7SIMCAM - Anais 24 a 27 maio 2011 UnB, Brasília-DF

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24 A 27 DE MAIO DE 2011 Local: MEMORIAL DARCY RIBEIRO (Beijodromo) - Universidade de Brasília ANAIS A mente musical em uma perspectiva transdisciplinar

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24 A 27 DE MAIO DE 2011Local: MEMORIAL DARCY RIBEIRO(Beijodromo) - Universidade de Brasília

ANAIS

A mente musical em uma perspectiva

transdisciplinar

Anais do

VII SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes Musicais

ReitorJosé Geraldo de Sousa Junior

Vice-ReitorJoão Batista de Sousa

Decana de Pesquisa e Pós-GraduaçãoDenise Bomtempo Birche de Carvalho

Diretora do Instituto de ArtesIzabela Costa Brochado

Chefe do Departamento de MúsicaRicardo José Dourado Freire

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Música em ContextoCristina Grossi

Maurício Dottori, editor

Anais do

VI SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes Musicais

Universidade de BrasíliaDepartamento de Música

Ricardo José Dourado Freire, coordenador geral

Brasília, 24 a 27 de maio de 2011

Comissão Científica do SIMCAM7

CoordenaçãoMaurício Dottori

Pareceristas:

Promoção:ABCM – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE COGNIÇÃO MUSICAL

Maurício Dottori (UFPR), Presidente

Diana Santiago (UFBA), Vice-Presidente

Graziela Bortz (UNESP), Secretária

Ricardo Dourado Freire (UnB), Tesoureiro

Marcos Nogueira (UFRJ), Relações Públicas

Beatriz Ilari (UFPR), Representante do Comitê Editorial

Rael Bertarelli Toffolo, Webmaster

Beatriz Raposo de Medeiros (USP)Clara Márcia Piazzetta (FAP)Daniel Quaranta (UFJF)Diana Santiago (UFBA)Graziela Bortz (UNESP)Marcos Nogueira (UFRJ)

Maurício Dottori (UFPR)Ney Rodrigues Carrasco (UNICAMP)Rael Bertarelli Toffolo (UEM)Rosane Cardoso de Araújo (UFPR)Sonia Ray (UFG)

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Prezados Colegas,

O Departamento de Música da Universidade de Brasília e o Programa de Pós-Gra-duação Música em Contexto tem o prazer de realizar a sétima edição do SimpósioInternacional de Cognição e Artes Musicais (SIMCAM). Nesta edição o tema esco-lhido foi A Mente Musical em uma perspectiva transdisciplinar, com a intenção demanter o diálogo com as áreas que caracterizam esse fórum aberto de pesquisa e dis-cussão que é o SIMCAM.Nesta edição contaremos com as presenças de dois pesquisadores internacionais comgrande impacto nas publicações que relacionam Cognição e Artes Musicais: Emma-nuel Bigand, da Université de Bourgogne, França, e Karl Anders Ericsson, psicólogosueco que leciona na Florida State University (EUA).Faz-se necessário agradecer os diversos colaboradores que trabalharam com afincopara a realização deste 7SIMCAM. Esse encontro foi possível pela dedicação da equipeorganizadora formada por Maria Cristina de Carvalho Cascelli de Azevedo e AntenorFerreira Corrêa, professores do PPG-MUS, Patricia Pederiva, da Faculdade de Edu-cação da UnB, e de Afonso Galvão, da Universidade Católica de Brasília. A participa-ção da Associação Brasileira de Educação Musical foi fundamental, por meio daorientação e coordenação da parte científica realizada pelo presidente Maurício Dot-tori. Agradeço também a Sonia Ray, que como coordenadora do V SIMCAM, ofereceuapoio e ajuda nos momentos mais difíceis.Merece um agradecimento a equipe de funcionários e colaboradores da UnB quefazem um trabalho discreto e eficiente na secretaria do Departamento de Música, li-derados pelo secretario do MUS, Rogério Figueiredo, e coordenados por Alex Cunha.Agradeço o design gráfico realizado por Haroldo Brito, da criatus design, que alémde fazer um excelente trabalho de criação, foi o responsável pela produção de todo omaterial gráfico do evento.O evento não seria possível sem a parceria com o Memorial Darcy Ribeiro, que pos-sibilitou o uso do espaço físico de beleza ímpar e ambiente único para a realização deum evento científico. A colaboração do Programa PAEP da CAPES foi fundamentalpara a viabilidade do evento e o Programa de Pós-Graduação Música em Contextoda UnB ofereceu a estrutura acadêmica para a participação do Departamento de Mú-sica na realização do 7SIMCAM.Desejamos que todos os participantes sintam-se bem vindos à Universidade de Bra-sília e esperamos que todos possam desfrutar as oportunidades de troca de experiên-cias que caracterizam as diversas edições do SIMCAM. Brasília, 24 de maio de 2011

Ricardo Dourado FreireCoordenador Geral do 7SIMCAM

Chefe do Departamento de Música da UnB

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Caros Colegas Pesquisadores,

Chegamos ao Sétimo Simpósio de Cognição e Artes Musicais, o sexto desde a funda-ção de nossa Associação no Segundo Simpósio, em Curitiba. E o que se pode ver é alenta, mas firme, consolidação da área. O número de trabalhos selecionados aparentaser um pouco menor, mas não só a exigência de pertinência às inúmeras facetas dosestudos cognitivos, entendidos de maneira abrangente, foi mais restritiva, como aqualidade média elevou-se. Temos, já, uma área quase consolidada, e nas publicaçõesdos eventos já vemos acumulada uma grande quantidade da pesquisa em Cogniçãoe Música, feita em nosso país.Viemos, nestes anos, estudando e debatendo como nossos miolos — estes pedaçosde geléia cujos átomos foram forjados há bilhões de anos no interior de estrelas —podem perceber ar em vibração como um objeto expressivo (como o fizemos até oséculo XVIII); como uma expressão emocional de seu compositor/organizador ou deseu intérprete/emissor (como fizemos até início do século XX); como uma estruturaobjetiva autoreferencial (como fazemos há um século). Temos estudado os princípioscognitivos que extraímos daquilo que chega a nossos ouvidos — e, também, do mo-vimento de nossos dedos, braços, lábios, diafragmas, de nossas pernas — e usamospara produzir música, seja como intérpretes, seja como compositores. Estudamoscomo metáforas — como o são ver a música como linguagem, como movimento,como estruturas dialógicas ou tensivas-distensivas — possibilitam-nos compreenderum pouco de nossos processos intelectivos, e como há princípios neuro-estéticos en-volvidos na nossa fruição musical, pelas categorizações e pelas simetrias. E pesqui-samos como uma das metáforas que está na origem mesma dos estudos cognitivos— a de que nossos cérebros funcionam como uma máquina informacional — permiteque a interface com o mundo da tecnologia seja profícua em insights sobre a músicaque fazemos e como a fazemos. Mais: como nós, animais do ritmo, nos sincronizamossocialmente pela música e a usamos para a catarse, a terapia. E finalmente, como, pelasua plasticidade, nossos cérebros se amoldam a ensinarmos e aprendermos música.São esses, em resumo, os seis temas em que se distribuem — eu diria quase que tra-dicionalmente — os trabalhos no Simpósio e nos Anais. Muito obrigado pelo trabalho de todos os envolvidos, em especial na figura do Coor-denador Geral do Simpósio, Ricardo Dourado Freire, e de toda a diretoria de nossaAssociação, e dos pareceristas que tão abnegadamente leram, em primeira mão, ostrabalhos.

Maurício DottoriCoordenador Científico do Simpósio

Presidente da Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais

índice

a mente e a percepção das artes musicais

A construção da representação sonora na mente do músico 1Graziela Bortz

Análise sobre os aspectos psicológicos presentes no processo de audiação em músicos profissionais 8

Ronaldo da Silva e Ricardo GoldembergMúsica na carne: o advento da experiência musical incorporada 16

Marcos NogueiraUm estudo sobre a influência da expectativa na cognição

de paisagens sonoras 27Bernardo A. de Souza Penha, Jônatas Manzolli e José Fornari

A percepção das emoções musicais na Hierarquia Modal 35Danilo Ramos e José Eduardo Fornari

Investigating absolute pitch with neuroimaging techniques– Literature review 47

Patrícia Vanzella, Maria Angela M. Barreiros, Lionel F. Gamarra, Edson Amaro Junior

Um levantamento sobre o ouvido absoluto 59Rodrigo Fratin Medina e Ricardo Goldemberg

Quais os fatores que podem interferir na percepção da expressividade interpretativa musical? 67

Márcia Higuchi, Cristina Del Ben, Frederico Graeff & João Leite Pôsteres

Tempo de resposta em reconhecimento de padrão de acordes na leituraà primeira vista ao piano 79

Gabriel Rimoldi, Hugo Cézar Palhares FerreiraMemória de curto prazo para melodias:

efeito das diferentes escalas musicais 86Mariana E. Benassi Werke

A influência do treinamento musical nos potenciais cognitivos envolvidos no reconhecimento de alegria e tristeza em melodias sem palavras 89

Viviane Cristina da Rocha e Paulo Sérgio BoggioA percepção de melodia e ritmo nas pessoas com Síndrome de Williams

na perspectiva dos testes de Audição Musical propostos por Edwin Gordon 95

Henrique de Carvalho Vivi

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a mente e a produção das artes musicais

Uma improvisação guiada por uma partitura, como uma mente, segundo os seis critérios do processo mental propostos por Gregory Bateson 105

Daniel PuigCiclo Portinari: um estudo sobre experiências multissensoriais

nas práticas interpretativas 116Sheila Regiane Franceschini

O processo de emissão do som na clarineta e a geração de memória muscular:aplicabilidades no ensino e performance 129

Cristiano AlvesPara medir a sincronização de dois cantores: o caso da bossa-nova 143

Cássio Santos, Beatriz R. de Medeiros e Antônio PessottiMúsica Sistêmica: Intersecções entre processos criativos,

concepção estética e composição musical 149Felipe Kirst Adami

A memória na psicologia cognitiva e memória musical na Perspectiva do Intérprete 165

Laura Balthazar e Ricardo Dourado FreireMétodos de memorização e a construção da performance instrumental 175

Leonardo Casarin Kaminski e Werner AguiarPôsteres

O gesto na performance instrumental 184Belquior Guerrero Santos [email protected] Bertarelli Gimenes Toffolo

Aprendizagem e desempenho motor e procedimentos didáticos: questões no âmbito pianístico 187

Fernando Pabst Silva e Maria Bernardete Castelan PóvoasA espectromorfologia como discurso: considerações acerca

da obra teórica de Denis Smalley 194Maurício Perez e Rael Bertarelli Gimenes Toffolo

A sonoridade no estudo Pour les Quartes de Claude Debussy: investigando processos composicionais à luz da transdisciplinaridade 199

Thiago Cabral Carvalho O atual estado da questão da disciplina psicologia na formação

de músicos-intérpretes na academia brasileira 210Sonia Ray e Leonardo Casarin Kaminski

Representações gráficas para a progressões harmônicas em música: um experimento verificativo 215

Alexei Alves de Queiroz

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Artes musicais, lingüística, semiótica e cognição

Discutindo a constituição da criatividade e da cognição do sujeito músico: uma reflexão entre pressupostos da abordagem histórico-cultural, ontopsicológica e da música 219

Patrícia WazlawickCompor, apresentar e criticar música: o ciclo da aprendizagem criativa

em um estudo de caso na educação musical escolar 231Viviane Beineke

As relações texto-música e suas implicações na performanceda canção Rosamor (1966) de Ernst Mahle 243

Eliana Asano Ramos e Maria José Dias Carrasqueira de MoraesMetro e representação: geração de arquivos sonoros e midi

a partir de textos da tragédia grega 254Marcus Mota

Estratégias de leitura à primeira vista: resultados, método e ferramentas de investigação a partir de um estudo piloto 267

Valeria Cristina Marques e José FornariTeoria dos Gêneros e Articulação Musical da Trilha Sonora 279

Gustavo Rocha Chritaro, Sandra Ciocci e Claudiney Rodrigues Carrasco

Pôster

Música e Cinema: diálogos transdisciplinares 290Glauber Resende Domingues

Tecnologia, artes musicais e a mente

Do caráter transdisciplinar dos sistemas interativos musicais 295Marcelo Gimenes

Tecnologia x perfomance de instrumentos em grupo para crianças: aprendendo na e com a rede 303

Beatriz de Freitas Salles e Juliana Rocha de Faria SilvaÓpera no Cinema: o que muda na experiência auditiva? 314

Anselmo GuerraEm direção a uma fenomenologia da composição de música gravada 322

Luciano de Souza ZanattaComparando estruturas rítmicas através sonogramas: um estudo

da percepção métrica do motivo principal da Sinfonia nº. 5, Op. 67, de Beethoven 337

Pedro Paulo Köhler Bondesan dos Santos

O desenvolvimento paralelo da mente e das artes musicais

A Experiência Estética e a Cognição Sensível na Musicoterapia 345Clara Márcia Piazzetta

Um estudo sobre representações sociais de alunos de graduação sobre os conceitos de “música” e “musicalidade” realizado nos pólos Brasil e Itália 355

Anna Rita Addessi e Rosane Cardoso de AraújoAspectos relacionados à percepção e à cognição em propostas

diferenciadas de educação musical 366Denise Álvares Campos

The MIROR Project: Music Interaction Relying on Reflexion 377Anna Rita Addessi

Paralelos entre concepções de alfabetização e letramento em um contexto interdisciplinar 394

Samara Pires da Silva Ribeiro e Ricardo Dourado FreireA participação do educador no desenvolvimento da mente musical

no ambiente escolar 402Christiana Damasceno Rodrigues da Silva

Articulações pedagógicas e criatividade musical: um recorte sobre o desenvolvimento da mente criativa musical 407

Vilma de Oliveira Silva FogaçaArticulações entre música, educação e neurociências: idéias para

o Ensino Superior 419Luciane Cuervo

Aplicações da teoria piagetiana à aula de musicalização infantil 430Jordanna Vieira Duarte

artes musicais e cognição social

Representações sociais e prática musical: pesquisa-ação com formação de professores 437

Diana SantiagoMusicoterapia e cognição: a importância do fazer musical para estímulo

e manutenção das funções executivas de idosos institucionalizados 440Flávia Barros Nogueira

A desinstitucionalização da doença mental e da figura do doente mental através da criação de um espaço de aula de música para pacientes psiquiátricos em uma escola de música 452

Thelma Sydenstricker Alvares

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Eu ensino como você aprende? Processos cognitivos de aprendizagem em música 459

Simone Marques BragaA musicoterapia na intervenção precoce:

uma experiência com crianças deficientes visuais 468Elvira Alves dos Santos, Claudia Regina Oliveira Zanini,Luana Anastácia Torres Guilhem e Priscileny Sales Campos

Humanizando por meio dos sons: a musicoterapia melhorando a qualidade de vida de crianças e adolescentes em tratamento de câncer 472

Jéssica do Carmo Rivas, Lídia Fidelina dos Santos eRosângela Silva do Carmo

Motivação para aprender um instrumento musical na vida adulta: um estudo em andamento 477

Andréa Matias Queiroz

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a mente e a percepção das artes musicais

A construção da representação sonora na mente do músicoGraziela Bortz

[email protected] de Música – UNESP

ResumoEmbora a representação sonora na mente — o chamado ouvido interno — seja consi-derada uma habilidade importante nas especialidades da área de música, tais como:interpretação, composição ou regência, costuma ser considerada, de acordo com Co-vington (2005), um subproduto de outras atividades envolvidas na formação do mú-sico. A autora afirma que não há uma preocupação particular dos instrutores emenfatizar a imaginação sonora em níveis simples ou complexos no treinamento emsolfejo e ditado ou nas atividades de performance. Este artigo discute pesquisas rea-lizadas sobre o assunto nas áreas de neurociências e ciências cognitivas que apontampara atividades em áreas do cérebro responsáveis pelo sistema motor, sistema sen-sorial, representação semântica e episódica enquanto sujeitos imaginam, ouvem outocam música verdadeiramente. Sugere que a formação musical avalie a importânciada prática de mentalização sonora no estudo da performance musical como uma ma-neira de precaver — possivelmente até auxiliar na cura de — doenças adquiridas pelaprática excessiva ou pela pressão psicológica que envolve a profissão. Menciona, comoapoio, o estudo de Pascual-Leone (2009) que enfatiza a participação crucial do sis-tema sensorial e de sua interface com o sistema motor no desenvolvimento de ha-bilidades instrumentais, sendo comprovado o fato de que uma ‘confusão’ no sistemasensorial como resultado da prática excessiva ocorra na disfunção conhecida comodistonia focal. Conclui enfatizando a necessidade de atualização das disciplinas teó-rico-analíticas, práticas instrumentais e treinamento auditivo acerca das recentes des-cobertas científicas nas áreas de saúde e de neurociência cognitiva para evitar outratar de doenças que têm afetado ou mesmo impedido a carreira de muitos músicoscompetentes.

IntroduçãoQuando Covington e Lord (1994) escreveram sua crítica ao ensino objetivista da per-cepção musical, propondo uma pedagogia baseada na experiência prévia do estudanteaplicada ao que chamaram de ill-structured domains— contextos musicais reais, ao contrário de domínios propositalmente simplificadospara fins didáticos — os estudos cognitivos em música ainda eram eminentementeconcentrados nos resultados de pesquisas behavioristas (Deutsch 1982; Krumhansl1983, 1990, Sloboda 1985, Aiello e Sloboda 1994), ou seja, pesquisas empíricas ba-seadas em análises de respostas a determinados estímulos. Daí viria, provavelmente,

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sua visão das ciências cognitivas de então ao afirmar que estas logravam “uma com-preensão muito melhor de processos cognitivos em domínios bem estruturados [well-structured domains] (WSD) do que em domínios não estruturados [ill-structureddomains] (ISD)”1 (p. 165). Os autores viam o ensino tradicional da disciplina percepção musical como exclusi-vamente pautado na objetividade do estímulo-resposta, objetividade esta facilitadorana quantificação de erros e acertos, já que carrega uma expectativa pré-determinadano resultado das tarefas, mas problemática na transferência de conhecimentos paraa textura complexa da música real. As críticas às pesquisas cognitivas eram, portanto,similares àquelas ao treinamento da percepção para estudantes de música.Desde então, os recursos para pesquisa científica na área de cognição musical têm-se valido cada vez mais das ferramentas tecnológicas da neurociência, tais como atomografia computadorizada e ressonância magnética, entre outros, para examinaráreas cerebrais ativadas durante as tarefas propostas nas pesquisas laboratoriais, pos-sibilitando a análise do funcionamento do cérebro humano em atividades mais com-plexas e a comparação dessas análises àquelas realizadas nas pesquisas behavioristas.

Memória MotoraHalpern (2009, 217) relata seu estudo acerca das ‘representações musicais’ [musicalimagery]2 — “a experiência de ‘repetir’ a música através de imaginá-la em sua cabeça”— onde utiliza ambas as ferramentas: behaviorista e neurocientífico-cognitiva. Ex-periências foram realizadas com músicos e não-músicos, incluindo indivíduos quehaviam sofrido lobectomia temporal para tratamento de epilepsia. A autora afirmaque um dos desafios de se estudar a representação sonora construída mentalmente éo de como “externar o que é justamente uma experiência interna” (p. 218), por isso acombinação das duas modalidades de pesquisa. É interessante notar, neste estudo, o resultado apontando para o fato de que uma árearesponsável pela escuta no cérebro (córtex auditivo secundário) permanece ativadatanto na escuta real, como na recuperação dessa audição na memória através da ima-ginação. Um dos resultados mais surpreendentes mostrado por Halpern, porém, é aatuação marcante da Área Motora Suplementar (AMS) na construção da representa-ção musical, superior à sua atuação na escuta musical, “ainda que os sujeitos não es-tivessem verdadeiramente produzindo nenhum movimento motor” (p. 223). Halpernafirma que a “ativação da AMS tem sido observada quando se é requisitado aos su-

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1 A tradução de ill-structured domains para ‘domínios não estruturados’ é imprecisa, já que otermo se refere à música em sua total complexidade, no contexto real. Talvez o termo maisapropriado fosse ‘domínios complexos’, embora este também detenha certo grau de imprecisão. 2 Por se referir a ambas as acepções neste contexto — visual e sonora — preferi ‘representaçõesmusicais’, no plural, às expressões ‘imaginação’ ou ‘visualização musical’ para traduzir a ex-pressão original musical imagery.

jeitos para que gerem uma fala internalizada e vocalizem a música abertamente”.Acrescenta que esta ativação “pode refletir um processo de ensaio subvocalizado, sejade palavras ou música como suporte do desempenho [da imaginação sonora] numatarefa que de outra maneira seria difícil” (p. 223-224).É importante frisar que as experiências foram realizadas em duas etapas: a primeira,cujos resultados foram sinteticamente mencionados acima, utilizou-se de música can-tada (com letra). Uma segunda etapa utilizou-se de música instrumental. Os resulta-dos para a AMS, porém, foram equivalentes. A autora deduz que os indivíduos sevalham de alguma estratégia de subvocalização durante a imaginação musical. Noentanto, é de se notar que os sujeitos, nesta última etapa, ao contrário da primeira(onde se utilizou música com letra), tinham, todos, alguma formação musical e queo resgate da música na memória destes indivíduos poderia se operar de maneira di-ferente daqueles sem treinamento, idéia confirmada em outros estudos (Washington1994; Pascual-Leone 2009). Em outras palavras, um indivíduo que tocasse violinopoderia ter recorrido à memória tátil ao recuperar uma canção na imaginação, po-dendo ter ativado a AMS desta forma, e não necessariamente através da subvocaliza-ção. Poder-se-ia pensar ainda além, já que os estímulos para esta segunda etapa deexperiências foram feitos com música instrumental: é possível que músicos sejam ca-pazes de transferir sua experiência no seu instrumento para, digamos, outros timbres.Ou seja, um violinista poderia se ‘imaginar’ tocando um clarinete e até mesmo ‘sentir’que o está tocando através da transferência de sua experiência sonora/tátil a outroinstrumento que nunca tocou, mas assistiu/ouviu, ou mesmo interagiu em ensaios.Aceitando esta hipótese, somos levados a pensar que a vivência que leva um deter-minado músico à abstração dos elementos musicais seria a provável razão pela qualmúsicos experientes num instrumento sejam capazes de aprender rapidamente atocar outro instrumento, ainda que já na fase adulta. Supondo que esse tipo de transferência ocorra na mente do músico, é questionável aseguinte afirmação de Halpern: “quando pessoas não podem produzir sons de gui-tarras e clarinetes, o suporte da AMS pode não ser necessário para prover um pro-grama de ensaio motor” (p. 229). Idéia diferente aparece no estudo de Sergent et al.(1992) mencionado em Covington (2005, 28) que sugere que a “informação espacialrelativa às notas no pentagrama é gerada e coordenada com [grifo meu] a execuçãofísica real na performance musical”. Este estudo encontra uma relação no “córtex pa-rietal, que sugere um mapeamento entre a notação e o som numa área adjacente, masdistinta, à área onde há um mapeamento de linguagem de palavras orais e visuais” (p.28). Ou seja, o aprendizado instrumental pode operar essa conexão entre notaçãomusical e ensaio motor, daí a possibilidade de transferência de memória tátil/sonorapara a notação musical e vice-versa. No entanto, ainda que a memória motora tenha uma participação crucial da repre-sentação mental da música, é comprovado o fato de que “na maioria das tarefas derepresentações auditivas, a voz interna tem um papel importante e, se bloqueada

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(como foi feito em certo experimento)3, há uma perda significativa no desempenho”,o que corrobora o treinamento de solfejo tradicionalmente ensinado há anos nos cur-rículos de conservatórios e escolas de música (Convington 2005, 29).

Memória Sensório-motoraPascual-Leone (2009) examina a plasticidade do cérebro em estudos onde indivíduosaprendem novas habilidades instrumentais através da prática diária. O autor corro-bora o que já é sabido nas esferas não científicas da prática musical: não basta conhe-cer racionalmente como se toca piano ou violino, é preciso estabelecer um

“mecanismo de tradução”, onde o conhecimento é transformado em ação. Essa tradu-ção é operada através da prática constante, uma antiga máxima na formação de es-tudantes de música. Que essa prática deva ser eficiente, também não é novidadeàqueles familiarizados com a tradição pedagógica. Uma boa técnica é essencial paraa saúde do músico e a combinação do excesso de estudo com uma técnica deficientepode ser prejudicial. O autor, no entanto, oferece informações surpreendentes a res-peito de como a prática instrumental se opera no cérebro do músico e menciona aimportância que grandes instrumentistas como Horowitz e Rubinstein davam à prá-tica mental; o primeiro, antes de seus concertos, para evitar a resposta distinta depianos em que não estava habituado a tocar e se lembrar da resposta de seu próprioSteinway; o segundo, para evitar que a prática real lhe roubasse mais tempo do quegostaria de dedicar ao piano (p. 401). Ele enfatiza a importância do sistema sensorial e de sua interface com o sistema motorno que julga ser crucial para entender como a prática instrumental deixa de ser sau-dável para o desenvolvimento de habilidades instrumentais. Percepção, prática e me-mória se retroalimentam neste processo. Ao discorrer sobre a distonia focal eminstrumentistas, afirma: “Desorganização e conseqüente confusão nas recepções sen-soriais poderiam potencialmente levar a um controle pobremente diferenciado dasrepresentações motoras e ser os mecanismos subjacentes ao risco do controle falhode alguns instrumentistas” (p. 405). É importante entender que o excesso de práticapode levar a essa confusão do sistema sensorial, que passa a não diferenciar com aprecisão necessária certos movimentos para se tocar o instrumento. Ele explica: “empacientes com distonia, a mesma região do córtex sensorial pode responder a estí-mulos táteis em mais de um dedo” (p. 406). Sugere que os aspectos sensoriais devamser tão enfatizados na aquisição de habilidades musicais quanto os aspectos motores.Infelizmente, a tradição ainda enfatiza o aspecto motor (a máxima da ‘transpiração’versus ‘inspiração’), mas é de máxima urgência que os instrutores, bem como os pro-fissionais envolvidos na produção de música instrumental e vocal — seja ela sinfônica,operística ou camerística — ocupem-se da economia de esforço físico no ensino e naprática profissional e que se busque um equilíbrio sadio entre a prática diária — ne-

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3 A autora menciona um estudo em que os sujeitos chupavam bala enquanto realizavam tarefasde se lembrar de músicas ouvidas pouco antes das experiências ou bastante familiares a todos.

cessária — e a imaginação, através do treino mental da música como abstração teóricae perceptiva, assim como do exercício, na memória, do treino físico já adquirido.

Representação Semântica e EpisódicaCovington (2005) afirma que “não podemos presumir que [o ouvido interno] serásimplesmente um subproduto da prática auditivo-motora. Estudantes devem ser trei-nados a usar seu ouvido interno para dirigir sua interpretação, ao invés de usá-lo parareagir ao som” (p. 32). Assim como o treinamento auditivo das aulas de percepçãomusical e das aulas de instrumento podem não ser suficientes para o desenvolvimentopleno da imaginação sonora, também o treinamento conceitual das aulas teóricas demúsica necessitaria de sua contrapartida com ênfase no exercício da representaçãomental da obra musical. Além da ativação dos sistemas motor e sensorial, como vimos, estudos apontam paraa recuperação de uma memória semântica, particularmente na ausência da músicacantada, quando se executa tarefas de representação mental sem o ato de tocar oucantar ou quando se escuta música não familiar (Covington 2005, p. 29). Ao se re-lembrar de alguma obra musical, a não ser que se a tenha memorizado para tocá-lanum concerto-solo, por exemplo, dificilmente a obra será recobrada em sua totalidade.Em alguns momentos, podem-se recobrar padrões em pequena escala, tais como in-tervalos, acordes, frases, melodias familiares ou padrões métricos mais simples — oque a autora chama de memória episódica, aquela relativa a eventos específicos — ouainda recuperar relações de estruturas métricas, tonais, rítmicas, formais ou harmô-nicas em maior escala, o que Covington chama de schema, também conhecida pormemória semântica (p. 31). Um exemplo anedótico citado por Cook (1994, 88) ilustra a idéia de como a memóriasemântica não se torna necessariamente um subproduto da formação teórica. Aoouvir o trecho de uma obra pela primeira vez, estudantes de música são questionadospelo professor sobre em que parte estrutural certa obra foi interrompida. Na ausênciade resposta, o professor continua a audição e, numa segunda interrupção, os alunossão capazes de responder corretamente. Cook explica: os alunos eram capazes deouvir de determinada forma, mas escolheram não ouvir semanticamente na primeiravez. Sugere que esta — não semântica — é a forma com que a maioria das pessoasouve comumente. Cook, naquele momento, (1994, 81) criticava os estudos de psicologia cognitiva emmúsica como pretensos estudos sobre a ‘escuta musical’, quando, na verdade, eramestudos sobre o ‘treinamento auditivo’. Lamentava o fato de que se buscasse uma psi-cologia da teoria musical, como a pretendida por Lerdhal e Jackendoff (1983), ondeas ‘leis’ teóricas fossem as mesmas daquelas da percepção musical, do contrário, ha-veria uma falha na comunicação entre compositores e ouvintes (p. 87). Mais tarde,argumenta que a “percepção musical é pluralística e fluida” e que os ouvintes alternamconstantemente suas estratégias. Diz que o objetivo da teoria seria o de, “talvez, mudar

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a maneira com que as pessoas experienciam a música” (p. 89) e, num exemplo sobreuma análise de Rosen (1976), pergunta-se: “Mas os ouvintes escutam tudo isso? Bem,talvez eles escutem depois de ter lido a análise de Rosen, que maravilhosamente lograafiar a percepção” (p. 90). A observação crucial, no entanto, é que a análise em questãonão é necessariamente correta, mas convincente, já que afeta e modifica nossa expe-riência de ouvir música.

ConclusãoFaz-se urgente que o ensino de música, no que se refere às disciplinas teórico-analí-ticas, assim como as aulas práticas de instrumento e de percepção musical, atentepara as recentes descobertas científicas nas áreas de saúde e de neurociência cognitiva.Enquanto algumas das antigas máximas têm sido avalizadas, outras têm sido ques-tionadas ou mesmo desconsideradas por estudos recentes. Muito do material produ-zido ao longo da história da pedagogia musical permanece válido, no entanto, épreciso rever a maneira como esse material tem sido utilizado, recriá-lo e adaptá-loàs necessidades dos músicos. Neste artigo, frisa-se a importância do sistema sensório-motor na aquisição de habi-lidades e desenvolvimento da memória musical instrumental e vocal, assim comonas aquisições mais conceituais através do desenvolvimento da memória episódica esemântica. Enquanto é possível que essas memórias sejam construídas como um sub-produto da formação auditivo-instrumental, é preciso atentar para o fato de que, senão forem enfatizadas na formação, correm o risco de permanecer em estado latenteou mesmo de afetar negativamente no desempenho profissional do músico. O trei-namento mental, entre outros benefícios, mostra-se como uma ferramenta de eco-nomia de esforços, utilizado anteriormente por músicos brilhantes e por atletas(Pascual-Leone 2009, p. 401), ferramenta esta que poderia evitar sofrimentos futuros. Finalmente, coloca-se a seguinte proposição: ainda que possam existir outros fatores,como uma predisposição genética, no desenvolvimento de doenças como a distoniafocal, não teria o estresse emocional, provocado pelas pressões da exigência de per-feição da profissão ou pelo assédio de superiores, uma participação, ainda que indireta,em doenças como a distonia focal? Em outras palavras, estando o desempenho domúsico instrumentista extremamente associado à sua imagem na sociedade, poderiao estresse, através de forçar uma prática neurótica e distorcida pelos aspectos emo-cionais, causar essa confusão no sistema sensório-motor? Acreditamos que essas eoutras questões relativas à saúde do músico estudante e profissional devam ser ende-reçadas, amplamente discutidas e trabalhadas em pesquisa.O sofrimento gerado por doenças adquiridas na profissão do músico instrumentistaé bem documentado em Costa e Abraão (2004). Acreditamos que é possível evitar outratar de doenças que têm afetado ou mesmo impedido a carreira de muitos músicosatravés da conscientização e da investigação contínua e esperamos que cientistas emúsicos invistam em pesquisas futuras sobre o assunto.

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Agradecimentos à Fundunesp por apoiar a participação da autora no 7Simcam.

ReferênciasAiello, R.; Sloboda, J. (ed.). Musical Perceptions (New York: Oxford University Press, 1994). Cook, N. “Perception: A Perspective from Music Theory”, in Musical Perceptions (New York:

Oxford University Press, 1994), 64-95.Costa, C. P.; Abraão, J. I. Quando o Tocar Dói: Um Olhar Ergonômico sobre o Fazer Musical,

Per Musi 10 (2004), 60-79. Covington, K. The Mind’s Ear: I Hear Music and No One is Performing, College Music Sympo-

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Análise sobre os aspectos psicológicos presentes no processo de audiação em músicos profissionais

Ronaldo da [email protected]

Pós-Graduação em Música da Universidade Estadual de Campinas; Conservatório Dramático e Musical “Dr. Carlos de Campos” de Tatuí

Ricardo [email protected]

Pós-Graduação em Música da Universidade Estadual de Campinas

ResumoEsse trabalho apresenta a análise sobre os aspectos psicológicos presentes no pro-cesso de audiação em músicos profissionais. A pesquisa de natureza qualitativa, sebaseou na análise de conteúdos colhidos por meio de entrevista semiestruturada apli-cada em seis músicos profissionais (dois instrumentistas, dois regentes e dois com-positores). Os relatos dos depoentes levaram a formação da categoria A audiação navida profissional, em que sinalizou a relevância da prática diária da audiação por partedo músico profissional, pois se verificou de modo geral, que para os instrumentistas,a prática mental pode acelerar o processo de aprendizagem da obra musical, en-quanto que para os compositores aparenta ser a genuína força criadora das idéiasmusicais.

Palavras-chaveaudiação – percepção musical – cognição musical

IntroduçãoA presença equilibrada da imagem sonora na mente humana pode ser compreendidacomo uma atividade psíquica rotineira e desejável. Para os músicos profissionais temsido vista como um fenômeno atuante e de extrema utilidade, seja para o instrumen-tista, o regente, o compositor e para as demais vertentes da profissão musical. Ela nãose manifesta por meio de ondas sonoras; sendo assim, não é regida pelas leis da acús-tica. De acordo com Sacks (2007, 41), a imagem sonora é a música “que toca na nossacabeça”, identificada por Gordon (2000, 16) como uma “imagem vívida ou figurativado que o som musical representa”. Essa “imagem vívida ou figurativa” pode passar àmargem de uma compreensão sintática do fenômeno aural, por centrar-se em ques-tões superficiais da estrutura sonora, o que poderá ser positivo ao músico menos ex-periente, por favorecer àquele que a processa uma experiência sensorial significativa.Sloboda (2008), entretanto, identifica duas chaves para a compreensão profunda dofenômeno sonoro, que envolvem a memória musical: a capacidade de representar emmúsica uma vasta e complexa gama de elementos estruturais, e a possibilidade emadquirir um vocabulário específico que descreva esses elementos. Diante disso, a

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consciência musical gerada pelo domínio sintático do discurso sonoro poderá ofereceruma imagem musical majorante, isto é, mais desenvolvida. Gordon (1999, p. 42) anomeia como audiação, quando afirma que a “audiação é para a música o que o pen-samento é para a linguagem”.Sobre as diversas formas de audiação, Gordon (1999, p.42) explica que:

“Se você é capaz de ouvir um som musical e de dar um significado sintático ao quevocê vê na notação musical antes mesmo de você tocá-la, antes que alguém a toqueou, antes mesmo de você escrevê-la, então você está procedendo a audiação nota-cional.”

Segundo Sloboda (2008) a sintaxe é um dos componentes presentes na linguagem ena música. A assimilação do seu sistema e a decodificação do seu conjunto de se-quências pode favorecer a compreensão dos elementos da estrutura musical, o quepoderá levar ao músico uma organização da conduta cognitiva, remetendo-o à ativi-dades generalizáveis na prática audiativa. Para Montangero & Maurice-Naville (1998,167), esse panorama resume o conceito de esquema, cunhado por Piaget (1896 - 1980),como “o esboço geral que pode reproduzir-se em circunstâncias diferentes e dar lugara realizações variadas”. Um esquema, por exemplo, poderá agregar uma simples célula rítmica, que será umobjeto no qual buscará ser assimilado e acomodado psicologicamente pelo sujeito, sefor identificado nos diversos contextos de manifestação musical (leitura instrumental,leitura cantada, audição, etc). Caso esse fragmento rítmico não seja percebido emoutro contexto musical, o esquema não foi assimilado. Dessa forma, esse modelo teó-rico aponta como desequilíbrio a ausência da tomada de consciência por parte do mú-sico. Com respeito à ausência da equilibração nos diversos âmbitos da consciênciahumana, Piaget (1977, 24) comenta que “são de fato estes desequilíbrios o que cons-titui o motor da investigação; porque, sem eles, o conhecimento manter-se-ia estático.[. . .] os desequilíbrios desempenham apenas um papel de arranque, porque a sua fe-cundidade se mede pela possibilidade de os ultrapassar, por outras palavras, pela pos-sibilidade de se livrar deles”.De modo inverso, sendo o esquema assimilado, o indivíduo se equilibra sob o pontode vista psicológico, pois o problema de identificação e execução do padrão rítmicofoi solucionado, isto é, é reconhecível de modo abstrato em qualquer forma em queseja apresentado, no contexto musical. Ele está pronto para novos desequilíbrios aindamais complexos, por meio do diálogo entre o meio e os seus esquemas já assimila-dos.Diante dos argumentos levantados anteriormente, a tomada de consciência de Piagetapresenta aspectos colaboradores ao entendimento da audiação notacional de Gordon,pois esta se refere ao pensamento musical consciente no músico profissional, que po-derá resultar no aprimoramento de sua compreensão sonora à bases mais complexas,no âmbito mental. Mas, como o músico profissional utiliza, de forma prática, a suaaudiação? Seria a audiação um conceito com maior validade teórica do que prática?

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ObjetivosA fim de visualizar as respostas válidas para as dúvidas levantadas, essa pesquisa bus-cou compreender qual a relevância da audiação no dia a dia do músico profissional.Identificar, analisar e inferir as características nas quais a audiação é processada.

MetodologiaSeis músicos profissionais foram entrevistados separadamente, a saber: dois instru-mentistas (pianista e percussionista), dois regentes e dois compositores. A maneiraadotada de interagir com os depoentes foi por meio da entrevista semiestruturada,que, de acordo com Lankshear e Knobel (2008, 174), inclui:

“uma lista de questões previamente preparadas [em que o pesquisador as utilizacomo guia], acompanhando os comentários importantes feitos pelo entrevistado.[…] Os pesquisadores podem prontamente comparar respostas à mesma questão,e ao mesmo tempo permanecer abertos a pontos de discussão importantes masnão previstos.”

As perguntas foram divididas em dois grandes grupos: 1) apresentação dos entrevis-tados — cinco questões; 2) perguntas que focavam o tema da pesquisa — quatro ques-tões. O objetivo do primeiro grupo de questões foi o de localizar o leitor diante dorespondente, ao fornecer informações relativas à idade, a citação de professores, con-certos, gravações, composições e prêmios mais relevantes; o objetivo do segundogrupo de questões foi o de permitir aos participantes relatar as suas experiências mu-sicais empíricas diante do processo de audiação. Nessa comunicação, focaremos ape-nas a terceira pergunta do grupo dois, e as implicações da resposta, emitida pelosparticipantes, da questão: Hoje, qual a relevância da audiação em sua vida profissional?Em quais situações cotidianas e de que forma você a utiliza?Os dados coletados foram analisados com um conjunto de técnicas sugerido por Lau-rence Bardin (2008, 44), conhecido como Análise de conteúdo, que pode ser resumidonuma

“análise das comunicações visando obter por procedimentos sistemáticos e obje-tivos de descrição do conteúdo das mensagens indicadores (quantitativos ou não)que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições deprodução/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.”

O objetivo da escolha dessa ferramenta de análise foi transformar as informaçõesbrutas, isto é, apresentadas da maneira em que foram colhidas, e tratá-las a ponto detornarem-se acessíveis e manejáveis, a fim de serem feitas representações condensa-das e explicativas. Como estratégia para atingir esse resultado, Bardin (2008) estabe-lece a importância de que o processo de investigação passe por três fases: a pré-análise,a exploração do material e o tratamento dos resultados.

Pré-análiseA pré-análise, momento do primeiro encontro do pesquisador com o material a ser

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analisado. Bardin (2008, 121) refere-se a esse momento como“a fase de organização propriamente dita. Corresponde a um período de intuições,mas tem por objetivo tornar operacionais e sistematizar as idéias iniciais, de ma-neira a conduzir a um esquema preciso de desenvolvimento das operações suces-sivas, num plano de análise.”

É possível ocorrer nessa fase atividades não estruturadas, isto é, atividades em quenão há o rigor em segui-las de modo sistemático, nem mesmo é elencada uma ordempara que elas se apresentem. Há casos em que é aceitável que uma ou mais atividadessejam suprimidas. Elas são a leitura “flutuante” do material, a escolha dos documentos,formulação de hipóteses e dos objetivos, referenciação dos índices, a elaboração dosindicadores e a preparação do material.

a) A Leitura FlutuanteSão as primeiras leituras do pesquisador sobre os documentos a serem analisados.Por ser uma leitura despretensiosa, o texto passa a se tornar conhecido ao investigador,alimentando-o de impressões e orientações a serem confirmadas por releituras domaterial. Com o passar do tempo o texto torna-se mais preciso devido à emersão dehipóteses, à “projeção de teorias adaptadas sobre o material e [à] possível aplicaçãode técnicas utilizadas sobre materiais análogos” (Bardin 2008, 122).

b) A Escolha dos DocumentosOs relatos das entrevistas formam o corpus que “é o conjunto de documentos tidosem conta para serem submetidos aos procedimentos analíticos” (Bardin 2008, 122).Para que a escolha dos documentos seja validada, é necessário que se constitua sobrea base de quatro regras: 1) Exaustividade – todos os elementos do corpus deve serapropriado, sem deixar nenhum de fora por qualquer razão injustificável; 2) Repre-sentatividade – refere-se à amostra, isto é, parte que represente o universo inicial; 3)Homogeneidade – utilização do mesmo critério para a seleção dos documentos, evi-tando as singularidades; 4) Pertinência – servir de fonte útil de informação à análise.

c) A Formulação das Hipóteses e ObjetivosA formulação de hipóteses nem sempre é estabelecida na pré-análise, tampouco éobrigatória ao se proceder a análise. A formulação dos objetivos indica o ponto dechegada a que o pesquisador deseja atingir.

d) A Referenciação dos Índices e a Elaboração dos indicadoresA menção de um determinado tema gerou a referenciação de índice desse trabalho,enquanto que o indicador é a freqüência na qual o tema surge no decorrer do discurso,seja de maneira explícita ou implícita. Bardin (2008, 131) considera que essa espéciede análise temática “consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem acomunicação e cuja presença, ou frequência de aparição podem significar algumacoisa para o objetivo analítico escolhido”.

Exploração do MaterialA exploração do material é o momento em que se codifica o material, por meio de re-

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cortes, agregações e enumerações, de modo que os dados atinjam um grau de repre-sentação do conteúdo. Os depoimentos tidos como respostas às questões foram co-lhidos na íntegra, respeitando as construções gramaticais de cada depoente, as pausaspara reflexão (indicado por colchetes e reticências, por exemplo, […]), inflexões notom de voz (quando apresentarem grande ênfase, as palavras foram transcritas emcaixa alta), gírias, entre outros. Bardin (2008) nomeia ferramentas que facilitam a identificação e a retirada dos ele-mentos significativos do texto: a unidade de registro (ur) – “é a unidade de significadoa codificar e corresponde ao segmento de conteúdo a considerar como unidade base,visando à categorização e a contagem freqüencial” (ibid., 130), a unidade de contexto(UC) – “serve de unidade de compreensão para codificar a unidade de registro e cor-responde ao segmento da mensagem, cujas dimensões são ótimas para que se possacompreender a significação exata da unidade de registro” (ibid., 133); a categorização(CAT), de acordo com Bardin (ibid., 145):

“é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto pordiferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia),com critérios previamente definidos. As categorias são rubricas ou classes, as quaisreúnem um grupo de elementos [. . .] sob um título genérico, agrupamento esseefetuado em razão de características comuns destes elementos.”

Tratamento dos ResultadosO tratamento dos resultados resume-se em manipular os dados codificados, em dire-ção à inferência, que se divide em três elementos: a mensagem – elementos central, eos polos emissor e receptor.

Análise de Conteúdo - CategorizaçãoA tabela a seguir oferece uma visão panorâmica sobre a categoria A audiação na vidaprofissional. Nem todos os entrevistados, identificados como sujeitos (S), ofereceraminformações detalhadas, que pudessem ser utilizadas em todas as ur(s). Na tabela 1,S1 e S2 referem-se aos instrumentistas (pianista e percussionista, respectivamente),S3 e S4 indicam os regentes, e S5 e S6 identificam os compositores.

Resultados FinaisDe acordo com uma leitura atenta a essa categoria, é possível perceber que, para omúsico de alta performance, a audiação não é uma atitude esporádica, que acontecede vez em quando. Ele a incorporou no seu estilo de vida. Não é uma apropriaçãoapenas diante do instrumento, do grupo a ser regido ou da folha pautada em branco.O estudo musical não depende de material concreto para se realizar. Sendo assim, apalavra instrumento assume a sua função real: uma interface que leva música às pes-soas. Essa música não nasce de um pedaço de madeira, mas da cognição humana.Diante disso, para os instrumentistas e os regentes, a audiação impulsiona o trabalho

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de re-criação da obra do compositor. A construção de uma interpretação pessoal, seminfluências diretas de determinadas orquestras, grupos ou solistas, torna o produtomusical de maior valor, pois evita um possível “plágio interpretativo”. Referindo-se aisso, os entrevistados contribuem: “eu aprendo as músicas sem o aparelho de som, namesa estudando. [. . .] Quando eu abro uma partitura já escuto” (S4); outro músicoainda acrescenta: “Eu pego a partitura e faço uma análise; inclusive eu não gosto nemde tocar a partitura, não gosto de escutar a gravação da partitura” (S3).Para um dos sujeitos instrumentistas, o canto pode propiciar uma intimidade paracom a obra musical: “Você começa a batucar: ‘como é que vou fazer?’ [. . .] ‘Eh! Essetrecho é chato! Vou fazer assim!’ Você começa a cantar aquilo. Apesar de nunca tersido tocada, aquilo se torna uma obra que você já é íntimo dela” (S2). Posteriormentecomplementa que a leitura cantada pode ser uma ferramenta para conhecer umaquantidade maior de repertório, sem a necessidade de estar diante do instrumento.Dessa forma, a escolha e o estudo do repertório não dependem de local e horário. Omúsico apto a audiar encontra chances de estudar a obra musical em oportunidadescotidianas, como afirmam os entrevistados: “Antes de dormir [. . .] NOSSA! NOSSA! Éa melhor hora para aprender. Você vai lá e escuta!” (S1); “Às vezes, eu estou comendo,ponho a partitura e estou estudando” (S3); “Você pega a partitura, decifra; está emcasa, está no ônibus, está lendo” (S2).O constante vai e vem de sons na mente do músico, a organização do pensamentomusical, a transcendência da partitura pelos instrumentistas e regentes, e a capaci-dade dos compositores de arquitetar edifícios sonoros refletem-se na qualidade final

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TABELA 1 – Quadro panorâmico das unidades de registro, unidades de contexto e nú-mero de intervenções dos participantes, referentes à categoria A audiação na vida pro-

fissional, resultantes da análise de conteúdo das entrevistas.

UC1: Como audia Sujeitos ur1: não toca e não ouve gravação ur2: canta

S3 e S4 S2

UC2: Quando audia ur1: antes de dormir ur2: durante a refeição

S1 S3

UC3: Onde audia ur1: casa / ônibus S2 UC4: Por que audia ur1: produz tranquilidade ur2: agiliza o aprendizado ur3: visão geral da partitura

S1 S1 e S2 S3

UC5: Objetivo da audiação ur1: construir a interpretação S3 e S4 ur2: escolher a obra S2 UC6: Benefício da audiação ur1: independência de instrumentos como suporte ur2: consciência musical

S5 S2

UC7: Uso do instrumento como suporte ur1: usa com naturalidade S2, S3, S4, S5 e S6

do produto, seja na performance ou na obra grafada. O momento de contemplaçãoartística sentida pelo público é resultante do árduo estudo do músico que buscou, ini-cialmente pela audiação, elementos que produzissem em si, tranquilidade: “o tempotodo áudio. Aliás, cada vez mais. [. . .] Essa busca me tranquiliza, ela me localiza” (S1).Da sensação de tranquilidade resulta a segurança na execução da obra musical.A audiação promove na vida de S1 e S2 um menor tempo no aprendizado da obramusical, como seguem os relatos, respectivamente: “Quando eu tenho que aprenderuma música rapidamente, tocar a sonata de Brahms na semana que vem, eu trabalhomuito mais fora do piano do que no piano. O que eu trabalho no piano são questõesfísicas, técnicas, mas a música, ela está [. . .] ela é anterior a isso, cada vez mais” e “Poruma questão de agilizar o estudo, entendeu? Não era sempre que eu podia estar nafrente de um tímpano”.Para S3, o desafio do regente é manter a unidade da obra, acrescentando o acaba-mento do fraseado, equalização sonora, adequação do timbre, entre outros. Como re-sultado, afirma: “eu tenho que ter uma visão geral da partitura” (S3). A audiaçãooferece opções para a construção da interpretação do músico. Quando o estudo téc-nico instrumental precede o estudo pela audiação, o estudante “deixe as dificuldadestécnicas influenciarem a interpretação” (S4).O compositor que desenvolve um alto nível de audiação torna-se independente defontes sonoras externas. Pode trabalhar em qualquer tempo e lugar: “a audiação éuma ferramenta importante porque te possibilita momentos de criação sem que vocêtenha, necessariamente, o suporte de um instrumento” (S5). Da mesma forma, ampliaa consciência musical do intérprete.Embora os entrevistados entendam que o pensamento musical deva ser autônomo,não excluem o uso de instrumentos musicais como auxílio ao estudo da obra: “quandoeu vejo que tem uma harmonia que é muito intrincada no vibrafone, por exemplo,que é um instrumento bem harmônico, [. . .] aí eu olho a melodia e [. . .] ‘UAU! A me-lodia é bonita, mas como é que vai ficar o som dessa harmonia?’ [. . .] Às vezes eutenho que partir para o instrumento” (S2); “[. . .] e usando o piano ou não, pra você,às vezes, tem uma dificuldade de escutar isso, daquilo” (S3); “Quando tenho algumasdúvidas, ou preciso ver as harmonias, eu uso o piano” (S4); “Eu acho uma recusa meioboba; se você tem o piano do lado, por que não consultar o piano em alguns momen-tos? Veja que uma obra eletroacústica, você não tem exatamente como [. . .] você pre-cisa do instrumento, no caso o computador, pra sintetizar os sons, pra fazer testes. Éum verdadeiro laboratório” (S5); “Se eu precisar, eu quero uma melodia ‘X’, escrevo,harmonizo e distribuo, escrevo para os instrumentos sem precisar do piano. Só queacontece o seguinte: quando eu experimento no piano, sempre o piano me dá maisopções. Qualquer música que eu escrevo, faço a orquestração, escrevo tudo e tal… eusó dou por terminada quando eu ponho no piano e leio nota por nota” (S6).

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ConclusãoDiante do estudo realizado, concluímos que a audiação é uma atividade relevante erotineira na vida profissional dos músicos entrevistados. A assimilação dos esquemasreferentes aos parâmetros e aos elementos musicais de modo profundo, permitiu aosdepoentes poderem vivenciar a música no plano mental. Para os instrumentista e re-gentes, verificou-se o que a ativação da audiação “parece ser suficiente para promovera modulação de circuitos neurais envolvidos nas primeiras etapas do aprendizado dehabilidades motoras” (Pascual-Leone, apud Sacks 2007, 43). As ativações desses cir-cuitos neurais podem significar melhora na execução, requerendo menor tempo deprática física, diante do instrumento, além de uma maior possibilidade de se libertardas dificuldades técnicas instrumentais, o que propicia um significativo aumento daqualidade interpretativa. Para os compositores, a audiação tornou-se a matéria primapara a composição. De acordo com Sessions (apud Gardner 1994, 80), “a imaginaçãoauditiva é simplesmente o trabalho do ouvido do compositor, completamente con-fiável e seguro de sua direção como ela deve ser, a serviço da concepção claramentedelineada”.

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Música na carne: o advento da experiência musical incorporadaMarcos Nogueira

[email protected] de Música – Universidade Federal do Rio de Janeiro

ResumoA Psicologia Cognitiva e a Neurociência contemporânea vêm comprovando, nas últi-mas décadas, que nossas inferências intelectuais são produzidas pelo mesmo apare-lho cognitivo, pela mesma arquitetura neuronal que usamos em nossas açõesperceptivas e corporais. Ou seja, neste contexto não haveria possibilidade de exis-tência de uma mente separada e independente das capacidades corporais. A razãousaria essas mesmas capacidades para se constituir. Assim sendo, nosso sentido doque é real tem origem nas ações do nosso corpo enquanto unidade formada peloaparato sensório-motor e o cérebro: nossos sentidos são incorporados

. Neste artigo proponho reconhecer que a experiência do objeto musical envolve trêsníveis concorrentes: (a) a percepção dos traços distintivos dos objetos sonoros e oefeito de “animação” que a sua variabilidade produz no nosso sistema conceitual;(b) a produção de formas e sintaxes estilísticas resultantes da ação do imaginário eda habituação de recorrências; e (c) os efeitos emocionais gerados na troca comuni-cativa entre um conteúdo musical e um conteúdo mental. A experiência de movi-mento em música e os mecanismos cognitivos que empregamos para conceitualizá-lodeterminam os demais níveis de experiência, sintático e emocional. Saliento que naexperiência do movimento musical buscamos referências reais e essa experiência éum reflexo da nossa experiência de vida corporal. O artigo discute, pois, os resultadosde um dos vieses da pesquisa por mim iniciada em 2001, dedicada ao campo quedenominei “semântica do entendimento musical”, e que tem como objetivo centralo estudo do processo de produção de sentido no ato da escuta dos objetos musicais.Está em discussão, em especial, a proeminência do papel das descrições conceituais(proposições) na revelação da condição incorporada que assume a mente humanana constituição do sentido musical e sua contribuição para o entendimento das deci-sões tanto interpretativas (seja de ouvintes ou de executantes) quanto composicio-nais.

Palavras-chavesentido musical – metáfora conceitual – objeto musical

Não há música sem a presença de um ser humano capaz de converter sons em música.Palavras podem descrever os objetos musicais e a sua experiência, mas somente à me-dida que puderem ter o sentido que a música tem para quem a experimenta. Os ter-mos “música” e “objeto musical” referem-se a aspectos específicos do mundo humano.Nesses termos, como lembra Thomas Clifton no início de seu Music as heard, “músicaé a atualização da possibilidade de qualquer som que seja de aprese-tar a algum serhumano um sentido que ele experimenta com o seu corpo — isto é, com sua mente,

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seus sentimentos, seus sentidos, seu desejo e seu metabolismo” (Clifton 1983, 1). Con-seqüentemente, a diferença entre o som que é música e o som que não é música re-pousa no uso que fazemos dele na experiência. Um ouvinte em atitude musi-cal estáabsorto na significação musical dos sons que experimenta; não, necessaria-mente,numa significação simbólica, mas em algo que é apresentado nos sons.Este artigo discute os resultados de um dos vieses da pesquisa por mim iniciada em2001, dedicada ao campo que denominei “semântica do entendimento musical”, eque tem como objetivo central o estudo do processo de produção de sentido no atoda escuta dos objetos musicais. Discuto aqui, em especial, a proeminência do papeldas descrições conceituais, das proposições, na revelação da condição incorporadaque assume a mente humana na atribuição do sentido das coisas, e, sobretudo, naconstituição do entendimento musical.

