o quepretendemos fazer em 1993 ou 1994, com a criação do Mestrado emArtes Cênicas, reunindo as Escolas de Dança e Teatro. Porém, achointeressante frisar que, no caso da Escola de Teatro, a graduação implica,para os diretores, a direção de um espetáculo e, para os atores, a

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participação em um espetáculo. Ao longo do curso, o aluno participa, acada final de semestre, de uma Mostra pública do trabalho desenvolvido,por exemplo, em voz, em corpo, em interpretação com máscaras. Acada final de semestre, realizamos duas ou três semanas de mostrasdidáticas dos resultados dos cursos práticos, de maneira que o aluno tempossibilidade de contato com o público. Ainda que familiar e amigo,esse público funciona como a reação de riso ou de censura de umaterceira pessoa que aparece no processo de aprendizado, localizada naplateia, e que é fundamental para a formação do artista.

Os Cursos Livres, que duram cerca de dez meses e finalizam com arealização de um espetáculo, tem Mostras por módulos, ou seja, ao cabode sete, oito semanas de trabalho realiza-se uma Mostra do processo detrabalho. Essa Mostra é praticamente uma aula pública, permitindo oteste do ator em relação com o público. É interessante observar que noprimeiro dia sempre se verifica a síndrome da estranha excitação, daalegria muito forte do primeiro contato com o público e, no segundodia, a síndrome da queda da energia quando, em alguns casos, algunsalunos continuam com a excitação da estreia, deliram, improvisam, fazemcoisas incríveis e experimentam verdadeiramente a chamada síndromedo segundo dia de uma maneira prática. A formação ao cabo do cursoé subsidiária da formação ao longo do curso. Acho importante que otrabalho prático, que levará à graduação ou à pós-graduação, sejaexperimentado ao longo de todo o processo do curso.

O que ainda não desenvolvemos na UFBA, enquanto elementodiferenciador, e que considero importante, é uma área de pesquisa, capazde orientar para a pesquisa bibliográfica e para o apoio de montagem. Éimportante que o aluno que acedeu à Universidade, elite privilegiada,possa responder à contrapartida da produção de um conhecimentopassível de ser multiplicado, divulgado e aproveitado por outros quetenham ou não acesso à Universidade. Percebo que falta na UFBA, umadisciplina como Introduction to Research (Introdução à Pesquisa), obrigatórianos Estados Unidos, que instrumentaliza a pesquisa bibliográfica, daredação de trabalhos de reflexão sobre o próprio fazer.

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A partir desse referencial comparativo, tenho elementos para fazer umaproposta, no que tange à habilitação específica para ingresso naUniversidade e para conclusão da pós-graduação.

As possibilidades de habilitação, de seleção para ingresso na Escola sãoquatro: as audições, as entrevistas, o trabalho escrito e a análise de currículo.Acho que, a depender das circunstâncias, deverá ser utilizada uma, duas,três ou as quatro formas. No caso dos candidatos locais, por exemplo, aaudição, a entrevista e os trabalhos escritos são fundamentais, não sendotão importante a análise de currículo. Acho importante o trabalho escrito,em nível universitário, já que o registro das experiências precisa ser realizadotambém por escrito. No caso de candidatos de fora, (na UFBA, porexemplo, temos convênios com Universidades latino-americanas, comalunos do Equador, da Argentina, do Chile e do Panamá), a seleção éfeita através da análise do currículo e de um trabalho escrito. Não temoscondição de realizar uma audição com o candidato, como ocorre tambémcom os candidatos brasileiros a uma pós-graduação nos Estado Unidos,por exemplo, dispensados da audição. Nestes casos, a audição ésubstituída pela análise de currículo.

Eu associaria a habilitação para ingresso com algumas diretrizes noque tange à formação. Acho que algumas atividades do aluno – nãotodas – ao longo de sua graduação devem envolver-se com o trabalhoprático de montagem. Exemplificando: se, durante um determinadosemestre, a Escola de Teatro da UFBA, ou sua Companhia, seu Núcleode Teatro para Adolescentes ou seu Curso Livre realizam montagens,alguns alunos do curso de graduação poderiam incorporar-se a essasmontagens e ter sua avaliação feita, por exemplo, pelo professor dedireção, na medida em que ele fosse assistente de direção de um dessesespetáculos; da mesma forma, o trabalho de corpo, de voz, demaquiagem, feito em função de uma dessas montagens, poderiatambém ser avaliado pelo professor durante a realização desse trabalhoprático. É muito importante o envolvimento do aluno de graduaçãocom esse tipo de prática, que não está tecnicamente ligada ao campodo ensino.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Afirmo que a vocação da área de artes na universidade é (ou tem sido),prioritariamente, uma vocação de ensino e extensão (sendo a pesquisa algoainda muito recente e incipiente). Não existe arte sem público, logo, todotrabalho artístico é voltado para a extensão, como vocação natural. Comoexemplo, no caso do espetáculo que a Companhia da Escola trouxe esteano para o Festival Universitário de Teatro de Blumenau, temos um alunode direção, um funcionário contratado pela Escola como ator, um outroque é iluminador, assistente de produção e técnico da Escola, porémformado como ator pela Escola. Outro exemplo, quando dirigi o CursoLivre no ano passado, cinco alunos de graduação em direção foram meusassistentes de direção ao longo do curso (que durou dez meses); o trabalhode maquiagem do espetáculo foi feito por alunos de maquiagem naquelesemestre. Quero dizer com isso que algumas atividades devem estarvinculadas a uma realização prática; porém, nem todas. Não se pode parara Escola em razão de uma, duas ou três montagens.

Há um campo teórico que deve ser preservado em sua integridade,como, por exemplo, a introdução à pesquisa e à história do teatro, doespetáculo ou da dramaturgia, que permitirá, inclusive, situar o teatro emrelação a outras formas – espetaculares ou teatrais – de vida social. Háum campo prático, que tem uma concentração nessa área artística. Parece-me que todas as Escolas têm uma concentração nessa área – corpo, voz,direção, interpretação. Há outros campos técnicos que, no caso da UFBA,infelizmente, não os temos formalizados, que são a cenotécnica, aluminotécnica e a sonoplastia, áreas importantes não apenas para que oaluno desempenhe essas atividades profissionalmente, mas para que eletenha ideia de que a realização teatral envolve esses elementos e que todosesses elementos são tão estelares quanto o trabalho do ator.

Acho importante que o aluno tenha também, ao longo de sua formação,a experiência técnica, cenotécnica, luminotécnica, etc., de acordo comsuas inclinações.

Há um terceiro aspecto que desejo abordar, que é o aspectoprofissionalizante, já que vimos falando muito de mercado, tema do

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primeiro dia deste Encontro. Eu diria que há cinco tipos de mercadopara o estudante universitário de teatro:

a. o mercado acadêmico, no qual estamos inseridos – professores,pesquisadores, etc.

b. o mercado artístico propriamente dito, no qual as pessoas trabalhamcomo ator, de teatro, televisão, cinema, propaganda;

c. o mercado da área educacional, mercado crescente na Bahia pelomenos, onde muitos alunos, ao se formarem, passam a trabalhar comoprofessores de 2º grau, na área de Educação Artística com Habilitaçãoem Teatro; muitos ex-alunos nossos mantêm hoje oficinas bem-sucedidas, algumas delas relativamente caras; além do mercado formaldo 2º grau da rede pública de ensino;

d. o mercado de animação, junto a órgãos como o SESC, o SESI, osCentros Sociais Urbanos, etc.

e. o mercado de administração e política cultural, que absorve muitaspessoas formadas na área de teatro e dança.

Na Bahia, temos o Bacharelado com Habilitações em Interpretação eDireção e a Licenciatura em Teatro. A Habilitação em Cenografia seráimplantada em 1993. A maioria de nossos alunos inscreve-se noBacharelado em Interpretação, seguindo-se o Bacharelado em Direçãoe, em número muito restrito, na Licenciatura em Teatro. Muitos dosformados em Interpretação e Direção acabam transformando-se emprofessores concorrentes de seus colegas formados com Licenciatura.Temos seis universidades, das quais cinco públicas (uma federal, quatroestaduais) e uma particular, católica, além de faculdades independentes.Essas universidades mantêm, em suas áreas de extensão, trabalhos queabsorvem eventualmente egressos da Escola de Teatro da UFBA.

Eu disse que a formação tem um lado teórico – a pesquisa e a história –e um lado prático – a formação artística, stricto sensu. Voltarei rapidamenteao exemplo norte-americano, porque sendo um mercadotradicionalmente tão organizado, com um mundo de show business tãoopulento e exuberante, os cursos de graduação e de pós-graduação de

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

suas universidades oferecem disciplinas como auditioning, que ensinamcomo fazer audição, como escrever um texto, como se relacionar comos empresários, como vender seu trabalho, como fazer entrevista, comose portar em público, etc.

Há uma grande quantidade de títulos disponíveis para o alunado comoMonólogos Contemporâneos para Homens, Diálogos para Dois

Homens, Diálogos para um Homem e uma Mulher, etc. há pelomenos algumas dezenas de títulos que nada mais são do que seleções demonólogos, diálogos curtos para audição, como vender seu trabalho,sobre a necessidade de ter-se ou não um agente. Tudo isso no curso, queé organizado em função do desempenho pessoal: desde a maneira devestir-se, até a maneira de portar-se ou de falar-se. Essa compreensão dauniversidade (no caso, a americana) como elemento profissionalizante émuito evidente e valorizada. No Brasil, a realidade é outra, mas pensoque caberia à Escola fornecer a seus alunos informações sobre as inúmerase variadas possibilidades de continuação de um trabalho artístico,acadêmico, de administração...

Quanto à finalização da graduação, acho que o pessoal da área de direçãoe de interpretação deve realmente realizar um trabalho prático. No casodos primeiros, uma montagem (última, porque ele já fez antes Direçãode Montagem I, Direção de Montagem II, Montagem Final, enfim, umasucessão de possibilidades de montagem de pequenas cenas, pequenostextos, até textos de importância maior); no caso dos atores, defendosua inclusão em montagens da Companhia da Escola, do Núcleo deTeatro para Adolescentes ou, como no último semestre, a montagem deum espetáculo para aqueles graduandos. Nos Estados Unidos issotambém tem uma importância muito grande: quando concluí o Mestrado,em 1983, éramos 10 alunos, dos quais cinco homens e cinco mulheres;montamos o texto Ciranda (La Ronde), de Arthur Schnitzler, que éum texto com 10 papéis, sendo cinco para homens e cinco para mulheres,perfeitamente equilibrados, solucionando um problema difícil, porquenem sempre os textos são tão disponíveis. O fato é que os alunos devemter sua prática, mas nem todos a terão na mesma medida.

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Ao lado do trabalho prático, acho também importante a redação de umtrabalho escrito, sob forma de um memorial, um documento onde oaluno registre o processo que o levou a escolher aquele texto teatral,como ele o abordou em sua montagem, como ensaiou os atores, enfim,um documento que permaneça na Escola, à disposição de outros alunos,no futuro. Esta prática não existe na UFBA e faz parte de minha proposta.

No que tange, finalmente, à pós-graduação, penso que não se poderiafechar a opção apenas em torno de um trabalho prático acompanhadode um memorial. Acho que um trabalho teórico (ainda que remetendo àprática), sob forma de uma dissertação ou uma tese, dentro dos cânonesacadêmicos é muito importante. Há temáticas que começam a serestudadas, em nível de pós-graduação no Brasil, em São Paulo e no Riode Janeiro, que não estão necessariamente associadas à realização de umespetáculo, a uma prática artística feita pelo mestrando ou pelodoutorando. Acho que o espaço da tese e da dissertação teórica deve serpreservado, mas sei que existem textos legais que permitem a ummestrando concluir o curso com um trabalho prático e um texto escritosobre esse trabalho. Mas, não temos conhecimento de nada realizadoefetivamente nesse sentido. Existe a possibilidade, mas não a prática.

Esta é minha proposta: que audições, entrevistas, trabalhos escritos ecurrículos sejam alternativamente, ou de maneira integrada, utilizadospara ingresso na Escola e que, em nível de pós-graduação, existam asduas possibilidades – ou apenas a dissertação/ tese, ou o trabalho artísticocom memorial.

Os debates de ontem e de anteontem me sugeriram alguns comentários,que deixei para realizar neste momento, o que farei muito brevemente,porque a temática central é mesmo a Habilitação Específica para

Ingresso em Escola de Teatro e para Conclusão de Pós-Graduação:

1. Verificamos que todos os cursos regulares de graduação em Teatrono Brasil estão nas escolas de universidades públicas e gratuitas, o quejustifica que, para sua própria preservação, algumas atividades de

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

extensão sejam pagas, gerando recursos para a realização de outrasatividades de extensão.

2. O teatro como atividade profissional regular, permanente, é fenômenode metrópole. Na província, existem teatros e grupos eventualmentesubvencionados, ou pelo Estado ou por uma ideologia política muitoforte de seus participantes. Nessa linha, pode-se citar o exemplo deGrotowski, em Pontedera, na Itália, subvencionado pelo GovernoItaliano, pela Municipalidade de Pontedera, pelo Instituto Internacionalde Teatro dirigido por Peter Brook, com sede em Paris, por algunsGovernos europeus que injetam recursos em seu trabalho. A subvençãodo grupo chega a tal ponto que o próprio Grotowski disse em Paris,em 1990, em um encontro com pessoas de teatro, que não sabe maisse faz teatro, porque ele não tem público! Porque ele faz um trabalhocom atores, em nível internacional, não resultando em espetáculo. Eleconvida eventualmente, representantes das instituições que o financiam,ou que escrevem sobre o trabalho que ele desenvolve e, assim, três ouquatro pessoas assistem ao que ele realiza – na época eram rituaisdramáticos de performance baseados na mitologia ioruba brasileira ecubana.

Eugenio Barba, que mantém a Escola Internacional do TeatroAntropológico, em Holstebro, na Dinamarca, também é mantido comrecursos do Governo dinamarquês e de instituições internacionais quepossibilitam a publicação de livros e a realização de oficinas. Seu trabalho,porém, apesar da projeção internacional, é um trabalho de provínciasubvencionado.

A atividade teatral profissional, regular e permanente é uma atividade demetrópole. Então, em termos de mercado, há este mercado profissional,permanente – faço questão de repetir os adjetivos, porque não podemosdizer que o teatro feito em Salvador, por exemplo, que é um pequenopolo regional, uma província, não seja também profissional; mas, comoatividade regular e permanente, quem faz teatro profissional na Bahiaprecisa, evidentemente, circular na metrópole representada pelo eixo Rio/

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São Paulo, que é onde existe realmente, apesar do alto índice dedesemprego, uma atividade regular permanente.

Nos Estados Unidos também, os dados estatísticos para o pessoalsindicalizado de teatro são assombrosos: menos de 10% das pessoassindicalizadas estão em atividade; mais de 90% conhecem o desempregopermanente ou eventual, também nos Estados Unidos da América doNorte.

Quanto à questão da câmera, no caso da Universidade de Minnesota,eles tinham a TV Educativa local; no caso brasileiro, há algumasUniversidades que contam também com um canal de TV Educativa.Nós tivemos oportunidade de realizar comerciais, filmes industriais eteatro para televisão. Nos Estados Unidos, tivemos ocasião de trabalharcomo ator, mas também de operar a câmera, de operar a mesa deedição. Tínhamos uma visão do mecanismo e de seu funcionamento.Nossas universidades brasileiras não têm essa estrutura. Na Bahia, hoje,são moda os cursos de interpretação para câmera, feitos com umequipamento de vídeo e uma televisão, e é tudo. Estes cursos não formam,absolutamente, uma pessoa para a câmera! Estamos tentando desenvolvercom a TVE local, que é do Estado, um projeto para a realização de umcurso de interpretação para câmera, exatamente, com a participação depessoas que trabalham nessa área, como Tizuka Yamazaki, por exemplo.Acho importante, porque este mercado de comerciais é florescente naBahia.

A última observação refere-se à questão da escola eclética e da escola deuma só técnica. Acho que o debate entre essas escolas depende, na verdade,da existência de um grupo de professores atuando nelas. EduardoMontagnari, como nós vimos ontem, é o único professor e diretor deteatro universitário em Maringá. Por isso, talvez, sua experiência nortearáa técnica passada para os estudantes – os atores – que trabalham comele. É impossível, também, existir uma escola eclética que forneça todasas técnicas para a formação do ator. A escola dependerá, obviamente,das apetências e competências – que vêm juntas – dos professores que

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

atuam em uma determinada unidade. Isto poderá criar um elementodiferenciador de uma para outra escola, a partir exatamente dosprofessores, e não de uma análise do contexto cultural e de uma pré-determinação de linha de trabalho para a escola, o que representaria umaintervenção intelectual e não levaria em conta as habilidades, as apetências,que são causa da competência dos professores dessas escolas.

Considero que a temática Habilitação Específica para Ingresso de

teatro e para Conclusão de Pós-Graduação está dentro da perspectiva“trajetiva” que coloquei no início, e que estas considerações laterais sãoapenas manifestação de meu contentamento de estar presente nesteEncontro e desejar que ele seja repetido e efetivado de maneira tãopermanente quanto possível.

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Resumo:

O profissional de teatro deve ser estimulado de todo modo a pesquisar a tradiçãoteatral de sua própria cultura. O artigo oferece uma singela contribuição ao estudantede teatro no Brasil: a utilização de textos de autores brasileiros em aulas deinterpretação. Foram selecionados seis dramaturgos que têm influenciadofortemente o moderno teatro do Brasil: Martins Pena, Arthur de Azevedo, Oswaldde Andrade, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade e Ariano Suassuna. De um totalde quinze peças desses autores foram selecionadas noventa cenas. Apenas diálogosforam escolhidos, por representarem a unidade essencial do teatro: dois atores; esempre diálogos, cômicos ou dramáticos, que introduzem, esclarecem e/ ouresolvem conflitos, constituindo-se assim numa unidade teatral. A proposta éoferecer aos alunos, no início do curso, essa relação de cenas, para que eles escolhamaquelas que mais lhes motivem para trabalho em aula. Um exemplo referente acada um dos dramaturgos é estudado no artigo, inclusive com a indicação deexercícios específicos para trabalho durante a preparação das cenas.

Palavras-Chaves: Dramaturgia. Interpretação Teatral.

Num curso de interpretação teatral para estudantes brasileiros doisinteresses complementares são de grande importância: a história e adramaturgia do teatro brasileiro. Na verdade, uma parte (ou fase) de umcurso de interpretação pode ser centrada nos referenciais históricos edramatúrgicos do teatro no Brasil. Por isso propõe-se um cursocomplementar (ou parte, ou fase de um curso) de interpretação queutilize textos de autores brasileiros, como material de estudo e exercício.O instrutor se encarregaria de apresentar aos alunos uma série de opções,com a indicação de autores representativos de diversos períodos históricos

Dramaturgia brasileira em aulas de interpretação1

* Publicado originalmente in: Art: Revista da Escola de Música e Artes Cênicas,Salvador, n.11, p. 45-94, 1984.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

e de diferentes estilos, como fonte referencial para a escolha de cenas aserem trabalhadas em aula.

Para operacionalizar a proposta há que se definir critérios para a seleção:cenas que envolvam apenas dois atores (a unidade teatral básica comoconfirma a tradição ibérica: dois atores, um tablado), que possam funcionarcomo unidade teatral, onde um conflito ou tema seja explicitado e/ouresolvido, permitindo aos atores-estudantes o exercício prático dainterpretação. A partir dessa indicação o instrutor selecionaria diálogosem todas as possíveis combinações: para dois atores, duas atrizes, umaatriz / um ator; para sua lista de opções. A título de exemplo, seis autoresforam mais ou menos arbitrariamente escolhidos e deles noventa cenasselecionadas. Não foram escolhidos autores que surgiram nos últimosvinte e cinco anos. Na verdade, o ano-limite estabelecido mais ou menosarbitrariamente foi 1959, quando o Teatro de Arena organiza o Semináriode Dramaturgia Brasileira em São Paulo, assinalando o surgimento denova fase na dramaturgia do Brasil, tanto em termos quantitativos comoqualitativos. Os autores selecionados foram: Martins Pena, Artur Azevedo,Oswald de Andrade, e Ariano Suassuna. No presente trabalho uma cenade peças de cada um deles será estudada e receberá indicações deexercícios específicos.

Até 1838, a dramaturgia brasileira restringe-se a simples repetições demodelos e temas europeus. O fervor nacionalista da então recém-proclamada Independência (em 1822), aliado ao surgimento das classesmédias urbanas nos grandes centros, particularmente na corte imperialdo Rio de Janeiro, favorece a criação de um teatro brasileiro. Em 1838,a companhia do ator João Caetano, a primeira estrela nacional na melhortradição romântica, produz “a primeira tragédia brasileira” Antônio Joséou o Poeta e a Inquisição, e a comédia de costumes O Juiz de Paz naRoça, de Martins Pena.1

1 MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: Difusão Europeiado Livro, 1962. p. 34.

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Gonçalves de Magalhães é um bom exemplo de que não bastam oconhecimento e a intenção para a criação de uma grande obra de arte.Um marco histórico mais que artístico, sua tragédia é uma fantasiaromântica sobre o dramaturgo Antônio José da Silva (1705-1739,cognominado o Judeu), que embora brasileiro do Rio de Janeiro, viveuem Lisboa a maior parte de sua vida, aí sendo queimado num auto-de-fé da Inquisição. Num contexto dramático onde o amor provoca umadisputa entre o teatro (o poeta) e a religião (o padre), a tragédia condenaFrei Gil, o Perseguidor, ao arrependimento; Mariana, a atriz, motivo, dadisputa é condenada à morte natural – de desgosto –; e o herói, AntônioJosé, à glorificação – como vítima da injustiça, do ciúme, do poder e dofanatismo. Irmanados pelo sofrimento e pelo estoicismo, todossobrevivem na eternidade, absolvidos pela moralidade cristã. Escrita emversos decassílabos, a peça revela a consciência histórica do autor: usandomaterial da história do teatro brasileiro (e português), ele protesta contratodas as injustiças e propõe a criação de um teatro nacional. No dizer docrítico Sábato Magaldi (1962): “O espírito crítico não bastou para fazerde Gonçalves de Magalhães um bom dramaturgo. Impediu, porém, queele se derramasse no dramalhão.”2

Um elo de transição entre a escola antiga e o romantismo, a obra deGonçalves de Magalhães alcançou grande êxito na estreia, “pela uniãofeliz do texto ao desempenho da companhia de João Caetano, dirigindo-se a uma plateia que estava psicologicamente a esperar o acontecimento”3

No prefácio de sua peça, Magalhães afirmava:

Ou fosse pela escolha de um assunto nacional, ou pela novidade dadeclamação e reforma da arte dramática (substituindo a monotoniacantilena com que os cantores recitavam seus papéis, pelo novométodo natural e expressivo, até então desconhecido entre nós), opúblico mostrou-se atencioso e recompensou as fadigas do poeta.4

2 MAGALDI, 1962, p. 39.3 Id., Ibid., p. 34.4 Id., Ibid., p. 40.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Sem o alarde publicitário e a pretensão histórica da tragédia de Magalhães,a comédia “O Juiz de paz na Roça”, de Martins Pena, estrearia poucodepois, ainda em 1838, pela mesma companhia, mas sem contar com apresença do astro João Caetano em seu elenco. A peça, curta, popular edespretensiosa, era destinada a complementar o programa de uma noiteteatral – aliviando o público das tensões e dores da tragédia ou do drama,apresentado como atração principal. Enfim, a comédia apenas compunhaum programa. “Começava aí, porém, uma carreira curta e fecundaMartins Pena escreveu – dos 22 aos 33 anos de idade, quando morreu –20 comédias e 6 dramas, o verdadeiro teatro nacional, naquilo que eletem de mais específico e autêntico.”5

A grande importância de Martins Pena reside no fato de que ele criou acomédia de costumes brasileira, “filão rico e responsável pela maioriadas obras felizes que realmente contam na literatura brasileira.”6

Naturalmente, suas peças representam o primeiro material a ser utilizadono curso de interpretação teatral aqui proposto.

Das vinte comédias conhecidas, de Martins Pena, sete foram escolhidas(de acordo com a indicação crítica de vários autores) como representativasdos vários moldes cômicos e farsescos de sua obra. Desde peças curtasde um ato até obras maiores de três atos. São comédias de costume queabrangem um espectro da vida do país nas décadas de 1830 e 1840: OJuiz de Paz na Roça, O Judas em Sábado de Aleluia, Os Três Médicos, O Noviço, OCigano, O Caixeiro da Taverna e As Casadas Solteiras. Trinta e dois diálogosforam selecionados dessas sete peças de referência. De todas, a maiseditada e, certamente, também, uma das mais representadas, é O Noviço– escrita e produzida pela primeira vez em 1845. É de O Noviço o diálogoa ser utilizado como exemplo do trabalho a ser desenvolvido no curso.

O diálogo extraído de O Noviço corresponde ao conjunto das cenas I e IIdo primeiro Ato. Trata-se de um curto monólogo de Ambrósio, o pai,e de um diálogo seu com Florência, sua mulher. É uma cena de exposição

5 Id., Ibid., p. 40.6 MAGALDI, 1962, p. 44.

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breve e simples em linguagem coloquial. Um excelente exercício paraatores. Sem maiores pretensões românticas, a cena usa recursos dacomédia crítica de tipos sociais, da sátira cômica, na linha de Aristófanes.Os tipos são uma viúva rica com dois filhos e um oportunista que comela se casa. Apesar de tratar-se mais de uma comédia de situação do quede caracteres, O Noviço, nessa cena, apresenta dois tipos ricos quanto àspossibilidades de interpretação, porque cheios de contradições econtrastes. São personagens próximos da realidade social e mítica daatualidade. É um exemplo preciso da melhor tradição da comédia.Segundo Sábato Magaldi: “De Aristófanes, Martins Pena guarda a sátiramordaz aos temas vivos do presente – a crítica às instituições e seusrepresentantes. Em Molière, inspira-se para pintar os tipos de sua galeria.”7

A ação do diálogo acontece numa sala “ricamente adornada” daresidência do casal. Ambrósio, sozinho, semivestido para ir a uma festareligiosa, remói sua culpa num solilóquio. Discute os meios que usou epretende usar para amealhar fortuna, justificando-se por sua própriariqueza ilícita: “As leis criminais fizeram-se para os pobres.” Ele acalmasua culpa interna com um perdão externo. No diálogo com Florênciaele age no sentido de preservar sua fortuna, mentindo e convencendo asua mulher (e a si próprio) da conveniência de mandar-se os dois filhospara a vida de convento, retendo assim os respectivos dotes e despesasde prováveis casamentos para o casal. Florência, por seu turno, tambémmente e tenta se convencer do acerto de sua decisão. Ela demonstraenergia e praticidade na realização de seus planos. Por outro lado, elaprocura convencer o marido de que apenas está a seguir seus propósitose vontades, usando o preconceito da submissão feminina para fazer vencersua própria vontade pessoal. Esses dois tipos representam uma sátira àsnovas classes médias que estavam então a se formar e a seus estratagemaspara enriquecer.8

7 PENA, Martins. “O Noviço”. In: _______ . Comédias de Martins Pena. Rio deJaneiro: Edições de Ouro, 1978. p. 303 - 305.

8 COHEN, Robert. Acting Power. Palo Alto: Mayfield Publishing Company, 1978. p.140.

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Sugere-se abordar essa cena, primeiro como uma leitura de compreensão e,depois, com um questionamento sobre estilo e caracterização. A leitura decompreensão consiste em ler-se o texto pela primeira vez em sala: a ideia éprocurar o sentido e a verdade de cada parte do texto possível de serrepetida sem olhar-se o texto da peça. À medida que se lê o diálogo,cada ator dirá uma sentença, frase, ou pequeno trecho, do texto, na medidaem que possa dizê-lo sem recorrer de novo ao que acabou de ler ememorizar. Trata-se de uma leitura direta procurando-se transmitir ao(à) companheiro(a) de cena o significado (um significado) do texto.Atenção, concentração e interação são fundamentais para a realizaçãodesse exercício, o qual poderá ser repetido mais de duas vezes – se assimse fizer necessário. A comunicação não-verbal do (da) parceiro(a) receptoré componente indispensável ao jogo. Comunicar que está recebendo amensagem do (da) personagem (ator - atriz) emissor. Após o exercícioda leitura de compreensão sugere-se o questionamento sobre caracterização e estilo.