Intencionalidade e objetos musicaisNo ato da escuta musical estão envolvidos percepção, imaginação, sentimento e juízo.Mas não são aos sons, propriamente, que visamos. A música que podemos experi-mentar quando alguém usa uma flauta como instrumento musical não é o som par-ticular que “vem da flauta”. O conhecimento de que o som ouvido tem origem naflauta — enquanto fonte sonora — não faz parte, estritamente, da experiência musical.A associação entre os sons e os objetos materiais e as máquinas nos quais são produ-zidos é apenas um sinal de que algo está ocorrendo no mundo físico, mas a músicanão está fatualmente no mundo, como os objetos físicos estão. Num esforço de con-sideração do objeto da experiência musical, Pierre Schaeffer cunhou o termo objetosonoro, a partir do qual desenvolveu uma análise fenomenológica que influenciousignificativamente os estudos acerca da experiência com a música, desde então.Tradicionalmente, não há em artes visuais reivindicações de correspondência com aÓtica. Não obstante reconhecermos as evidentes correlações implicadas no processosensório da luz e das formas visuais, bem como nas artes que as põem em jogo —como suportes ou estruturas —, não procuramos explicar uma pintura, uma esculturaou uma obra arquitetônica segundo as leis da Ótica. Contudo, em seu Traité des objetsmusicaux, Schaeffer ressaltou que tal confusão é freqüente entre Música e Acústica,mesmo em nossa atualidade. Uma das razões para essa confusão é estritamente sen-sorial. Se “objetos visuais” são também, entre outros, “objetos táteis” ocupantes deespaços e assinalados assim por mais de um sentido e afirmados por um conjunto deprovas, sons são eventos presentes a uma única modalidade de sentido: sons são “ob-jetos de audição” — como cores são objetos de visão. Um surdo pode reconhecer apresença de sons por meio da fisicidade tátil da vibração de ondas sonoras, mas ossons mesmos não estão incluídos nessa experiência.Cores são qualidades presentes em todas as coisas — podem ser assim entendidascomo qualidade secundária das coisas –, são dependentes das coisas que as possuem.Sons, ao invés, não são comparáveis a coisas e tampouco comparáveis com proprie-

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dades das coisas, pois não são qualidade de nada. Os objetos não têm sons, do modocomo têm qualidade de cor: eles emitem sons quando postos em movimento pela na-tureza ou por ações humanas deliberadas ou não. Assim sendo, podemos entenderque o som está na coisa como virtualidade a ser atualizada, ou seja, existe apenascomo conseqüência de uma ação exercida sobre a coisa.Sendo assim, objetos são, de um ponto de vista metafísico, causa dos sons cujas qua-lidades não incluem os efeitos táteis das vibrações, pois tais efeitos pertencem à outraordem de perceptos. Devido à exclusividade do processo auditivo em assinalar os sons,desenvolvemos, de algum modo, padrões perceptivos que se configuram por corre-lações diversas entre sons experimentados e coisas da ordem visual, tais como ins-trumentos musicais, máquinas, animais e fontes sonoras em geral. Schaefferchama-nos, a propósito, a atenção para a diferença entre luz e som na nossa atividadesensorial. Quando percebemos um objeto iluminado, ou seja, a sua “forma”, a fonteque fornece os raios luminosos de que se reveste o objeto — seja ela o sol ou um pro-jetor qualquer — é naturalmente negligenciada em proveito do objeto. “Os sons, apa-rentemente, provêm de fontes; e ao que parece, o que interessa ao ouvido, ao contráriodo que ocorre aos olhos, são os raios sonoros” (Schaeffer 1993, 138).Em seu discurso, Schaeffer salienta o notável apelo que exercem as causas dos sonsem nossa cultura. Ao ouvirmos um enunciado verbal, visamos imediatamente aosconceitos que nos são por ele transmitidos; ao escutarmos o som de um latido, visa-mos ao cão — ou seja, é em relação ao cão que escutamos o som como índice — e,nesse caso, não há, propriamente, um “objeto sonoro”: há apenas uma percepção, umaexperiência auditiva, através da qual visamos a um outro objeto. Em outras palavras,é fácil confundir o objeto percebido e a percepção que dele temos. Durante a maiorparte do tempo, a nossa escuta visa a “outra coisa”. Insistimos em ouvir senão indíciosou sinais: uma escuta que se mantém, de modo geral, num estágio estritamente refe-rencial. Embora mostremos interesse pelos sons eles mesmos, num primeiro mo-mento não vamos além de dizer “é o latido de um cão”, ou até mesmo “é um dó gravede flauta”. E Schaeffer já salientava, em seu Traité, que quanto mais hábeis nos torna-mos para identificar indícios sonoros, maior se torna nossa dificuldade de entendê-los como objetos: “quanto mais fácil nos é compreender uma linguagem, tanto maisdifícil nos será ouvi-la” (Schaeffer 1993, 246).Dessa experiência resulta a pergunta: o som não pode ser pensado sem a coisa a partirda qual foi produzido? De fato, a possibilidade de uma autonomia para a percepçãodos sons esbarra em sua debilidade e sua impermanência, pois os sons estão semprena iminência de desaparecer, dada a ausência de vínculos com as coisas materiaiscomo aqueles que nestas são sinalizados nas operações sensoriais da visão ou do tato.Todavia, a possibilidade de haver ainda sons cujas fontes (causas) não sejam identi-ficáveis ou mesmo que não pareçam responder sonoramente a ações humanas, isto é,de haver uma desvinculação entre som e causa, trouxe-nos, nas últimas décadas, umanova formulação acerca do caráter da experiência do som musical. Se o som sempreesteve associado ao fenômeno energético que lhe dá origem, até mesmo confundindo-

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se com ele na prática cotidiana — incluindo-se aí a musical —, a noção de objeto so-noro era então negligenciada pela Acústica, que no seu método de remissão dos fatosàs respectivas causas reconhecia como plenamente satisfatória a descrição do fenô-meno energético (o sinal físico) como fonte sonora. Assim sendo, não havia razãopara que o ouvido, a partir da “propagação de radiações mecânicas no ar”, percebesseoutra coisa senão a própria fonte sonora.Todavia, na experiência do som musical — a forma sonora que denominamos música— normalmente menos importa como nascem os sons ou qual o mecanismo de suapropagação, que como são percebidos e apreendidos. Como ensinou Schaeffer, na ex-periência musical o que escutamos não são nem as fontes nem os sons, simplesmente,mas sim objetos sonoros, formas sonoras com sentido musical potencial. Portanto, emalgum estágio dessa experiência separamos, espontaneamente, o som das circuns-tâncias de sua produção e o ouvimos como é em si. E isto Schaeffer denominou ex-periência acusmática do som — renovando o termo grego akousmatikoi 1, que diz dosom que se escuta sem, contudo, se verem as causas de onde provém.O projeto de Schaeffer teve como pano de fundo a produção da chamada “música ele-troacústica” nascente — uma música que devido a seu modo de reprodução original-mente mecânico, prescindia ineditamente da performance —, e visava, pois, adeslocar a atenção antes dividida com toda a sorte de “materialidades” (como instru-mentos e acessórios, sonoridades, partituras etc.) e procedimentos (a aparência, arespiração, os gestos dos intérpretes-executantes etc.) envolvidos na performancemusical, para a exclusividade do que está no som: o objeto sonoro. Trata-se, portanto,de uma tentativa aparentemente inviável de violar a tese, de Merleau-Ponty, da inter-sensorialidade, uma vez que segundo este os diversos canais perceptivos não seriampassíveis de isolamento — não poderia haver, estritamente, escuta acusmática ou mú-sica acusmática. Então Schaeffer procurou resolver essa dificuldade com o desenvol-vimento de uma espécie de “percurso” da escuta, recorrendo para isso à sinonímia,precisando as variantes lingüísticas do ato da escuta e especializando seus sentidos(no que entendeu serem os quatro modos de escuta: ouvir, escutar, entender e com-preender).Ainda que não seja possível isolarmos os diferentes “modos de escuta”, na cultura mi-diática as materialidades e os comportamentos comprometidos em uma provável per-formance que anteceda e determine os objetos “difundidos“ vêm se tornando cadavez mais irrelevantes. Ao escutarmos objetos sonoros cujas causas instrumentais estãocada vez mais freqüentemente ocultas, tendemos a nos desinteressar por essas causase atentar apenas para os objetos eles mesmos. Cumpre enfatizar, no entanto, que adissociação de vista e ouvido — que favoreceria a estrita escuta do que há nos sonsmusicais — não seria plena apenas a partir da experiência “acusmática” de Pitágoras.

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1 Acusmáticos, dizia-se dos discípulos de Pitágoras, que durante anos ouviam as lições do mes-tre por detrás de uma cortina, observando silêncio absoluto, desse modo ouvindo apenas a vozque a eles chegava livre da distração dos olhos.

Somente com a difusão dos novos meios de reprodutibilidade da “base sonora” dosobjetos musicais é que as condições efetivas para promover um desencorajamento danossa curiosidade instintiva pelas causas vêm se tornando decisivas. Podemos obser-var que a repetição do sinal físico da música, que as tecnologias de gravação permi-tiram, nos ajuda na aproximação do objeto sonoro de maneira renovadora. Antes detudo, por reduzir, paulatinamente, o interesse pelas fontes, colocando, pouco a pouco,o objeto sonoro como novo e digno interesse perceptivo. Além disso, em virtude depossibilitar escutas mais completas e refinadas, a “cultura da repetição” nos revela demaneira mais intensa e consistente a riqueza potencial dos objetos sonoros da música.Enfim, com sua incipiente fenomenologia2, Schaeffer evidenciou um conceito — ecunhou um termo — que viria transformar significativamente a pesquisa acerca daexperiência musical. Existe propriamente objeto sonoro quando tivermos completadoo que Schaeffer denominou uma “redução” — usando o termo husserliano — mais ri-gorosa que a “redução acusmática” da experiência de Pitágoras. Restringimo-nos,assim, às informações fornecidas pelo nosso ouvido, que dizem respeito apenas aoevento sonoro em si mesmo. Portanto, não procuraríamos obter informações sobreoutra coisa. É o próprio som a que visaríamos — intentamos escutar apenas o objetosonoro que se dá “no encontro de uma ação acústica e uma intenção de escuta”: umaescuta reduzida. Essa nova situação produz novos hábitos na relação com o som mu-sical. E na experiência midiática da música isso tem levado, cada vez mais radical-mente, à renúncia da presença e da performance, permanecendo na escuta apenasobjetos sonoros com sentido musical: objetos musicais.

Eventos, causas e metáforas primáriasTendo em vista o que foi discutido até aqui, enquanto ouvimos sons como músicaocorrem simultaneamente três processos: a realidade física das vibrações e das ondassonoras; o som que percebemos auditivamente na experiência dessas vibrações; e oobjeto musical que escutamos nos sons como objetos sonoros, isto é, o objeto inten-cional da escuta musical. Proponho reconhecermos que a experiência do objeto mu-sical, por sua vez, envolve três níveis concorrentes: (a) a percepção dos traçosdistintivos dos objetos sonoros e o efeito de “animação” que a sua variabilidade produzno nosso sistema conceitual; (b) a produção de formas e sintaxes estilísticas resul-tantes da ação do imaginário e da habituação de recorrências; e (c) os efeitos emo-cionais gerados na troca comunicativa entre um conteúdo musical e um conteúdomental. A conceitualização da experiência do objeto musical nestes três níveis revelao quanto somos hábeis em transferir sentidos entre domínios de experiência distintos.Refiro aqui às projeções metafóricas que estão na base da maior parte da nossa pro-

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2 O próprio Schaeffer assim o reconhece: “durante anos exercemos a fenomenologia sem sabê-lo (…). Apenas tardiamente pudemos reconhecer uma concepção do objeto que a nossa pes-quisa postulava, cercada por Edmund Husserl de uma exigência heróica de precisão queestamos longe de pretender ter” (Schaeffer 1993, 237).

dução de sentidos, e que, particularmente, dão origem ao entendimento musical.A experiência de movimento em música e os mecanismos cognitivos que empregamospara conceitualizá-lo determinam os demais níveis de experiência, sintático e emo-cional. Essa experiência do movimento resulta da nossa tendência em identificareventos sonoros distintos e em agrupá-los em unidades estruturáveis. Na experiênciado movimento musical buscamos referências reais e essa experiência é um reflexo danossa experiência de vida corporal. Ao “ouvirmos” movimento, estamos ouvindo umaespécie de animação: uma “aparência de vida”. Saliento, entretanto, que o ritmo mu-sical é um fenômeno gestáltico que se assemelha, em alguns aspectos, à percepçãodos padrões visuais. Sua constituição exige a ação direta da imaginação e da subjeti-vidade dos desejos, uma vez que consiste em agrupações não derivadas de relaçõesreais com suportes materiais. Ritmo musical é movimento estruturado, uma expe-riência sintática.Como já assinalara Merleau-Ponty, em sua Fenomenologia da percepção, nossos ór-gãos sensoriais não são funcionalmente independentes um do outro, uma vez quesintetizamos as suas percepções empiricamente separadas. Em cada percepção háum eu indivisível para quem cada experiência constitui um sentido. Com freqüência,dizemos que o som produzido no registro médio do fagote é rouco e anasalado. Essaspalavras são, contudo, descritivas de nossa própria experiência corporal. A “textura”do som, ou melhor, o seu timbre, como fenômeno, não deve ser confundido com umestímulo acústico atingindo o nosso corpo. O nosso corpo é que produz seus efeitossobre as qualidades dos objetos sonoros ao ser ele mesmo afetado pelas propriedadessonoras daqueles eventos. Podemos entender então que o timbre, como fenômeno— uma textura que ouvimos nos objetos sonoros como sendo sua propriedade —,não é imanente ao fagote como presença física, mas aos sentidos dos eventos sonorosnele produzidos.O mesmo ocorre quando pensamos a música como algo que tem uma dimensão ho-rizontal e outra vertical3. É muito comum aí empregarmos também o termo “textura”,como uma metáfora de tecelagem, na qual a urdidura — os fios dispostos longitudi-nalmente no tear — representa a dimensão horizontal, os sons sucessivos que formamlinhas melódicas; e a trama — os fios transversais –, representa a dimensão vertical,os sons simultâneos que formam estruturas acordais. Quando falamos em textura dosobjetos musicais, referimo-nos a como esse “tecido” funciona, a quão densas são aslinhas verticais se comparadas às horizontais, a como as linhas horizontais “mudam”no tempo, movendo-se conjuntamente ou independentemente, e assim por diante. O

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4 O grande apelo desse sistema plano de coordenadas em nosso discurso da música deve-se,muito provavelmente, à disseminação da prática notacional tradicional da nossa cultura. Essatécnica, tal qual a espacialização produzida pela escrita literal, atribui à dimensão horizontala sinalização da sucessão temporal de eventos, mas sobrepõe verticalmente as várias ocorrên-cias lineares concorrentes. Entretanto, cumpre aqui salientar que nossa experiência da músicaenvolve outra dimensão espacial, por meio da qual localizamos objetos em níveis distintos deprofundidade, o que dá à textura plana ao menos o caráter de rugosidade.

emprego da metáfora de tecido implica serem a urdidura e a trama mais que merasdimensões da música; são organizações que mantêm a música unida do mesmo modoque as fibras mantêm os tecidos. Textura é o que experimentamos quando ouvimosdurações, regiões de altura sonora (registros), distâncias, intensidades sonoras, pro-fundidades, timbres, direções, enfim, estamos falando de espaço e de objetos cujascaracterísticas dependem da nossa percepção de todos aqueles parâmetros. Quandoouvimos sons como música, distinguimos o espaço físico dos eventos acústicos doespaço fenomênico dos eventos musicais.No capítulo que dedica ao espaço, Merleau-Ponty (1994, 328) afirma que: “o espaçonão é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo quala posição das coisas se torna possível”. O espaço é, antes de tudo, o campo de ação donosso engajamento corporal no mundo e está pressuposto em todo ato perceptivo.Por isso, a generalidade do espaço é algo que tem origem no ser humano que o expe-rimenta.4 Além disso, a distinção entre lugar e ocupante assinala uma importante di-ferença entre espaço e tempo, pois o tempo não é preenchido por coisas que neleocorrem, como são os espaços. Um evento sonoro, por exemplo, toma “algum tempo”,mas não compete com outros eventos pelo tempo que requer: os eventos podem sersimultâneos. Portanto, o caráter topológico do espaço, como sistema de lugares e su-perfícies, não se reproduz no domínio acústico musical. Na escuta musical experi-mentamos não apenas os eventos no tempo, mas confrontamo-nos com o própriotempo expandido, espalhado e oferecido à nossa contemplação e apreensão direta ecompleta, tal como o espaço está espalhado diante de nós no campo visual. No do-mínio acústico a ordem temporal é dissolvida e reconstituída como um espaço feno-mênico. E transferimos para esse espaço nossa familiaridade e os sentidos queforma-mos em nossas experiências de ação corporal — parece que podemos nosmover no tempo com a mesma autonomia que exercemos nossa mobilidade espacial.A experiência do objeto sonoro começa, como já discutido, no reconhecimento deeventos sonoros. E se é na sucessão temporal dos eventos sonoros, que ouvimos “mo-vimento”, precisamos estudar mais cuidadosamente as questões relativas a causas,eventos e tempo. Como Schaeffer observou, se na escuta dos objetos sonoros devemosnos desinteressar pelas causas dos sons, ao contrário eventos e causas musicais —como também estados e ações envolvidos — exigem a atenção de quem experimentaos sons como objetos musicais. O espaço acusmático está sempre associado a umacausalidade virtual; na escuta musical os objetos sonoros agem uns sobre os outros eessa causalidade é experimentada tanto como algo de ordem pré-conceitual — um

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4 Quanto a isso, Lakoff e Johnson fazem uma observação especialmente pertinente: a nossafala apresenta uma ordem linear, dizemos algumas palavras antes e outras depois; como a falamantém uma correlação com o tempo e o tempo é conceitualizado em termos de espaço, é na-tural também que conceitualizemos a linguagem metaforicamente em termos de espaço — eos nossos sistemas de escrita reforçam essa conceitualização. “Em virtude de conceitualizarmosa forma lingüística em termos espaciais, é possível a certas metáforas espaciais referirem-sediretamente à forma de uma frase como a concebemos espacialmente” (1980, 126).

fluxo vital — quanto conceitual e proposicional — resultante de um alto grau de con-vencionalidade estilística. Quando a causalidade é experimentada como produto deformas estereotipadas, é percebida como inevitável. Nesse caso, parece-nos que umobjeto sonoro não dá, meramente, origem ao objeto seguinte, mas que cria uma talsituação que faz seu sucessor significar uma resposta correta e, muitas vezes, previ-sível.Os filósofos dedicaram-se, no curso da história, a uma variedade de teorias da cau-sação — envolvendo conceitos tais como forma, propósito, força, condição, relação— cada qual com a sua própria lógica; e ainda assim todas essas teorias são reconhe-cidamente teorias da mesma coisa. O conceito literal esquemático dos raciocínioscausais é: “causa é um fator determinante para uma situação”, seja a situação um es-tado, uma mudança, um processo ou uma ação. George Lakoff e Mark Johnson (1980)observaram que toda a riqueza de formas de raciocínio causal surge de duas fontes:um protótipo causal e uma grande variedade de metáforas para causação. Assim, ocentro do nosso conceito de causação é o uso volicional que fazemos de nossa forçacorporal para mudar algo fisicamente: uma causação prototípica. Extensões desseprotótipo dão origem aos casos em que uma causa abstrata é conceitualizada meta-foricamente em termos de força física através da metáfora primária “causas são forças”.E em virtude da causa ocorrer antes do efeito no caso prototípico, surgem ainda me-táforas como “precedência causal é precedência temporal”, “causas são correlações”ou “causas são fontes”.Estruturamos tanto os movimentos dos nossos corpos quanto os eventos no mundocom uma mesma estrutura neuronal (um esquema) para evento, que consiste, basi-camente, de: estado inicial, processo (aspecto central do evento) e estado final (re-sultante do processo). Algumas metáforas primárias são constituídas a partir dessemodelo geral como estruturas inferenciais. Por exemplo, os estados são conceituali-zados como “limites” no espaço; mudanças são conceitualizadas como “movimentos”entre localizações espaciais. Donde podemos concluir que nosso entendimento fun-damental de eventos e causas vem de duas metáforas: a que conceitualiza evento emtermos de localização e a que o conceitualiza em termos de objeto. Ambas têm comobase as metáforas primárias “causas são forças” e “mudanças são movimentos”, quepossuem um alto grau de convencionalidade em nossa experiência.

A conceitualização dos objetos musicaisO que significa dizer que os conceitos que produzimos no esforço de entendimentosão incorporados? Nosso sistema sensório-motor desempenha um papel essencial naprodução de tipos especiais de conceitos: conceitos aspectuais e espaciais. Qualqueruso que fazemos de conceitos requer ser constituído por nossa rede neuronal. E a es-trutura da rede determinará quais conceitos teremos e disso que tipo de raciocíniopoderemos fazer. O que a Psicologia Cognitiva e a Neurociência contemporânea vêmcomprovando nas últimas décadas é que nossas inferências intelectuais são produzi-

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das pelo mesmo aparelho cognitivo, pela mesma arquitetura neuronal que usamosem nossas ações perceptivas e corporais. Ou seja, as ciências cognitivas vêm mos-trando evidências de que não há uma mente separada e independente das capacidadescorporais; a razão, pois, usaria essas capacidades para se constituir. Assim sendo,nosso sentido do que é real tem origem nas ações do nosso corpo enquanto unidadeformada pelo aparato sensório-motor e o cérebro.O modo como categorizamos o real é conseqüência de como somos cognitivamenteincorporados. A categorização não é resultado de um “puro raciocínio”, mas emgrande parte determinada pela “experiência” que travamos corporalmente com omundo. Nossa condição de seres neuronais estabelece que as categorias que produzi-remos mentalmente serão formadas por meio de nossa incorporação, sendo assimpartes da nossa experiência. As categorias caracterizam-se como estruturas mentaisque diferenciam aspectos de nossa experiência, destacando-os de um todo antes in-diferenciado. Nesse contexto, aquilo que denominamos “conceitos” podem ser en-tendidos como estruturas neuronais que nos permitem constituir conhecimentossobre as nossas categorias. Um conceito incorporado é assim uma estrutura neuronalque usa nosso sistema sensório-motor, e por isso a maior parte das inferências con-ceituais são inferências de ordem sensório-motora.Os conceitos de relações espaciais formam o núcleo principal do nosso sistema con-ceitual. Lakoff e Johnson (1999) evidenciaram que tais conceitos caracterizam a

“forma espacial”, determinam o que ela é para nós e as inferências que fazemos de nos-sas experiências corporais. Contudo, aqui a questão central da pesquisa cognitiva éque nossos conceitos de relações espaciais são empregados inconscientemente pornosso sistema conceitual, quando percebemos uma entidade em ou através de outra.Ou seja, relações espaciais, em geral, seriam configurações complexas de relações es-paciais elementares cujas estruturas são constituídas pelo que denominaram esque-mas de imagem. Há uma lógica espacial construída em esquemas como, por exemplo,o de “caminho”: origem – trajeto – alvo. Seus elementos principais são, portanto, umatrajetória e os pontos de partida e chegada. Nosso conhecimento fundamental de

“movimento” é caracterizado por este esquema e sua lógica está assim implícita emsua estrutura. Enfim, diversos conceitos de relações espaciais são determinados poreste esquema; mas aquilo que mais merece atenção, no presente estudo, são as ope-rações essencialmente inconscientes que transferem sentidos constituídos em expe-riências sensório-motoras para outros domínios de experiência. Essa transferênciaproduz, por exemplo, a partir da experiência de “caminho” e dos conceitos dela gera-dos, outros conceitos como os de “projeto” ou de “melodia”.A questão subjacente aqui é que concreto e abstrato são conceitos interdependentes.Não podemos, por exemplo, falar de uma coisa “que existe” (concreta, do ponto devista da realidade), sem conhecer o conceito de “existência” (abstrato, do ponto devista do pensamento). O termo “concreto” é um conceito que designa algo que é reale múltiplo; o termo “abstrato” referencia algo concreto, tirando de sua multiplicidadealguma qualidade específica. Quando tentamos empurrar um móvel muito pesado,

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experimentamos a resistência “desse objeto” ao nosso esforço. A partir das categoriasformadas nessa experiência, elaboramos vários conceitos, dentre eles o de “dificul-dade”. Só pudemos conceitualizar a experiência, criando, dentre outros, o termo “di-ficuldade”, porque experimentamos a dificuldade como algo real com o nosso corpo.Enfim, o corpo é a casa do concreto, pois concreto é aquilo que se pode experimentarsensorialmente e que tem implícitos conteúdos materiais. Podemos dizer então que concreto e abstrato são sempre resultados de operaçõesmentais. Abstrato é aquilo que separa o que não está separado na realidade que noscerca. Nossa capacidade de abstração nos torna competentes para identificar as inú-meras propriedades da realidade. A Neurociência nos oferece inúmeros dados quesugerem que ambos os conceitos, concretos e abstratos, teriam uma representaçãoverbal comum, enquanto os conceitos concretos teriam uma representação adicionalpor visualização mental, dada sua origem nas experiências sensório-motoras. A di-ferença de tratamento que o cérebro dispensa a cada tipo de conceito pode explicarpor que os termos que nomeiam os conceitos concretos são aprendidos mais cedo ereconhecidos mais fácil e rapidamente que aqueles que nomeiam os conceitos abs-tratos. A possibilidade de formação de múltiplas “imagens mentais” do concreto, so-bretudo visuais, pode explicar sua antecedência na coleção de conceitos queaprendemos ao longo da vida: é mais fácil visualizar mentalmente o “espaço físico”ao nosso redor, que o “tempo”, por exemplo. Conceitos abstratos não são intuitiva-mente representáveis como, por exemplo, “infinito”, “dificuldade”, “raiva” etc. Estesconceitos não possuem identidade com nenhum objeto existente, não existem por sina realidade. Por isso, experiências corporais tais como nos manter equilibrados fi-sicamente, que nos vincula à realidade material circundante, dão origem a quasetodos os nossos conceitos abstratos.Música é uma experiência que nos coloca diante de uma grande aventura de abstração,pois quando fechamos os olhos e ouvimos música, estamos mergulhados num mundosem matéria, que nos nega radicalmente a experiência visual. Assim sendo, tudo quepassamos a fazer para apreender essa experiência, para torná-la mais concreta e men-talmente organizável, é traduzi-la corporalmente e, principalmente, produzir umaexpressão visual para a música. É fácil constatar que tudo o que dizemos acerca doque percebemos na música tem origem em nossas representações visuais da música,produzidas pela mente. Construímos mentalmente uma “realidade virtual” para amúsica, uma espécie de abstração de realidade objetiva, espacial e visual. A anterio-ridade e a familiaridade que temos do nosso conhecimento do concreto nos leva a

“visualizar” a música como estratégia natural para entendê-la, em virtude do alto graude abstração que a música nos exige. Então dizemos que a melodia sobe e desce, quedeterminados sons vão e vêm, que a música é mais clara e mais escura, que um somé mais ou menos áspero, que a instrumentação é mais ampla ou mais estreita, queum determinado som está ocultando outro, que uma parte da música equilibra aoutra etc. Enfim, a música só pode ser traduzida, conceitualizada e comunicada dis-cursivamente por meio de metáforas visuais procedentes de nossos conceitos incor-porados.

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ReferênciasClifton, Thomas. Music as heard: a study in applied phenomenology (New Haven and London:

Yale University Press, 1983).Husserl, Edmund. Ideas relativas a uma fenomenologia pura y uma filosofia fenomenológica.

Tradução José Gaos (México: Fondo de Cultura Económica, 1992).Lakoff, George & Johnson, Mark. Metaphors we live by (Chicago and London: University of

Chicago Press, 1980).———. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. (New

York: Basic Books, 1999).Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de

Moura (São Paulo: Martins Fontes, 1994).Nogueira, Marcos. “Comunicação em Música na cultura tecnológica: o ato da escuta e a se-

mântica do entendimento musical”. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: ECO-UFRJ, 2004.Schaeffer, Pierre. Tratado dos objetos musicais (Brasília: EdUnB, 1993).

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Um estudo sobre a influência da expectativa na cognição de paisagens sonoras

Bernardo A. de Souza [email protected]ônatas Manzolli

[email protected] de Música, Instituto de Artes – UNICAMP

José [email protected]

Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora – UNICAMP

ResumoPaisagens Sonoras se aproximam de uma organização similar àquela que constituiuma peça musical. No entanto, as paisagens sonoras são fenômenos auto-organiza-dos, que nunca se repetem acusticamente, mas que sempre mantém uma identidadesonora, que pode ser facilmente percebida por qualquer ouvinte. Em paralelo, a Ex-pectativa é aqui vista como a faculdade mental que nos impulsiona a estabelecerpredições sobre eventos futuros, esperando por acertos e temendo erros. Da mesmaforma que acertar nos satisfaz, errar nos incomoda. A música, tal como outras formasde arte do tempo, tece uma trama de Expectativas a eventos sonoros — sejam estesde natureza rítmica, melódica ou harmônica — que são manipuladas durante a pro-sódia musical; e que advêm da estrutura inicialmente concebida pelo compositor, pas-sando pela interpretação do músico — nas entrelinhas das pequenas variaçõesinseridas durante a performance — e finalizando na cognição e afeto musical do ou-vinte. Isto cria o discurso musical, que muitas vezes nos move e envolve, de formatão intensa e intrínseca. Paisagens sonoras são aqui vistas como fenômenos maissimples de serem analisados, do que peças musicais. Assim, apresentamos neste ar-tigo um trabalho em andamento que visa inicialmente estudar a influência da Ex-pectativa de eventos sonoros distintos, na percepção de elementos formantes depaisagens sonoras. A percepção de tais eventos sonoros é estudada pela psicoacústica,iniciando-se pela medida referida por JND ( Just Noticeable Difference), que trata dadiferença mínima entre eventos sonoros, em intensidade e frequência, para que estessejam auditivamente catalogados como distintos. Pretendemos assim estudar se aExpectativa musical do ouvinte altera seu limiar de JND. Com isto, queremos estabe-lecer as bases para um futuro estudo da influência da Expectativa na percepção deeventos musicais. Neste artigo apresentamos os princípios introdutórios e metodoló-gicos desta instigante investigação.

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IntroduçãoPaisagem Sonora

O conceito de paisagem sonora está vinculado à interação entre fontes sonoras e omeio (Schafer 2001). O objetivo da Ecologia Acústica é valorizar a percepção sonorana sociedade contemporânea com o intuito de ampliar a consciência do ambienteacústico que nos cerca. Schafer sugere que deveríamos ouvir o ambiente acústicocomo uma composição musical, e mais, que temos uma responsabilidade nessa com-posição. Na década de 1970, juntamente com seus colegas da Simon Fraser University(SFU), Schafer criou o WSP (World Soundscape Project), tendo como primeiro grandetrabalho o estudo de campo da paisagem sonora de Vancouver. Esta pesquisa envolveumedidas de intensidade sonora local que foram apresentados como curvas isodecibel,ou seja, similarmente a um levantamento topográfico, foram geradas curvas de níveisde intensidade sonora distribuídas pelo espaço geográfico. A partir das gravações depaisagens sonoras foi possível descrever uma gama de características sônicas obser-vadas naquela cidade.Ao longo do encaminhamento da sua pesquisa, Schafer desenvolveu conceitos essen-ciais, que funcionaram como alicerce para o estudo de paisagem sonora. Estes são:1) Sons Fundamentais – sons ouvidos com uma constância mínima para caracterizarum plano de fundo, contra o qual, outros sons são percebidos. Normalmente não sãoouvidos de maneira consciente, mas atuam como agentes condicionadores na per-cepção desses outros sinais sonoros. Tais sons representariam o fundo, em um para-lelo com a relação figura-fundo do campo visual; 2) Sinais Sonoros – quaisquer sons,para os quais a atenção é particularmente direcionada. Esses contrastam com os sonsfundamentais, exatamente da mesma maneira como a figura e o fundo se opõem napercepção visual; 3) Marcos Sonoros – termo advindo do conceito de “ponto de refe-rência”, ou “marco divisório” (do inglês, landmark), para referir-se aos sons peculiaresde uma comunidade. Esses sons são únicos ou possuem características que os tornamparticularmente notados pela população dessa comunidade. Dentre os exemplos na-turais, estão sons de geysers e de quedas d’água, enquanto exemplos culturais incluemsons de sinos típicos e sons de atividades tradicionais. Schafer ressalta ainda que oconceito de Marco Sonoro, dá suporte à idéia de que há sons de um determinado localque, da mesma forma que a arquitetura e a indumentária, expressam a identidadedessa comunidade. Ou seja, povoados podem ser reconhecidos e caracterizados porsuas paisagens sonoras. Contudo, desde a revolução industrial, este tipo de paisagemsonora singular tem desaparecido completamente ou, no mínimo, sido abafada pornuvens de ruídos homogêneos e sem identidade. Esta é a situação que caracteriza apaisagem sonora da cidade contemporânea, a qual tornou-se marcada por um somfundamental onipresente, como o som gerado pelo tráfego.

Percepção SonoraA percepção do som é um processo que ocorre na fronteira entre a fisiologia e a psi-

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cologia. Este é influenciado pelo aparato auditivo, que transforma ondas de compres-são longitudinal do meio elástico (o ar), em impulsos elétricos no ouvido interno. Oestudo dos processos de percepção sonora é realizado pela psicoacústica; a ciênciaque trata da sensação e percepção de eventos sonoros, em termos físicos (acústicos)e fisiológicos. A psicoacústica estuda como as ondas longitudinais de compressão eexpansão do meio elástico – as ondas acústicas que chegam ao nosso ouvido – sãopercebidas pelo aparato auditivo binaural e enviadas ao cérebro, na forma de impulsoselétricos neurais, de modo a dar ao ouvinte informações úteis sobre o ambiente aoseu redor. Do ponto de vista da psicoacústica, o som inicia-se por um fenômeno físicocujo potencial perceptivo só se manifesta com a participação de um receptor. Comodescrito em Pierce (1992), tal fenômeno inicia-se pelas ondas acústicas — dentro deuma certa faixa de intensidade e freqüência, a qual somos sensíveis — que se propa-gam até os dois ouvidos do ouvinte. No fim do canal auditivo, encontra-se o tímpano,no qual o estímulo, produzido pelas ondas acústicas, ocasiona o deslocamento de os-sículos, que atingem uma membrana chamada de janela oval. Essa janela marca ocomeço de uma cavidade na estrutura óssea do crânio, chamada de cóclea. A cavidadeé preenchida por um líqüido que provoca a movimentação de pequenas fibras capi-lares, presentes numa membrana que segmenta a cóclea em dois hemisférios. Essamembrana é denominada de membrana basilar. A movimentação das fibras capilarestransforma energia mecânica em sinais elétricos que, por sua vez, são transmitidosao córtex cerebral através dos nervos auditivos de ambos ouvidos.

Percepção de Múltiplos Evento SonorosApesar da informação acústica chegar misturada aos nossos ouvidos, nossa cogniçãoé capaz de perceber e discriminar eventos sonoros de natureza distinta. Somos capa-zes — dentro de um certo limite — de prestar atenção numa conversa, estando emum ambiente tumultuado, com muitas outras conversas ocorrendo simultaneamente.O limite da nossa capacidade de discriminação de eventos sonoros está também ligadaa fatores psicoacústicos, tal como o efeito conhecido por mascaramento. Este ocorrequando uma fonte sonora é impedida de ser percebida pela interferência de outra. Osom que mascara impede que outro som possa ser percebido, a não ser que haja umaumento na sua intensidade. Esta intensidade mínima é denominada de “limiar deaudição”. O mascaramento ocorre de diversas formas, com sons de altura musical(pitch) definida, que possuam espectro harmônico ou inarmônico, e com sons rui-dosos (sem pitch), com espectro de banda larga. Quando o mascaramento ocorre comsons com altura definida, um som intenso de freqüência baixa pode mascarar umsom fraco de freqüência alta. Em oposição e independentemente da intensidade, umsom de freqüência alta não mascara um som de freqüência baixa. Isso ocorre devidoà maneira como a membrana basilar percebe os componentes sonoros de distintasfrequências. Esta percebe componentes de diferentes freqüências em diferentes re-giões de sua extensão. Sons agudos são percebidos na região da membrana basilarpróxima à sua base; os graves são percebidos na região próxima a seu ápice. Desta

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forma, para chegar nessa posição, o componente sonoro percorre primeiramente aregião de percepção mais aguda, a qual pode ser afetada se o som grave tem intensi-dade suficiente (Pierce 1992). No caso de um som ruidoso, composto por uma bandalarga de freqüências, o mascaramento é mais efetivo em relação a um som contendoapenas uma freqüência no espectro, ou seja, um som senoidal. O mascaramentoocorre quando a freqüência central da banda do ruído aproxima-se da freqüência dosom puro. Quando o som que mascara é um ruído branco, o mascaramento ocorrede modo diretamente proporcional ao aumento de intensidade, independente da lo-calização no espectro do som senoidal. Como exemplo deste fenômeno, tem-se a in-terferência cognitiva que o contínuo ruído gerado por aparelhos de ar-condicionadocausam em salas de aulas e, muitas vezes, também em salas de concerto mal dimen-sionadas.Um importante processo complementar ao mascaramento é conhecido por JND ( JustNoticeable Difference). Determina-se a JND comparando eventos sonoros e medindoo valor mínimo de variação de grandezas acústicas, como freqüência, em Hertz (Hz),ou Intensidade, em Decibel (dB), onde estes, inicialmente mascarados, passam a serpercebidos como eventos distintos. O JND varia para cada sujeito (ouvinte), métodode medição, características do evento sonoro (ataque, duração, complexidade do es-pectro sonoro, etc.), e espaço amostral.

A Expectativa SonoraDefine-se aqui por expectativa, o fenômeno cognitivo sonoro relacionado à tentativaautomática que um ouvinte faz, ao tentar predizer “o que” e “quando” irá ocorrer umevento sonoro. Na experiência humana, o fator psicológico que está diretamente li-gado ao fenômeno da antecipação é a emoção. Segundo Huron (2006), há um graude correspondência entre a nossa emoção e os processos cognitivos que nos motivamàs ações, em nosso meio ambiente, onde é citado que “. . . emoções com valência po-sitiva encorajam os organismos a perseguirem comportamentos que são normalmenteadaptativos, e a evitar comportamentos normalmente não-adaptativos” (Huron 2006,4). Segundo este ponto de vista, a relação entre emoção e expectativa gera um meca-nismo de reforço do modelo elaborado pela predição, a partir da confirmação ou que-bra de hipóteses, ou eventualmente, uma neutralidade. Tais relações, em teoria, têmgrande importância na geração das expectativas, porque os eventos que as confirmamestão associados aos estados emocionais com valência positiva; ao passo que as ex-pectativas que se mostram falhas geram valências negativas. Segundo Huron, esteprocesso contínuo antecipatório cria hábitos mentais que, por extensão, podem estarassociados aos hábitos de escuta do indivíduo. Os fundamentos sobre antecipação eexpectativa musical aqui utilizados, vieram de Meyer (1956), que relacionou anteci-pação e significado musical à Psicologia da Gestalt (Kofka 1935). Ele estudou dife-rentes perspectivas, considerando o significado e a emoção como sendo congruentesno processo de “escuta estrutural”. O princípio geral da Gestalt é a lei de Prägnanz,ou seja, o princípio de concisão, o qual é descrito como a tendência de um modelo

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mental sempre buscar a solução na forma ou processo mais conciso, estável, regular,ordenado, econômico ou simples possível. Este princípio pode ser decomposto emoutros princípios mais específicos como: 1) Boa continuidade, 2) Fechamento, 3) Si-milaridade, 4) Simetria, 5) Proximidade, 6) Relações figura e fundo. Meyer (1956)estabeleceu uma correlação entre estes princípios e a noção de que as expectativassão conseqüências de hábitos mentais. Ele entendeu que as respostas afetivas e sig-nificativas à música provêm da percepção das estruturas musicais e das expectativaspor elas geradas. Segundo Oliveira (2008), esta abordagem é derivada de três concei-tos diferentes: 1) Significado hipotético, 2) Significado evidente e 3) Significado de-terminado. O significado hipotético trata de uma geração involuntária de expectativas,relacionadas a um estímulo que pode ser interpretado com relações probabilísticasentre antecedentes e conseqüentes. O significado evidente ocorre quando um eventoconseqüente torna-se “atualizado em um evento musical concreto” atingindo assimum “novo estágio de significado”, ou seja, há uma comprovação auditiva das expec-tativas geradas anteriormente. O significado determinado trata do caso específico daobjetificação do processo de escuta, que surge da relação entre os significados hipo-tético e evidente, com uma compreensão de sua totalidade. Ele se manifesta no tra-balho atemporal da memória. Ao contrário de Meyer, que estabeleceu sua perspectivaa partir do discurso teórico e das evidências coletadas na análise musical, Huron(2006) desenvolveu uma teoria, chamada de Teoria da Antecipação Musical. Esta temenfoque nas práticas da psicologia experimental e da análise estatística, tendo tam-bém criado um vínculo entre neuroanatomia cerebral e o domínio psicológico, pro-porcionando um entendimento biológico das emoções induzidas pela escuta musical.No recorte proposto para esta pesquisa, vamos realizar experimentos vinculados aaspectos sonoros e utilizaremos análise estatística dos dados coletados a partir dasrespostas dos sujeitos pesquisados.

ObjetivosO objetivo geral deste trabalho é estudar a influência da expectativa na cognição so-nora através de seus mecanismos de funcionamento, por meio de uma abordageminterdisciplinar relacionando psicoacústica, psicologia da antecipação sonora e per-cepção de eventos compositores de paisagens sonoras. Com isso pretende-se criar asbases para um futuro estudo dos efeitos da expectativa na percepção e discriminaçãode aspectos musicais. Os objetivos específicos desse trabalho são: 1) Desenvolver umametodologia de análise da cognição sonora partindo do princípio psicoacústico domascaramento, dos correspondentes níveis de JND e da expectativa sonora, afim deavaliar a resposta de cada ouvinte, em protótipos de experimentos relacionando am-bientes sonoros naturais e sons gerados, através de mecanismos de síntese sonora di-gital. 2) Desenvolver um estudo de síntese de paisagens sonoras, de acordo com oponto de vista de projetos sonoros, como aqueles descritos em Farnell (2008). 3) Ana-lisar estatisticamente os dados coletados do estudo comportamental.

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MétodoA metodologia desse trabalho visa realizar experimentos com o objetivo de verificara seguinte hipótese: “Se os Marcos Sonoros são sons contextuais dentro do repertóriode paisagens sonoras de cada sujeito, de que forma eles fornecem informações quepodem afetar a geração de expectativas, influenciando as suas reações emocionais?”Sob essa perspectiva, serão desenvolvidos métodos para avaliar as seguintes questões:1) Como a expectativa afeta a percepção de um evento sonoro frente ao mascaramentode um ruído de fundo. 2) De que forma a expectativa varia (se é que varia) o tempode reconhecimento do evento. 3) Como este tipo de interação influencia o tempo dehabituação a um novo evento sonoro. 4) Como a percepção de novidade do eventosonoro muda a expectativa do ouvinte. 5) Qual a mudança feita num parâmetro desíntese que indivíduos diferentes utilizam para melhorar a relação sinal/ruído.Os experimentos psicoacústicos para medir a variação do JND são normalmente rea-lizados da seguinte maneira: a) dados dois sons S1 e S2 com intensidades ou frequên-cias diferentes, solicita-se ao ouvinte que discrimine qual destes sons tem intensidadeou frequência maior. b) se o ouvinte não percebe, a diferença S1 e S2 é aumentada;se o sujeito percebe, a diferença é diminuída. d) esse processo é repetido recursiva-mente até que o sujeito perceba, em 75% das tentativas. e) o valor da diferença entreo som S1 e S2 é a JND do sujeito para o teste em questão.Sabe-se, da literatura de psicoacústica, que a nossa audição é mais sensível às varia-ções de freqüência do que as de intensidade sonora. Dos experimentos realizado porFletcher e Munson, em 1933, descobriu-se que nossa sensibilidade à intensidade so-nora é dependente de sua frequência. Variando-se a frequência de sons simples (comum único parcial) do grave ao agudo, pode-se perceber que, apesar da amplitudedeste sinal permanecer constante, a percepção desta intensidade sonora (loudness)varia, de acordo com uma família de curvas empiricamente mapeadas; as curvas de

“equal-loudness” de Fletcher e Munson (Gelfand 2004).Foram desenvolvidos dois protótipos de experimentos da variação do JND pela ex-pectativa, levando em conta as diferenças de percepção de eventos sonoros descritaspelas curvas de equal-loudness. Com isso pretende-se verificar se um ouvinte estariamais apto a detectar, perceber e processar o estímulo de referência, quando os mesmosestivessem alinhados em relação às expectativas. Segundo Huron (2006), “existemprocessos mentais de alto nível que afetam processos sensoriais de baixo nível e assimredirecionam o sistema sensorial, no sentido de focar em aspectos particulares dodomínio perceptivo”.

Resultados esperadosO trabalho aqui apresentado aborda o referencial teórico e metodológico de uma pes-quisa que está atualmente em andamento. Pretende-se obter os resultados experi-mentais através da implementação de dois modelos de investigação, chamados aquide protótipos.

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O primeiro protótipo baseia-se no método denominado de “Paradigma do Movimentoda Cabeça” (Head-Turning Paradigm), conforme descrito por Huron (2006). Utiliza-remos um computador e uma câmera para gravar o experimento e captar a mudançade direção da cabeça do indivíduo. Este protótipo baseia-se na idéia que a percepçãoespacial relaciona-se com a reação do sujeito quando exposto a um estímulo novo ouevento surpreendente. A reação descrita pelo movimento da cabeça interage com onível de expectativa do sujeito. As 3 etapas são: a) surpresa: quando um som inespe-rado é processado pelo sujeito e mede-se o tempo de resposta da movimentação, emfunção da mudança de direção da cabeça; b) saturação: o estímulo é repetido de formaque o sujeito não distingue mais a direcionalidade produzindo uma falha na orien-tação; c) novidade: um novo estímulo é introduzido, para o qual é verificado o tempode desabituação medido pelo tempo de resposta vinculado ao movimento da cabeça.O segundo protótipo visa estudar o limiar mínimo de percepção de marcos sonorosem paisagens sonoras com a presença de sons complexos que causem mascaramento.Com isso pretende-se estudar quais aspectos acústicos componentes dos marcos so-noros são relevantes no contexto da cognição musical. O experimento fará uso de ummodelo computacional de síntese sonora desenvolvido em PD (www.puredata.info).O ponto de partida para o modelo de síntese encontra-se em Farnell (2008). Este livrocontém vários exemplos de implementações de modelamentos físicos da síntese desons ambientais, como: passos, cigarras e canto de pássaros; bem como a síntese desons industriais, como o som de: motores, tráfego, armas de fogo, entre outros. Assim,este protótipo baseia-se na construção de um sistema onde o sujeito possa interferirno processo virtual de mascaramento, pelo aumento da JND através do controle dosparâmetros de síntese.A coleta de dados será feita através de questionário apresentado aos ouvintes, ondeserão recolhidas informações quanto ao repertório de paisagem sonora individual,delineando dessa forma quais são seus marcos sonoros. Após isso, serão aplicados ostestes descritos nos dois protótipos acima. Aos indivíduos participantes, serão apre-sentadas amostras sonoras ordenadas aleatoriamente, como foi feito em Groux (2008).Cada um desses fragmentos sintetizados será definido pelo par: 1) característica dosom; 2) nível da característica.Finalmente, uma segunda hipótese complementar de coleta de dados estará relacio-nada ao projeto de pesquisa regular, financiada pela FAPESP, de um dos autores. Si-multaneamente aos protótipos, será coletado um conjunto de dados fisiológicos dosouvintes. Estes são evocados por reações fisiológicas involuntárias, relacionadas amudanças do estado emocional do indivíduo (ex: variação da pulsação cardíaca, res-piração, resistência galvânica da pele). Tais dados serão analisados em relação ao mo-delo bidimensional de valência afetiva e grau de atenção, segundo o modelocircumplexo dos afetos (Russell 1980). Tal modelo representa a maioria das categoriasde estado emocional, a partir da combinação das duas dimensões emocionais: valên-cia e atenção. Essas dimensões possuem um caráter unidimensional que se estendedo triste ao alegre (para a valência) e do relaxado ao tenso (para atenção).

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A análise final dos resultados será feita por modelos estatísticos, onde pretende-sepesquisar a correlação entre as informações qualitativas e populacionais contidas noquestionário, com relação aos testes psicoacústicos.

ReferênciasSchafer, R. M. A Afinação do Mundo (São Paulo: Editora Unesp, 2001).Pierce, J. R. The Science of Musical Sound (New York: W. H. Freeman and Company, 1992).Huron, D. Sweet anticipation: music and the psychology of expectation (Cambridge, MA: MIT

Press, 2006).Meyer, L.B. Emotion and meaning in music (Chicago: Chicago University Press, 1956).Koffka, K. Principles of Gestalt psychology (New York: Harcourt, Brace, & World, 1935).Oliveira, L. F.; Manzolli, J. “Significado musical e inferências lógicas a partir da perspectiva do

pragmatismo peirceano”. Revista de Cognição e Artes Musicais 3 (2008), 30.Farnell, A. J. Designing Sound (London: Applied Scientific Press, 2006, 2008).Gelfand, S. Hearing: An Introduction to Psychological and Physiological Acoustics, Fourth Edition

(Marcel Dekker, 2004).Groux, Le, Valjamae, S. A., Manzolli, J., Verschure, P. FMJ. “Implicit Physiological Interaction

for the Generation of Affective Musical Sounds”, in Proceedings of the International Com-puter Music Conference (ICMC 2008), University of Belfast, 2008.

Russel, J. A. A circumplex model of affect, Journal of Personality and Social Psychology 39 (1980),345-356.

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A percepção das emoções musicais na Hierarquia ModalDanilo Ramos

[email protected] de Artes – Universidade Federal do Paraná

José Eduardo [email protected]

Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora – UNICAMP

ResumoAlguns teóricos e professores de música sugerem a existência de uma HierarquiaModal linear que organiza os sete modos da escala diatônica maior, do mais “claro”(Lídio) para o mais “escuro” (Lócrio), passando pelos modos Jônio, Mixolídio, Dórico,Eólio e Frígio, respectivamente. Estes profissionais aplicam esta hierarquia baseadosno senso comum e no uso intuitivo durante suas práticas musicais. O presente traba-lho procura investigar a ausência ou a existência desta Hierarquia Modal. Para tal,este estudo foi realizado em duas etapas: análise computacional de arquivos digitaise um experimento, envolvendo tarefas de escuta musical. O material empregado con-sistiu de 7 peças musicais instrumentais, para piano solo, com melodia e acompa-nhamento. Cada peça foi transposta e executada nos 7 modos da escala diatônica,perfazendo assim 49 gravações de aproximadamente 20 segundos de duração cadauma. A primeira análise do estudo consistiu do uso de oito algoritmos de descritoresacústicos para a análise das peças. Cada descritor realizou a predição de um aspectocognitivo da percepção musical humana, tal como: pulsação rítmica, complexidadeharmônica, etc. A segunda análise consistiu da realização de um experimento envol-vendo 36 ouvintes, que realizam tarefas de escuta musical e preenchimento de es-calas de diferencial semântico (alcance 0-10) após cada escuta, com as locuçõesAlegria, Tristeza, Serenidade e Raiva. Em ambas as análises, o teste ANOVA foi em-pregado para comparar os valores obtidos para cada modo em relação à cada medidautilizada. Os resultados apontam para a existência da Hierarquia Modal linear, queparece estar relacionada aos níveis de Complexidade Harmônica e de Valência Afetivaencontrados para cada modo. A existência dessa hierarquia parece ser governada porprocessos psicológicos perceptuais relacionados a modificações presentes na estruturaintervalar de cada modo.

IntroduçãoAs escalas musicais são baseadas na percepção de freqüência da componente funda-mental de sons aproximadamente periódicos (sons melódicos). Esta percepção é cha-mada de altura musical, ou pitch. Sons que não despertam tal percepção são algumasvezes chamados de sons percussivos (sem altura definida), existentes na produçãosonora de certos tambores e chocalhos. As escalas musicais foram constituídas pararepresentar sons melódicos, em distintos intervalos de freqüências, chamados denotas musicais. Existe uma grande similaridade de altura entre notas distanciadas

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por intervalos múltiplos da original: Altura (f ) ~Altura (2.i.f) (1)

onde i é um número inteiro.Este intervalo é chamado de oitava. Exemplificando, sendo n a Altura da nota geradapor uma corda retesada (como as cordas de um violão), a sua primeira oitava superior2.n pode ser gerada reduzindo a extensão dessa corda à metade. Do mesmo modo,se dobrarmos a extensão dessa corda, teremos a sua primeira oitava inferior 2-1.n .Isto é facilmente exemplificado num instrumento de cordas, como o violão. Pressio-nando-se o intervalo entre os trastes localizados na metade da extensão de qualquercorda, produz-se uma nova nota, cuja altura é uma oitava acima da nota original-mente gerada pela corda solta. Uma vez que notas espaçadas por intervalos de oitavaapresentam similaridade da percepção de altura, as escalas tendem a se organizar emintervalos que são subdivisões da oitava. Assim, se dividirmos a Extensão E dessacorda hipotética pela metade 2-1.E, tem-se a geração da primeira oitava da nota ori-ginal.

E → Altura (f) (2) 2-1.E → Altura (2.f)

Se a extensão E da corda for reduzida em um terço, (⅔).E, tem-se a geração do inter-valo conhecido por quinta. Em termos da percepção de altura musical, a quinta equi-vale à metade da oitava.

E → Altura (f) (3)E.(⅔) → Altura( (⅔).f )

Por extensão, é possível criar uma escala cujos intervalos entre as notas sejam cons-tituídos por sucessivas quintas (conhecido em música, como o Ciclo das Quintas), atéque se aproximar de uma oitava superior:

Altura ((3⁄2)n.f ) ~ Altura (2m.f) (4)onde: n e m são números inteiros.

Para n = 12, tem-se:(3⁄2)12 ~ 129,746 27 = 128 (5)129,746 / 128 = 1,0136 ~ 23 cents

Esta é a base da escala Pitagórica, ou justaposta. Após 12 notas, a escala se aproximada sétima oitava superior. Se esta progressão coincidisse com uma oitava, o ciclo seriafechado, formando, assim uma escala de 12 notas, numa altura múltipla da altura ini-cial. No entanto, o Ciclo da Quintas nunca coincide com uma oitava superior da alturainicial. Visando compensar essa aproximação, foi criada a Escala Cromática Tempe-rada, com 12 notas igualmente espaçadas em intervalos de freqüência c = 2(1⁄12). Ointervalo de altura entre duas notas n e c.n é chamado de semitom (S). O intervaloentre n e c2.n é equivalente ao dobro de S, e é chamado de tom (T). Os outros inter-valos superiores são compostos pela agregação de Ss e Ts, conforme é mostrado a

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seguir:

A Escala Diatônica é assim constituída, por 7 notas da escala cromática, com inter-valos que estão descritos acima, em negrito, e fechando o ciclo na primeira oitava superior.

T T S T T T S (7)

Os Modos da escala diatônica são ordenados nas seguintes seqüências de intervalos:

Pode-se notar que a ordenação de intervalos dos modos difere apenas em desloca-mento circular à esquerda, da seqüência original de tons e semitons da escala diatô-nica. Estes modos são divididos entre modos maiores e modos menores. Os primeirospossuem intervalos de terças maiores (T+T), enquanto que os últimos possuem in-

Intervalo Estrutura (6)Segunda Menor: S

Segunda Maior: T

Terça Menor: T+S

Terça Maior: T+T

Quarta (justa): T+T+S

Quarta AumentadaQuinta Diminuta (Trítono):

T+T+T

Quinta (justa): T+T+S+T

Sexta Menor: T+T+S+T+S

Sexta Maior: T+T+S+T+T

Sétima Menor: T+T+S+T+T+S

Sétima Maior: T+T+S+T+T+T

Oitava: T+T+S+T+T+T+S

Jônio T T S T T T S (8)Dórico T S T T T S T

Frígio S T T T S T T

Lídio T T T S T T S

Mixolídio T T S T T S T

Eólio T S T T S T T

Lócrio S T T S T T T

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tervalos de terça menores (T+S). São assim considerados os modos maiores: Jônio,Lídio e Mixolídio; e os modos menores: Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio. Uma parte sig-nificativa de toda a produção musical do ocidente foi construída sobre a escala dia-tônica e os seus sete modos (Grout & Palisca 1994). O modo é um dos principaisparâmetros de estrutura musical que tem sido utilizado no estudo das emoções de-sencadeadas pela música (Dalla Bella, Peretz, Rousseau & Gosselin 2001). Diversosestudos sugerem que modos maiores (Jônio, Lídio e Mixolídio) estão associados aemoções positivas, como alegria ou serenidade, enquanto que os modos menores(Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio) associam-se a emoções negativas, como tristeza, medoou raiva (Ramos, Bueno & Bigand, no prelo). Alguns teóricos afirmam que isto sedeve à estrutura intervalar da escala musical que, para cada modo, representa notascom intervalos de altura distintos em relação à primeira nota da escala. Isto desper-taria a percepção de um aspecto cognitivo musical, descrito metaforicamente por

“clareza”. Esta percepção representaria as escalas modais numa ordenação entre o Obs-curo e o Claro. Neste contexto, os modos maiores seriam mais claros e os modos me-nores, mais obscuros (Wisnik 2004). Além disso, os modos teriam distintos graus de

“clareza”, o que resultaria numa “ordem de clareza dos modos”. Indo do mais claro(maior) ao mais obscuro (menor), seria possível obter a seguinte ordenação: Lídio(maior com quarto grau aumentado), Jônio (maior natural), Mixolídio (maior comsétimo grau menor), Dórico (menor com sexto grau maior), Eólio (menor natural),Frígio (menor com segundo grau menor) e Lócrio (menor com segundo grau menore quinto grau diminuído). A esta ordenação é atribuído o nome de Hierarquia Modal.Até onde sabemos, a Hierarquia Modal tem sido demonstrada apenas de modo in-tuitivo. Não se sabe ao certo quais são os aspectos musicais componentes para a per-cepção de “clareza musical”. No entanto, é possível supor que esta “clareza musical”esteja associada à percepção musical emotiva. As emoções associadas à música têmsido estudadas por diversos pesquisadores no campo da Cognição Musical, tais comoos descritos em Sloboda (2001). Existem três modelos principais de estudo das emo-ções musicais: Categórico, Processo Componente e Dimensional. O Modelo Categó-rico, originado dos estudos de Ekman (1992), trata a emoção evocada ou constatadana música por meio da catalogação das emoções básicas em léxicos irredutíveis, comoAlegria, Tristeza, Melancolia, etc. (Juslin 2003). O Modelo do Processo Componente(Scherer 2001) descreve a constatação da emoção musical como atrelada também àsituação de sua ocorrência, bem como ao estado emocional do ouvinte no momentoda escuta musical. O Modelo Dimensional (Russell 2003) postula que todas as emo-ções musicais podem ser descritas por um sistema de coordenadas cartesianas, cons-tituído por dimensões emocionais. Este modelo é chamado de Modelo Circumplexodo Afeto Musical (Laukka 2005), sendo composto por duas dimensões emocionais:arousal (estado de excitação fisiológica, que pode ser alto ou baixo) e valência (valorhedônico, que pode ser positiva ou negativa). Russel (1980) afirma que por meio des-sas duas dimensões, um amplo espectro de emoções musicais pode ser determinadopor meio das combinações possíveis entre estas duas dimensões (estados de ânimo

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com arousal alto e valência positiva, como Alegria, Animação, Energia, etc.; estadosde ânimo com arousal baixo e valência positiva, como Serenidade, Amor, Ternura,Religiosidade, etc.; estados de ânimo com arousal alto e valência negativa, como Medo,Raiva, Desespero, etc; e finalmente estados de ânimo com arousal baixo e valêncianegativa, como Tristeza, Melancolia, Amargura, etc.).Diversos modelos computacionais têm sido desenvolvidos para a análise de aspectosmusicais que podem ser ilustrados pelas dimensões do Modelo Circumplexo. Estesmodelos são conhecidos pela sigla “MIR” (Music Information Retrieval). Chama-seaqui de Descritor Acústico um modelo computacional que adequadamente predizum aspecto musical. Descritores são catalogados entre baixo-nível – os descritorespsicoacústicos — e alto-nível — os descritores contextuais (Fornari 2009). Existematualmente diversos estudos de MIR, tais como (Tzanetaki 2002), que desenvolveuum modelo computacional para classificação de gêneros musicais. Em um estudo de-senvolvido por Leman (2004), descritores acústicos foram utilizados no estudo dosaspectos gestuais relacionados à emoção musical. Wu (2006) e Gomez (2004) utili-zaram descritores acústicos como o aspecto musical “tonalidade”, para a catalogaçãoautomática de arquivos musicais de áudio digital. No estudo do desenvolvimento dinâmico das emoções musicais, Schubert (1999) uti-lizou o Modelo Circumplexo para medir continuamente as emoções constatadas aolongo do tempo por um grupo de ouvintes sobre algumas peças do repertório eruditoocidental. O autor desenvolveu dois modelos lineares para cada peça musical anali-sada. Cada modelo era composto por diversos descritores acústicos e deveriam pre-dizer as duas dimensões do Modelo Circumplexo — arousal e valência afetiva — paracada peça, em contraste à medição comportamental feita pelo grupo de ouvintes. Pos-teriormente, Korhonen (2006) utilizou estes mesmos dados comportamentais paradesenvolver e validar dois modelos gerais das dimensões arousal e valência. Ao con-trário de Schubert (1999), Korhonen pretendia organizar um modelo para cada di-mensão emocional (arousal e valência) para todas as peças musicais analisadas.Os estudos de Schubert (1999) e Korhonen (2006) demonstraram que seus modeloscomputacionais foram capazes de prever a medida comportamental da dimensão dearousal com um alto grau de correlação aos dados comportamentais. Estes estudosmostram que o arousal está bastante correlacionado ao loudness do arquivo de áudiomusical, o que pode muitas vezes ser adequadamente representado por meio de umdescritor de baixo-nível, como RMS (Root Mean Square). No entanto, a dimensão Va-lência não foi adequadamente prevista pelos modelos destes estudos. Uma hipótesepara esta não previsão pode ser devido ao fato de que tais modelos utilizaram apenasdescritores psicoacústicos, que costumam não ser suficientes para descrever aspectosmais contextuais da música, tal como Valência.

ObjetivosO objetivo geral do presente trabalho é demonstrar a existência (até o presente mo-mento de caráter intuitivo) de uma Hierarquia Modal no processo de percepção das

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emoções musicais. Os objetivos específicos aqui propostos se resumem a verificar aocorrência da Hierarquia Modal por meio do uso de descritores acústicos de alto-nível e por meio de respostas emocionais de ouvintes brasileiros não músicos a trechosmusicais de 20 segundos de duração compostos nos sete modos da Hierarquia Modal(Lídio, Jônio, Mixolídio, Dórico, Eólio, Frígio e Lócrio).

MétodoForam realizadas diversas análises por meio de modelos computacionais de descri-tores acústicos de alto-nível: Os descritores utilizados são: 1) Articulação, 2) Brilho,3) Complexidade harmônica, 4) Densidade de eventos musicais, 5) Claridade tonal,6) Caracterização do modo, 7) Clareza do pulso rítmico e 8) Repetição de eventos.(Fornari 2008).

1. Os Descritores Acústicos1.1 Articulação

Este descritor visa detectar a forma da articulação da melodia de uma dado trechomusical. Em música, a articulação da melodia costuma se estender entre staccato, oudestacada – onde cada nota é tocada destacadamente, com uma clara pausa temporalentre uma nota e outra – e legato, onde as notas da melodia são tocadas sem qualquerpausa entre elas, ou seja, ligadas seqüencialmente uma à outra. Sua escala estende-secontinuamente entre zero (staccato) a um (legato).

1.2 BrilhoO descritor de brilho prediz a percepção de brilho do material sonoro de um trechomusical. Apesar de fortemente influenciado pela presença de componentes parciaisde alta freqüência no espectro musical, outros fatores também podem contribuir paraintensificar este aspecto, tal como a presença de ataques, articulação destacada oumesmo a ausência de parciais em outras regiões do espectro sonoro. A escala destedescritor varia continuamente entre zero (opaco) a um (brilhante).

1.3 Complexidade harmônicaA noção de complexidade musical está relacionada — pela teoria da informação — àentropia, ou grau de desorganização da informação musical. No entanto, este descritormede a percepção desta entropia, e não a entropia em si. Por exemplo, se um dadotrecho musical é extremamente desorganizado ou complexo, a audição não é capazde identificar tal complexidade e este será percebido como acusticamente simples(não complexo). Tem-se assim que encontrar o ponto máximo de complexidade mu-sical que a cognição musical humana é capaz de assimilar. Este descritor trata apenasda complexidade da harmonia musical, relevando outras complexidades, como a me-lódica ou rítmica. A escala deste descritor é contínua e varia entre zero (ausência decomplexidade harmônica) e um (presença de complexidade harmônica).

1.4 Densidade de Eventos MusicaisEste descritor procura medir a percepção de uma densidade de eventos musicais de

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qualquer natureza (melódica, harmônica e rítmica), desde que possíveis de serempercebidos como eventos distintos. Do mesmo modo que no caso da percepção decomplexidade harmônica, aqui é levada em consideração a capacidade máxima depercepção de eventos simultâneos, que a mente musical é capaz de assimilar; e a partirda qual, o aumento do número de eventos musicais pode significar a diminuição dapercepção de eventos simultâneos. A escala deste descritor varia continuamente entrezero (percepção da presença de um único evento musical) e um (percepção da pre-sença de uma grande quantidade de eventos simultâneos).

1.5 Claridade TonalEste descritor mede o grau de tonalidade de um dado trecho musical, não importandoqual a tonalidade do trecho musical, mas apenas quão clara é a percepção de um cen-tro tonal. A escala deste descritor varia continuamente entre zero (atonal) e um (tonal).As regiões intermediárias dessa escala (próximas de 0,5) tendem a concentrar os tre-chos musicais com muitas mudanças tonais, acordes dúbios ou cromatismos.

1.6 Caracterização de ModoEste descritor procura predizer o aspecto musical relacionado à percepção da distin-ção entre modos Maiores e Menores. Conforme explicado anteriormente, os modosdiatônicos dividem-se entre modos maiores e menores, e a hierarquia modal deter-minaria uma ordenação dos 7 modos entre maior a menor. A escala deste descritorvaria continuamente entre zero (modo menor) a um (modo maior). Os valores in-termediários da medida deste descritor podem se referir à modos com menor graude polarização neste conceito, bem como à variações tonais encontradas no trechomusical analisado.

1.7 Clareza do Pulso RítmicoO pulso musical é aqui entendido como a flutuação sonora aproximadamente perió-dica e perceptível numa freqüência sub-tona; abaixo de 20Hz. Tal pulso pode ser dequalquer natureza sonora, desde que seja interpretado pela mente musical como pulso.A escala deste descritor é continua, estendendo-se dentre zero (ausência de pulso) aum (clara presença de pulso).

1.8 RepetiçãoEste descritor trata de expressar a similaridade de trechos temporais. Esta repetiçãopode ser de natureza melódica, harmônica ou rítmica, mesmo que transcenda de na-tureza, ou timbre, durante a repetição. O importante não é a quantidade ou freqüênciadas repetições, mas a claridade da percepção da repetição de eventos musicais. A es-cala deste descritor varia continuamente entre zero (ausência de repetição) a um(clara presença de repetição).

2. A Análise ComportamentalParticipantes: 24 estudantes universitários de um curso de graduação em Filosofia,sendo 15 homens e 13 mulheres, com idades entre 19 e 26 anos.

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Materiais: o estudo foi realizado numa sala silenciosa, com um computador conectadoa um fone de ouvido. A compilação dos dados foi feita por meio do programa e-prime.Os participantes realizaram tarefas de julgamento emocional de sete composiçõesmusicais, sendo cada uma originalmente construída em um dos sete modos da Hie-rarquia Modal e depois transpostas para os demais modos, totalizando 49 trechos.Todas as músicas apresentadas tinham 20 segundos de duração e foram retiradas docancioneiro folclórico brasileiro. Procedimento: a tarefa dos participantes consistia em escutar cada composição mu-sical e preencher escalas de diferencial semântico (alcance 0-10), referentes às emo-ções Alegria, Serenidade, Tristeza e Raiva após cada escuta. Tanto os trechos musicaisquanto as escalas de diferencial semântico eram apresentados em ordem aleatóriaentre os participantes.Análise dos dados: o teste ANOVA foi empregado para comparar os valores de percep-ção afetiva obtidos por meio das escalas de diferencial semântico empregadas (designexperimental: 7 (músicas) x 7 (modos). Após a compilação de todos os dados, umvalor de Valência Afetiva foi calculado em relação às respostas emocionais de cadaparticipante, para cada trecho musical apresentado. Este valor foi obtido pela fór-mula:

Valência afetiva = (ALE + SER) / (TRI + RAI) (9)onde: ALE = Respostas emocionais para Alegria

SER = Respostas emocionais para SerenidadeTRI = Respostas emocionais para TristezaRAI = Respostas emocionais para Raiva

Este procedimento já foi bastante utilizado em estudos envolvendo a conversão dedados provenientes de escalas de diferencial semântico para valores de Valência Afe-tiva (Bigand, Madurel, Marozeau & Dacquet 2005; Ramos, Bueno & Bigand, no prelo).Estes valores de Valência Afetiva foram contrastados e correlacionados com os valoresdos dados obtidos pelos descritores acústicos, no sentido a verificar quais foram osaspectos musicais de maior relevância para a percepção da Hierarquia Modal.

ResultadosOs resultados computacionais revelaram diferenças estatísticas para dois

dos descritores utilizados: Complexidade Harmônica (F=2,912; p=0,0296) e Clarezade Modo (F=3,173; p=0,01). A Tabela 1 ilustra as médias e os desvios-padrão (emparêntese) obtidos pelos resultados dos dois descritores acústicos acima mencionadose também pelas respostas emocionais dos participantes, para cada modo musical em-pregado. A ordem de apresentação dos modos segue a Hierarquia Modal:

Tabela 1 – Resultados obtidos pelos descritores acústicos “Complexidade Harmônica” e“Clareza do Modo” e pelas respostas emocionais dos ouvintes

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para cada modo musical analisado:

Os resultados indicam que, de um modo geral, os maiores índices de ComplexidadeHarmônica estiveram relacionados aos extremos da Hierarquia Modal (modos Lídioe Lócrio). Assim, o modo Lídio obteve níveis mais altos do que os modos Jônio(p=0,03), Dórico (p=0,01) e Eólio (p=0,02) e o modo Lócrio obteve índices mais altosdo que os modos Jônio (p=0,01), Dórico (p=0,005) e Eólio (p=0,02). Para a Clareza do Modo, os modos maiores obtiveram índices mais altos do que osmodos menores (com exceção do modo Lócrio), sendo que o modo Jônio obteve ín-dices mais altos do que o modo Eólio (p=0,01). O modo Lídio obteve índices maisaltos do que o modo Dórico (p=0,045), Eólio (p=0,006) e Frígio (p=0,03). O modoMixolídio obteve índices mais altos do que os modos Dórico (p=0,02), Eólio(p=0,002) e Frígio (p=0,02). Não foram encontradas diferenças estatísticas entre osmodos maiores e menores entre si.As respostas emocionais dos ouvintes mostraram que modos maiores (Lídio, Jônio eMixolídio) obtiveram índices de Valência Afetiva similares. Os modos maiores obti-veram índices de Valência Afetiva superiores aos modos menores (Dórico, Eólio, Frí-gio e Lócrio; F=2,896; p=0,01). Os modos menores obtiveram diferentes índices deValência Afetiva, sendo atribuído ao modo Dórico um índice maior do que os modosEólio (p=0,01) e Frígio (p=0,001). O modo Lócrio obteve índice mais baixo que osmodos Dórico (p=0,001), Eólio (p=0,01) e Frígio (p=0,03), respectivamente.

DiscussãoOs dados obtidos no presente trabalho parecem dar conta de explicar a existência deuma Hierarquia Modal Linear, que parece governar os processos psicológicos envol-vidos na percepção emocional de trechos musicais no contexto ocidental, desmisti-ficando assim, o uso hipotético e intuitivo acerca dessa questão. A existência dessahierarquia pôde ser comprovada por meio dos dados computacionais e comporta-mentais.Com relação aos dados computacionais, o descritor “Complexidade Harmônica” pa-rece reconhecer a existência da Hierarquia Modal. As análises estatísticas feitas a par-

Complexidade Harmônica Clareza do Modo Valência Afetiva

Lídio 0,43 (0,33) 0,51 (1,16) 3,75 (3,23)

Jônio 0,42 (0,29) 0,50 (1,04) 4,60 (3,54)

Mixolídio 0,42 (0,29) 0,53 (1,21) 3,96 (3,59)

Dórico 0,41 (0,25) 0,42 (1,45) -0,37 (3,03)

Eólio 0,41 (0,26) 0,38 (1,18) -3,36 (2,57)

Frígio 0,43 (0,30) 0,41 (1,08) -3,34 (2,65)

Lócrio 0,45 (0,48) 0,79 (1,17) -2,66 (2,55)

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tir dos valores encontrados por este descritor acústico apontam diferenças estatísticasobtidas entre os modos situados nos dois extremos da hierarquia (Lídio, o mais claroe Lócrio, o mais escuro) e todos os outros modos. Coincidentemente, estes dois modossão os únicos que têm um intervalo de trítono (três tons) formado em relação às suasnotas de referência (fundamentais). No decorrer da História da Música Tonal Oci-dental, este intervalo foi classificado como o intervalo do diabo, em música, catego-rizado por ouvintes, compositores e críticos musicais das diferentes épocas como umintervalo altamente dissonante, que deveria ser severamente evitado, para que a mú-sica não se tornasse menos bela (Grout & Palisca 1994). A ocorrência deste intervalomusical justamente nos dois extremos da Hierarquia Modal (início e fim) sugere aexistência de um “ciclo de dissonâncias” em relação às notas de referência de cadamodo presente na Hierarquia. Assim, ela se iniciaria com um modo dissonante (oLídio), tornando-se consonante no decorrer do movimento hierárquico (passandopara todos os outros modos), para tornar-se dissonante novamente no final da hie-rarquia (com o modo Lócrio). Este “ciclo de dissonâncias” pôde ser verificado pormeio do descritor “Complexidade Harmônica”, que categorizou os modos com inter-valos dissonantes como modos mais complexos do que os modos envolvendo inter-valos consonantes em relação à nota de referência de cada modo. Portanto, estedescritor confirma a existência de uma Hierarquia Modal governada por processospsicológicos relacionados à percepção de “quão dissonante” é o modo.As respostas emocionais obtidas no presente estudo foram bastante consistentes comrespostas emocionais obtidas em outros estudos envolvendo a influência do modomusical sobre a percepção das emoções durante tarefas de escuta musical, no qualmodos menores estiveram sempre associados a níveis de Valência Afetiva negativos,enquanto modos maiores estiveram sempre associados a níveis de Valência Afetivapositivos (Dalla Bella, Peretz, Rousseau & Gosselin 2001; Webster & Weir 2005;Ramos, Bueno & Bigand, no prelo). Apesar dessa convergência, a principal contribuição deste estudo está do fato de quea cognição do modo musical não se resume simplesmente à distinção Maior / Menor.Mais do que isso, foram encontradas dados que comprovam que uma pequena dife-rença na estrutura escalar pode modular as respostas emocionais à música, especial-mente às estruturas escalares dos modos menores. Esta constatação pode sercomprovada por meio de uma análise da Tabela 1 do presente estudo, no qual dife-renças estatísticas foram obtidas na análise dos níveis de Valência Afetiva dos modosmenores entre si. No presente estudo, houve uma relação direta e gradual entre os níveis de ValênciaAfetiva encontrados para estes modos e a linearidade da Hierarquia Modal: o modoDórico (classificado intuitivamente como o modo menos “escuro”) foi àquele perce-bido com um grau de Valência Afetiva mais próximo dos modos maiores; os modosEólio e Frígio obtiveram níveis de Valência Afetiva parecidos, enquanto que o modoLócrio (considerado intuitivamente como o “mais escuro”) obteve os menores índicesde Valência Afetiva. Neste sentido, o intervalo de terças (maior nos modos maiores /

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menor nos modos menores) parece não ser o único intervalo que determina a ex-pressão emocional do modo musical. Por exemplo, os modos Dórico e Eólio se dife-rem pelo intervalo de sexta (maior no primeiro modo e menor no último). Estasimples diferença foi responsável pela percepção de níveis de Valência Afetiva dife-renciados entre um e outro modo. Estes resultados são consistentes com os resultadosobtidos por Ramos (2002), no qual mudanças súbitas na estrutura escalar tambémforam responsáveis por diferenças na percepção emocional dos ouvintes. Estas constatações sugerem que o estabelecido conceito “Modo Maior Alegre / ModoMenor Triste” bastante consolidado na literatura pode ser considerado meramentecomo um caso específico de um processo mais geral que governa a percepção dasemoções musicais. Como mencionado acima, os modos musicais são organizadospor uma seqüência formada por tons e semitons. Uma das principais diferenças entrecada modo se resume à sua nota de referência, que servirá de base para a sua organi-zação intervalar. Assim, a percepção das emoções musicais esteve relacionada à per-cepção da nota de partida em relação a pontos de referência cognitivos específicos(intervalos tonais ou semitonais) que diferem entre os modos. A importância de pontos de referência cognitivos específicos para a música tonal oci-dental foi investigado sistematicamente por Krumhansl (1997), no qual a autora es-tabeleceu que mudanças em pontos de referência cognitivos causados por alteraçõesna tonalidade de diferentes músicas estão associadas a diferenças de efeitos expres-sivos na música tonal. O presente estudo confirma esta constatação, mostrando quea modificação da nota de referência de um dado conjunto de notas (mudanças nomodo) é suficiente para modular julgamentos emocionais.A conclusão deste estudo é que existe uma Hierarquia Modal linear, que vai do modoLídio (mais claro) ao modo Lócrio (mais escuro), passando pelos modos Jônio, Mi-xolídio, Dórico, Eólio e Frígio, que organiza a percepção emocional dos modos emrelação aos níveis de complexidade harmônica (obtidos por meio de um descritoracústico de alto-nível) e níveis de valência afetiva desencadeados em tarefas de escutamusical (obtidos por meio de dados comportamentais envolvendo respostas emocio-nais à música).

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Investigating absolute pitch with neuroimaging techniques– Literature review

Patrícia [email protected]

Universidade de Brasília, Departamento de Música

Maria Angela M. [email protected]

Instituto do Cérebro, Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, São Paulo

Lionel F. [email protected]

Hospital Israelita Albert Einstein, Departamento de Radiologia, São Paulo

Edson Amaro [email protected]

Universidade de São Paulo, Escola de Medicina, Departamento de Radiologia

Abstract The objective of this investigation is to summarize neuroimaging findings about theneural correlates of absolute pitch (AP). MEDLINE, EMBASE, PsycINFO, and GoogleScholar were searched for articles published between 1995 and 2009. Search termswere: “Absolute Pitch” or “Perfect Pitch” AND “Neuroimaging” or “MRI” or “fMRI” or

“Magnetic Resonance” or “PET.” We selected studies written in English, reporting ori-ginal experimental data, involving human subjects, and employing magnetic reso-nance (MRI or fMRI) and/or positron emission tomography (PET) to investigate AP.Thirteen articles were selected: six fMRI, two PET/MRI, and five MRI only studies. Apronounced leftward asymmetry of the planum temporale (PT) was described in APindividuals. Left temporal cortex activation patterns differed for AP subjects vs. non-AP musicians and non-musicians when listening to musical stimuli. Different corticalstructures are involved in AP in blind subjects. Early musical training does not seemto contribute to the anatomical features of AP. This cognitive ability seems to be as-sociated with anatomical and functional modifications in frontal and temporal brainlobes, especially in the left side. Nevertheless, a standard method to determine APability and a more homogeneous use of neuroimaging techniques are required toconfirm and advance these findings.

Keywordsabsolute pitch – neuroimaging – auditory perception

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Introduction Absolute pitch (AP) is one of the most intriguing traits in auditory perception. Thisphenomenon has been defined in the literature as the ability to identify and label thefrequency of any isolated tone (for example, “C” for a frequency of 261 Hz) and/orthe ability to produce a specific tone (through singing or manipulating a frequencygenerator) without external reference (Bachem 1937, Baggaley 1974, Ward 1999,Parncutt and Levitin 2003, Zatorre 2003). The prevalence of absolute pitch in the pop-ulation is estimated to be between 1⁄10,000 (Bachem 1955) and 1⁄1,500 (Profita andBidder 1988), and between 5 and 50⁄100 amongst musicians (Wellek 1963, Chouardand Sposetti 1991). Some studies have reported a greater incidence of AP in musiciansof Asian ethnicity (Gregersen et al. 1999, Deutsch et al. 2006). The origin of AP remains unknown. There is evidence that this ability develops duringa critical period in the first years of life (Ward 1999). Musicians who begin their mu-sical training before the age of six seem to have a greater propensity to develop APthan those who start later (Sergeant 1969, Wellek 1938); however, the early beginningof musical training alone does not guarantee AP acquisition. A possible explanationfor that could be the existence of some genetic component that would facilitate themanifestation of AP. Although this hypothesis has not been demonstrated, recentstudies have pointed in this direction (Baharloo et al. 2000, Gregersen et al. 2000).As a cognitive ability that seems to depend on nervous system response to experiential,maturational, and genetic factors, AP is a candidate model to explain the role of theseinteractions in cognitive development (Zatorre 2003).AP has been studied since the nineteenth century (Stumpf 1883, Meyer 1899). Nev-ertheless, in the past few years, there has been an increasing interest in this area, withthe number of publications on the topic having doubled in the last decades of thetwentieth century (Levitin 2006). This renewed interest is partly due to the develop-ment of novel investigative techniques, which have provided a better understandingof brain structures and the underlying mechanisms of behavior and cognitiveprocesses, such as auditory perception. The neuroimaging techniques that appearedduring the last two decades of the twentieth century revolutionized the study of brainanatomy and physiology, and have become essential to understand the interactionsbetween brain, cognition, and behavior.Among these techniques, magnetic resonance imaging (MRI), functional MRI (fMRI),and positron emission tomography (PET) stand out. While MRI provides high qualityimages of brain anatomical structures, PET and fMRI uncover metabolic processesrelated to specific cognitive tasks. Based on the principle of hemodynamic response,both fMRI and PET are capable of showing variations in cerebral blood flow thatoccur in brain areas that are activated during the accomplishment of specific tasks.Since these techniques have opened new perspectives for scientific investigation, lea-ding to a better understanding about the mechanisms involved in different behavioraland cognitive traits, we carried out a systematic literature review to summarize recentneuroimaging findings concerning the neural correlates of AP.

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MethodsIn order to indentify studies using neuroimaging techniques to investigate AP, GoogleScholar, MEDLINE, EMBASE, and PsycINFO were searched, followed by hand search ofthe references of selected articles. The search covered the years 1995 (year of publi-cation of the first investigation looking for neurocorrelates of AP using neuroimagingtechniques) (Schlaug et al. 1995) to 2009.The following inclusion criteria were defined: publication in English, in scientific jour-nals or conference proceedings, between February 1995 and August 2009; use ofstructural and/or functional neuroimaging techniques (fMRI and/or PET to assesshemodynamic response or MRI to assess morphometric aspects) to study absolutepitch; employment of an experimental design.The following search terms were used: “Absolute Pitch” or “Perfect Pitch” AND “Neu-roimaging” or “MRI” or “fMRI” or “Magnetic Resonance” or “PET”.

ResultsTwenty studies using neuroimaging techniques to investigate AP were selected. Sevenwere excluded: six were not experimental and one was in abstract format only. Thus,the following articles were included in this review: Schlaug 1995; Zatorre et al. 1998;Onishi et al. 2001; Keenan et al. 2001; Ross et al. 2003; Hamilton et al. 2004; Luderset al. 2004; Bermudez & Zatorre 2005; Gaab et al. 2006; Wilson et al. 2008; Oechslinet al. 2009; Bermudez et al. 2009; and Schulze et al. 2009. All these studies focus onMRI area or volume measurements of brain structures and/or fMRI/PET determina-tion of hemodynamic response and characteristics of neural networks involved in AP.

1. Morphometric Investigations While two MRI studies examined the volume of the planum temporale (PT) (Zatorreet al. 1998, Wilson et al. 2008), three measured the surface of this region (Schlaug etal. 1995, Keenan et al. 2001, Hamilton et al. 2004). Two other studies (Luders et al.2004, Bermudez et al. 2009) performed voxel-based morphometry (VBM) of thewhole brain to investigate grey matter asymmetries in AP and non-AP musicians.Notwithstanding the methodological differences, the results of all but one of thesestudies were notably similar, indicating the existence of a pronounced leftward asym-metry of the planum temporale (PT) in AP subjects.Schlaug and colleagues (1995) were the first to describe specific structural characte-ristics of the brain of musicians. Their study revealed an exaggerated leftward PTasymmetry in musicians with AP when compared to those without AP, who in turndid not differ from a control group of non-musicians. It should be noted that right-handed individuals naturally have a leftward asymmetry of the PT. However, theasymmetry presented by the group of musicians with AP (also right-handed) was sig-nificantly larger than usual. Another study (Zatorre et al. 1998) did not observe diffe-

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rences in the volume of PT in AP vs. non-AP musicians, but reported a larger left PTwhen AP musicians (n = 10) were compared to a larger sample of right-handed sub-jects unselected for musical skill (n = 50). Also, the authors noticed that the largerthe PT volume of AP musicians, the better their performance on the absolute pitchtest applied during the investigation. An interesting observation was made by Keenan and colleagues (2001).Those authorsreported that the leftward PT asymmetry observed in musicians with AP when com-pared to non-AP musicians and non-musicians resulted not from a larger left PT, butrather from a significantly smaller right absolute PT. A similar observation was madeby Wilson and colleagues (2008), who compared musicians exhibiting a lower levelof AP performance, whom they called quasi-AP musicians (QAP), with others withand without AP and observed a lower average volume of right PT in AP vs. non-APand QAP individuals. This difference was especially evident between the groups ofmusicians with AP and QAP. The average volume of left PT did not differ between thegroups.Luders and colleagues (2004) studied gray matter (GM) asymmetry with a focus onboth AP and gender, and found that male AP musicians were more leftward lateralizedin the anterior region of the PT than male non-AP musicians, and that male non-APmusicians had an increased leftward GM asymmetry in relation to female non-APmusicians. That study was performed using VBM, which differs from traditional re-gion-of-interest MRI analyses because it allows the entire brain to be examined, de-creasing user bias. Other authors have recently used a combination of VBM with othermorphometric techniques to study cortical thickness (Bermudez et al. 2009), but didnot observe an exaggerated leftward asymmetry of PT, as described in previous stu-dies. On the other hand, they found a thinner cortex in AP possessors in areas pre-viously implicated in the performance of AP tasks, such as the posterior dorsal frontalcortices (Zatorre et al. 1998, Bermudez and Zatorre 2005).

2. Functional InvestigationsThe fact that AP fMRI/PET studies (Zatorre et al. 1998, Ohnishi et al. 2001, Ross et al.2003, Bermudez and Zatorre, 2005, Gaab et al. 2006, Wilson et al., 2008, Oechslin etal. 2009, Schulze et al. 2009) have employed a range of stimuli poses a challenge todirect comparison, since the performance of various tasks, even if only slightly diffe-rent, could lead to the activation (or non-activation) of distinct brain areas. Still, themain observations of these studies are summarized below.

2.1. Activation of posterior dorsolateral prefrontal cortex The posterior dorsolateral prefrontal cortex was activated in both AP and non-APsubjects when they performed tasks requiring the association of a specific sound sti-mulus to its label (Zatorre et al. 1998, Bermudez and Zatorre, 2005). Musicians withAP showed activation of the posterior dorsolateral prefrontal cortex in all tasks in-volving tonal stimuli, since they unconditionally associate pitches with labels. This

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activation occurred whether the tasks were active – when subjects were required toname pitches that were randomly presented (Wilson et al. 2008) – or passive – whenthey were required only to listen to a sequence of two pitches (Zatorre et al. 1998) orto a music excerpt (Ohnishi et al. 2001).Zatorre and colleagues (1998) observed that only AP musicians had their left posteriordorsolateral prefrontal cortex activated while passively listening to pairs of tones,played one after the other. However, when the task was to identify and name the in-tervals formed by the pairs of tones (a task that all trained musicians can perform,regardless of presenting AP), activation in that same area was observed in individualswith and without AP. The authors thus remark that whenever an association betweena stimulus and a label was required, activation in the posterior dorsolateral prefrontalcortex was observed. AP could then be characterized as the ability to retrieve an ar-bitrary nonspatial association between a stimulus (pitch) and a verbal label (name ofpitch), therefore strongly linked to associative memory (Zatorre et al. 2008).Bermudez and Zatorre (2005) used a sample of non-musicians in an attempt to testthis hypothesis. The authors designed a task that aimed to reproduce, in non-musi-cians, a mechanism analogous to the one used by subjects with AP in the identifica-tion of tones. For the experiment, eight individuals without formal musical knowledgewere trained to associate four distinct triads (major, minor, augmented, and dimi-nished) to numbers 1 to 4. It was expected that the non-musicians in this experimentwould present an activation of the dorsolateral prefrontal cortex when linking eachtriad to its corresponding number, as had occurred with AP subjects in the Zatorrestudy when associating a label (e.g. A) to a stimulus (e.g. 440Hz). Two fMRI sessionswere performed, one before and one after the training, and activation of the posteriordorsolateral prefrontal cortex was indeed observed in both hemispheres during thepost-training session. The importance of this experiment resides in the fact that itshows that part of the processing chain involved in the identification of tones throughAP – the associative pairing of a stimulus’ dimension to a label and the access to thisinformation — is a universal ability and involves neural substrates common to indi-viduals with or without AP.

2.2. Activation of left temporal cortexWhen hearing musical stimuli based on the Western tempered scale, AP musicianspresented activation predominantly concentrated on the left temporal cortex (Zatorreet al. 1998, Ohnishi et al. 2001, Wilson et al. 2008). On the other hand, in non-APmusicians, or in musicians with a lower degree of this ability, a much greater recruit-ment of neural networks was observed, especially in the right hemisphere, includingstructures linked to pitch working memory (Wilson et al. 2008). In a study conducted by Onishi and colleagues (2001), patterns of brain activation inmusicians (most of them with AP) and non-musicians were observed as they listenedto a specific musical fragment. When passively listening to the music presented duringan fMRI session, musicians and non-musicians revealed activations in significantly

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distinct cortical areas. While in non-musicians the area which showed predominantactivity was the right temporal cortex (Brodmann Areas 21, 22), in musicians thepredominant activity was observed in the left temporal cortex (Brodmann Areas 21,22). Moreover, when compared to non-musicians, musicians presented greater acti-vation in PT and, again, in the left posterior dorsolateral prefrontal cortex (BrodmannArea 9), as had already been observed in the studies mentioned above.

3. Absolute Pitch Modulating Factors and Neuroimaging3.1. Early musical training

Two studies addressed the issue of early musical training (Ohnishi et al. 2001, Keenanet al. 2001).As previously described, Keenan and colleagues (2001) found an exagge-rated PT asymmetry in musicians with AP when compared to non-AP musicians andnon-musicians, resulting from a significant smaller right absolute PT size. The factthat all the musicians selected for both samples of this work (except one in the groupof AP) had started their musical training at the age of 7 or before provides evidencethat the early exposition to musical training does not guarantee an exaggerated left-ward PT asymmetry. It is therefore more likely that this asymmetry would be deter-mined by genetic or by prenatal but non-genetic factors and, either way, it could serveas a marker of predisposition of AP instead of being a result of experiential difference. The investigation by Onishi and colleagues (2001) revealed a significant negative li-near correlation between the age at onset of musical training and the degree of acti-vation in the left PT (Brodmann Area 22). Moreover, an important positive linearcorrelation was observed between the performance of musicians of the sample in anAP test and the degree of left posterior dorsolateral prefrontal cortex activation. Inother words, the earlier the beginning of musical training, the higher the activationin the PT; and the better the performance in the AP test applied, the greater the acti-vation in the left posterior dorsolateral prefrontal cortex.

3.2. Working memoryThe issue of working memory was raised in two papers (Wilson et al. 2008; Schulzeet al. 2009). Absolute pitch has traditionally been contrasted with relative pitch per-ception in the literature, assuming that both abilities were independent and incom-patible, with clearly defined boundaries. Some studies, however, describe significantdifferences in the perception of tones within the group of absolute pitch musicians,indicating different degrees of the same ability (Bachem 1937; Takeuchi and Hulse1993).Like most human traits, AP is not an all-or-none ability, but rather exists along a con-tinuum (Levitin and Rogers 2005). For this reason, the term “quasi-absolute pitch”has been used by some researchers to describe individuals who would fall somewherein that continuum. Some QAP subjects are able to label tones produced by one par-ticular instrument only. Others have AP for only a single tone and, when required toname other tones, they use relative pitch to fill in the gaps (Bachem 1937; Levitin and

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Rogers 2005).Wilson and colleagues (2008) studied three subject groups: AP, quasi-AP (QAP) andnon-AP musicians, showing a significant activation peak in the posterior extensionof the left superior temporal gyrus (Brodman Area 22) in musicians with AP duringthe performance of a pitch identification task. An analysis combining the groups ofAP and QAP musicians revealed an additional and extensive activation in the righthemisphere and in bilateral frontotemporal regions, areas which have been previouslyshown to be involved in functions of pitch discrimination and auditory working me-mory (Zatorre et al. 1994). The solicitation of more extensive neural networks duringthe tone identification process reflected the variation in the degree of precision bet-ween individuals with AP and quasi-AP. The lower the performance in the pitch iden-tification task, the greater the involvement of the right hemisphere and of structureslinked to the working memory.Wilson and colleagues (2008) have also verified that in a task requiring tonal classi-fication (but not pitch identification) all three groups presented similar activationalong the left superior temporal gyrus and in the right cerebellum. However, whenAP subjects were excluded from the comparison, peaks of activation were only ob-served in the anterior portion of the left superior temporal gyrus. It is interesting tonote that individuals with QAP presented a faster mean correct response time in thetonal classification task than in the identification of pitches, while the opposite oc-curred in individuals with AP. Schulze and colleagues (2009) have contrasted AP and non-AP musicians to investi-gate differences in the neural correlates of early encoding and short-term storage oftonal information. Those authors used a pitch memory task in which subjects wererequired to retain a series of tones and later identify whether the last or second-to-last tone was the same or different from the first. Using this task, the authors wereable to inspect early activity (0 to 3 s after the end of stimulus presentation), reflectingperceptual encoding, as well as later activity (4 to 6 s after stimulation), possibly re-flecting post-encoding functions such as working memory. Greater activity was re-ported in the left superior temporal sulcus (STS) of AP musicians during the earlyscanning period, whereas non-AP musicians showed greater activity in the right pa-rietal areas during both scanning periods. These findings suggest that a different cognitive strategy is employed by musicianswith and without AP to identify and categorize sounds, with non-AP musicians usinga tonal working memory and/or multimodal encoding to carry out the pitch memorytask. The study raises the question of whether there are correlations between AP andother facets of cognition, or of whether (some forms of) AP may be manifestationsin the musical domain of broader elements of cognition.

3.3. Verbal natureTwo papers (Zatorre et al. 1998; Oechslin 2009) addressed the notion that AP involvesan association between a stimulus and a verbal label (Zatorre et al. 1998), suggesting

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a “verbal nature” for AP ability. Oechslin and colleagues observed significantly diffe-rent hemodynamic responses to complex speech sounds in AP musicians vs. relativepitch (RP) musicians, with AP musicians presenting stronger activation of the poste-rior part of the middle temporal gyrus and weaker activation of the anterior mid-part of the superior temporal gyrus. Based on the notion that AP proficiency shouldbe reflected in specific auditory-related cortical areas, and assuming an increasedlanguage processing proficiency in AP individuals, those authors argued that AP mu-sicians would present a left-side lateralization in language comprehension regardlessof linguistic domain (syntax, semantics, phonology). They concluded that pitch pro-cessing does indeed influence propositional speech perception, that is, perception ofsentence meaning.

3.4. Blindness Three studies make reference to this topic (Ross et al. 2003; Hamilton et al. 2004;Gaab et al. 2006). It is estimated that the incidence of AP among blind individuals isgreater than among individuals without visual impairment (Hamilton et al. 2004).Blind AP musicians use neural networks which include areas distinct from those usedby sighted AP musicians, such as visual association and parietal areas (Ross et al.2003; Gaab et al. 2006).The study by Hamilton and colleagues (2004) showed that blind musicians with APdid not have the same increase in PT asymmetry previously observed in AP musicianswithout visual impairment. When compared to other blind musicians without AP,they showed a greater degree of PT asymmetry variability. Although the number ofblind individuals who participated in the study was small (n = 8) and their selectionwas not based on handedness, this study suggests that the neural mechanisms linkedto AP in blind musicians is likely to be distinct from those of musicians without visualimpairment. Ross et al. (2003) and Gaab et al. (2006) compared fMRI findings in blind and sightedindividuals with AP. Even though they were based on significantly distinct tasks, bothstudies observed considerable differences in the patterns of activation between thegroups, suggesting that different neural networks were employed in the processingand identification of tones. While sighted individuals presented greater activation inauditory cortical areas, there was a very large recruitment, in blind individuals, of vi-sual association and parietal areas. Since there is evidence that visual association areasare involved in the processing and categorization of visual information (Spiridon andKanwisher 2002) the arising hypothesis is that, in the absence of vision, these sameareas would facilitate the categorization of auditory information. This notion of brainplasticity involving the occipital cortex could provide an additional neural substratefor the development of AP in blind individuals. The results of these two studies —although not revealing the specific mechanisms that lead to a higher propensity tothe acquisition of AP in blind subjects — show that the appearance of AP in blindnessdoes not depend on the same auditory cortex structures that are responsible for themanifestation of AP in sighted subjects.

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DiscussionThe studies selected for this literature review attempted to identify, through MRI,fMRI or PET, brain mechanisms and structures that could possibly be involved inpitch perception by AP. As far as the anatomical findings are concerned, all but oneMRI study indicated an exaggerated leftward PT asymmetry in AP subjects. However,the significance of this finding is still largely unknown. Different morphometric met-hods were employed across studies: manual measurement of the volume or surfacearea of the PT revealed a pronounced leftward asymmetry in individuals with AP(Schlaug et al. 1995; Zatorre et al. 1998; Keenan et al. 2001; Wilson et al. 2008); onestudy using an automated method of analysis (VBM) observed a leftward asymmetryof PT in male AP-musicians only (Luders et al. 2004); and another study combiningdifferent morphometric techniques did not reveal such asymmetry at all (Bermudezet al., 2009). Some studies attributed the asymmetry to a larger than usual left PT(Schlaug et al. 1995; Zatorre et al. 1998), and others to a smaller right PT (Keenan etal. 2001; Wilson et al. 2008). Manual segmentation analysis of the PT can avoid somemorphological variability intrinsic to automated methods (such as VBM and corticalthickness); on the other hand, they are more prone to arbitrary delineation definitionsand human error. Based on these considerations, it would be premature to concludethat an exaggerated leftward asymmetry of PT is an anatomical characteristic of allindividuals with AP.An interesting and novel structural finding was made by Bermudez and colleagues(2009), whose study draws attention to brain areas outside the PT, revealing reducedcortical thickness in multiple loci in AP musicians. One of these areas, the posteriordorsal frontal cortex, had been identified as involved in AP perception in previousfunctional investigations (Zatorre et al. 1998; Bermudez and Zatorre 2005). This study,thus, serves to delineate potential areas for future investigation about the anatomicand functional correlates of AP.Regarding the functional studies included in this literature review, activations in theposterior dorsal frontal cortex and in the left temporal cortex emerged as characte-ristics of AP perception in normal subjects (Zatorre et al. 1998; Ohnishi et al. 2001;Wilson et al. 2008). Blind individuals with AP showed distinctive areas of activationespecially in the parietal and occipital cortices (Ross et al. 2003; Gaab et al. 2006).However, the samples analyzed in these studies were small and further investigationswith larger samples seem necessary to confirm these findings.In general, the literature also supports the hypothesis of Zatorre and colleagues (1998)that the emphasis on the left hemisphere in AP indicates a verbal nature for the as-sociation that occurs between a sound and a label in AP. Further support to this hy-pothesis came from the study by Oeschlin and colleagues (2009), which showsdifferences between AP musicians and non-AP musicians in terms of speech proces-sing. Taking into consideration that the PT is a key element in Wernicke’s area, a majorfunctional area for language comprehension, future studies should investigate the

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correlations between language acquisition and processing and AP. Studies on Wer-nicke’s subareas may also be useful to shed light on AP specificities concerning re-cognition of different timbres, especially the difficulty in recognizing tones producedby the human voice (Bachem 1937; Takeuchi and Hulse 1993).Early training is certainly correlated with AP, probably as a trigger to fulfill a geneticpredisposition to the development of this ability (Baharloo 1998; Gregersen et al.2000; Zatorre 2003). In that sense, age 7 seems to be the cutoff point after which trai-ning does not guarantee improved AP performance (Takeuchi and Hulse 1993). Ho-wever, the articles reviewed here have shown that early training does not seem to beassociated with anatomical features such as PT size (Keenan et al. 2001), but ratherwith activation of specific brain structures (Ohnishi et al. 2001). There seems to be strong evidence that AP and other forms of AP such as QAP employdifferent cognitive strategies to recognize tones (Wilson et al. 2008; Schulze et al. 2009;Takeuchi and Hulse 1993; Levitin and Rogers 2005). Further clarification of this dis-tinction would be useful to determine the boundaries of AP. Even if not all AP indi-viduals share the same degree of ability, there probably are cognitive features thatcharacterize AP specifically, and that are not found outside AP. A word of caution must be said concerning methodological aspects. As stated by Ber-mudez and Zatorre (2009), there exists no standard method for the behavioral de-termination of absolute pitch ability. As a result, a variety of methods have been usedto determine AP ability and select study participants, which might account for somedisparity in results. Schlaug and colleagues (1995) chose AP subjects based on theself-declared ability to produce and recognize pitches without external reference. Theremaining investigations used either a pitch production test (Ohnishi et al. 2001) orpitch labeling tests. Nevertheless, the timbres employed in these labeling tests weredistinct: sawtooth waves (Zatorre et al. 1998), sine waves (Keenan et al. 2001, Luderset al. 2004; Hamilton et al. 2004; Gaab et al. 2006; Schulz et al. 2009; Oechslin et al.2009), or synthesized piano (Ross et al. 2003; Wilson et al. 2008). As previously men-tioned, the literature describes significant variations in the perception of tones withinthe group of subjects with AP, indicating different degrees of this ability (Bachem,1937). Among AP possessors the extent of sensitivity to timbre, as well the degree ofaccuracy or consistency in AP identification and production varies widely (Takeuchiand Hulse 1993). It is, thus, important to emphasize that the results described in theseneuroimaging investigations should be interpreted with careful attention to the natureof the selected samples. Subjects who can recognize tones in the piano timbre are notnecessarily capable of recognizing tones produced by sine or sawtooth waves. Further investigation seems thus to be necessary in order to deepen the search foranatomical and functional markers that could be related to these variations in AP.This would contribute to a more detailed understanding of how tone processing oc-curs in our brain.

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Um levantamento sobre o ouvido absolutoRodrigo Fratin [email protected]

Ricardo [email protected]

Departamento de Música, Instituto de Artes – Unicamp

ResumoO ouvido absoluto (absolute pitch, perfect pitch) foi um dos assuntos mais polêmicose intrigantes durante o séc. XX na área da cognição musical e, em diversos aspectos,permanece aberto para maiores esclarecimentos. Como podemos definir de fato oque seja esta habilidade? Quais são os fatores correlacionados válidos para com-preendê-la? Neste trabalho, e com o objetivo de estabelecer um consenso a partirdaquilo que já se sabe pelas pesquisas de investigadores conceituados, fizemos umlevantamento bibliográfico sobre esta faculdade auditiva. Primeiramente, buscamoscompreender os aspectos mecânicos e psicofísicos do funcionamento do ouvido hu-mano para, em seguida, avaliar a teoria vigente que relaciona as características so-noras de croma e peso com o funcionamento da membrana basilar na cóclea. Porfim, a partir desses elementos, apresentamos uma síntese analítica do pensamentovigente na busca de uma definição consistente e suficientemente abrangente para ahabilidade em questão.

Palavras-chaveouvido absoluto – croma sonoro – percepção musical

IntroduçãoDurante o séc. XX um dos assuntos mais polêmicos e confusos em meio à área decognição musical foi o ouvido absoluto (absolute pitch, perfect pitch). Uma habilidadetida como rara entre as pessoas, mas que mesmo assim parece se manifestar de dife-rentes maneiras e em diferentes níveis pondo em comparação os seus possuidores.Então como podemos definir seguramente esta habilidade? Quais são os fatores cor-relacionados válidos para compreendê-la?Com essas perguntas em mente, elaborou-se a presente pesquisa que tem como ob-jetivo primário levantar elementos consensuais e comumente aceitos pela comuni-dade de pesquisadores nessa área da cognição musical. Com isso, pretende-seexplicitar o que já se sabe a respeito do fenômeno e, ao mesmo tempo, levantar quaissão os aspectos que ainda estão sujeitos à experimentação e comprovação. Dessaforma, pretende-se oferecer elementos básicos e categóricos que tenham o potencialde fundamentar teoricamente o caminho de novos pesquisadores.A metodologia adotada é descritiva e consiste basicamente no levantamento biblio-gráfico a partir de alguns autores relevantes. Acredita-se que esse levantamento per-

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mitirá compreender a evolução nesse campo específico de estudos, e a natureza dosproblemas enfrentados pelos investigadores assim como as respectivas soluções.Nesse contexto, pretende-se explicitar como o problema vem sendo avaliado do pontode vista metodológico e quais são os modelos científicos adotados para a compreensãodo fenômeno.A pesquisa se inicia com uma análise do aparelho auditivo do ser humano, apresentaa teoria referente às relações entre a membrana basilar e os aspectos sonoros de cromae peso, e por último relaciona as diferentes definições que esta habilidade tomou naargumentação de diversos autores chegando ao consenso objetivado.

Fig. 1 – O Aparelho auditivo humano. Fonte: http://www.colegioweb.com.br/fisica/qualidades-fisiologicas-do-som.html

A estrutura anatômica do aparelho auditivoO aparelho auditivo do ser humano pode ser dividido em três partes: ouvido externo,ouvido médio e ouvido interno (Fig. 1). O ouvido externo é formado por uma pregade pele e cartilagem, a orelha, e pelo canal auditivo. Ele tem a função de captar e en-caminhar as ondas sonoras para a orelha média, amplificar o som, auxiliar na locali-zação da fonte sonora e principalmente proteger a membrana do tímpano. Além disso,ela ajuda a manter um equilíbrio nas condições de temperatura e umidade, necessárioà preservação da elasticidade da membrana. As glândulas ceruminosas produtorasde cera, os pelos, e a migração epitelial da região interna para a externa contribuempara estes fatores.As partes funcionais mais importantes são o ouvido médio e o ouvido interno queficam alojados dentro do crânio. O ouvido médio é praticamente uma “bolsa” preen-chida por ar que se comunica com a nasofaringe através da tuba auditiva, tambémchamada de trompa de Eustáquio. Ele possui em seu interior uma cadeia ossicularcomposta por: martelo, bigorna e estribo. Estes três pequenos ossos se conectam, for-mando uma ponte entre a membrana timpânica e a janela oval. Através de um sistemade membranas, eles conduzem as vibrações sonoras ao ouvido interno. A importânciadesta cadeia está relacionada à equalização das impedâncias do ouvido médio (vi-brações aéreas que invadem a membrana timpânica) e do interno (variações de pres-são nos compartimentos líquidos do ouvido interno).\O ouvido interno é composto por uma estrutura de formato espiral chamada cóclea,pelos canais semicirculares e pelo vestíbulo. Quando ondas sonoras entram no ouvidoelas atingem a membrana timpânica que fica no final do canal auditivo, onde são con-vertidas em vibrações, as quais são transmitidas à cóclea pelos ossículos. Na cóclea,

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as vibrações são transformadas em sinais elétricos nervosos por milhões de micros-cópicas cerdas das células auditivas. Estes sinais por sua vez são interpretados no cé-rebro.Dentro da cóclea temos uma estrutura a destacar neste trabalho. Trata-se da mem-brana basilar (Fig. 2), cuja principal característica é não ser uniforme, de forma quesuas propriedades mecânicas variam de acordo com o seu comprimento. Próximo àum dos extremos ela é mais fina e tensa, ressoando em freqüências mais altas, en-quanto no seu final (ápice), ela é espessa e flácida, ressoando então para freqüênciasmais baixas. Segundo a teoria de Von Bekesy, citado por Paulucci em 2005, para um dado estímulovibratório (som puro), ele se propagará através de toda a membrana basilar, causandomaior amplitude de movimento em determinado ponto dela (formando espécies de

“envelope” na membrana. Quando vários sons distintos são tocados, a imagem delase assemelha a de um teclado), enquanto os demais pontos permanecem próximosda inércia. Outro fator é que esta membrana permite que sons distintos a estimulemao mesmo tempo, vibrando em locais diferentes, ou seja, não ocorre interposição deondas. Isto atribui à membrana uma estrutura tonotópica, ou seja, sons agudos vibram emum extremo e sons graves em outro. Sons muito graves (menor que 200 Hz) provocama mobilização de toda a membrana basilar. Neste caso, a cóclea segmenta o som quechega ao ouvido, confirmando a cada tom uma região diferente da membrana (Pau-lucci 2005, 3-4).Foi com base nas características fisiológicas da membrana basilar que Bachem, ci-tando uma teoria primeiramente exposta por Helmholtz, propôs uma extensão destapara explicar o fenômeno do ouvido absoluto. A cada freqüência captada pela audição,a membrana basilar demonstra vibrações em diferentes locais. Quando esta freqüên-cia é ouvida novamente, a membrana responde com o mesmo padrão. Em mudançasde oitava o padrão permanece o mesmo, com só uma pequena adição de componentesna região aguda e omissão na região grave (comparando com uma oitava mais baixa).Desta forma, o padrão que se repete independente da oitava tocada é o que gera asensação de mudança de tom (croma) e os elementos acrescentados mais ao graveou ao agudo é que são responsáveis pelo caráter de peso, o que permite distinguir aoitava.Os estímulos percorridos pela membrana basilar repercutem sobre as células que selocalizam no órgão de corti. Estas células são as que convertem a energia mecânicaem elétrica e direcionam estes impulsos para os nervos que levam estes impulsos parao cérebro. Este mecanismo deve ser o responsável pelas informações que permitemo reconhecimento dos aspectos de croma e peso no cérebro (Bachem 1937, 150-151).