Os (as) estudantes que estiverem trabalhando com Ambrósio e Florênciadeverão se questionar, juntamente com o instrutor, sobre os personagense seu estilo. Um guia nessa tarefa poderá ser o teatrólogo Robert Cohen,que afirma: “caracterização é a medida de como o personagem individualdifere dos outros personagens; e estilo é a medida de como eles se parecementre si.” Assim, o estudante deverá iniciar um questionamento pessoalsobre caracterização e outro questionamento grupal sobre estilo. Propõe-se concentrar a atenção, primeiro, nas questões gerais do grupo depersonagens. Quem são? Como agem? Como se comportam? Qual seuestilo?9

Cohen considera “estilo” simplesmente como as características decomportamento compartilhadas pelos personagens da peça. No caso, aação passa-se no Rio de Janeiro, então capital imperial. Uma famíliaabastada, criados, funcionários, soldados e padres, além de uma mulherda província, Rosa, esposa abandonada por Ambrósio, que a trocarapor Florência. Não se propõe uma reconstituição do “estilo da corte

9 COHEN, 1978, p. 142.

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dos primeiros anos do reinado do imperador D. Pedro II, mas umapesquisa pictórica (móveis, artes plásticas) e bibliográfica sobre aqueleperíodo histórico, para servir como referência do estilo dos personagens,contribuindo para a unidade do espetáculo (da cena), e instrumentandoos atores para tanto. Cohen afirma que estilo é útil, necessário e tático,justificando-se com o exemplo de uma pessoa que chega a um paísestrangeiro sozinha e que para satisfazer suas necessidades básicas precisaadotar de alguma maneira o estilo do país, que, se pertencer a um grupolinguístico ou mesmo a uma língua diferente da sua própria língua ougrupo linguístico, possuirá um estilo também diferente. Para comunicar-se e mesmo para sobreviver a pessoa precisará aprender o novo estilo,porque útil, necessário e tático. Detalhando a questão de estilo, o autorde Acting Power afirma ainda que num mesmo grupo cultural, quecompartilhe o mesmo idioma, a variedade de estilos também existirá,correspondendo aos diversos grupos sociais, profissionais, comunitários,familiares, escolares, religiosos, artísticos, etc.10

A pesquisa revelará que as décadas de 1830 e 1840 foram décadas degrandes transformações no império brasileiro, que naturalmenterepercutiram particularmente na corte instalada no Rio de Janeiro ePetrópolis (onde transcorre a ação da peça), com sua economia baseadano tráfico de escravos e nas lavouras escravistas do café, açúcar e algodão,o Brasil vivia uma dependência econômica da Inglaterra – ao mesmotempo em que conflitos econômicos e políticos, principalmente em tornodo tráfico escravo. As tensões diplomáticas começaram em 1810. Em1842, o Brasil iniciava o seu protecionismo alfandegário prejudicandosobremaneira o comércio inglês. A Inglaterra de certa maneira reagiucom a criação da Bill Aberdeen, em 1845, proibindo o tráfico escravono Atlântico Sul (que era então a base econômica do império). Orelacionamento difícil tornou-se agressivo, somente recuperando oequilíbrio vinte anos mais tarde.11

10 BURNS, E. Bradford. Latin América: a concise interpretive history. EnglewoodCliffs: Prentice-Hall, 1982. p. 71.

11 BURNS, 1982, p. 122.

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O Noviço estreou dois dias depois do Bill Aberdeen, no dia 10 de agostode 1845. O período foi também marcado pelas revoltas nas províncias:a Cabanagem, no Pará de 1835 a 36; a revolta dos Malês, na Bahia em1835; a Sabinada, também na Bahia de 1837 a 38; a Balaiada, no Maranhãode 1838 a 1841; a guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul e SantaCatarina de 1838 a 1845; e os levantes liberais em Minas Gerais e SãoPaulo em 1842. O exército nacional praticamente se formou e cresceunesse período fortalecendo o centralismo do poder imperial. Em 1840,iniciava-se o reinado do então muito jovem monarca D. Pedro II, queseria longo e que veria as campanhas militares na região do Prata, uminício de industrialização, a chegada de imigrantes para a lavoura emsubstituição ao trabalho escravo negro, e ao fim do próprio império,com a proclamação da república em 1889.12 Essa pesquisa históricadeverá ser aprofundada e acompanhada de uma pesquisa pictórica edocumental de quadros, mapas, desenhos, retratos, reproduções, mobílias,utensílios, escrituras, testamentos, contratos, monumentos, diários e relatosde viagens, ensaios, artigos, etc, o que for disponível e efetivamente viávelde ser estudado no local da realização do curso. Museus, bibliotecas eoutros locais públicos e privados deverão ser visitados nessa pesquisa,que responderá às perguntas básicas sobre indumentária, hábitos, relaçõessociais, etiqueta, música, literatura, artes plásticas, danças sociais, higiene,etc. A imaginação e a criatividade dos estudantes que trabalharão a cenaserão assim estimuladas para a realização teatral.

O segundo autor a ser abordado é Artur Azevedo (1855-1908),considerado um grande animador do teatro brasileiro, durante as décadasde 1880, 1890 e 1900. O Brasil nesse período passou por profundasmudanças institucionais, com a abolição da escravatura (1888), aproclamação da República (1889), a separação do Estado da Igreja(1890), um novo e mais forte impulso de industrialização, com umsuporte intelectual positivista para entender, organizar e progredir o país,modernizando-o para o século XX. Prosperidade econômica, crescimento

12 Id., Ibid., p. 128.

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no mercado internacional e adaptação dos gostos culturais de Paris e daEuropa ao Brasil, além de um rápido processo de urbanização, assinalamo período.13

O primeiro impulso do teatro nacional foi romântico, a década de 1850foi a da introdução do realismo francês. Em 1856, quatro anos após suaestreia em Paris, A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas, filho, foiapresentada no Ginásio do Rio de Janeiro. Uma tateante busca demétodos equivalentes na montagem, cenografia e indumentária, valeriaao novo teatro o epíteto de “dramas de casaca”, posto que o guarda-roupa fantasioso do antigo repertório foi substituído nesses dramas“modernos”. Em 1884, com pretensões naturalistas, Aloísio de Azevedo(1857-1913) adapta os romances O Mulato e Filomena Borges para o teatro.Em 1895, Ibsen era montado no Brasil por uma companhia italiana. Noentanto, o que marca profundamente o teatro brasileiro até o fim doséculo é o ressurgimento da comédia de costumes (com o último surtoromântico das décadas de 1860, 70 e 80) e, principalmente, o florescimentodo teatro de revistas, cujo sucesso e apelo popular continuariam nasprimeiras décadas do novo século.14

A primeira companhia francesa de operetas apresentou-se no Rio comtremendo sucesso já em 1846. O gosto por esse tipo de teatro musicadoocasionaria, em 1859, uma resposta brasileira, a revista As Surpresas doSenhor José da Piedade, de autoria discutível. No entanto, não se discute queo “gênero ligeiro”, a revista e suas variantes dominariam fortemente oteatro brasileiro até o fim do século e a deflagração da Primeira GrandeGuerra, em 1914, superando em popularidade todas as demais formasteatrais do drama, do melodrama e da comédia. É nesse panorama quese destaca Artur Azevedo.15

13 ARAÚJO, Nelson de. História do Teatro. Salvador: Fundação Cultural do Estadoda Bahia, 1978. p. 320.

14 Id., Ibid., p. 185.15 Id., Ibid., p. 186.16 BURNS, 1982, p. 149.

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No dizer do crítico Sábato Magaldi: “A opereta, o cancã, a ópera-bufa –tudo o que fazia a delícia da vida noturna parisiense – nacionalizou-se deimediato num Rio ávido de alegria e de boemia, que abandonava oscostumes provincianos.” O crítico atribui ainda “à falta de estímulo dopúblico” o quase desaparecimento do teatro no Brasil em fins do séculopassado. É importante notar, no entanto, que formas de teatro populare religioso continuavam a existir nas províncias e até mesmo a seremaceitas nos teatros das principais capitais do país (um bom exemplo é acomédia em um ato Uma Véspera de Reis de Artur Azevedo, representadapela primeira vez na Bahia em 1875, com material de bailes pastoris eranchos de reis da cultura popular do nordeste).16

Em 1890, o café atinge 61,5% do total das exportações brasileiras e oestado de São Paulo recebe 40% do total de imigrantes atraídos para oBrasil pela prosperidade e estabilidade política. A Guerra contra o Paraguai(1864-1970), em proporções de violência, se seguiria a Guerra deCanudos, do governo central contra o grupo religioso de AntonioConselheiro (1893-1897). Mas o índice de conflitos da América espanholanão seria igualado pelo Brasil. Assim como a Argentina e o Chile, oBrasil vivia um período de modernização em suas capitais e,ideologicamente, de “ordem e progresso”, de acordo com o lemapositivista em voga e que seria incorporado à própria bandeira nacionalda república brasileira.17

Artur Azevedo representa as novas classes médias urbanas, responsáveis(e consequência) da modernização do estado brasileiro. Ele é a únicareferência a dramaturgo brasileiro na Enciclopédia Ilustrada do Teatro Mundial,editada em 1969 pela Friedrich Verlag, de Hannover, Alemanha, onde édescrito como jornalista, poeta, contista, tradutor e dramaturgo.18 Herdeirodireto de Martins Pena, segundo Magaldi, Artur Azevedo foi tambémdiretor de cena além de ter escrito dezenas de peças, mesmo que poucas

17 ILUSTRATED Encyclopedia of World Theatre. London: Thames and Hudson, 1977.p. 26.

18 MAGALDI, 1962, p. 142.

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“ainda representáveis”. O dramaturgo maranhense, que começara aescrever aos nove anos de idade, deixou duas burletas, A Capital Federale O Mambembe, que “estão entre as obras-primas de nossa dramaturgia –resumo feliz das características de uma época.” Embora o período sejaainda marcado teatralmente pela presença de França Júnior (1838-1890),escritor nos moldes de Azevedo, e Qorpo Santo (1829-1893), umprecursor isolado do teatro contemporâneo; Artur Azevedo pode serconsiderado a maior presença individual na dramaturgia do período,mesmo considerando-se a incursão que poetas e romancistas consagradosfizeram pelo drama. Trabalhando sozinho, como autor, ou com outros,como coautor, estimulador e participante de muitas montagens no teatrocarioca, Azevedo marcou o período e é uma das marcas do próprioteatro brasileiro.19

O diálogo escolhido como exemplo para o trabalho em sala de aulacom exercícios de interpretação é de A Capital Federal. Editada em 1897,como uma comédia-opereta de costumes brasileiros, A Capital Federalfoi escrita em três atos e doze quadros, por Artur Azevedo, com músicade Nicolino Milano, Assis Pacheco e Luiz Moreira. O diálogo correspondeàs cenas V e VI do quadro VIII, ato 3, entre Duquinha, o jovem admiradore Lola, a artista espanhola cortejada com presentes devido seus dotesfísicos e artísticos, mas principalmente devido sua encantadora presençae modernidade.20

O jovem intelectual de família rica representa a geração que usufruiu aeducação acadêmica com o conhecimento das modas artísticas europeias(Duquinha é um poeta decadentista) e que usa sua poesia (não muitoeficazmente, aliás) para conquistar a bela Lola. Esta, representante doespírito de alegria, urbanidade, frivolidade e luxo do fim do século, usasua beleza e poder de sedução para conseguir as joias e adornos de que

19 AZEVEDO, Arthur de. A Capital Federal. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes,1965. p. 136 - 141.

20 COHEN, 1978, p. 54.

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tanto gosta. Uma boa maneira de abordar essa cena pode ser a utilizaçãode exercícios propostos por Robert Cohen, específicos para oenriquecimento da comunicação-relacionamento, à qual ele denomina relacom(do inglês relationship-communication). Embora uma leitura de compreensão eum questionamento sobre caracterização e estilo também possam (e até devam)ser utilizados pelos estudantes que trabalham com Lola e Duquinha, emsala os exercícios enfatizados serão os de relacom de Cohen.

Subtexto, um termo desenvolvido por Stanislavski, é essencialmenteum termo literário que se refere ao “real” sentido da “fala” dopersonagem, do real sentido do texto escrito para ser interpretado,“representando.” Mas como definir o jogo dramático dos personagens,quando estes se relacionam em um nível mais profundo, menos verbale menos consciente, ainda que comum no dia a dia da realidade? Quandoa comunicação é decorrente de um desejo de definir a relação do outropara consigo? Cohen afirma que esse tipo de comunicação é o maisimportante nas interações cotidianas, mesmo quando o contato verbalé trivial. Ele se refere às “comunicações carinhosas”, aos cumprimentose questões do dia a dia, tais como “Como vai você?”, “Bonito dia,hein?” que, inconscientemente, são sondagens sobre as outras pessoas.Um teste para saber como será seu relacionamento naquele dia, mais,ainda, uma tentativa de criar-se um ambiente agradável. Na verdade,todas as mensagens seriam, quando vistas num nível mais abstrato,mensagens de validação, tentativas de validação de quem as emitiu.“Naturalmente, essa procura de validação, ou de amor, respeito,admiração, ou confiança, não é uma comunicação claramente conscientee deliberada.”21

Para melhor explicar esse tipo de comunicação, a relacom, propõe-se aprática do exercício A Cena sem Assunto:

Memorizar com um(a) parceiro(a), o seguinte diálogo:

21 COHEN, 1978, p. 55-56.

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A: Oi.B: Olá.A: Qu’e que ‘cê fez ontem à noite?B: Ah… nada. E você?A: Ah… Vi um pouco de TV.B: Alguma coisa boa?A: Não, nada interessante.B: Tchau.A: Ok.Ensaie o diálogo como se estivesse ocorrendo nas seguintescircunstâncias:1. Uma paquera.2. Marido e mulher, encontrando-se à noite, após a audiência

de separação do casal.3. Pai e filha, no café da manha, após ela ter ficado fora até

tarde.4. Duas estudantes adolescentes, que suspeitam estarem

namorando o mesmo rapaz.5. Uma tentativa de caçada homossexual.6. O fim de uma amizade.7. Amantes com pouco tempo para se encontrarem.8. Qualquer das alternativas acima, como se pelo telefone.22

Quando o exercício é realizado, fica claro que o aspecto dodiálogo que é realmente significativo (significante) é a relacom, o tipo decomunicação-relacionamento que se estabelece entre os personagens emdada circunstância. A relacom se transforma de fato na cena “toda”, semmudar-se uma linha do texto. Fica ainda claro que uma cena com poucoassunto contido nas falas pode ser altamente efetiva teatralmente,prendendo e atraindo a atenção do espectador, quando uma forte relacomé estabelecida pelos atores.

22 COHEN, 1978, p. 56-58.

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O exercício seguinte, denominado vitórias de relacom, deverá usar o própriotexto do diálogo de Duquinha e Lola, aplicando-se a ele alguns princípiosde relacom. Cohen afirma: situações tornam-se dinâmicas quando umavitória é perseguida. E completa: “Vencer na vida, ou no palco, nãosignifica necessariamente fazer a outra pessoa perder; significasimplesmente se conseguir a realização de alguns objetivos pessoais.”Esses objetivos seriam sempre derivados dos instintos humanos básicos:sobrevivência, amor, felicidade e confirmação (ou validação). O serhumano age, às vezes efetivamente, às vezes não, para atingir objetivosespecíficos que são derivados de seus instintos básicos (comer, agasalhar-se, etc.). Assim, para Cohen, o trabalho do ator é descobrir que tipo devitória pode ser desejada pelo personagem, que tipo de melhoriasituacional pode ser procurada, que tipo de vitória pode ser perseguida,e procurar fazer do outro personagem “aquele personagem” que facilitarásua vitória. O teatrólogo americano apresenta uma extensa lista desses“personagens”, de possíveis “papéis” que poderão ser escolhidos porum(a) ator (atriz) para definir seu desejo em relacom ao outro personagempara conquistar sua vitória. Alguns exemplos que poderão servir comolista básica para a realização do exercício de vitórias de relacom: aprendiz,devedor, colega, torturador, imitador, pateta, pacificador, defensor,enfermeiro, inspirador, doutor, admirador, vítima, anjo, amante, bobo,puta, gigolô, líder, soldado, criança, boneco, historiador, salvador, crítico,pastor, irmão, pai, filho, camarada, rival, deus, confidente, adorador,matador, executor, professor, canibal, estuprador, patrão, fada, brinquedo.O exercício consiste em selecionar-se desta lista um ou mais papéis paraa aplicação no trabalho com a cena, em sala. Cada um dos estudantesfará a sua seleção e usará um, dois, três, ou mesmo ainda mais (de acordocom o desenvolvimento do exercício em sala, do critério do instrutor edo interesse dos alunos) dos papéis dessa lista e tentará atribuí-lo (s) aooutro personagem. Este exercício pode se desdobrar numa série deoutros exercícios de combinação.23

23 MAGALDI, 1962, p. 178.

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Por exemplo, da lista apresentada, o ator que fizer Duquinha poderiaescolher para atribuir a Lola: inspiradora, musa, amante, fada. A atrizque fizer Lola escolheria para Duquinha: bobo, admirador, boneco,adorador. Assim, a cena poderia ser trabalhada num número decombinações múltiplo de quatro ou ainda mesmo sem limites. Paratrabalho em aula poderiam ser escolhidos, por exemplo, quatro parespara trabalho como referência: admirador-inspiradora, bobo-fada,boneco-amante e adorador-musa.

O terceiro autor referido nesse trabalho é Oswald de Andrade (1890-1954), que, diferentemente de Martins Pena e Artur Azevedo, não foidiretamente um homem de teatro. Dedicado mais à poesia, memória eprosa diversa, Oswald foi um líder intelectual que também escreveu parateatro. Suas três peças completas em português assinalam uma mudançana qualidade literária da dramaturgia brasileira. Embora só fossemproduzidos a partir dos anos 60, esses textos representam um momentocultural da maior importância para a cultura e, particularmente, para oteatro brasileiro.

Artur Azevedo, criticado por sua total adesão à revista, defende-seafirmando que quando fez teatro sério só recebeu críticas e que, já como ligeiro, fez sucesso. Nas duas primeiras décadas do século XX, e mesmodurante o período entre as grandes guerras, a situação de favorecimentopúblico da revista não se alterou muito. É a comédia de costumes decunho regionalista que floresce em São Paulo e na Bahia. É a revista e asvariantes musicais do teatro de costumes que brilham, tanto na capitalquanto nas províncias. O melhor do teatro brasileiro do período não é oteatro sério, definitivamente. Romântico de nascimento, realista poracidente, o teatro nacional passaria praticamente ao largo das principaistendências europeias, do Simbolismo ao Impressionismo, pelo menosaté a segunda Grande Guerra. Apesar de, em 1903, André Antoine tertrazido sua companhia, o Théâtre Libre, ao Rio de Janeiro e apesar aindada visita constante de companhias europeias (fluxo que só seriainterrompido durante a primeira Grande Guerra), o teatro de sucessopopular no Brasil era bem diferente do teatro inquieto das vanguardas

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estrangeiras.24 As vanguardas brasileiras – só com a vinda de artistaseuropeus que fugiam do fascismo, do nazismo e da guerra – ousaramenfatizar a unidade do espetáculo e a melhoria do texto teatral duranteos anos 40. Os anos 50 veriam a redescoberta do ator, enquanto os anos60 veriam um salto qualitativo no teatro brasileiro, em todos os níveis.Uma das raízes culturais dessa evolução remonta à Semana de ArteModerna de 1922

Realizada em São Paulo, a Semana de Arte Moderna estava destinada arepresentar um marco definitivo na história da cultura brasileira. Comuma proposta “antropofágica”, os “modernos” se posicionaram peranteos valores nacionais, bem como perante as novas correntes artísticaseuropeias, ao tempo em que, com muito vigor e criatividade,redescobriam o Brasil. Sua proposta levava em conta a dinâmica dacultura, suas mudanças e combinações, e visava à redefinição da artebrasileira no contexto internacional em que essa se inseria, por força dastransações comerciais e financeiras. A Semana foi uma revolução na poesia,nas artes plásticas, na música, na literatura. O teatro, no entanto, não seriaincluído diretamente em sua programação. Salvo por acontecimentosisolados e sem maiores repercussões, o teatro passou ao largo dessemovimento modernista. Entre aqueles acontecimentos está a obra teatralde Oswald de Andrade.

Um dos promotores da Semana de Arte Moderna de 1922 e um deseus maiores animadores, Oswald escreveu O Rei da Vela, em 1933. Suaprimeira montagem completa num palco se tornaria um sucesso com aprodução do Teatro Oficina de São Paulo – em 1967 – e marcariateatralmente o movimento Tropicalista, que também envolveu música,cinema e literatura (além de artes plásticas), e que de certa forma retomavao caminho aberto pelos modernistas. Oswald de Andrade foi referênciaconstante e agradecida no trabalho dos tropicalistas. O Homem e o Cavalo

24 BRITO, Mário da Silva. Oswald de Andrade: Teatrólogo. In: ______ . Obras

Completas de Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,1973. v.8, p. I e II.

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foi publicado em 1934. O Rei da Vela seria publicado em 1937, juntamentecom A Morta. Esta e O Homem e o Cavalo só seriam produzidos após1979 com a abertura da censura no Brasil. No entanto, é O Rei da Velasua peça mais famosa e certamente mais produzida. É dessa peça a cenaselecionada de Oswald de Andrade para exemplo.

O Rei da Vela registra as mudanças que ocorreram no Brasil por volta de1930. É o fim do domínio absoluto do café na economia nacional, ofim da República Velha e o início de um novo ímpeto das classes médias,da urbanização, da industrialização e do próprio exército. Getúlio Vargase os jovens tenentes comandaram a Revolução de 30, que mudaria a facedo Brasil. Afirma Mário da Silva Brito:

O comediógrafo focaliza a decadência da economia cafeeira, osdramas da incipiente indústria nacional sem mercado interno, a lutade classes e dentro das classes no poder: a burguesia industrial,vinda da agiotagem, deixando-se envolver e se absorver peloimperialismo norte-americano para assim conservar suas regalias.25

Risonha e contundente crítica social e de costumes, essa peça ofereceuma visão panorâmica do período e representa a destruição de todo oconvencionalismo teatral do passado. O crítico Sábato Magaldi afirma:“O Rei da Vela, sob certos aspectos, liga-se mais aos dados concretos deum teatro realista. [...] Mas a hipérbole imaginativa do autor, que temmuito ainda de Surrealismo, logo se desenfreia em imagens alucinadas,símbolo de uma sátira sem fronteiras.” Afirma ainda Magaldi: “Apropósito de Oswald de Andrade, não podemos esquecer as intuiçõesfantásticas de um Maiacovski.”26 A cena escolhida é a última cena doprimeiro ato: um diálogo entre Abelardo I, o próspero agiota que roubaAbelardo II (outro personagem), e Heloísa, representante da decadentearistocracia do café, após a expulsão do intelectual Pinote.27

25 MAGALDI, 1962, p. 191.26 ANDRADE, Oswald de “O Rei da Vela”. In: ______ . Obras Completas de Oswald

de Andrade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1973. p. 81 a 84.27 COHEN, 1978, p. 68.

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Abelardo I e Heloísa são representantes de classes. Ele, o industrial bem-sucedido que produz velas aproveitando-se da crise de 1929 e 30 (aquebra da bolsa de Nova York e o fim da República Velha no Brasil).Ela, a filha da aristocracia latifundiária decadente do café, sua noiva ealiada. Por outro lado, seus nomes são referência aos amantes frustradosAbelardo e Heloísa, do século XII. Os personagens na peça sãoconscientes de sua condição de classe e da dinâmica econômica dasociedade. Como o autor, eles defendem ideias e conceitos sobre política.O discurso abrange descrições, análises, metáforas, comentários críticos,especulações e lances poéticos. Os personagens expõem-se de acordocom a estrutura marxista de interpretação, uma nova onda intelectualnos meios artísticos na primeira metade da década de 30. O autor osironiza de forma comovente. Eles vivem um namoro, um romance, umcaso de amor. Abelardo expulsa o intelectual Pinote, defende a misériacomo arma social e corteja Heloísa, prometendo-lhe uma ilha brasileira.O poeta Oswald de Andrade define um tipo verdadeiro e assustadornuma forma teatral. A realidade e o sonho, o cinismo e a “indiferençadiante dos sofrimentos humanos,” os personagens usam farto materialinformativo, histórico e analítico, combinando o falar coloquial, o poéticoe o político.

Todos os exercícios propostos para as cenas anteriores serão úteis aosestudantes que trabalham com Abelardo e Heloísa. No entanto, em sala,propõe-se abordar esse diálogo com um estudo das táticas de RobertCohen.

Em associação com as ideias de relacom e vitórias de relacom, Cohendesenvolve um estudo sobre as táticas usadas para se conseguir a realizaçãode um futuro ideal. Basicamente, táticas são os meios pelos quais se venceou se procura conquistar futuros ideais. São as estratégias conscientes einconscientes de relacom, da tentativa de alcançar específicas vitórias de relacom.Apesar das inibições morais para a discussão das táticas usadas pelaspessoas no dia-a-dia, bem como apesar de alguns tipos decomportamento serem claramente espontâneos e não-táticos (como ochoro de uma criança ao nascer), o estudo dessa questão é importante

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para o estudante de interpretação posto que a maioria dos personagens(como as pessoas na maioria das situações) age taticamente.28

Duas seriam as grandes categorias: táticas de ameaça e táticas de indução.Afirmando tratarem-se de comportamentos normais e inconscientes,Cohen cita dois exemplos cotidianos: o aumento do volume de vozpara vencer-se o conteúdo de uma discussão, redefinindo orelacionamento entre as pessoas que discutem, seria uma tática de ameaçausada inconsciente e naturalmente. Por outro lado, o ato de sorrir, que égeralmente identificado com um sintoma de bondade humana, procurana verdade criar um ambiente bom e sorridente para a própria pessoaque sorri. Esse seria um exemplo corriqueiro de uma tática de indução.Afirma o teatrólogo: “Não rimos muito quando estamos a sós, rimosmais para os outros, para criar um clima desejável para habitarmos. Se oriso é genuíno ou falso não importa tanto (é ambíguo), o certo é que étático.” Táticas só seriam hipocrisia, entretanto, quando ocultas por meta-táticas, por exemplo, o ato de sorrir para agredir, numa atitude de desdémou de ironia.29

Cohen apresenta uma relação das táticas mais comuns e úteis para oteatro. Entre as de ameaça, ele apresenta: assumir o comando da situação(decidindo pela ação uma posição de liderança); sobrepujar (fisicamente,vocalmente); observar atentamente o(a) parceiro de cena (intimidando-o/a/), ser conclusivo(a) no falar; enfatizar o começo de cada frase(demonstrando segurança e força); finalizar as falas com clareza (mantendoo controle da ação durante e até o final de cada sentença), sugerir umaarma secreta (real ou imaginária, uma faca e/ ou um fatocomprometedor); perder o controle (gritando e agitando-se numa ameaçade surpresa negativa). Em oposição a essas, o autor apresenta, comotáticas de indução, aquelas que, geralmente, implicam uma vitória mútua. Omelhor exemplo seria o ato de amar. Outras táticas de indução seriam: oato de confirmar (através expressões não-verbais de concordância, gestos

28 COHEN, 1978, p. 70.29 COHEN, 1978, p. 79.

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como o de mover a cabeça verticalmente para cima e para baixo, eoutras expressões de confirmação e concórdia); o ato de desarmar o(a)parceiro(a) (como o oferecer a mão para um aperto de mãos, ajoelhar-se, ou ainda mostrar-se vulnerável e aberto/a/; o ato de ninar, embalar(como a uma criança que se quer agradar e relaxar); divertir; inspirar(projetar no(a) outro(a) o que se quer ver adotado positivamente); agradar(no sentido de bajular-se com sinceridade); ser franco; seduzir. Essastáticas deverão ser experimentadas e redefinidas com o vocabulário decada grupo de estudantes. O que importa é que estes enriqueçam seupotencial para a interpretação com a experimentação dessecomportamento tático, desde que sua conscientização não impeça aespontaneidade dos personagens.30

Os estudantes que trabalham com Abelardo e Heloísa deverão selecionarpelo menos duas táticas (uma de ameaça e uma de indução) para seuspersonagens individualmente. Por exemplo, o ator que faz Abelardopoderia usar: assumir o comando e seduzir. A atriz que faz Heloísa poderiaescolher observar atentamente e confirmar. A cena seria então ensaiada comas táticas combinadas. Outras táticas deveriam ser escolhidas para outrosensaios, tanto arbitrariamente (por sorteio, por exemplo), quanto emvirtude do estudo do próprio diálogo.

O quarto dramaturgo brasileiro a ser referido é Nelson Rodrigues (1912-1979), o autor que ficaria definitivamente ligado à modernização doteatro brasileiro, durante a segunda Grande Guerra. Entre as duas grandesguerras, o teatro no Brasil foi dominado pelas companhias em torno deuma grande estrela ou grande astro. O teatro de revista (e a comédia decostumes) ainda era o que predominava. De um modo geral, em nívelde encenação, o teatro brasileiro era um mostruário do talento dosprimeiros atores e atrizes. A dramaturgia vivia em função dessas realidades.Em 1938 e 39, os teatros de estudantes do Rio de Janeiro e São Pauloiniciavam uma efetiva renovação desse panorama. Por outro lado, a guerra

30 MAGALDI, 1962, p. 211.

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provocaria a vinda de artistas do teatro europeu, particularmente italiano(mas também francês, polonês, belga, etc.), para o Brasil. Com suaexperiência de Realismo, Expressionismo e outros movimentos teatraispredominantes na Europa até aquele momento, eles contribuiriamdefinitivamente para com o teatro brasileiro, principalmente no âmbitode direção, interpretação e treinamento. No que concerne à unidade doespetáculo, por exemplo (novidade conhecida na Europa desde as últimasdécadas do século XIX), o marco histórico brasileiro é a montagem deVestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, dirigida pelo polonês Zbigniew

Ziembinski, em 1943, no Rio de Janeiro.