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Fig. 2 – A membrana basilar. Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/corpo-humano-sistema-sensorial/audicao-17.php

Os dois componentes fundamentais da sensação de ouvirEm 1950 Bachem, analisando pesquisas de alguns dos seus contemporâneos, ressaltoua informação de que nossas sensações ao ouvir são constituídas de dois componentes.Um deles é comumente chamado de “peso” (tone height), que varia conforme varia afreqüência. O outro, segundo a definição sugerida por Bachem e aceita até os dias dehoje, é chamado de croma (chroma). O croma é o fator que carrega as informaçõesque permitem que um ouvido reconheça qualquer freqüência como sendo, segundoo sistema tradicional, um Do, um Ré, Si bemol, etc. Este reconhecimento ocorre in-dependente da oitava a que a nota esta soando. Desta forma, as freqüências de 32.7Hz, 65,4 Hz, 130.8 Hz tem todas o mesmo croma, que correspondem a nota Do naescala tradicional. De acordo com os testes realizados por Bachem, é a capacidade dereconhecer este componente que diferencia as pessoas com OA das sem OA. Esta afir-mação é resultado da observação de que nos testes feitos com possuidores de OA, errosde oitava são muito comuns. Em casos classificados como “ouvido pseudo absoluto”o primeiro fator é o que o ouvinte leva em consideração para fazer o julgamento, quecostuma ser demorado e cheio de erros. Com base numa estimativa do peso da notaescutada o ouvinte, praticamente por “chute”, nomeia a freqüência. (Bachem 1950,81).Em uma pesquisa realizada em 2003, cientistas observaram o cérebro humano atravésde imagens funcionais por ressonância magnética com o objetivo de definir quais re-giões são mais afetadas pelos dois diferentes aspectos das freqüências ouvidas, cromae peso. Segundo eles mudanças no carácter de croma produzem mais ativação nocórtex auditivo ântero-lateral (antero-lateral auditory cortex) e alterações no carácterde peso produzem mais ativação no córtex auditivo postero-lateral (posterolateral au-ditory cortex)(Warren et al. 2003, 1-4).\A relação entre os elementos croma e peso podem ser representadas por um gráficotridimensional em forma de hélice (Pitch Helix): Uma espiral que ascende sobre a su-perfície de um cilindro vertical invisível (Fig.3).

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Fig.3 – A Hélice da relação entre croma e peso (Pitch Helix). Notamos que o croma estásendo representado numa escala de semitons representada em circunferência inserida

no plano XZ, onde um semitom equivale ao ângulo entre, por exemplo, Dó (C) e Dósustenido (C #) em relação ao eixo vertical (Y) que representa o peso. Este pode ser me-

dido em qualquer escala de freqüência, como por exemplo, Hertz. Outro caráter queeste gráfico representa é a classificação das oitavas, bastando olhar em qual bobina se

localiza a freqüência dada (fonte: Warren et. al 2003, 1-4).

Pessoas que tiveram uma educação musical e desenvolveram um bom ouvido relativose comportam como se elas tivessem desenvolvido uma escala interna. Um padrãomóvel conceitual que é permanentemente calibrado em termos de relações entre notasna escala musical tradicional de 12 tons. Se é apresentado a um indivíduo com umbom ouvido relativo um tom X e é dito qual é o seu croma e em que oitava está, estanota dada serve de ponto de referência para denominar todos os outros tons. A espiralgráfica é mentalmente rodada até o marcador subjetivo de semitom coincidir comeste tom “âncora”, e o músico pode a partir disto localizar todas as outras notas daescala. O músico assim se prepara para fazer julgamentos dos intervalos musicais(um conceito que corresponde à distância ao longo desta espiral) que separam estetom “âncora” de quaisquer outras frequências. No caso relatado acima, podemos dizer que a espiral é “flutuante”. Ou seja, não existemdegraus permanentes para se fazer julgamentos das notas, só existem temporários.Se for dado um tom de 440 Hz seguido de um de 525 Hz, o músico reconhecerá ra-pidamente o intervalo de terça menor, mas só se ele soubesse que a primeira foi Láirá denominar a segunda como Do. Se déssemos a informação de que o primeiro tomfoi Ré, o segundo seria nomeado Fá.Este tipo de engano não ocorre com uma pessoa possuidora de OA. Nesta, a espiraldemonstra ter degraus fixos e permanentes. Dadas as mesmas freqüências de 440 Hze 525 Hz o músico imediatamente reconheceria Lá 4 e Dó 5, e se lhe contassem que aprimeira foi Do 5, simplesmente diria que ouve um erro (Ward e Burns 1982, 434).

Conceitos sobre o ouvido absoluto e definiçõesO ouvido absoluto foi primeiramente citado em meio aos estudos de psicologia porStumpf em 1983, mas é tema de discussões entre músicos desde os tempos de Mozart,que demonstrou ser um genuíno possuidor desta habilidade. Além dele, muitos mú-sicos notáveis como Beethoven, Chopin, Scryabin, Messiaen e Boulez também de-

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monstraram ser possuidores. Ela pode ser definida como a habilidade de identificaro croma (classe de altura) de uma onda sonora audível fazendo uma discriminaçãodas diferentes freqüências com termos como C, 261 Hz ou Do sendo esta habilidadeconsiderada por muitos como OA passivo. Também pode ser demonstrada como acapacidade de reproduzir uma determinada freqüência sem ter sido dada uma refe-rência exterior, o que os mesmos chamam de OA ativo. Estes conceitos estão presentesem autores como Bachem, Baggately, e Ward, citados por Parncutt e Levitin (2001,37).Este tipo de percepção pode facilmente ser comparado com a capacidade humana dediferenciar cores. Desta forma é comum a referência a esta habilidade como sendo acapacidade de ouvir cores, isto sem relações com o fenômeno denominado “sinestesia”.Neste processo, dado uma onda de, por exemplo, 440 Hz, esta gerará uma determi-nada vibração num local particular da membrana basilar que por um conjunto de fi-bras nervosas deste lugar carregará um sinal para o cérebro. Se o ouvinte em algummomento aprendeu a identificar este som como “Lá 4” (ou qualquer outro nome),então sempre que este mesmo conjunto de fibras nervosas for estimulado no futuroo cérebro irá responder com o mesmo nome. Entretanto é muito interessante observarque enquanto 98% das pessoas reconhecem as cores visuais (considerando a existên-cia de 2% de daltônicos), menos de 0,01% tem ouvido absoluto. Isto levando em con-sideração alguns critérios estabelecidos para julgar a existência desta habilidade epelo que os estudos mostraram até hoje eles ainda não são muito claros contando queos casos denominados como sendo deste fenômeno apresentaram variadas caracte-rísticas.Considerando as dificuldades em classificar se um ouvinte possui ou não um ouvidoabsoluto, em 1937, Bachem escreveu o artigo “Various tipes of Absolute Pitch” noqual depois de várias pesquisas com muitos casos distintos com a mesma denomi-nação chegou a uma classificação para distingui-los. Por ela podemos dividir os casosrelatados como ouvido absoluto em três classes: A – Ouvido Absoluto Genuíno, ba-seado na identificação imediata do croma; B – Ouvido quase absoluto, baseado nojulgamento por intervalos a partir de uma referência fixa interiorizada, como o Lá440 Hz dos violinistas e C – Ouvido Pseudo Absoluto, baseado numa estimação pelasensação de peso da nota.Na classe A temos três subdivisões: na primeira temos o OA universal, podendo serinfalível (Bachem conheceu sete casos), mesmo realizando variações de timbre, re-giões e até considerando ruídos diversos como motores de carro e sons de vidros; oupodendo ser falível, tendo dificuldade com diversos instrumentos e realizando oserros comumente relatados de semitons e oitavas. Na segunda temos o OA limitado,podendo o ouvinte ter sua identificação restrita a determinado timbre, a determinadaregião de freqüências ou as duas coisas ao mesmo tempo. Já na terceira, temos o OAclassificado como intermediário a estes dois anteriores podendo ser impreciso ou im-preciso e variado.Na classe B temos duas subdivisões: na primeira o músico possui uma memória fixa

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para determinado tom, como por exemplo, o Lá 440 Hz do violino ou o Dó centraldo Piano. Assim, a partir de um conhecimento de intervalos, pode identificar comcerta precisão a maioria das freqüências. Já na segunda o músico reproduz a nota vo-calmente e com base na associação da tensão de suas cordas vocais a determinadasfreqüências, encontra certos padrões para identificar os sons que ouve.Na classe C, denominada Ouvido Pseudo Absoluto existe uma estimação por partedo ouvinte com base no caráter de “peso” das notas, algo que é válido para julgar asoitavas e não o croma. Os ouvintes enquadrados nas pesquisas como possuidoresdeste tipo, fazem geralmente um julgamento muito lento, dando a resposta como

“chutes” e cometendo muitos erros, o que já demonstra ser algo muito distante dosfenômenos apresentados na classe A (Bachem 1937, 149-150).Entretanto outras divisões já foram consideradas levando em conta o próprio empregodesta habilidade pelos ouvintes. A habilidade de reconhecer e reproduzir alturas comprecisão e imediatismo foi denominada “OA de tom” (tone-AP) e outra característicacomum, que é o reconhecimento da tonalidade de algumas peças, foi denominada

“OA de Peça” (piece absolute pitch). Curiosamente estas duas não aparecem necessa-riamente juntas, como disseram Terhardt e Seewann, citados por Parncutt e Levitin,um músico pode demonstrar uma sem conseguir demonstrar a outra (Parncutt e Le-vitin 2001, 38).Segundo Levitin, “fundamentalmente, o OA é uma habilidade cognitiva que dependede auto-referência (a um modelo internalizado de classe de altura) e um mecanismode codificação altamente desenvolvida, que liga os rótulos verbais com representaçõesabstratas de uma informação perceptiva”. Ainda acrescenta que ao contrário de umaexistência de um mecanismo de percepção altamente desenvolvido, “a maior prepon-derância de evidência sobre a habilidade do OA é que seja uma habilidade de memóriade longo prazo e codificação lingüística”. Ainda sobre a definição, o mesmo autor cri-tica o uso do termo perfect pitch (afinação perfeita) como nome alternativo para OA.Pois o termo sugere que pessoas com o OA têm mais sensibilidade à afinação do quepessoas sem ele, o que não é fato (Levitin, 1999).Admitindo-se, em possuidores do OA, a existência de um padrão interno estabilizadopara fazer gerar e reconhecer sons com exatidão, deve-se levar em consideração umaspecto fisiológico comum nos seres humanos que é chamado presbiacusia. Estetermo refere-se a alterações fisiológicas no ouvido em função da idade, o que leva aque o ouvinte, com o passar do tempo, a perceber as notas mais altas do que percebiaantes. Citado por Ward & Burns, Vernon relatou que quando estava na idade de 52anos, as tonalidades estavam soando um semitom acima. Isto foi particularmenteaflitivo, pois como resultado ele ouvia a abertura para Die Meistersinger em Dó sus-tenido ao invés de Dó e para ele Dó é “forte e masculino” enquanto Dó sustenido é

“lascivo e afeminado.” Posteriormente, aos 71 anos de idade, ele ouvia tudo dois se-mitons acima. Muitos outros casos semelhantes foram relatados (Ward & Burns 1982444).

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Considerações finaisCorrelacionando as argumentações dos autores apresentados neste levantamento,chegamos ao consenso de que os fatores de croma e peso são de fato muito impor-tantes na compreensão do OA, uma vez que a única informação que se mantém pre-sente em todas as definições é com relação a uma capacidade auditiva de reconheceros aspectos de croma num estímulo sonoro. Também julgamos, no momento, ina-propriado enrijecer um conceito sobre a forma de manifestar-se esta habilidade au-ditiva, pois, como ela se mostra muito variada, isto gera algumas dificuldades paraos pesquisadores em julgar precisamente se o indivíduo tem ou não um OA. Fatoresde tempo no julgamento, mudança de timbre, a capacidade de reconhecer em qualcroma está situado o centro tonal de uma peça e a faculdade de reproduzir uma notaespecífica sem referência parecem indicar uma habilidade mais comum do que seimagina, mas que se manifesta em diversos níveis, estando, para cada ouvinte, maisacessível em algumas circunstâncias musicais e mais obscura em outras.Uma análise completa do fenômeno sob questão deverá ainda englobar aspectos re-lativos às possíveis origens do OA, comparando as duas correntes teóricas básicas (de-senvolvimento e hereditariedade). Assim se faz necessária também uma revisão dastentativas de desenvolver um OA e, logicamente, uma reflexão sobre a importânciado OA, aspecto que ainda é muito questionado pelos músicos. Embora já se tenha ob-tido muito conhecimento sobre este fenômeno auditivo, muito existe ainda para seraveriguado, sendo impertinente no momento fazerem-se afirmações categóricas sobrealguns aspectos.

Referências BibliográficasWard, D. W.; E. M. Burns. “Absolute Pitch”, in Diana Deutch, ed., The Psychology of Music, 431-

451. San Diego: University of Califórnia Press, 1982.Bachem, A. “Various Types of Absolute Pitch”. Journal of the Acoustical Society of America 9

(1937), 146-151.Bachem, A. “Absolute Pitch, Journal of the Acoustical Society of America 27, n. 6 (1955), 1180-

1185.Parncutt, R. e D. J. Levitin, “Absolute Pitch, The New Grove Dictionary of Music and Musicians

1 (2001), 37-39.Bachem, A. “Tone Height and Tone Chroma as Two Diferent Pitch Qualities”. Acta Psychol. 7

(1950), 80–88.Levitin, D. J. “Absolute Pitch: Self-Reference and Human Memory”. International Journal of

Computing and Anticipatory Systems 4 (1999), 255-266.Levitin, D. J.: “Absolute memory for musical pitch: Evidence from the production of learned

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Acad. Sci. 100, nº 17 (2003).

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Quais os fatores que podem interferir na percepção da expressividade interpretativa musical?

Márcia Higuchi, Cristina Del Ben, Frederico Graeff & João Leite [email protected]

Departamento Neurociências e Ciências do Comportamento, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo

ResumoEstudos indicam que as performances tocadas com emoção apresentam mais carac-terísticas relacionadas à expressividade (execuções expressivas) quando comparadasàs performances realizadas com a focalização da atenção dirigida apenas em aspectoscognitivos (execuções técnicas). Nesses estudos porém, a percepção da expressivi-dade por ouvintes não foi estudada. Este trabalho tem como objetivo estudar a per-cepção da expressividade por 3 grupos de estudantes de graduação de ambos ossexos com diferentes graus de treinamento musical. Os 3 grupos foram formados porestudantes de área biológica sem conhecimento musical (bio), com conhecimentomusical (biomus) e estudante de música (mus). Os voluntários ouvintes analisaram4 gravações (2 técnicas e 2 expressivas) executadas por 2 pianistas (um técnico eoutro expressivo). Os resultados indicam que os grupos com treinamento musical per-ceberam maior grau de expressividade nas execuções expressivas comparadas àsexecuções técnicas dos dois pianistas, porém o grupo sem treinamento musical nãoidentificaram tais diferenças. Embora os primeiros resultados indicassem que a per-cepção da expressividade musical poderia estar relacionada ao grau de treinamentomusical, uma análise mais detalhada dos dados sugerem que outros fatores tambémpoderiam influenciar tal percepção. Entre as pessoas do sexo feminino, apenas asmusicistas perceberam diferenças entre as execuções técnicas e expressivas de ambosos pianistas, com nível de significância (p<0,01). Os outros grupos femininos não per-ceberam diferenças no grau da expressividade das execuções de forma significativa.Entre os ouvintes do sexo masculino, apenas os estudantes da área biológica com co-nhecimento musical distinguiram as execuções técnicas e expressivas dos pianistasexpressivo (p=0,02 ) e técnico (p =0,01). Os outros grupos masculinos perceberam adiferença do grau de expressividade entre a execução técnica e expressiva do pianistatécnico (bio p=0,01 mus p=0,04), porém não identificaram diferença no grau da ex-pressividade entre as execuções técnicas e expressivas do pianista expressivo. Essesdados sugerem que vários outros fatores além do treinamento musical e gêneropodem estar envolvidos na percepção da expressividade musical.

Palavras-chavepercepção – expressividade – performance pianística

IntroduçãoA música pode provocar várias reações nos estados emocionais (Blood e Zatorre,2001; Brown, Martinez et al. 2004; Menon e Levitin, 2005; Juslin e Vastfjall, 2008;

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Zentner, Grandjean et al. 2008), porém não se sabe ao certo como a música despertatais emoções. A idéia de que as propriedades sonoras específicas resultantes da per-formance do(s) intérprete(s) exercer um importante papel na experiência do ouvinte,é consensual (Barthet, Depalle et al. 2010)Juslin e Västfjäll (2008) propuseram seis diferentes mecanismos que podem mediaras respostas emocionais através da música. Um dos mecanismos propostos, denomi-nado de “Contágio Emocional” explica que a emoção do intérprete no momento daexecução pode vir a influenciar a sua expressividade musical. De acordo com estateoria, durante o processamento mental de um estímulo musical que provoque umaemoção, o sistema nervoso dispara uma seqüência de reações corporais, preparandoo corpo para uma reação emocional específica. As reações procedentes dessas emo-ções influenciariam diversas as atividades do corpo humano, como: a postura, rubo-rização da pele, expressões faciais, gestos, entonação da voz, etc., influenciandoconseqüentemente a forma de tocar o instrumento musical. Essas reações resultariamem variações na agógica (i.e. precisão métrica), na dinâmica, no timbre, na articula-ção (i.e. legato, staccato), e outros aspectos da interpretação musical (Higuchi e Leite,2007). Os ouvintes perceberiam essas expressões emocionais do interprete e seriaminternamente contagiados, tanto por meios de realimentação periférica da muscula-tura, ou da ativação de áreas cerebrais relacionadas à representação de emoções, in-duzindo os ouvintes a emoções similares (Juslin e Vastfjall, 2008). Portanto, se a teoriado Contágio Emocional estiver correta, a emoção do pianista durante a performancetem um papel fundamental na expressividade interpretativa musical. No meio musical, é comum músicos relacionarem a expressividade com “tocar comsentimento” (Juslin, Karlsson et al., 2006). A importância da emoção do intérpretena expressividade é fortalecida por estudos os quais demonstraram que tocar simu-lando uma emoção pode modelar a forma de tocar, influenciando a qualidade tim-brística, ritmo, ênfases e inflexões interpretativas (Gabrielsson e Juslin, 1996; Juslin,1997; 2000; Canazza, De Poli et al., 2003; Juslin e Vastfjall, 2008). Essa hipótese é re-forçada por vários estudos que têm demonstrado que músicos profissionais conse-guem tocar uma mesma música em diferentes nuanças expressivas (Canazza, De Poliet al., 2003) e que tanto músicos especialistas como leigos conseguem identificar aemoção transmitida através da audição (Juslin, 1997). Outros estudos corroboram aidéia da importância da emoção na expressividade musical. Nesses estudos, as exe-cuções de um mesmo repertório tocadas com a atenção focalizada em aspectos afe-tivos apresentavam mais características relacionadas à expressividade quandocomparadas às execuções com a atenção focalizada em aspectos cognitivos (Higuchie Leite, 2009; Higuchi, Fornari et al., 2010). As propriedades sonoras analisadas foramfraseados, intensidade do toque, a claridade de pulso e articulação. Porém, a percep-ção da expressividade pelos ouvintes, um aspecto fundamental no processo de trans-missão de sentimento através da música de acordo com o contágio emocional, nãofoi estudada nesses trabalhos. Portanto este presente trabalho tem como objetivo, es-tudar a percepção da expressividade por ouvintes com diferentes graus de treina-mento musical.

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Método1. Material e preparação

Gravações: 4 performances de uma adaptação dos 32 compassos iniciais do Trauerem Fá M, uma das doze peças para piano a quatro mãos para crianças grandes e pe-quenas, opus 85 de Robert Schumann. As gravações são de performances realizadaspor 2 estudantes graduandos em curso de bacharelado em piano do Instituto de Artesda UNESP, acompanhados pela primeira autora deste trabalho que executou a partesecondo. Treinamento: Na preparação para a gravação do material, os voluntários inicialmentepassaram por 5 sessões de treinamentos, com duração de uma hora cada, onde foirealizado: 1) Todo o processo de memorização, implícita e explícita, desta peça. 2) Odesenvolvimento da expressividade, utilizando um estímulo emocional (descritoabaixo). 3) As instruções de como deveriam ser realizadas as execuções com a atençãofocalizada em aspectos afetivos e em aspectos cognitivos.Estímulo emocional: A utilização desse estímulo emocional teve como objetivo as-sociar a música com cenas tristes para que os pianistas pudessem vivenciar esta emo-ção, promovendo assim a sua expressão através da interpretação musical. Para aconfecção do estímulo emocional foram apresentadas aos pianistas fotos de contextotriste, selecionados do IAPAS (International Affective Picture System) com o fundomusical da peça utilizada nesta pesquisa (Trauer) gravada pelo pianista João CarlosMartins.Sessões de gravação: Foi realizada uma sessão de gravação com duração de 1 horacada, onde os voluntários tocaram diversas vezes a peça nas duas condições de aten-ção: afetivas e cognitivas. Na condição afetiva os pianistas foram instruídos a tocaremsentindo a música, tentando expressar uma emoção de tristeza. Na condição técnica,os pianistas forma instruídos a tocarem focalizando a atenção em aspectos cognitivos,ou seja, pensar em cada nota que estavam tocando (execuções técnicas), tentandomanter a métrica.De cada voluntário foi selecionada uma gravação afetiva e uma cognitiva, consideradacomo a que melhor representava cada condição de atenção para que seus graus deexpressividade fossem analisados por voluntários ouvintes. As performances comatenção em aspectos afetivos foram denominadas expressivas, uma vez que além deapresentarem mais propriedades sonoras relacionadas à expressividade (Higuchi eLeite 2009; Higuchi, Fornari e Leite 2010), os próprios pianistas relataram que tocardessa maneira favorecia a expressividade. As gravações foram produzidas utilizando um Piano Steinway série D, 3 MicrofonesNeumman KM 184, 2 Microfones DPA 4006, Cabos Canaire, mesa de gravação Mackie32/8.Um dos pianistas se autodenominou mais expressivo do que técnico, e outro se auto-denominou mais técnico do que expressivo.

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2. Participantes ouvintesCinqüenta e seis estudantes de graduação da Universidade de São Paulo foram divi-didos em 3 grupos, de acordo com a sua formação acadêmica e musical. O grupo Bio foi formado por 20 estudantes de graduação (10 mulheres e 10 homens)em área biológica sem treinamento musical ou com máximo 1 ano de aprendizadomusical fora da escola formal e com idade entre 18 e 29 anos (média 21 anos desviopadrão 2,35)O grupo BioMus foi composto por 18 estudantes (9 mulheres e 9 homens) de gra-duação em área biológica com 1 ano ou mais de aprendizado musical e com idadeentre 18 e 28 anos (média 21 anos desvio padrão 2,4). Esses voluntários estudam ouestudaram música durante 1 a 15 anos (média 5,3 anos, desvio padrão 4,7).O Mus grupo foi formado por 18 estudantes de graduação em música (9 mulheres e9 homens) com idade entre 17 e 25 anos (média 20 anos desvio padrão 2, 01). Essesvoluntários estudam música há 2 a 14 anos (média 7,5 anos, desvio padrão, 3,58).

3. ProcedimentoOs voluntários inicialmente preencheram a um questionário e receberam as seguintesinstruções:

Nós estamos interessados em saber se a forma como um pianista executa umapeça influencia na expressividade da sua interpretação.Nesta tarefa, você ouvirá o mesmo trecho de música tocado de quatro maneirasdiferentes por dois pianistas. Você deverá se concentrar, mas não deve analisar aexecução, apenas senti-la. Ao final de cada trecho, você deverá informar o grau da expressividade (capacidadede transmitir emoção) de cada interpretação, numa escala como a apresentada aseguir:

Após lerem as instruções, apresentamos dois exemplos, um exemplo de uma execuçãoinexpressiva e uma execução expressiva. Esses exemplos tiveram o objetivo de orientaros voluntários, uma vez que alguns deles (principalmente os que não tinham um co-nhecimento musical) disseram não saber o que seria expressividade interpretativamusical. A expressividade foi definida como capacidade de transmitir emoções, epara evitar qualquer tipo de indução, não fornecemos qualquer outra informação aesse respeito além desta definição e dos exemplos. As seqüências das apresentações das quatro execuções analisadas foram feitas deforma alternada para que as execuções fossem apresentadas equilibradamente emtodas as ordens.No decorrer da audição das gravações os voluntários tiveram seus olhos vendados. Eapós a audição de cada gravação, a venda dos olhos foi tirada para que pudessem res-ponder ao questionário. Os graus de expressividade das 4 gravações (uma técnica e uma expressiva de cada

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um dos pianistas técnico e expressivo) foram medidos por escalas analógicas de 10cm. O início da escala foi determinado 0 e o final da escala foi determinado 10. Osvoluntários foram instruídos a assinalarem com um traço vertical de 0 (representandoausência de expressividade) a 10 (representando o máximo de expressividade), de-terminando o grau da capacidade expressiva das performances. As escalas analógicasforam medidas (de 0 a 10 cm)

4. Análise Os dados foram analisados no pacote estatístico spss, por meio de análises de variân-cias (ANOVA) com medidas repetidas, sendo considerados os fatores grupo (Bio, Bio-Mus e Mus), sexo (masculino, feminino) e execuções (execução técnica-pianistatécnico, execução expressiva-pianista técnico, execução técnica-pianista expressivo;execução expressiva-pianista expressivo. Quando encontramos diferenças significa-tivas, aplicamos testes post hoc de Bonferroni.

ResultadosAs análises de variâncias com medidas repetidas indicam que o grupo Bio não con-seguiu distinguir a diferença entre nenhuma das execuções técnicas das expressivas[F (3,57)=1,65; p= 0,18]. Porém, os grupos, BioMus) [F (3,51)= 9,68; P=0,00] e Mus[F(3,51)=38,35; p= 0,00] tiveram percepções significativamente diferences da ex-pressividade das execuções.

Figura 1 — Representação das médias e dos erros padrões das avaliações realizadas nas escalas analógicas referentes ao grau de expressividade percebida pelos voluntários

ouvintes em relação às execuções técnicas e expressivas dos dois pianistas (o técnico e o expressivo).

A execução técnica do pianista expressivo (média 4,97, erro padrão 0,836) foi perce-

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bida como menos expressiva do que a execução expressiva do pianista expressivo(média 7,31, erro padrão 0,467; p=0,031) pelo grupo biomus. Este grupo tambémconsiderou como menos expressiva a execução técnica do pianista técnico (média4,283, erro padrão 0,985), em comparação com a execução expressiva do pianista téc-nico (média 7,655, erro padrão 0,673 p= 0,006).O grupo Mus apresentou diferença na percepção de expressividade entre a execuçãotécnica do pianista expressivo (média 3,522, erro padrão 0,737) e a execução expres-siva do pianista expressivo (média 7,039, erro padrão 0,609 p = 0,000). Houve tam-bém diferença na percepção de expressividade entre a execução técnica do pianistatécnico (média 2,578, erro padrão 0,503) e execução expressiva do pianista técnico(média 7,583, erro padrão 0,6; p= 0,000).A MANOVA de medidas repetidas também apontou para interações significativas entreos fatores sexo [F (2,6, 130,5) = 2,77; p=0,05] e grupo [F (5,22; 130,5) = 4,83; p<0,001; interação sexo e grupo [ F(5,22; 130,5) = 3,81; p= 0,00]. Entre as mulheres, apenas as musicistas perceberam diferenças entre as execuçõestécnicas e expressivas de ambos os pianistas [F (2,22; 24) = 37,57; p<0,01]. Os outrosgrupos femininos não perceberam diferenças entre as execuções técnicas e expressivasde nenhum dos pianistas [Bio F (1,74; 15,6) = 0,63; p= 0,52 / Bio Mus F(2,65; 21,21)= 1,39; p= 0,27].

Figura 2.A — Médias e os erros padrões das avaliações realizadas nas escalas analógicas referentes ao grau de expressividade percebido pelos 3 grupos

de voluntários ouvintes do sexo feminino.

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Figura 2.B — Médias e os erros padrões das avaliações realizadas nas escalas analógicas referentes ao grau de expressividade percebido pelos 3 grupos

de voluntários ouvintes do sexo masculino.

Entre os homens, todos os grupos apresentaram diferenças significativas [Bio F (2,18;19,6) = 5,44; p=0,012; Biomus F (1,6; 13,1) = 15,54; p=0,001; e Mus F (1,94; 15,5 =11,64; p=0,001]. Porém, de acordo com as análises das variâncias com medidas re-petidas dentro de cada nível, apenas os estudantes da área biológica com conheci-mento musical distinguiram as execuções técnicas e expressivas dos pianistasexpressivo (p=0,02) e técnico (p =0,01). Os voluntários sem conhecimento musicalconseguiram perceber a diferença entre a execução técnica do pianista técnico comas execuções expressivas do pianista expressivo (p=0,02) e técnico (p<0,01). Porémeles não perceberam diferenciação entre a execução técnica do pianista expressivocom as execuções expressivas de ambos os pianistas. Os estudantes do sexo masculinodo departamento de música não fizeram distinção no grau da expressividade entre aexecução técnica e expressiva do pianista expressivo (p=0.19). Eles reconheceram di-ferença entre as execuções técnicas do pianista expressivo com a execução e expressivado pianista técnico (p=0,04). As diferenças entre a execução técnica do pianista téc-nico e as execuções expressivas do pianista expressivo (p=0,01) e técnico (p<0.01)foram também percebidas pelos músicos.

DiscussãoComo foi demonstrado na figura 1, não encontramos diferenças significativas entreas execuções expressivas e técnicas nas avaliações do grupo de estudantes sem co-nhecimento musical. Porém os voluntários com conhecimento musical tanto da áreabiológica como do departamento de música reconheceram as diferenças de formasignificativa. Foi um resultado inesperado, uma vez que havíamos suposto que todosos grupos reconheceriam a diferença.

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Embora os resultados possam indicar que a percepção da expressividade seja depen-dente de um aprendizado e vários dados possam reforçar tal interpretação, é possívelencontrar outras alternativas para análise desses resultados, assim como encontrarfatores que contrapõem tal afirmação. Entre os dados que reforçam que a interpretação é dependente de aprendizado, en-contramos estudos que indicam que o treinamento melhora a capacidade perceptivamusical (Bigand e Poulin-Charronnat 2006). Outro estudo indica que a ativação ce-rebral na audição de acordes consonantes e dissonantes, é diferente entre músicos enão músicos (Minati, Rosazza et al. 2008). Músicos apresentam uma maior ativaçãonas áreas motoras comparadas a não músicos durante a percepção rítmica (Grahn eBrett, 2007). Portanto, se o treinamento melhora a capacidade perceptiva musical, épossível interpretar que uma parte da diferença da percepção da expressividade entreos grupos seja realmente resultante de um treinamento ou maior exposição a musica.Porém, outros dados apresentados neste estudo indicam que a diferença na percepçãoda expressividade musical pode não ser resultante apenas de treinamento. Constata-mos que houve uma grande diferença na avaliação entre os grupos e também entreos gêneros como vimos nas figuras 2A e B. Apenas os grupos das mulheres que estudam no departamento de música perceberamdiferenças no grau da expressividade entre as execuções técnicas e expressivas. Asestudantes da área biológica, mesmo com um treinamento musical, não identificaramtais diferenças de forma significativa, enquanto que no grupo dos homens sem co-nhecimento musical, identificou diferença entre a execução técnica e expressiva dopianista técnico. Portanto se os leigos do sexo masculino identificaram diferenças,não identificadas por mulheres com treinamento musical superior a um ano. Essesdados reforçam a idéia de que a percepção da expressividade interpretativa musicalpode não ser subordinada apenas ao treinamento musical.Outros fatores podem estar refletindo em tais resultados. Por exemplo, estudo (Trim-mer e Cuddy 2008) indica que a inteligência emocional, e não o treinamento musical,prediz a capacidade do reconhecimento da prosódia emocional da fala. Embora a in-teligência emocional seja um aspecto complexo de ser utilizado como referência, éinteressante encontrar dados que supõem que outro aspecto diferente do treinamentomusical pode predizer a capacidade do reconhecimento da prosódia emocional. Essesdados ganham maior relevância nesse presente trabalho pelo fato da expressividadeda interpretação musical ter sido freqüentemente relacionada com a prosódia (Juslin1997; Juslin 2005; Peretz e Zatorre 2005). Assim é possível supor que outro fator comoa inteligência emocional também influencie esses resultados. É possível também es-pecular que pessoas com maior inteligência emocional optem por uma profissão queesteja relacionada à expressividade emocional. Porém, não podemos afirmar que osgrupos que perceberam melhor a diferença entre as execuções, tenham maior inteli-gência emocional, tão pouco podemos afirmar que os homens possuem uma inteli-gência emocional maior que as mulheres. Estudo indica que mulheres reconhecemexpressão facial emocionais mais rapidamente que os homens, (Mandal e Palchoud-hury 1985).

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Outro dado que pode influenciar tais resultados reside no fato de pessoas de perfisdiferentes escutarem músicas com objetivos diferentes. Por exemplo, as pessoas ex-trovertidas e intelectualmente engajadas e aquelas que têm QI mais elevados tendema utilizar música de maneira racional e cognitiva. Ao passo que pessoas neuróticas,introvertidas, e não conscienciosas, geralmente usam para regulação emocional (Cha-morro-Premuzic e Furnham 2007). Portanto, se pessoas de diferentes perfis utilizam a música de maneiras distintas, épossível que a audição musical visando objetivos diferentes possam resultar em uti-lização processamentos musicais diversos. Por exemplo, Juslin e Vastfjall (2008) pro-põe existência de seis mecanismos distintos de respostas emocionais para música quesão:

Reflexo do tronco cerebral – processo no qual a emoção é induzida por causa de umou mais característica acústica da música que é processada pelo tronco cerebralpara indicar um sinal ou evento potencialmente importante.

Condicionamento evolutivo - processo no qual uma emoção é induzida por umapeça musical simplesmente por que esse estímulo foi pareado repetidamente comoutro estímulo positivo ou negativo.

Contagio emocional – processo no qual a emoção é induzida, pois o ouvinte percebeas expressões emocionais da música e então mímica essa expressão internamente.

Imaginação visual – é o processo pelo qual a emoção é induzida ao ouvinte por queele evoca uma imagem visual enquanto escuta a música.

Memória episódica - é o processo no qual uma emoção é induzida ao ouvinte porque a música evoca uma memória de um evento particular da vida do ouvinte.

Expectativa musical – é o processo pela qual uma emoção é induzida para o ouvintepor que uma específica característica da música é violada.

A expressividade utilizada pelos voluntários pianistas está ligada à expectativa musical,pois justamente encontramos violação da expectativa interpretativa musical na ques-tão fraseológica e agógica (Higuchi e Leite 2009; Higuchi, Fornari et al. 2010) nasexecuções expressivas deste presente trabalho.Entendemos que haveria possibilidade de pessoas de sexos diferentes utilizarem me-canismos distintos para respostas emocionais, pois historicamente exerceram funçõesdiferentes. Possivelmente as mulheres tenham uma tendência a utilizar mais o me-canismo do contágio emocional e os homens tendência a utilizar mais a expectativamusical.A tendência das mulheres utilizarem mais o contágio emocional, poderia ser expli-cada pelo fato de historicamente, as mulheres serem responsáveis por cuidar da prole,enquanto os homens serem responsável pela caça. Para criação da prole, é muito im-portante entender as expressões dos filhos tanto verbal como prosódica, e reconhecerincongruência entre ambas. Evidências, que reforçam a suposição de que as mulheres utilizam mais o contágio

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emocional, baseiam-se no fato delas manifestarem maiores interferências quando si-nais de linguagem e prosódica estão incongruentes (Schirmer e Kotz 2003). Por outro lado, os homens podem ter a tendência a utilizar mais o mecanismo da ex-pectativa musical. Essa tendência pode ser explicada, pois, por serem historicamenteresponsáveis pela caça, os homens tiveram que desenvolver muito mais a percepçãoda quebra da expectativa de eventos. Pois a quebra da expectativa sonora de um am-biente poderia representar uma caça ou um predador. Por esse motivo, os voluntários do sexo masculino sem conhecimento musical, em-bora não tenham uma idéia de sintaxe expressiva muito bem definida e a percepçãobem aguçada, já seriam capazes de perceber as diferenças de violações do fraseadomusical entre as execuções técnicas e expressivas do pianista técnico. Porém, as estudantes da área biológica podem não ter percebido que a violação dasintaxe interpretativa seria considerada expressividade. Por utilizar mais o contágioemocional do que a expectativa, elas buscariam mais determinados tipos de músicaque trouxessem algum tipo de prazer. Porém, por sentir mais o contágio, e o estímuloemocional ser tristeza, as estudantes talvez buscassem justamente uma interpretaçãoque trouxesse alguma emoção de valência positiva, e elas tenderiam a não analisaruma música tocada de uma forma triste como expressiva. Porém, as voluntárias dodepartamento de música, muito mais familiarizadas com tal tipo de mecanismos, jáseriam capazes de reconhecer a quebra da sintaxe interpretativa como expressividademusical. O fato das estudantes do departamento de música identificar diferenças nos graus deexpressividade entre as execuções técnicas e expressivas, poderia sugerir que o trei-namento musical melhora a capacidade de reconhecimento expressivo. Porém, comonão houve diferença entre os grupos das estudantes da área biológica com e sem co-nhecimento musical, podemos supor que haja também uma diferença entre os perfisdas estudantes de áreas distintas. As musicistas poderiam ser mais ou menos cons-cienciosas, assim poderiam escutar as execuções utilizando mecanismos distintosdas estudantes de áreas biológicas. Entretanto é difícil encontrar um motivo pelos quais os voluntários do sexo masculinodo departamento de música não conseguiram identificar a diferença entre as execu-ções técnica e expressiva do pianista expressivo. Por terem um treinamento musicalmaior do que os voluntários da área biológica com conhecimento musical, a priorideveriam perceber mais as diferenças da expressividade interpretativa. Talvez os es-tudantes do departamento de música poderiam ser mais sensíveis que os estudantesda área biológica, assim eles reconheceriam na interpretação técnica do pianista ex-pressivo, um outro tipo de mecanismo que identificasse mais expressividade nestaforma de execução. A análise de todos esses dados permite-nos supor que as mulheres tenham ativaçõescerebrais distintas comparadas aos homens na escuta musical. Estudo com EEG (Flo-res-Gutierrez, Diaz et al. 2009), corrobora essa idéia demonstrando que na audição

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de músicas que suscita emoções agradáveis, são sustentadas por coerência oscilaçõesnos hemisférios esquerdo em ambos os sexos, porém uma rede maior nas mulheres.Os autores ainda comentam que o fato de homens demonstrarem menos diferençassignificativas que as mulheres, podem implicar em um envolvimento mais subcorticalem homens e mais cortical em mulheres. Em outras palavras, é bastante provável queos diferentes gêneros tenham tendência em analisarem a expressividade interpretativamusical utilizando dominantemente, áreas cerebrais distintos.

ConclusãoOs resultados das avaliações do grau de expressividade por ouvintes reforçam par-cialmente a teoria do contágio emocional, pois os grupos com treinamento musicalreconheceram diferença no grau da expressividade entre as execuções técnicas e ex-pressivas dos dois pianistas. Porém uma análise mais detalhada indica que a percep-ção da expressividade é uma questão mais complexa, uma vez que os dados obtidosnesse trabalho indicam que vários outros fatores poderiam influenciá-la. Entre os fa-tores que podem influir na capacidade de percepção expressiva musical estão: trei-namento musical, gênero, personalidade e inteligência emocional. Portanto outrosestudos a respeito da percepção da expressividade musical seriam necessários para omelhor entendimento de quais os fatores poderiam influenciar tal percepção.

AgradecimentosGostaríamos de agradecer a todos os pianistas participantes. Gostaríamos de agradecer tambémaos colegas do Laboratório de Investigação em Epilepsia por apoio em várias situações quepermitiram a realização desse trabalho. Esta pesquisa tem o apoio financeiro da FAPESP.

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PÔSTERES

Tempo de resposta em reconhecimento de padrão de acordes na leitura à primeira vista ao piano

Gabriel [email protected]

Departamento de Música/IA, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Hugo Cézar Palhares [email protected]

Laboratório de Psicologia Cognitiva, Universidade Estadual de São Paulo– USP/RP

ResumoA leitura à primeira vista é uma competência presente em todo o cotidiano musical,sejam para os instrumentistas, regentes, compositores ou professores de música. Deacordo com Udtaisuk (2005), o aprimoramento desta habilidade está diretamente li-gado à capacidade de reconhecimento de padrões, afim de que o músico seja capazde reter o maior número de conteúdos informacionais a cada fixação através de uni-dades estruturais significativas. O objetivo desta pesquisa foi quantificar tempos deresposta motora ao piano no reconhecimento visual à primeira vista de acordes triá-dicos. O teste baseou-se na apresentação de imagens randômicas dentro do grupode amostra de acordes selecionados, notados em pentagrama disposto no centro deuma tela branca. Ao receberam a informação visual do acorde, os sujeitos deveriamexecutar a leitura do acorde ao piano de maneira mais rápida e acurada possível. Osresultados demonstraram um menor tempo de resposta para acordes em estado fun-damental (1327ms), seguido dos de 1ª inversão (1405ms) e, por último, os de 2ª in-versão (1468ms), sendo ainda o tempo de reconhecimento de acordes maiores(1348ms) também inferior do que para acordes menores (1445ms). O tempo de res-posta aumentou progressivamente em relação ao aumento de números de sinais dealteração e detectou-se um tempo menor na leitura de acordes notados com bemóis(1466ms) do que sustenidos (1533ms), no caso de acordes enarmônicos. Dos oitopadrões motores encontrados na digitação pianística, os acordes que apresentaramtodos os três sons em teclas brancas (BBB) tiveram o menor tempo de resposta emseu desempenho (1201ms), enquanto o maior tempo de resposta (1548ms) foi atri-buído aos acordes formados com as teclas preta-preta-branca (PPB). Abordagensquantitativas podem auxiliar o desenvolvimento de metodologias de aprendizagemtanto para a leitura pianística quanto para a leitura à primeira vista.

Palavras-chavetempo de resposta – leitura à primeira vista – notação musical.

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IntroduçãoA leitura à primeira vista é uma competência presente em todo o cotidiano musical,seja para os instrumentistas, regentes, compositores ou professores de música.McPherson (1997) situa a leitura à primeira vista dentre cinco diferentes habilidadesde performance musical: o “tocar de ouvido”, “tocar de memória”, a improvisação, aperformance preparada e a leitura á primeira vista. Entretanto, diversos obstáculosse interpõem à leitura musical de maneira peculiar em relação aos processos de leiturada maioria das outras linguagens. A fluência é o primeiro destes. Culturalmente, ainterpretação dos códigos musicais não se faz presente no aprendizado tanto quantoa interpretação dos códigos fonéticos, por exemplo, e mesmo nos casos em que existeuma aprendizagem musical precoce, não é dado o devido valor à leitura. Diferente-mente ainda da linguagem fonética, na qual os usuários aprendem primeiramente afalar e depois adquirem a habilidade da leitura/escrita, o aprendizado da leitura mu-sical, na maioria dos casos, é concomitante ao aprendizado do instrumento, o que fazcom que em geral instrumentistas tentem memorizar a partitura o mais rápido pos-sível. Outro aspecto relevante refere-se à forma em que ocorre a leitura musical: amaioria das leituras de linguagem é feita em silêncio ou, mesmo quando em voz altararamente existe uma preocupação que vá além de proferir as palavras certas naordem certa. Já na leitura musical, além da captação e interpretação dos códigos,exigi-se do leitor uma resposta complexa com pouco espaço para desvios em tempoe qualidade.Para Mainwaring (1951), o processo cognitivo da leitura deve estruturar-se em trêsestágios: a decodificação dos símbolos musicais (visual), a audição interna dos sons(aural) e, por último, a performance ao instrumento (ação). De acordo com a autora,grande parte das debilidades detectadas na leitura à primeira vista deve-se a falta dereferência aural precedente à performance instrumental. De acordo com McPherson(1997), podemos ainda apontar quatro principais aspectos que influenciam a quali-dade da leitura musical, são elas: tempo de estudo, qualidade de estudo, atividadesde enriquecimento e aprendizado precoce. Tais variáveis atuam no reconhecimentode padrões, sejam aurais visuais ou motores, que instrumentalizam a leitura musicala primeira vista.O mecanismo primário da leitura musical é o movimento dos olhos. A captação deinformações visuais pelos olhos se dá por um mecanismo denominado fixação, emuma série de tomadas sucessivas captadas cada uma por uma duração média de250ms. De acordo com Sloboda (2008), a velocidade dos olhos entre diferentes fixa-ções relaciona-se às necessidades cognitivas do leitor em captar a informação e exe-cutar uma resposta em tempo hábil. Entre uma fixação e outra, o olho move-se numavarredura rápida (cerca de 50ms) sobre a informação visual, processo este conhecidopor movimento sacádico. Embora sejamos capazes de receptar um amplo campo vi-sual instantaneamente, apenas uma pequena parcela pode ser focada a cada fixação,esta região focada da visão recebe o nome de fóvea, e o que não está nesta região, mas

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encontra-se circunscrito na periferia da fóvea é denominado parafóvea. O sistemaocular permite-nos assim armazenar uma série de fragmentos de imagens mentais,ficando a cargo de o cérebro remontar os dados informacionais captados. É na re-montagem dos dados informacionais captados pela visão que o reconhecimento depadrões faz-se importante, afim de que o sistema executivo central possa agrupar omaior número dados captados em um menor número de unidade estruturais possí-veis. O tipo de representação visual adequado aos diferentes modos de estruturaçãomusical influencia, portanto, nos mecanismos da leitura. Uma textura homofônica,por exemplo, geralmente é processada por uma varredura vertical (de cima para baixoou vice e versa) seguida de um deslocamento para a direita e uma nova varredura. Jánuma escrita contrapontística, os mecanismos obviamente seriam outros. A definiçãode uma estratégia geral fica, portanto, a cargo do leitor, que necessita encontrar uni-dades estruturais significativas em fixações sucessivas.A familiaridade com os padrões e conteúdos musicais são componentes essenciaispara a identificação destas unidades estruturais. McKinight (apud Udtaisuk 2005)afirma que o conhecimento de padrões tonais aumenta a habilidade de identificaçãode notas durante o processo de leitura. Estudos realizados com diversos instrumen-tistas (McPherson 1994) demonstraram ainda que o aprendizado musical precocecomo um fator relevante na execução musical à primeira vista, não apenas pelo esta-belecimento de padrões musicais cognitivos, mas também pelo estabelecimento deesquemas motores mais ágeis na resposta ao instrumento. Wristen (2005) tambémafirma que, no caso do piano, a familiaridade com a “geografia” do teclado e o esta-belecimento de padrões motores-digitais são pré-requisitos para a leitura à primeiravista.

ObjetivoO objetivo desta pesquisa foi quantificar o tempo de resposta motora ao piano no re-conhecimento visual à primeira vista de acordes triádicos, ou seja, mensurar o tempode varredura vertical sob variáveis visuais presentes na notação musical.

MetodologiaMaterial

Foram selecionados como material base para esta pesquisa os acordes tríádicos per-feitos, maiores e menores, em seus estados fundamentais, 1ª e 2ª inversão, em posiçãocerrada. Considerando que, na execução pianística, não se difere a posição da mãoem acordes que, por exemplo, utilize apenas as teclas brancas (desde que no mesmoestado), os acordes foram agrupados de acordo com a “forma” de mão. Sendo assim,tem-se a variação de oito grupos: o primeiro com os acordes que utilizassem apenasteclas brancas (BBB); o segundo, terceiro e quarto grupos contêm duas teclas brancase uma preta, sendo esta a segunda (BPB), primeira (PBB) e terceira (BBP) nota doacorde, respectivamente; o quinto, sexto e sétimo grupos apresentam acordes forma-

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dos por duas teclas pretas e uma branca, sendo esta respectivamente a terceira (PPB),segunda (PBP) e primeira (BPP) nota do acorde; por último, o oitavo grupo é formadopor acordes que possuem apenas teclas pretas (PPP). Tendo a incidência de mais deum acorde num mesmo grupo, foi selecionado apenas um destes para a amostragemdo teste.Considerou-se ainda as variações de enarmonia presente nos acordes. Os acordes queapresentassem correspondente enarmônico, que possuíssem como sinais de alteraçãoapenas bemóis ou sustenidos (não considerando nenhum outro tipo de sinal de alte-ração), foram amostrados em seus dois padrões, ou seja, notados com bemóis e comsustenidos.

Tabela 1 — Acordes de amostragem do teste

Participantes Os testes foram realizados com quatro sujeitos, todos eles graduandos em Música,com habilitação em piano, de faixa etária entre 19 e 23 anos, que apresentaram nomínimo sete (07) anos de aprendizagem pianística prévia, todos portadores de visãonormal ou corrigida e sem nenhuma deficiência motora nas mãos.

Procedimentos O teste baseou-se no disparo de imagens de acordes notados em partitura que deve-riam ser tocados instantaneamente pelo pianista-sujeito logo após o aparecimentodeste no monitor. Os acordes foram notados em clave de sol, numa tessitura restritade dó3 a sol#4, permitindo que todos os acordes fossem executados pela mão direita.Os sujeitos foram instruídos a manter a mão direita sobre as teclas, próximas à regiãoda tessitura, em uma postura mais próxima possível do repouso. As imagens dos acor-des foram agrupadas em frames, compostos por um fundo branco e o pentagrama

Acorde Padrão

Fundamental 1ª inversão 2ª inversão Teclado M m M M M M

BBB C Am G/B Em/G F/C Dm/A

BPB D Cm - Bm/D Bb/F -

PBB Bb - E/G# Fb/Ab Gm/Bb - Bm/F#

BBP - Bm Bb/D - A/E Fm/C

E#m/B#

PPB - A#m Bbm

B/D# - G#/D# Ab/Eb

F#m/A

PBP C# Db

C#m Dbm

- Bbm/Db B/F# -

BPP B - Eb/G G#m/B Abm/Cb - Bbm/F

PPP F# Gb

D#m Ebm

F#/A# D#m/F# Ebm/Gb

F#/C# Gb/Db

D#m/A#

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notado no centro da tela, que permaneciam expostos na tela durante três segundos.Entre a apresentação de um frame e outro, o sujeito permanecia por mais três segun-dos exposto a uma tela de fundo branco e, em seguida, era-lhe apresentado uma novaimagem de acorde, selecionada randomicamente dentre a amostragem. A seqüênciade apresentação dos acordes não apresentou nenhuma relação ordenada, sendo prio-ritária a não manutenção (total ou parcial) de notas, tipo de sinal de alteração (sebemol ou sustenido), quantidade de teclas brancas ou pretas no teclado, e o estado(fundamental, 1ª ou 2ª inversão) entre um acorde e outro. Cada imagem de acorde, quando disparada, emitia um pequeno sinal sonoro ende-reçado diretamente ao computador, o que marcava o início da transmissão da infor-mação visual. Todos os testes foram gravados, de modo que, foi possível a mediçãodo tempo de resposta pela diferença de tempo entre o sinal sonoro de disparo da ima-gem e o acorde executado em seguida pelo pianista, ambos registrados na mesmagravação. O teste foi realizado no Laboratório de Multimeios do curso de Música da UFU como auxílio de um computador e um teclado midi conectado ao mesmo. Os pianistas-sujeitos receberam todas as instruções sobre como deveriam proceder, sendo instruí-dos que tocassem todas as notas do acorde requerido simultaneamente, isto é, semarpejos e de forma mais acurada possível. Os acordes que tiveram respostas incorretasforam descartados da amostra de análise.

Resultados Reconhecimento de padrão visual

a) Tipologia de Acordes Na média geral, os acordes maiores tiveram tempo de resposta mais hábil que os acor-des menores, em todas as posições de acorde apresentadas. Acordes no estado fun-damental obtiveram respostas mais rápidas, seguidos dos acordes em 1ª inversão epor último em 2ª inversão.

Figura 1 — Tempo de reação dos sujeitos em relação à tipologia de acordes.

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b) Enarmonia Nos acordes enarmônicos detectou-se uma variação discreta em relação à notaçãodos acordes com bemóis ou com sustenidos.

Figura 2 — Tempo de reação dos sujeitos em relação à enarmonia.

Reconhecimento de padrão motor Os testes indicaram um tempo de resposta mais curto aos acordes que apresentavamapenas teclas brancas (BBB, média = 1201). O nível de tempo de resposta para osacordes com apenas teclas pretas (PPP, média = 1414) teve ainda um índice bem alto,mas este acento não se relaciona ao padrão motor, que é praticamente o mesmo uti-lizado para acordes com apenas teclas brancas, mas está relacionado às dificuldadesno reconhecimento de padrão visual destes acordes, pela quantidade de acidentes dealteração contidos na notação deste. Em padrões heterogêneos, ou seja, que apresentavam teclas brancas e pretas, o tempode resposta foi maior, acentuando-se nos padrões em que a tecla não predominanteestivesse no extremo inferior ou superior do acorde (PPB, BBP e BPP).

Figura 3 — Tempo de reação dos sujeitos em relação ao padrão motor.

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Conclusão Este trabalho visou medir tempo de resposta em diferentes padrões de acordes, ouseja, o tempo de reconhecimento de padrões visuais e a resposta motora adequadano piano, considerando aspectos relevantes de tipologia e estado dos acordes, acordesenarmônicos e formas de mão no teclado como variáveis na medição.Nos resultados encontramos diferenças no tempo de resposta entre acordes perfeitomaiores e menores, como também diferenças entre as disposições dos acordes (estadofundamental, 1ª e 2ª inversões). Os participantes responderam aos acordes maioresem estado fundamental em menor tempo, o que sugere que a simetria do acorde emestado fundamental, isto é, a disposição visual de notas em mesmo espaçamento nopentagrama auxilia na compreensão do acorde como uma unidade estrutural, outrahipótese é que este estado do acorde é mais recorrente na literatura musical ocidental,e conseqüentemente possui um maior nível de referencia aural no processo da leituraà primeira vista.Por serem acordes que apresentam um mesmo resultado sonoro, podemos notar atra-vés dos acordes enarmônicos uma maior facilidade do reconhecimento e execuçãode acordes com bemóis em relação aos mesmos acordes notados com sustenidos. No reconhecimento de padrões motores encontramos uma diferença notadamentemaior entre o tempo de execução entre os padrões de três teclas brancas (BBB) e duasteclas pretas e uma branca (PPB). No primeiro caso, além da ausência dos sinais dealteração, o que facilita o reconhecimento do padrão visual, a disposição mecânicada mão encontra-se em um estado mais próximo do repouso, enquanto no segundocaso o tempo maior de resposta pode estar relacionado à necessidade de deslocamentode eixo do dedo 1 (polegar) em relação ao repouso.