Influenciado por O’Neill e Pirandello, Nelson Rodrigues rompe com asestruturas da dramaturgia predominante no Brasil, utilizando recursospróximos do Expressionismo e a teatralização de planos do consciente,do subconsciente e da memória. Em Vestido de Noiva, renovando atemática e a linguagem do teatro brasileiro, “o mais original de nossosdramaturgos,” segundo Sábato Magaldi, “iguala o teatro à nossa melhorliteratura, conferindo-lhe cidadania universal.” A influência de suasdezessete peças sobre os autores dos últimos vinte anos tem sido profícua.“Direta ou indiretamente, eles se valeram das conquistas do criador deVestido de Noiva. Se faltassem a Nelson Rodrigues outros méritos, só essemarcaria com privilégio o seu lugar na dramaturgia brasileira.”31

Sua primeira peça a ser montada foi A Mulher Sem Pecado, em 1941. Em1943 o sucesso aconteceu com Vestido de Noiva. Em 1945, a censuraproíbe a estréia de Álbum de Família (a peça só seria apresentada ao públiconuma encenação completa em 1968). Com esse texto, Nelson Rodrigues,mergulhando no inconsciente primitivo, foi aos arquétipos abstratos danatureza humana, num mundo de incestos e crimes e afastou-se por umtempo da viabilidade do teatro comercial, intuitivamente aproximando-se do teatro da crueldade de Artaud. Em suas palavras:

31 RODRIGUES, Nelson. In: MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro.São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. p. 205.

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[...] a partir de Álbum de Família – drama que se seguiu a Vestido de

Noiva – enveredei por um caminho que pode me levar a qualquerdestino, menos ao êxito. Que caminho será este? Respondo: deum teatro que se poderia chamar assim desagradável. Numa palavraestou fazendo um teatro desagradável, peças desagradáveis... E porque peças desagradáveis? Segundo já se disse, porque são obraspestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a maláriana plateia.32

Ele veria o incentivo da crítica durante toda a década de 40 e, de novo,o aplauso do público a partir dos anos 50. Álbum de Família, montado noRio de Janeiro, em 1968, aconteceria num momento propício, com muitoêxito. Algumas de suas peças de teatro, crônicas e outro tipo de prosa,têm sido adaptadas com sucesso para o cinema nos últimos quinze anos.Também cresceu o número de adaptações de sua obra teatral, com arealização de espetáculos compostos de três e até quatro peças, a partirde cursos de teatro em vários pontos do país. Álbum de Família tem sidoa presença mais constante dentre elas. Por isso a cena selecionada comoexemplo para o trabalho em aula do curso aqui proposto é um diálogode Álbum de Família. Trata-se da penúltima cena da peça, o diálogo deDona Senhorinha (a mãe) com Heloísa (a esposa) em torno dos esquifesde Edmundo (filho e marido) e Glória (filha e cunhada).33

Sugere-se abordar essa cena com uma breve discussão do manifestoexpressionista de Paul Kornfeld e da realização de alguns exercícios deAugusto Boal e Wesley Balk baseados em variações.

O manifesto da dramaturgia expressionista de Kornfeld é na verdadeum posfácio a sua peça A Sedução, publicada em 1913. O manifestoalude à técnica de representação do “novo” teatro e se aproxima em

32 RODRIGUES, Nelson. “Álbum de Família”. In: ______ . Teatro Quase Completo.

Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1965. p. 335-344.33 KORNFELD, Paul. “Epílogo para o Ator”. Cadernos de Teatro, Rio de Janeiro, n.

258, p. 10, 1975.

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alguns pontos de certas proposições brechtianas do teatro épico.Afastando-se do Realismo e do Naturalismo e propondo mais “ummovimento de ruptura” do que propriamente um estilo, o Epílogo para oAtor, de Kornfeld, propõe:

Que ele não tenha pejo de abrir os braços a toda largura e de falarcomo nunca tiver falado na vida real. Que não seja um imitadornem procure os seus modelos num mundo estranho ao ator. Numapalavra, que não se envergonhe de estar representando; e que tenhaconsciência desse fato.34

Quanto a emoções, Kornfeld propõe que o ator utilize as suas própriascomo principal material e não as que lembra ter presenciado em outraspessoas. Imitar não, mas utilizar a unidade do ator, “a unidade que nadafalseia.” O ator seria o único ser “cristalino”, a “personificação daunidade,” integral e esplêndida. O dramaturgo de A Sedução afirma: “Amelodia de um largo gesto possui uma eloquência superior ao maisconsumado naturalismo.” Ele sugere: “que o ator pense na ópera, ondeo cantor moribundo ainda tem forças para soltar um dó de peito e comseu canto fala-nos melhor da morte do que esbracejando e ofegando.”35

É em relação a esse engrandecimento da ação dramática que se propõeos exercícios de Boal, da série “Ensaios de Motivação com texto,” e deBalk, do seu livro Acting for Music-Theatre. As atrizes que trabalharem comDona Senhorinha e Heloísa poderão (e mesmo deverão) se valer dosdemais exercícios já propostos nas referências às três cenas anteriores.Em classe, no entanto, o trabalho será desenvolvido a partir de umaabordagem mais expressionista. Os exercícios de Boal são: velocidade,câmara lenta e exagero. Trata-se de realizar a cena com variações develocidade da elocução do texto, com uma movimentação e um discursobem mais lentos que na vida cotidiana, e com uma ênfase amplificadora

34 Id., Ibid., p.11.35 BOAL, Augusto. Exercícios para o Ator e o Não-ator com Vontade de Dizer

Algo através do Teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 113 - 115.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

dos movimentos, textos e do próprio sentido do diálogo.36 Esses trêsexercícios poderiam ser combinados àqueles propostos por Balk e que,basicamente, são a realização da cena com variações de ritmo, intenção,dinâmica, volume, amplitude; com repetições de falas e trechos de falase/ou movimentos e gestos; de maneira improvisada ou previamenteestabelecida.37

Esses exercícios serviriam para ampliar o vocabulário expressivo dasatrizes que trabalharem com Heloísa e Dona Senhorinha, ao mesmotempo em que funcionariam como uma introdução informativa ao teatroexpressionista.

O quinto autor a ser referido no presente trabalho é Jorge Andrade(nascido em 1922). Escreve o professor e pesquisador de teatro Nelsonde Araújo: “Após o aparecimento de Nelson Rodrigues, A Moratória,peça encenada em 1955 pelo teatro de Maria della Costa sob a direçãode Gianni Ratto (italiano que veio para o Brasil por causa da guerra e queaqui ficou), trazia as justas dimensões de um novo autor e de uma novamensagem.” Jorge Andrade, já naquela obra, “se definia comocontinuador, no drama, da literatura regional que produzira um valiosoacervo, principalmente, com os ficcionistas nordestinos.38

Jorge Andrade destaca-se de início por seu “paciente artesanato literário,que sempre foi uma das nossas visíveis lacunas. “Passando ao largo domovimento filosófico e literário do absurdo, ele opta por uma literaturasocial cujo grande tema é a crise do café em São Paulo. Preferindo tratarem suas peças de problemas do ambiente rural (que ele bem conheceude experiência própria), ele revela descontentamento com o presente,um certo saudosismo e a consciência da inevitabilidade do futuro.Influenciado por Nelson Rodrigues e Arthur Miller, ele se aproximaria

36 BALK, Wesley. The Complete Singer: Actor. Minneapolis: University of MinnesotaPress, 1979. p. 172 - 173.

37 ARAÚJO, 1978, p. 337.38 MAGALDI, 1962, p. 216 - 217.

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mais, segundo Sábato Magaldi, “das concepções escultóricas esquilianase não da humanidade contraditória de Eurípedes.” O crítico afirma ainda:“O processo de construção das personagens pode referir-se, assim, àestética aristotélica, a qual foram aduzidos elementos do psicologismode hoje.”39

Antes de transformar-se em dramaturgo, Jorge Andrade frequentou umcurso para formação de atores em São Paulo, tendo a oportunidade deler e experimentar textos dramáticos de diversos autores. Inicialmente,suas peças conheceram mais o aplauso intelectual do que a reconhecimentodo grande público. Progressivamente, no entanto, ele também teria êxitojunto a esse público, do qual se aproximaria, principalmente, com aprodução de Os Ossos do Barão, êxito incomum do Teatro Brasileiro deComédias, em 1963, e que seria repetido mais tarde com uma adaptaçãoque o próprio autor escreveria para televisão. Entre os mais importantesdramaturgos brasileiros, Jorge Andrade é necessariamente um autor aser estudado por quem quer que se interesse em fazer teatro no Brasil.Dentre suas peças, muitos críticos consideram A Moratória, como suaobra-prima. É dessa peça a cena a ser estudada como exemplo de trabalhoa ser desenvolvido em aula.

A Moratória é situada em dois planos, em dois momentos históricos:1929, quando a família proprietária de café perde a fazenda emdecorrência da crise de preços; e 1932, quando a irremediável perda éfinalmente reconhecida e os acontecimentos revelam o definitivo fim deuma fase da vida nacional. O palco é dividido em duas áreas,correspondentes àqueles dois períodos. As ações simultâneas alternam-se entre a partida da fazenda e a anseio de voltar-se a ela. Os personagenssão os mesmos, o tempo e o espaço são diferentes (apenas um galho dejabuticabeira é comum à cenografia dos dois planos). No primeiro cenário,é um símbolo, um pedaço da fazenda que a família carrega consigo, pararetorná-lo ao lugar próprio algum dia. No segundo, é a memória, uma

39 ANDRADE, Jorge. “A Moratóri.”. In: ______ . Marta, a Árvore e o Relógio. SãoPaulo: Editora Perspectiva, 1970. p. 178 - 181.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

esperança, um símbolo da decadência e da derrota. Apenas umpersonagem, a filha (Lucília), parece aceitar, ainda que raivosamente, anova realidade. Ela passa a trabalhar como costureira e a sustentar afamília. A cena selecionada é o diálogo final entre Lucília e sua tia, Elvira,uma presença viva do passado, que no presente, devido a sua ainda atualriqueza, ressalta o fim de uma situação e o começo de uma nova fase navida da família então empobrecida.40

A sugestão de trabalho para essa cena seria a utilização dos exercíciosapresentados por Uta Hagen em Respect for Acting, sob o título de exercícios- objeto, seguindo basicamente a proposta de Stanislavski. Propondoquestões componentes de qualquer momento vivencial, o exercício consisteem recriar-se dois minutos comuns da vida, quando “parece que nadaacontece”. Em suas palavras:

Quais são os componentes de dois minutos consecutivos de minhavida – não em crise, mas na procura de realizar uma necessidadesimples? Que preciso saber se eu quero recriar aqueles dois minutosde existência?Quem sou eu? - Pessoa (personagem).Quando? - Século, ano, estação, dia, hora, minutos.Onde estou? - País, cidade, vizinhança, casa, sala, parte da sala.O que está ao redor de mim? Objetos animados e inanimados.Quais são as circunstâncias? – Passado, presente, futuro e seusacontecimentos.Qual é meu relacionamento? – Com os acontecimentos (eventos),com outros personagens, com as coisas.Que é que eu quero? – Objetivos do personagem, principais,secundários, imediatos.O que me impede de conseguir o que quero? – Obstáculos.Que faço para conseguir o que quero? – A ação: física e verbal.Essas são as questões que devemos nos perguntar, explorar, edefinir, para podermos atuar. Por enquanto, eu gostaria de libertá-

40 HAGEN, Uta. Respect for Acting. New York: MacMillan Publishing Co., Inc.,1973. p. 82.

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los dos problemas interpretativos de uma peça e de um personagem,e pedir para vocês ap1icarem essas perguntas num exercício simplesde escolher e recriar dois minutos de sua vida quando cada um devocês estava só.

Nesse exercício de Uta Hagen estão resumidas as necessidades do atorpara a preparação de uma peça realista; ainda que sua utilização em peçasde outros estilos possa também ser recomendada. No caso de AMoratória, ele poderá ser de grande ajuda para as atrizes que interpretamElvira e Lucília. O primeiro estágio do exercício refere--se à recriação dedois minutos da vida de cada uma. Num segundo estágio, o exercícioreferir-se-á aos próprios personagens. As atrizes deverão recriar atravésda imaginação dois minutos da vida de seus personagens nãonecessariamente constantes do diálogo em questão. Elas deverãoapresentar suas respostas por escrito em ambos os casos. Após aapresentação dos dois estágios do exercício em sala de aula, as atrizes,enquanto personagens, deverão ser entrevistadas pelos colegas. Não édemais ressaltar que os exercícios propostos para as cenas estudadasanteriormente também poderão ser utilizados pelas atrizes que fazemLucília e Elvira. No entanto, em aula, o trabalho a ser desenvolvido comesse diálogo será baseado nos exercícios de Uta Hagen.

Paralelamente à obra de Jorge Andrade sobre aspectos da história deSão Paulo, desenvolve-se a obra de outro escritor também fiel a umatemática regionalista: Ariano Suassuna (nascido em 1927). Ele propõeuma dramaturgia de raízes medievais, populares e religiosas. Influenciadopelos milagres (peças dramáticas medievais sobre Nossa Senhora) pelosautos sacramentais espanhóis do Século de Ouro, pelos autos de GilVicente e pela Commedia dell’Arte do Renascimento, Suassuna utiliza aLiteratura Popular do nordeste, bem como suas festas, lendas e folguedospara criar um Teatro Popular e religioso. Aliando sua fé católica aoconhecimento e vivência da cultura nordestina, ele procura com seustextos teatrais se aproximar do grande público, particularmente do públiconordestino.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Em 1957, o país tomava conhecimento do novo e original autor atravésda produção no Rio de Janeiro de seu Auto da Compadecida, jáanteriormente montado em Recife. Usando autêntica matéria regional,caracteres populares e folclóricos e uma religiosidade simples e “recursosprimitivos até na encenação de um julgamento no outro mundo,” o Autoda Compadecida é, segundo Sábato Magaldi, “sem dúvida, o texto maispopular do moderno teatro brasileiro.” Traduzido para o inglês, francêse alemão, o Auto foi também produzido no exterior, particularmente naEuropa, mas também nos EUA; e continua sendo uma presença constantenas produções do teatro brasileiro, particularmente através das produçõesde grupos amadores e estudantis. Com “saborosa linguagem e renovadacomicidade;” o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, tem apeloimediato sobre o público. Um palhaço é o personagem que narra apeça, introduz os personagens e comenta a ação com o público. A históriagira em torno de um “herói sem nenhum caráter,” que lembra o Arlequimda Commedia dell’Arte e o escravo da Comédia Nova, chamado JoãoGrilo. Um personagem do tipo fraco e desfavorecido, porém esperto,João Grilo é o personagem central de vários livros (romances) de Cordel,característicos da cultura popular do nordeste brasileiro. Suassuna utilizou,para escrever sua peça, alguns desses, bem como outros romances decordel, a maioria dos quais de criação anônima. Dentre esses, elereelaborou os eventos de A Intervenção de Maria por uma Alma, A Históriado Enterro de um Cachorro, e a de Um Cavalo que Defecava Dinheiro (transpostona peça em gato). A ação culmina com um julgamento no outro mundocom a presença do diabo, de Jesus Cristo (que deverá ser interpretadopor um ator negro) e da Virgem Maria, que intercede por João Grilo,oferecendo-lhe a oportunidade de voltar à vida. Abdicando de um“realismo verossímil em troca de uma outra realidade, feita desobrenatural e poesia,” Suassuna oferece um rico material para o ator.41

A cena escolhida como exemplo de possível trabalho em sala é o diálogofinal do Auto da Compadecida, entre João Grilo e seu desdobramentoChicó (seu companheiro constante de aventuras como empregados e

41 MAGALDI, 1962, p. 220 - 221.

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moleques). A cena tem início com a volta de João Grilo à vida nomomento em que seu corpo estava pronto para ser enterrado. Porintercessão de Nossa Senhora, ele ganha uma nova oportunidade deviver. Chicó, por outro lado, promete doar todo o dinheiro que ambosconseguiram no decorrer da peça, caso João Grilo voltasse à vida. JoãoGrilo revive e, de início, tanto ele quanto Chicó comemoram o evento eo fato de estarem ricos: até que ambos se dão conta da promessa feitapar Chicó, “e logo a quem, a Nossa Senhora,” a advogada salvadora.Por fim, ambos resignam-se à realidade dos fatos: vivos, porém, denovo, pobres.42

Sugere-se abordar esse diálogo em aula com o estudo de um romance decordel (por exemplo, o anônimo Proezas de João Grilo, numa de suas inúmerasedições por João Bernardo da Silva), exercícios de improvisação e umabreve pesquisa sobre Commedia dell’Arte.

A leitura do romance de cordel fornecerá possibilidades de interpretaçãoe narração para os atores, bem como informações gerais sobre uma dasfontes originais da peça. A pesquisa sobre Commedia dell’Arte deveráser desenvolvida através da leitura de livros de história do teatro e textosespecíficos sobre o assunto, contendo informações sobre seuspersonagens-chave, tais como os criados, os jovens enamorados e osanciãos ricos. Uma pesquisa pictórica de máscaras da Commedia serámuito útil, inclusive das máscaras criadas por Sartori para Le Coq e suatécnica de máscara neutra. Um outro nível de investigação referir-se-á àmovimentação acrobática, incluindo exercícios em aula de cabriolas,cambalhotas, quedas, saltos e posturas dos personagens típicos daCommedia dell’Arte.

Como último estágio do trabalho em aula, sugere-se a improvisação dodiálogo, sem a utilização do texto original escrito por Suassuna. Os atores

42 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1962.p. 193 - 202.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

que fizerem João Grilo e Chicó deverão definir um roteiro do mesmo eimprovisar sobre ele. Tratar-se-ia na verdade da realização teatral noespírito da Commedia: as situações e soluções são previstas; as ações e otexto são improvisados. Após pelo menos duas improvisações sobre acena, os atores deveriam ler o texto com ênfase na articulação das sílabase enunciação das palavras. Finalmente, eles realizariam a cena, procurandomanter o espírito de improvisação, mas utilizando a referência real dotexto.

Vale ressaltar, pela última vez, que os atores poderão se valer dos exercíciospropostos quando do estudo das demais cenas anteriormente. No entanto,em aula, esse diálogo deverá ser abordado através de um breve estudosobre Literatura de Cordel e Commedia dell’Arte, inclusive com a leitura, forade aula, de romances de cordel de temas e personagens correlatos, taiscomo livros sobre Pedro Malazarte e Cancão de Fogo. O conhecimentodo universo dos personagens de Suassuna facilitará e estimulará o trabalhodos atores que fizerem João Grilo e Chicó.

O presente trabalho tem uma finalidade eminentemente prática e deveráser revisto, ampliado e adaptado conforme a experiência em aulas venhaa indicar. A relação de cenas deverá ser ampliada, bem como o elencode autores. Trata-se aqui apenas de uma iniciativa no sentido de organizaro referencial do teatro brasileiro como parte do treinamento do atorem escolas e universidades brasileiras. Nossa tradição teatral é pequenae pobre, se comparada com as tradições da Europa e do Oriente, porexemplo, mas não deve ser negligenciada, sobretudo na formação dosjovens atores brasileiros. O referencial estrangeiro é imprescindível emesmo até da maior importância, é claro; e isto já é bastante enfatizado.Pretende-se apenas reforçar iniciativas isoladas já existentes no sentidode fortalecer nossa identidade cultural, procurando em nossa formação– e contínua transformação como povo, de uma mesma língua comum,o português do Brasil, inclusive seus inúmeros sotaques eestrangeirismos – referências que nos ajudem a retomar a antropofagiados modernistas de 22 e dos tropicalistas de 1967. Comemos oscolonizadores e nos transformamos, servimos interesses vários e nos

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locupletamos. Somos uns boçais. Ai que preguiça! Contra a galinhagemnazi-fascista, o terror, a fome, a miséria! Trabalhar muito com muitahumildade. Estudar a nação brasileira e aprender outras línguas. Viajar!Trocar! A antropofagia mútua do amor deve soar bem em qualquerlíngua, idioma!

Relação de Diálogos

A - Cômicos

I - Um homem e uma mulher

De A Morta, de Oswald de Andrade2º quadro - O País da Gramática - Beatriz e O Poeta, p. 36 e 37 -“BEATRIZ - Boa Tarde. […] deixou o meu corpo.”

De O Rei da Vela, de Oswald de Andrade1º ato – A secretária e Abelardo I, p. 75 a 77 – “A SECRETÁRIA(É uma moça longa, […] Ga-ra-nhão!”1º ato – Heloísa e Abelardo I, p. 81 a 84 – “HELOISA – Coitado![...] ABELARDO I – […], uma ilha e você…”2º ato – D. Cesarina e Abelardo I, p. 89 a 91 – “ABELARDO I –Pronto!... D. CESARINA…, que eu ainda acendo…”2º ato – Heloísa e Abelardo I, p. 105 a 107 – “ABELARDO I –Crápulas! […] Brinca, meu bem.”2º ato D. Poloca e Abelardo I, p. 107 a 108 – “D.POLOCA –Heloisa! [...] ABELARDO I – […] Esta noite!”

De O Juiz de Paz na Roça, de Martins PenaCena II – José e Aninha, p. 39 a 41.

De Os Dous ou o Inglês Maquinista, de Martins PenaCena II – Felício e Mariquinha, p. 125 a 126Cenas XVII, XVIII e XIX – Negreiro e Clemência

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

De O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins PenaCenas III e IV – Maricota e Faustino, p. 143 a 145 –

“MARICOTA, só – Tem razão; … FAUSTINO – […] a teus pés?”Cenas IX e X – Faustino e Chiquinha, p. 151 a 153

De O Noviço, de Martins Pena1º ato, cenas I e II – Ambrósio e Florência, p. 303 a 3051º ato, cenas VI e VII – Emília e Carlos, p. 307 a 3101º ato, cenas IX e X – Carlos e Rosa, p. 311 a 3131º ato, cena XIII – Carlos e Rosa, p. 315 a 3172º ato, cena IX – Ambrósio e Florência, p. 328 a 329 –

“AMBRÓSIO, aparte – Temos trovoada […] FORÊNCIA – Se eupudesse crer!”

De O Cigano, de Martins PenaCenas II e III – Isabel e Anselmo, p. 353 a 355

De O Caixeiro da Taverna, de Martins PenaCena V – Manuel e Angélica, p. 381 a 382Cena VIII – Manuel e Deolinda, p. 385 a 387

De As Casadas Solteiras, de Martins PenaCena IX – Henriqueta e Jeremias, pq. 433 a 435

De A Capital Federal, de Arthur de Azevedo1º ato, cena II – Figueiredo e Benvinda, p. 48 a 50 – “BENVINDA– Aqui estou. […] Quero minha liberdade!” – Quadro III2º ato, quadro V, cena II – Figueiredo e Benvinda, p. 67 a 712º ato, quadro VI, cena II – Lola e Lourenço, p. 90 a 922º ato, quadro VI, cena III – Lola e Eusébio, p. 92 a 992º ato, quadro VII, cena VII – Lola e Eusébio, p. 117 a 1203º ato, quadro VIII, cena I – Lola e Eusébio, p. 125 a 1283º ato, quadro VIII, cena III – Lola e Lourenço, p. 132 a 1343º ato, quadro VIII, cena V e VI – Duquinha e Lola, p. 136 a 1413º ato, quadro IX, cena II – Benvinda e Figueiredo, p. 147 a 148

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De Auto da Compadecida, de Ariano SuassunaJoão Grilo e a Mulher do Padeiro, p. 91 a 95

II – Dois homens

De A Morta, de Oswald de Andrade2º quadro – O País da Gramática – O Turista e o Polícia, p. 29 a30

De O Rei da Vela, de Oswald de Andrade1º ato – Abelardo I e o Cliente, p. 66 e 67 – “ABELARDO I –Veja! [...] O Cliente – […], de um covarde!”1º ato – Abelardo I e Abelardo II, p. 68 a 72 – “ABELARDO I– Não faça entrar […] Abra a jaula!”1º ato – Abelardo e Abelardo II, p. 73 a 75 – “ABELARDO I –Lisol! Estricnina! Viaduto! […] Quero ditar uma carta.”2º ato – Perdigoto e Abelardo, p. 103 a 105 – “PERDIGOTO –Glória! [...] Por hoje basta.”

De O Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade3º quadro, cena I – O Cavalo de Tróia e o Cavalo Branco deNapoleão – p. 153 a 1544º quadro, cena I – Mister Byron e Lord Capone, p. de 163 a 168.

De Os Dous ou O Inglês Maquinista, de Martins PenaCena XX – Negreiro e Alberto, p. 126 a 127

De O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins PenaCena XI – Pimenta e Antonio Domingos, p. 153 a 155 –“PIMENTA – É boa! [...] ANTONIO – “ [...] o senhor é quemperde.”

De Os Três Médicos, de Martins PenaCena III, Marcos e Lino, p. 255 a 257Cenas IV e V – Lino e Cautério, p. 257 a 258Cenas VI e VII – Lino e Aquoso, p. 258 a 260

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Cena IX – Miguel e Milésimo, p. 260 a 262Cena XII – Aquoso e Lino, p. 264 a 266Cena XIV – Lino e Marcos, p. 267 a 268

De O Noviço, de Martins Pena2º ato, cenas II, III e IV e parte da V – até a entrada de Florência

– p. 319 a 322

De O Caixeiro da Taverna, de Martins PenaCena IV – Manuel e Francisco, p. 378 a 381

De As Casadas Solteiras, de Martins Pena1º ato, cena II – John e Bolingbrok, p. 411 a 413

De A Capital Federal, de Arthur de AzevedoQuadro I, Cena III – Figueiredo e o Gerente, p. 12 a 13Quadro II, cena I – Figueiredo e Mota, p. 31 a 34Quadro III, cena I – Figueiredo e Rodrigues, p. 46 a 48Quadro X, cena VI – Gouveia e Eusébio, p. 177 a 180

De Auto da Compadecida, de Ariano SuassunaJoão Grilo e Chicó, p. 25 e 31João Grilo e Chicó, p. 35 a 40Padre e Antonio Morais, p. 43 e 47Padre e João Grilo, p. 47 a 51Chicó e João Grilo, p. 56 a 59Padre e Bispo, p. 74 a 79Chicó e João Grilo, p. 87 a 91João Grilo e Chicó, p. 193 a 202

III – Duas Mulheres

De O Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade3º quadro, cena I – O Cavalo de Tróia e o Cavalo Branco deNapoleão – p. 153 e 154

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De A Morta, de Oswald de Andrade2º quadro – O Turista e o Polícia. P. 29 e 30

De Os Dous ou o Inglês Maquinista, de Martins PenaCena IX – Cecília e Mariquinha, p. 116 a 118

De O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins PenaCena I – Chiquinha e Maricota, p. 139 a 143 – a partir de:“CHIQUINHA, para Maricota – Maricota, ainda não te […]”

De O Noviço, de Martins Pena3º Ato, cena I – Emília e Florência, p. 331 e 332

De A Capital Federal, de Arthur de AzevedoQuadro II, cena IV, Quinota e Benvinda, p. 40 a 44 – a partir de:“BENVINDA – Sinhá vai dromi.”

B – Dramáticos

I – Um homem e uma mulher

De A Moratória, de Jorge Andrade1º ato, primeiro plano – Joaquim e Lucília, p. 122 a 1251º ato, Segundo plano – Helena e Joaquim, p. 125 a 1271º ato, primeiro plano – Helena e Marcelo, p. 132 e 133 –“HELENA – Marcelo!... MARCELO – […] Ele vencerá!”1º ato, Segundo plano – Helena e Joaquim, pg 136 e 137 –“JOAQUIM – Olímpio? [...] HELENA – […] gritar dessamaneira!”1º ato, primeiro plano – Joaquim e Lucília, p. 140 a 142 – após asaída de Marcelo2º ato, primeiro plano – Lucília e Joaquim, p. 147 e 1482º ato, Segundo plano – Lucília e Olímpio, p. 154 a 156 –“OLÍMPIO – Lucília! […], você precisa do meu apoio.”

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

2º ato, primeiro plano – Marcelo e Helena, p. 162 a 164 –“MARCELO- Papai! Papai! [… ]” em diante3º ato, Segundo plano – Joaquim e Helena, p. 171 a 177 –“HELENA – Quim! Quim! […] JOAQUIM- Espere. Vou buscara chaleira.”

De Álbum de Família, de Nelson Rodrigues1º ato – D. Senhorinha e Jonas, p. 265 a 267 – “D.SENHORINHA – Só por hoje, Rute […] uma desgraça maior”.2º ato – Glória e Guilherme, p. 299 a 312 – a cena da igrejinha.3º ato – D. Senhorinha e Edmundo. p. 318 a 325 – “D.SENHORINHA – Será possível, meu Deus? […]” até a entradade Jonas.3º ato – D. Senhorinha e Jonas, p. 345 a 354 – a partir da entradade Jonas.

II – Dois homens

De A Moratória, de Jorge Andrade1º Ato – Marcelo e Joaquim, p. 134 e 135 – Segundo plano –“MARCELO – Senhor. … O Senhor vai ver.”2º ato, primeiro plano – Marcelo e Joaquim, p. 158 a 161 – até aentrada de Helena

De Álbum de Família, de Nelson Rodrigues1º ato – Glória e Tereza, p. 248 a 2523º ato – D. Senhorinha e Heloisa, p. 355 a 344

Observação: a numeração de páginas indicada nessa relação correspondeà das edições referidas nas notas finas deste trabalho. As peças A Morta eO Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade, estão incluídas em ObrasCompletas de Oswald de Andrade; e Os Dous ou o Inglês Maquinista, O Judasem Sábado de Aleluia, As Casadas Solteiras, O Caixeiro da Taverna, Os TrêsMédicos, O Cigano e O Juiz de Paz na Roça, de Martins Pena, em Comédias deMartins Pena; ambas as edições também citadas nas notas finais do trabalho.

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As my second year of graduate school started at the University ofMinnesota (Fall 1982), I began to make decisions about my recital. Ibegan selecting material, specifically scenes, mimes, poems and songswhich I felt attracted to. I invited the PHD Director candidate YvoneYao to oversee the recital and my former instructors; Dr. Johannes Riedeland Dr. Barbara McIntyre to be in my Practicum Committee. My advisorDr. Robert Moulton was the chairman. By the end of the first quarter, Ihad a fair amount of possible material and both my director and mycommittee had accepted my invitation.

During the Winter Quarter I studied most of the selections I had chosenand talked about them with my advisor, my current and former actinginstructors, and my director as well. Their comments helped me to narrowdown my original list of pieces, and to add a few new possible ones.Yvonne Yao was especially helpful. However, she had to leave Minnesotaunexpectedly at the beginning of the quarter. Therefore, I invited a newdirector: the M.A. student Kim Montgomery, with training in oralinterpretation and acting coaching.

Before the end of the quarter, I had also invited other theatre students tobe in the cast. In fact, I worked for five weeks (two hours twice perweek, total of twenty hours) in movement and improvisation usingrecorded and live music of different kinds. During this warm-up period

Supporting Paper on Spring Romance:

a Master of Fine Arts Acting Recital*

* Requisito parcial para a obtenção de diploma de mestrado (Master of Fine Arts),

pela University of Minnesota, no Trimestre da Primavera (Spring Quarter) de

1983, sobre o processo de preparação do Recital Spring Romance, o requisito

principal para a obtenção desse diploma, que foi apresentado em duas sessões no Stoll

Thrust Theatre do Rarig Center, do Theatre Department da University of Minnesota,

no campus de Minneapolis, nos dias 9 e 10 de maio de 1983.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

I tried to approach my possible roles physically, experiencing withpostures, balance, centers of gravity. I read and study the scripts to betterknow the characters. I did not try to memorize lines or to act the scenes.The exercises I used were mainly drawn from my courses with Dr.Moulton, Dr. McIntyre, Dr. Nash, Dr. Balk and Dr. Berry. My principalgoals at that moment were to develop our bodies’ relaxation, creativity,spontaneity, strength, readiness and self-awareness, as a mean ofpreparation for rehearsals and the actual performances. Although not allthe cast participated in those meetings, a good feeling of ensembleflourished among us, the ones who did participate. That turned out tobe very helpful.

After the Spring Break, I had six weeks to prepare the performances, whichhad been previously scheduled with Dr. Jean Montgomery for May 9th and10th, at 5:30 p.m., in the Stoll Thrust Theatre. During the first two weeks ofthe quarter I made final adjustments of my selected pieces, and defined thecast. Furthermore, I decided to use live music only and invited Prof. ChrisKachian (with a Master’s in music from the University of Minnesota) toperform with me. The other four weeks were spent in rehearsals andproduction of the recital itself (a hundred hours approximately).

As per the Recital Guidelines I had to choose pieces that would “challenge,exercise, and display (my) versatility, imagination, and skill.” A broadrange of characters and styles would be a way of doing it. I made twobasic decisions concerning characters: I would play an actor on a barestage (a character very much like myself in a recital situation) at the beginningand at the end of the show; and I would play six other characters withremarkable differences in cultural background, historical period, sexualcharacteristics, and age.

Furthermore, I wanted half of these pieces leaning more towards comedyand the other three tragedy. With eight pieces all together, I wanted halfof them to be solos (the opening mime piece, the final song and twomonologues), and the other four to be scenes with other actors. Inaddition, I also wanted to perform both in English and in my native

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language Portuguese. Finally, I wanted to perform a movement pieceand sing. These were, roughly, the criteria I used to select my pieces andto fulfill the requiremens of the Recital Guidelines.

Theme

The preparation of my graduation recital made me reevaluate my actingbackground, my strengths and weaknesses, my growing up in the processof my Master’s program and my needs on further training. I also reflectedabout my involvement with theatre as well as my professional goals. Asa result, the recital should mirror my individual history as an actor andalso my hopes and expectations.

Searching for a theme I tried to define my relationship with theatre. Myoldest memories involving theatrical activities date from my earlychildhood. They concern open air spectacles, religious plays, parades,popular commedia shows, circus clowns and poetry duels, in the South andWest European tradition; simple celebration and propitiation rituals andentertainment in the Native Brazilian Indian tradition; and motion picturesand the television shows chiefly from U.S.A. cultural tradition. The onlyelement which could link such different sources would be a romance.The same kind of love romance which has been going on between theatreand human society for thousands of years. The same kind of love romancethat happens when the actor seduces the audience in a theatre. On theother hand, theatre origins have always been linked to fertility Springrituals. Furthermore, the recital was scheduled for the springtime. I hadmy theme and my title: Spring Romance, a celebration of fertility.

Both fertility and romance are needs of any human being, particularlyany artist. Both imply giving. They also imply receiving but there is notone (receiving) without the other (giving). My romantic ideal objectivewith my recital was to give to others some of myself, have fun with itand stimulate others to do the same. The accomplishment of thispretentious objective is (many have said it) the secret of individual andcollective happiness.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Pieces

1. Offering

The first piece was the result of three wishes. First, I wanted to open therecital with a reference to the ritualistic origins of theatre and the Afro-Brazilian artistic-religious rituals of my cultural background. Second, Iwanted to perform a mime piece using elements of a “prop dance” Ihad created for my “History and Technique of Stage Movement” course.Third, I wanted to develop a movement piece related to spring and thetheme of my recital. The final result was this Offering.

I started experimenting with recorded music, using Brazilian music withstrong African influence. I worked with abstractions of actual ritualmovements symbolizing an “offering”, the first step one must take beforedoing anything of great importance (ritualistic speaking). The piece wasdivided in six moments. One was the acknowledgement of the musicianand the bowl, the prop I chose to mime with. Two, it was the ritual bath.Three, using the bowl as a boat, it was my boating to another moment,a transition. Four, It was the dropping of myself into the bowl, part bypart. Five, it was the throwing of its contents to the audience, offering tothem, offering myself. Finally, I used the bowl like a mask. After I hadthe piece structured I started working with the musician who created anabstract theme for the piece. I defined the pauses. He played a charango, aSouth American instrument like a small guitar with ten strings and anarmadillo shell as resonator box. Both the instrument and the paintingof the bowl somehow symbolized fertility and springtime, the sameidea which was so well mirrored in the poster by Gordon Purcell, whichillustrated and advertised my recital. The integration actor-musician, sovital to the piece, was accomplished fortunately.

2. Agamemnon

Greek drama is a fascinating and exciting challenge in itself. I wanted toperform a scene from a tragedy, and a female role like actors used to doin classic Greece of the 5th BC. I chose two big challenges: first, to play

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a woman; second, to play the most important female character createdby the first great playwright in the Western tradition: Aeschylus.

After reading several English versions of the play I particularly chosefour to use: Paul Roche’s, Arrowsmith’s, Phillip Villicot’s, and RobertLowell’s. The first three were suggested by Dr. Charles Nolte under myasking him for a simple translation into modern English which could bemore easily understood today. I finally used Lowell’s with excerpts fromRoche’s. I reduced Agamemnon’s first speech in the scene with the helpof my director’s.

I had seen two Greek actresses (one of whom was Irene Papas) playingClytemnestra in two of Michael Cacoyanis’ films. Furthermore, I hadplayed the same role in a Brazilian production of Sophocles’ Electra andhad a remarkable lecture on Aeschylus’ tapestry scene by Dr. Nolte. As aresult, I had images, memories and ideas about this piece. I wanted toconvey the extreme richness and complexity of the character. I wantedto emphasize many aspects: the womanhood in the Greek heroic period,Clytemnestra’s mourning for her daughter Iphigenia (who had beensacrificed by Agamemnon), her destroyed extreme and intense lovetowards him, her double pain as mother and wife, her thoroughly plannedrevenge, her power as a ruler of Argos (with Aegistus’ help), her tacticalhumbleness, and, finally, her goal of making Agamemnon unfavorableto the gods, and, thus, being forgiven for murdering him. I decided, shesincerely loved and feared Orestes and (although representing an additionalmotive for her plans murder) she sincerely was both jealous and angry.

I decided I would work more with voice and face than with bodymovement and gestures. I needed a basic posture. I chose a sinuous posture,referring physically to Greek statuary and paintings. I found my first obstaclewhen I created a posture, which, in order to be held, had to lock one kneejoint and tilt up the neck. The result was tension on the whole body andvoice. Dr. Balk and my classmates helped me with comments andsuggestions, particularly my director. I finally created a new more relaxedand flowing posture, a state of readiness for movement, still keeping the

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sinuosity and the reference of Greek statuary and paintings. I added thenon-verbals (the hiss, because I compared her with a serpent, and thehowling because of the suggestion in the script) and a heavy “natural”breathing at the end of the scene when her immediate goal was achieved.

I played with Robert Cohen’s threat and induction tactics technique. Ialso gave myself different assignments concerning variations in the speech(speed, volume, range, rhythm). I think I could have taken more risks inthe actual performances (as I in rehearsal situation did and accomplisheda better flowing of emotions).

3. The Servant of Tow Masters

The trunks’ scene from this play was suggested by Yvonne Yao. Thecharacter is a commedia dell’arte type of zanni, a servant, a smart one. Ihad some experience with commedia style in Brazil through watching popularperformances commedia-like and performing in a couple of shows. Inaddition, I took a workshop last year with the French-American company“Théâtre de la Jeune Lune” on this particular style, and performed anotherzanni (servant) kind of character in “Scapino!” at the University theatre.Full of action, the scene demands intense physical activity, fast pace, precisetiming and clear movements. We barely achieved a minimum to performit. Originally, I improvised tree and broad movements. Afterwards, Imade some specific choices. I placed his center of gravity more towardsmy back (contrasting with Clytemnestra, who had hers more towardsmy chest). Music and action at the beginning of the scene should havebeen more coordinated. In fact, I created problems for breathing, bykeeping a kind of steady pace (at the opening of the scene) and forgettingto breath properly. The handling of props was poor. I probably neededmore rehearsals and some more extra help.

4.A View From The Bridge

This scene was the first I ever played in English, in the Fall of 1981; forthe “Problems in Acting” course. My accent and my Latin backgroundcould fit the character in a realistic approach. In fact, I used basically the

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Stanislavskian approach: the magic “if ” (if I were Rodolpho), myemotional and sense memories; I even used my every-day center ofgravity and natural posture, since they could fit the character and hisphysical actions. In a year and half my performance in this particularscene improved, in which I let go more the temptation of “fakenaturalism” and expressed more fury, anger, and frustration in the blow-up scene. I also focused more in specific actions and reactions. Uta Hagen’sexercises were specifically helpful. Trying to respond her nine questionswas particularly useful: Who am I, where am I, what time is it, whatsurrounds me, what are the given circumstances, what are my relationships,what do I want (now and afterwards), what is in my way, what I do toget what I want.

I tried to place my center of gravity between my shoulders. I did notwant to repeat the Italian stereotype but I did want to move my armsand hands (like to help my being understood by Catherine) freely. Wewere coached by Joel Hatch who helped a lot. He suggested a couple ofchanges on the way I acted out the lines and that I had difficulties inrecreating. I should have made more specific decisions in order to makemore sense out of those particular lines. Maybe, I could have taken a bitmore my time. However, I was pleased with the result.

5. Tartuffe

It was not difficult to find a good translation of Tartuffe in regularcouplets. My first approach to this particular piece was a thorough studyof the line, the poetry, and the cultural background of the French classictheatre from the seventeenth century. I first gave myself differentassignments concerning variation in speed, dynamics, pitch, volume, andrhythm. I also decided I would explore facial expressions to convey themeaning of the speech, specially the ambiguity of the character: an oldhypocritically pious and lecherous man who is trying to seduce hisbenefactor’s wife. Finally, I would move not a whole lot but in the fashionof the traditional French ballet-comique (a sophistication of commedia dell’arte).I worked this piece in class (Acting for Music-Theatre) and got goodhelp (particularly with choices of focus). I tried to explore and enjoy the

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richness of the language, the verses. Gestures as well as posture were anatural consequence of my decisions concerning the script. Michel St.Denis’ and Bertrand Joseph’s comments on style completed theassignments suggested by Robert Cohen in “Acting Power” as a theoreticaland practical background for me to perform the monologue. It seemedto have worked with the audience and that pleased me. Next time Iwork with this same material, I want to focus on the effects of agingincluding difficulty of movement and speech caused by aging.

6. Álbum de Família (Family Album)

Since I first decided to perform a scene in Portuguese I chose theplaywright Nelson Rodrigues (1902 – 1979). He is considered the firstmajor Brazilian dramatist. Author of an “unpleasant theatre” in his ownwords, he used Brazilian middle class circumstances as a background todisplay universal archetypes and conflicts, with traits of realism, naturalism,expressionism, symbolism, and movie-making language technique. Hewrote some of the most important plays in Portuguese. Family Album isamong them. The family in this play is involved in a tragic plot where itsmembers defy social taboos of incest, self-mutilations, murder, andmadness, and are, therefore, punished.

One of the first theatre students I was introduced to at the University ofMinnesota was Susan Bragg, who had lived in Brazil for a year and whowas a Portuguese speaker. I chose this scene taking into account usingboth of us as its actors. I wanted a realistic approach instead of a moresymbolic or even ritualistic as I had seen in a couple of Brazilianproductions of this play. We started reading and studying the script stillin the Winter Quarter. I was afraid we would not get help in staging thescene. Translating the scene into English, so that the director could workwith us, helped a great deal our comprehension of it.

Afterwards, we divided it into sections, established the main and secondaryconflicts, and created biographies for our characters. It is a scene of bothreversal and recognition. At the beginning, Guilherme had almost achieved

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his objective of being alone with Gloria; at the end, he kills her, destroyingtherefore his own dream. The moment of recognition happens whenGloria realizes his love towards her.

At first, we read lines, defined objectives, relationships, circumstances,and particularities of each section. Then, we improvised differentblockings for the scene, having made decisions beforehand about spaceand objectives. I was happily surprised when we first ran the scene forthe director. She could understand most of our actions and identify eachsection as well. She set up a final blocking, and we worked on cleaning it,making actions, gestures, and facial expressions as clear and simple aspossible. We even experimented with illustrating all the lines, for the sakeof exercise and clarity. Afterwards, we simplified it and avoided thinkingabout the fact that the audience would not understand Portuguese. Wefelt necessary, however, to write a brief explanation of the scene in theprogram in order to inform the audience about its contents. We did notuse soaked clothes (as a realistic production would demand) nor soundeffects of rain, because I wanted to reduce all technical needs to aminimum (according to the Recital Guidelines). The end of the scenewas not fully developed. The killing was carried out without an actualreaction in the performance (although I rehearsed a couple of differentalternatives).

7. Kiss of spider woman

This piece was chosen for two main reasons. First, I wanted to play ahomosexual character, since I had been frustrated in two differentoccasions when I played similar roles. I wanted to overcome the frustration.Second, I wanted to use some text not originally, intended for theatre. Asfar as homosexual character is concerned I considered for a whileLandford Wilson’s “The Madness of Lady Bright”. As far as non-playsare concerned, I studied and experienced with some of Lorca’s andMallarmé’s poems. Finally, my director suggested I should choose someparts of the novel “Kiss of the Spider Woman” by the Argentineanauthor Manuel Puig. I knew the text in Portuguese and I agreed it could

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be an option. After reading the English version I grew enthusiastic andchose a particular speech, making very few cuts. In a few words, thenovel deals with two men in some South American prison. Molina (mycharacter) had been arrested because of his sexual activities. The othercharacter was a political prisoner who had just been tortured. Molinawas trying to cheer him up by telling him about various films he hadseen, playing with his own imagination.

This piece was a great challenge all together. It is a long narrativeof a visual experience (the film) with long phrases that unfold detail afterdetail. I divided the text into narrative of actions and additionalinformation background to the actions. Surprisingly, to memorize thetext was not difficult at all. The phrases are interconnected in a continuousflowing of thoughts and memories. When I first tried blocking themonologue, I created the space of a cell with two beds, and two bar-windows. The director suggested then, economy of movement,concentration (reduction in number) of focus and more facial expressionand vocal variety. I set up two main focuses: my cellmate (whom I placedin the audience) and the movie screen (which I placed above the audience).By visualizing the scenes narrated in a screen, I made its dimension varyconstantly. In fact, in some moments, I transformed it into a tri-dimensional movie, putting me inside the actions, by suggesting physicallythe characters mentioned in the story, their actions and reactions.

8. Once I loved

Singing is my acting skill which has been the most developed in thisMaster’s program. I have just uncovered the enormous possibilities of it.I must keep on training both my speaking and singing voice, as well aseverything else, but particularly I must develop my singing skills (as anactor, not as a singer myself). In these last two years, I have accomplishedmuch more than I ever expected.

This tune was suggested by Chris Kachian. It is considered one of thebest examples of Bossa Nova (Brazilian jazz style internationally famoussince the early sixties). It has been recorded by Ella Fitzgerald, João

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Gilberto, and other American, Brazilians, as well as European, singers. Itis a simple song, in a fairly comfortable range which should be song withease. I had known the song for years but I had never realized its compass,bars, accents, dynamics, pauses. Chris Kachian was a patient instructor.We worked together for ten hours approximately. I worked on my owna lot too. I heard João Gilberto and Ella Fitzgerald many times. I alsoheard my own voice recorded and was, at first, appalled by the difference,by afterwards resigned with my own capabilities. I must say that I surprisedmyself with the result.

In the second performance I was late for the second part of the song(the English version) but I recovered the timing with the terrific helpfrom Chris. However, I got self-conscious for a moment, I took off myactor’s mask and showed a human being in trouble. It was a short moment(not all the audience noticed it), in which I was lost and made an involuntarygesture of hiding my face.

I also worked the song in my “Acting for Music-Theatre” course. I washelped with choices of focus and specifically choices on the meaning oflyrics. I was also helped with confidence and easy posture.

Conclusion

To conclude this supporting paper I would like to evaluate briefly mygrowing as a performer in this graduate program, since the recital is akind of final step. Previous to this program I had never had an academicprogram of studies as an acting student. In fact, my underground coursewas in Philosophy (logic, aesthetics, ethics, ontology, gnoseology). Myacting training comes from independent courses with classes in movement,voice, style, improvisation, etc. Exercises of various traditions (Stanislavsky,Brecht, Grotowski, Peter Brook, Jean Villar, Living Theatre, Viola Spolin)were part of this very non-systematic (non-organized) training, whichhad started throughout the years with short plays in elementary school,advancing through political theatre in High School, and professional andcommunity theatre. Some productions took three to six months to prepare

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(courses by more experienced actors and directors were part of therehearsal period). I got interested in dance and took various short coursesin Modern Dance (American tradition), African Dance, and Capoeira(Brazilian Martial Art). After having performed in approximately fortyproductions, and in a few films and TV programs, I started teachingPhilosophy of Art, particularly of Dance, at the Universidade Federal daBahia, and worked for two years in extensions projects involvingcommunity theatre as well as university theatre. Finally LASPAU/ Fulbrightscholarship offered me, my first organized course in theatre arts.

My vocal training had been more an introduction to voice production,breathing, awareness of vocal physiology, release of tensions, articulation,and projection. In the master’s program I learned more precisely how touse my voice in a healthy and effective way. I experienced more withvariations of volume and pitch and also started my singing training.

In movement, my primary field of interest, I had the opportunity tostudy and practice in my graduate program more than never before,Period dances, American musical, jazz, stage combat, commedia dell’arte,tai chi chuan and sports that were available on and off campus. I enjoyedit. On the other hand, I became aware of the fact that had been anobstacle for me for years: I used to rely on my expertise with bodymovement, and overlook the possibilities of facial expression and voice.My first impulse when I started performing in English was to use mybody and gestures to compensate the initial discomfort of performingin a second language. This has been an exciting, although hard process:voice and face, particularly for the cameras. These became more importantaspects of my acting training and my performance as an actor. Thus myexcitement towards the “Acting for the Camera” course this Fall.

I also had the opportunity to get acquainted with Uta Hagen’s and RobertCohen’s in the Stanislavsky tradition. My recital is the result of all theabove mentioned experience. I gave it a ritual organization (I opened therecital with an offering and ended it with a sad-happy love song offarewell) thinking of Grotowski. Other reference to Grotowski was the

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fact that I used a little to no costumes (I was barefooted the entire showand only added one shirt to the basic costume in only one scene – I alsoused a hat in another scene). Furthermore, I tried to really reveal myselfto the audience. The sudden change of characters, the recital situationand my didactic goal were references to Brecht. But, above all theories,joy was the best aspect of my recital.

In fact, the joy I experienced with “Spring Romance” was mybest reward yet in my work. In addition, I now know better my needs intraining and how to fulfill them. My love/romance with theatre has beenreinforced. It has been a continuous celebration of fertility. To performto an audience, to please, to learn, to teach, to create, to transform, onstage, motion pictures and TV, that is all I want.

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O indivíduo traz no corpo, além de sua história pessoal, a história econdições de seu ambiente. A natureza – abrangendo do clima à paisagem;e a cultura, compreendendo das estruturas socioeconômicas às políticas;e também religiões, ciências e artes – é o seu ambiente. Os aspectosfísicos pessoais, da voz à respiração, do peso à altura, da estrutura ósseaà muscular, dos órgãos internos à pele, da emoção à razão, são realizadosconcretamente em seu corpo.

Este, através de processos de interação com as circunstâncias maisimediatas, apresenta-se como uma unidade biocultural que, usualmente,faz parte de um ou mais grupos comunitários, em específicos ecossistemas.

A totalidade do indivíduo é a presença do universo em um corpo humanosingular.

O ator de teatro, assim como o dançarino e o cantor, é o artista que fazde si próprio, do seu próprio corpo, o material primeiro de sua arte. É oartista nu. Ele pode atuar sem outros elementos que seu próprio corpo.Ele pode prescindir de tudo, de instrumentos musicais a roupas, deequipamento auxiliares, de som, de luz, de qualquer outro aparato cênico– ele só não pode prescindir de si próprio e de um público. Ele é oartista nu com a sua arte (VELOSO, 1981).

Outros artistas, nem melhores nem piores que ele, também podem fazerde si próprios a matéria-prima de sua arte, mas sempre precisarão deutilizar um violão, ou uma câmera, ou tinta, ou outro material

O ator nu:

notas sobre seu corpo e treinamento nos anos 80*

* Publicado originalmente In: ART: Revista da Escola de Música e Artes Cênicas,

Salvador, v. 5, p. 33-50,1982.

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intermediário. O artista cênico, contudo, quando utilizar um instrumentoou material desses, o fará apenas por convenção cultural (o uso de roupas,por exemplo), ou necessidade de caracterização (tal personagem fuma,bebe e toca violão em cena, por exemplo), para seu aprimoramentotécnico (o vídeo-cassete, por exemplo), ou ainda por delírio ou purorealce (purpurina, por exemplo) (GIL, 1979).

Assim, fica claro que o ator de teatro depende, fundamentalmente, de seucorpo para trabalhar artisticamente. Os artistas mais diretamente aparentados(o dançarino, o cantor, ou, ainda, o mímico, o palhaço, o mágico, o acrobata,ou mesmo, ainda, o músico instrumentista) não são discutidosespecificamente aqui, mas no que de comum possuem com o ator. Naverdade, não interessa, no momento, traçar rígidos limites entre um e outros.O objetivo deste artigo é apenas roçar de leve um tema tão amplo quantogenérico: o ator de teatro e o treinamento do seu corpo, nos anos 80.

A questão do corpo do ator faz parte de uma questão mais ampla sobreo uso e a realidade do corpo humano. Pode-se dizer que este se tornouo centro das preocupações libertárias na Europa e Américas dos últimosvinte anos. Era natural, pois o corpo estava reduzido a duas funçõesbásicas de produção: reprodução sexual e trabalho. Desde os movimentoshippies dos 60 aos movimentos antinucleares mais recentes, passando pelosmovimentos de minorias (negros e gays, por exemplo), a questão docorpo tem sido centralíssima. Trata-se de uma luta de Vida contra Morte,de Eros contra Tânatos, que foi mais evidente sobretudo nos anos 60.

Apesar do recuo da contracultura na década de 70, que já foi comparadoa uma “ressaca”, os temas principais da década anterior continuam emfoco, ainda que mais retraídos (HOWARD, 1982, p.5). A nudez, a vivênciade novos estados de percepção e sensibilidade, o sexo vistofundamentalmente como fonte de prazer, as propostas de novas vivênciascoletivas, a politização da cultura, e a relação corpo/poder são temasque se desdobram em mil políticas e jeitos de corpo. A revitalização dadança e a valorização da linguagem corporal são fatos incontestes noocidente, hoje (GARAUDY, 1979, p. 11).

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Como o teatro viveria essas transformações?

No contexto da avant-garde americana, por exemplo, Richard Schechnerconsidera os anos 70 como anos de queda e declínio. Analisando o teatrodos últimos vinte anos, ele afirma que o diretor assumiu o poder,anteriormente atribuído ao autor dramático, como elemento definidordo espetáculo. Na verdade, Grotowski e o Living Theater, para só citar asduas maiores influências internacionais dos 60, utilizando textos clássicos,propuseram novas leituras, colagens e montagens (desses textos). O passoseguinte seria a destituição do diretor pelos atores, o que resultaria, porum lado, no movimento dos espetáculos de criação coletiva e, por outro,numa linha de espetáculos-solo que alguns atores levaram adiante.Ratificando a importância do narcisismo no teatro, Schechner assinala,contudo, que a tomada do poder no espetáculo, pelos atores, sobretudoos solistas, levaria ao exagero de uma parte (o narcisismo), em relação aotodo (a comunhão teatral), criando-se assim uma situação desconcertantee vazia, ainda que prenhe de potencialidades. Na verdade, ele já indicauma positiva tendência, resultante para a atual década de um teatrointercultural, não internacional, porque não entre nações, mas intercultural,porque entre povos de culturas diversas. Ele afirma a importância docontato e troca entre artistas das chamadas sociedades industriais comartistas do chamado terceiro mundo. Não se trata de um contatosuperficial, mas de um contato vivencial com o deslocamento físico deuns e outros para novos ambientes naturais e culturais. Essa tendência,que ele relaciona com as propostas do Living Theater, do LaboratórioTeatral de Grotowski e do teatro antropológico de Eugenio Barba, seriao atual estado da avant-garde teatral no ocidente (SCHECHNER, 1981,p.18 -19). Ele escreve sobre esse futuro imediato:

Algo de bom, que ficou desse período que agora termina (os anos70), é o reconhecimento de que a teatralidade é uma atividadehumana primária. Ela não imita e/ ou é consequência de outroscomportamentos sociais. Não se trata de política como Malina eBeck pensam, nem da vida cotidiana como Stanislavski pensou,nem do ritual em que Grotowski acreditou certa época. A teatralidadeé um processo que se entrelaça com esses outros processos. E é

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nossa tarefa investigar os múltiplos tecidos e malhas quepoderemos obter através do entrelaçamento desses diferentescomportamentos sociais (SCHECHNER, 1981, p. 9-18).

No que se refere à revolta social dos anos 60 e à origem da proposta deSchechner, vale detalhar, ainda que brevemente, uma referência: o Living

Theater, um dos grupos de teatro que melhor expressou as inquietaçõesdo período.

Criado em 1947, por Julian Beck e Judith Malina, o Living Theater viveudiversas fases, desde a utilização do apartamento do casal como teatroaté a apresentação de espetáculos na Broadway e nas ruas de grandescidades da Europa e da América, passando por experiências de vidacomunitária em pequenas cidades do terceiro mundo (Ouro Preto, noBrasil, por exemplo). A politização do grupo começou em 1963 com aocupação do local onde o grupo apresentava por três dias “The Brig”de Kenneth Brown. Daí o grupo se exilaria na Europa como umacomuna anarquista de vinte e seis pessoas (COLE; CHINOY, 1970, p.652-653).