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Memória de curto prazo para melodias: efeito das diferentes escalas musicais

Mariana E Benassi Werke [email protected]

Palavras-chavealça fonológica – teste de amplitude – melodias

IntroduçãoNo modelo de memória operacional a alça fonológica está relacionada ao armazena-mento de itens verbais e acústicos na memória de curto prazo (MCP) (Baddeley 2007).Alguns estudos indicam que a recordação de curto prazo de itens verbais é influen-ciada por conteúdos semânticos pré-armazenados na memória de longo prazo (MLP).Com base nos estudos sobre familiaridade com o idioma (Thorn & Gathercole 1999),pode-se sugerir que a alça fonológica é mais eficaz na manutenção de representaçõesde palavras de idiomas familiares do que de idiomas não-familiares. Assim, é possívelque a MCP para tons também seja influenciada pela familiaridade, isto é, por con-textos musicais pré-estabelecidos na MLP.

ObjetivoVerificar o perfil de armazenamento/manipulação de seqüências de tons através detestes de memória construídos à semelhança do Digit Span Test na ordem direta (OD)e na ordem inversa (OI), comparando tal perfil ao perfil de armazenamento/mani-pulação de material verbal. Utilizando-se o teste de amplitude melódica (“Tone spantest”) construído com base na escala diatônica (mais familiar) e cromática (menosfamiliar), poderíamos verificar se o mesmo padrão que ocorre na recordação de dí-gitos (mais familiar) e pseudopalavras (menos familiar) ocorre também nos testescom estas duas escalas. Se a amplitude na OD do teste na escala diatônica for maiorque na cromática, mas se mantiver baixa na OI, pode-se sugerir que a manipulaçãode seqüências melódicas na memória operacional acontece de forma diferente da ma-nipulação verbal.

Materiais e MétodosDez sujeitos foram submetidos a testes de MCP para dígitos, pseudopalavas e tons.Foi utilizado o Digit Span Test padronizado para o Português (WAIS-III). A partirdeste teste, foi criado um teste de amplitude de pseudopalavras. As pseudopalavrasforam criadas a partir de mudanças de algumas letras que compõem os números e,então, cada dígito do Digit Span Test foi substituído pela sua pseudopalavra corres-pondente. Foram construídos 2 testes de amplitude de tons à semelhança do Digit span test,sendo um deles com base na escala cromática (utilizando-se 12 notas e a primeiranota da oitava seguinte) e o outro com base na escala diatônica (utilizando-se 7 notas

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e a primeira nota da oitava seguinte). O teste na escala cromática foi desdobrado em2 testes. Em um deles, as sequencias de tons tinham intervalos de, no máximo, umaterça; no outro, as seqüencias tinham intervalos livres. O mesmo foi feito para o testena escala diatônica. Assim, foram construídos 4 testes de amplitude de tons:

1) Escala diatônica, intervalos até de uma terça (Teste 7_3); 2) Escala diatônica, intervalos livres (Teste 7_X);3) Escala cromática, intervalos até de uma terça (Teste 7_3);4) Escala cromática, intervalos livres (Teste 7_X).

A idéia da construção destes 4 testes é criar uma gradação de dificuldade, baseando-se na hipótese de a escala diatônica ser mais familiar do que a cromática e, portanto,ostons construídos com base nela seriam mais fáceis de serem recordados. Além disso,intervalos mais próximos são mais comuns e, portanto, devem ser mais fáceis deserem recordados do que intervalos mais distantes. Posteriormente, foi atribuído um dígito para cada tom utilizado nos testes e, assim,4 testes de amplitude de dígitos, pareados aos testes de tons, foram construídos. Os sujeitos foram submetidos a um teste de afinação e, em seguida, foram aplicadosos testes de amplitude de dígitos WAIS-III, de pseudopalavras e de tons e dígitos aná-logos na OD e na OI. Em todos os testes, seqüências crescentes de itens foram apre-sentadas auditivamente. Ao final de cada seqüência, o sujeito deveria repeti-la na ODou OI, conforme avisado antes do teste. A amplitude (span) de cada teste foi o totalde itens contidos na seqüência máxima repetida corretamente.

Resultados e DiscussãoNa OD, a recordação foi maior para dígitos do que para tons nos quatro tipos de testes(p<0,05). Além disso, a amplitude de tons foi maior no teste 7_3 do que nos outrostrês testes (p<0,05). O mesmo padrão foi encontrado para dígitos. Podemos supor apartir destes dados que, como a amplitude dos testes 7_X não foi maior do que a dostestes 12_3 e 12_X, a quantidade de elementos não influenciou a recordação, já quenos testes 12_3 e 12_X havia mais dígitos e mais notas (13 notas e, portanto, 13 dí-gitos).Por outro lado, as amplitudes dos testes feitos na escala diatônica diferiram entre sie esta diferença pode ser atribuída à diferença de salto melódico, pois no teste 7_3 ossaltos melódicos eram menores (mais comuns), do que no teste 7_X onde os saltoseram livres. Nos testes de dígitos análogos encontramos a mesma diferença. Como no teste de dí-gitos 7_3 os dígitos eram mais próximos uns dos outros, poderíamos supor que sejamais fácil armazenar e recordar dígitos que estão mais próximos do que dígitos maisdistantes uns dos outros. Talvez isso ocorra por um possível aumento da ocorrênciade chunks, isto é, de agrupamentos de números formando apenas um item para re-cordar e não vários.

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Na OI observamos o mesmo perfil da OD, sendo que a amplitude de recordação dedígitos foi maior que a de tons (p<0,05) e a amplitude de tons e de dígitos foi maiorno teste 7_3 do que nos outros testes (p<0,05). Porém, as amplitudes de tons na OIforam muito menores que as amplitudes de tons na OD. Para evidenciar esta diferença entre OD e OI dos testes de dígitos e de tons, criamosum Índice, definido deste modo: (amplitude na OD – amplitude na OI) / amplitudena OD.O Índice apontou que a diferença entre OD e OI foi significativamente maior paratons do que para dígitos (p<0,05), isto é, a recordação na OI de tons é significativa-mente menor que a recordação inversa de dígitos. Não houve diferença entre os testesde tons, nem entre os testes de dígitos.Em uma revisão de literatura, aplicamos a fórmula de índice em resultados de testesde amplitude de dígitos em outros idiomas como inglês e espanhol, hebraico e alemão.Os resultados variaram entre 0.09 to 0.26. Neste estudo, os índices de dígitos variaramentre 0,05 (pseudopalavras) e 0,24 (dígitos 12_X). No entanto, um valor diferente foiobtido com Mandarin, um idioma tonal, cujo índice foi 0.48 0.05, resultado seme-lhante aos encontrados nos índices melódicos em nossa pesquisa (0,48 a 0,60). Essasimilaridade indica que a manipulação de tons na memória operacional é mais difícildo que a manipulação de itens puramente verbais, com ou sem significado.

Conclusões1) Em geral, o perfil de recordação tonal é similar ao perfil de recordação verbal,

mas o número de itens lembrados é menor.2) O número de itens recordados no teste de amplitude melódica 7_3 é maior do

que nos outros testes de amplitude.3) A recordação da OI é mais difícil em testes de amplitude melódica (mostrado

pelo Índice).Supomos que o cérebro humano é capaz de manipular vários tipos de materiais me-lódicos, mas, aparentemente, não é capaz de inverter materiais melódicos como écapaz de inverter materiais verbais. Pode-se sugerir, conforme hipótese inicial, que amanipulação de seqüências melódicas na memória operacional se dá de forma dife-rente da manipulação de material verbal.

Referencias BibliográficasBaddeley, A. D. Working memory, thought and action (Oxford: Oxford University Press, 2007).Baddeley, A. D. & Hitch, G. “Working memory”. In G. H. Bower (Ed.), The Psychology of Lear-

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A influência do treinamento musical nos potenciais cognitivosenvolvidos no reconhecimento de alegria e tristeza

em melodias sem palavrasViviane Cristina da [email protected]

Paulo Sérgio [email protected]

Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social e Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, Centro de Ciências Biológicas e da

Saúde, Universidade Presbiteriana Mackenzie

Resumo

Por meio das tecnologias de imageamento cerebral e de investigação eletrofisiológica,pode-se compreender melhor o funcionamento do cérebro ao ouvir música ou exe-cutá-la, sem que sejam necessárias técnicas invasivas de exploração neurológica. Estetrabalho tem como objetivo geral investigar o processamento cerebral de melodiasde conotação alegre ou triste por pessoas com e sem treinamento musical. Participa-rão do estudo 30 adultos, entre 21 e 35 anos, falantes língua portuguesa, divididosem dois grupos: G1, composto por cantores líricos profissionais e G2, por pessoas semformação musical. Os dois grupos serão submetidos a teste composto por melodiascantadas sem palavras, divididas em melodias de conotação alegre e melodias deconotação triste, compostas especialmente para o experimento. Todos os trechosserão cantados em vocalise, seguidos de uma palavra cantada, congruente ou incon-gruente semanticamente ao trecho que a precede. No total, serão apresentados 80excertos musicais, 40 relacionados à alegria e 40 à tristeza. Os participantes terãoque julgar, para cada trecho ouvido, se a palavra cantada ao final do excerto é con-gruente ou incongruente semanticamente em relação à melodia que a precedeu. Seráfeita análise estatística por meio do pacote SPSS Statistics 17.0 ANOVA fatorial, esta-belecendo-se erro =5%. Serão analisados individualmente os potenciais N1 (relacio-nado ao processamento auditivo perceptual), P2 (relacionado a julgamento afetivo eestético), N2 (relacionado a processamento de melodias), N400 (relacionado a in-congruência semântica) e P600 (relacionado a incongruências sintáticas em texto eem música – violação de expectativa harmônica) e sua média para cada grupo. Es-pera-se obter diferenças no tempo de reação para realização da tarefa entre grupos(músicos e controle), além de diferenças no número de acertos dos participantes come sem formação musical. Espera-se obter, ainda, como resultados, diferenças signifi-cativas de amplitude dos potenciais evocados, em especial do potencial N400 (rela-cionado à incongruência semântica) nos dois grupos.

IntroduçãoO estudo da música e suas relações com o cérebro humano tem se beneficiado, re-centemente do uso de tecnologias de imageamento cerebral e de investigação eletro-

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fisiológica (Peretz; Zatorre 2004; Zatorre; Chen; Penhume 2007). Por meio dessas tec-nologias pode-se compreender melhor o funcionamento do cérebro ao ouvir músicaou executá-la, sem que sejam necessárias técnicas invasivas de exploração neurológica.Dentre as tecnologias que se conhece atualmente, a eletroencefalografia tem, comovantagem, o fato de não ser invasiva e apresentar grande precisão temporal (Amodio;Bartholow, no prelo). Sua alta precisão temporal faz com que essa técnica seja degrande valia para o estudo do funcionamento do cérebro enquanto se ouve música,já que a música se desenvolve ao longo do tempo. Estudos com essa técnica têm mos-trado que a música é capaz de evocar potenciais elétricos relacionados a eventos (PE– potenciais evocados) no cérebro semelhantes aos da linguagem (Koelsch et al. 2004).Um exemplo disso é o potencial N400, descoberto inicialmente como resposta a in-congruências semânticas em frases como “fui ao banheiro tomar chá”. O N400 é evo-cado quando há uma palavra incongruente semanticamente ao final de uma frase,tendo menor amplitude quando não há incongruência semântica na frase (“fui aobanheiro tomar banho”) (Kutas; Hillyard 1980; Khateb et al. 2010). Posteriormente,descobriu-se que o N400 poderia ser evocado por meio de incongruências semânticasrelacionadas também a imagens e música (Koelsch et al. 2004; Besson; Macar 1987).Além da relação entre música e linguagem, que ainda está em pleno debate entre pes-quisadores da cognição e psicologia da música, a capacidade da música de evocaremoções é inegável (Koelsch, 2010). Estudos com emoções básicas têm indicado quemesmo pessoas sem conhecimento musical podem compreender emoção em música(Fritz et al. 2009; Scherer; Banse; Wallbott, 2001). Embora haja opiniões diversassobre a capacidade da música de evocar emoções do dia-a-dia, sua relação com aemoção parece ser intrínseca à sua natureza (Peretz; Zatorre 2004; Koelsch 2010;Blood; Zatorre 2001). Teorias sobre música e evolução indicam que a capacidade damúsica de evocar emoções teria sido importante para o desenvolvimento do cérebrohumano que hoje se conhece (Mithen 2009).

ObjetivosObjetivo Geral

Com base no que se sabe a respeito de linguagem, música e emoção, este trabalhotem como objetivo geral investigar o processamento cerebral de melodias de conota-ção alegre ou triste por pessoas com e sem treinamento musical.

Objetivos específicosOs objetivos específicos do trabalho incluem:

1. Investigar, por meio do EEG (eletroencefalografia), os potenciais evocados rela-cionados a eventos (PE) na audição de melodias sem palavras;

2. Investigar a influência do treinamento musical na compreensão semântica e naintegração semântica entre música e palavra;

3. Investigar a correlação entre número de acertos em tarefa de reconhecimento de

90

incongruências semânticas com priming musical seguido de palavra e o treina-mento musical dos participantes;

4. Investigar as relações entre a prosódia musical e a semântica textual; 5. Investigar as relações entre o tempo de reação para a resposta da tarefa proposta

e o nível de experiência musical dos participantes.

MétodoParticipantes

Participarão do estudo trinta adultos, entre 21 e 35 anos, falantes língua portuguesa,divididos em dois grupos. Um grupo será composto por cantores líricos profissionaise outro por pessoas sem formação musical e sem nenhum tipo de atividade regularamadora relacionada à música. Serão excluídos participantes com perda auditiva oucom histórico de problemas neurológicos. Serão excluídos, também, participantescom depressão ou nível de ansiedade muito elevado, o que poderia comprometer aidentificação correta dos trechos musicais apresentados.

Materiais e equipamentos

Trechos musicais e palavrasOs participantes serão submetidos a teste composto por melodias cantadas sem pa-lavras, divididas em melodias de conotação alegre e melodias de conotação triste.Serão utilizadas melodias compostas especialmente para o experimento, sendo se-guidas regras de composição da música ocidental tradicional tonal, sem modulações,sem ambigüidades de tonalidade e com finais conclusivos. Os dois tipos de trechosserão facilmente distinguíveis. Os trechos alegres serão compostos em tons maiores,terão andamento rápido, tessitura aguda, mais pausas e notas de curta duração. Osexcertos com conotação triste serão compostos em modo menor, com andamentolento, notas longas e tessitura grave (Scherer 1995; Peretz; Gagnon; Bouchard 1998;Juslin; Laukka 2003; Bigand et al. 2005). Todos os trechos serão cantados em vocalise,seguidos de uma palavra cantada, que poderá ser congruente ou incongruente se-manticamente com o trecho que a precede. No total, o teste será composto por 80 ex-certos musicais, 40 relacionados à alegria e 40 relacionados à tristeza. As palavrasescolhidas terão relação com alegria ou tristeza e serão distribuídas randomicamenteentre os trechos. Serão utilizadas 4 palavras, 2 relacionadas à alegria e 2 à tristeza.

Equipamento de eletroencefalografiaO experimento será realizado em sala especial com aparelho de Eletroencefalografiade 128 canais da marca Electrical Geodesics, Inc. (EUA) modelo EEG System 300,sendo programado no software E-prime. O registro da atividade encefalográfica serárealizado pelo software NetStation.

ProcedimentoOs participantes serão submetidos a avaliação audiométrica realizada por uma fo-noaudióloga. Caso não tenham perdas auditivas, poderão participar do experimento.

91

Após a audiometria, serão aplicados testes de ansiedade e depressão por meio dos in-ventários BAI e BDI (Beck Anxiety Inventory e Beck Depression Inventory). Os partici-pantes serão levados para sala preparada para o equipamento EEG, onde serãosubmetidos à audição dos trechos e terão que julgar, para cada trecho ouvido, se apalavra cantada ao final do excerto é congruente ou incongruente semanticamenteem relação à melodia que a precedeu. Cada trecho será apresentado duas vezes, po-dendo ser apresentado seguido por uma palavra congruente ou incongruente ao tre-cho semanticamente. Os trechos serão apresentados de maneira randomizada.

Análise de dadosApós as fases de pré-processamento e pós-processamento para eliminação de even-tuais ruídos no sinal do EEG, será feita análise estatística por meio do pacote SPSS Sta-tistics 17.0 ANOVA fatorial, estabelecendo-se erro α=5%. Serão feitas correlações entreos dados comportamentais, tais como tempo de reação e acertos, e os dados eletrofi-siológicos, como amplitude e latência dos potenciais. Serão analisados individual-mente os seguintes potenciais:

1. N1, relacionado ao processamento auditivo perceptual (Neuhaus; Knösche, 2008);2. P2, relacionado a julgamento afetivo e estético (Chen et al. 2008; Müller et al.

2010);3. N2, relacionado a processamento de melodias (Minati et al. 2010);4. N400, relacionado à incongruência semântica (Patel et al. 1998; Besson 1987;

Besson et al. 1998; Koelsch et al. 2004; Patel, 2008; Koelsch et al. 2005; Miranda;Ullman 2009; Bayer; Sommer; Schacht 2010; Daltrozzo; Schön 2009);

5. P600, relacionado a incongruências sintáticas em texto e em música – violaçãode expectativa harmônica (Patel et al. 1998).

Resultados esperadosEspera-se obter diferenças no tempo de reação para realização da tarefa entre grupos(músicos e controle), além de diferenças no número de acertos dos participantes come sem formação musical (Tervaniemi 2009; Bigand; Poulin-Charronat 2006; Schlauget al. 1995; Schlaug et al. 2009). Espera-se obter, ainda, como resultados, diferençassignificativas de amplitude dos potenciais evocados, em especial do potencial N400(relacionado à incongruência semântica) nos dois grupos. O treinamento musical de-veria ter relação com maior destreza na tarefa realizada, traduzida em menor tempode reação para realização da tarefa, além de possível maior amplitude dos potenciaisrelacionados ao processamento de melodias (N2) e ao processamento de incongruên-cias semânticas (N400). No entanto, os dois grupos devem ser capazes de realizar atarefa sem problemas, uma vez que os trechos musicais utilizados são muito simplese claramente distinguíveis em dois grupos (melodias alegres e tristes), mesmo con-siderando-se o ouvido leigo (Bigand & Poulin-Charronat 2006).

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Considerações finaisO trabalho, ainda em andamento, visa compreender melhor as bases neurobiológicasda identificação de conteúdo semântico em música, por meio da análise de compo-nentes eletrofisiológicos do cérebro de pessoas com e sem treinamento musical. Visa,ainda, investigar o papel do treinamento musical na capacidade de integração semân-tica dos sujeitos.

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A percepção de melodia e ritmo nas pessoas com Síndrome de Williams na perspectiva

dos testes de Audição Musical propostos por Edwin GordonHenrique de Carvalho Vivi

[email protected] em Música – Universidade Federal do Paraná

Resumo Esta pesquisa, em fase inicial, tem como objetivo verificar se as pessoas de um grupoespecial são capazes de perceber e discernir aspectos de melodia e ritmo, segundo ateoria musical ocidental, especificamente pelos testes de Audição Musical propostospor Gordon. Os participantes do estudo serão pessoas com a Síndrome de Williams-Beuren, que apresentam uma série de particularidades de origem genética. A deleçãode 26 a 28 genes no par de cromossomos 7 é responsável por um fenótipo peculiardeste grupo, que inclui características na formação de órgãos, características físicas,linhas do rosto marcantes, um quadro cognitivo com várias particularidades, além derespostas a sons, ruídos e à música. Baseado nos estudos mais recentes envolvendoSíndrome de Williams, cognição e música, as pessoas deste grupo apresentam umasensibilidade maior à música, respostas emotivas, ouvem música por mais tempo epodem executar peças cantando ou tocando um instrumento. No campo da percepçãoe cognição musical, será utilizado Sloboda (1985) e Levitin (2006). Na área da Sín-drome de Williams serão utilizados como aportes teóricos, Levitin (2003; 2004; 2005;2006), Bellugi (2005), Sacks (2007), Valtierra (2008), entre outros. A pesquisa traba-lhará com a metodologia experimental, tendo como categorias de análise a percepçãoe a repetição. A pesquisa empírica está em andamento, e a coleta de dados pela ob-servação e análise crítica dos resultados feitos pelos entrevistados.

Palavras-chavesíndrome de Williams-Beuren – educação musical – inclusão

IntroduçãoO processo de cognição e percepção musical é um leque vasto. Segundo as palavrasde Sloboda, os campos “cognitivo […] e afetivo” (1985, p.3) são ativados, pois, umavez que o ouvinte é exposto a um material musical, ele primeiro há de compreendero que está ouvindo; e, segundo, ele aprecia o que ouve. Tais subjetividades em cadafase dependem de cada pessoa, personalidade, humor, etc. Ou seja, cada ouvinte podeperceber e internalizar o som de maneira diferente, bem como os funcionamentoscognitivos podem não ser exatamente os mesmos. Tal processo de percepção podeser válido se aplicado à Educação Musical; como, por exemplo, em avaliações globaisutilizando um repertório de fácil acesso e suas respostas avaliadas em caráter semi-aberto. O processo cognitivo e afetivo em música, propostos por Sloboda, não pode ser con-

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siderado habilidades restritas a pessoas com vivência em música (compositores, es-tudantes, instrumentistas, etc.). Pessoas leigas também possuem tal habilidade, apesarde que com níveis menores de discernimento e exposição, em palavras, do que foipercebido ou apreciado (ibid. 1985, 5). Isso não significa que pessoas leigas não ve-nham a desenvolver tal habilidade, bem como vir a atribuir uma habilidade que anteslhe era desconhecida, ao estudar, apreciar, tocar música, etc. Levitin, por exemplo, le-vanta a questão de que há pessoas com habilidades de ouvido absoluto e não são mu-sicais, pois não têm vivência com música, não tocam um instrumento, ou não sãoestudantes de música (2006, 28); o que pode ser levado como uma premissa que certosparâmetros musicais possam ser discernidos igualmente por pessoas leigas e “musi-cais”.Se todas as pessoas possuem tais habilidades, este artigo mostrará como pode serabordada esta percepção musical em um grupo especial de pessoas com uma disfun-ção cognitiva, que têm a Síndrome de Williams-Beuren. As pessoas com esta sín-drome, além de suas características genéticas, físicas, e parâmetros de fenótiposemelhantes, apresentam algumas características distintas, tais quais: expressão e co-municação; e também sua sensibilidade aos sons, aos quais serão abordadas maisadiante. Independente de suas características auditivas, alguns estudos já obtiveramresultados satisfatórios em laboratório aos quais pessoas podem aproveitar tal carac-terística musicalmente (Levitin 2005, 8). Não confundir tal idéia a um “facilitador”musical que este grupo especial viria a possuir desde nascença; a intenção não é va-lidar que todas as pessoas com Williams terão facilidade para aprender música com-parados a outros grupos de pessoas. Mas, se estas pessoas especiais apresentamcaracterísticas cognitivas, que por suas disfunções genéticas, no cérebro “processaminformações de uma maneira diferente” (ibid. 2005, 514), há de se utilizar estes atri-butos para potencializar qualquer avaliação em música; seja de aprendizagem de ins-trumento, seja de percepção musical, entre vários outros.Este trabalho então visa analisar e comparar, por meio de testes de percepção musicale repetição por execução, as respostas em caráter fechado das pessoas com Síndromee Williams, no intuito de desenvolver e potencializar uma maior vivência com a mú-sica, como meio para inclusão social. Além disso, a pesquisa procurará ser uma fontepara estudos futuros, visto que não há estudos recentes que falam sobre educaçãomusical e Williams no Brasil. Para tal, serão usadas fontes bibliográficas de Sloboda, Gordon e outros autores quetrataram da cognição musical; além de fontes de Williams, Beuren, Levitin, Bellugi,Sacks, Valtierra, Lenhoff e outros no âmbito da Síndrome de Williams. Como o le-vantamento bibliográfico ainda está sendo feito, podem aparecer mais textos de outrosautores que não estão listados aqui e poderão ter bastante importância para a elabo-ração do corpo de texto, ou até mesmo na metodologia utilizada.Este artigo é parte do estudo em andamento, para dissertação de mestrado, envol-vendo percepção musical nas pessoas com Síndrome de Williams. Por tal razão, atéa defesa da dissertação, podem haver alterações ou adições no embasamento teórico,

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bem como na metodologia que será abordada.

Sobre a Síndrome de WilliamsA Síndrome de Williams, também conhecida como Síndrome de Williams-Beuren,foi pela primeira vez diagnosticada pelo cardiologista John C. P. Williams, em 1961,na Nova Zelândia, ao verificar que um grupo de pessoas apresentava característicasfísicas e problemas no coração semelhantes (Williams et. al. 1961, 1317). Mais tarde,em 1962, Alois Beuren, na Alemanha, diagnosticou um grupo de pacientes com asmesmas características (Beuren et al. 1962, 1239). Por esta razão, à síndrome são atri-buídos ambos os nomes. Alguns estudos procuraram verificar a incidência de pessoascom a síndrome, e os números variam de 1 para 7.500 pessoas até 1 para 20.000 pes-soas (Valtierra 2008, 95; Levitin et. al. 2004, 224).Mais tarde, foi verificado que a Síndrome de Williams é de origem genética, decor-rente de um erro de cruzamento de genes durante a mitose, havendo assim a exclusãode 26 a 28 genes no par de cromossomos 7 (ibid. 2008, 95). Vale lembrar que esta ori-gem não é congênita, ou seja, não é resultante de alguma ação na gravidez por parteda mãe ou por algum outro quadro na família. Assim sendo, a Síndrome de Williamsnão distingue cor, raça, sexo, e não há nenhum estudo relacionado à maior incidênciade local. Os genes do par de cromossomos 7 deletados são responsáveis pela produção de al-guns aminoácidos, reconstituição de algumas células, e mais importante, pela pro-dução da elastina. O déficit da produção de elastina pela exclusão destes genes, comoconseqüência, define boa parte do fenótipo comum às pessoas com Síndrome de Wil-liams, como será abordado mais adiante.Apesar de estes estudos terem sidos publicados há aproximadamente cinqüenta anos,os estudos mais aprofundados sobre a Síndrome de Williams, ou SW, são recentes.Com o tempo foi possível realizar diagnósticos mais precisos para identificar se a pes-soa possui ou não Síndrome de Williams. Até hoje, os quadros clínicos nem sempresão base para estes diagnósticos, pois algumas características físicas, psicológicas,cognitivas, etc., podem variar de pessoa para pessoa, pois não há precisões de exata-mente quantos genes são deletados no par de cromossomos 7, ou seja, ele varia de 26a 28 genes. Por variar o número de genes deletados naquela região, os resultados fe-nótipos das pessoas deste grupo também variarão. Porém, ainda faltam estudos paracomprovar tal hipótese. Após alguns anos de estudos, foi possível determinar umamaneira de diagnosticar a síndrome de maneira mais eficiente, que é com o teste doFISH, também chamada de “hibridação fluorescente in situ (fluorescence in situ hy-bridization, Sugayama et. al. 2003, 468). Este teste verifica a seqüência de genes noscromossomos e consegue sondar a ausência do gene da elastina, que é a principal ca-racterística da SW, e tem uma eficácia de aproximadamente 90%.1 De qualquer ma-neira, alguns estudos já identificaram quadros clínicos, e não só oleculares, que

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2 Diagnóstico da Síndrome de Williams , disponível em http://www.swbrasil.org.br

ocorrem na maioria dos casos, como será relatado a seguir.Estudos recentes procuraram associar a SW com a síndrome de um duende.2 Esta as-sociação ocorre porque uma das características das pessoas com SW é ter as linhasde rosto semelhantes a um duende, ou seja, nariz empinado, boca larga, queixo pe-queno, olhos arredondados, além da estatura baixa (Sacks 2007, 303). As pessoas com Williams também apresentam problemas cardiovasculares, apresen-tando a Estenose Aórtica Supra valvar (Supra Valvar Aortic Stenosis). Esta estenose,também chamada de SVAS, acontece em cerca de 75% dos casos das pessoas com Wil-liams, em que há uma anomalia conseqüente dos estreitamentos dos vasos arteriais(Morris 2010, 6). Então, este estreitamento pode causar problemas renais, intestinais,além de pressão arterial constantemente elevada, dificuldades respiratórias e pulmo-nares, entre outros. As pessoas com SW podem também apresentar anormalidades urológicas, em umaumento da freqüência urinária, e problemas endócrinos, incluindo hipercalcemia,hipotireodismo, problemas ortodônticos e diabetes em alguns adultos5. Tambémpodem apresentar estrabismo e íris estreladas, apesar de estes dois últimos não ocor-rerem com tanta freqüência considerando as outras características físicas.As pessoas com a Síndrome de Williams apresentam um atraso motor e uma “defi-ciência intelectual geral ou global” (Sacks 2007, 307). O cérebro das pessoas com SWé relativamente menor, como observado por Sacks, podendo chegar a ser 20% menor(ibid., 314). Vale ressaltar que não é o cérebro todo que é relativamente menor, algu-mas áreas são, já outras têm o tamanho preservado. Ainda não há estudos neuroló-gicos o bastante para revelar exatamente quais áreas são responsáveis por quaisquadros na SW, porém, Levitin et. al. procuraram investigar, por meio de um examede ressonância magnética, se as pessoas deste grupo utilizam partes do cérebro fun-cionando para certas ações aos quais não acontecem em pessoas que não têm SW. Se-gundo os autores, estas pessoas “[…] ainda apresentam oportunidades de cobrir basesde comportamentos cognitivos complexos, e em particular, começar a fazer a ligaçãoentre os genes, neurodesenvolvimento, cognição e comportamento” (Levitin et. al.2005, 514).As pessoas com SW possuem, em sua maioria, uma dificuldade visual-espacial (Val-tierra 2008, 96). Alguns estudos comentam a dificuldade que estas pessoas podemter para representar graficamente, por exemplo, desenhando. Além disso, sua capa-cidade de leitura é limitada, e pode haver uma grande dificuldade ao realizar simplesquestões aritméticas (Bellugi et. al., apud Levitin et. al. 2004, 225). Apesar destas ca-racterísticas, as pessoas com a SW apresentam certas funções visuais bem preservadas.Algumas pessoas conseguem distinguir e reconhecer expressões faciais com muitafacilidade (Valtierra 2008, 96). Este contraste no campo visual espacial é uma das cu-riosidades ao qual este fenótipo complexo se apresenta, e merece mais estudos.

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3 “What is Williams Syndrome?”, disponível em http://www.williams-syndrome.org

Levando em conta os quadros psicológicos e comportamentais, as pessoas com SWem geral são bastante ansiosas (Levitin et. al. 2003, 75). Normalmente possuem umcomportamento hipersocial, são desinibidas, procuram ser bastante comunicativase fazem um bom uso do vocabulário (Sacks 2007, 308-9). Também têm um bom do-mínio da linguagem, se utilizando de palavras, semânticas, sinônimos, etc. de maneiraforte e independente (ibid. 2007, 308). Valtierra procura associar a característica dafalta de inibição ao tamanho relativamente menor da Amídala Cerebelosa (2008, 97),localizada no cérebro e que é responsável por regular a agressividade. Sacks procuraassociar a linguagem e outras funções cognitivas que “[…] podiam, em termos gerais,ser explicadas pelo tamanho avantajado e pelas ricas redes neurais dos lobos tempo-rais” (2007, 314).Alguns estudos sobre SW procuraram associar as pessoas deste grupo e uma anormalrelação com os sons. Esta relação não foi sempre diagnosticada pela comunidadecientífica, e se verifica que os estudos envolvendo SW e sons são recentes. A princípio,esta relação com os sons foi chamado de hiperacusia (em inglês hyperacusis). O termose refere à disposição que o ouvido das pessoas com SW possue de ouvir com maissensibilidade todos sons, ou grupos de sons (Hagerman 1999; Klein, Armstrong,Greer e Brown 1990; Martin, Snodgrass e Cohen 1984; Nigam e Samuel 1994; Udwine Yule, 1991, apud Levitin et. al. 2005). Porém, o termo é vago por não especificarexatamente quais grupos de sons, e se esta sensibilidade é determinada pela freqüên-cia, altura, dinâmica, timbre, etc. Então, verificando a necessidade de aprofundar oconhecimento deste fenótipo, um estudo envolvendo vários indivíduos com SW pro-curou padronizar este quadro. Segundo Levitin et al. (2005, 516), as pessoas podemapresentar:

• Hiperacusia, como uma habilidade de ouvir sons distantes, em freqüências baixas,que um ouvido de uma pessoa que não tem SW não ouviria;

• Odinacusia, como uma sensação de dor e/ou desconforto a certo som;• Alodinia Auditiva, como uma aversão ou medo de um som; e• Fascinação Auditiva, como uma atração ou admiração por um certo som.

Vale lembrar que o que determina estes quadros varia de pessoa para pessoa, suas vi-vências, etc. Estes quadros não são únicos, a pessoa com SW pode apresentar mais deum quadro (ibid. 2005, 519). A origem desta relação ainda não é claramente explicada. O estudo que envolveu aspessoas com SW e o funcionamento do cérebro ao ouvir música pela ressonância mag-nética procuraram dar base a este conhecimento. Ao observar e analisar o cérebrodas pessoas com SW se concluiu que

“[…] os participantes com SW mostraram ativações mais variadas e difusas portodo o cérebro, […] além de fornecer novas e convergentes evidências que a suaorganização neural pode diferir das pessoas ditas normais” 7

O funcionamento neurológico não parece ser também o único elemento que carac-teriza este quadro auditivo das pessoas com SW; lembrando que a elastina é respon-

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sável pela construção de órgãos internos, talvez a construção do ouvido e o aparelhoauditivo das pessoas com SW sejam diferenciados, o que também caracterizaria estequadro auditivo. Porém, não há estudos relacionados a esta área que comprovem estahipótese.Os estudos também procuram ligar estas características das pessoas com SW ao ouvirmúsica. As pessoas com SW tendem a mostrar sensibilidade e expressar sentimentoscomo alegria ou tristeza através da audição de música, além de ter sensações comoaversão, medo ou admiração por certos sons musicais, instrumentos musicais, oupeças inteiras (Levitin et al. 2004, 225-6). As pessoas deste grupo tendem a ouvir mú-sica por mais tempo (ibid. 2003, 74). O mesmo estudo com ressonância magnéticatambém verificou a maior ativação cerebral das pessoas com SW quando foram esti-muladas ao ouvir música (Levitin et al. 2003, 79), e pessoas com SW parecem ter maisinteresse em música (ibid. 2004, p.226)Sacks procura relatar o como as pessoas com SW mostram um interesse em tocar uminstrumento musical ou aprender a cantar músicas em outros idiomas, de outras cul-turas (2007, 310), além de reproduzir padrões musicais com mais facilidade (p. 311).Tal relação pode ser explicada pelo paralelo que a música tem como linguagem, partedo cérebro preservada das pessoas com SW, e são responsivas à música em um nívelemocional (p. 312).Partindo destes dados de SW e música, algumas questões tendem a aparecer. Nemtodas as pessoas com SW são sensíveis à música e mostram um maior interesse porpeças musicais, sons musicais, etc. Não há nenhum dos estudos que indiquem que100% das pessoas com SW sejam musicais. Também, não há nenhuma incidência dehabilidade musical nata, que seja convertido em aprendizagem de um instrumentomusical, etc., ou seja, há casos em que a pessoa com SW procura no canto ou na apren-dizagem de um instrumento musical expressar a sua facilidade com a música, masisso não acontece em todos os casos. Pode haver pessoas com SW que tenham interessepor música, porém, não estejam predispostas a tocar um instrumento musical. Ouainda, pode haver a pessoa com SW que não tenha interesse nenhum por música, ape-sar de apresentar um ou mais de um dos quadros auditivos listados. Também podeacontecer da pessoa que seja diagnosticada com SW e não tenha o quadro auditivopeculiar às pessoas deste grupo. Vale então fazer a reflexão de como é introduzida amúsica na vida das pessoas com SW que possuam os quadros auditivos. Se, em ne-nhum momento, esta pessoa tem exercícios de musicalização, aulas de educação mu-sical, ensino de um instrumento, ela poderá exibir uma facilidade para a música? Neste artigo, a idéia de que em um ensino apropriado de musicalização a pessoa comSW tenha uma ponte para se expressar musicalmente tenha um interesse pela música

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7 “[…] WS parcitipants displayed more variable and diffuse activations throughout the brain,and they showed increased activation in the amygdala and cerebellum, thus providing newand converging evidence that their neural organization may differ from that of normal people”(Levitin et al. 2003, 81).

e seja inclusa em um grupo social. Por isto esta pesquisa também trata de colocar aimportância no caráter inclusivo das pessoas com SW.

Objetivo geralA pesquisa pretende verificar se as pessoas com síndrome de Williams são capazesde perceber, discernir e diferenciar elementos musicais de melodia e ritmo, comoforma de ampliar suas capacidades musicais como meio para a inclusão social.

Objetivos específicosSão objetivos da pesquisa proposta:

• Verificar se as pessoas com Síndrome de Williams são capazes de perceber e dis-cernir aspectos de melodia, segundo a teoria musical ocidental.

• Verificar se as pessoas com Síndrome de Williams são capazes de perceber e dis-cernir aspectos de ritmo, segundo a teoria musical ocidental.

• Analisar a ampliação do universo musical das pessoas com Síndrome de Williams,se utilizando da linguagem não da teoria musical, mas da prática musical, utili-zando instrumentos para coleta de dados adaptados, como caráter inclusivo nasociedade.

MetodologiaPor se adequar à proposta desta pesquisa, a metodologia trabalhada será o métodoexperimental. Segundo Pereira, a descrição e características do método experimentalpodem ser colocadas da seguinte maneira:

“[…] A pesquisa experimental pode ser realizada em “laboratórios pedagó-gico-musicais” ou no “campo”. Na pesquisa de laboratório podem ser estudados edesenvolvidos métodos de ensino através de consultas bibliográficas e informaçõesteóricas. A pesquisa de campo refere-se a experiências conduzidas nas salas deaula, onde podem ser comparados métodos de ensino, ou analisadas reações com-portamentais sob o efeito da música” (Pereira, 1991, p.80)

A interação que é necessária para atingir os objetivos então parte desta comparaçãode dois grupos: um composto das pessoas com Síndrome de Williams, e outro de pes-soas que não possuem a síndrome. Segundo a autora, “Compara-se o rendimento dosdois grupos: o experimental e o de controle. A comparação é essencial em todas asinvestigações científicas” (ibid., 81). A maneira como a pesquisa empírica será apli-cada em campo está sendo definida em mais de uma cidade (Curitiba e São Paulo, ainício), pelo interesse e disponibilidade de pessoas que participarão da coleta de dados,reunidas em uma seleção homogênea. As etapas da pesquisa já estão em fase de aper-feiçoamento sabendo que uma das etapas envolverá a compreensão de melodia e deritmo da música, por exercícios de apreciação e percepção. Uma segunda etapa pro-curará fazer a compreensão dos elementos musicais através de exercícios de repetiçãoe execução, mas a criação poderá ser introduzida nesta etapa. Se necessário, uma ter-ceira etapa procurará avaliar a compreensão dos elementos não só pela execução mu-sical, mas também pelo o que os entrevistados expressarão, afinal, nem toda pessoa

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com Síndrome de Williams é esperada executar plenamente sem erros alguma frasemusical, mas também sua capacidade de expressar com facilidade pode ser uma fer-ramenta auxiliadora na avaliação e análise dos resultados.Para tal, a maneira de investigar e analisar tais objetivos mais adequada é com as Me-didas Primárias de Audição Musical de Gordon. Apesar de publicado a mais de 20anos, e com vários outros tipos de testes musicais recentes, acredita-se que com ostestes tonais e rítmicos se consiga verificar com melhor eficácia os objetivos listados.Além disso, o teste não requer que os entrevistados tenham noções de leitura ou teoriamusical. Para o grupo de pessoas com Williams, isto é vantajoso, visto a dificuldadeque as pessoas deste grupo podem ter com leituras e noções espaciais decorrentes desuas características cognitivas.O teste de Gordon não será aplicado em sua totalidade, bem como os materiais utili-zados deverão ser adaptados. O teste não foi originalmente concebido para abordaras pessoas com qualquer necessidade especial, bem como, pessoas com deficiênciaintelectual. Exatamente quais adaptações serão feitas sem prejudicar a eficácia doteste e sua análise estão em andamento. A opção por adaptar o teste é baseado nosestudos de Levitin e Bellugi (1998) que optaram por adequar partes do teste verifi-cando certas discrepâncias que poderiam aparecer se tivesse aplicado em sua totali-dade. Por exemplo, o teste rítmico não foi feito após o teste tonal, e a fonte sonoranão foi via CD em aparelho, visto as características das pessoas com Williams empossuir déficits na atenção e poderiam não responder de acordo.

Categorias de análiseAs categorias de análise serão a apreciação, percepção e execução, havendo uma ên-fase maior na percepção, pois ela é crucial para a execução acontecer com eficácia.Então o planejamento na pesquisa empírica terá que ser guiada por estes eixos nor-teadores.Nesta pesquisa, serão adotadas as definições de melodia e ritmo segundo as caracte-rísticas do som na música, ao qual são definidas por MED da seguinte maneira: “Me-lodia, como um conjunto de sons dispostos em ordem sucessiva (concepçãohorizontal da música), […] Ritmo como ordem e proporção em que estão dispostosos sons que constituem a melodia e a harmonia.” (1996, 11). Então, estes elementosestão intricados com características do som, sejam elas vibrações regulares ou irre-gulares, como altura e duração.Harmonia e timbre não serão abordados nesta pesquisa, pelo fato de que incluir esteselementos na avaliação iria demandar uma análise muito mais extensa e resultadospodem apresentar variabilidades ou discrepâncias que não auxiliariam no objetivogeral. Ainda não há estudos envolvendo qual elemento musical a pessoa com Sín-drome de Williams consegue perceber melhor, porém, esta pesquisa pode ajudar es-tudos futuros.As entrevistas e atividades envolvidas neste processo está em planejamento. Um es-tudo procurou aplicar testes para pessoas com Williams utilizando as “Medidas Pri-

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márias de Audição Musical” de Gordon (Don et al., apud Levitin et al. 2004, 225),mas os resultados não foram os esperados, pois o teste não foi criado para este grupo,e sim para pessoas que não possuem Síndrome de Williams. Então, uma atividadepadrão ou testes padrões poderiam prejudicar os resultados, e conseqüentemente, osobjetivos da pesquisa. Porém, é importante destacar que as atividades serão planeja-das e introduzidas após o domínio da etapa anterior pela Síndrome de Williams.Instrumentos de coleta de dados para os testes também estão em desenvolvimento,pois a pesquisa bibliográfica mais aprofundada trará melhores diretrizes para a pes-quisa de campo, e assim, ter uma melhor abordagem. O que se têm como indicadoressão testes envolvendo a percepção musical utilizando repertório já existente (e nãofragmentos sonoros), e o discernimento de caráter distinto se baseando apenas pormúsica neste grupo especial (com repostas de caráter semi-aberto e também por vi-sualizações do problema a ser resolvido). Com os resultados da amostra, análise econclusão esperam-se chegar os indicadores estabelecidos nos objetivos específicos,e conseqüentemente, validar o objetivo geral.

Grupo participanteO grupo escolhido para esta pesquisa são pessoas diagnosticadas com Síndrome deWilliams, adolescentes com idade entre 12 a 19 anos. A faixa etária escolhida nãoprecede nenhum estudo ao qual diriam que nesta idade a percepção ou respostasserão mais eficazes, afinal, os estudos neste sentido são limitados. Alguns estudos co-mentam sobre o como a idade das pessoas com Síndrome de Williams não altera suacaracterística cognitiva (Levitin et al. 2004, 233; Valtierra, 2008, 96). Apesar disso,um estudo anterior utilizando pessoas com Síndrome de Williams no Brasil e per-cepção de produtos sonoros revelou maior atenção e respostas mais precisas por partedos entrevistados que já eram adolescentes ou estava na fase adulta (Vivi 2007, 25). Além disto, o grupo será selecionado por pessoas que não tiveram aulas prévias demúsica ou musicalização. Por acreditar que as pessoas que já tenham tido, ou estejamfreqüentando uma aula de música ou musicalização iria influenciar uma resposta aoselementos que poderiam não ser genuínas, ao filtrar estas pessoas, a pesquisa mos-traria resultados mais satisfatórios para análise. Este fato é colocado em voga quandose trata de discutir se as pessoas com Williams possuem uma facilidade para músicano Brasil.

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a mente e a produção das artes musicais

Uma improvisação guiada por uma partitura, como uma mente,segundo os seis critérios do processo mental propostos

por Gregory BatesonDaniel Puig

[email protected] Curricular de Música, Colégio de Aplicação da UFRJ

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO

ResumoA partir dos seis critérios do processo mental, propostos por Gregory Bateson, procurodemonstrar que um grupo de músicos improvisando a partir de uma partitura podeser considerado como uma mente em si mesmo. Contextualizando as contribuiçõesdesse autor, parto para uma análise detalhada dos critérios, procurando sumarizarseus pressupostos ao propor que este tipo de estruturação seja possível. Aplico, então,os critérios a uma situação imaginada, considerando: suas partes, a interação entreelas, o ponto por onde flui energia colateral para o sistema, sua cadeia circular dedeterminação e as transformações que ocorrem em seu interior, para, por fim, revelaruma hierarquia de tipos lógicos imanente a ela.

Acerca de Gregory BatesonGregory Bateson figura entre os iniciadores do campo transdisciplinar hoje conhecidocomo “visão sistêmica” ou Teoria dos Sistemas. Essa abordagem sofreu influênciasda Cibernética, Teoria da Catástrofe, Teoria do Caos e dos estudos de Sistemas Com-plexos e Adaptivos. A Allgemeine Systemtheorie de Ludwig von Bertalanffy é geral-mente reconhecida como seu início. Entre outros expoentes, encontramos: GeoffreyVickers, Margaret Mead, Norbert Wiener, Warren McCulloch, Stafford Beer, Hum-berto Maturana, Francisco Varela, Edgar Morin, Fritjof Capra, Ilya Prigogine, JamesLovelock e Mary Catherine Bateson. Das disciplinas que tem recebido suas contri-buições, destacam-se a Biologia, Epistemologia, Engenharia, Etnologia, Filosofia, In-formática, Literatura, Lógica, Matemática, Pedagogia, Psicologia, Psiquiatria, Robótica,Semiótica e Sociologia.De maneira geral, pensadores com uma visão sistêmica (Ramage e Shipp 2009) cre-ditam partes significativas da base de suas abordagens às contribuições de Bateson— biólogo e antropólogo de formação —, cujo trabalho caracterizou-se por envolvere inaugurar novas perspectivas em diversas áreas do conhecimento. Stanislav Grof(1981), psiquiatra de origem tcheca que conviveu com Bateson em seus últimos anosde vida, lembra:

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Apesar do fato de ter se envolvido profundamente em muitas áreas diferentes, elepermanecia um livre-pensador em todas elas. Via sua tarefa como um generalista,como sendo a de mover-se entre as disciplinas e nas suas interfaces e procurarlinguagens para conectá-las. Seu trabalho é uma mistura muito original, combi-nando antropologia, psicologia, psiquiatria, cibernética, teoria da informação ede sistemas, lógica, psicologia animal e teoria evolucionária.

E, ainda:Não há dúvida de que suas contribuições representam um quadro conceitualabrangente, altamente original e extremamente útil. As dificuldades que algumaspessoas tinham em entender suas palestras ou seus escritos pode ser explicadapela originalidade e o escopo de suas contribuições. Sua visão do universo, enten-dimento da realidade e filosofia da ciência eram drasticamente diferentes do pen-samento dominante. Muitas de suas contribuições, portanto, só faziam sentidono contexto do trabalho de toda sua vida e não podiam ser adicionadas facilmenteàs teorias e ao conhecimento científico existentes.

Gregory Bateson nasceu em Grantchester (Reino Unido), em 9 de maio de 1904, emorreu em São Francisco (EUA), em 4 de julho de 1980. Começou seu trabalho cien-tífico na Papua Nova Guiné, onde estudou diferentes tribos autóctones. Essa pesquisaresultou no livro Naven (Bateson 1958 e 2006), no qual delineou o conceito de esquis-mogênese (schismogenesis). O uso desse conceito é hoje corrente na etnomusicologiaa partir do trabalho de Steven Feld (1995) acerca da sua ocorrência nas músicas po-pulares, inclusive brasileiras. O resultado mais importante das pesquisas de Batesonna área do Pacífico foi a publicação, em conjunto com sua primeira esposa, MargaretMead, de Balinese Character: A Photographic Analysis (Bateson e Mead 1942), cujarepercussão, como a primeira pesquisa antropológica a fazer uso sistemático de filmese fotografias para a aquisição de dados etnográficos e comunicação de resultados, es-tende-se até hoje.Nos anos seguintes, Bateson dedicou-se extensivamente à pesquisa da comunicaçãoentre humanos e animais. Suas conclusões foram importantes para sua compreensãoacerca da mente, com a utilização da teoria dos tipos lógicos, emprestada do trabalhode Bertrand Russell, e do conceito de metalinguagem, de Benjamin Lee Whorf. Maistarde, com base também nessas pesquisas, trouxe seu método etnográfico para o es-tudo da esquizofrenia (Levy e Rappaport 1982), desenvolvendo o conceito de duplo-vínculo (double-bind), uma das mais importantes contribuições para a modernapsiquiatria. Em 1972 publicou Steps to an Echology of Mind (Bateson 2000), onde ex-plorou a base de sua visão sistêmica em uma coleção de ensaios em antropologia, psi-quiatria, evolução e epistemologia. Em 1979, Mind and Nature: A Necessary Unity(Bateson 2002) desenvolveu essa visão e lançou diversos conceitos importantes, in-cluindo sua lista de seis critérios do processo mental e os princípios do seu métodode análise conhecido como dupla descrição (double description). Depois de sua morte,Angels Fear: Towards an Epistemology of the Sacred (Bateson e Bateson 2005) foi edi-tado a partir dos manuscritos por sua primeira filha, Mary Catherine Bateson (co-au tora de alguns de seus livros), e lançado em 1987, desenvolvendo suas idéias acercada arte, da religião e do sagrado dentro de uma perspectiva sistêmica. Recentemente,

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estudos desenvolvidos no campo da Biosemiótica (Hoffmeyer 2008), contando coma colaboração de Mary Catherine, revisitaram suas idéias sob a luz de conceitos sur-gidos nas últimas décadas e colocaram suas contribuições ainda sob nova perspec-tiva.

Os seis critérios do processo mentalUma das principais contribuições de Bateson para a Epistemologia é o seu conceitoacerca da mente. A partir de uma lista de seis critérios, expande a noção comum desta,que a vê restrita ao corpo humano. Tal lista, exposta em “Mind And Nature”, leva Ba-teson (2002, 85, grifos do autor (g.a.)) a afirmar que “se qualquer agregado de fenô-menos, qualquer sistema, satisfizer todos os critérios listados, direi sem hesitação queesse agregado é uma mente”. Segundo ele, sua abordagem está sujeita à validade daidéia de que este tipo de estruturação da epistemologia, da evolução e da epigênese épossível. Bateson sugere que o problema mente-corpo, como desenvolvido em Des-cartes, por exemplo, pode ser resolvido por uma argumentação nesta linha de pen-samento e que “os fenômenos que chamamos de pensamento, evolução, ecologia, vida,aprendizagem, e outros desse mesmo tipo, ocorrem unicamente em sistemas que sa-tisfazem estes critérios” (Bateson 2002, 86, g.a.).Esta idéia acerca dos processos mentais aproxima-se em muito do funcionamentoque gostaria de ver em minha música, na qual lido com questões da imprevisibilidadee, paralelamente, da identidade da obra. Não hesito em dizer, como compositor, que,se for possível, através de critérios desta natureza, estabelecer um parâmetro que seaproxime de algo orgânico, com características estéticas dessa ordem, então esta abor-dagem me interessa. Acredito que neste caminho possa estar uma questão pertinenteà estética atual da música de concerto, que poderá vir a estabelecer um caminho in-teressante para se lidar com a metalinguagem em música. Em especial, parece-meque isto interessa à composição musical que lida com a interação entre diferentes lin-guagens artísticas.Por outro lado, é evidente sua aproximação à abordagem de sistemas complexos,quando fala de cadeias circulares de determinação e do funcionamento não-linearde processos que acontecem no mundo biológico. Sua aplicação à composição musicalpoderá vir a interessar àquela que lida, em especial: com modelos evolucionários;com sistemas complexos e estocásticos; com a determinação de microestruturas; coma utilização de modelos complexos na construção de algoritmos com aplicação mu-sical; e, em última análise, com a Teoria dos Conjuntos.Tentando, portanto, aplicar estas idéias à composição musical, exponho a seguir alista dos seis critérios do processo mental construída por Bateson (2002, 85-86, g.a.),para depois esclarecer alguns de seus conceitos:

1. Uma mente é um agregado de partes ou componentes em interação.2. A interação entre as partes da mente é disparada pela diferença, e a diferença é

um fenômeno não-substancial, não-localizado no espaço ou no tempo; a dife-rença está relacionada à neguentropia e à entropia, em lugar de à energia.

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3. O processo mental requer energia colateral.4. O processo mental requer cadeias circulares (ou mais complexas) de determinação.5. No processo mental, os efeitos da diferença devem ser considerados como transfor-

mações (isto é, versões codificadas) dos eventos que os precederam. As regras dessastransformações devem ser comparativamente estáveis (isto é, mais estáveis queo conteúdo), mas estão elas mesmas sujeitas à transformação.

6. A descrição e classificação desses processos de transformação revela uma hierarquiade tipos lógicos imanente ao fenômeno.

Considerando a listaInicialmente, Bateson procura estabelecer que uma mente será sempre formada porpartes menores. Para ele, não pode haver processo mental se não houver interaçãoentre partes diferentes de um sistema. As partes de uma mente podem funcionarcomo submentes, desde que preencham em si mesmas todos os critérios.O próximo conceito importante é o de diferença:

. . . para o universo material, devemos poder falar comumente que a “causa” deum evento é uma força ou impacto exercido sobre alguma parte do sistema mate-rial por uma outra parte qualquer. Uma parte age sobre uma outra parte. Em con-traste, no mundo das idéias, necessita-se de uma relação, entre duas partes ouentre uma parte no instante 1 e a mesma parte no instante 2, para ativar um ter-ceiro componente que podemos chamar de receptor. Aquilo a que o receptor (porexemplo, um órgão sensório final) responde é uma diferença ou uma mudança(Bateson 2002, 89, g.a.).

Ele entende que “a diferença que ocorre ao longo do tempo, é o que chamamos de‘mudança’” (Bateson 2000, 458) e que toda percepção de diferenças está baseada napercepção de relações. Dentro desse contexto, frisa ainda três aspectos característicosda diferença: sendo do campo das relações, pode ser considerada como não estandolocalizada no espaço ou no tempo, isto é, não-substancial e sem dimensão; sua natu-reza é qualitativa e não quantitativa; e ela está relacionada ao par neguentropia-en-tropia, ao invés de à energia.Entende ainda, que a “informação consiste em diferenças que fazem diferença” (Ba-teson 2002, 92, g.a.). Aqui, é importante destacar a hierarquia de tipos lógicos exis-tente nesta proposição, da qual Bateson sempre se utiliza para explicar as relaçõesexistentes entre mensagens e metamensagens. Sua adoção parte do problema clássicodos paradoxos lógicos. Um paradoxo lógico é uma afirmativa que comporta duas in-terpretações válidas, porém contraditórias entre si. Paradoxos deste tipo impõe umproblema a uma teoria logicamente estruturada, uma vez que podem colocar porterra sua validade. Este problema também estava expresso claramente na Teoria dosConjuntos, à época em que chamou a atenção do filósofo Bertrand Russell. Se imagi-narmos um conjunto que contenha todos os conjuntos possíveis, ele contém ou nãocontém a si mesmo? Obviamente, se ele não contiver a si mesmo, não contém todosos conjuntos possíveis, e se contiver a si mesmo, ele não contém o conjunto resultante

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disso, não sendo o conjunto de todos os conjuntos. A solução para este paradoxo en-contrada por Russell e seu colega Whitehead — que desenvolveram a Teoria dos TiposLógicos, utilizada em larga escala na Matemática e na Filosofia —, consiste em per-ceber que a proposição do paradoxo representa um erro de tipificação lógica. A classeé de um tipo lógico superior ao de seus membros e não está sujeita às mesmas injun-ções que estes. O conjunto de todos os conjuntos é uma classe, a classe dos conjuntos,e não pode ser confundida como um membro de si mesma. Bateson se utiliza nestafrase da mesma palavra — diferença(s) — para se referir a diferenças de tipos lógicosdistintos. A diferença que é percebida como informação, está para as outras diferenças,assim como a classe está para seus membros.No terceiro critério, Bateson fala de energia colateral. Exemplificando o que entendepor este conceito, coloca a si mesmo como sujeito e descreve o ato de abrir uma tor-neira:

Quando abro a torneira, meu trabalho em girar a torneira não empurra ou puxao fluxo de água. Esse trabalho é feito por bombas ou pela gravidade, cuja força éliberada pela minha ação de abrir a torneira. Eu, em “controle” da torneira, sou

“permissivo” ou “restritivo”; o fluxo da água é energizado por outras fontes. Eu de-termino parcialmente quais caminhos a água irá tomar, se ela vier a fluir. (Bateson2002, p.95)

Isso equivale a dizer que um processo mental irá necessitar de algum tipo de interaçãocom outros sistemas, para que seja mantida sua existência. Desta maneira, também,Bateson foca o entendimento na relação entre os sistemas, ou seja, na qualidade dainteração entre eles.Seguindo adiante, enfatiza que cadeias circulares de determinação podem descrevermais acuradamente os processos mentais. Argumenta que a lógica é um modelo pobrepara descrever causa e efeito. E demonstra que, ao desconsiderarmos o fator tempoem certos tipos de seqüências de causa e efeito, terminamos com respostas auto-con-traditórias, paradoxos. Um exemplo claro é o circuito do “buzzer” (zumbidor), que émontado de maneira a que uma peça de metal esteja posicionada próxima a um ele-troimã, sem tocá-lo. Essa peça funciona ao mesmo tempo como contato, para a pas-sagem de energia elétrica que irá ativar o eletroimã. Ao ser ligada a corrente elétrica,o eletroimã é ativado e atrai a peça de metal para si. Ao atraí-la, o contato é desfeitoe o circuito é quebrado. A corrente pára de chegar ao eletroimã e este pára de funcio-nar. Conseqüentemente, a peça de metal volta a seu lugar original. Em seu lugar ori-ginal, ela faz contato e fecha o circuito, colocando o eletroimã novamente emfuncionamento. Assim, o ciclo se repete enquanto a corrente estiver ligada, gerandouma oscilação, um zumbido. Ao se desligar a corrente elétrica, o sistema pára de fun-cionar. Ou seja (cf. Bateson 2002, 55):

Se o contato é feito, então o eletroimã é ativado.Se o eletroimã é ativado, então o contato é quebrado.Se o contato é quebrado, então o eletroimã é desativado.Se o eletroimã é desativado, então o contato é feito.

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Esta sequência está correta e completa, do ponto de vista da causalidade, porém, sea transpusermos para o mundo da lógica, resulta um paradoxo:

Se o contato é feito, então é quebrado.

“O se . . . então da causalidade contém temporalidade, mas o se . . . então da lógica éatemporal. Segue que a lógica é um modelo incompleto de causalidade” (Bateson2002, 55, g.a.). Por outro lado, cadeias circulares de determinação possuem, atravésdo mecanismo de retroalimentação, a capacidade de fazer com que a informação sejacarregada por todo o sistema, vindo a influenciar novamente, após passar pelos outroscomponentes da cadeia, o seu ponto de origem. Tal funcionamento acarreta meca-nismos de auto-regulação no sistema. Seu estudo, como Bateson atesta (2002, 96),tem origem na Cibernética e na análise que Norbert Wiener fez acerca da máquina avapor com mecanismo de auto-regulação de James Watt (séc. XVIII). Bateson demons-tra, então, que todos os critérios para a existência de uma mente que ele apresentaaté este ponto combinam-se para explicar os mecanismos de auto-correção e auto-organização presentes em seres vivos. E conclui que “a organização de coisas vivasdepende de cadeias circulares ou mais complexas de determinação” (Bateson 2002,96).A partir daqui, passa a argumentar que os efeitos da diferença devem ser consideradoscomo transformações ou versões codificadas dos eventos que os precederam: “. . . emtodo pensamento ou percepção ou comunicação acerca da percepção, há uma trans-formação, uma codificação, entre o relato e aquilo sobre o qual se relata” (Bateson2002, 27). Bateson argumenta que as regras para essas transformações estão elas mes-mas sujeitas à transformação, mas são invariavelmente mais estáveis que o conteúdo.Aprofundando esse entendimento, recorre à noção de tipos lógicos, que já expus an-teriormente, e ao conceito de metacomunicação. Este último estabelece que existemmensagens que definem o contexto para outras mensagens, ou seja, metamensagens.A metamensagem classifica as mensagens, ou seja, determina a que classe de men-sagens elas pertencem. Na metacomunicação, a interpretação de mensagens dependeintrinsecamente da interpretação da metamensagem. Sem o contexto estabelecidopela metamensagem, as mensagens subordinadas a ela perdem seu significado.Bateson encerra seus critérios enfatizando que a descrição e a classificação dos pro-cessos de transformação pelos quais os efeitos da diferença passam em um determi-nado processo mental, revela uma hierarquia de tipos lógicos imanente a essefenômeno. Tentarei aplicar esta noção acerca da mente a uma situação musical muitocomum, que aparece em diferentes culturas e nos mais diversos contextos composi-cionais, procurando revelar uma hierarquia de tipos lógicos imanente a ela.

Um grupo de músicos improvisando a partir de uma partituraÉ importante destacar, que na situação imaginária que me propus, não falo de umaidéia limitada de partitura. Olhando a partitura de um ponto de vista mais abrangente,distanciado da definição historicamente construída, para acercar-me de uma que olha

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para sua finalidade mais geral, posso pensar nela como: um mapa para a performancede uma peça musical específica.Tal mapa pode ser apresentado de diversas formas: como uma partitura tradicional(p.ex., Lontano, Ligeti), uma partitura gráfica (p.ex., December 1952, Brown), umtexto (p.ex., Aus den Sieben Tagen, Stockhausen), etc. Indo para além da música deconcerto ocidental, posso considerar que uma idéia tradicional de como deve se de-senvolver uma determinada peça musical, também pode ser vista como um mapapara a sua performance. Seria o caso de: um raga indiano, um tipo estabelecido deimprovisação no jazz, etc. Para fins deste trabalho, também é importante ressaltarque esse mapa é sempre a criação de um outro sistema, com seus processos mentais.Vale ressaltar também, que para Bateson o problema da delimitação de uma menteindividual depende sempre intrinsecamente do fenômeno que pretendemos entenderou explicar (Bateson 2000, 464). Ao olharmos para um fenômeno com característicasmentais, nossa descrição passará a envolver o circuito em que as diferenças viajampelo sistema e:

Nossa explicação (para determinadas finalidades) irá rodar e rodar dentro dessecircuito. Por princípio, se se quer explicar ou entender qualquer coisa em com-portamento humano, sempre se estará lidando com circuitos totalizados, circuitoscompletos. Este é o pensamento cibernético elementar.O sistema cibernético elementar, com suas mensagens em circuito é, de fato, aunidade mais simples de uma mente; e a transformação de uma diferença viajandoem um circuito, é a idéia elementar. Sistemas mais complicados talvez mereçammais serem chamados de sistemas mentais, porém, essencialmente, é disto queestamos falando. (. . .)(. . .) A maneira de delinear o sistema é desenhar a linha limítrofe de tal modo quenão se corte nenhuma dessas vias de uma forma que deixe as coisas inexplicáveis.(. . .) E adicionalmente (. . .), penso que é necessário incluir as partes relevantes da me-mória e de “bancos” de dados. Afinal de contas, pode-se dizer que o circuito ci-bernético mais simples tem memória de um tipo dinâmico — baseado não emarmazenamento estático, mas na circulação da informação dentro do circuito (Ba-teson 2000, 465).

Sendo assim, aterei minha descrição às interações entre os músicos do grupo de im-provisadores e destes com a partitura que os guia. Não incluirei os aspectos das inte-rações dos músicos com a platéia, com o espaço de apresentação, etc. Este recorte dofenômeno se mostra adequado para minha análise tomando por base o pensamentode Bateson.Em minha situação imaginária, um grupo, com um número qualquer de músicos,improvisa em conjunto, em qualquer estilo e com qualquer tipo de instrumento. Segueuma partitura que guia a improvisação. Os músicos estão instruídos a responder demaneira musical ao material sonoro trazido à improvisação. Logo que iniciam, estãoouvindo uns aos outros, respondendo àquilo que os outros tocam e trazendo materialnovo ao conjunto, inspirados pelo que a partitura sugere ou solicita. Este tipo de in-

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teração implica em ouvir o resultado da improvisação do grupo e abstrair do todoidéias musicais que faça sentido seguir. Estas devem ressoar na idéia pessoal do quedeve ser tocado naquele contexto específico e, ao mesmo tempo, estar de acordo comos limites colocados pela partitura. Os músicos ouvem atentamente e tocam com rigor,ao mesmo tempo; ou seja, há uma intensa e refinada atividade mental e física, comtodo tipo de atenção presente. Próximo a um limite anteriormente combinado, a im-provisação termina.O que estou descrevendo aqui são os processos de transformação que ocorrem na im-provisação guiada por uma partitura. Minha opção é por uma descrição geral, queenglobe diferentes possibilidades de grupos e situações, evitando me ater, proposita-damente, a detalhes estilísticos, de gênero, etnomusicais, técnicos, etc. Obviamente,os argumentos aqui colocados devem poder ser aplicados a casos específicos, quelevem em conta os aspectos deixados de lado em minha observação ou não poderãoatestar sua validade e utilidade.

Como a situação satisfaz a todos os critériosA partir de agora vou tentar mostrar como a situação descrita satisfaz a todos os cri-térios do processo mental propostos por Bateson.1. Uma mente é um agregado de partes ou componentes em interação.Esta mente é formada pelos músicos e a partitura. Os músicos devem ser vistos comosubmentes do processo mental que abrange também a partitura. Este conjunto so-mente irá formar um agregado e interagir, satisfazendo o critério para que seja vistocomo uma mente, durante o ato de improvisar.2. A interação entre as partes da mente é disparada pela diferença.Para Bateson a “informação consiste em diferenças que fazem diferença”. Depois deimergir na atenção necessária para improvisar, cada um segue “uma idéia musicalque faz sentido seguir” (cf. p.9), ou seja, uma informação. As diferenças que vão cons-tituir essa informação disparam a interação existente entre os componentes do grupoe destes com a partitura, naquele momento. Como enfatizado por Bateson, minhadescrição já dá voltas pelo circuito em que as diferenças viajam pelo sistema.3. O processo mental requer energia colateral.Esta talvez seja a conclusão mais importante deste trabalho e foi crucial para meuentendimento da situação como uma mente: a partitura é a fonte de energia colateraldo sistema. Ela funciona como o fluxo de água na metáfora de Bateson, pois traz paradentro do sistema as mensagens de um outro processo mental, independente dele.4. O processo mental requer cadeias circulares (ou mais complexas) de determinação.Analisando a situação do ponto de vista que me propus, ou seja, atendo-me “às inte-rações entre os músicos do grupo de improvisadores e destes com a partitura que osguia” (cf. p.8), vejo uma cadeia circular de determinação presente em minha descrição,com os seguintes elos:

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acessar o resultado musical total;validar as idéias musicais pela partitura;contribuir para o resultado musical total.

Se qualquer um dos elos acima for retirado do processo, a cadeia será quebrada e aintegridade da improvisação guiada por uma partitura, comprometida. O sistematerá dificuldades em funcionar como uma mente ou não funcionará no todo. Paraconstatar que a improvisação não funcionaria como esperado, basta retirar uma daslinhas acima. Esta cadeia circular carrega a informação obtida de um elo ao outro,por todo o sistema. Sua recursividade é a responsável pela auto-regulação dinâmicado sistema, ou seja, faz emergir padrões. Esses padrões identificarão uma improvi-sação específica, como entidade musical obtida no tempo e no espaço, por sua sono-ridade característica. Vemos aqui em ação, também, e de forma determinante paratodo o processo, o tipo de memória dinâmica a que Bateson se refere, a partir da cir-culação da informação dentro do circuito.5. No processo mental, os efeitos da diferença devem ser considerados comotransformações (isto é, versões codificadas) dos eventos que os precederam.Uma vez observado que a informação é carregada de um elo a outro da cadeia, possoassumir que é nas relações entre eles que as transformações dos efeitos da diferençase dão. Sendo assim, temos um tipo de transformação associada a cada elo. É impor-tante lembrar a abordagem dinâmica das regras destas transformações, proposta porBateson no próprio critério (cf. p.4): elas mesmas estão sujeitas a transformações du-rante o processo, embora permaneçam comparativamente mais estáveis que o con-teúdo que por elas passa.6. A descrição e classificação desses processos de transformação revela uma hierarquia de tipos lógicos imanente ao fenômeno.Minha descrição e classificação limita-se aos fluxos de mensagens que se dão durantea improvisação em si, enquanto ela existe no tempo e no espaço. Trata-se da delimi-tação de uma mente e, portanto, procuro separar o fenômeno de tudo o que o envolvesem sacrificar sua explicação e seu entendimento (cf. p.8-9). Não se trata, de formaalguma, de uma descrição descontextualizada, que possa ser aplicada indiscrimina-damente a todas as instâncias em que estas palavras venham a surgir como símbolosde uma ação (verbos). Poderia-se até dizer, e enfatizar, que a escolha destas palavrasem detrimento de outras é pessoal e arbitrária. O que importa mais é o conteúdo des-crito, o tipo de transformação ou codificação analisada.

AcessarAcessar o resultado musical total da improvisação implica em uma codificação: abs-trair do todo idéias musicais que faça sentido seguir. Isto é o mesmo que destacar asdiferenças que fazem diferença, procurar por informação. Há uma diferença entreaquilo que soa de fato, o resultado musical total, e aquilo que é obtido como infor-mação, e é isto que queremos descrever com este processo de transformação. A cada

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momento, novas partes da informação são desprezadas e outras enfatizadas, segundotodo o processo mental em jogo. Esta transformação tem um intuito, uma finalidadedirecionada, pois parte de outras mensagens anteriores e procura por aquilo que fazsentido. O uso consciente do verbo acessar, deixa aberta a possibilidade de que a per-cepção musical se dê também através de outros sentidos, além da audição, e de outrostipos de percepção que englobam diversos sentidos (p.ex., uma percepção musicaldo gesto corporal).

ValidarA atividade de validar as idéias musicais com as quais se está lidando a partir dos pa-râmetros estabelecidos pela partitura funciona algo como um filtro: coloca sobre otodo acessado uma nova injunção, que o compara aos parâmetros que a partitura es-tabelece para o que é possível ser executado; envolve uma compreensão dos objetivosmusicais e poéticos expressados na partitura; funciona sempre em relação ao tododa improvisação; e leva em conta diferentes níveis de anseio de expressão artística doexecutante no decorrer da improvisação, bem como a forma como identifica sua par-ticipação individual no grupo. Ela se dá dentro de certos limites, colocados na própriapartitura e no contexto no qual ela se insere, e é parte do mecanismo responsável pelaauto-regulação do sistema.

ContribuirAquilo que foi acessado e validado torna-se agora energia materializada e é isto quedefine esta transformação. Através de ações musculares, o processo mental torna-seenergia presente em forma de som, gesto, etc.; torna-se diferença para a percepção,passível de ser acessada. Ou seja, o resultado musical total é renovado e fecha-se acadeia circular de determinação. Como o entendimento de um processo mental develevar em conta o tempo, percebemos que, ao contribuir, cada parte está comunicandomensagens que desvelam a forma como as transformações se deram em seu interior.Estas mensagens interagem no tempo umas com as outras e interinfluenciam-se,criando significados. A única mensagem que está acima de todas elas, regulando seufuncionamento e relações, é a da partitura.Revela-se, assim, uma hierarquia de tipos lógicos imanente ao fênomeno, ou seja, quedele não pode ser separada. Nela, a partitura, como ponto por onde flui a energia co-lateral advinda de outro sistema, é de tipo lógico superior às outras mensagens, defi-nindo seu contexto e classificando-as. Estando em uma classe superior, ela não estásujeita às mesmas injunções que as outras mensagens e pode ser identificada comouma metamensagem. De fato, toda e qualquer improvisação feita a partir de uma de-terminada partitura poderá ser identificada como pertencente à classe de improvi-sações ligadas a ela. As especificidades de cada improvisação levada a cabo, no tempoe no espaço, não tornarão inválida essa condição. Quanto melhor for a qualidade dasinterações dentro do processo mental que envolve os músicos e a partitura, mais bemdefinida estará sua identidade como obra artística.

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Conclusão e possíveis desenvolvimentosTomando por base os argumentos apresentados aqui, parece-me claro que posso con-siderar um grupo de músicos improvisando a partir de uma partitura, como sendouma mente em si mesmo. Todos os critérios propostos por Gregory Bateson foramsatisfeitos pela situação apresentada e só me resta lembrar suas palavras: “se qualqueragregado de fenômenos, qualquer sistema, satisfizer todos os critérios listados, direisem hesitação que esse agregado é uma mente”.Um estudo aprofundado do papel da partitura como ponto por onde flui a energiacolateral para o sistema e das características que contribuem para a definição da iden-tidade musical buscada pelos processos mentais do compositor, expressados atravésdela, pode ser de grande valia para a composição que se utiliza de partituras para aimprovisação guiada. Por outro lado, suponho que o caminho aberto para a análiseda partitura como metamensagem e do fluxo de mensagens em uma improvisaçãocomo a que foi descrita aqui, possa vir a esclarecer aspectos da interação entre a mú-sica e outras linguagens artísticas.

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Ciclo Portinari: um estudo sobre experiências multissensoriaisnas práticas interpretativas

Sheila Regiane [email protected]

mestre em música – ia/unesp

Resumo Este estudo propôs analisar a ocorrência de experiências multissensoriais nas práticasinterpretativas utilizando como objeto de estudo o Ciclo de Portinari, um conjunto deoito canções para vozes femininas (soprano e mezzo soprano) e piano, do compositorJoão Guilherme Ripper (1959-), com textos por Cândido Portinari (1903-1962). Con-siderando a interação entre os textos literário e musical, típica do gênero “canção”, eas relações sensoriais decorrentes da escuta e interpretação musicais diante de apro-ximações com as artes visuais verificadas no estudo, a intenção foi investigar o tra-tamento musical que o compositor deu aos textos do artista, identificar os elementosmusicais utilizados para reforçar o sentido do texto e revelar possíveis contribuiçõespara a interpretação musical na transmissão desses elementos ao público, por meiode leituras e análises dos textos literários, visuais e musicais, demonstrando a ocor-rência de experiências multissensoriais justificadas por conceitos de interdisciplinari-dade e/ou sinestesia.

Palavras-chavecanção – interdisciplinaridade – sinestesia

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Introdução: apresentação do tema, objetivos e método

Tornam-se cada vez mais freqüentes relatos de ouvintes, estudantes de música e atéde músicos profissionais sobre experiências sonoras envolvendo a prática musical.Chamamos de multissensorial aquela experiência sonora que envolve outros órgãosdos sentidos, não apenas a audição. A ocorrência de sons coloridos, sons com formas diferentes e intensidades luminosassugerem capacidades neurocerebrais importantes que geram vivências muito parti-culares e definidas como subjetivas e individuais.A possibilidade da ocorrência de experiências multissensoriais é reforçada pela idéiade que escuta e/ou apreciação musicais evocam na memória, seja do ouvinte ou dointérprete, imagens e sensações. E então os órgãos dos sentidos se comunicam parafavorecer esta percepção. Sendo assim, compositores e artistas, em suas diversas produções podem levar os in-divíduos que apreciam suas obras a tais experiências, de maneira intencional ou não,apenas pela forma como tratam os elementos fundamentais de seus trabalhos. A interação entre os elementos verbais e não verbais de uma canção, por exemplo, jános daria uma imensa gama de sugestões para experiências multissensoriais. Aindamais, quando um compositor faz uso de textos com grande potencial imagético é pos-sível alcançar uma experiência na qual seja presente a interrelação entre som e ima-gem, música e arte visual, canção e poesia. Diante de tantas associações e interações é que o Ciclo Portinari, de João GuilhermeRipper, obra composta de oito canções para vozes femininas (soprano e mezzo so-prano) e piano, escrita especialmente para as comemorações do centenário de Can-dido Portinari, no ano de 2003, foi utilizada neste estudo.Observando-se o objeto de estudo em questão, por meio da escuta musical, pode-seapreender algo de extramusical presente na composição, algo que ultrapassa a fron-teira do puramente musical para sugerir imagens e sensações. O compositor em ques-tão fez uso de textos produzidos pelo eminente artista ítalo-brasileiro adotandoelementos de linguagem musical, tanto nas linhas vocais quanto na linha pianística,ressaltando as sugestões imagéticas do texto literário, no sentido de alcançar o públicode maneira multissensorial.O objetivo do estudo foi identificar quais elementos verbais (texto literário) e não ver-bais (artes visuais e música) presentes na obra confirmam esta idéia; quais as possíveisrelações entre os elementos de linguagem verbal e linguagem musical; quais trata-mentos musicais, forma e estrutura, foram dados pelo compositor; e ainda, como ainterpretação musical pode favorecer ou reforçar essas possíveis sugestões imagéticasao comunicar estes elementos ao público. É preciso considerar o papel do intérprete como uma atividade de grande relevância:ele não apenas interpreta um texto musical, expressivo e dotado de características

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próprias, definidas pelo contexto histórico, mas também atua e traz à realidade sen-timentos e sensações impressas num texto verbal, construindo relações imagéticaspor meio dos sons, as quais podem provocar nos ouvintes reações diversas, seja elecantor ou pianista, em se tratando de canção. Neste sentido, o texto enquanto imagemliterária é uma motivação para o compositor e desencadeia o processo criativo.Nas palavras de Ripper:

(…) minhas canções têm textos próprios ou de outros poetas. O poema tem queme mover para que eu crie a música ou o processo fica inverso: crio a música evou buscar as palavras que lhe sejam próprias. No final, o resultado tem que ser omesmo: uma estreita relação entre música e texto. O mesmo se dá com o acom-panhamento, que nunca tem um papel subjacente e por isso, tem que interagircom o (a) cantor(a) no mesmo plano sonoro. O piano comenta o texto cantadocomo um outro personagem, reforçando ou contradizendo a mensagem. Geral-mente minhas texturas pianísticas são homofônicas e contrapontísticas ao mesmotempo. Há, assim, outras vozes que devem ser ressaltadas pelo pianista. Natural-mente, cabe ao cantor ou à cantora a veiculação do texto, da melodia. (Entrevistaconcedida por Ripper, em 06 de maio de 2007).

E ao identificar, por meio da análise, os elementos de linguagem verbal e de linguagemmusical presentes na obra, verificou-se a possibilidade da multissensorialidade, bemcomo um elo musical entre as artes musicais e as artes visuais proposto pelo compo-sitor. Para compreender tal elo entre a obra musical e as artes visuais, no sentido de oferecermeios de compreensão do repertório musical em questão, no qual a interpretaçãofuncione como um intensificador dessa relação foram utilizados conceitos como in-terdisciplinaridade e sinestesia.Por interdisciplinaridade entende-se a relação de reciprocidade entre os diversos cam-pos de conhecimento, na qual essa interação proporciona uma compreensão maisglobalizada e abrangente do conhecimento humano (Fazenda 2003, 75). Já Sinestesiaé o nome geralmente dado para dois conjuntos (ou “complexos”) de estados cognitivosrelacionados (Robertson e Sagiv 2004, 12). Entende-se como sendo um fenômenoneurológico em que os sentidos se comunicam para perceber uma mesma manifes-tação.Neste trabalho, a sinestesia pode ser compreendida tanto do ponto de vista ar-tístico, aproximando-se da interdisciplinaridade, como pelo aspecto neurológico.Assim sendo, há um eixo filosófico que sustenta esta idéia, baseada na fenomenologiade Merleau-Ponty, pois para o filósofo todos somos sinestésicos. Segundo a pesqui-sadora Yara Casnok,

Longe da idéia de lidar com a unidade do múltiplo, com a solidariedade dos órgãosque regulam o equilíbrio e asseguram o funcionamento do todo, como faz a ciência(corpo/máquina ou corpo/sistema), a fenomenologia propõe pensar a sinestesiaa partir da totalidade do vivido. Ao mesmo tempo, o objeto não é percebido comoum produto da síntese, na qual as equilavências sensoriais tenham sido efetuadas:ele se oferece como uno, antes de ser submetido ao exame dos vários sentidos. Acoisa deve sua unidade ao seu pertencimento à camada original do sensível, antes

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que se definam as diversas qualidades que solicitarão os diferentes sentidos (2003,128-129).

Desta maneira, investigando a interrelação entre as artes e entendendo a interpretaçãoenquanto meio de expressão, leitura e vivência do objeto artístico, promove-se a cons-trução de saberes significativos para o meio acadêmico, buscando a apreciação mu-sical em diferentes níveis sensíveis. Neste sentido, o método empregado neste estudo foi baseado no levantamento bi-bliográfico de trabalhos já realizados sobre o assunto que possibilitaram o aprofun-damento das idéias propostas e estudos analíticos a respeito do objeto de estudorealizados por meio da leitura da obra, contexto histórico no qual se insere a produçãoe sua interpretação.

Resultados alcançados

1. Interrelações entre as linguagens artísticas.Ao analisar o Ciclo Portinari em seus elementos no sentido de ressaltar neles a ocor-rência de experiência multissensorial, pode-se observar que o texto literário possuium potencial imagético, referindo-se a descrições de cenas ou narrativas que remetemàs memórias do autor e descrições estas que correspondem às mesmas que dão vidaàs suas pinturas e desenhos, em suas cores e luzes. Portanto, está presente a relaçãoentre o texto literário e os trabalhos de artes visuais produzidos pelo mesmo, comopode-se verificar, por exemplo, no trecho a seguir:

As viagens de trem foram as melhores.Olhando as árvores, as casas, os animais eOs fios telegráficos, ia sonhando.As paisagens e seus habitantesVistos dali pareciam contentes…Tudo endomingado. Apreciava oRuído do trem. Nas paradas, nasPequenas estações, lá estavam osMendigos, cegos ou sem perna, osMeninos apregoando alguma coisa e asFilhas do chefe vendendo café emUma janela. Mocinhas nascidasAli, ansiosas por respirar outrosAres. Tristes mas esperançosas.Talvez seus sonhos se realizassem…O sonho era um príncipe. Ele nãoViria. Elas seriam logradas, masEra bom morrerSonhando com o príncipe.

(“O menino e o povoado”, Poemas Portinari, 21.)

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No texto musical, por sua vez, o compositor faz uso de determinados elementos queacabam reforçando este potencial imagético presente no texto, tais como forma, quesegue a do próprio texto literário; padrões rítmicos que dão a idéia de movimento ourelaxamento e por vezes descrevem meios de locomoção e efeitos, tessituras que de-signam o próprio espaço e seus planos, a distância e a proximidade entre o enunciadore o ouvinte, centros tonais variados para indicar mudanças de ambientes ou cenas,tempo presente ou passado, timbres (vocais e pianístico) para acentuar ou discriminarmomentos específicos na obra. Tais idéias sugerem a existência de possíveis associações entre imagem e som, bemcomo a percepção simultânea destas por meio dos sentidos, sejam essas associaçõesestimuladas, intencionais ou involuntárias no processo de estudo e apreciação do fe-nômeno artístico, qualquer que seja ele. Como exemplos, temos:

Figura 1 – As viagens de trem. Compassos 1-3.

Figura 2 – As viagens de trem. Compassos 6-9.

Associações como estas já haviam sido enumeradas no século II, e foram intensa-mente realizadas por artistas plásticos, poetas e músicos dos séculos XIX e XX quevêem como produto uma obra que propicia uma experiência ou apreciação multis-sensorial. Segundo Jorge Antunes,

A associação entre som e cor é uma tendência humana cuja evidência se manifestadesde há muito tempo. Assim, enquanto em Pintura se fala de tom, timbre, har-monia, — expressões tiradas da Música — nesta se fala de cromatismo, coloratura,

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Piano

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colorido (orquestral) — termos próprios à Pintura (Antunes 1982, 9). 47Artistas como Wassily Kandinsky (1866-1944), Arnold Schoenberg (1874-1951), Ale-xander Scriabin (1871-1915) e Nicolai Rismky-Korsakoff (1844- 1908), entre outros,procuraram em seus trabalhos essa associação ou proximidade entre as linguagensartísticas, especialmente as artes visuais e as musicais. Eles eram estudiosos destasmanifestações artísticas por acreditarem numa idéia de arte global/monumental ouainda no conceito de arte total (Gesamtkunstwerk), bem como na reciprocidade deseus conteúdos e conceitos na qual todos os sentidos fossem estimulados e solicita-dos.Muitas foram as formas de aproximação entre as linguagens artísticas e a asso-ciação entre sons, cores e até mesmo cheiros. Desde a simples atribuição de cores àsobras de grandes compositores até o desenvolvimento de instrumentos de cores es-tabelecendo relação entre as freqüências do som, timbres e cores, o uso de termoscomuns às artes visuais e à música (forma, movimento, ritmo, cromatismo, tonali-dade) para justificar ou fundamentar uma obra abstrata, por exemplo, ou ainda, comoa música inspirava a pintura e vice-versa.Segundo Bosseur,

Conduzidos por um impulso espiritual que visava uma espécie de retorno à uni-dade original da criação artística, pintores e músicos foram levados, particular-mente a partir do período romântico, a recusar a separação das artes, julgadaarbitrária, e a interrogar-se sobre a analogia das sensações visuais e sonoras. Estaaspiração responde à concepção de obras polissensoriais ou exprime-se na vontadede uma fusão entre várias práticas a fim de chegar à obra de arte integral (Bosseur1998, 9-10).22

As discussões sobre obra de arte total na qual a integração de várias linguagens ar-tísticas seja um ideal a ser atingido como forma de expressão integral do indivíduo,podem gerar entendimentos vários sobre a necessidade ou não de uma fusão entreas artes, bem como o reconhecimento das especificidades que cada linguagem trazconsigo. Para Kandinsky, “cada arte ao se aprofundar fecha-se em si mesma e separa-se. Mascompara-se às outras artes, e a identidade de suas tendências profundas as leva devolta à unidade.” (Kandinsky 2000, 59) Com isso ele defende a identidade da lingua-gem artística de forma que nenhuma pode tomar o lugar da outra, propondo a uniãodelas com o desejo de ver surgir a verdadeira arte monumental, bem como diversasformas de apreciação.Diante disso, na busca por essa combinação das funções sensoriais nas artes, não hácomo se falar numa padronização de experiências, uma vez que em cada período his-tórico, as várias teorias tentaram explicar e justificar os processos perceptivos na cria-ção e apreciação de uma obra.Além disso, essa experiência multissensorial dependerá do repertório imagético e so-noro que cada receptor possui, bem como das vivências e experiências que ele trazconsigo e que definem sua capacidade perceptiva sobre as coisas.Numa abordagem fenomenológica podemos citar Merleau-Ponty que nos diz:

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Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visãominha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nãopoderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vi-vido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seusentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência domundo da qual ela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais omesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela éuma determinação ou uma explicação dele (Merleau-Ponty 1999, 3-4).

Em outras palavras, a relação do espectador com a obra será marcada pela percepçãoque o mesmo possui a respeito desta obra, pela unidade entre os sentidos que interligao espectador ao mundo e o mundo ao espectador, considerando suas vivências e co-nhecimentos obtidos, e construindo novos conhecimentos.

2. Interrelação por interdisciplinaridadePor interdisciplinaridade, etmologicamente e por justaposição, podemos entendercomo sendo relação entre disciplinas (inter + disciplinaridade). Porém, o conceito ébem mais amplo e advém da idéia de disciplina como conjunto de conhecimentos es-pecíficos sobre algo, guardando características próprias em matéria de ensino, for-mação, métodos e materiais. Ao pensar as linguagens artísticas como disciplinasdistintas, evocamos conceitos de codisciplinaridade nos quais um conjunto de con-cepções nos permite unificar o conhecimento das diversas disciplinas mantendo aoriginalidade de cada uma delas (Pombo 1994, 92).Sendo assim, enquanto disciplinas, as artes visuais, competentes para expressar tudoquanto relativo ao “visual”, e a música para expressar o “sonoro”, mesmo sendo recí-procas, mantém suas características próprias permitindo a interrelação entre seuselementos fundamentais e a conseqüente produção de novos conhecimentos, basea-dos nos fenômenos perceptivos respectivos a esta relação. Para este tipo de atividade disciplinar, do ponto de vista da exploração científica, dá-se o nome de interdisciplinaridade. Segundo Olga Pombo, o prefixo inter indica nãoapenas pluralidade, justaposição mas também um espaço comum de coesão dos sa-beres, o que supõe abertura de pensamento na busca por novos conhecimentos frutosdessa coesão. (Pombo 1994, 93). É, de acordo com vários teóricos, o intercâmbiomútuo e integração existente entre as disciplinas, propiciando um enriquecimentorecíproco. A interdisciplinaridade elabora uma síntese de métodos e aplicações, bus-cando um conhecimento novo advindo dessa coesão.Sendo assim, as linguagens artísticas encontram um lugar para o confronto e a inte-gração de seus conteúdos, no qual o indivíduo atua na obtenção de um conhecimentoespecificamente novo sobre algo, especialmente a obra de arte, resultado da fruição,da reflexão e compreensão da experiência vivida. Esse lugar é o da interdisciplinari-dade: uma compreensão mais ampla nos vários setores do conhecimento. Nesse sen-tido, as linguagens artísticas são também, além de disciplinas, expressão ecomunicação estabelecidas entre um emissor que é o autor, o intérprete e o receptorque é o leitor/ouvinte/espectador.

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Os artistas do século XX que transitavam entre os vários meios de manifestação ar-tística, sejam pintores, escritores ou músicos, no desejo de produzir novos conheci-mentos sobre a interrelação destas disciplinas, buscaram experimentar as formas deassociação entre sons e cores, não apenas com o objetivo multissensorial, mas pelanecessidade de transpor os limites formais e estéticos da produção artística, numaintegração entre as linguagens que lhes eram comuns.E mesmo quando a experiência multissensorial não foi o objetivo central de uma pro-dução artística, a interrelação entre as linguagens artísticas ocorreu pela intenção dosartistas em produzir obras de arte que utilizavam elementos das diversas manifesta-ções de arte. Isso demonstra que se assim o fazem, fazem por meio de uma ação in-terdisciplinar, no qual os conteúdos dessas linguagens foram utilizados para romperconceitos e transpor limites, criando uma arte libertária e transformadora, tanto parao criador quando para o indivíduo espectador. Em se tratando do Ciclo Portinari, havendo elementos de linguagens artísticas diver-sas, fundidos numa mesma obra, há também a possibilidade do surgimento de novasconcepções no que se refere ao momento da apreciação e da leitura, justificando asvariadas experiências multissensoriais. Diante disso, tal experiência, pretendida ou não numa determinada obra de arte éplenamente possível se justificada pela ação interdisciplinar na qual o indivíduo dia-loga com o autor, com as diversas formas de compreensão desta mesma obra, va-lendo-se dos conhecimentos que várias disciplinas possam oferecer. Também omomento da criação é interdisciplinar se o artista utiliza conhecimentos de outraslinguagens para realizar a sua obra de arte que se torna o objeto de fruição peloleitor/ouvinte/espectador. E por último, o intérprete, após realizar sua leitura da obrade arte, também comunica sua experiência numa ação interdisciplinar e a partilhacom o receptor.

3. Interrelação por sinestesia Ao buscar uma compreensão para o que seja experiência multissensorial observa-seque ela se apresenta como uma experiência em que vários sentidos são solicitadose/ou estimulados. E sendo assim, esse tipo de experiência pode ocorrer em todo tra-balho artístico que se utiliza das diversas linguagens relacionadas a cada um dos sen-tidos, como os trabalhos que se enquadram no conceito de obra de arte total, porexemplo, justificados pela ação interdisciplinar, como já exposto. Nestes casos há umaunião de várias linguagens, sem que percam suas qualidades, na expectativa da mul-tissensorialidade.Porém, há um tipo específico de experiência multissensorial no qual um fenômenoperceptível por um determinado sentido se faz perceptível por meio de outro sentido,também. Ou seja, há uma colaboração entre os sentidos na percepção de algo, invo-luntária e simultaneamente, de forma aditiva e não excludente. Para isto se dá o nomede sinestesia. Termo de origem grega significa união de sensações (sin= união + aes-thesis = sensação).

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A sinestesia, numa abordagem neurofisiológica, é descrita por alguns estudiosos,como Simon Baron-Cohen, como sendo uma disfunção neurológica (Robertson eNoam 2004, 6), o que justificaria a utilização de uma terminologia médica quase de-preciativa, como os termos “padecer”, “desequilíbrio”. Por outros, é considerada apenasuma propriedade ou habilidade cerebral no qual um sentido evoca a função de outro,na percepção de um mesmo fenômeno e que está presente em todos desde o nasci-mento, manifestando-se na fase adulta em apenas uma porção da população, aquelaque admite ser portadora, cerca de 0.05%, segundo Noam Sagiv (2005, 3).A psiquiatra Daphne Maurer acredita que as conexões cerebrais no desenvolvimentocognitivo ocorridas nos primeiros três meses de vida do recém nascido são manifes-tações sinestésicas e que, portanto, todos os indivíduos vivem experiências sinestési-cas. No que concordam outros pesquisadores, porém demonstrando que muitosperdem essa propriedade com o tempo (Maurer apud Baron-Cohen 1997, 225).Segundo Vilayanur Ramachandran (2003, 52-53), pesquisador da Universidade daCalifórnia no Departamento de Psicologia e Ciência Cognitiva, a razão pela qual a si-nestesia ocorre, do ponto de vista neurofisiológico, é explicada pelo resultado da ati-vação cruzada nas várias regiões do cérebro, pela sua proximidade, ocorrendo oentrecruzamento das conexões cerebrais, bem como das funções sensoriais. Ainda de acordo com Noam Sagiv, a compreensão da sinestesia abrange e facilita oentendimento do funcionamento normal de aspectos importantes da cognição hu-mana, como a percepção, a atenção, a memória e o pensamento, entre outros. Se-gundo Sagiv,

No contexto da ciência cognitiva, a compreensão da sinestesia envolve não só do-cumentar o fenômeno, mas também perguntar-nos o que ele nos diz sobre a cog-nição normal. Deve estar claro já agora que a sinestesia dis respeito a muitosaspectos importantes da cognição humana: percepção e atenção, consciência, me-mória e aprendizagem, linguagem e pensamento e, finalmente, desenvolvimento(Sagiv 2005, 5).

Também o pesquisador Sean Day, enquanto sinesteta, que estuda o fenômeno e man-tém uma lista de sinestetas no mundo todo, catalogou mais de 60 tipos de sinestesiaque combinam dois ou mais sentidos (in http://home.comcast.net/~sean.day/html/types.htm).Algumas características mais comuns da sinestesia são, por exemplo, o caráter gené-tico e, em geral, a manifestação em vários membros de uma só família. A sinestesiaé automática e involuntária. Também não pode ser aprendida e, normalmente, é du-rável e permanente sendo ligada à memória e às emoções. Ela é projetada e sentidano entorno corporal. Os sinestetas podem também apresentar uma memória superioraos demais e, em alguns casos, dificuldades no raciocínio matemático e na orientaçãoespacial. E ainda, a sinestesia pode ser congênita ou adquirida, provocada por pato-logias e acidentes cerebrais ou ainda ocorrer por efeito do uso de drogas e substânciasalucinógenas (Basbaum 2002, 32).Em se tratando destas características convém expor a série de abordagens e classifi-

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cações a que o termo é submetido. Segundo o pesquisador Sérgio Basbaum, as abor-dagens mais comuns a respeito do termo são: a) as de caráter neurológico que consi-dera a sinestesia constitutiva ou patológica e as discussões perceptivas das associaçõesde modalidades sensórias; b) as do ponto de vista artístico e todas as tentativas, desdeo Renascimento até o momento presente, visando à combinação dos diversos sentidosna apreciação das obras de arte; c) as dos próprios depoimentos de sinestetas, sejamnatos ou pelo uso de substâncias psicoativas; d) a sinestesia como figura de linguagem(2002, 25-26).Basbaum também cita a classificação proposta por Baron-Cohen e Harrison na qualexistem duas categorias distintas, a sinestesia e a pseudo-sinestesia. A sinestesia incluios casos de sinestesia constitutiva que é aquela em o indivíduo nasce com ela e de ca-ráter neurológico; a sinestesia adquirida por disfunção neurológica de caráter pato-lógico e a sinestesia em conseqüência do uso de substâncias psicoativas. Comopseudo-sinestesia seriam compreendidas a metáfora sinestésica na qual os trabalhosde arte possuem signos relativos a outra modalidade sensória, e a associação na quala sinestesia é treinada e influenciada culturalmente. Esta categoria poderia se apro-ximar do conceito de interdisciplinaridade, verificada a fusão de informações e con-teúdos (2002, 27).Na fenomenologia de Merleau-Ponty as sensações e a percepção são postulados fun-damentais e por meio deles é possível a compreensão na existência e na comunhãoentre os indivíduos e o mundo, para a construção do conhecimento e da consciênciadas coisas. Segundo Casnok a “sensação e o sentir são uma modalidade da existência e nãopodem, por isso, se separar do mundo”. Para ela,

No sentir, não há diferença entre sensação e percepção. A sensação não é um pri-meiro estágio da percepção, um ato inaugural do conhecimento e ela não procedede atos de uma consciência da qual o analista pode desembaraçar os fios inten-cionais — ela pertence ao mesmo tempo ao sentiente (aquele que sente) e ao sen-tido, ao corpo e ao mundo (2003, 123).

Seguindo a máxima de Merleau-Ponty, de que “o visível é o que se apreende com osolhos, o sensível é o que aprende pelos sentidos” (1999, 28), ao considerar o sensível,verifica-se que os órgãos dos sentidos e suas funções são vistos como uma modalidadede ligação entre o indivíduo e o mundo, na qual um sentido solicita o outro.Sendo assim, o sensível constitui os sentidos e ao se admitir a unidade do sentir, todospodemos ser sinestésicos. De acordo com Casnok,

Se se admite uma unidade primordial do sentir e uma indiferenciação tambémprimordial do sensível, o termo sinestesia perde sua função restritiva de qualificarapenas alguns seres humanos dotados dessa capacidade: para a fenomenologia,todos somos potencial e ontologicamente sinestésicos (2003, p. 128).

É por isso que as experiências do indivíduo no mundo, enquanto ser e em relação àscoisas e ao mundo, são valorizadas. Nestes termos, a experiência multissensorial seriainerente ao indivíduo, sendo justificada por meio da sinestesia, tanto como fenômeno

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neurológico, respeitando-se a capacidade individual determinante para experiênciasabsolutamente diferenciadas e involuntárias, quanto no sentido filosófico que justificaa abordagem artística, aproximando-se do conceito de interdisciplinaridade, seja qualfor a acepção que o termo sinestesia assuma.Diante destes dados e segundo informações disponíveis no sítio eletrônico mantidopor Sean Day (http://home.comcast.net/~sean.day/html/types.htm), compositorescomo Rimsky-Korsakov, Amy Beach, Jean Sibelius e Olivier Messiaen seriam consi-derados sinestetas por suas experiências e o desenvolvimento de métodos ou instru-mentos musicais com finalidades sinestésicas. Outros seriam consideradospseudo-sinestetas, como Kandinsky, Paul Klee e Scriabin por realizarem associaçõesentre som e cor independentemente da real ocorrência dos processos sinestésicos,para influenciar nos indivíduos sensações correspondentes.Em entrevistas com o compositor João Guilherme Ripper, ele faz menção à intençãopela sinestesia na interrelação entre texto / música, por meio de significados queemergem do texto, numa abordagem artística. Ele acolhe a idéia de que as influênciashistóricas ajudam a consolidar esses significados, e o uso dos diversos elementos delinguagem musical também sofrem influência dos contextos culturais. Quando per-guntado sobre sinestesia ele assim explicou:

A resposta passa obrigatoriamente pelas sugestões sensoriais que o compositorprocura induzir através de sua música, incapaz de definir qualquer coisa por si só,mas que na companhia do poema são claramente reconhecidas. Acredito, também,que determinados gestos melódicos e harmônicos, por sua larga utilização no de-correr dos últimos 300 anos, já tenham se cristalizado em significados mais oumenos convencionados, como as expressões de “noturno”, tristeza, amor, religio-sidade, etc. (Carta do compositor, 10 abr 2010).

Assim, Ripper poderia também, de acordo com este estudo, ser incluído no grupo depseudo-sinestestas por pretender a sinestesia, numa abordagem artística, sem quenecessariamente a mesma ocorra em termos neurológicos.

Conclusões O estudo sobre o Ciclo Portinari nos trouxe informações concretas sobre as algumasformas de interrelação entre as linguagens artísticas promovendo experiências mul-tissensoriais, envolvendo a mente e a produção musical. Enquanto intérprete, o conjunto de sensações e imagens pode induzir a uma perfor-mance específica, apoiada numa percepção simultânea dos já mencionados elementos.Porém, isso não exime o intérprete de ater-se ao estudo dos outros elementos pre-sentes na obra para uma performance mais eficaz, pois a sinestesia, na abordagemneurológica, não pode ser padronizada, visto que são muitos os tipos de sinestesia jácatalogados, cada qual gerando experiências variadas, e nem tampouco garante outrosaspectos da interpretação necessários à sua adequada produção.Seguindo a idéia de sinestesia artística, fundamentada pela fenomenologia de Mer-

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leau-Ponty, considerando o sensível como anterior à função dos órgãos dos sentidos,como aquilo nos une ao mundo, podemos todos nos considerar sinestetas e então,apropriar-nos de toda e qualquer informação que seja útil à interpretação. Por isso,as informações advindas deste estudo podem colaborar com novas idéias sobre a lei-tura e o estudo de uma obra, bem como sua comunicação ao público. Especialmente quando artistas pretenderam com seus trabalhos a ocorrência de ex-periências multissensoriais, eles assim o fizeram seguindo critérios diversos, deacordo com suas vivências e seus repertórios, fossem imagéticos ou sonoros e in-fluenciados pelo contexto cultural e histórico. Ao verificar como o leitor/ouvinte/in-térprete poderia vivenciar essa multissensorialidade observamos que para cada qualexiste uma experiência própria, seguindo os mesmos pressupostos.A questão é que para os que apresentarem características neurologicamente consi-deradas como sinestésicas estes terão experiências definidas por essa propriedadeneurocerebral. A sinestesia enquanto figura de linguagem ou tentativa de aproximaçãoartística, fundamentada fenomenologicamente e aproximando-se do conceito de in-terdisciplinaridade, propicia a todos a multissensorialidade. Na medida em que são analisados os elementos de linguagem verbal, os significadosque emergem do texto são essenciais ao intérprete para construção de sua perfor-mance e ao realizar a leitura deste mesmo texto deve conduzir ao estabelecimentodas linhas melódicas que surgem por meio do ato criador do compositor. E se o texto contiver, ainda, elementos de caráter pictórico tanto melhor poderá seresta interpretação baseada no conteúdo imagético e narrativo do mesmo, podendo ointérprete não só comunicar esses elementos musicalmente, mas construindo cenase ambientes propícios em sua comunicação com o público. Desta relação com o pú-blico poderá surgir toda a gama de possibilidades multissensoriais disponíveis aosouvintes, podendo desfrutá-las de acordo com suas referências e repertório imagé-tico-sonoro. O momento da fruição artística torna-se o lugar da experiência multis-sensorial tanto para o intérprete quanto para o ouvinte.Os elementos de linguagem musical analisados trazem os procedimentos composi-cionais adotados e, ainda que descritivamente, podem conduzir o intérprete a umaatuação expressiva de acordo com as indicações de dinâmica, movimentos nas linhasmelódicas, acompanhamento pianístico, forma e centros tonais. As intenções do compositor podem ser justificadas pela ação interdisciplinar, quandoconsiderada a fusão entre as linguagens artísticas (texto, imagem e música) para ob-tenção de um novo conhecimento ou experiência, ou pela sinestesia. Assim as experiências multissensoriais ocorrerão tanto numa abordagem artísticaque se aproxima da interdisciplinaridade e na qual a sinestesia é voluntária e cons-ciente dos elementos contidos na obra de arte, quanto na abordagem neurológica naqual a sinestesia é involuntária e determinada por propriedades neurocerebrais liga-das à percepção e memória, específicas para cada indivíduo que as possua. Ao considerar as especificidades dos indivíduos no momento da apreciação, respeita-

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se a multiplicidade das experiências advindas e valoriza-se o repertório imagético esonoro que os mesmos possuam de acordo com seus contextos e vivências, sejam ounão desencadeados por processos sinestésicos de ordem neurológica.Sendo assim, observa-se que qualquer que seja a justificativa e a intenção dos artistasna suas produções artísticas a experiência multissensorial advinda dessas produçõesé plenamente possível, baseada na interdisciplinaridade e/ou sinestesia.O Ciclo Portinari, por sua riqueza de imagens sugeridas tanto pelo texto literário, umavez baseado em pinturas e desenhos do artista-escritor, quanto pela música cujo com-positor reconheceu tal potencial imagético e deu o tratamento adequado para que setornasse uma verdadeira experiência multissensorial, é uma obra para ver, ouvir esentir.

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O processo de emissão do som na clarineta e a geração de memória muscular: aplicabilidades no ensino e performance

Cristiano [email protected]

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo O presente trabalho se dedica à tarefa de discutir o processo de emissão do som naclarineta, enfocando a perspectiva da geração de memória muscular. Será exposto oconceito de modelagem sonora — proposta original deste autor —, baseado em parâ-metros que estabelecem vínculos com processos de retroalimentação auditiva e visual.São freqüentes as menções de pesquisadores à idéia de que ocorre um processo dememorização muscular quando da ação prática musical. A produção do som na clari-neta envolve inúmeras ações físicas e musculares relacionadas a partes do corpo quenão são visualizadas diretamente, como cavidade bucal interna, língua, porção labialem contato com a palheta, entre outras. A ação do diafragma, bem como da gargantae de todos os elementos supracitados, são de fundamental importância no referidoprocesso. Entendê-los de forma abrangente pode agregar imenso valor à performancee didática musicais.

O processo de produção do som em instrumentos de sopro e, especificamente na cla-rineta, carece de maior aprofundamento no que tange a elaboração e difusão de es-tudos mais concretos e abrangentes. Serão expostos paradigmas variados nesta seara,envolvendo situações relativas ao que será tratado como “sensação muscular”. A efe-tiva percepção desta sensação muscular envolvida na prática musical conduzirá à ge-ração da memória físico-muscular. A musculatura facial e todo o aspecto físico emgeral (definido aqui como set-up) tendem a se tornar cada vez mais “familiares”, es-tando disponíveis numa espécie de “banco de dados”. Estes se tornam acessíveis àmedida que são trabalhados, entendidos e automatizados por meio da prática conti-nuada e deliberada. O trabalho de verbalização das ações que se desenvolvem es-sencialmente de forma tácita pode engrandecer sobremaneira o entendimento acercada ação física presente na emissão do som, trazendo benefícios à atividade acadê-mica.

Palavras-chaveclarineta – emissão do som – memória muscular

IntroduçãoAssociar a prática musical (especialmente aquela empreendida com maestria) à idéiade talento é algo enraizado no senso comum há muitos séculos. O conceito de talentose relaciona à habilidade inata que, supostamente, nasce com o indivíduo, não po-dendo ser adquirida ao longo da vida, sendo, portanto “uma aptidão natural parafazer alguma coisa melhor do que a maior parte das pessoas” (Colvin 2008). Para ogrande violinista Itzhak Perlman, a existência do elemento “talento” é inquestionável,

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embora admita que, apenas este não habilita pessoas a se tornarem grandes artistas,como atesta:

“O talento musical é uma parte essencial da habilidade para se tocar um instru-mento, mas a prática e a qualidade do professor são extremamente importantes.Ter talento sem ter essas condições não adianta muito. Para alguém ser um grandemúsico, é necessário ter os meios técnicos para realizar musicalmente o que sequer dizer. Técnica não é a capacidade de tocar rápido. É a aptidão para criar co-loridos e ter controle sobre o que se está tocando” (O Globo, 15/11/2010).

Por outro lado, Colvin (2008) afirma que “em 1992, na Inglaterra, um pequeno grupode pesquisadores começou a procurar talentos. Não conseguiu encontrar.” Em Slobodaet al. (1996) verifica-se que “não há absolutamente qualquer evidência de “caminhorápido para os muito bem-sucedidos’”.O presente trabalho aborda aspectos que envolvem conhecimento e aprendizado, semque se pretenda negar ou afirmar a idéia de talento. Vygotsky (2000) enfoca a impor-tância contida no contexto social do indivíduo exposto ao processo de aprendizado.O contato com realidade, ambiente e outros indivíduos (com suas respectivas habili-dades, atitudes e valores) afeta a obtenção, percepção, transformação e assimilaçãode informações. Para Oliveira (1993), este cenário envolve o que se entende por apren-dizado ou aprendizagem “e se diferencia das habilidades inatas (que já nascem comos indivíduos, como a capacidade de mamar para se alimentar de um recém-nascido)e dos processos de maturação do organismo, independentes da informação do am-biente”.