Em vários países europeus e no seu retorno aos EUA, em 1968, sempreencorajando a participação da plateia, eles ofereceram rituais onde anarrativa, linguagem e ação tradicionais eram substituídas por transesioga e toda a sorte de gritos e sussurros com o objetivo de exteriorizar o“grito interior”. Livre expressão corporal, nudez, expressão sexual, livresdeclarações políticas e ação comunal, tudo combinado em espetáculosao mesmo tempo altamente controlados e ainda assim abertos àimprovisação dos atores e do público (COLE; CHINOY, 1970, p.653).

Interessante notar que suas fontes teóricas são basicamente as mesmasde Grotowski: Stanislavsk, Artaud e Brecht. Outras coincidências são oenvolvimento da plateia no espetáculo e a ênfase no trabalho corporal.No entanto, diferentemente de Grotowski, o Living Theater não ficariarestrito a um espaço nitidamente teatral (estúdios, laboratórios, teatros),mas levaria sua proposta às ruas, inclusive às barricadas e à tomada doTeatro Odeon em Paris, em 1968 (MALINA, 1970, p . 663).

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Ainda nesse ano, em Nova York, o grupo transformaria um painelintitulado “Teatro ou Terapia”, com jornalistas, políticos, artistas eintelectuais, num happening de gritos, sustos e desafio (HOWARD, 1982,p. 5)1. Outra diferença entre esses dois líderes do teatro ocidentalcontemporâneo: o Laboratório Teatral foi criado para ser mantido porum estado comunista, enquanto o Living Theater, sempre à parte doestablishment, funcionava, no período de maior radicalização, como umaespécie de guerrilha teatral anticapitalista.

Mas o que, sobre o seu método de interpretação, o seu método detreinamento do ator, Julian Beck escreve?

Consciência intelectual não é bastante. Nós temos sidointelectualmente cônscios e conscientes por milhares de anos. Nóstemos agora de sê-lo fisicamente. Se nós pudéssemos sentir a dornós não poderíamos suportá-la e encontraríamos um meio deeliminá-la. Artaud. (Beck, 1970, p. 654-655).

Judith Malina apresenta alguns detalhes:

Exercícios de interpretação: nós desenvolvemos um exercício paracriar uma cena que precisa desse exercício. Algumas vezes nóstrabalhamos respiração. Urn yogin do circo em Perugia ensina aalguns atores suas técnicas de respirar. Allen Ginsberg faz mantras

conosco em Brooklin. Coisas desse tipo.Mas nosso exercício maior é praticar e desenvolver uma misteriosae extraordinária sensitividade de um para com o outro. E o fazemosem nossa vida diária, nos ensaios e espetáculos, nas refeições, nocuidado com as crianças.Nós sentimos os detalhes de cada um como amantes. E no palconós estamos começando a tratar cada um numa linguagem que sópodemos chamar de mágica porque não há outra categoria.Este é o exercício.

1 Ver também Malina, p.661.

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Incluir o público nessa sensibilidade e nessa linguagem e permitir aele a inclusão de todo o mundo nessas mesmas sensitividade elinguagem é realizar a cena para a qual o exercício é criado (MALINA,1970, p. 655).

Pretendendo destruir as barreiras entre arte, política e vida, eles seposicionaram revolucionariamente, tentando fazer do Bem algo maisinteressante que o Mal. Um teatro messiânico pela Bela Não ViolentaRevolução Anarquista (Beck, 1970, p. 663). Uma referência históricafundamental.

O conceito de que a arte do ator é facilmente acessível, a qualquer pessoa,e a relação corpo-poder são dois temas que se desenvolveram nessasduas décadas e que também merecem referência em relação aotreinamento do ator, nos anos 80.

A politização do teatro e o interesse pelo poder educativo e de coesãocomunitária do teatro são algumas das razões para o estabelecimento doconceito de que: é simples para qualquer pessoa o ato teatral. Viola Spolinescreve: “Toda pessoa pode interpretar. Todo mundo pode improvisar.Quem quiser pode atuar em teatro e aprender a ser digno do palco(SPOLIN, 1970, p. 641).

Augusto Boal, pretendendo colocar o teatro a serviço dos oprimidos,considera-o um meio de produção e instrumento revolucionário e oferece200 Exercícios e Jogos para o Ator e o Não-Ator com vontade de Dizer Algo

através do Teatro (BOAL, 1979). Essa tendência facilitaria o surgimento denovos artistas e a difusão do teatro em novas áreas, além de contribuirpara o enriquecimento da própria linguagem teatral. Inúmeros sistemassimplificados para o treinamento do ator surgem desde então e oferecemum começo, uma iniciação, uma abertura.

O outro tema que merece ser referido é a relação corpo/ poder. Treinarimplica estabelecer uma forma de controle? Controle muscular e controlesocial são a mesma coisa? A relação instrutor/estudante é uma forma de

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controle, em que medida? O autotreinamento do ator, se possível, éuma forma de poder narcísico?

Treinar o corpo do ator não deverá ser nunca uma forma de controlesocial pelo poder dominante. Muito pelo contrário, deverá significar umdescontrole do estabelecido. Diz Jean Duvignaud que:

o ator de teatro ... só aparece nas sociedades cumulativas e históricasem que a consciência implícita possibilita uma intervençãoprometeica do homem sobre suas estruturas e experiênciaseventuais, que não se reduzem imediatamente às normas da vidadiária codificada.(DUVIGNAUD, 1972, p. 18)

É como se a capacidade de interferência histórica do homem fossesingularizada na figura do ator. Este particulariza artisticamente a condiçãoativa do homem como ator social e antecipa mudanças nas relações depoder. Daí ficar claro que o corpo do ator não deverá ser treinado parao controle social, mas para a transformação.

Vale a pena ainda ressaltar que o poder responde a toda ameaça detransformação. Diz Michel Foucault:

Como resposta à revolta do corpo (dos 60) encontramos um novoinvestimento que não tem mais a forma de controle-repressão,mas de controle-estimulação: ‘Fique nu, mas seja magro, bonito,bronzeado!’ A cada movimento de um dos dois adversárioscorresponde o movimento do outro. É preciso aceitar o indefinidoda luta. O que não quer dizer que ela não acabará um dia(FOUCAULT, 1979, p. 147).

Com essas referências, como deverá ser o treinamento do ator nos anos80?

Treinar implica, primeiro, conhecer-se o objeto a ser treinado. No caso,o objeto, que é também o sujeito da ação, é delimitado fisicamente pelocorpo humano e deve ser entendido como uma unidade psicofísica e

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

cultural. O primeiro momento do treinamento deve ser um momentode autoconsciência. Como o corpo respira e se move? Como sente ereage? Como se relaciona entre suas diversas partes e com o ambienteexterior? Como é compreendido na sua e em outras culturas? Quais sãoas convenções sociais mais ou menos tácitas sobre o uso dos sentidos nacomunidade onde o ator trabalha? Quais são as relações interpessoais,intercorporais e corpo-espaciais?

Noções de anatomia, psicologia e antropologia, ecologia, história e poesiasão, sem dúvida, altamente úteis para o ator. É importante, por exemplo,o conhecimento daquilo que o antropólogo Edward T. Hall chama de“proxemics”, ou seja, o estudo do uso que o homem faz do espaço, dossentidos e do corpo em diferentes culturas (HALL, 1966, p. 1). Naverdade, o ator, como todo artista e todo homem, deve procurar saberde tudo o que diz respeito ao humano, seja como experiência prática(em primeiro plano), como especulação poética ou teórica, ou aindacomo simples delírio. No entanto, todo esse aprofundamento nadasignificará, se não for realizado através de uma pesquisa pessoal física eespecifica sobre o seu próprio corpo. As descobertas poderão sersurpreendentes.

As necessidades socioeconômicas da comunidade, geralmente,demandam um desenvolvimento pessoal mínimo (FELDENKRAIS,1977, p. 1619). O indivíduo tende, como consequência, a contentar-secom um mínimo em relação a si próprio. Daí que, ao trabalhar emfunção de uma maior intimidade consigo mesmo, e com o seu corpo,o ator descobrirá um universo de possibilidades, um conjunto depotencialidades e capacidades não desenvolvidas que, por si só, poderáalterar toda a sua vida (BARKER, 1981, p. 2). Esse processo dedescoberta é estritamente pessoal. No entanto, a colaboração de uminstrutor ou de colegas, atores, será definitiva. Através de simplesexercícios de movimento e respiração como, por exemplo, os propostospor Moshe Feldenkrais, o ator poderá ampliar-se (FELDENKRAIS,1977, p. 66-171). Trata-se aqui de uma necessidade pessoal e profissional,um primeiro momento.

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Armindo Bião

Em segundo lugar, secundando-se apenas por uma questão deorganização, treinar o corpo do ator implica superar as dificuldades neledescobertas, tais como deficiências de respiração e desconfortáveistensões musculares. Na verdade, essas dificuldades podem se constituir,inclusive, num obstáculo à plena realização do aqui chamado primeiromomento do autoconhecimento. Daí ficar claro que, conhecer o corpodo ator e superar suas dificuldades, são ações praticamente simultâneas.

Neste segundo momento, inicia-se um processo especificamente teatral desuperação dos obstáculos que impedem a plena realização da arte do ator.Num nível, procura-se superar as dificuldades que inibem o pleno e saudáveldesenvolvimento do corpo. Aí se pode entrar num vasto campo médico,que vai do nutricionismo às mais sofisticadas terapias, inclusive todas asiogas. No entanto, o que mais importa aqui é um método teatral deinterpretação que localize e destrua as dificuldades pessoais do ator.

Em Por um Teatro Pobre, Grotowski apresenta um método que PeterBrook considera a mais completa investigação sobre a arte do ator, desdeStanislavski (BROOK, 1976). Na verdade, o que ele e o LaboratórioTeatral tentaram, com fervor religioso, desde 1959, foi justamentedescobrir como o ator pode destruir todas as barreiras com o objetivode fazer um presente total de si mesmo em sua comunhão com o público(COLE; CHINOY, 1970, p. 529- 523). Grotowski explica em rápidaspalavras a essência do seu método:

o nosso é uma via negativa, não uma acumulação de habilidades, masa erradicação de bloqueios que se colocam entre o ator e sua confissãocriativa. Não se trata da instrução de um pupilo, mas de uma aberturapara outra pessoa, onde o fenômeno de um nascimento duplo ecompartido é possível. O ator renasce não apenas como ator, mascomo um homem e com ele eu renasço. O que se alcança é a totalaceitação de um homem pelo outro (GROTOWSKI, 1970, p. 530).

Criado na tradição de Stanislavski, a quem ainda considera seuideal (“ele levantou as questões metodológicas mais importantes”),Grotowski (1970) também estudaria cuidadosamente Dullin, Delsarte,

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Meyerhold, Vakhtangov, Brecht e Artaud. No que diz respeito a umatécnica do ator, ele considera estes dois últimos mais como criadores deuma estética de que de um método de interpretação específico. Brecht,na verdade, propôs um dever ético e estético para o ator, a quem tambémestudou em detalhe, embora sempre sob o ponto de vista do diretor.Por outro lado, Artaud – mais de que um método – criou um poderosoe estimulante poema para o ator2. Embora seu método seja o mesmopara todo ator, Grotowski considera que a formação do ator é individual.Não existem receitas, existem exercícios. Mas exercícios que serãorealizados pelo ator de acordo com sua personalidade e as necessidadesdo seu corpo. Até que ele se sinta seguro e confiante e possa realmenterevelar-se. Isto implica disciplina e espontaneidade, dois conceitos(contraditórios só na aparência) caros para Grotowski: “Meyerhold baseouseu trabalho em disciplina, Stanislavski na espontaneidade do cotidiano.Estes são os dois aspectos complementares do processo criativo”(GROTOWSKI Apud COLE; CHINOY, 1970, p. 532).

Distinguindo entre a sua estética, estritamente pessoal, e o seu método –um instrumento disponível para quem se interessar – a proposta deGrotowski de um teatro pobre, onde, eliminado todo o supérfluo, ficaapenas a relação ator-público: a melhor para a realização do aqui sugeridocomo segundo momento.3

Coloca-se, então, um terceiro momento, também apenas por uma questãode organização, no treinamento do ator e seu corpo. Vale a pena estudartécnicas positivas? Quer dizer, no sentido grotowskiano do termo, vale apena acumular novas habilidades, ao lado da destruição de bloqueios?Por que não? Dirigindo-se mais uma vez as suas circunstâncias culturais,o ator reconhecerá um sem número de jogos e danças, rituais e costumes,que poderão ser incorporados ao treinamento.

2 GROTOWSKI Apud COLE; CHINOY, 1970, p. 530-531.3 Idem, Ibid. p. 535.

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Para o ator, desenvolver a capacidade de ser em seu próprio corpouma síntese viva de sua comunidade (desde as mais imediatas eespecíficas às mais universais) é ampliar e, na verdade, realizar sua própriacondição criativa. Na medida em que se compreende o dinamismocultural, cria-se um novo resultado, uma proposta de transformação.Os jogos e brincadeiras infantis, por um lado, as danças populares e osrituais religiosos, por outro, serão ao mesmo tempo material paraexercício e performance. Não se trata da criação de um novo artistafolclórico. A intenção não é simplesmente reproduzir determinada dançano palco, mas utilizá-la para o enriquecimento da linguagem corporaldo ator.

Considere-se, por exemplo, a utilização da capoeira no treinamento deatores na Bahia. Entre uma arte marcial e um esporte, uma forma dedança e/ ou luta, a capoeira é um “jeito de corpo” desenvolvido pelosafro-baianos como uma forma de defesa/ ataque e celebração física ecultural. Utilizando elementos de flexibilidade, agilidade, força, equilíbrioe ritmo, a capoeira também solicita o uso integral dos sentidos,especialmente visão, audição, tato e olfato (o paladar apenas comocorrelato). Que melhor técnica de corpo poderia ser indicada para oator baiano? O balé europeu? A dança moderna americana? As artesmarciais do oriente? Não se trata, de modo algum, de negar a utilizaçãodessas técnicas como enriquecimento para o ator baiano, aqui tomadoapenas como exemplo, mas afirmar a capoeira como técnica ideal deesquentamento, ginástica e destreza para ele, identificada que éculturalmente com seu universo imediato. Nesse caso, a capoeira é,sem dúvida alguma, uma habilidade necessária a sua formação técnica.

É claro que o treinamento do ator é um processo tão longo quanto suaprópria vida. Quanto mais técnicas ele dominar mais amplo e fértil poderáser seu arsenal criativo. No entanto, existe o perigo de uma acumulaçãoexcessiva de técnicas superficialmente absorvidas. Aí entra o julgamentodo ator e/ ou do instrutor. O importante é tentar percorrer os trêsmomentos básicos aqui sugeridos e, sobretudo, abrir os sentidos para onovo para que sua arte seja sempre nova e viva.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Enfim, para manter o corpo (mais uma vez entendido como totalidade)sempre pronto para o ato de revelação teatral, o ator precisará desenvolveruma rotina pessoal de trabalho. Exercícios de voz, movimento,observação, vivência, comunicação, ritmo e imaginação deverão estarincluídos nessa rotina. Esta variará de acordo com o calendário deatividades do ator e suas necessidades e será modificada continuamenteno processo de ensaios e espetáculos através da troca de experiênciascom os colegas de teatro.

“O teatro,” como diz Grotowski (Apud COLE; CHINOY, 1970, p.530),é um encontro, um encontro entre pessoas que preparam um novoencontro, que deverá ser compartido com outras pessoas. É aí que o atoré treinado, no encontro com outros artistas, nos ensaios, pesquisas eespetáculos, no encontro com os amigos, família e público, enfim, noencontro com os outros. Muito trabalho e muito prazer deverá ser a basedo treinamento; ao lado de um autoconhecimento e autoconsciênciaconstantemente atualizados, ao lado da destruição de novos bloqueios quesurjam e/ ou de velhos que persistam, e, finalmente, ao lado de uma imensacuriosidade e do exercício de velhas e novas habilidades. Os grandes temassobre o corpo dos anos 60 e 70 continuam no debate dos 80. São essas aspedras no caminho do ator de hoje. Pedras no seu corpo, coração e mente.

O ator nu é o poeta do corpo total. O homem transformando-se emsujeito na ação.

O crescimento, a iluminação e o prazer estão na trilha de seu trabalho. Oencontro pessoal e coletivo faz parte de sua própria vida profissional.Uma profissão que, como qualquer outra, não deve conduzir à alienaçãodo indivíduo em relação ao universo, mas a sua integração com ele e àtransformação dos dois.

Referências

BARKER, Sarah. The Alexander Technique. New York: BantamBooks, 1981. p. 2.

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Armindo Bião

BECK, Julian. “Awareness”. In: COLE, Toby; CHINOY, Helen Krich(Eds). Actors on Acting. New York: Crown Publishers, 1970. p. 654-665.

BOAL, Augusto. 200 Exercícios e Jogos para o Ator e o Não-Ator

com Vontade de Dizer Algo através do Teatro. Rio de Janeiro: EditoraCivilização Brasileira S.A., 1979.

BROOK, Peter. Introdução. In: Grotowski, Jerzy. Em busca de um

Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1976.

COLE, Toby; CHINOY, Helen Krich. “Jerzy Grotowski”. In: COLE,Toby; CHINOY, Helen Krich. Actors on Acting. New York: CrownPublishers, 1970. p. 529

COLE, Toby; CHINOY, Helen Krich. “Julian Beck and Judith Malina”.In: ______. Actors on Acting. New York: Crown Publishers, 1970. p.652-653.

DUVIGNAUD, Jean. Sociologia do Comediante. Rio de Janeiro: ZaharEditores, 1972, p. 18.

FELDENKRAIS, Moshe. Awareness through Movement. New York:Harper and Row Publishers, 1977. p. 16 - 171. (Tradução brasileira:Consciência pelo Movimento).

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: EdiçõesGraal, 1979, p. 147.

HALL, Edward T. The Hidden Dimension. New York: Doubleday andCompany, 1966. p. 1.

GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Editora Brasil S.A.,1979. p. 11.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

GIL, Gilberto. Realce. Intérprete: Gilberto Gil. In Realce. Rio de Janeiro:Warner Music, p1979. 1 disco sonoro (60 min.), 33 1/3 rpm, estéreo, 12pol. Lado A, faixa 1 (4 min 24 s).

GROTOWSKI, Jerzy. Towards a Poor Theatre. In: COLE, Toby;CHINOY, Helen Krich. Actors on Acting. New York: CrownPublishers, 1970. p. 530

HOWARD, Gerald (Ed). The Sixties. New York: Washington SquarePress, 1982. p. 5.

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SCHECHNER, Richard. “The Decline and Fall of the (American) Avant-Garde”. Performing Arts Journal, [S.l], n.15, p. 18-19, 1981.

SPOLIN, Viola. “Creative Experience”. In: COLE, Toby; CHINOY,Helen Krich (Eds). Actors on Acting. New York: Crown Publishers,1970. p. 641.

VELOSO, Caetano. Nu com minha Música. Intérprete: Caetano Veloso.In: Outras Palavras. São Paulo: Philips, p1981. 1 disco sonoro (40 min.),33 1/3 rpm, estéreo, 12 pol. Lado A, faixa 6 (3 min 54 s).

MISCELÂNEA DO MESMO

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Armindo Bião

Criado em 1994, por professores e alunos de Teatro, Dança, Comunicaçãoe Educação, da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, o GIPE-CIT reúne, desde então, docentes, estudantes de graduação e pós-graduação e pesquisadores. Com apoio do CNPq, para seu Projeto deConsolidação (1997-2000), o Grupo esteve na origem do Programa dePós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia -PPGAC/ UFBA, em 1997, e da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), em 1998. Tem sido um dospolos, em nível internacional, de desenvolvimento da etnocenologia, efoi anfitrião dos dois colóquios internacionais realizados em Salvador,Bahia, Brasil, em 1997 e em 2007, dedicados à etnociência das artes eformas de espetáculo. O GIPE-CIT mantém o periódico Cadernos do

GIPE-CIT (21 números publicados), e realiza, regularmente, ciclos deencontros, e ações de apoio a projetos em desenvolvimento e a programasde intercâmbio. O grupo tem publicado livros e coletâneas de resultadosde pesquisa: em 1998, foi publicado Etnocenologia, Textos

Selecionados; em 2000, Temas em Contemporaneidade, Imaginário

e Teatralidade (ambos pela Editora Annablume); em 2005 e 2006 forameditados três livros sobre Dança; e, em 2007, o livro Artes do Corpo e

do espetáculo: questões de etnocenologia, com a participação de 26autores. Mantém parcerias com o PPGAC/ UFBA, o GRUPACE, daFaculdade Social e com o CARPA, da UNEB, em Salvador, e, em âmbitonacional, com o TRANSE/ UNB e diversos GTs da ABRACE. Nocampo internacional, articula-se com grupos das Universidades Livre de

Sobre o GIPE-CIT para o Censo do

CNPq de 30.11.2008*

* Texto enviado para o Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq em 22 nov. 2008.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Bruxelas, Frankfurt, Nice e Paris (V, VIII e X), além da Cena Lusófona edo Instituto Politécnico de Leiria, em Portugal. Destaca-se a intensaprodução artística dos integrantes do grupo, através da qual oconhecimento produzido chega ao público de maneira articulada com acena. O grupo mantém atualmente sua comunicação virtual através de<www.gipe-cit.blogspot.com> e de links das instituições parceiras.

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As logomarcas do GIPE-CIT, do PPGAC e da ABRACE são frutodo trabalho de muita gente, como Antonio Firmo Queiroz Júnior, WilsonPérsio Menezes, André Luiz Mustafá e, mais recentemente, João Cappello,além de mim próprio, que as imaginei junto aos colegas mais próximos.Aqui registro alguns dados sobre sua história e o sentido de cada umadelas.

A primeira marca criada foi a do GIPE-CIT, nosso original grupo depesquisa e extensão, cuja ideia é a de uma espiral ascendente infinita,indo do azul mais escuro, quase negro, ao azul infinito cada vez maisclaro do branco futuro presumido, visando à criação de uma ilusão óticade perspectiva, do espaço tridimensional reduzido a apenas duasdimensões, o que consideramos corresponder de fato a sua proposta. Opossível negro inicial, de algum modo, remete à ideia da condensaçãoabsoluta da matéria em um só ponto que teria explodido num eventualbig bang em algum momento do passado. O presumido branco futuroseria a desintegração total da matéria por conta do processo contínuo deexpansão e de entropia do universo, sem qualquer conotação valorativaem relação a momentos do tempo e a cores. Assim, a imagem do GIPE-CIT seria um mínimo fractal de uma possível imagem gráfica do universo.A ideia dessa espiral coexistiu por certo tempo com outra ideia de forma,que não chegou a se desenvolver graficamente, apesar de algumas poucase breves tentativas: tratava-se de uma brincadeira com duas palavras delíngua inglesa (tão característica da comunicação na contemporaneidadee tão forte no imaginário e na teatralidade contemporâneas), referindo-se ao movimento agitado nas novas metrópoles, que nelas incorporam

As logomarcas do GIPE-CIT, do PPGAC

e da ABRACE*

* Publicado originalmente como postagem datada de 01.08.2008. Disponível em:<www.gipe-cit.blogspot.com>.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

o mundo rural, onde seria comum ver-se um jeep (veículo utilitário e algoesportivo em qualquer sítio) circulando pela city. A noção de espiralrevelou-se mais eficaz, útil e funcional.

Para o PPGAC, criado em 1997, na UFBA, escolhemos a cor vermelha

da paixão e do sangue e a figura mítica da independência da Bahia,

o Caboclo, representando seu povo mestiço e ressaltando suas

matrizes ameríndias e também africanas. Assim, a imagem do Caboclo,do monumento esculpido na Itália por Carlo Nicole e entronizado daPraça Dois de Julho, mais conhecida como Campo Grande, em Salvador,no final do século XIX, passou também a representar nosso programade pós-graduação.

Em 1998, quando criamos a ABRACE, pensamos nas pessoas que

fazem as artes do espetáculo em sua relação com o público. Porisso escolhemos duas imagens, que, superpostas, formam umarepresentação gráfica de um abraço: de um ator (ou uma atriz) queagradece a seu público, para quem abaixa a cabeça, e de um dançarino(ou dançarina) em postura de port de bras, que envolve o colega(historicamente, a dança é anterior ao teatro) e que também reverencia opúblico, para quem se apresenta. Teatro e dança são efetivamente, porexcelência, as artes do espetáculo, tão importantes na UFBA, que deusede e berço aos primeiros cursos de dança e teatro em universidades noBrasil e que deu berço e sede, também, à ABRACE, em seus primeirosquatro anos, até 2002. Além do mais, a forma circular do conjunto gráficoresultante remete ao circo e a todos os folguedos que fazem da roda umformato de agregação e comunicação. A versão atual, em verde e preto,faz alusão, na figura do dançarino (ou da dançarina) à natureza e ao meioambiente (ainda que o verde possa ser uma cor tabu no teatro de algunspaíses, como a França, por exemplo) e, na figura do ator (da atriz), aonegro (cor da roupa do cortesão durante o Renascimento europeu, damoda contemporânea do “pretinho básico”, da elegância sobre o palcoe, ainda, do Atlântico Negro, berço de tantas artes do espetáculo, comoo tango argentino, o candombe uruguaio, o/s samba/s, maxixe, lundu,fofa, chula, forró, congos, tambor de crioula, capoeira, maculelê e

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maracatu brasileiros, a cúmbia colombiana, o merengue da RepúblicaDominicana, o calipso de Trinidad e Tobago, o mambo e a rumbacubanos, o reggae jamaicano, o jazz, o blues, o soul e o rock norte-americanos, o fado português, o flamenco espanhol, o funaná, a coladeirae a morna de Cabo Verde, o semba e o n’golo angolanos, os batuques efandangos de toda parte, por exemplo).

Todas essas marcas, apesar das referências acima sobre o sentido de suascores, têm sido aplicadas com variantes de cor e forma, em função dossuportes e de outras circunstâncias eventuais. O que tem permanecido,sempre, e, sobretudo, em termos conceituais, é o seu sentido.

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Folhas volantes, Pliegos sueltos, littérature de colportage, volksbücher, ousimplesmente cordel. O maior objeto de estudo do ator, encenador ediretor de teatro Armindo Bião tem referências na Espanha, em Portugal,na França e até na Alemanha, mas é no Brasil que continua vivo e pulsante,cada vez mais encantador. Bião, que durante sua gestão na FundaçãoCultural do Estado da Bahia catalogou mais de mil folhetos e mantém500 em sua coleção particular – alguns portugueses, do século XVIII –,admite que os versos melodiosos do cordel ocupam um espaçoimportante em sua vida. Nesta entrevista à repórter Cássia Candra, elefala da vocação de “imprensa barata” desta literatura utilizada pelodramaturgo francês Molière para divulgar os textos de suas peças. Doprimeiro contato com os versos interpretados pelo lendário Cuíca deSanto Amaro, no Elevador Lacerda, à relação estruturante do cordelcom o teatro baiano, Bião vem fazendo curiosas descobertas. Opesquisador baiano viajou esta semana novamente à Europa para sedebruçar novamente sobre sua fonte inesgotável de observação. Agorafocado na feiticeira Padilha, ele se entrega aos desígnios fascinantes demais uma personagem intrigante dos folhetos de cordel.

A Tarde – O fato de o cordel focar na ação dos personagens

favorece adaptações de romances? Você acha que é um aspecto

importante a ser considerado?

O cordel ainda está muito vivo no Brasil*

Entrevista com Armindo Bião, pesquisador dos folhetos no

contexto teatral, ele vem fazendo descobertas raras e originais

(A TARDE, 2008).

* Publicado originalmente no Caderno Cultural, publicado aos sábados como suplementodo jornal diário In: A Tarde, Salvador, Bahia, p. 6-8, 05 abr. 2008.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Armindo Bião – Acho que sim, porque na história da imprensa, quandosurgem os primeiros folhetos impressos de papel barato, eles são utilizadospara contar as grandes histórias, os grandes romances.

AT – Então, o cordel já surgiu com esta vocação?

AB – Já, o que se chama de cordel, no Brasil, o que se chama, na Espanhade pliegos sueltos (folhas soltas), também chamado em Portugal de folhetosvolantes, era impresso em folhas dobradas. Era, inclusive, uma formadas pessoas ganharem dinheiro. Temos registros de que em Portugal, naEspanha, na França, nos séculos XVI e XVII, já se fazia isso em grandequantidade, porque dava dinheiro. Até as peças que se faziam, de sucesso,como as de Molière, por exemplo, vendiam-se na porta do teatro, otexto em folhetos de cordel. Eles diziam “pendurado a cavalo, numbarbante”, como se estivesse montado num fio de barbante daí aexpressão cordel. Então, era sim a vocação da imprensa “barata”, vocêcomprar as grandes histórias em cordel, Cervantes, por exemplo, Don

Quijote de la Mancha...