Emissão do somEntende-se emissão do som como tudo que se relaciona ao processo de geração deum som musical, abrangendo aspectos físicos e mentais. A capacidade de expressãomusical, da mesma forma que se relaciona à consistência do discurso fraseológico eao bom uso da técnica, também se refere, consideravelmente, ao controle de emissãodo som. Esta abrange coloridos sonoros, dinâmicas e acentos, articulações e ataques,bem como projeção, equilíbrio e domínio da sonoridade em todas as regiões do ins-trumento.O domínio sobre a emissão do som se revela um valioso patrimônio a ser conquistadoe desenvolvido, constituindo-se um importante diferencial artístico. Diversos camposdo conhecimento humano e autores têm dedicado esforços na busca por uma melhorcompreensão sobre a qualidade de estudo, raciocínio e memorização (Palmer 1989;Palmer e Drake 1997; Galvão 2006; Figueiredo 2009; Pederiva e Tristão 2006).É fundamental, também, promover o estímulo ao auto-desenvolvimento. O estudanteem música, muitas vezes, depende excessivamente das informações transmitidas peloprofessor. Além disso, cada mudança de rumo nesta cadeia (sejam encontros comnovos professores ou perspectivas didáticas distintas) pode conduzir o aluno a rejeitaro aprendizado anterior e retomar — em momentos futuros distantes — níveis de pes-quisa já alcançados. Convém somar experiências, potencializado-as, ao invés de, ime-

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diatamente, promover “substituições”. Pereira (1990) atesta que:“Enquanto alguns musicistas levam toda uma vida a analisar seus problemas téc-nicos e a exercitar seu sistema neuromuscular, observando resultados de pesquisassobre seu mecanismo vocal, ou instrumental, outros não fazem o menor esforçopara adquirir uma compreensão básica de fisiologia que poderia ajudá-los a do-minar, adequadamente, seus movimentos úteis na técnica instrumental. Por exem-plo, alguns cantores adquirem seu próprio e particular domínio da respiraçãodiafragmática, porque estudaram profundamente a anatomia humana” (Pereira1990, 29)

Pesquisas relacionadas ao processo de emissão do som na clarineta são, ainda, inci-pientes, quando comparadas ao volume de publicações envolvendo outras áreas. Roe-derer (2002) atesta tal percepção, afirmando que “o processo de formação do somnum instrumento de sopro é muito complicado e ainda não totalmente pesquisado”e “muito ainda precisa ser feito no estudo da percepção da qualidade ou timbre dossons complexos”.

ObjetivosSão objetivos deste estudo:

1. Discutir o processo de emissão do som na clarineta, partindo de paradigmas exis-tentes, e propondo conceitos próprios deste autor, que englobam procedimentosde modelagem, sensação e memorização musculares.

2. Fomentar a produção de trabalhos que envolvam pesquisas primárias referentesà emissão do som na clarineta e em outros instrumentos musicais.

Construção da modelagem sonora e geração de memória físico-muscular

A geração do som na clarinetaA geração do som na clarineta se dá através do mecanismo de excitação de uma fonteprimária (no caso, a palheta) por meio do ar soprado e direcionado ao interior deuma coluna de ar (Roederer 2002). Segundo o referido autor, “esse elemento vibrante(coluna de ar), na verdade, determina a altura musical da nota e, como feliz dividendo,fornece harmônicos superiores necessários para conferir certa qualidade caracterís-tica ou timbre ao som”. O que nos permite distinguir os sons de mesma altura e in-tensidade, em instrumentos diferentes, é o que se conhece por timbre. A altura deum som se relaciona à freqüência fundamental deste (número de oscilações por se-gundo), enquanto o volume se refere à intensidade do som.A qualidade sonora, importante objeto de estudo neste trabalho, se refere diretamenteao espectro harmônico, ou seja, “à proporção em que outras freqüências superiores,chamadas ‘harmônicos superiores’, aparecem misturadas entre si, acompanhando afreqüência fundamental” (Roederer 2002). A forma como se misturam os sons puros(componentes harmônicos) em determinado som complexo determina a qualidade

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deste. O ser humano, por meio da experiência vivida, é preparado para perceber au-ditivamente esta configuração de harmônicos, bem como identificar com clareza, di-ferenças entre qualidades sonoras provenientes de músicos distintos que executampassagens semelhantes nos mesmos instrumentos. Mesmo para um músico expe-riente, seria muito complexo identificar exatamente uma altura produzida por ummeio eletrônico, quando esta se encontra desprovida de harmônicos superiores, umavez que “faltam ao sistema nervoso central, importantes informações adicionais, quenormalmente existem nos sons ‘reais’ com os quais ele está familiarizado” (Roederer2002).

Conceituações e paradigmas referentes à emissão do som na clarinetaDiversos são os conceitos que envolvem o processo de emissão do som nos instru-mentos musicais. Muitos se encontram descritos em livros, teses e trabalhos afins. Aimensa maioria destes, contudo, é trabalhado e difundido de forma oral nas classesde música mundo afora. Qual não seria o benefício se grande parte deste conheci-mento que circula oralmente estivesse acessível a todo instante em todos os lugares?Peyer (1995) afirma que o instrumentista de sopro é uma espécie de cantor, mencio-nando que ambos dependem basicamente do uso ativo do diafragma, tórax, pulmões,garganta e musculatura facial. Todos estes elementos agem no processo de produçãodo som. Para o autor, além da musculatura facial, a garganta e os lábios são impor-tantes atores neste cenário e o termo embocadura designaria a “combinação de mús-culos, juntamente com os dentes, língua e estrutura óssea”, envolvidos na ação daprodução do som.O autor considera fundamental entender que a abertura da cavidade bucal e da gar-ganta são essenciais para a boa emissão do som na clarineta, traçando paralelos comdemandas físicas verificadas no canto. No entanto, diferentemente de um cantor, quepossui seu aparelho fonador inserido em seu corpo, a clarineta apresenta a maiorparte da área de vibração fora da boca, ou seja, de seu corpo. A excessiva tensão físicae a falta de controle sobre as ações empreendidas podem prejudicar sobremaneira aprodução do som.

“Assim como no canto, a capacidade da garganta e da boca pode ‘ajudar’ o som bá-sico produzido, nesse caso, pela vibração da palheta. Isso é realizado ao permitirque esta ‘câmara’ permaneça o mais aberta possível sem tensão. Qualquer enrije-cimento irá abafar as vibrações ao invés de aumentá-las e qualquer estreitamentoda ‘câmara de ressonância’ irá reduzir o volume e a riqueza do som pelo amorte-cimento dos harmônicos vitais.” (Peyer 1995, 128)

Dessa forma, a cavidade bucal deve apresentar abertura considerável, porém sem ten-são. A embocadura deve estar relaxada e o controle da palheta é feito através de umleve contato dos lábios com a mesma. Peyer associa o apoio diafragmático e a aberturada cavidade bucal ao que ele denominou “correto suporte do som”, afirmando existirum “paralelo entre o estado das costelas enquanto se respira e o formato correto dascavidades da boca e da garganta”.Observa-se em Coelho (1991) que o desenvolvimento da técnica vocal e das Escolas

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de canto deve muito do virtuosismo artístico atingido a personagens que dedicaramsuas vidas ao entendimento da ação física envolvida na emissão do som, como o es-panhol Manuel Garcia Filho que, através do laringoscópio, pôde ver o funcionamentodas cordas vocais, indicando caminhos mais eficazes de produção das notas agudas,por exemplo.

Processos de retroalimentação – auditiva e visualA prática musical e a busca por aprimoramento de performance dependem fundamentalmenteda capacidade de auto-percepção sobre o resultado produzido. Possíveis ações corretivas, bemcomo sedimentação de elementos bem construídos são, assim, viabilizadas. Tais ações, rela-cionadas ao que se conhece como retroalimentação (feedback), são tão importantes quanto,muitas vezes, negligenciadas. Pfordresher (2005, 184) expõe tal visão ao afirmar que:

“A ausência de investigação acerca do papel do feedback auditivo pode resultar desua importância, aparentemente óbvia, à performance musical. De que outra ma-neira se poderia aprender música, senão através do acompanhamento de pertodo som? No entanto, algumas evidências indicam que a importância do feedbackauditivo pode estar ainda limitada”

Outros pesquisadores (Gates e Bradshaw 1974; Finney 1997; Repp 1999; Pfordresher2003) apontam para a importância do feedback auditivo na performance musical, re-lacionando-o ao trabalho de construção da identidade sonora.A retroalimentação auditiva pode receber o auxílio de elementos visuais. O uso deespectógrafos, programas computacionais e ferramentas visuais de análise espectral,podem contribuir significativamente neste processo. Este não deve substitui o feed-back auditivo, mas sim atuar conjuntamente. Dessa forma, o feedback visual repre-senta uma possível forma de embasamento à interação professor-aluno, que contacom referenciais sonoros diretos bem mais evidentes, quais sejam o próprio resultadosonoro apresentado por tais agentes quando da atividade acadêmica.

Idealização sonoraQuando se trata de “ideal sonoro”, obviamente observa-se o aspecto particular destepropósito. Cada indivíduo tem em mente o que considera “metas a serem alcançadas”em termos de sonoridade. Dessa forma, tanto ouvintes quanto executantes têm, cadaqual ao seu modo, conceitos, preferências, “ideais”. Algumas questões devem ser con-sideradas neste contexto:

1) Este “ideal” é fruto de gosto pessoal, preferências, influências, possíveis caracte-rísticas e especificidades físicas (do indivíduo e do material utilizado), entre ou-tras variáveis.

2) Muitas vezes, o músico adapta seu trabalho e sua “busca sonora” em função dasespecificidades do material que deseja utilizar ou do material que lhe seja aces-sível em dado momento.

3) O ideal sonoro não deve estar restrito a um padrão de sonoridade único. Assim,como cabe a um pintor escolher que cores utilizar, cabe ao músico eleger que ma-tizes sonoros são desejados ou convenientes em determinado cenário.

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4) Muito embora a “idealização” pareça ser um elemento importante na construçãode uma identidade sonora, muitos músicos alcançam particularidades e diferen-ciais de forma natural, sem projetarem objetivos específicos, enquanto outrosperseguem ideais claros, de forma metódica e consciente.

5) A personalidade artística do professor pode vir a exercer influência — pequenaou grande; consciente ou inconsciente — sobre a busca sonora e artística do aluno.

A presente proposta de estudo tomará por base a busca de uma sonoridade que evi-dencie densa e rica gama de harmônicos, em nível espectral. Entre os instrumentistasde madeira é comum atribuir termos como “escuro”, “gordo”, “amplo” para sonoridadecom maior densidade de espectro harmônico. Obviamente, tais terminologias e con-ceituações se mostram insatisfatórias enquanto definição e entendimento de para-digma sonoro, funcionando apenas como possível elemento adicional.O primeiro estudo publicado abordando especificamente a análise qualitativa de har-mônicos presentes em um som complexo data de 1636, a cargo do padre e músicofrancês Mersenne. Como atesta Roederer (2002), “há muitos séculos já se sabe que otimbre de um som pode ser modificado reforçando-se certos harmônicos”.

Modelagem sonoraModelagem sonora, tal qual será proposta e abordada no presente trabalho, vem aser o processo de construção e obtenção da sonoridade dita “idealizada”. Será adotadoneste estudo o termo set-up, destinado ao conjunto de ações físicas (configuração fí-sico-muscular) verificada por ocasião da emissão de um som em determinado con-texto dinâmico. Além de variável, é passível de entendimento e controle.

Estabelecimento de parâmetrosAlguns parâmetros irão delinear o presente trabalho, orientando a perspectiva de ob-tenção da modelagem:

1. O início se dará pela nota mi2 , a mais grave do instrumento. Este será o pontode partida para toda a seqüência que será trabalhada. Quando a modelagem semostrar satisfatória, repetir-se-á o processo com a nota fá2, seguindo cromáticae ascendentemente até, se possível, a nota dó6.

2. Estabelecimento de uma dinâmica inicial padrão, a qual convém que seja “inter-mediária”: algo como mezzo-piano (P) ou mezzo-forte (F ).

3. Repetições de ataques — projeção da língua ao encontro da palheta — de umamesma nota. Não são golpes incisivos, e sim leves e sutis “separações” da nota(altura) proposta, visando “buscar” auditivamente a sonoridade pretendida ouainda “confirmar” padrões desejados e já obtidos. Estes re-ataques não necessitam,num primeiro momento, de padronização quanto à quantidade de repetições.Podem ocorrer, inicialmente, em número indefinido. O objetivo maior é “buscar”ou “confirmar” a sonoridade desejada. A articulação resultante tenderá bem maisao tenuto do que ao staccato, face à ação branda e sutil da língua.

4. Quando já fora obtida a modelagem em toda a extensão do instrumento, convém

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produzir repetições padronizadas (inicialmente 8 re-ataques para cada nota), sis-tematizando as ações empreendidas. Os re-ataques podem depois se limitar a 4,sendo reduzidas, em seqüência, para 3, 2 e uma emissão de cada nota, de modoa conferir cada vez mais fluência ao estudo.

5. A alteração de set-up que ocorre por ocasião da modelagem não requer, necessa-riamente, pleno entendimento neste momento inicial. Ao contrário, é interessantea utilização da máxima “do ouvido para o set-up”. Ou seja, ao invés de variar cons-cientemente um determinado set-up, com base na busca de um “padrão musculara ser conhecido em detalhes”, convém buscar auditivamente a qualidade de somque se pretende emitir, deixando que esta alteração de set-up ocorra espontanea-mente. Tais ações “modificadas” seriam, por conseguinte, ditadas pelo processode feedback auditivo e implementadas como fruto da “busca pelo som”. É válidatambém a intenção de alterar conscientemente o set-up, buscando entendimentodas ações implementadas. A escolha por orientar, de forma “explícita” ou “indu-zida”, a alteração de set-up através da construção da modelagem fica a cargo domúsico, que pode, inclusive, conduzir esta busca de diferentes formas ao longodo estudo.

A figura 1 sintetiza os conceitos expostos, orientando o entendimento da questão.

Figura 1 – Fluxograma referente aos parâmetros apresentados.

Ações de modelagemPara Ericsson (2006) o resultado técnico-musical alcançado por um indivíduo estáintimamente relacionado ao emprego de estratégias de estudo contidas no contextoda prática deliberada. Santiago (2007) apresenta a terminologia empregada por Erics-son, Krampe e Tesch-Römer (1993) em sua pesquisa sobre performance musical, de-finindo prática deliberada como o “conjunto de atividades sistematicamenteplanejadas que têm como objetivo promover a superação de dificuldades específicasdo instrumentista e de produzir melhoras efetivas em sua performance”. Verifica-se,portanto, padrões de condutas otimizados que privilegiam a natureza racional dasações, implicando postura intencional frente às situações de prática, onde o foco de

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interesse é atingir o domínio das condições de performance (Santos e Hentschke 2009).Alguns aspectos são de fundamental importância na construção da prática dita deli-berada, a saber: concentração, estabelecimento de metas, constante auto-avaliação,uso de estratégias flexíveis, visualização de planos globais e sentimento de auto-efi-cácia na performance (Williamon 2004). Dessa forma, esta se distingue da práticapura e simples por não propor a mera repetição rumo ao automatismo inconsciente.

1ª ação: “Busca por harmônicos”A primeira ação proposta se inicia com a execução de um som da maneira mais “sim-ples” possível, onde nada seria “buscado” ou “pensado” efetivamente. Após obtida asonoridade referente à nota (altura/freqüência) em questão, buscar-se-á a obtençãode uma sonoridade que contenha um espectro harmônico cada vez mais amplo. Sol-fejar o som estudado e tentar viabilizar — auxiliado pelo cantar — uma sonoridademais rica, revela-se algo valioso no presente contexto. A ação do feedback auditivo édeterminante. Não se trata de apenas repetir notas longas. A idéia do raciocínio en-volvido no estabelecimento e utilização de estratégias de estudo se faz presente nabusca da idealização sonora.

2ª ação: “Geração de reverberação – ‘mudança de sala’ e ajuste da cavidadebucal”

As ondas sonoras se propagam, afastando-se da fonte geradora até o ponto em quesão absorvidas ou refletidas. A acústica de um determinado espaço físico se relacionaexatamente à forma como ocorre o exposto acima (Roederer 2002). A prática musicalocorrida em ambiente extremamente “seco”, em geral, tende a proporcionar certa sen-sação inicial de desconforto ao músico. Ambientes com acústica propícia à reflexãodas ondas (reverberação) costumam gerar menor sensação de desconforto, desde quea reverberação não se apresente em nível extremamente acentuado.Para Roederer (2002), “o local onde o instrumento musical está sendo tocado podeser considerado uma extensão natural do próprio instrumento, exercendo um papelsubstancial na modelagem do som real que chega até o ouvinte”. Na frase de Roederer,percebe-se o uso do termo modelagem sonora, muito embora com conotação dife-rente da utilizada no presente trabalho. A menção feita à importância da interaçãoentre o músico, seu instrumento e o ambiente onde ocorre a ação musical, possibilitaperceber a força que a analogia criada em relação à busca de uma sonoridade produ-zida em “diferentes salas” (mesmo o músico não mudando propriamente de local)poderia conter. O ajuste de set-up, seja de forma “explícita” (busca da alteração consciente da aberturade cavidade bucal, entre outros “ajustes” físicos possíveis) ou “induzida” (busca es-pecífica da sonoridade com maior reverberação — fruto de uma suposta sensação de

“mudança de sala”) pode otimizar sensivelmente o trabalho de modelagem, produ-zindo uma caixa de ressonância efetivamente funcional, visando à geração de har-mônicos e reverb dentro da referida cavidade.

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3ª ação: “Busca pelo ‘melhor som’”Outra ação proposta, aparentemente trivial, seria a iniciativa de procura pelo “melhorsom” que se possa obter. A idealização sonora atua fortemente e os elementos traba-lhados em outras frentes deverão interagir efetivamente. Por mais simples e abstratoque tal pensamento possa se revelar, este pode revelar-se importante ferramenta deauxílio ao trabalho em questão. A figura 2 ilustra e interconecta as ações de modela-gem descritas.

Figura 2 – Fluxograma ilustrativo das ações de modelagem

Sensação físico-muscularA obtenção da modelagem pode viabilizar a percepção de que as notas possuem “jei-tos” próprios ou set-ups individuais. As ações físico-musculares caminham rumo aoentendimento, por meio de sensações experimentadas. Tendem ainda a se tornar

“acessíveis” à medida em que são automatizadas através do trabalho contínuo e focado.A busca pela percepção de elementos que tomam parte ao set-up envolve a análisede variáveis como:

• Pressão do lábio inferior e níveis de variação desta.• Abertura da cavidade bucal e garganta.• Pressão, velocidade e ângulo de entrada do fluxo de ar no instrumento.• Posicionamento, relaxamento e vedação da embocadura – musculatura facial.• Relaxamento físico geral: dedos, braços, pernas, postura, ombros, músculos.

Geração da memória físico-muscularAristóteles já estabelecia, em tempos idos, que, embora os animais também possuís-sem capacidade de memorização, apenas o ser humano poderia recordar e acessar opassado quando desejasse (Roederer, 2002). A força dos modelos mentais, extraídade situações memorizadas, é maior do que muitos supõem. Não apenas números, le-tras, notas musicais ou eventos vividos podem ser memorizados. Sensações e situa-ções físicas também.A sensação físico-muscular, relativa à tomada de consciência acerca das ações pro-cedidas, tende a gerar, quando repetida e produzida sistematicamente, a “memori-zação” deste contexto. É como se o corpo encontrasse “o lugar”, ou “a configuração

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física” de determinado colorido sonoro (e dinâmica agregada), memorizando este ce-nário e produzindo, paulatinamente, um “banco de dados”. Logo, torna-se possívelreproduzir (mesmo considerando interferências “externas” e falhas inerentes à açãohumana) a sonoridade idealizada, tendo por base a memorização da sensação mus-cular conhecida, sendo esta conseqüência da ocorrência satisfatória da modelagem. A tendência é obter a segurança de que aquela realidade pode ser reproduzida quandopretendida, muito embora a emissão não seja uma ciência exata. Assim sendo, ne-nhum estudo ou paradigma sonoro pode assegurar certeza absoluta quanto à resul-tados. É fundamental que variantes que interfiram sobremaneira neste contexto(qualidade e características de materiais utilizados — palheta, instrumento, boqui-lha,… –, bem como estados extremados de tensão e insegurança quanto ao que seráexecutado e à performance em si), não se encontrem em níveis muito distantes dousual.

“… a reprise de uma atividade neural específica pode ser provocada por outrascausas e indícios, além da total reativação sensorial do evento original — uma rea-tivação parcial da atividade neural ocorrida durante o ato da armazenagem é su-ficiente para liberar toda a configuração da atividade específica” (Roederer 2002,232).

Paralelismo com o cantoO ato de memorizar uma conjuntura física que atua na emissão do som é objeto deestudo em cantores há muito tempo. Coelho (1991) atesta a existência de procedi-mentos de memorização que envolvem a consciência sobre o “posicionamento físico”da voz. Além de mencionar a possibilidade da ocorrência de uma memorização mus-cular — ressaltando um possível “lugar” para a voz –, refere-se também a situaçõesque remetem ao conceito de modelagem.

“O artista (aqui se referindo ao cantor, especificamente) trabalha sempre para aper-feiçoar-se e não há resfriado ou rouquidão que prejudique a impostação cessadoo impedimento. A voz continua com a mesma colocação, em caso contrário é por-que não estava devidamente no molde ideal. A memorização não só da localizaçãoda voz nos seios da face, como também de outras atividades do artista podem seradquiridas pelo cultivo da memória. Nós sabemos que esta é inconsciente. Existemoutras formas de memória, como: a automática e a orgânica. Mas ao cantor solistaé necessária a memória cultivada. É tão bom recordar, que parodiando ‘Paul Ge-raudy’ o grande escritor francês, faço minhas suas palavras: ‘chegará um dia emque as nossas recordações serão nossa única riqueza’” (Coelho 1991, 26).

A laringoscopia sempre foi uma aliada nos estudos concernentes à produção do sompelo aparelho fonador. Há décadas existem registros de realização de endoscopia dafaringe com utilização de fibra óptica flexível, onde se pode observar a ação das pregasvocais, identificando, inclusive, patologias responsáveis por defeitos na emissão davoz. Por meio de testes averiguou-se, por exemplo, “em que região das pregas vocaisse produzia os sons agudos e graves; como se realizava o ‘vibrato’, como funcionava alaringe no ‘falsete’ . . . ou ainda . . . a participação da epiglote na emissão vocal e a in-versão da glote na execução dos instrumentos de sopro” (Barbosa 1991).

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ResultadosA importância da ação dos lábios para instrumentistas de palheta e, sobretudo dolábio inferior para os clarinetistas, é determinante no contexto da emissão do som.Roederer (2002) ilustra tal cenário afirmando que “também os lábios de um instru-mentista de sopro de embocadura podem ser considerados como um sistema de pa-lhetas duplas (bem maciças)”. Descontroles de pressão na ação do lábio inferior, porexemplo, mesmo que sutis, podem comprometer sobremaneira a qualidade sonora,bem como o resultado de afinação, ligaduras e articulações em geral, ou seja, da açãomusical como um todo. A própria ansiedade provocada pela performance pode acar-retar uma “onda de tensão” que, propagando-se pelo corpo, traz imenso prejuízo.Peyer (1995) aborda esta questão e afirma que “tensão desnecessária da mandíbula,contração do pescoço e movimentos involuntários da língua devem ser evitados”.Segue atestando a importância de combater a tensão física:

“É óbvio que com interações musculares tão complexas como as envolvidas em do-minar todos os irregulares padrões de digitação (os quais são mais complicadosna clarineta que em qualquer outro instrumento), o mínimo de tensão permitiráo máximo de destreza. Uma vez que todos os movimentos físicos são o resultadode uma atividade muscular, o correto ‘balanceamento’ de tensão e relaxamento éa chave para uma boa performance” (Peyer 1995, 129).

Freqüentemente verificam-se relatos de músicos de sopro acerca de dificuldades con-sideráveis em produzir saltos melódicos específicos com qualidade, ou ainda, paracontrolar satisfatoriamente determinadas notas e frases, sobretudo em dinâmicas ex-tremas. A memorização de um contexto físico-muscular pode contribuir neste sentido,de modo a “barrar” algumas das interferências prejudiciais à performance.

“quando a aprendizagem se completa, terão acontecido mudanças sinápticas ade-quadas no circuito neural, de modo que a constelação de estímulos em apenas umcanal de entrada (o estímulo condicionado ou ‘palavra-chave’) será suficiente paragerar todo o padrão de atividade neural específica do evento original completo.Em outras palavras, o aprendizado não é representado pela armazenagem de in-formações ou imagens por si, mas por modificações apropriadas da rede de pro-cessamento de informação, e a memória surge nesse esquema como aarmazenagem de instruções sobre o processamento de informações. Eis por queo cérebro é chamado de sistema “auto-regulador’” (Roederer 2002, 233).

Segundo Peyer (1995), “tensão, é claro, existe particularmente nos músculos faciaisque estão em contato com a boquilha e palheta, mas é importante que esta seja con-trolada e que o balanço correto entre tensão e relaxamento seja mantido”.

Emissão Balanceada – três parâmetros referenciaisO trabalho de verbalização de ações que se realizam tacitamente, pode engrandecersobremaneira a domínio de emissão do som, trazendo benefícios à performance e àatividade acadêmica. A construção do entendimento sobre como cada nota pode ser

“moldada” na clarineta, bem como o desenvolvimento da consciência acerca da indi-vidualidade de cada set-up (expressa na modelagem), paradoxalmente, tende a con-

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duzir a padrões mais uniformes de ação física. Mesmo considerando que inúmeros elementos físicos tomam parte à emissão do somna clarineta — cada qual com sua relativa importância — é possível destacar três pa-râmetros referenciais efetivamente contemplados na presente proposta: o controle dapressão do lábio inferior; a abertura da cavidade bucal; e a pressão do fluxo de ar. O lábio inferior necessita de “liberdade” para atuar relaxadamente. Muitos pensa-mentos acerca do “relevo melódico” da frase (sobretudo quando muitos saltos defazem presentes) geram temor e insegurança de emissão. Situações gerais de estressepodem “aprisionar” o status de tensão presente. Através da modelagem, o relaxamentopode ser obtido, memorizado e “disponibilizado para uso freqüente”.O presente estudo não se ateve à verificação de medidas numéricas específicas en-quanto pressão neste ponto (contato do lábio inferior com a palheta), mas sim à per-cepção de sensações experimentadas. Mesmo observadas possíveis especificidadesde set-ups, convém, nesta fase do estudo proposto, entender e valorizar a manutençãode um bom nível referencial de relaxamento labial. Trata-se de elemento determinantepara a obtenção de uma emissão balanceada e equilibrada, fugindo de oscilaçõesacentuadas e indesejadas nos níveis de pressão labial.A abertura da cavidade bucal — igualmente “dispensada” de medidas de área — é de-terminante no contexto da geração de harmônicos no som. A obtenção da modelagempode contribuir no bom funcionamento desta caixa interna de ressonância. O enten-dimento desta função, por meio da ação prática, conduz à memorização física. A gar-ganta tende a ser, nesse contexto, será uma “fiel beneficiaria” de tal ação. A tensãocontribui para o estrangulamento das áreas mencionadas, que pode ser evitado e/oucontrolado por meio da ativação de planos de memória.O controle sobre o fluxo de ar é um elemento essencial no domínio da emissão, sejapelo emprego de um adequado nível de pressão e velocidade, como pela tomada deconsciência sobre o mesmo. O “apoio diafragmático” é matéria vastamente conhecidana literatura sobre os instrumentos de sopro e canto. Convém ao clarinetista trabalhareste elemento de forma contínua, consciente e deliberada. Quando este suporte semostra inadequado, a emissão se apresenta consideravelmente comprometida. A mo-delagem tal qual proposta, deve contemplar tal questão, incorporando-a ao escopode elementos passíveis de memorização, inserindo-a no contexto do entendimentosobre a ação físico-muscular.A Figura 3 apresenta um esquema ilustrativo acerca de todo o processo, sintetizandoo sistema proposto.

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Figura 3 – Fluxograma ilustrativo da proposta de modelagem e conseqüente geração dememória físico-muscular

Modelagem na frase musicalA busca pela obtenção — no contexto de uma frase musical — de níveis satisfatóriosnos parâmetros mencionados anteriormente, requer o estabelecimento de “pontosde modelagem” cuidadosamente escolhidos na frase, como forma de estabelecimentode uma linha de redução. Para os pontos escolhidos serão dirigidos objetivos especí-ficos de modelagem, pensamento e ação. Buscar-se-ão pontos “em elevação”, ou seja,notas situadas em pontos mais agudos na frase (muitas vezes “a” nota mais aguda). As frases originadas de tais divisões não guardam relações morfológicas específicas,nem sugerem efetivamente fraseados musicais. São escolhas “técnicas”, justificadaspor bases contidas nesta proposta de paradigma. O conceito presente na “Emissãopor Elevação” — a ser abordada efetivamente em estudos subseqüentes — contemplaelementos designados “preparação” (quando se antecipa a sensação muscular) e “sus-tentação” (quando se prolonga a referida sensação) da nota modelada. A emissão dosom, tão complexa quanto importante, é e sempre será tema de intensas reflexões eproposições, dando suporte à performance e contribuindo à perpetuação da magiacontida na pluralidade das manifestações musicais.

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Para medir a sincronização de dois cantores: o caso da bossa-nova

Cássio [email protected]

Beatriz R. de [email protected]

Antônio [email protected]

Universidade de São Paulo

Resumo:A idéia de sincronização é introduzida, bem como sua relação com o ritmo da fala. Oexperimento realizado propõe verificar como estão sincronizados (ou não) algunspontos da canção produzida por dois sujeitos simultaneamente. Expõe-se, então, ométodo utilizado para a medida de lags — ou diferenças possíveis entre dois ataquessimultâneos do canto— que consiste no DTW, algoritmo que mede similaridade entreduas seqüências que variam no tempo. Os resultados indicam que, independente-mente de os pontos iniciais e finais da frase corresponderem ao contra-tempo, a sin-cronização é melhor realizada nos pontos finais.

IntroduçãoA proposta deste trabalho é descrever o método usado em nossa pesquisa para medirtempos de latência entre dois cantos simultâneos que se sincronizam. Trata-se doDynamic Time Warping (de agora em diante, DTW) que significa literalmente o “ar-poamento” (pegar com arpão) dinâmico do tempo, ou simplesmente AlinhamentoTemporal Dinâmico. A utilização do DTW já se mostrou eficaz em trabalhos sobre asincronização da fala falada (Cummins 2003) e em outros (Medeiros et al. 2008; Pes-sotti 2010 e em andamento). Assim a finalidade deste trabalho é tornar a descriçãodeste método acessível a um maior número de pessoas, notadamente aquelas inte-ressadas em fazer medidas da fala cantada em pesquisa voltada para aspectos cogni-tivos do canto.A hipótese deste trabalho que foca o método, mais do que os resultados finais, é deque a não-sincronização será tanto maior na execução da canção quanto mais pró-ximo de uma síncopa ou efeito de síncopa na partitura (ou seja a realização musicaldo ritmo) estiver o ponto da frase a ser entoada (inicial / final).

Sincronização e ritmo da falaA idéia de sincronia neste trabalho pressupõe uma interação, ou mais precisamenteum entrainment entre duas — pelo menos duas — tarefas de movimento, cada uma,originária de um sistema diferente. O exemplo clássico é o de dois pêndulos que sin-

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cronizam seus movimentos se tiverem uma espécie de acoplamento entre eles (podeser um elástico).No caso específico de nossa investigação, os dois sistemas em questão são dois can-tores cuja tarefa é cantarem em fase (uníssono) a mesma canção. O ritmo de cançãoescolhido foi o sincopado e assim elegeu-se uma bossa-nova (Corcovado de TomJobim) para constituir o corpus deste trabalho. O ritmo melódico da bossa-nova ofe-rece desestabilização do ritmo básico, conforme pudemos verificar em um estudo pi-loto comparando a sincronização obtida no canto cujo ritmo era sincopado àsincronização no canto não sincopado (Santos e Medeiros 2010). A bossa-nova parecenão facilitar totalmente a sincronização, embora a condição canto possa agir comofacilitadora. Explicamos: o fato de a tarefa ser a produção do canto faz com que oritmo musical facilite a sincronização (ver Cummins 2003). No entanto, o ritmo sin-copado da bossa-nova pode agir como desviante e por isso é proposto aqui como umacondição diferenciada em tentativa de sincronização de tarefas envolvendo ritmo.Para facilitar a referência aos componentes da tarefa de sincronização aqui tratada,propomos, a partir de agora, o uso de alguns termos importantes, que buscamos cla-rificar no parágrafo abaixo:Fala cantada é como designamos o canto com texto, portanto, todo cantor entoandouma canção com letra, está produzindo fala cantada. Cantores executando uma can-ção simultaneamente, em dupla, são aqui designados sujeitos realizando a tarefa desincronização da fala cantada. Cada fala cantada de cada um dos sujeitos pode serconsiderada — e assim chamada — um oscilador. O pulso fundamental ou ritmo bá-sico da canção pode ser também um oscilador. Assim, também, o ritmo melódico étambém um oscilador. Oscilador é qualquer sistema com movimento de oscilação re-petitivo ou harmônico. Podemos entender a fala, com a devida parcimônia, como umoscilador. Na música, tais oscilações como estruturantes do ritmo musical, são muitomais óbvias do que na fala.O ritmo da fala é variável e depende da extensão do enunciado. No caso da fala can-tada, o ritmo da fala se mantém, mas por vezes há a predominância da batida musicalem relação ao acento lexical, e aí ocorrem os deslocamentos da sílaba tônica. Este,porém, é um detalhe a ser analisado a posteriori, uma vez que este estudo visa analisara sincronia entre duas falas cantadas, com fins de saber a influência de um ritmo mu-sical sobre a sincronia de um tipo de fala, a cantada. Assim, baseamo-nos em Cum-mins (2003) que revelou a sincronização de fala, sem necessidade de longo períodode prática (dois falantes lendo um texto juntos), como forte indício de um ritmo in-variável subjacente, embora tal invariabilidade seja difícil encontrar no sinal acústico.Neste sentido, já esperávamos que a sincronização no canto fosse tarefa fácil, e atémais fácil do que a sincronia da fala falada. No entanto, introduzimos uma condiçãodiferente das condições propostas por Cummins (2003), a saber, obviamente a falacantada — uma vez que ele só trabalha com a fala falada — e a canção com ritmo sin-copado, a bossa-nova.

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O experimento: sincronização no canto1. Sujeitos e coleta de dados

Dois cantores profissionais (um homem, HC, e uma mulher, LS), com cerca de 20 anosde idade, com estudo formal em canto popular e com experiência em cantar bossa-nova, participaram das gravações. Utilizamos apenas uma repetição do canto de Cor-covado, composta por Tom Jobim, já que nossa intenção é, antes de obter resultadosestatísticos, apresentar o método de rotulagem do DTW. As gravações foram realizadasem sala insonorizada e os dados de cada cantor coletados em canais separados (direitoe esquerdo), utilizando o software Soundforge. Os microfones utilizados foram ShureSM58. Os cantores estavam dispostos a cerca de dois metros de distância um do outroe tinham contato visual entre si. De posse de da letra da canção, receberam a instruçãode cantar em sincronia. Deu-se início às gravações quando os cantores se disserampreparados, após cantarem algumas vezes para se familiarizarem com a tarefa.

2. Segmentação e rotulagemSegmentamos a canção em um total de 12 sentenças, iniciadas a partir de pausas mu-sicais, com base na partitura (Chediak 1990) e na letra (ver abaixo o texto da canção).Em um único caso a sentença inicia depois de uma nota de 4 tempos (sentença 11).Krumhansl (2006) afirma que o prolongamento de um som pode funcionar de formasemelhante a uma pausa. Não tomamos todos os prolongamentos como critério parasegmentação, pois nosso primeiro critério relacionou-se à letra, e não à estrutura mu-sical. Definidos, assim, os pontos iniciais e finais das sentenças.Selecionamos também pontos no meio das sentenças, a fim de observar a diferençada sincronização entre os pontos finais e justamente esses pontos mediais. Cummins(2003) observou que as assincronias são maiores em pontos iniciais de uma sentençaem comparação com pontos mediais e finais na fala falada. Pautamo-nos em critériosfonético-acústicos para definir esses pontos mediais nas sentenças, e elegemos onsetsde fricativas e oclusivas que são de fácil identificação no sinal. Na sentença 12, no en-tanto, colocamos o ponto medial no início da palavra amor, já que essa sentença nãotinha nenhuma palavra iniciada por oclusiva ou fricativa. Essa segmentação foi feita usando-se a ferramenta TextGrid, do software Praat, quenos permite rotular o sinal acústico estabelecendo nele pontos específicos (bounda-ries). Uma primeira rotulagem feita manualmente é usada pelo DTW para segmentarautomaticamente os outros sinais, sendo necessário, após essa segmentação, apenaspequenos ajustes manuais de posicionamento de algumas boundaries. As sentençassão as apresentadas abaixo. As barras indicam os pontos inicial e final da segmentação(apenas as sentenças 6 e 8 tem pontos mediais). As letras entre parênteses indicamfricativa ou oclusiva:

1. |Um cantinho e um |violão (f)2. |Este amor, uma |canção (o)3. |Pra fazer feliz a |quem se ama (o)

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4. |Muita calma pra |pensar (o)5. |E ter tempo pra |sonhar (f)6. |Da janela vê-se o |Corcovado o Redentor |que lindo (o,o)7. |Quero a vida |sempre assim (f)8. |Com você perto |de mim até o apagar da velha |chama (o,f)9. |E eu que era |triste (o)10. |Descrente |deste mundo (n)11. |Ao encontrar você eu |conheci (o)12. |O que é felicidade meu |amor (v)

3. Medidas Sobrepusemos os rótulos do sinal de HC ao de LS e medimos a duração das lags, ouseja, da diferença de posição entre cada fronteira inicial e entre cada fronteira medial.Em outras palavras, buscamos verificar o quanto havia de sincronia entre os pontosdefinidos nas sentenças. A figura abaixo traz uma dessas diferenças:

Figura 1 – Lag (faixa vertical) entre o onset da parte inicial da sentença 2. Note-se que arotulagem inferior corresponde ao canal superior. Nesse caso a lag mede 94 ms.

4. Sobre o Dynamic Time WarpingTrata-se de uma técnica de reconhecimento de padrão cujo algoritmo permite buscara correspondência entre dois sinais ainda que tenham os mesmos fenômenos não-alinhados no tempo. A base deste algoritmo é considerar que cada frame do sinalteste ( o sinal fornecido como input ao DTW) pode corresponder à qualquer framedo sinal de referência (por exemplo, a primeira frase segmentada à mão). A partirdisto é possível calcular a distância/diferença entre os dois sinais, através de uma ma-triz e ir em busca dos componentes desta matriz que sejam iguais a zero (para detalhesver Coleman 2005). No caso deste estudo, o programa de análise acústica da fala uti-lizado, o Praat, fornece a ferramenta DTW e uma ajuda para sua utilização, a qual seefetiva a partir da “rodagem” de um script contendo todos os passos necessários parao alinhamento dos dois sinais-alvo e seus arquivos com rótulos (Textgrids). O script,escrito em um arquivo txt, é feito a partir do “Praat Objects”, clicando-se em “Praat”

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e em seguida em “New Praat script”. Maiores detalhes poderão ser fornecidos a pos-teriori, por razão de espaço.

5. ResultadosA tabela abaixo mostra os resultados dos dados brutos relativos a apenas uma repe-tição do canto, conforme explicitado anteriormente. Podemos verificar que, salvo nasentença 3 e outros dois casos a se discutir, a maioria dos pontos iniciais da sentençaapresenta lags maiores (durações em milissegundos) que os lags do ponto final oumedial. Ou seja, a defasagem entre o ataque da sílaba cantada é maior quanto se en-contra no início da sentença. Temos, aí, então, menor sincronização dos cantores.Além de serem pontos iniciais, e mais propensos à assincronia, esses pontos corres-pondem a uma batida de contra-tempo na partitura, fruto de uma tercina. Neste caso,a nossa hipótese inicial se confirma. No entanto, assumimos que não ancoramos ospontos mediais e finais, necessariamente nas sílabas que carregavam a batida no pulso

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Tabela 1 – Coluna 1: Número das sentenças e palavra que corresponde ao ponto escolhido para se medir o lag; Coluna 2: Localização do ponto escolhido na sentençapara medida do lag. Coluna 3: A duração do lag encontrado, valor em milissegundos.

Coluna 4 : Relação da sílaba (primeira sílaba da palavra da Col. 1) com o pulso fundamental da canção (4⁄4). Coluna 5: Indica se a hipótese foi ou não verificada.

1.Sentença/Palavra 2.Ponto 3.Lag em ms 4.Batida 5.Hipótese 1/um inicial 99 Ct ter sim

1/violão final 35 T 2/esse inicial 94 Ct ter sim

2/canção final 33 Ct sem 3/pra inicial 26 Ct ter não

3/quem final 68 Ct sem 4/muita inicial 142 Ct ter sim 4/pensar final 25 Ct sem

5/e inicial 1000 (sic) Ct ter sim 5/sonhar final 59 Ct sem

6/da inicial 114 ct sim 6/corcovado medial 40 ct

6/que final 69 ct 7/quero inical 29 ct em termos

7/sempre final 39 T 8/com inicial 125 Ct ter em termos 8/de medial 160 Ct sem

8/chama final 60 Ct scol 9/e inicial 144 Ct scol sim

9/triste final 26 T 10/descrente inicial 114 Ct scol sim

10/deste final 63 T 11/ao inicial 10 Ct scol não

11/conheci final 16 Ct ter 12/o inicial 119 Ct scol sim

12/amor final 60 Ct scol

do compasso, por obedecermos ao critério fonético. Ao mesmo tempo, poucas sílabasda canção coincidem com um dos quatro pulsos do compasso musical. É o caso de

“ti” (cantinho), “mor” (amor), “zer” (fazer), entre outras, mas que por sua vez, comosão semínimas pontuadas, carregam uma síncopa até o fim do compasso. O resto dotexto da canção tem suas notas em contratempo, o que faz com que tenhamos prati-camente todas as notas da canção soando sincopadamente.Assim, concluímos que, na comparação feita, há não-sincronia no ponto inicial dasentença lingüística-musical. Valores dos lags próximos a 100, 120 e 140 milissegun-dos ilustram bem esta não -sincronia. Por outro lado, valores entre 30 a 40 milisse-gundos (valores semelhantes aos de lags da fala falada) podem ser considerados comoindicativos de sincronização desta fala cantada, o que nos leva a pensar nos pontosfinais como bastante bem sincronizados, mesmo que apresentem-se correspondentesa batidas de contra-tempo.Em suma, o valor médio das lags iniciais é de 169 ms, ao passo que nas lags finais, ovalor médio encontrado é de 54 ms. Então podemos afirmar que as sílabas em con-tratempo, que é o mais recorrente na canção, obedecem mais a uma sincronizaçãoquando em posição medial ou final, ficando as sílabas iniciais da frase sujeitas à não-sincronização.No tocante à sentença 7, ponderamos que embora o lag do ponto final seja mais longodo que o lag inicial (ver tabela), a sílaba “sem” é uma batida em fase com a pulsaçãobásica da canção, coincidindo com a primeira batida do compasso. O fato da batidalingüística (a da sílaba) coincidir com o tempo forte do compasso parece ser fortecandidato à sincronia. Quanto ao valor de 160 ms do lag medial da sentença 8, cor-respondente a sílaba “de”, deve ter havido hesitação de um dos cantores, causandouma espécie de “erro” na sincronização pretendida. No entanto, casos assim merece-rão maior atenção de nossa parte ao darmos seqüência ao estudo.

Direções futurasO DTW propiciou maior automatização para obtenção das medidas desejadas, poristo seguirá sendo utilizado em nossa pesquisa. O próximo passo é rodar o DTW nasoutras duas repetições da canção e obter valores médios dos lags que sejam passíveisde sofrer uma análise estatística. A nossa hipótese carece de algum refinamento, dadoque a bossa-nova apresenta desafios interessantes em termos de alocação das batidasem contra-tempo, em número maior do que esperávamos. Assumimos, assim, queuma análise rítmica da canção, mais rigorosa que a realizada deve ser feita.

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Música Sistêmica: Intersecções entre processos criativos, concepção estética e composição musical

Felipe Kirst Adami [email protected]

Departamento de Música – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo

Este trabalho analisa, em uma abordagem sistêmica, três elementos, ou sistemasdistintos, mas profundamente relacionados à composição musical: o processo criativo,uma concepção estética baseada nos ciclos vitais e uma obra específica, a SinfoniaSistêmica, criada dentro desta concepção. O processo criativo é visto aqui como umprocesso dinâmico, que, mesmo apresentando elementos em comum entre dife-rentes compositores ou diferentes fases de um mesmo compositor, como na visãoda Teoria dos Estágios e na Gestalt

, possui também elementos individuais e que se modificam ao longo do tempo, peloprocesso de memória e aprendizagem. O ponto de vista defendido aqui leva em con-sideração não só estudos da área da psicologia, mas também da área da psicologiada arte e da música, bem como da composição musical em si. O processo criativo dacomposição possui diversos componentes, sendo a concepção estética um dos maisimportantes, pois cria elementos unificadores no conjunto de obras do compositor.Da mesma forma, a Concepção Estética, como um elemento pessoal do processo cria-tivo, pode transformar a forma de ação do compositor. A Concepção Estética dos CiclosVitais, apresentada aqui, propõe uma analogia entre as etapas dos ciclos e o desen-volvimento musical de uma obra, e inclui elementos do pensamento sistêmico e com-

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plexo através de referenciais teóricos de Fritjof Capra e Edgar Morin e elementos dafísica e da biologia contemporâneas principalmente através de referenciais de Matu-rana e Varela e de Ilya Prigogine. A análise da Sinfonia Sistêmica

serve para demonstrar como o processo criativo e a concepção estética ocorrem naprática, e quais os elementos da obra são identificados como reflexo de componentesdesses dois sistemas, mas também como a obra atua como um sistema que interagecom eles e igualmente os transforma.

Palavras-chave: processo criativo – composição musical – concepção estética – ciclos vitais – pensamento sistêmico

IntroduçãoQuando se fala a respeito de composição musical, pode-se pensar num primeiro mo-mento em um sistema formado por três elementos principais: a obra musical, o com-positor e o processo criativo. O processo criativo pode ser visto como um elo entre ocompositor e sua obra – é o caminho percorrido desde o momento em que resolvecompor até a concretização de uma obra ou conjunto de obras. Existe ainda mais umelemento no sistema, o qual age como um fio condutor no processo criativo, mol-dando o seu produto final: a concepção estética. A concepção estética consiste noselementos musicais e extramusicais que informam a criação do compositor, agindocomo elementos cognitivos dentro de seu processo criativo, conscientes ou não, e di-recionando o compositor em sua produção musical – a concepção estética constituia própria forma de ação do compositor na composição musical. Este artigo está cen-trado, portanto, em uma reflexão sobre os principais elementos envolvidos no pro-cesso criativo da composição musical e sobre uma concepção estética particular, aqual se intitulou Concepção Estética dos Ciclos Vitais, bem como na verificação desteselementos a partir da análise de uma obra musical desenvolvida com esta concepção,a Sinfonia Sistêmica.

O Processo Criativo da Composição MusicalO processo criativo da composição musical consiste em uma complexa rede de ele-mentos, envolvendo aspectos técnicos musicais e aspectos psicológicos, neurológicose sociais. Enquanto algumas teorias aceitas da área da psicologia analisam o processocriativo identificando estruturas fixas de ações ou procedimentos padronizados, comoa Teoria dos Estágios (Wallas 1926) ou a teoria da Gestalt, muitos compositores ten-dem a considerar aspectos mais pessoais do processo, embora freqüentemente tam-bém busquem uma forma de sistematização. A Teoria dos Estágios divide o processo criativo em quatro etapas: preparação — naqual se investiga o problema de diferentes maneiras; incubação — quando o problemaestá lançado, mas permanece sem solução; a iluminação — em que a solução do pro-blema foi resolvida pelo inconsciente, aflorando para o consciente; e verificação —em que o indivíduo dá forma ao produto de sua iluminação. Um ponto importante a

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ser ressaltado é a participação do inconsciente neste processo, não só na fase de in-cubação, mas também na fase de verificação, quando o produto gerado será verificadoa partir dos “cânones estéticos”, podendo ser rechaçado ou admitido e, no segundocaso, colocado em prática (Villar 1974, 282). Alguns compositores também falam emestágios, como Koellreutter (1985), que apresenta um fluxograma do processo com-posicional em diferentes etapas (fig. 1).

Figura 1 — O processo criativo conforme Koellreutter (1985).Para Reynolds (2002), existem também um processo por estágios, embora afirme quenão necessariamente isso ocorre com todos os compositores. O primeiro estágio seriao reconhecimento de uma intenção expressiva a ser utilizada na peça, a qual leva atrês importantes questões: qual formato global se apropria à obra; quais os materiaisadequados; e quais os processo de elaboração serão melhores para trabalhar com osmateriais em direção à forma em larga escala. A forma global da composição seria,ao mesmo tempo, o ponto de partida e de chegada, pois o compositor entende que,antes de começar a manusear os materiais, deve ter uma boa idéia do desenho formalpara o qual a obra deve evoluir. As concepções de Reynolds podem ser relacionadas à visão do processo criativo daGestalt, na qual

a criatividade é vista como a procura de uma solução para uma gestalt, ou formaincompleta. O indivíduo criativo perceberia o problema como um todo, as forçase tensões dentro da dinâmica do problema, e tentaria achar a solução mais elegantepara restaurar a harmonia do todo (Wechsler 1998, 29).

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O processo criativo viria então de um impulso inato para obter uma gestalt completa.A solução do problema vem com um insight (Wechsler 1998, 29-30), semelhante àetapa da iluminação da Teoria dos Estágios.Segundo Arnheim, pesquisador que relaciona a criação artística à Gestalt a intuiçãoseria a responsável pela seleção de aspectos importantes do todo, de acordo com ob-jetivos individuais, ou “forças determinantes, cognitivas tanto como motivacionais”(Arnheim 1989, 18), e por sua reestruturação de acordo com a necessidade. Diferenteda intuição, o intelecto preenche a função da classificação de elementos, agrupandoas variações “sob uma denominação comum”, e permite “aplicar ao presente o queaprendemos antes”, isolando os elementos importantes do todo e permitindo a suapersistência através das mudanças do ambiente (Arnheim 1989, 18-19). Na compo-sição musical, é muito importante este processo de subdivisão, pois torna possívelcolocar em prática uma idéia obtida intuitivamente gerando o suporte físico (comoa partitura). Conforme Ligeti

O processo composicional tem sido absorvido na música como concebido direta-mente através dos sentidos, e o estado bruto [de uma composição] já contém tra-ços do método de trabalho. […] Quando o próprio compositor modifica o contextomusical de toda uma era, a obra na qual esta modificação ocorreu exerce uma in-fluência sobre suas idéias posteriores […]. A concepção primária de novas peçascontém a marca dos processos de trabalho utilizados no desenvolvimento de peçasanteriores. A consequência disto é um efeito de realimentação: o estado bruto épré-moldado por experiências ganhas durante a composição e é, portanto, já nãocompletamente ‘bruto’ (1983, 126).

A afirmação de Ligeti também chama a atenção para um elemento cognitivo impor-tante: quanto mais marcante é para o compositor um elemento de sua música, maisele fica marcado em sua ontologia criativa, e terá maior permanência dentro de seusprocessos composicionais.Manzolli tem uma visão semelhante afirmando que a composição “sofre influênciasambientais, que fazem com que cada processo criativo seja único”, mas está interligadaao desenvolvimento histórico do compositor, já que “entre o domínio sonoro e a es-tratégia de escolha encontram-se os métodos de estruturação musical e este conhe-cimento faz parte da bagagem teórica e/ou prática do compositor” (Manzolli 1997,2).O conceito de “deriva estrutural”, desenvolvido por Maturana e Varela em sua Teoriada Autopoiese1 (1997 e 2001) pode ser utilizado analogamente à evolução do processocriativo da composição musical. No acoplamento estrutural — a relação de um sis-tema e seu meio — as transformações do sistema ocorrem “de um modo que é deter-minado a cada momento por sua estrutura”, que por sua vez resulta “de sua históriaevolutiva e ontogênica de mudanças estruturais congruentes” com o meio (Maturana

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1 Termo que se refere a um padrão de rede em que cada componente participa da produçãoou transformação dos outros componentes da rede.

2001, 185-186). Portanto, ocorrem “seguindo uma dinâmica interna do organismo”,mas “são contingentes” com as mudanças do meio, que apenas as desencadeiam (Ma-turana 2001, 82). A história evolutiva do processo criativo do compositor segue, por-tanto, um caminho de mudanças influenciadas pelas transformações do meio, semprea partir de uma bagagem adquirida, mas igualmente transforma o meio no qual estáinserindo por sua interação, principalmente a partir da difusão de sua obra. A baga-gem adquirida pelo compositor ao longo de sua deriva estrutural são os elementospráticos e teóricos da música, bem como elementos ideológicos, que juntos formarãosua concepção estética, e se refletirão em suas obras.