AT – Já foi adaptado para cordel, no Brasil, há 40 anos...

AB – Sim, estamos voltando a uma forma tradicional, onde a imprensasurgiu, de vender em grande quantidade, mais barato... Claro que temuma coisa de dar acesso ao público leitor, mas tinha interesses comerciaisde quem imprimia. Alguns autores teatrais reclamavam, porque quemimprimia nem era o próprio autor, era uma outra pessoa que imprimiae ganhava o dinheiro (risos). Essa história de Lope de Vega, por exemplo,um poeta e dramaturgo espanhol, que escrevia as peças em manuscritos.Alguém via, imprimia e ganhava dinheiro. Porque era uma coisa simples...

AT – A afinidade da linguagem de cordel com outras linguagens

contribuía para isso?

AB – Sim, porque o folheto de cordel, de certa maneira, é uma espéciede jornal. No Nordeste, o cordel surgiu quando as linhas de trem e as

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Armindo Bião

primeiras gráficas foram implantadas. O cinema chegou – antes de se tera xilogravura, se usou muito na capa dos folhetos imagem de cinema.Isso era multiplicado por pessoas que sabiam ler, que reuniam a família,tanto para contar notícias, como para passar o tempo. O folheto A

história da donzela Teodora tem uma foto de cinema utilizada na capa. Comoimagem, além das fotos, havia desenhos e, mais recentemente, axilogravura. O mais interessante é que o fenômeno do cordel no Brasil,e mesmo na Europa, é um processo industrial, surge com a imprensa,com o trem, com essas coisas da modernidade. A xilogravura é associadaao artesanato, por isso se tornou a capa mais comum dos folhetos, mastenho exemplares antigos, portugueses, do século XVIII, que só têmtexto. O folheto clássico não tinha imagem, só texto ou então uma únicaimagem que era a marca da indústria gráfica. Mas no Nordeste, ficoumuito atraente a imagem da xilogravura.

AT – É interessante falar destes primórdios em Portugal e na

Espanha. A origem ibérica do cordel surpreende muita gente. Talvez

pelo fato do Nordeste ter incorporado tão bem a alma desta

literatura ainda seja comum remetê-la ao regionalismo. Por que isso?

AB – Porque o cordel está muito vivo no Brasil. Em Portugal, a partirda Primeira Guerra Mundial, praticamente some a impressão de folhetosnovos. Tem uma impressora portuguesa, chamada A Barateira, que andoupublicando alguns. Na Espanha também, os pliegos sueltos praticamentesumiram, assim como na França, chamados de littérature de colportage. NoBrasil, esse fenômeno ainda está tão vivo que no dia 7 de maio vou meencontrar estudantes da Califórnia interessados em literatura de cordel.Acho que isso não se desenvolveu por lá, pelo menos não tenhoconhecimento. Na Alemanha, sim, havia os volksbücher (folheto popular),inclusive Fausto, que depois se tornaria a obra maior de Goethe, foipublicado inicialmente em um folheto. Aí aconteceu o inverso, a adaptaçãofoi do cordel para o clássico. O folheto era um fenômeno da EuropaOcidental, de onde a imprensa se difundiu: Alemanha, França, Espanha,Portugal. Na Inglaterra eu desconheço, nunca pesquisei [N.R.: ali havia oschapbooks]. Mas, a despeito disso, no Brasil é muito vivo e atual.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

AT – Ainda é no Nordeste onde se produz mais cordel?

AB – Hoje, São Paulo é um grande produtor de cordel, por causa daimigração dos nordestinos, se produz e se consome lá, inclusive. EmSão Paulo, olha aí o poder da imagem – começou-se a fazer capa colorida,em um formato maior, meio brilhante, para ter um poder de atraçãomaior. Tem uma impressora, a Louzeiro, que faz isso. E acharam que ocordel ia desaparecer, mas, ao contrário, tem se multiplicado.

AT – E é patente seu poder, porque muitos nordestinos se

alfabetizaram com cordel.

AB – É verdade. É interessante, essa função de alfabetizar. Muitos poetasde cordel disseram que aprenderam a ler ouvindo cordel e vendo ofolheto. Tem inclusive uma coleção da editora Hedra sobre vários poetascom a antologia e a biografia. Li isso, um que aprendeu a ler com cordele se tornou poeta. Tem a coisa da métrica e do ritmo. Por que as tabuadassão feitas com métrica e rima e canto? Porque é mais fácil de memorizar.A métrica e a rima do cordel facilitam o aprendizado, porque facilita amemorização. É um instrumento fantástico para a alfabetização.

AT – E quanto ao conteúdo?

AB – Tem tudo e vai além do universo popular. Tem uma parte, porexemplo, que é sobre Carlos Magno e os doze pares da França, que é umahistória de Carlos Magno. Tem todo um ciclo sobre o atentado de 11 deSetembro, em Nova York, dizendo que Bin Laden se escondeu em BomJesus da Lapa, um folheto baiano que remete a imagem do terrorista àde um romeiro da Lapa, onde há muitas grutas. Tem de tudo: históriasde cangaceiros, histórias de amor, da atualidade, de guerra e ciência.

AT – Em Portugal e na Espanha, também é diversificado?

AB – Sim. Conheço pouco o espanhol, mas o português tem peçasclássicas, que são transformadas em folhetos de cordel; há entremezes

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Armindo Bião

que são peças de humor e música, escritas no teatro e adaptadas para ocordel; tem histórias clássicas sobre personagens da mitologia grega. Mas,talvez pelo fato de no Brasil ser um fenômeno vivo aqui se favoreçatanto a diversidade.

AT – Seu contato com cordel foi desde garoto. O que o encantou?

AB – Acho que era a música e as imagens que vinham através dela.Lembro que passava no Elevador Lacerda – eu morava na Cidade Baixae tinha que vir à Cidade Alta – e encontrava Cuíca de Santo Amaro, queera uma figura que parecia Carlitos, dos filmes que eu via quando eracriança. Ele dizia umas partes do folheto, em versos, e falava de unspersonagens engraçados, como o marido que passou o cadeado na bocada mulher, coisas assim que fazia você imaginar, como no cinema, etinha a música, então aquilo era uma coisa de fantasia, de espetáculo, paramim. Na minha família também tinha gente que tinha folhetos, que lia,que tocava. Tinha um tio em Alagoinhas que fazia isso. Quando eu tinha15 anos e estudava no Colégio da Bahia, fiz um espetáculo todo emverso de cordel: Aventuras e Desventuras de um estudante. No mesmo ano,criaram o Teatro do Cordel no Vila Velha, então, isso foi só reforçandomeu interesse, que tem a ver com teatro.

AT – Você publicou um livro, em 2005, Teatro de Cordel na Bahia

e em Lisboa...

AB – É, nesse livro eu falo de um espetáculo que eu fiz com meusalunos, que criaram, depois, um grupo que fez um espetáculo para criança,Quem conto canta cordel encanta. Era uma adaptação de folhetos paracriança. Isso surgiu, porque algumas crianças que viam nossos espetáculospara adultos ficavam encantadas. Isso é do cordel, do seu ritmo, melodiae rima.

AT – Quais as características do teatro de cordel na Bahia e em

Lisboa?

398

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

AB – Em Portugal, já no século XVIII, primeiro veio o espetáculo, cujotexto por ser de grande aceitação foi impresso e vendido na porta doteatro. No Brasil, foi praticamente ao contrário. Nos anos 1960 quandose adapta o folheto diretamente para a cena, feito por João Augusto, noVila Velha, é o folheto que é transformado em peça de teatro. Claro quejá havia Ariano Suassuna, que se inspirou em vários folhetos para fazer Oauto da compadecida, além de várias peças. Ele escreveu uma dramaturgiainspirada. Mas no caso do teatro de cordel com o qual trabalho é quaseque uma adaptação direta do folheto para a cena, com pouca intervençãono texto original do poeta, autor do folheto. É uma adaptação, dequalquer forma, porque se divide uma coisa que já está no folheto, ondejá se encontra uma estrutura teatral de narração e de ação dramática. Háum caráter de vocação teatral muito grande. Primeiro o Cuíca (de SantoAmaro), que quando fazia a leitura de parte dos folhetos, fazia vozesdiferentes: ele fazia o narrador com uma voz, cada personagem comuma voz. Então, se um clássico como O corcunda de Notre-Dame é adaptadopara o verso, seja de um formato de sextilha ou mesmo de outrasestruturas de versos, a pessoa que for ler pode, na hora, fazer a voz donarrador, outro fazer a do Corcunda, da cigana Esmeralda e dos outrospersonagens. Acho que essa adaptação serve para a alfabetização e atransformação cultural, que é a tradição da imprensa no verso. Se isso secoloca com imagem, como a xilogravura, por exemplo, encanta aindamais.

AT – Que espaço o cordel ocupa hoje na sua vida?

AB – Ocupa um espaço quase que central, porque sou pesquisador doCNPq e meus projetos de pequisa – tive um novo aprovado agora, até2011 – envolvem a literatura de cordel. O que faço é um recorte depersonagens que me interessam. No momento são os personagensfemininos, de mulheres que têm a ver com o sobrenatural, envolvidascom o diabo, com as pombas-gira, com feitiço, uma coisa muitorecorrente no cordel. Agora mesmo estou como ator num espetáculochamado O pique dos índios ou a espingarda da Caramuru, no Teatro VilaVelha, no qual acrescentei ao meu personagem canções que eu mesmo

399

Armindo Bião

escrevi e que têm a estrutura do verso e da rima de cordel. Parte dotexto era em verso e eu coloquei música, no caso, Carmen, de Bizet, umdos autores mais populares de ópera, que trabalhava com escritores comoHalévy, na França, autor de libretos de operetas e de teatro, e que usavameste padrão, quase que universal da Europa Ocidental e da AméricaIbérica. É muito recorrente o uso da poesia no repente, na cantoria, quesão formas de dar alegria, encantamento. Então, para mim, hoje, o cordelé meu elemento central de pesquisa teórica, de folheto, como ator, diretore encenador.

AT – Mas, voltando ao seu maior objeto de estudo, no momento,

os personagens femininos...

AB – Nesta visita que eu vou fazer agora em bibliotecas da França,quero ver se encontro alguma coisa sobre uma personagem da históriaespanhola, chamada María de Padilla, que tem a ver com a nossa pomba-gira Maria Padilha. Porque há romances que são cantos e estão registrados,datando dos séculos XV e XVI, sobre María de Padilla, como sendouma feiticeira, amante de um rei. Tem também autos da Inquisição falandode bruxas que invocam María de Padilla ou Maria de Padilha. No textooriginal de Carmen, ela é invocada. Tem vários autores brasileiros queacham que é através da Inquisição, da perseguição a mulheres portuguesas– que vieram para o Brasil e que invocavam Maria de Padilha – que elaentrou no panteão da umbanda brasileira. Estou pesquisando, para tentarencontrar folhetos alusivos. Já tenho o catálogo de pliegos sueltos na Françae vou também a Madri e a Sevilha – onde ela está enterrada; vou aBurgos onde ela nasceu e a outra cidade onde ela construiu um mosteiro.

AT – Então, ela existiu de verdade? Você acha que há algum

registro no Brasil?

AB – Não. Sei que no Rio de Janeiro, onde Maria Padilha é muito popular,na umbanda, tem folhetos, mas falam da Padilha pomba-gira. Tem umlivro mais recente que fala da Padilha e da rainha como sendo a mesmapessoa, mas é um livro de umbanda, não é um folheto.

400

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

AT - O que você pretende com esta pesquisa?

AB – Ah, ela é um personagem tão curioso que merece um espetáculo.Se eu conseguir – com a ajuda de poetas e dramaturgos – escrever umtexto, vou fazer um espetáculo: A rainha, a espanhola amante do rei e a

pomba-gira brasileira.

AT – Que outra curiosidade você chegou a encontrar pesquisando

o cordel?

AB – Foi a descoberta do significado do nome Bião, que é o nome deminha família paterna. Aparece em folhetos do século XVIII, em Portugal,como bujão, que os pintores, caiadores, usavam para carregar cal. Elessão personagens negros – o preto caiador do século XVIII, do qual usovárias imagens no livro Teatro de cordel na Bahia e em Lisboa. Elesentram em cena carregando uma escada, um pincel e um bião de cal.Comecei a especular: teria sido meu ancestral, algum preto, caiador decasa, em Portugal? Ou era gordo e o chamaram de bião, porque pareciaum bujão? O cordel me levou a descobrir referências impressas da palavrabião, que não está em nenhum dicionário, a não ser um dicionário dealcunha onde aparece bião como alcunha, um apelido, que existia lá, noséculo XIX. Antes, no século XVIII, portanto, já estava impresso emfolhetos, como sendo instrumento de trabalho de pintores. Interessanteé que eram folhetos baseados em peças de teatro.

AT – De toda as maneira, você se encontrou no cordel...

AB – Pois é, me encontrei (risos).

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Armindo Bião

• Considerando que:

1. Na atual Tabela de Áreas de Conhecimento, na área de ARTES,

existem as 10 seguintes subáreas:

8.03.01.00-2 Fundamentos e Crítica das Artes8.03.02.00-9 Artes Plásticas8.03.03.00-5 Música8.03.04.00-1 Dança8.03.05.00-8 Teatro8.03.06.00-4 Ópera8.03.07.00-0 Fotografia8.03.08.00-7 Cinema8.03.09.00-3 Artes do Vídeo8.03.10.00-1 Educação Artística;

2. No CNPq, dentro do Comitê Assessor de COMUNICAÇÃO,

ARTES, CIÊNCIAS DA INFORMAÇÃO, MUSEOLOGIA

e TURISMO:

• os projetos das subáreas acima, exceto os de CINEMA, sãohabitualmente destinados a dois consultores, das ARTES PLÁSTICASe da MÚSICA; e eventualmente a um convidado do TEATRO e daDANÇA (ex-presidente da ABRACE, do PPGAC/ UFBA);

• os projetos de CINEMA são habitualmente analisados pelosconsultores de COMUNICAÇÃO e não de ARTES;

Tentativa de contribuição sobre áreas de

conhecimento da Tabela do CNPq*

* Texto inédito, para reflexão junto aos colegas da área das artes do espetáculo.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

• Sugiro que:

1. FOTOGRAFIA seja uma subdivisão de ARTES PLÁSTICAS – ouVISUAIS;

2. ÓPERA seja uma subdivisão de MÚSICA;3. DANÇA e TEATRO sejam subdivisões de uma nova subárea, de

ARTES DO ESPETÁCULO AO VIVO, ao lado das seguintes novassubdivisões:• ETNOCENOLOGIA;• ARTES DO CIRCO;• ARTES DO MIMO;• PERFORMANCES;

4. CINEMA e ARTES DO VÍDEO sejam subdivisões de uma novasubárea, de ARTES DO ESPETÁCULO MIDIÁTICO;

5. FUNDAMENTOS E CRÍTICA DAS ARTES e EDUCAÇÃOARTÍSTICA, quando se referirem a projetos que não se enquadremem ARTES PLÁSTICAS – ou VISUAIS, MÚSICA, ARTES DOESPETÁCULO AO VIVO ou ARTES DO ESPETÁCULOMIDIÁTICO, sejam subdivisões de uma nova subárea, deEPISTEMOLOGIA E OUTROS ASPECTOS GENÉRICOS;

6. que todos os projetos das novas subáreas de ARTES abaixo (apenascinco) sejam destinados ao comitê assessor de ARTES, composto derepresentantes das quatro últimas dessas subáreas (em negrito):• EPISTEMOLOGIA E OUTROS ASPECTOS GENÉRICOS;• ARTES PLÁSTICAS – ou VISUAIS;

• MÚSICA;

• ARTES DO ESPETÁCULO AO VIVO;

• ARTES DO ESPETÁCULO MIDIÁTICO.

403

Armindo Bião

Enfim, depois de quase dez anos de sua primeira edição (em francês,pela editora L’Harmattan, 1997), pode-se ler, em português, esta que é amais completa, ampla e, simultaneamente, simples, obra de referênciasobre a literatura de cordel brasileira. Para mim, é uma alegriaincomensurável e uma enorme honra poder apresentá-la, neste momento,na qualidade de ex-aluno de sua autora, seu amigo e colega em múltiplasempreitadas e, circunstancialmente, Diretor Geral da Fundação Culturaldo Estado da Bahia.

A edição desta obra pela Fundação Cultural dá continuidade a uma históriainstitucional iniciada com a implantação do Núcleo de Cordel da Bahia,em 1980. Desde então, este projeto, inicialmente liderado pelapesquisadora Edilene Matos, promoveu muitos concursos, de nível locale nacional, bem como cursos e exposições. Dele resultou, entre outrascoisas importantes, a criação da Banca de Trovadores e Repentistas,instalada na Praça Cairu, em Salvador, em parceria com a PrefeituraMunicipal. De sua história, além de muitos técnicos e funcionáriosdedicados, participaram, ativamente, por exemplo, os poetas RodolfoCoelho Cavalcante (1919/ 1986) e Bule-bule (1947). Hoje, um acervode milhares de folhetos de cordel e de obras de referência sobre essatemática faz parte do patrimônio da Fundação e integra seu Núcleo deReferência Cultural, que já colocou, à disposição do público interessado,todo o referencial aí reunido.

Também, no âmbito do sistema baiano de cultura e, certamente, comoconsequência do trabalho desenvolvido pela Fundação Cultural, aliteratura de cordel brasileira tem merecido atenção, por exemplo, da

Prefácio à edição brasileira de livro francês

sobre cordel*

* Publicado In: SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca dos. Memória das vozes: cantoria,romanceiro e cordel. Salvador, SCT/ FUNCEB, 2006. p. 3-6.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Superintendência de Cultura da Secretaria da Cultura e Turismo, quemantém, desde 1997, a Linha Editorial Cordel, já com seis títulospublicados1. De fato, tanto a Superintendente, Dra. Sonia Bastos, quanto oSecretário da Cultura e Turismo, Dr. Paulo Gaudenzi, quanto o governador,Dr. Paulo Souto, têm dado a merecida atenção a esse segmento da produçãocultural, identificado não somente ao interior de nosso estado, mas, também,à intensa migração interna à Bahia e à região nordestina e, ainda, à recorrentemigração entre o Nordeste e o Sudeste de nosso país.

É nesse contexto que, em 2006, quando a Bahia celebra os 80 anos denascimento de Minelvino Francisco da Silva (1926/ 1996), relembrandoos 20 anos da morte de Rodolfo Coelho Cavalcante e iniciando ascomemorações do centenário de Cuíca de Santo Amaro (1907/ 1964),a ser celebrado em 2007, a Fundação Cultural oferece a todos osinteressados a obra de referência sobre a literatura de cordel brasileiraque é o livro de Idelette Muzart-Fonseca dos Santos.

Memória de vozes, de tradições recriadas, de matrizes entretidas, estelivro ultrapassa os limites da literatura de cordel brasileira, situando-a naencruzilhada das literaturas orais lusófonas e abrindo vias para acompreensão dos romanceiros ibéricos, das cantorias e dos desafios, dapoesia cantada e improvisada de uma maneira geral

Parafraseando – e citando – nosso querido Jean Duvignaud2, em seuprefácio à edição francesa de Memória das vozes: cantoria, romanceiro

1 Antologia Baiana de Literatura de Cordel (1997); Ele, o tal Cuíca de SantoAmaro (1998, MATOS, Edilene); Cordel: Arte e Poesia (2001, RAMOS, JoséCrispim; RAMOS, João Crispim); O Cordel Remoçado (2003, VIEIRA, Antônio. 2volumes); Teatro de Cordel na Bahia e em Lisboa (2005, BIÃO, Armindo);Evangelho de Matheus (2206, PEREIRA, Landsperge Alves).

2 Sociólogo francês da arte e do teatro, presidente da Maison des Cultures du Monde (Paris,França), presidente do colóquio de instalação da Etnocenologia, na UNESCO (ParisFrança, 1995), um dos responsáveis pela descentralização da gestão da cultura naFrança, atualmente residindo em sua cidade natal (La Rochelle, Charente Maritime)[tive a subida honra de tê-lo como presidente de meu júri de doutorado, sob a direçãode Michel Maffesoli, em 1990, na Sorbonne, Université René Descartes, Paris 5].

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Armindo Bião

& cordel, eu diria ser ele mais competente do que eu para apresentar estelivro, também em sua edição brasileira, senão vejamos: “a obra deMadame Fonseca dos Santos recoloca o enigma ainda indecifrável datranslação do oral ao escrito... Poemas impressos, sim, mas que antesforam ditos, cantados, recitados com o acompanhamento de alguminstrumento... a ‘cantoria’ das fantasias e sonhos do Nordeste –posteriormente posta por escrito. O Nordeste – uma das regiões maisfascinantes do Brasil, porque aí se confundem, numa mestiçagem culturalsecular, a gesta dos ‘cangaceiros’, aquela de ‘canudos’, outrora descritapor Euclides da Cunha, as proezas de Rolando ou de Carlos Magno,trazidas com os cantos litúrgicos pelos portugueses, as lendas africanas,do mestiço, de um caráter indianista disperso – e a malta do noticiáriocotidiano, esportivo, policial, político. Uma química poética, sempre viva.Madame Fonseca dos Santos conhece esses lugares: francesa, brasileirapor adoção, ela... nos joga hoje na encruzilhada da literatura, da etnologiae das ciências da comunicação”3, em suma, eu acrescento, da etnocenologia.De fato, quando, entre 1984 e 1985, estudei metodologia da pesquisa emliteratura oral com a professora Idelette, seguindo sua própria orientação,dediquei-me, particularmente, a refletir sobre os etnotextos e aperformance da literatura oral em nossa pesquisa sobre o romanceirobaiano4. As artes do espetáculo ao vivo ou, dito de outro modo, oscomportamentos e práticas humanos espetaculares organizados ou, ainda,as performances que saem da rotina para lhe dar sentido, são o objeto,por excelência, daquilo que, juntamente com Jean Duvignaud (1998) eoutros, passamos a chamar, ao longo dos últimos anos, de etnocenologia5.

Retomando as palavras do magistral prefácio: “A terminologia ‘literaturaoral’ convém para definir a possante e informal criatividade do Nordeste– da qual a translação escrita dá apenas uma vaga ideia. Esta rede de

3 Tradução do autor.4 Ver BIÃO, Armindo; SANTOS, Ideltte. “Romanceiro Baiano”. Estudos

Linguísticos e Literários, Salvador, n. 7, p. 146, 1988.146 p.5 Ver BIÃO, A. GREINER, C. (Orgs.). Etnocenologia, Textos Selecionados.São

Paulo: Annablume, 1998.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

signos, de cantos, de evocações furtivas, de ritmos não possui a intençãolatente de se completar em escritura. ‘A memória das vozes’ põe comacuidade a relação sempre obscura entre mito e livro [...]construçõesrituais... [que] respondem às grandes exigências naturais e comuns – asexualidade, a morte, a doença, o invisível e o medo. ‘Múltiplas vozestrançam a memória da qual o folheto é o herdeiro’, diz justamenteMadame Fonseca dos Santos. O herdeiro, porque, hoje, essas figuraspoéticas nascem da troca generalizada de signos, de coisas, de palavrasque compõem a trama da vida social. Este incessante comércio entre osmembros de uma comunidade que, em cada geração, solda-se a coerênciade uma maneira, igualmente, a cada vez, diferente. Uma troca. Umarivalidade. Uma ‘aprendizagem imaginária do real’ que toma forma nosencontros, nas rivalidades dos ‘cantadores’, quando das festividades emque se confrontam [...] Uma gênese social dos mitos”6.

Este livro é testemunho e fonte que, certamente, inspira – inspirará – seuleitor. Chave para terrenos desconhecidos ou ainda mal conhecidos, elenos abre novas vias mesmo para o que – talvez – já conheçamos.

Boa leitura! Boa aventura! É disto do que aqui se trata: ler, sonhar, avançar,refletir, distrair-se, reencontrar-se...

Salvador, Bahia, Brasil, 22 de maio de 2006

6 Tradução do autor.

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Senhora Diretora da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia,professora, doutora, Eliene Benício Amâncio Costa, Senhor Coordenadordos Colegiados dos Cursos desta Escola, Professor Eduardo Tudella,Senhora Secretária deste Colegiado Jacqueline Fontes, SenhoraRepresentante da Comunidade Baiana, Vanda Machado, aqui relembrandonosso querido e saudoso colega, o ator, dramaturgo, diretor e professorCarlos Roberto Petrovich, caríssimos colegas Maria Eugênia Millet, MeranVargens, Hebe Alves, Sérgio Farias, Ângela Reis e Riomar Lopes, aquirepresentada por seu bolsista Ricardo Stewart, meus colegas da Escolade Teatro Bira Reis e Seu Zé, amigos e familiares dos formandos, meusalunos e ex-alunos, minhas senhoras, meus senhores:

No sentido original da palavra, discursar é percorrer alguma coisa emtodos os sentidos. Pois meu breve discurso, hoje, aqui, é apenas ummomento de uma longa conversa. Uma conversa na qual comecei atomar parte, ainda criança, há quase 50 anos atrás, quando testemunhei,pela primeira vez, um espetáculo verdadeiramente teatral, aqui atrás, noestacionamento desta Reitoria. Era O Boi e o Burro a Caminho de Belém,texto de Maria Clara Machado, direção de Eros Martins Gonçalves, ocriador de nossa Escola, Martim Gonçalves. Nosso Petrô, aliás, era oboi, ou o burro, o outro protagonista era nosso também saudoso colegaEchio Reis. E esta é uma conversa, também, sobre nosso presente, quenão sabemos nem quando se transformará ou futuro, nem mesmo ondee quando se terminará.

Discurso para os graduados pela Escola de Teatro

da UFBA em 2006*

* Lido na Solenidade de Formatura de oito Graduandos nas Habilitações em InterpretaçãoTeatral e em Direção Teatral do Bacharelado em Artes Cênicas e da Licenciatura emTeatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no Salão Nobre da Reitoria, emOito de Fevereiro de 2006.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Este discurso é, também, um milagre, como tantos que ocorrem nasartes do espetáculo. É um milagre de comunicação, de muitas ausênciaspresentes e de nossa presença viva aqui e agora de corpo e espírito. Éum milagre jubiloso, num momento de conflitos culturais em todo omundo, que se realiza em nossa cidade belíssima, de cuja beleza a maioriade seus cidadãos ainda não pode realmente gozar, num estado abençoadopela história e pela natureza, que é triste e alegre como qualquer outro –Bahia, que é, simultaneamente, purgatório, inferno e paraíso, parte de umpaís em constantes crises de valores éticos e estéticos...

Este discurso é ainda motivo de vaidade (a minha, de ter sido convidadopara paraninfo nesta formatura), de alegria e de declaração de amor aoteatro e à Universidade, dois seres que parecem não terem sido feitosum para o outro, mas que começam a anunciar, na Bahia, boas soluçõespara sua convivência amorosa. De fato, nossa Escola reúne, hoje,indicadores, que revelam, em ambos os sentidos da palavra, um presentecheio de boas novas. Nossos espetáculos recebem prêmios, cada vezmais em cada vez mais lugares; nossas publicações são bem recebidas emultiplicam-se em quantidade e qualidade, nossos eventos ganhamrepercussão local, nacional e internacional, nosso principal laboratório, oTeatro Santo Antonio ou Martim Gonçalves, avança em sua necessária etão esperada reforma.

Nossos três cursos de graduação vêm reduzindo suas taxas de evasão aíndices próximos do aceitável. Nosso programa de pós-graduação éreconhecido nacional e internacionalmente como referência e é o berçoda sociedade científica de nossa área, a ABRACE, Associação Brasileirade Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Nosso quadro de pessoaldocente qualificado e de técnicos especializados, assim como nosso acervobibliográfico, se amplia. Nosso número de bolsas de pesquisa e de estudoscresce.

Nossos alunos de graduação, selecionados num universo crescente decandidatos, nos trazem propostas e uma melhor qualificação de educaçãobásica e secundária – e mesmo, eventualmente, universitária. Com muita

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Armindo Bião

iniciativa própria, eles nos ajudam a consolidar os necessários elos com acomunidade acadêmica e artística, na qual vivemos e com a qualconvivemos.

Temos otimizado os parcos recursos disponíveis e captado recursos comnovos e tradicionais parceiros. Na verdade, na Escola de Teatro da UFBA,está realmente ocorrendo um milagre. Sujeitos e objetos, percorrendo,em todos os sentidos, um belíssimo trajeto de vales e ladeiras de bomgosto, com cor de pau-brasil e com odor de canela, entusiasmados, comas graças de Santo Antônio e de Ogum, nós realizamos e sonhamos –tantos, tantos! projetos...

Esta formatura é a expressão perfeita de nosso entusiasmo. Como gentede teatro e da boa terra da Bahia de Todos-os-Santos, somos,permanentemente, habitados por deuses e por seres misteriosos, de todosos tipos. Neste momento, temos, com vocês que representam a cara, ascores, o corpo e o espírito do povo baiano, de modo tão autêntico e tãorepresentativo, vocês são a cara da Bahia e são lindos, vocês são a caramais linda da Bahia, reparem todos bem e aplaudam.

Temos, então, assim, alguém que, além de feliz no nome é um lídercordelista, Alain Félix, a luz diáfana da santa mãe de Maria e de seu filho;em Ana Luíza Souza de Jesus, mais uma bela fruta nesta salada sacra ealva; Arlinda Maria Alves Lima, um ser marinho, arbóreo e tambémcheio de graça e santos, Adelmário Oliveira dos Santos Gonçalves deJesus; alguém de cá e também de sobrenomes santificados; Cátia deAssis Santos; outro ser das águas, das terras e das artes do cone sul, IaraBernabó Colina; uma ressonância moura, judia e celtibera, em NaidiLopes Bacelar de Oliveira; que também soa algo hispânica e volta àsagrada família, em Ramona de Santana Gayão. E ainda teríamos – everdadeiramente até o temos, mais lusofonia com Veríssimo Vasconcellos.

Foram vocês, pela voz de Iara Colina – que me lembrou, por telefone, jános termos encontrado, antes, no Teatro Vila Velha – e através de Alaine de Ramona, que me convidaram para saudá-los, na qualidade de

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

paraninfo: o que me fez lembrar que a Escola de Teatro, cada vez mais,assemelha-se a suas congêneres na UFBA, até na opção pelas formaturascom solenidade – coisa, que, se não me engano, entre nós, não data nemmesmo de uma década completa.

Penso nas histórias que conheço das escolas onde se formar assim étradição, nas quais os alunos se organizam, em alguns casos, desde o seuprimeiro ano de universidade, com comissões, eventos para angariarfundos, planos, festas, brigas. E penso no pouco que eu sei do que sepassa – e se passou com vocês até chegarmos juntos, hoje, aqui. Pensono que vi – e vivi de similar – em Portugal, França e Estados Unidos daAmérica do Norte. E penso que só me lembro de alguns de vocês emsala de aula comigo (Ramona, Marinho, Alain, Arlinda, Cátia, Ana Luíza,por exemplo) e logo no começo do curso que vocês escolheram.

Penso no que vi e vivi em nossa universidade, como usuário de seusespetáculos, concertos musicais e cursos aqui mesmo, nesta Reitoria, de1956 a 1968; como aluno, de 1968 a 1975; como aluno, de novo, de1977 a 1978; como professor, de 1979 a 2004. E penso no que poderáser de vocês artistas e educadores, pesquisadores e gestores do terceiromilênio, como Petrô gostava de dizer. Penso no desafio que foi paracada um e para suas famílias tê-los como estudante de arte. E penso queser paraninfo é poder ser o amigo do noivo que ia, na Grécia antiga,com este, buscar a noiva, mas é sobretudo poder ser padrinho de umbatismo, o acadêmico, de um casamento, o de vocês com o teatro e aeducação, e de um duelo, com as certeiras adversidades que lhes esperam,e contra as quais não poderei, certamente, ser um protetor, o que apalavra paraninfo poderia até sugerir.

Meus caros, nossa conversa continuará, mesmo só tendo começado atratar deste assunto que nos reúne agora, deste momento, tão recentementee tendo eu, talvez, até, lhes decepcionado, o que, se ocorreu, ocorreuinvoluntariamente, de minha parte, tenham certeza. Na verdade eu queroagradecer a vocês, pela beleza do que vocês estão fazendo e vivendo eme permitindo testemunhar em lugar tão privilegiado.

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Vocês são vitoriosos por muitos e muito variados motivos, dos quais eudestaco, aqui e agora, apenas dois: o terem concluído o curso e o estaremrealizando esta solenidade, com um anel lindo, um programa lindo, umaoração linda, dando-me a ocasião de lhes oferecer, a cada um, umexemplar de meu livro sobre as pesquisas e apresentações artísticasinspiradas na literatura de cordel, que tenho feito com meus alunos eseus colegas e até parcialmente realizadas em sala de aula com alguns devocês. Passo agora a lhes entregar um exemplar a cada um, contendo,também, algumas palavras de nossa Maria Eugênia Millet, que trabalhouo cordel em sala de aula comigo, e com alguns de vocês, em nossaEscola.

Após a entrega a todos os oito formandos de meu livrinho, com muitoafeto e reconhecimento, passo a ler, por orientação de Alain Félix, otexto poético que Jotacê escreveu sobre o cinquentenário de nossa Escolae que vocês incluíram no programa, em formato de folheto de cordel,que documenta esta formatura.

Tendo lido, agradeço a todos, mais uma vez, muito obrigado!

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Agregar, otimizar, promover articulação e intercâmbio, ampliar espaçona academia e no ambiente artístico-cultural, fazer-se representar,conseguir apoio institucional e financeiro, pesquisar, qualificar recursoshumanos, produzir e difundir conhecimento no campo das artes cênicas,tanto em termos bibliográficos, quanto artísticos e técnicos: foram essesos verbos – e seus predicados – de ação que nos moveram, a mimpessoalmente e a meus colegas das Escolas de Teatro e de Dança daUniversidade Federal da Bahia (UFBA), a iniciar as ações concretas queresultariam na criação da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), em 1998.

Os mesmos verbos já nos haviam motivado a criar o GrupoInterdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade,Imaginário e Teatralidade (GIPE-CIT), em 1994, e o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), em 1997, ambos na UFBA. AABRACE foi consequência dessas duas criações coletivas anteriores.

Além dos colegas da UFBA (o Magnífico Reitor Luiz Felipe Serpa, aPró-Reitora Nice Americano da Costa Pinto, a Assessora Eneida LealCunha, os colegas da Faculdade de Comunicação, dos Institutos de Letrase de Saúde Coletiva, além dos pesquisadores Sérgio Farias e AntoniaPereira), duas outras pessoas foram de fundamental importância para aefetivação dos projetos do PPGAC/ UFBA e da ABRACE: a professoradoutora Sonia Pereira (da UFRJ), então representante da área de artes naCAPES, e a entusiasmada técnica responsável pela área de artes no CNPq,Vera Fonseca. Foi na convivência com elas e com outros consultores da

Nota Histórica sobre a ABRACE*

* Publicado originalmente in: JORNAL do III Congresso da ABRACE, Florianópolis,p.1, 2003. (Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas).

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

área de artes e de outras áreas de conhecimento, de diversas universidadesbrasileiras, que tive a honra e alegria de participar do amadurecimentode ambos os projetos.

A todos esses parceiros, os aqui citados e os aqui anônimos, nossossinceros agradecimentos, extensivos também aos colegas que, atendendoa nosso convite, reuniram-se na Bahia para a criação de nossa Associaçãohá cinco anos e que hoje continuam atuantes em nossa entidade.

Desde então, sempre com apoio da UFBA, da CAPES, do CNPq e daFAPESB, realizamos dois Congressos (São Paulo, 1999 e Salvador, 2001)e duas Reuniões Científicas (Salvador 2000 e Rio de janeiro, 2002), criamosvários grupos de trabalho, publicamos cinco números da série Memória

ABRACE e realizamos duas eleições de diretoria. Hoje, graças a nóstodos, a ABRACE, com sua terceira diretoria devidamente eleita e atuando,é uma Associação consolidada e respeitada.

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Armindo Bião

A coleção de publicações Memória ABRACE teve início com olançamento, durante a I Reunião Científica da ABRACE (02 e 03 de maiode 2000, Universidade Federal da Bahia), do Memória ABRACE I,reunindo os anais do I Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-graduaçãoem Artes Cênicas (15 a 17 de setembro de 1999, Universidade de SãoPaulo). Os interessados em adquiri-lo podem fazê-lo através do sítio virtualda Associação (disponível em : <www.ufba.br/~teatro/abrace>).

Em dezembro de 2000 foi lançado o Memória ABRACE II, com osanais da I Reunião Científica da ABRACE (Salvador, 2000),compreendendo as comunicações apresentadas no evento, suaprogramação, resultados e documentos aprovados. Os interessadostambem em adquiri-lo através do sítio virtual da ABRACE.

Em maio de 2001 foi lançado o Memória ABRACE III, reunindo omaterial de referência dos Grupos de Trabalho da Associação e preparouo II Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas,realizado em Salvador, de 8 a 11 de outubro de 2001.

Após a edição do Memória IV, Livro de Resumos do II Congresso daABRACE (Salvador, outubro de 2001), apresentamos aos leitores oMemória ABRACE V, Anais do II Congresso Brasileiro de Pesquisa ePós-Graduação em Artes Cênicas (maio de 2002).

A coleção Memória ABRACE conta com o financiamento do CNPq,da CAPES e da FAPESB/BA, antiga CADCT/BA para a publicaçãode seus cinco volumes, a quem agradecemos reconhecidos.

Editorial de Memória ABRACE V:

Anais II Congresso*

* Publicado originalmente in: CONGRESSO DA ABRACE, 2., 2001. Anais... Salvador:

Memória ABRACE V, 2002. p. 5-6.

416

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Criada em 1998, a Associação já publicou três edições de um boletim

informativo e uma primeira versão de um Banco de Teses e Dissertações,

encontrandi-se em planejamento editorial, para lançamento durante a II

Reunião Científica em 2002, de uma nova versão deste Banco, revista,

ampliada e atualizada, esperando contar com apoio de todos os

associados, no sentido de fazer chegar até a entidade dados sobre teses e

dissertações em artes cênicas defendidas e aprovadas no Brasil ou no

exterior, neste caso quando tratando das artes do espetáculo no Brasil,

ou quando da autoria de pesquisadores brasileiros.

A ABRACE mantém um sítio virtual (www.ufba.br/~teatro/abrace)

constantemente atualizado, com o objetivo de informar e dialogar com

a comunidade interessada na pesquisa e na pós-graduação em artes cênicas

no país, que hoje conta com cursos de mestrado específicos, na USP, na

UNIRIO e na UFBA, e com cursos de doutorado, também específicos,

na USP, na UNIRIO e na UFBA, além de possibilidades de pós-

graduação em áreas afins (ciência da arte, semiótica e cultura, ciências

humanas e letras) em diversas universidades brasileiras.

Com a presente publicação, bem como com sua inscrição, na qualidade

de Sócia, na Associação Brasileira de Editores Científicos – ABEC, e na

International Drama Education Association – IDEA, a ABRACE revela

sua intenção em consolidar-se como sociedade científica atuante e com

produção bibliográfica e técnica de excelência, contribuindo para a

diversificação e o enriquecimento do panorama científico e artístico no

ambiente acadêmico nacional e internacional.

Presidente da ABRACE 2000/2002

417

Armindo Bião

A coleção de publicações Memória ABRACE teve início com o

lançamento, durante a I Reunião Científica da ABRACE (02 e 03 de

maio de 2000, Universidade Federal da Bahia), do Memória ABRACE

I, reunindo os anais do I Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-

graduação em Artes Cênicas (15 a 17 de setembro de 1999, Universidade

de São Paulo). Os interessados em adquiri-lo podem fazê-lo através do

sítio virtual da Associação (disponível em : <www.ufba.br/~teatro/

abrace>).

Em dezembro de 2000 foi lançado o Memória ABRACE II, com os

anais da I Reunião Científica da ABRACE (Salvador, 2000),

compreendendo as comunicações apresentadas no evento, sua

programação, resultados e documentos aprovados. Os interessados

tambem em adquiri-lo através do sítio virtual da ABRACE.

Em maio de 2001 foi lançado o Memória ABRACE III, reunindo o

material de referência dos Grupos de Trabalho da Associação preparando

este II Congresso, igualmente disponível através de nosso sítio virtual.

Agora publicamos o Memória ABRACE IV, que contém os resumos

de comunicações inscritos, como instrumentos de informação e seleção

para participação no II Congresso da ABRACE, a ser realizado em

Salvador, Bahia, de 08 a 11 de outubro de 2001. Naturalmente, esse

Congresso deverá gerar o número V da série Memória ABRACE, com

a publicação dos anais do evento.

Editorial de Memória ABRACE IV:

Livro de Resumos do II Congresso *

* Publicado originalmente in: CONGRESSO DA ABRACE, 2., 2001. Anais... Salvador:

Memória ABRACE IV, 2001. p.9.

418

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Toda a série de publicações Memória ABRACE, que conta com apoio

institucional da CAPES, da Universidade Federal da Bahia e das outras

universidades representadas em nossa Associação (UNICAMP, UFF,

UNIRIO e USP), tem sido financiada pelo CNPq e pelo CADCT/ BA,

a quem agradecemos, sensibilizado.

Presidente da ABRACE 2000/2002

419

Armindo Bião

A coleção de publicações Memória ABRACE teve início com o

lançamento, durante a I Reunião Científica, da ABRACE (02 e 03 de

maio de 2000, Universidade Federal da Bahia), do Memória ABRACE

I, reunindo os anais do I Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-

Graduação em Artes Cênicas (15 a 17 de setembro de 1999, Universidade

de São Paulo). Os interessados em adquiri-lo podem fazê-lo através do

sítio virtual da Associação (abaixo indicado).

Em dezembro de 2000 foi lançado o Memória ABRACE II, com os

anais da I Reunião Científica da ABRACE (Salvador, 2000),

compreendendo as comunicações apresentadas no evento, sua

programação, resultados e documentos aprovados. Os interessados

também podem adquiri-lo através do sítio virtual da ABRACE.

Agora é lançado o Memória ABRACE III, reunindo o material de

referência dos Grupos de Trabalho da Associação e preparando o II

Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, a

ser realizado em Salvador, de 08 a 11 de outubro de 2001.

A coleção Memória ABRACE conta com o financiamento do CNPq e

do CADCT/ BA para a publicação de seus três primeiros volumes, a

quem agradecemos reconhecido.

Criada em 1998, a Associação já publicou três edições de um boletim

informativo e uma primeira versão de um Banco de Teses e

Dissertações, encontrando-se em planejamento editorial, para

Editorial de Memória ABRACE III:

Como pesquisamos? Os Grupos de Trabalhos*

* Publicado in: MEMÓRIA ABRACE III: Como pesquisamos? Anais... Salvador:ABRACE, 2001. p.5-6.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

lançamento durante o II Congresso em 2001, uma nova versão desteBanco, revista, ampliada e atualizada, esperando contar com o apoio detodos os associados, no sentido de fazer chegar até a entidade dadossobre teses e dissertações em artes cênicas defendidas e aprovadas noBrasil ou no exterior – neste caso quando tratando das artes do espetáculono Brasil.

A ABRACE mantém um sítio virtual (disponível em: <www.ufba.br/~teatro/brace>) constantemente atualizado, com o objetivo de informare de dialogar com a comunidade interessada na pesquisa e na pós-graduação em artes cênicas no país, que hoje conta com cursos demestrado específicos, recomendados pela CAPES, na USP, naUNICAMP, na UNIRIO e na UFBA, além de possibilidades de pós-graduação em áreas afins (ciência da arte, semiótica e cultura, ciênciashumanas e letras) em diversas universidades brasileiras.

Com a presente publicação, bem como com sua recente inscrição, naqualidade de Sócia, na Associação Brasileira de Editores Científicos(ABEC), e na Internacional Drama Education Association (IDEA), aABRACE revela sua intenção em consolidar-se como sociedade científicaatuante e com produção bibliográfica e técnica de excelência, contribuindopara a diversificação e o enriquecimento do panorama científico e artísticoem âmbito acadêmico nacional e internacional.

Os interessados em participar do II Congresso da ABRACE encontrarãoaqui os critérios de participação e todas as informações necessárias parasua inscrição e proposição de trabalhos.

Presidente da ABRACE 2000/ 2002

421

Armindo Bião

A coleção de publicações Memória ABRACE teve início com olançamento, durante a I Reunião Científica da ABRACE (02 e 03 demaio de 2000, Universidade Federal da Bahia), do Memória ABRACE

I, reunindo os anais do I Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (15 a 17 de setembro de 1999, Universidadede São Paulo). Os interessados em adquiri-lo podem fazê-lo através dosítio da Associação (abaixo indicado).

Memória ABRACE II reúne os anais da I Reunião Científica daABRACE (Salvador, 2000), compreendendo as comunicaçõesapresentadas no evento, sua programação, resultados e documentosaprovados.

Já se encontra em execução o planejamento editorial do Memória

ABRACE III, cujo lançamento está previsto para ocorrer ainda nesteano de 2000, reunindo o material de referência dos Grupos de Trabalhoda Associação e preparando o II Congresso Brasileiro de Pesquisa ePós-Graduação em Artes Cênicas, a ser realizado em Salvador, de 09 a11 de outubro de 2001.

A coleção de publicações Memória ABRACE conta com ofinanciamento do CNPq e do CADCT/BA para a publicação de seustrês primeiros volumes, a quem agradecemos reconhecido.

Criada em 1998, a Associação já publicou três edições de um boletiminformativo e uma primeira versão de um Banco de Teses e

Editorial de Memória ABRACE II:

Anais da I Reunião Científica*

* Publicado in: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃOEM ARTES CÊNICAS, 1., 1999. Anais... São Paulo: Memória ABRACE I, 2000. p.5-6.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Dissertações, encontrando-se em planejamento editorial, paralançamento durante o II Congresso em 2001, uma nova versão desteBanco, revista, ampliada e atualizada, esperando contar com o apoio detodos os associados, no sentido de fazer chegar até a entidade, dadossobre teses e dissertações em artes cênicas defendidas e aprovadas noBrasil e no exterior, neste caso quando tratando das artes do espetáculono Brasil.

A ABRACE mantém ainda um sítio virtual (disponível em:<www.ufba.br/~teatro/abrace>) constantemente atualizado, com oobjetivo de informar e de dialogar com a comunidade interessada napesquisa e na pós-graduação em artes cênicas no país, que hoje contacom cursos de mestrado específicos, recomendados pela CAPES naUSP, na UNICAMP, na UNIRIO e na UFBA, e com cursos de doutorado,também específicos, na USP, na UFBA e na UNIRIO, além depossibilidades de pós-graduação em áreas afins (ciência da arte, semióticae cultura, ciências humanas e letras) em diversas universidades brasileiras.Com a presente publicação, bem como sua recente inscrição, na qualidadede Sócia, na Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC), aABRACE revela sua intenção em consolidar-se como sociedade científicaatuante e com produção bibliográfica de excelência, contribuindo para adiversificação e o enriquecimento do panorama científico e artístico noambiente acadêmico nacional e internacional.

Presidente da ABRACE 2000/ 2002

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Armindo Bião

Editorial de Memória ABRACE I:

Anais do I Congresso*

Memória ABRACE é o título da coleção de publicações que ora seinicia com os resultados do I Congresso da Associação Brasileira dePesquisa e Pós-Graduação, realizado de 15 a 17 de setembro de 1999 emSão Paulo. Trata-se do eixo estrutural de um programa editorial que secompleta com a publicação do Banco de Teses e Dissertações, cujaprimeira versão foi lançada nesse Congresso, com o imprescindível apoiodo Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação da USP,e com uma série de boletins dirigidos aos associados da entidade, tendoo Congresso sido razão e motivo do primeiro número lançado no mêsde novembro último.

Criada em 21 de abril de 1998, em Salvador, Bahia, com amplaparticipação de lideranças representativas da área de artes cênicas (teatroe dança) de todo o Brasil, a ABRACE teve de fato nesse Congresso oprimeiro ponto forte de sua história. Seus anais, que ora são publicadosgraças ao apoio institucional financeiro do CNPq, revelam toda a extensãodessa força e importância. Sua repercussão já poderá começar a seravaliada na I Reunião Científica da Associação, programada para os dias02 e 03 de maio de 2000, mais uma vez em Salvador, que deverá sediarum II Congresso da Associação, previsto para o ano de 2001.

A riqueza e a diversidade de temas e de horizontes teórico-metodológicos,de níveis acadêmicos e de origem geográfica, presentes nesses anais queconfiguram o número 1 da série Memória ABRACE, podem setransformar, a partir de uma análise criteriosa, em indicadores que

* Publicado in: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃOEM ARTES CÊNICAS, 1., 1999. Anais... São Paulo: Memória ABRACE I, 2000. p. 5-6.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

justifiquem não somente o surgimento de nossa associação no panoramada pesquisa científica (e artística) brasileiro, mas igualmente o crescimentoda área de artes cênicas no sistema universitário de nosso país.

Com quatro cursos de mestrado (USP, UNICAMP, UNIRIO e UFBA)e um doutorado (USP) recomendado pela CAPES e explicitamentededicados às artes cênicas, a área já conta com a possibilidade, em curtoprazo, de ter mais dois cursos de doutorado reconhecidos (UNIRIO eUFBA). O número de bolsas de pesquisa e de pós-graduação concedidaspelo CNPq e pela CAPES para as sub áreas de teatro e dança vemmantendo, ao longo dos últimos anos, um ritmo constante de crescimento.Outros programas de pós-graduação (UFF e PUC/SP), por exemplo,que também abrigam projetos em nossa área, possuem indicadorespositivos nessa direção de melhora quantitativa. Enfim, tudo parecejustificar o otimismo que a leitura dessas quase 700 páginas, com quase200 contribuições, inspira.

A ABRACE, a mais jovem das sociedades científicas da área de artes noBrasil, seguindo o exemplo de suas congêneres das áreas da música e dasartes visuais, com a publicação dos anais de um Congresso, marca suapresença, sua especificidade e sua disposição para o diálogo com todasas áreas de conhecimento, consolidadas e emergentes, que configuram omomento atual no país e anunciam o incremento do intercâmbio mundiale da transdisciplinaridade que, provavelmente, caracterizarão o terceiromilênio.

Ao lado do Banco de Teses e Dissertações em Artes Cênicas

defendidas e aprovadas no país, que deverá ser semestralmente atualizado– sendo inclusive completado com dados de trabalhos afinsdesenvolvidos no âmbito de programas de pós-graduação que possueminterface com nossa área (comunicação, História, Antropologia, Letras,Educação, por exemplo) – e dos boletins informativos editados peladiretoria da Associação, esta série Memória ABRACE, que ora se inicia

425

Armindo Bião

em dia de graça e glória, deverá se constituir em poderoso instrumentode difusão e fomento de pesquisa e de produção acadêmica no âmbitodas artes do espetáculo.

Compreendendo a fundamental importância das publicações, semnegligenciar o evidente valor da realização de espetáculos de teatro edança no espaço acadêmico e profissional, para a consolidação da pesquisaartística, é esta contribuição para o enriquecimento da pesquisa científicano Brasil.

Presidente da ABRACE 1998/2002

427

Armindo Bião

Magnífico Reitor, Excelentíssimo Senhor Secretário da Cultura e Turismodo Estado da Bahia, caríssimos colegas:

No sentido original da palavra, discursar é percorrer alguma coisa emtodos os sentidos. Pois este discurso é apenas um momento de umalonga conversa. Uma conversa na qual comecei a tomar parte aindacriança, há uns 40 anos atrás, na Escola de Teatro desta universidade,quando testemunhei pela primeira vez um espetáculo verdadeiramenteteatral. Era um espetáculo sobre o advento da alegria dos homens,aqui atrás da Reitoria. E esta é uma conversa sobre nosso presente, quenão sabemos nem quando nem onde se terminará.

Este discurso é também um milagre, como tantos que ocorrem nasartes do espetáculo. É um milagre de comunicação, um milagre de muitasausências e de uma presença de corpo e espírito que é a que mais conta,a de vocês, graduando-se. É um milagre jubiloso, num momento deincertezas internacionais que nos lembram o início de duas guerras mundiaisdeste século. Um milagre que se realiza em nossa belíssima cidade daBahia, de cuja beleza a maioria de seus cidadãos ainda não pode realmentegozar, num estado abençoado pela história e pela natureza, num país emconstante crise socioeconômica e de valores éticos e estéticos...

Este discurso é ainda motivo de vaidade (a minha, de ter sido convidadopara patrono nesta formatura), de orgulho (de ter como voz a mais bela

Discurso para os graduados pela

Escola de Teatro da UFBA em 1999*

* Escrito em Paris e lido por Nilda Spencer na Solenidade de Seis de Abril de 1999, da

Formatura dos 15 Graduandos da Escola de Teatro da UFBA (10 da Habilitação em

Interpretação Teatral e 1 da Habilitação em Direção Teatral: 11 do Bacharelado em

Artes Cênicas; e 4 da Licenciatura em Teatro), realizada no Salão Nobre da Reitoria da

UFBA.

428

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

voz da Bahia, formada em boa parte em nossa Escola), de alegria (a departicipar de uma cerimônia histórica) e de saudade (estou em outrohemisfério, do outro lado do Atlântico). Este discurso é, enfim, umadeclaração de amor ao teatro e à Universidade.

O teatro e a universidade, dois seres que parecem não terem sido feitosum para o outro, começam a anunciar, na Bahia, boas soluções para suaconvivência amorosa. De fato, nossa Escola reúne hoje indicadoresque revelam um presente, em ambos os sentidos da palavra, cheio deboas novas. Nossos espetáculos recebem prêmios, cada vez mais emcada vez mais lugares, nossas publicações são bem recebidas e semultiplicam em quantidade e qualidade, nossos eventos ganhamrepercussão local, nacional e internacional.

429

Armindo Bião

O convite para rememorar minha Universidade, do colega EdivaldoBoaventura – marca da cultura e da educação baianas, em todos ossentidos –, é para mim uma honra tão grandiosa quanto a alegria quesinto atendendo-o. A formação simultaneamente francesa e norte-americana que nos identifica tem sua convergência, origem e fim, naUFBA.

Com 15 anos, vivendo em Itapagipe no bairro de Roma e ainda estudandono Colégio Militar da Pituba, a partir de 1965, comecei a frequentar ummundo fascinante na Cidade Alta: o Cinema de Arte de Walter da Silveira;o Instituto Cultural Brasil- Alemanha, seus filmes, cursos e exposições;os eventos culturais do Instituto de Cultura Hispânica da Universidade(ICHUB) (no Vale do Canela, onde meu pai costumava levar os visitantesamigos para passear, antes que os proprietário do Corredor da Vitória,impedindo a conclusão do projeto da Avenida Contorno, do professorDiógenes Rebouças, decidissem a abertura do campus universitário aotráfego urbano); o Teatro Santo Antônio, onde me deslumbrava o Grupode Dança Contemporânea com Rolf Gelewski; e o Salão Nobre daReitoria, onde me encantavam o Madrigal, a Orquestra Sinfônica, osnovos compositores da Escola de Música, os grupos estrangeiros, comoo de jazz de Paul Winter, e onde receberia, no ano seguinte, meu primeirodiploma universitário, o de um curso de extensão de introdução àAmérica Latina (ou Ibérica, como preferia o professor Valentim Calderónde la Vara), ministrado por grandes mestres, como Agostinho da Silva.Em consequência, em 1966, fui fazer o 2º ano Clássico no Colégio daBahia, o Central, onde começou a atuar no Grupo Amador de Teatro

O teatro mora na filosofia*

* Publicado originalmente In: A TARDE, Salvador, 03 set. 1996; e em BOAVENTURA,

Edivaldo M. (Org.). UFBA: Trajetória de uma Universidade 1946-1996. Salvador:

UFBA, 1999. p. 305-307.

430

Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

Estudantil da Bahia (GATEB), conheci o Vila Velha e o Grupo de Arteda Faculdade de Filosofia (GAFF). Ainda que pensasse fazer,originalmente, vestibular para Teatro, decidi-me pela Filosofia por causado GAFF e pelas ligações que estabelecera, em 1967, com João Augustoe o Vila, a consolidação de uma dissidência da Escola de Teatro, comsua inauguração no Passeio Público havia dois anos. Assim, com umcolega do GATEB, Carlos Sarno (o publicitário de renome) estudei parao Vestibular (Filosofia, Redação em Português e Tradução do Espanhol).Estudei com o provocador Rui Simões, o onipresente e lógico Pinheiro,o brilhantíssimo Auto de Castro e, entre outros, o magnífico CarlosCosta, que me entrevistou um dia, em classe, sobre a nova cultura jovem,da qual pretensamente eu seria um representante. Atuante no teatro e nomeio estudantil, juntamente com as Begônias, a comunidade em quevivia no Porto da Barra, deixei mais ou menos voluntariamente o Brasilem 1970, para ir, de carona, pela Europa juntar-me à comunidade brasileirade Londres, onde se encontravam Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Retornando a Salvador, quase perdera o direito à matrícula na UFBA.Assim como o primo, amigo e companheiro de percurso, Luciano Diniz,ajudado por Zahidée Machado Neto, reencontrei mais uma vez RuiSimões – saudoso mestre! – responsável pelo meu ingresso naUniversidade, que viabilizou meu retorno à academia e presidiu, em 75,a cerimônia de minha licenciatura em Filosofia – após oito anos de umcurso acidentadíssimo, que teve início em Nazaré, passou pelo prédio daFaculdade de Medicina no Terreiro, e concluiu-se em São Lázaro – cursono qual eu fora o mais jovem aluno, em 68 e, na graduação, o decano daturma. Em paralelo à Universidade, e ao longo dos anos 70, fiz teatro,experimentei o jornalismo (Verbo Encantado, 71/72 e Viver Bahia, 72/75) e atuei como pesquisador, redator, organizador e animador de eventos,na Bahiatursa (72/81). Em 77, fiz um novo Vestibular para Teatro efrequentei a Escola de Dança, da qual viria a ser professor colaboradorem 79 (Filosofia e História da Dança), a convite da professora DulceAquino, em substituição ao professor Romélio Aquino, que meapresentara (com cerveja e anchovas), juntamente com o amigo Rui (nacasa deste) ao professor José Artur Gianotti, da USP, de quem eu foraaluno na UFBA, em 69, num curso sobre fenomenologia.

431

Armindo Bião

Concluída, enfim, a minha vida estudantil, continuei na Universidade,como professor, merecendo a generosidade institucional para estudarnos Estados Unidos, com bolsa da Fundação Fullbright (Master of Fine

Arts, Interpretação Teatral, Minnesota, 81/83), e, na França, com bolsada CAPES/MEC (Doctorat d’Université, Antropologia Social e SociologiaComparada, Sorbonne, 86/90). Artista, pesquisador, cientista eadministrador – funções correlatas às de professor, dentro do meupercurso interdisciplinar exaltado, passo pela Extensão da UFBA comotécnico (79/81 e 84/86), coordenador central (92/93) e pró-reitor (93/96), trabalhando agora concentrado na integração orgânica entre extensão,pesquisa e ensino de graduação e pós-graduação nas artes cênicas (omestrado e, talvez, o doutorado serão lançados em 1997).

Professor da Escola de Teatro, desde a sua separação da Escola de Dança,em 1980, ali coordeno o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensãoem Contemporaneidade (GIPE-CIT), Imaginário e Teatralidade, daliparticipo do Centre International d’Ethnoscénologite (UNESCO) e, com apoiodo programa PIBIC/CNPq/PEP/UFBA e a participação de seis alunos,elaboro o Relatório do Projeto de Pesquisa “A Produção Acadêmica daEscola de Teatro da UFBA e sua repercussão (1956-1996) “. Que serápublicado pela Secretaria de Cultura e Turismo do Estado.

Vocação pessoal formada, estimulada e formatada pela vocação de nossaUniversidade para as artes e as humanidades, minha história é apenas umindicador de contemporaneidade baiana, que tem na cultura e no turismoa melhor alternativa para a promoção da qualidade de vida de seu povo.A cinquentenária UFBA é representativa, em termos positivos, dainstituição universitária, do sistema federal de serviço público e, de modoexemplar, da própria Bahia. Servidor da Universidade, por vínculoempregatício e dever de consciência do qual me orgulho na mesma medidaem que me orgulho de ser um de seus milhares de ex-alunos, considero-me, do mesmo modo, cidadão e servidor da Bahia.

433

Armindo Bião

Apaixonado pelas artes do espetáculo desde a infância, entrei naUniversidade Federal da Bahia,UFBA, em 1968, aos 17 anos, para cursarLicenciatura em Filosofia. Oito anos depois, após muitos percalços, ecom o apoio acadêmico fundamental de Rui Simões, licenciei-me. Emparalelo, desenvolvi atividades profissionais no teatro, na imprensa e napesquisa sobre ecoturismo e seu impacto nos patrimônios natural e cultural,que são sua razão de ser.

Em 1979, a convite dos professores Romélio e Dulce Aquino, habilitei-me para ensinar Filosofia da Dança, como professor colaborador daUFBA. Em seguida, passei também a lecionar História da Dança e aparticipar do planejamento e execução de atividades de extensão, na áreade artes. Foi quando, graças a uma inusitada oportunidade de fazermestrado em interpretação teatral, numa universidade norte-americana,minha carreira universitária passou a se consolidar como opção de vida,o que estava longe de ser, até então.

A Fundação Fulbright, durante alguns anos, manteve um programaintitulado Latin American Scholarship Program for American Universities

(LASPAU). Para 1981, o programa oferecia a professores deuniversidades brasileiras dez bolsas para mestrado na área de artes, dasquais metade ficou com a UFBA (teatro, dança e artes plásticas).

A seleção foi feita mediante a análise de uma proposta de estudosapresentada pelo candidato, acompanhada de Curriculum Vitae comcomprovantes. Um teste de conhecimentos de língua inglesa classificouos candidatos para subprogramas de estudos, a serem realizados em

Depoimento sobre estudo no exterior*

* Publicado In: UFBA. Capacitação no Exterior: guia geral, Salvador, v.1, p. 27-30,

1994.

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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos

universidades dos EUA, antes de seu acesso ao programa de mestradoespecífico, que ficava condicionado ao bom aproveitamento nos estudosdo inglês acadêmico, aos quais seriam encaminhados, a partir do primeiroteste (TOEFL). Uma entrevista pessoal (em Salvador) com umrepresentante do programa LASPAU/ Fulbright, Mr. Maurice Sterns,completou o processo de seleção, que durara semanas.

Selecionado, viajei, em maio de 1981, para a universidade de Pittsburghpara um programa de três meses, English as a Second Language. A convivênciacom estudantes de diversos países latino-americanos e o primeiro contatoorganizado, de fato, com outra cultura (três meses na Europa em 1970haviam representado para mim quase um “choque cultural”) foram umaenriquecedora, e quase sempre prazerosa, experiência de vida.

O prazer associava-se à novidade da paisagem natural e humana, à belezados parques e jardins na primavera/ verão; à grandiosidade do projetourbano da cidade (o Golden Triangle, no encontro dos rios Alegheny eMonangahela, ao formarem o Ohio River, no centro da cidade, é seusímbolo); ao visível orgulho dos nativos com sua cultura; ao conforto deter colegas da Bahia na convivência diária (Deolindo Checcucci e LiaRodrigues, no mesmo programa); à facilidade de acesso à informação(bibliotecas, livrarias, cinemas, oficinas de artes cênicas); à assistência doprograma LASPAU/ Fulbright aos bolsistas e à metodologia do cursoda Pitt.

O desconforto advinha da situação de stress provocada pelo intenso climade competição instaurado na universidade (Pitt, mas depois tambémidentifiquei o mesmo clima na Universidade de Minnesota), da dificuldadede domínio dos códigos de ética, etiqueta e comportamento socialdominantes no cotidiano, da mudança de hábitos alimentares e dasaudade... O primeiro grande transtorno ocorreu em nossa chegada, deavião (éramos três baianos). Por desinformação, decidimos ir a pé parao alojamento, que já estava reservado. Com muito peso e uma boadistância a percorrer, arrastamos quilômetros de malas. Uma semanadepois, através da rede de antigos bolsistas (Maria Adair) e dos novoscolegas, já estávamos instalados em apartamentos mais confortáveis.

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Armindo Bião

O que, em minha opinião, fez do programa de inglês da Pitt algo demuito competente, foi exatamente o fato de serem tematizadas, emleituras e debates, essas questões decorrentes do contato intercultural.Após a conclusão do programa, com um carro usado que conseguiracomprar, dirigi-me sozinho para a universidade de Minnesota, onde jácontatara um colega da UFBA, ali cumprindo programa de doutorado(João José Reis, primo de Lia Rodrigues, minha roomate e colega emPittsburgh). Sem dúvida, são essas redes de relações que facilitam a vidados bolsistas brasileiros no exterior. Em Minneapolis, de início, fiqueicom esse colega, em seguida, aluguei um apartamento próximo a ele, naárea de concentração das habitações populares dos índios (Minneapolistem a maior população urbana indígena dos EUA) e, posteriormente,aluguei um outro apartamento, ao lado do campus universitário. Apenasnos últimos três meses morei com um casal de amigos negros, que meacolheram generosamente e ajudaram-me a economizar, um pouco antesdo meu retorno ao Brasil.

Cumpri o programa (Master of Fine Arts, um terminal degree em artes,com um espetáculo/ performance no final e um supporting paper,diferentemente do Master of Arts, que exige uma dissertação de caráterteórico), em dois anos e um trimestre (conclusão em dezembro/ 1983).O prazo normal era de dois anos. A razão do prolongamento foi meuinteresse em disciplinas complementares, que não eram parte integrantedo programa.

Único estrangeiro num grupo de dez mestrandos, mantive boas relaçõescom os colegas (todos brancos), quase todos de outras cidades do país,o que nos igualava no fato de estarmos descobrindo juntos uma cidade.Duas, na verdade, Minneapolis e Saint Paul são as twin cities, que sediam aadministração e a universidade do estado de Minnesota. Com a bolsa eo salário da UFBA, vivia mais confortavelmente que os colegas nativos.E aí residia eventualmente uma razão para um leve mal-estar. A solidão,apesar dos colegas, dos amigos brasileiros (uns dois) e nativos (algunsíndios, alguns negros e um ou outro branco) e de duas viagens que pudefazer ao Brasil, em função de grave doença de meu pai, pesou forte em

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algumas longas noites de inverno de 30° C negativos (apesar do excelentesistema de aquecimento).

A universidade mantinha um escritório de assistência a estudantesestrangeiros. E o programa LASPAU/ Fulbright sempre se mostroupresente. Esses dois mecanismos institucionais foram fundamentais parao meu bom desempenho acadêmico. Instalações esportivas confortáveise de fácil acesso foram também úteis para o meu bem-estar físico, quandoprecisei de assistência médica, o seguro obrigatório mostrou-se funcional.O contraste climático (40° C+ no verão a 30° C- no inverno), os beloslagos para canoagem no verão e os esportes de inverno na estação, ocentro da cidade com suas passagens aéreas e subterrâneas quilométricas,o altíssimo nível de vida da população, os excelentes cinemas, teatros,bibliotecas, livrarias, casas noturnas, tudo isso foi fonte de prazer e decaracterização da “maior menor cidade do país”, the mini Apple

Minneapolis, a primeira a implantar o clean air act (que proibia que sefumasse em espaços públicos), com todos os prédios, vias e serviçospúblicos acessíveis para pessoas com dificuldade de locomoção, atradicional metrópole regional, inclusive em termos de teatro.

Retornando à UFBA, encontrei-me professor do seu quadro permanente(entendendo que o mestrado dera-me o aval acadêmico necessário paratanto). Passei a lecionar história do Traje e Dicção, além de me envolvercom atividades de extensão durante dois anos e meio. Até que resolvivoltar a estudar no exterior, agora em Paris, onde vivia metade do ano acompanhia Théâtre de la jeune lune, com a qual fizera oficinas de jogosteatrais com máscaras em Minneapolis, e onde tinham residência fixaseus mestres. Com o diferencial de que o doutorado seria na área deciências humanas, mas privilegiando o estudo do teatro e da teatralidade,do atual e do cotidiano.

Por sorte e por acaso, mas sempre seguindo o meu interesse, conheci emSalvador, graças à generosidade do antropólogo Vivaldo da Costa Lima,o professor Michel Maffesoli, da Sorbonne. Preparei um plano de estudoe, através de correspondência, obtive sua aceitação como orientador.

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Tendo o meu pedido de bolsa para doutorado sido recusado peloCNPq, obtive a aprovação da CAPES, com a devida autorização daUFBA, mas contra a opinião de muitos colegas que insistiam para quevoltasse a estudar nos EUA. Matriculei-me na Aliança Francesa deSalvador e, já próximo à viagem, fiz algumas aulas particulares individuais.Cumpri o programa de doutorado em quatro anos e um trimestre. Maisuma vez a rede de amigos e colegas viabilizou moradia e relações. Porconta própria e decisão pessoal continuei a estudar francês na AliançaFrancesa, em Paris, por três meses. Sentia falta do programa de Pittsburgh.Falta esta amplamente recompensada pelo que Paris tem sempre a oferecer– apesar de uma certa confusão institucional e acadêmica, em termos dedeixar o doutorando por sua própria conta e risco – e por um acessomeio complicado às bibliotecas universitárias.

Entre 1986 e 1990 (recebi o diploma de Doctorat d’Université emdezembro/ 1990), viajei bastante pela França, vim duas vezes ao Brasil,e vivi melhor que a maioria de meus colegas (tanto franceses quantoestrangeiros) com bolsa, salário da UFBA e “bicos” de aulas de teatro ede língua e cultura brasileiras. Como da primeira vez, voltei ao Brasil semeconomias, mas com uma bagagem acadêmica riquíssima, inclusive porter tido intensa participação em pesquisas e eventos científicos naSorbonne, onde, até hoje, funciona o GRACE – Groupe de Recherche sur

l’Anthropologie du Corps et ses Enjeux, que ali criei, com colegas, em 1987.

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Considerado o maior ator baiano, Armindo Jorge Bião (recém-chegadodos Estados Unidos), de volta a Salvador há alguns meses, começa estasemana um curso de commedia dell’arte promovido pela Fundação Culturaldo Estado, em que usa novas técnicas de interpretação e expressãocorporal, incluindo aulas de ioga e tai chi chuan, destinado a atoresprofissionais.

Bião brilhou nos palcos baianos em várias peças como “O PequenoPríncipe’, “Bocas do Inferno”, “Electra”, “Macbeth”, “Vertigem doSagrado”, “Surra’, “lei do Cão”, “Off-Sina Pombas Bahia”, “Cândido”,entre outras, já tendo trabalhado com a maioria dos diretores teatrais daBahia.

A postura de Armindo Bião no teatro baiano é marcada pela inquietação,rigor no trabalho e uma entrega tão emocional quanto intelectual à arteque exerce. Hoje, depois de sua estada no exterior, ele busca cada vezmais a profissionalização teatral na Bahia, vendo esta arte como umamissão educativa e faz uma revelação surpreendente: o que se faz emteatro na Bahia revela mais criatividade e arrojo de ideias do que a maiorparte do que viu nos Estados Unidos.

Com um poder aguçado de crítica, ele procura destacar os pontospositivos dos outros atores e de espetáculos que assiste, como demonstrana sua resposta sobre a técnica de representar, em que valorizaprincipalmente a interação entre todos os componentes de equipe, alémda interiorização, reflexão e gestualidade.

Teatro como a arte da comunhão*

* Reportagem e entrevista publicada In: LOBO, Clodoaldo. 2º Caderno, Correio da

Bahia, Salvador, 30 abr., 1984.

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A chave real do espetáculo é a sua moldura. Um cenário cheio de

truques, um quarteto de garçons mágicos e o trabalho de

pantomima de Armindo Bião. Esses são os elementos que fazem

o show funcionar. Alan Dumas, (MINNESOTA DAILY, 5 de

novembro de 1982, s. p.)

Esse é um trecho de uma crítica à montagem “Scapino”, de Moliére,adaptado por Frank Dunlovo e Jim Dale, de que Bião participou nosEstados Unidos, onde ficou durante três anos, fazendo Mestrado deInterpretação. Nesse espetáculo, em que foi destacado de todos os atores,Bião fazia:

AB: uma espécie de coro de espetáculo. Abria os dois atos, fechava oprimeiro e, no final da peça, apresentava a resolução final. Ficava emcena quase todo o tempo do espetáculo. Com pouco texto, um trabalhomuito em cima de mímica e ação acrobática: andava de bicicleta, mependurava em postes, vendia comida, comia em cena.

Das aulas de interpretação em Minneapolis, MN, Bião trouxe muitosdados novos para o Curso de Interpretação que dará, a partir do dia 2,para atores profissionais e o trabalho na Escola de Teatro, onde ensinaFundamentos da Interpretação e Direção de Montagem. Na Escola,utiliza cenas de peças cômicas e dramáticas brasileiras e roteiros deimproviso de Commedia dell’Arte, exercícios de ioga e tai chi chuan eexercícios utilizados por dois diretores, Robert Cohen e Wesley Balk,que foi seu professor nos Estados Unidos.

AB: De Robert Cohen, uso a ideia do teatro cibernético: ao invés de oator trabalhar com o passado, deve trabalhar com o futuro. Se opersonagem chora, não é porque foi magoado, o ator não precisa só seperguntar por que chora, mas para que chora. A resposta do passadoseria que ele chora porque foi magoado e projetando-se a pergunta parao futuro a resposta é: porque quer carinho. Desenvolvemos uma série detáticas: o comportamento humano é um comportamento tático. Todaação é feita para se conquistar alguma coisa. Para isso listamos 100 verbosde ação. Pegamos uma cena e decidimos usar um elenco de ações para

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dinamizar a interação. E os atores e a direção selecionam o que melhorfunciona. Alguns comportamentos podem ser incorporados à cena.

Por exemplo, a mesma pessoa pode trabalhar com os papéis de algoz,amante e vítima. Os movimentos são dados como exercícios aleatórios.O objetivo é ampliar o repertório das linguagens. Básico para o ator é aconsciência de seu material: o corpo, a voz e a face, as suas três linguagensfundamentais. Uma coisa primordial é o relaxamento, o uso com o mínimoesforço e o máximo rendimento desse material. Além dos exercícios deioga e tai chi, utilizo o livro de Fendenkrais “A consciência pelomovimento” e as técnicas de Fedora Aberastury, de mobilização damusculatura profunda a partir da língua. A isso associo exercícios deginástica, de diversas origens – ligadas à capoeira, a jazz dance e a técnicasde isolamento corporal.

São aulas de três horas de duração, que concluem com a técnica de LiaMara. Não desprezo também os jogos dramáticos propostos por ViolaSpolin e Augusto Boal, por exemplo, nem os propostos por Stanislavskie Grotowski (já que Brecht e Artaud não propuseram exatamenteexercícios, mas atitudes – mas os dois são usados no curso comoreferências). Os dos dois norte-americanos são exercícios simples, queenvolvem o repertório criativo do ator e a composição do personagemem função da ação dramática. Aqui, teatro é improvisação, nos EstadosUnidos é tradição.

Grotowski

AB: Então, a quantidade de pessoas que pensam e propõem teatro émuito grande. Pensam muito em termos de realismo, e o cinema e atelevisão são duas evidências disso. Ao mesmo tempo, existe a vanguardae o experimentalismo. Eles acham que a vanguarda entrou em decadência,nos anos 70, mas algum resquício de experimentalismo continua. Houvemuito descrédito, porque algumas experiências chegaram ao extremo danegação do próprio teatro. Continuando a experimentar, não forammais considerados de vanguarda.

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Através de Grotowski, que propõe a transcendência do indivíduo atravésda autorrevelação e do contato grupal, a vanguarda chegou a um becosem saída. Um diretor que passou um ano com Grotrowski na Europa,Andre Gregory, no livro “meu jantar com Andre” (e que fez também ofilme do mesmo nome), Grotowski, nas florestas da Polônia e daAlemanha, radicalizou suas propostas: todos são atores, todos têm quese transcender. A vanguarda transcendeu o teatro: tornou-se político,antropológico. Mas a vanguarda foi diluída e essas experiências vieramreforçar o próprio teatro. Nos Estados Unidos, tem o off Broadway, o offoff Broadway e o off off off off off...

Afro-Oriente

Em suas aulas de interpretação, Bião pesquisa a dramaturgia brasileira:

AB: Tende-se muito a trabalhar com cenas de autores estrangeiros, oque é muito importante, mas há todo um panorama brasileiro que não édevidamente enfatizado. E, pelo menos nos últimos 150 anos, o Brasilproduziu textos de qualidade. Seleciono diálogos desde Martins Pena,Artur Azevedo e Joaquim Manuel de Macedo, passando por QorpoSanto, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues e Jorge de Andrade atéautores lançados num Seminário de Dramaturgia do Arena, de 59.Outra atividade em que Bião está empenhado é uma pesquisa comDeolindo Checcucci, sobre temas e encenações a partir do ritual doCandomblé, formando um grupo que se reúne duas vezes por semana.

AB: Além de mim e Deolindo, têm aparecido, às vezes, Harildo Deda,Francisca Carelli, Sonia Rangel... É um trabalho de corpo em que trocamosexperiências: as referências são o Oriente, o jazz dance e pesquisas decorpo na cultura afro-latino-americana (capoeira, reggae). Uma coisa muitolivre...

Paixão

Como ator, ele voltará ao teatro baiano em três trabalhos:

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AB: no espetáculo de produção de Yumara Rodrigues, que estreia emjunho de “A afilhada de Nossa Senhora”, de Luís Marinho onde faço opapel do diabo. Também nas peças “A Torre em Concurso” de JoaquimManuel Macedo, direção de Deolindo Checucci. Um terceiro espetáculo,em agosto, é “La ronde”, de Artur Schnitzler (da qual já fiz uma cena nocurso dos Estados Unidos), sob a direção de Harildo Deda.

Ele diz que está “muito animado” com as perspectivas do teatro baiano:

AB: Acho que temos o que é preciso para fazer teatro: gente, espaço(embora precário) e paixão. É de Lope de Vega a frase: “Para fazer-seteatro só se precisa de duas pessoas, um tablado e uma paixão”. Comtoda essa crise, tem gente apaixonada por teatro na Escola. Têm entradomuitos alunos na Escola, com um bom nível de informação e interesse,o que é muito estimulante. O nível de politização também é muitoinstigante porque provoca a realização de um teatro voltado para arealidade dessa comunidade de província em que vivemos. A Escolaagora oferece dois cursos de nível superior: bacharelado em interpretaçãoe bacharelado em direção teatral. Estamos criando um terceiro curso: alicenciatura em teatro, que formará profissionais para o mercado, querealmente já existe, que é a utilização do teatro na educação. O mercadona Bahia é muito incipiente, pois não permite a sobrevivência só comessa atividade.

Evolução

O ator afirma que sentiu uma evolução no teatro baiano desde sua voltados EUA:

AB: Acho que é um heroísmo e um exercício contínuo de criatividadefazer teatro na Bahia. Somos muito criativos, mais do que os norte-americanos, que não são tão criativos assim. Senti que temos dificuldadede desenvolvimento técnico, não falo de som e luz, mas no nível deinterpretação. É grande a preocupação intelectual do teatro baiano. Nósnos aproximamos muito mais das vanguardas do que das produçõesprofissionais do dia a dia do teatro dos grandes centros do teatro do

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mundo. É uma experiência de província. A preocupação em semprequerer renovar e revolucionar é muito maior do que em manter umaatividade profissional constante. Nesse sentido, não houve diferenças noteatro baiano. Alguns grupos que existiam – quando saí no início de1981 – não existem mais hoje. Essa preocupação até distancia o público.Quero a casa cheia e muitos espetáculos. Uma coisa de se ter orgulho. Oator, quanto mais velho fica, tende a ficar melhor, e para isso tem dedesenvolver sua técnica. Nós não temos muito esse aprimoramentotécnico.

Entre as peças de que participou, no curso dos Estados Unidos, além deScapino, estão “Henrique V”, de Shakespeare, “Aquele Campeonato” deJason Miller”; “O Labirinto” de Arrabal, “A Soneca Americana” de PhilipEkstad; “Proposta de Casamento” de Anton Tchecov e “As Três Irmãs”também de Tchecov. O Mestrado incluía cursos de ballet, esgrima desabre e bastidores da Broadway (em Nova York), tai chi chuan, jazz

dance, commedia dell’arte. O seu recital de pós-graduação do mestradoincluiu concepção e seleção de cenas, orientação e interpretações deMoliére. Manuel Puig. Ele conta que nos Estados Unidos existe “muitainformação, bibliotecas em que se encontram obras do teatro brasileiroque por aqui não se acha.” Um de seus textos para o mestrado foipublicado em 15 páginas na revista da EMAC/ UFBA, onde tambémfoi publicado outro texto de sua autoria “Dramaturgia brasileira emaulas de interpretação”, de 50 páginas.

AB: Nos Estados Unidos, descobri que nunca tive oportunidade deestudar, aqui.

Direção

A direção também está nos seus planos.

AB: Penso em dirigir, no segundo semestre, um espetáculo na Escola”.

Sobre as novidades que encontrou na Bahia, destaca Filinto Coelho,

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AB: Num trabalho de muita entrega – em Equus – e que eu não conhecia,Ângela Fialho – uma atriz já pronta – os trabalhos de Frieda Gutman eBertrand Duarte em “15 anos depois”, Cobrinha no “Arquiteto e oImperador da Assíria”, Meran Vargens, do Pessoal D’Ubu, e a própriaexistência deste grupo e do Teatro de Encruzilhada, Fernando Guerreirona direção teatral e, como um autor que ainda pode crescer muito, MarcosPitanga. O teatro aqui ainda é muito fragmentado e isolado em relaçãoao público. Precisamos de um esforço de compreensão. Vai-se ver umespetáculo, se tem algo que funciona para o público (e tem-se de ver oque funciona, e tem-se de tentar aprender com isso). Dei um curso, emjaneiro, sobre teatro de máscaras, que o Encruzilhada usou.

Nos EUA

Bião amplia o panorama que vê do teatro norte-americano:

AB: A grande tendência, nos Estados Unidos, é o teatro realista, comercial,para o grande público. O que eu pude ver um pouco mais foi o teatrode Nova York e o Teatro Universitário do Estado de Minnesota. NaBroadway, a tendência é o superespetáculo – tipo “Cats” e “La Cageaux Folles’, que, como diz Paulo Francis, “é vulgar, mas o vulgo gosta”.Uma novidade é o grupo Bread and Puppet (Pão e Bonecos), offBrodway, com bonecos e máscaras. Além disso, tem todos os off que,por não terem compromissos comerciais tão fortes, permitem uma certaexperimentação, maior ousadia e criatividade. Há uma coisa capitalista:às vezes um espetáculo dá certo nos off e acaba parando na Broadway eum grande exemplo é ‘Torch Song Trylogy’ – melhor espetáculo daBroadway, em 82 (ganhou o Tony). Foi a primeira peça sobre o universogay na Broadway: começou off e fez muito sucesso; é de Harvey Fienstein– escolhido como melhor ator e autor do ano (que também trabalhouno filme “Dia de Cão”). Alguém no Brasil já ganhou os direitos autorais.A tradução seria “Trilogia da Canção da Tocha” (três peças em um ato– no primeiro ato, ele é um transformista – e conta a história de um casoamoroso, onde o personagem central fica entre a promiscuidade e oamor de uma pessoa só. No segundo ato, ele é abandonado e cai na

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promiscuidade. No terceiro, o amante é assassinado e adota um rapazcomo um filho, a mãe dele vai visitá-lo e há um conflito entre mãe efilho). Foi um sucesso de crítica e de público. Vi também ‘Little Shop ofHorrors’ (“Pequena Loja de Horrores”), um musical sobre uma plantaassassina. Começou off e está a caminho da Broadway. Em Minnesota(Minneapolis) tem 60 companhias de teatro com atividade regular –para um milhão e meio de habitantes. Dessas 60, só oito são realmenteprofissionais. O destaque desse trabalho – a coisa mais interessante quevi foi “la jeune lune” – uma companhia franco-americana, que fica seismeses em Paris, seis meses em Minneapolis e que faz espetáculos eminglês e francês. Parece muito com algumas coisas do teatro baiano. Fizcom eles uma oficina.

Educador

AB: Voltei com uma visão educativa. Teatro devia ser parte da educaçãogeral e básica das pessoas. Pretendo ficar em Salvador, por enquanto,pois essa é a realidade que conheço e há muito que ser mostrado aqui etrabalhado, em teatro e educação. Após esses dois anos, mesmo que nãosaia da Bahia – em definitivo – pretendo viajar. Estou estudando francêse exercitando inglês. Eu me interesso também em viajar pelo Rio/ SãoPaulo, para ver o teatro que está sendo feito lá e por outras partes dopaís. Em setembro, viajei pelo Nordeste e Centro-Oeste e me impressioneimuito com o movimento teatral em São Luís e Belém do Pará.

Ele também gostou de fazer uma Oficina de Televisão: InterpretaçãoArtística e Comercial, manejo de câmera e edição.

AB: A realidade da TV é completamente diferente da realidade do palco.Foi um trabalho fascinante pelo aspecto da edição, do foco e do pontode vista da câmera e da repercussão junto ao público. Não temosexperiência na Bahia de trabalhos desse tipo, mas se não começarmos,continuaremos a não ter experiências. O trabalho em comunicação paraa TV é, sem dúvida, uma escola, mas interpretação artística para a TV éuma outra coisa e um grande campo de trabalho que precisamos

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conquistar. Direto para as câmeras, já! Temo que não tenha ninguémcom interesse e equipe para investir. A TV educativa é um caminho e aTV comercial também: deve-se investir em diretores experientes e quetreinem multiplicadores. Aqui, em Salvador, fiz um comercial para umarede de lojas locais, foi muito bom, mas trouxeram um diretor do Sul.Paulo Dourado tem experiência na TV, é um contato local. Podiam serrealizadas mais atividades na televisão baiana. A TV trabalha mais com oclose e da cintura para cima. A experiência facial á mais ampliada. Na TV,o menos é o máximo: não se pode gesticular muito. Sua técnica deinterpretação “depende muito do texto”. Primeiro, procuro ver o que éque me apaixona mais no personagem. Tenho que descobrir uma paixãopara me integrar ao personagem, à equipe, ao diretor e aos atores comquem vou contracenar. Procuro me íntegrar para me entregar. Procurover o que é o personagem e o que é ele para os outros personagens dapeça, em que situação vive, e o que é que a ação da peça significa paraeles. Procuro ver os outros personagens e a ação que lhes é destinada. Oresto é o trabalho técnico.

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