A Concepção Estética dos Ciclos VitaisA Concepção Estética dos Ciclos Vitais (CECV) apresentada aqui se insere no processocriativo como direcionadora da estrutura musical e do próprio processo criativo. Em-bora a versão atual dessa concepção estética tenha se tornado em grande parte cons-ciente, sua ação ocorreu muitas vezes de forma inconsciente, pois nem todos oselementos que a constituem tinham sido identificados no momento em que uma obraestava sendo composta. Muitos dos elementos constituintes da concepção foram jus-tamente alcançados durante e através da composição das obras, o que indica que ascomposições são alimentadas pela concepção estética, mas também a alimentam. Um elemento básico da CECV é a idéia de crescimento da estrutura musical analoga-mente aos ciclos vitais de nascimento, desenvolvimento, morte e renascimento emum novo ciclo. O nascimento e desenvolvimento podem ter correspondência musicalatravés de diferentes procedimentos, sendo os mais comuns a construção gradual demateriais musicais, o agrupamento ou aproximação gradual de materiais até criaruma unidade sonora, o adensamento dos parâmetros e da textura e o direcionamentode estruturas fragmentarias a estruturas unificadas. A estrutura evolui para um auge,a partir do qual retrocede, utilizando recursos como a fragmentação dos materiais ea rarefação dos parâmetros sonoros, representando um declínio em direção à etapada morte ou indicando a necessidade de uma reestruturação do sistema para que elese mantenha ativo.A CECV é mais ampla do que a simples representação musical deste ciclo, incluindodiversos elementos relacionados e utilizados em analogia, que constituem suas deri-vadas, fruto de um entendimento sistêmico do mundo com analogia a diversos ele-mentos extramusicais que será sintetizado aqui.Os ciclos vitais aqui propostos se referem não apenas ao ciclo de um ser vivo, mastambém a outros ciclos da natureza, envolvendo desenvolvimento em diferentes níveis.Segundo Capra (2000, 260):

Todo e qualquer organismo [. . .] é uma totalidade integrada e, portanto, um sis-tema vivo. [. . .]. Mas os sistemas não estão limitados a organismos individuais esuas partes. Os mesmos aspectos de totalidade são exibidos em sistemas sociais[…] e por ecossistemas que consistem numa variedade de organismos e matéria

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inanimada em interação mútua.Essa organização em diferentes níveis, no entanto, possui dualidades, e a ordem mui-tas vezes é cercada pelo caos. Morin descreve como ocorre esta relação entre ordeme desordem:

[…] toda eco-organização nasce de ações ‘egoístas’, de interações ‘míopes’, de in-tercomunicações banhadas e por vezes mergulhadas no vago, no ruído, no erro,em nichos ou meios sem clausuras nem barreiras […] É por meio desse fervilharcego, míope, egocêntrico, em meio a desordens, destruições, proliferações indes-critíveis, que um Universo — Umwelt — organiza-se.É maravilhoso que essa organização […] não seja reduzida à sua mais simples ex-pressão, mas ao contrário, voltada à sua expressão mais completa; que seja com-plexa precisamente porque nela a unidade e a diversidade extrema, a solidariedadee o antagonismo extremo, não apenas coexistem, mas estão ligados pela necessidade.(Morin 2005, 37)

Nas pesquisas recentes da física e da química, essa aparente desordem é um elementoessencial para o surgimento e desenvolvimento da vida. Segundo Prigogine, “A vidasó é possível num universo longe do equilíbrio” (1996, p.30). Essa é uma regra fun-damental de sua teoria das estruturas dissipativas, em que uma estrutura se forma eé mantida por um fluxo de matéria e energia que passa por ela e se dissipa. Conformeesse fluxo aumenta a estrutura pode chegar a um ponto de tensão que leva a umatransformação a um nível de complexidade maior, chamado por ele de ponto de bi-furcação. Estas estruturas são características dos seres vivos e Capra (2003) a associaà à teoria da autopoiese, de Maturana e Varela. Autopoiese, incluindo a idéia de derivaestrutural.Na matemática do século XX, o estudo da aparente desordem existente em alguns fe-nômenos da natureza resultou no que é conhecido como “teoria do caos”. A teoria docaos se relaciona amplamente com a geometria fractal, desenvolvida simultaneamentea ela por Mandelbrot (Capra 2003). Os fractais são figuras geométricas diferentes dasestudadas na geometria tradicional, por não apresentarem a mesma regularidade. Nanatureza existem diferentes tipos de simetria como a de rotação e a de reflexão, mastambém outros tipos de regularidade sendo uma das mais comuns a proporção áureaque divide o todo na proporção 0,618 para 0,382 (a diferença da menor parte para amaior é igual a diferença da maior para o todo). Os fractais apresentam um outrotipo de coerência: a repetição de padrões característicos em diferentes níveis estru-turais, sem que eles sejam necessariamente idênticos ou apresentem uma relação deproporções fixas. Assim como na seção sobre o processo criativo a concepção estética foi consideradaum elemento essencial, o processo criativo passa também aqui a fazer parte da CECV,já que consiste no meio de interação entre compositor e obra. Segundo Manzolli (1997,2) “o fluxo e refluxo de informação sonora, entre o compositor e a obra, modificamas estratégias de escolha e, eventualmente, criam novos padrões sonoros, que passarãoa fazer parte do próprio domínio de escolha”. Conforme o compositor alimenta a mú-

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sica, nutrindo-a com novos materiais musicais, a música cresce e se desenvolve, e osmateriais utilizados, no conjunto, adquirem funções através de sua inter-relação in-dicando muitas vezes ao compositor o caminho que este deve seguir. O que ocorre ésemelhante ao que Morin chama de “Unitas Multiplex”, quando não só as partes ad-quirem novas propriedades a partir das inter-relações no todo, mas o todo tambémcria limitações, sendo “ao mesmo tempo, mais e menos que a soma das partes”, “maise menos que o todo”, e sendo as partes também “mais e menos que as partes” (2005,p. 36).Serão resumidas agora as das derivadas da CECV geradas a partir das idéias apresen-tadas acima, incluindo sua forma de utilização na composição:

1) Movimento cíclico de eterno retorno em constante evolução — consiste no re-torno transformado de materiais ou de processos musicais;

2) Estruturas dissipativas e pontos de bifurcação — na música existe um fluxo demateriais musicais (a matéria) e crescimento dos parâmetros (a energia) levandoa pontos críticos ou auges (pontos de bifurcação) que conduzem a mudanças es-truturais;

3) Do caos à ordem — as idéias de caos e ordem são utilizadas conforme as seguintesdefinições de Lochhead (2001), que criou algumas classificações da utilizaçãodo caos em composições do século XX: “ordenação para criar um análogo sonorodo caos” (a estrutura é gerada livremente com esse intuito) e “ordenação paracriar imprevisibilidade” (define-se um processo ordenador para gerar caos a par-tir da ordem).

4) A presença de opostos e sua superação ou unificação — consiste na utilização demateriais contrastantes que se integram ao longo da composição.

5) O vir-a-ser contido no germe do ser — consiste na utilização de elementos simplesque se transformam em materiais importantes no decorrer da composição, oupequenas transformações em materiais, as quais se amplificam conforme a com-posição avança.

6) Autopoiese — consiste na criação de novos materiais a partir de materiais já uti-lizados na obra, que por sua vez transformam os materiais que o formaram.

7) Acoplamento estrutural — ocorre quando dois ou mais materiais diferentes in-teragem causando transformações um sobre o outro evoluindo conjuntamente,mas sem que nenhum deles perca sua identidade.

8) A presença de estruturas simétricas, da proporção áurea e de fractais — as sime-trias podem aparecer na estrutura global de uma composição, por semelhançade materiais ou processos. A proporção áurea pode ocorrer entre seções, movi-mentos ou pontos importantes da estrutura e, muitas vezes, as simetrias estãoadaptadas a ela; os fractais aparecem na reprodução de elementos importantesda obra em diversos níveis estruturais;

9) A unidade orgânica do todo e a Unitas Multiplex — a unidade orgânica do todocorresponde às inter-relações entre as partes que constituem o todo, e ocorre na-turalmente pela presença das derivadas anteriores e pelo direcionamento da es-trutura musical análoga aos ciclos vitais. Como a rede de interações entre as

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partes cria uma unidade, o todo é mais do que a simples soma dessas partes, mas,ao mesmo tempo, estas partes podem constituir novos todos quando utilizadasem diferentes contextos e, dessa forma, a soma das partes é também mais do queo todo. O resultado é a existência simultânea de unidade e variedade;

10) A composição e o processo criativo em integração — a interação entre compo-sitor e obra é contínua. Durante o processo criativo o compositor cria materiaismusicais, mas ao mesmo tempo esses materiais direcionam a sua criação. Por-tanto, certos aspectos do processo criativo podem ser entendidos a partir da obrae a obra também pode ser melhor compreendida a partir de aspectos do processocriativo.

Uma visão global do processo criativo da Sinfonia Sistêmicadentro da concepção estética dos ciclos vitais

A Sinfonia Sistêmica é formada por três grandes movimentos que receberam nomesreferentes a diferentes elementos da CECV, que serviram como principal impetus decada um, intercalados por dois intermezzos de curta duração. O projeto de composiçãoda Sinfonia Sistêmica foi contemplado pela FUNARTE, no Programa de Bolsas de Es-tímulo à Criação Artística em 2008 sendo uma motivação a mais no desenvolvimentoda obra, além da própria concepção estética.A pressão para que a obra fosse concluída no prazo levou à busca de soluções inte-ressantes no processo criativo. A concepção da idéia geral da obra começou a se con-cretizar quando tomei conhecimento do edital da FUNARTE. Idéias geradasanteriormente e materiais de composições anteriores foram também utilizados, e oprocesso na verdade não tem uma data inicial e final que possam ser concretamentedefinidos. A seguir, o processo criativo da Sinfonia Sistêmica vai ser comentado deuma forma geral, fazendo-se uma analogia às etapas dos ciclos vitais.

1. NascimentoA idéia de compor uma sinfonia era antiga, mas ficou mais concreta ao se escrever oprojeto da Sinfonia Sistêmica. As idéias iniciais da Sinfonia, no entanto, surgiramquando pensei em iniciar outra obra, para o Duo Cuervo/Adami: um concerto paraflauta doce amplificada, cravo e orquestra de cordas. O cravo pode ser configuradode tal forma que um teclado fica inativo, apenas ocorrendo o ruído das teclas baixando.Isto levou a idéia de um grupo de instrumentos tocando, mas criando somente ruídos.A música iria surgindo de dentro destes ruídos: a ordem surgindo do caos. Comohavia muito pouco tempo para criar a obra, acabei optando por fazer uma versão con-certante de uma peça já existente deixando de lado as idéias mencionadas, as quaisacabaram sendo aproveitadas na Sinfonia Sistêmica, como no trecho a seguir. A idéia de gerar ordem através do caos foi pensada principalmente para iniciar a obra,mas em diversos momentos se retorna também da ordem ao caos ou novamente sedireciona do caos à ordem. Um dos impetus geradores do primeiro movimento veioda idéia de Wallin (1991, xix), de que a música parte do silêncio e retorna ao silêncio,

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mas que o silêncio tem um equilíbrio não estável, ocultando “seu poder para, emcerto momento, liberar todas as combinações imagináveis de energia acústica e ci-nética em um mundo de música e dança”. A leitura do livro O som e o sentido (Wisnik 1989) também influenciou a geração deidéias musicais para o primeiro movimento da Sinfonia. Wisnik exprime da seguinteforma a relação entre sons periódicos, ruídos e silêncio: “O som periódico opõe-seao ruído, formado de feixes de defasagens ‘arrítmicas’ e instáveis” e o som “é um traçoentre o silêncio e o ruído (nesse limiar acontecem as músicas)” (1989, p. 32). A partir dessas referências, as técnicas não convencionais na Sinfonia foram utilizadaspartindo de sons quase inaudíveis após um momento de silêncio, aos poucos gerandoruídos mais fortes e depois alcançando os sons convencionais e se direcionando auma utilização ordenada do conjunto orquestral. As primeiras idéias estruturais doprimeiro movimento foram então a utilização de silêncio, ruído e sons com altura

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2 Os números de compassos aparecem aqui entre [ ].

Figura 2 – Sinfonia Sistêmica, primeiro movimento, [75-80]2.

definida e os primeiros materiais imaginados quando pensei em iniciar a composição,além dos ruídos gradualmente surgindo a partir do silêncio, foram arpejos surgindode uma massa de ruídos orquestrais e depois os primeiros materiais melódicos —ainda mentalmente difusos — e uma concepção global de levar o movimento a ganharforte impulso rítmico na sua continuação.Estas idéias foram utilizadas analogamente na música. No primeiro movimento, porexemplo, foram utilizadas figuras rítmicas e melódicas aparentemente desordenadasnas cordas con legno batuto, mas que na sua utilização conjunta com figurações deoutros instrumentos, agrupados em conjuntos de um a dois compassos, seguidos depausas antes do próximo agrupamento, acabam formando unidades sonoras identi-ficadas como padrões auditivos (fig. 3). Na continuidade da música os agrupamentoscriam uma espécie de macropulsação e vão se aproximando até criar um fluxo maiscontínuo, onde essas pulsações são identificadas não mais pela sua alternância comas pausas, mas pelas oscilações nas alturas. Assim, a ordem estaria sendo alcançadaa partir da desordem.

Figura 3 – Sinfonia Sistêmica, primeiro mov. [87-92]: dois agrupamentos nas cordas con legno batuto, formando unidades sonoras.

Relacionando com os estágios de Wallas (1926), a idéia de criar a Sinfonia seria partedo estágio de preparação. Ela ganha novo estímulo ao tomar-se conhecimento do edi-tal da FUNARTE, entrando claramente na etapa de preparação, onde se começa a de-finir elementos que pudessem ser utilizados na sua estruturação. A utilização da idéiade silêncio, ruído e som, antes imaginada para a outra obra, consiste numa primeirailuminação, que ajudou na elaboração do projeto. Mas a forma como estas idéias iriam se desenvolver foi temporariamente deixada em

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espera. Em um momento em que improvisava e lia uma série de partituras no piano,anotei uma pequena frase musical gerada na improvisação, pensando-se inicialmenteno primeiro movimento, embora ainda não precisando de que forma ela seria utili-zada (fig. 4).

Figura 4 – Esboço da frase gerada na improvisação.

A leitura de uma peça para piano (fig. 5) que eu compusera um ano antes chamou aatenção, pois achei que poderia perfeitamente ser utilizada em conjunto com os ma-teriais da improvisação. No entanto, percebi que os materiais serviriam não comoparte do primeiro movimento, mas que o material gerado na improvisação serviriade auge de uma seção de um novo movimento, iniciada pela peça para piano, a qualfoi orquestrada e utilizada integralmente [1-26]. Esses materiais parecem ter ditadoa partir daí o caminho a ser seguido na primeira seção do movimento: a criação deum trecho direcionando da peça para piano até atingir a idéia gerada no improviso.

Figura 5 – Quatro Esquetes para Piano, n°3, peça utilizada na construção do segundo movimento da Sinfonia.

O aproveitamento de materiais de peças já existentes, bem como de materiais imagi-nados para uma obra, mas utilizado em outra, demonstra como eles estão constan-

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temente retornando à memória do compositor e como processos geradores de umacomposição são revistos e se transformam em um novo ciclo criativo.

2. DesenvolvimentoO segundo movimento acabou sendo composto integralmente antes do primeiro, eesboçou-se um trecho para outro movimento antes de começar a colocar o primeiromovimento no papel. Novamente, foram iniciadas e deixadas de lado, temporaria-mente, idéias geradas para um movimento enquanto outro seria composto. Estes pro-cedimentos acabaram criando um fluxo temporal acronológico no processo criativo,em que elementos de um movimento agem sobre os elementos de outro, criando umaforte inter-relação. Embora parte da estrutura do primeiro movimento já estivessepré-estabelecida, influenciando a construção do segundo movimento, os elementos,já concretos, do segundo movimento certamente tiveram reflexo na construção doprimeiro. Arpejos rápidos que seriam utilizados no primeiro movimento, ainda vi-sualizados difusamente ao ter composto o segundo movimento, por exemplo, con-duziram à utilização de arpejos que aparecem entre duas seções do segundomovimento [66-68] (fig. 6a). Este material se torna um dos mais importantes do se-gundo movimento e seu formato predominantemente quartal e com desdobramentosque acaba se uniformizando (fig. 6b), define, em contrapartida, o formato em queserão construídos os arpejos do primeiro movimento (fig. 6c). Assim, embora os mo-vimentos se desenvolvam como uma sucessão no tempo, eles interagem de formaquase simultânea, numa espécie de processo autopoiético, onde as unidades celularesse produzem e se transformam umas às outras.

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Figura 6 – Comparação entre arpejos em diferentes seções do segundo movimento (a e b) e no primeiro movimento (c).

O primeiro movimento também contém elementos gerados em uma peça eletroacús-tica criada anteriormente, Piano Harm (2008). Materiais do final dessa peça, basica-mente a alternância de acordes entre dois pianos, foram utilizados como elementosde oposição aos materiais que iniciam a segunda seção do movimento. A utilizaçãodeste material acabou sendo o germe para uma decisão que viria mais adiante, nacomposição do terceiro movimento.

3. MorteDurante o processo de criação do primeiro movimento começaram a surgir dúvidassobre como ficaria a estrutura final da obra ao visualizar-se o todo gerado até o mo-mento, uma espécie de reestruturação gestáltica. A finalização do primeiro movi-mento foi o ponto em que a avaliação do objeto composicional foi maior, por teremsido concluídos os dois maiores movimentos da obra. Os esboços que já haviam sidogerados para iniciar um novo movimento passaram a ser imaginados como prováveismateriais para um intermezzo antes do último movimento. No entanto, chegou-se àconclusão de que era preferível ter os três grandes movimentos compostos antes dosintermezzos, e o processo composicional foi lançado em um período de buscas semrespostas imediatas, correspondendo à etapa de verificação da Teoria dos Estágios,em uma macrovisão do processo criativo.

4. RenascimentoO processo é levado a um novo ciclo com o lançamento um novo problema, a cons-trução do movimento final da Sinfonia. O insight veio no momento em que percebique a semelhança de materiais do primeiro movimento da Sinfonia com os materiais

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utilizados na obra Piano Harm ultrapassava o material que havia sido utilizado cons-cientemente no primeiro movimento. Existe também grande semelhança em figurascom forte caráter rítmico baseado em arpejos quartais com eventuais presenças desemitom, existentes em ambas as peças (fig. 7).

Figura 7 – Comparação entre materiais do primeiro movimento da Sinfonia (a) com materiais da seção final de Piano Harm (b).

Decidiu-se, a partir desta constatação, utilizar parte da obra Piano Harm na constru-ção do último movimento da Sinfonia.

3.5 Novo desenvolvimentoA utilização de Piano Harm, se enquadrou perfeitamente na estrutura global da Sin-fonia dando-lhe um caráter de fechamento, pela reiteração dos materiais nos movi-mentos extremos. Também resultou numa idéia de renascimento, não só pelautilização destes materiais, mas pela reutilização da peça Piano Harm em uma novaacepção, com a transformação da parte eletroacústica em sons orquestrais. O inícioda parte utilizada de Piano Harm também mostra relação com uma repetição em ecode padrões extraídos do segundo movimento, utilizados nos esboços que estavam emsuspenso. Optou-se então por utilizar estes esboços definitivamente como um pe-queno movimento intermediário, o Intermezzo II, criando um elo entre o segundo eo terceiro movimentos, e criar outro Intermezzo entre o primeiro e o segundo movi-mentos. Os intermezzos utilizados na Sinfonia funcionam como resquícios post mor-tem dos movimentos recém finalizados, bem como uma espécie de resistência a estedestino, levando à necessidade de uma nova existência. Novamente, com a utilizaçãode Piano Harm e a transformação que ela sofre ao passar ao meio orquestral, levama idéia de um processo criativo autopoiético.

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6. Ciclos dentro de ciclosA conclusão do terceiro movimento e dos intermezzos representa a finalização do se-gundo ciclo criativo da Sinfonia Sistêmica e, ao mesmo tempo, do macrociclo criativoda obra. No entanto, a idéia de renascimento no processo continuará a existir no mo-mento em que cada revisão mostra detalhes a corrigir, e cada nova execução repre-senta não só novas possibilidades de revisão por parte do compositor, mas novasinterpretações do texto musical pelos intérpretes, que correspondem também a umprocesso criativo de transformação do texto em som. O processo de criação destaobra também terá consequências e inter-relações com o processo de outras obras, játendo trazido inclusive pequenas alterações à Piano Harm.

ConclusãoA influência de outras obras sobre a Sinfonia Sistêmica demonstra como o processode interação do processo criativo da obra com o seu meio não é unilateral, e como astransformações podem ser mútuas, como num processo de acoplamento estrutural.Na Sinfonia Sistêmica isso ocorre desde o momento em que começou a ser composta,pela interação com as obras já existentes ou com os pensamentos filosóficos que aalimentaram, e continua a acontecer enquanto ela for executada, ouvida, analisada,por estar na ontogênese do compositor ou de quem de alguma forma tiver interagidocom a obra. O processo criativo pode ser visto também pela ótica da Concepção Estética dos CiclosVitais. Os estágios de Wallas, por exemplo, possui, na busca pela resolução de umproblema, um ciclo de nascimento (preparação), desenvolvimento (incubação), auge(iluminação e verificação), morte (ao finalizar a verificação, conclui-se a busca pelaresolução do problema) e renascimento (a resolução de um problema normalmentegera outros problemas, iniciando um novo ciclo). O processo criativo que começa no nascimento de uma nova composição a partir deum impetus, se desenvolve de acordo com procedimentos regulares, como na teoriados estágios de Wallas, seguindo um padrão de organização, e procedimentos espe-cíficos, correspondentes à bagagem musical e cultural do compositor e a elementosprovenientes do meio que interfiram durante processo, os quais mantém um fluxode energia e de materiais que nutrem o processo e fazem com que ele se desenvolvano tempo.O processo criativo de uma composição chega ao fim no momento em que o compo-sitor sente que os materiais criaram um todo que se sustenta e que eles não poderãocontinuar a ser utilizados produtivamente na manutenção da estrutura musical. Com-parando a um ser vivo, a morte chega quando o seu organismo não consegue maismanter sua organização aproveitando a matéria e energia do meio. Mas assim comoa matéria e a energia do ser vivo que morreu retornam ao meio e são reaproveitadasem novos ciclos vitais na cadeia alimentar, existe uma realimentação do ciclo com-posicional ao finalizar-se o processo criativo. Ele renasce de acordo com o retornodesencadeado através de sua difusão no meio, incluindo a própria reavaliação, cons-

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ciente ou inconsciente, do compositor. Os materiais composicionais e a energia em-pregada na criação da obra se disseminam pelo meio em que o compositor está inse-rido e adicionam novos elementos à sua bagagem composicional teórica, prática eestética e à bagagem de outros compositores.Assim, existem sistemas de interação em diferentes níveis: a obra com o compositor(e sua concepção estética); a obra com outras obras (e num nível mais amplo com oconjunto de obras) deste compositor; a obra e/ou o compositor com o meio com oqual interage recebendo informações, transformando-as e enviando novas informa-ções; e do meio ao qual pertence com outros meios. Existem, portanto, sistemas den-tro de sistemas e ciclos dentro de ciclos. Cada sistema evolui em conjunto com omacro-sistema do qual é parte integrante, numa rede de interações mútuas, que, emúltima instância, o liga ao universo que ajuda a construir e que ao mesmo tempo oconstrói.

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A memória na psicologia cognitiva e memória musical na perspectiva do intérprete

Laura [email protected]

Ricardo Dourado [email protected]

Universidade de Brasília

ResumoExecutar obras inteiras memorizadas tornou-se historicamente um hábito para intér-pretes de música. Este tipo de execução, e todo o processo da memorização musicalde uma obra, apresenta aspectos cognitivos e aspectos musicais, concretizando a per-formance memorizada como uma forma de demonstração de alto nível de conheci-mento musical. A performance de memória é de extrema importância para o músico,promovendo um pleno conhecimento da obra executada, além de ser muito bemvisto pela platéia, por demonstrar virtuosismo e alta familiarização com a obra. Porém,há uma série de fatores que dificultam a execução memorizada, transformando-a emuma prática que gera medo e insegurança, uma forte barreira entre o músico e aobra. Essa barreira torna-se um problema, por prejudicar a formação plena do músico.Para detalhar os processos que levam à execução musical memorizada, e ajudar omúsico a compreender o funcionamento da sua memória, entra a psicologia cognitiva,para explicar como codificamos e armazenamos a música, como a nossa mente operaquando confrontada com o desafio de memorizar uma obra e todos os processos quelevam a uma memorização musical de forma plena e eficaz. Nesta pesquisa foi rea-lizada uma revisão bibliográfica com o objetivo investigar os tipos de memória estu-

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dados pela psicologia cognitiva tradicional e os tipos de memória atribuídos especi-ficamente à memória musical, sendo traçado um paralelo entre ambas, dentro docontexto da performance musical. Desta forma, a psicologia cognitiva pode tornar-seum grande aliado do músico no momento da performance.

Palavras-chavememória – performance – psicologia cognitiva

Introdução Desde que Franz Liszt, em meados do Século XIX, em um momento de fervor inter-pretativo, jogou suas partituras da estante e continuou seu recital todo de memória(Lundin 1953), tornou-se costumeiro o hábito de intérpretes de música realizaremperformances inteiras de memória. Hoje em dia, músicos solistas que não apresentamseu repertório de memória, são vistos com desconfiança, e a platéia geralmente tiraa conclusão que provavelmente o músico não estava bem preparado, ou familiarizadosuficientemente com a obra, e que necessitaria de mais preparação antes de apresentara obra em público.Quando um músico memoriza uma peça, ele a aprende:

“. . . de modo a poder tocá-la “automaticamente”, condiciona seu sistema motor detal forma que ele reage de determinadas maneiras a determinadas sensações cor-porais. Tocar um fragmento de uma composição produz um feedback que traz atona movimentos em direção ao próximo fragmento . . .” (Jourdain 1998, 283).

Considerando então o processo de memorização musical como um processo queocorre na mente, a psicologia cognitiva, que segundo Sternberg “. . . trata do modocomo as pessoas percebem, aprendem, recordam e pensam sobre a informação”(Sternberg, 2000, 22) possui um papel importante no estudo sobre a memorizaçãomusical ao identificar as diversas formas, e todo o processo mental pelo qual a me-morização se dá.O impulso para este trabalho deu-se pela importância e valorização da execução me-morizada por parte do intérprete. Porém apesar de sua extrema importância, a exe-cução musical memorizada é uma prática que ainda gera medo e insegurança,especialmente entre os estudantes. A execução memorizada então, apesar da suaenorme importância para o entendimento total de uma obra, acaba por ser uma prá-tica não muito comum, especialmente entre os estudantes, e a dificuldade para me-morizar músicas acaba tornando-se um problema, prejudicando a formação domúsico.

ObjetivosA pesquisa realizada foi realizada para um projeto de pesquisa de iniciação científicae possuiu como objetivo investigar os tipos de memória estudados pela psicologiacognitiva tradicional, os tipos de memória atribuídos especificamente à memória mu-sical e traçar um paralelo entre essas memórias.Assim como traçar este paralelo, a pesquisa enfocou especificamente na importância

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da memória na perspectiva do músico executante e de que forma a psicologia cogni-tiva pode auxiliar estes músicos em sua trajetória até uma performance de alto nível.A pesquisa relaciona-se com o tema “A Mente e a Música”, considerando-se que a psi-cologia cognitiva é o estudo da mente e de seus processos, e que a música memorizadaé processada pela mente, como cita Shacter:

“A memória recorre ao passado para informar o presente, preserva elementos deexperiências atuais para futura referência e permite que voltemos ao passadoquando desejamos. Os vícios da memória são também virtudes, elementos de umaponte através do tempo, que permite que façamos uma ligação da mente com omundo.” (Schacter 2003, 250)

MetodologiaO método aplicado para a realização desta pesquisa foi o de uma revisão bibliográficade significativas pesquisas sobre memória, tanto no campo da psicologia cognitivatradicional quanto da literatura específica sobre psicologia da música. Esta pesquisabuscou uma fundamentação e discussão teórica da psicologia cognitiva, da impor-tância da memorização na música e de aspectos específicos abordados na memóriamusical.Para fins organizacionais, a literatura será dividida em duas partes: A Memória naPsicologia Cognitiva Tradicional e A Memória Musical Específica.

A Memória na Psicologia Cognitiva TradicionalNa psicologia cognitiva tradicional, a memória é vista como “o meio pelo qual vocêrecorre às suas experiências passadas a fim de usar essas informações no presente”(Sternberg 2000, 204). Dentro da psicologia cognitiva tradicional, o modelo tradicio-nal predominante da estrutura da memória é o modelo sugerido por Richard Atkin-son e Richard Shiffrin em 1968 (Atkinson e Shiffrin apud Sternberg 2000), o chamadomodelo dos três armazenamentos, que atualmente são designados de “memórias”:Memória de Curto Prazo (MCP), Memória de Longo Prazo (MLP) e Memória Sensorial.Segundo Sternberg, esse modelo pode ser caracterizado como:

1. Armazenamento sensorial, capaz de estocar quantidades relativamente limitadasde informação por períodos de tempo muito breves;

2. Armazenamento de curto prazo, capaz de armazenar informações por períodosde tempo um pouco mais longos, mas também de capacidade relativamente li-mitada;

3. Armazenamento de longo prazo, de capacidade muito grande, passível de estocarinformações durante períodos de tempo muito longos, talvez até indefinidamente.

O modelo de Atkinson e Shiffrin, no entanto, não ressalta o importante fato que o es-tudo da memória se baseia em constructos hipotéticos: “conceitos que não são em sipróprios mensuráveis ou observáveis diretamente, mas servem como modelos men-

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tais para compreender-se como um fenômeno psicológico, tal como a memória fun-ciona” (Sternberg 2000, 209).Sternberg discorre também sobre experimentos realizados para se “medir” estas me-mórias, e ressalta o importante fato que a maioria dos experimentos realizados sãoeficazes para se medir quantidade de informação e tempo de armazenamento dasmemórias de curto prazo e sensorial, uma vez que “… não sabemos como testar oslimites da memória de longo prazo e, desse modo, descobrir a sua capacidade. Algunsteóricos sugeriram que a capacidade da memória de longo prazo é infinita, pelomenos em termos práticos.” (Sternberg 2000, 213).Outros modelos mais recentes introduzem a memória operacional, também chamadade memória de trabalho que seria uma “. . . parte da memória de longo prazo, masque também abrange a memória de curto prazo.” (Sternberg 2000, 214). Baddeley(2004) caracteriza o modelo de memória operacional pela existência de um sistemaexecutivo central que gerencia as informações e ações armazenadas. Cowan (1995apud Engle, Tuholski, Laughlin, Conway 1999) destaca que apesar da memória decurto prazo e operacional serem bastante confundidas, a memória operacional é umconstructo mais complexo que a memória de curto prazo, utilizando a mesma afir-mação de Baddeley (2004) que a memória operacional possui um sistema executivocentral.Dentro dessas memórias, destaco também os processos para sua utilização, as cha-madas três operações: codificação, armazenamento e recuperação (Sternberg 1996).A codificação sendo o processo como a informação é armazenada; o armazenamento,a manutenção da informação ao longo de um período de tempo; e a recuperação, aforma de acessar e recuperar a informação (Baddeley 1999).

A Memória Musical EspecíficaNas pesquisas sobre memória musical específica, uma das memórias da psicologiacognitiva tradicional estudadas é a memória de longo prazo, que seria musicalmenteaplicada na memorização de obras extensas. Porém, como citado anteriormente, naafirmativa de Sternberg que a memória de longo prazo é difícil de se mensurar, grandeparte dos estudos sobre a memória musical de longo prazo se restringem a formasde auxiliar o músico a armazenar informações de forma eficaz. Lundin (1958), por exemplo, divide o seu estudo da memória musical em dois. A cha-mada “Memória Tonal” e a “Eficiência em Aprender Música”. A memória tonal seriaa memória específica de se lembrar notas e música. Porém, para ele, há um paradoxono estudo da memória tonal, pois ele não consegue chegar a uma conclusão definitivase ela é decisiva ou não para se medir uma suposta “habilidade musical”. Ele argu-menta que bons solistas, como o pianista Rubinstein abandonaram o palco por nãoexecutarem peças de memória, porém, eram excelentes instrumentistas. Portanto, amemória tonal não teria uma relação tão decisiva com o sucesso musical. Lundintambém argumenta que a maioria dos testes conduzidos à época não mediam a me-morização de obras extensas, apenas de pequenas seqüências de notas. O teste con-

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duzido por Seashore (1938), por exemplo, um dos primeiros testes específicos sobrea memória musical foi feito usando notas não relacionadas, com a justificativa deSeashore que o talento musical é algo hereditário e que a memória musical deveriaser medida sem o uso de treinamento musical prévio. No entanto, Lundin (1953) ar-gumenta que esta pesquisa ignora que a música em geral não é uma série de sons nãorelacionados e sim uma configuração de sons organizados.Na parte sobre eficiência em aprender música, Lundin (1953) discorre sobre elemen-tos que seriam importantes para a memorização a longo prazo de uma obra. A partirdeste estudo, ele então cita uma lista de sete conclusões que podem ser tiradas acercada memória musical específica, e de passos que qualquer músico pode realizar a fimde memorizar uma obra musical:

1. Aprender a peça como um todo é recomendada para peças curtas. Para obrasmais extensas, é recomendável dividir a peça em partes para estudo;

2. O estudo que é espaçado por um período de tempo, ao invés daquele condensadoem uma vez só é mais produtivo;

3. No caso do piano, estudar as duas mãos juntas, ao invés de uma de cada vez émais eficiente, contanto que a peça esteja no nível técnico do intérprete;

4. Um estudo analítico da obra antes de executá-la é bastante eficiente para aprendê-la como um todo;

5. Ao invés de passar um tempo excessivo estudando um peça (“overlearning”),guardar tempo para outras formas de estudo e para a fixação mental, já que o ex-cesso de tempo de estudo não comprovou ser uma técnica eficaz de memorizarmúsicas;

6. Um período de estudo mental também, não apenas a execução técnica da peçaprovou ser eficaz para se aprender uma obra memorizada;

7. A repetição incessante de trechos, na busca por eliminar erros é um método ques-tionável, e não é recomendado.

Seashore (1938) em uma linha de pesquisa similar, fala sobre “Doze Regras para oAprendizado Eficiente em Música”. As suas regras não falam sobre memória musicalem específico, porém, o ato de memorizar uma música pode ser considerado umaprendizado eficaz. Os doze passos seriam: selecionar um campo de interesse espe-cífico; querer aprender; confiar em primeiras impressões; classificar dados: aprenderpensando; cultivar um imaginário concreto; construir unidades de pensamento cadavez maiores; organizar os estudos; descansar economicamente; reorganizar o que foiaprendido e expressar em ações; revisar em ciclos; e, tornar cada nova coisa aprendidaum hábito e aprender obras de um nível adequado.Entretanto, as pesquisas de Seashore e Lundin datam de meados do século passado,e apesar de suas conclusões serem válidas, torna-se necessária uma literatura maismoderna também. Daniel Levitin (2010), em seu livro A Música no Seu Cérebro dedicaum capítulo ao tema “de que é feito um músico?”. Neste capítulo, um dos assuntosabordados é a memória musical. Levitin descreve o exemplo de três pessoas, uma

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com um repertório de músicas memorizadas marcante, outra com uma memória dereconhecimento para uma enorme gama de músicas, e também o caso de um meninoclarinetista, que ao sentir dificuldade em um trecho de uma música memorizada, atoca do início, não apenas do trecho com dificuldade.A partir destes três casos, Levitin descreve três tipos de memória: Memória de Agru-pamento, Memória de Identificação e a Memória Muscular. Na chamada memóriade agrupamento, que “. . . é o processo de juntar unidades de informação em grupospara se lembrar-se deles como um todo em vez das partes individuais” (Levitin 2010,245), os músicos codificam na memória as notas, de forma a facilitar o armazena-mento da informação.

“Os Músicos também usam o agrupamento de várias maneiras. Primeiro, tendema codificar na memória um acorde inteiro em vez das notas individuais; lembram-se de ‘sétima de dó maior’ em vez dos solos individuais de dó-mi-sol-si . . . Em se-gundo lugar, tendem a codificar os acordes e, seqüência, em vez de isoladamente.‘Cadência plagal’, ‘cadência eólia’ ou ‘mudanças de ritmo’ são designações empre-gadas pelos músicos para facilitar a identificação de seqüências de diferentes du-rações.” (Levitin 2010, 245-246)

Este caso seria o da pessoa com um repertório de músicas memorizadas marcante.Porém, ele ressalta que nos músicos, ter uma memória excepcional, não significa me-mória excepcional também em outras áreas de conhecimento, citando o caso damesma pessoa:

“. . . não tem uma memória excepcional para tudo: continua perdendo as chaves,como qualquer um de nós. Os grandes mestres do xadrez memorizam milharesde configurações de jogo. Entretanto, o caráter excepcional de sua memória noxadrez se estende apenas às posições permitidas no jogo.” (Levitin 2010, 244)

Levitin define a memória de identificação como “a capacidade que temos, na maioriados casos, de identificar peças musicais que ouvimos antes.” (Levitin 2010, 246). Talcaso seria o da pessoa com uma memória de reconhecimento para uma enorme gamade músicas. Porém, ele afirma que os estudos nesta área ainda são recentes, e que:

“Ainda não sabemos por que certas pessoas se mostram mais bem-dotadas nestesentido do que outras, o que pode ser conseqüência de uma predisposição inataou constituinte de como o cérebro foi formado, o que, por sua vez, pode ter origemgenética.” (Levitin 2010, 247).

A memória muscular se aplicaria ao caso do menino que não consegue tocar apenasum trecho da música memorizada, tendo que tocar ela do início. Segundo Levitin(2010), o caso do menino ocorreu pois ele estava executando uma seqüência memo-rizada de movimentos musculares, e a seqüência, após interrompida, teve no cérebrodo menino que recomeçar do início. Tal memória muscular, também chamada dememória motora, é abordada ainda no estudo “Pesquisa em Performance Musical noMilênio” (2003), em que Gabrielsson a descreve como: “os dedos parecem saber ondevão”. É uma memória bastante presente entre os músicos, porém com maior freqüên-cia entre os músicos não-profissionais, tendo em vista que os profissionais usam muitotambém a análise da estrutura da obra, em um processo chamado de “prática plane-

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jada”, que seria um estudo direcionado com algum enfoque ou objetivo (como, porexemplo, memorizar a música).Ainda acerca da memória musical de longo prazo, relacionada com a performance ememorização de obras extensas, alguns pesquisadores (Ericsson 1997; Santiago 2001)investigaram também o uso de imagens e representações mentais no momento daperformance para a interiorização da obra. Segundo Santiago (2001) a imagem mentalseria como uma espécie de partitura interiorizada, sendo, portanto, diretamente re-lacionada à memória musical. Na pesquisa é destacada também a importância dasimagens mentais na execução musical de alta qualidade.Em uma pesquisa sobre a execução de obras memorizadas especificamente no vio-loncelo, Chaffin, Lisboa, Logan e Begosh (2010) destacam três princípios que julgaramimportantes e que são presentes no tipo de músicos que chamam de “expert memorists”(especialistas em memorizar). Estes três princípios são: boa codificação do material,uma estrutura de feedback (o processo de feedback é a forma como a informação re-torna ao músico. Segundo Gabrielsson (2003) em performance musical, esse processopode ser auditivo, visual, tátil ou cinestésico) e prática de tempo de feedback. Umaboa codificação seria caracterizada pelo músico já possuir armazenado em sua me-mória estruturas padrões (escalas, acordes, arpejos) que seriam reconhecidas ime-diatamente facilitando assim a memorização de uma obra. Uma estrutura de feedbacké caracterizada pela forma como o cérebro resgata a informação armazenada, e otempo de feedback diminuiria este tempo de resgate, tornando então a obra prontapara ser executada de forma memorizada, segundo os autores transferindo a infor-mação codificada da obra da memória operacional para a memória de longo prazo.Chaffin, Lisboa, Logan e Begosh (2009) também destacam a importância dos pontosde apoio dentro de uma obra memorizada. Segundo eles, pontos de apoio, em que océrebro possa reiniciar uma linha de análise, geram uma sensação de segurança aoexecutar-se uma peça memorizada e são uma forma eficaz de se armazenar uma peça.É mais eficaz, então, armazenar uma peça dividindo-a em partes com pontos de apoiona memória do que um bloco único. Os autores inclusive dividem os pontos de apoioem estruturais, interpretativos, expressivos e básicos. Os estruturais referindo-se àestrutura da música, os interpretativos referindo-se a um ponto de apoio onde a in-terpretação muda, os expressivos onde a “sensação” da música muda, e os básicos emalgum lugar que apresente alguma dificuldade técnica.Além dos estudos específicos sobre memória musical de longo prazo, com a memo-rização de obras extensas para a performance, há também os estudos sobre a aplicaçãoda memória de curto prazo em outros contextos de aprendizado musical, como porexemplo a audição musical:

“A maneira como alguém ouve música depende crucialmente daquilo que é capazde lembrar eventos musicais passados. Uma modulação para uma nova tonalidadeé ouvida apenas se alguém se lembrar da tonalidade anterior. Um tema é ouvidocomo sendo transformado apenas se alguém consegue lembrar a versão original,a partir da qual se deu a transformação. E assim por diante, Uma nota ou acorde

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não tem significado musical senão na relação com as notas ou eventos anteriorese posteriores. Perceber um evento musicalmente (isto é, reconhecer pelo menosparte de sua função musical) é relacioná-lo a eventos passados. Portanto, é im-portante que nós saibamos até que ponto somos capazes de lembrar eventos mu-sicais passados, e que saibamos quais são os fatores que auxiliam a nossa memória.”(Sloboda, 2008, 229).

Em uma linha de pesquisa ainda mais recente, Ricardo Freire conduziu uma pesquisasobre a memória operacional e a nova teoria dos neurônios-espelho para respostasmusicais imediatas, como ditados ou procedimentos de aprendizagem a partir degravações, sendo estes processos chamados de imitações. Existe, porém, uma dife-renciação entre a imitação operacional e a memória de curto prazo: “A imitação ope-racional se diferencia da memória de curto prazo por depender da repetição imediatae da relação entre as informações que estão sendo armazenadas em tempo real”(Freire 2010, 15). A imitação operacional também é tratada como distinta da imitaçãoimediata (neurônios espelho), pela reação ocorrer praticamente de forma simultâneaà ação principal. O exemplo utilizado para este tipo de memória é: “. . . quando umapessoa tenta cantar uma música que não conhece com outra pessoa que esteja can-tando. A pessoa tenta acompanhar a outra cantando “um pouco depois” e muitasvezes completando a frase já iniciada” (Freire 2010, 16).

Discussão e ConclusãoA psicologia cognitiva deve ser usada como uma ferramenta para auxiliar o músicoa entender os seus processos mentais, e assim, melhorar e otimizá-los. Exatamentecomo questiona Diana Santiago: “Como poderia a psicologia cognitiva contribuirpara que o músico possa melhor capacitar-se para realizar a performance musical?”(Santiago 2001, 4).A partir desta pesquisa bibliográfica, foi possível concluir que a psicologia cognitivaé uma ferramenta importante na pesquisa sobre a memória musical, e que todas aspesquisas realizadas e teorias formuladas pela psicologia cognitiva podem ser utili-zadas como apoio para o estudo da memória musical e como ferramentas para o in-térprete melhorar cada vez mais a qualidade de sua execução.As três memórias principais abordadas pela psicologia cognitiva, do modelo sugeridopor Richard Atkinson e Richard Shiffrin em 1968 (Memória de Curto Prazo, Memóriade Longo Prazo e Memória Sensorial) foram também abordadas na literatura musicalespecífica, nas pesquisas apresentadas, e são sempre apresentadas nas pesquisas sobrememorização musical. Sem a base da psicologia cognitiva, com seus estudos sobre amemória na forma de constructos hipotéticos, as memórias musicais provavelmentenão poderiam ser explicadas de forma concisa. Os estudos e pesquisas sobre a memória na psicologia cognitiva também estão maisà frente do que os sobre a memória musical específica, em termos de aplicação prática,experimentos e testes. Estes testes, geralmente realizados com números, palavras ouimagens, podem ser utilizados para explicar comportamentos realizados para arma-

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zenar informações musicais. Santiago (2001) cita, em seu trabalho sobre o processode construção de imagens mentais, um estudo de Instons-Peterson (1997), que afirmaque à nossa época ainda é inexistente um modelo da imaginação auditiva, e que aindatomamos emprestados modelos de imagens visuais. Entretanto, ele afirma que “em-bora baseados no trabalho com a imaginação visual, podem ser aplicados com faci-lidade à imaginação auditiva.” (Instons-Peterson 1997 apud Santiago 2001, 6).Devemos reforçar que a psicologia cognitiva deve ser usada como uma ferramentapara ajudar a explicar os processos mentais do músico e, assim sendo, um apoio nahora de tornar a execução cada vez melhor. Ericsson (1997) denomina esse tipo debusca por uma perfeição cada vez melhor de “expert performance”, a caracteriza comosendo presente em várias áreas de conhecimento, e também explicita a necessidadede intensa preparação para tal: “uma performance de elite é alcançada gradualmente,e cerca de dez anos de intensa preparação são necessários para se atingir um nívelinternacional de performance em domínios tradicionais.” (Ericsson 1997, 25)A busca pela perfeição na execução é o que motiva os intérpretes a buscarem soluçõesdentro da psicologia cognitiva para o aperfeiçoamento, como por exemplo com o usoda “prática deliberada”, termo citado por Gabrielsson. A prática deliberada deve seruma prática presente diariamente na vida do executante de música e, segundo Ga-brielsson (2003), significa que a prática do instrumentista deverá ser cautelosamenteestruturada, para gerar uma melhora na performance. Pressupõe também alta moti-vação e esforço estendido, e atenção total durante a prática (o que limita a extensãoda prática, para um tempo de armazenamento da informação). A prática do instru-mentista deverá também incluir o seguimento de instruções explícitas e supervisãoindividual por um professor, além da análise meticulosa dos resultados e condiçõesde ambiente favoráveis.Estudar horas e horas seguidas e incessantemente (como citado na instrução sete deLundin (1953), em que ele diz que esta prática não é recomendada), como é de cos-tume para alguns instrumentistas pode não ser a melhor solução para se adquiriruma performance melhor. Músicos devem atentar-se para fatos comprovados por pes-quisas na psicologia cognitiva, como o de que a informação necessita de um tempopara ser armazenada no cérebro.Bonneville-Roussy, Lavigne e Vallerand (2010) pesquisaram também a importânciada paixão na aquisição de uma performance melhor. Segundo eles, em diversas áreasdo conhecimento, quando questionados a causa da sua performance melhor que ausual, vários “experts” em suas áreas citam quase que imediatamente a paixão. Váriosoutros fatores cognitivos, ambientais e psicológicos foram incluídos nesta lista tam-bém, mas o que chamou a atenção foi a paixão. Devemos prestar atenção tambémque Bonneville-Roussy, Lavigne e Vallerand (2010) definem que um dos principaisfatores, que definem uma atividade executada como uma execução de alto nível, é ainternalização total desta atividade. O que seria uma internalização total de uma mú-sica se não uma memorização dela? Se considerarmos que a execução memorizadadentro da música é um fator que leva a uma melhor performance, podemos deduzir

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que a paixão pode ser um motivador para a execução memorizada, e que o primeiropasso então para se memorizar uma música é querer memorizá-la.O músico deve visualizar a psicologia cognitiva como um importante aliado, e buscá-la como uma forma de auxílio para suas dificuldades. Há em psicologia cognitiva di-versas pesquisas na área de performance de alto nível, e pesquisas em outras áreascomo esportes e atividades intelectuais podem ser utilizadas como referência para osmúsicos.

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Métodos de memorização e a construção da performance instrumental

Leonardo Casarin [email protected]

Werner [email protected]

Programa de Pós-Graduação em Música da UFG

ResumoO presente artigo enfoca métodos de memorização do instrumentista durante a cons-trução de uma performance musical, os processos cognitivos da música através dossentidos, representações mentais e sua importância. Resultado de uma investigaçãobibliográfica sobre memorização musical e da discussão dos dados pelos autores nodecorrer do ano de 2010 no curso de mestrado em música (performance musical) daUniversidade Federal de Goiás, esta investigação se desencadeou a partir das diversaspropostas de estudos existentes que proporcionam amplas possibilidades metodoló-gicas na abordagem e preparação da performance. Em virtude das representaçõesmentais diferirem em função de fatores pessoais, circunstanciais e musicais, expõe-se a importância do respeito à individualidade do instrumentista. O objetivo destapesquisa é, através do referencial teórico, esclarecer quais são os métodos de me-morização utilizados pelos intérpretes na construção de uma performance instrumen-tal, como ela tem sido abordada ao longo da história e como os autores fundamentama importância da realização de uma performance memorizada. Feita a revisão de li-teratura dos principais textos sobre música e memorização musical ao longo da his-tória, o trabalho prossegue expondo a importância da memorização musical no estudopreliminar a uma performance, concentrando atenção na familiarização com a obra,bem como na diminuição de situações de risco e redução dos níveis de ansiedade. Aparte final do trabalho apresenta os principais elementos que constituem a memori-zação musical com dados reportados pelo referencial teórico. Podemos concluir quecada instrumentista forma o seu próprio método memorização musical durante a suaconstrução da performance. No entanto, para uma preparação segura deve haver umequilíbrio entre as memórias visual, cinestésica e auditiva, assim como outros ele-mentos da cognição musical.

IntroduçãoO presente artigo enfoca a memorização do instrumentista durante a construção deuma performance musical, os processos cognitivos da música através dos sentidos,representações mentais, a importância em uma eventual performance. O termo “Mé-todos de memorização” se refere aos caminhos que o indivíduo percorre para me-morizar um obra, e não à sistematização dos processos para chegar ao determinadoobjetivo. Esta pesquisa é o resultado de uma investigação bibliográfica e discussão dedados por parte dos autores no decorrer do ano de 2010 no curso de mestrado em

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música (performance musical) pela Universidade Federal de Goiás. A prática da memorização musical pelos intérpretes pode ocorrer de diferentes formas,sendo sistematizadas pelo indivíduo através da prática deliberada ou por insistentesrepetições da obra. O ensino desta prática até há poucos anos ocorria quase que ex-clusivamente através da transmissão pelo mestre, que, ao obter êxito em seus proces-sos de estudos, fazia com que seus estudantes percorressem os mesmos caminhos embusca de resultados satisfatórios. Nos últimos quarenta anos, ocorreu uma elevaçãodo número de estudos e publicações sobre a prática da performance e cognição mu-sical. Tal crescimento demonstra uma preocupação crescente na excelência da for-mação do intérprete. O objetivo desta pesquisa é, através do referencial teórico,esclarecer quais são os métodos de memorização utilizados pelos intérpretes na cons-trução de uma performance instrumental, como ela tem sido abordada ao longo dahistória e como os autores fundamentam a importância da realização de uma perfor-mance memorizada.A presente investigação tomou como ponto de partida a diversidade de propostas deestudos pelos professores, concertistas e pesquisadores. A disparidade de informaçõesproporciona amplas possibilidades metodológicas aos estudantes, muitas vezes con-fundindo os instrumentistas que não atingiram maturidade suficiente para controlarsuas decisões nos estudos. Por isso, expõe-se aqui a importância de respeitar a indi-vidualidade do instrumentista, pois a representação mental da música difere segundofatores pessoais, circunstanciais e musicais (Gabrielsson 1999; Jorgensen 2004; Chaf-fin e Logan 2006). Os autores procuram ilustrar os métodos da memorização musicalno decorrer dos estudos de uma obra, tendo em vista a possibilidade destas informa-ções serem aproveitadas indiscriminadamente por performers de maneira geral.

Um histórico das pesquisas em memorização musicalMateriais que abordam a performance musical vêm sendo publicados há poucas cen-tenas de anos, principalmente a partir do século XVIII. Estas publicações se caracte-rizam por métodos instrumentais nos quais os respectivos autores passavam ao seupúblico-alvo sua concepção de “como tocar” determinado instrumento.

Desde aproximadamente o ano de 1700, uma quantidade abundante de livros temsido escrita sobre métodos e abordagens instrumentais, cada um contendo mate-rial para a prática individual. A maioria destes trabalhos baseia-se na experiênciapessoal e na opinião dos autores, e suas visões são muitas vezes contraditórias(Jorgensen 2004, 87).

O século XX acaba tomando alguns outros rumos nesta linha de pesquisa. Emboracontinue aparecendo uma quantidade de publicações com propostas metodológicaspara o ensino de diversos instrumentos, a pesquisa em música começa a criar sub-áreas. Assim, a investigação em performance musical pode oferecer uma gama de ver-tentes, desde a análise de elementos empregados pelo compositor em uma obra, aidentificação de características interpretativas do performer, até algum elemento téc-nico do próprio instrumento musical, tais como processos de transcrição ou o uso dealguma técnica estendida.

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Em sua tese de doutoramento, Luis Cláudio Barros (2008) faz um levantamento dapesquisa empírica a respeito do planejamento da execução instrumental e enquadraas publicações em temas de pesquisas em categorias de abrangência maior, tais como:temáticas relativas à análise do comportamento durante o estudo, organização, ca-racterísticas e tipos de prática; temáticas que abordam estratégias de estudo; temáticasque abordam a representação mental da música e processos cognitivos envolvidos namemorização. Contudo, neste texto, vamos nos deter na última categoria temáticaexposta por Barros (2008). Aliada à evolução das pesquisas na psicologia da performance nas últimas décadas, aprática deliberada da memorização começa a ganhar espaço. Da mesma forma quecontinuam a ser publicados materiais sobre técnicas de memorização, tais materiaiscomeçam a receber notoriedade científica, abrangendo áreas como a psicologia e neu-rociências (Ray 2005).Entre os precursores da investigação sobre música e memorização destacamos o pia-nista húngaro Sandor Kovacs, que no ano de 1916 reportou suas experiências comoprofessor ao investigar as problemáticas envolvidas no processo de memorização deseus alunos (Jorgensen 2004 e Santiago 2001). Jorgensen (2004) expõe que estudosna área do planejamento são relativamente recentes, sendo que nos 20 anos subse-qüentes à publicação de Kovacs apenas 3 trabalhos foram apresentados nesta área.

Desde 1975, o número de estudos publicados sobre estratégias de prática indivi-duais tem aumentado gradualmente a cada década, e aproximadamente dois terçosdos trabalhos publicados de 1916 ao presente têm datas a partir de 1990 (Jorgen-sen 2004, 87).

Corroborando com esta afirmação, para Gabrielsson (2003), o surgimento das pes-quisas sobre o planejamento da performance, assim como sobre a memorização, estárelacionado ao aparecimento dos estudos da psicologia cognitiva na segunda metadedo século XX.Ainda da primeira metade do século XX, a obra Como devemos estudar piano de Lei-mer e Gieseking (1949), com primeira edição em 1930, aborda aspectos tais como amemorização e as etapas para se obter um resultado satisfatório na execução de umaobra musical. O autor instiga o leitor a fazer uma reflexão sobre o que este sendo es-tudado, realizando um treinamento auditivo do que está sendo tocado e procurandoobter uma boa concentração. Destaca-se por não apresentar um conteúdo didáticopara o sujeito iniciar estudos no instrumento, mas a obra é um tratado sobre a cons-trução da performance em que os autores expõem exclusivamente as suas experiências. Entre as publicações do século XXI estão Williamon (2002), Ray (2009), Santiago(2001), Chaffin et al (2009), Chaffin e Logan (2006). Estes trabalhos expõem técnicase estratégias de memorização ou estudos de casos com instrumentistas, e contribuemcientificamente para a performance musical. Os artigos de autoria de Chaffin descre-vem respectivamente os estudos e performances de uma violoncelista e de uma pia-nista ao longo de meses, podendo este primeiro ser considerado “a mais completadescrição do processo de aprendizagem de um músico profissional” (Barros 2008,

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71). O estudo de caráter experimental tem autoria de Williamon e Valentine (2002),onde foram avaliados 22 pianistas de diferentes níveis e discutindo a importância dasfronteiras estruturais para a memorização da performance. Alguns autores como Con-nolly e Williamon (2004), Ginsborg (2004) e Gordon (2006) sugerem sistematizaçõespara a memorização, incluindo algumas estratégias para um bom funcionamento doaparato neurológico durante os estudos.

A memorização musical e a sua importânciaMuitos são os músicos que procuram sugestões de professores e pesquisadores paraconstruir a sua performance. Descobrir os caminhos da memorização musical de mú-sicos profissionais pode esclarecer muito sobre o próprio indivíduo pesquisado, masnão podemos afirmar que servirá igualmente a todos. Com estas afirmações corro-boram Williamon e Valentine (2002) e Gabrielsson (1999), sendo que este último re-porta que existe uma pluralidade de modos para representar mentalmente a música.Assim, sugere que estas representações se diferenciam quanto ao gênero musical, aoinstrumento, às experiências anteriores, ao conhecimento, à personalidade e ao mo-mento de estudo. A natureza da interpretação em qualquer área do conhecimento in-terfere nos respectivos processos de aprendizagem. Assim o planejamento daperformance de cada instrumentista estaria ligado à interpretação, não apenas musical,mas como estes compreendem as informações de quaisquer natureza. O conheci-mento destes processos compartilhado por uma quantidade imensurável de instru-mentistas pode servir como opção para os indivíduos realizarem experimentosdurante o planejamento da performance. Contudo, o encontro da forma que será in-dividualmente mais adequada ocorrerá após uma série de tentativas e erros em meioa que geralmente se sobressai uma compilação das experiências e dos métodos ab-sorvidos.Muitos instrumentistas trabalham a memorização de diferentes formas, algumasvezes ligadas a outras etapas do processo de construção de uma performance musical.Por exemplo, este processo pode ser concomitante à primeira leitura da obra, pelaprática deliberada ou por insistentes repetições. Para o instrumentista este processoinicia com o “arquivamento” mental das notas musicais e dos elementos da linguagemda escrita da música. Memorizar diminui as situações de risco em viradas de páginas ou outros imprevistosno palco, como a ausência de luz necessária. Também permite maior liberdade e me-lhor comunicação entre músicos em um grupo de câmara. As pesquisas de Williamon(2002) reportam várias gravações da performance de uma violoncelista, tocando coma estante (com e sem partitura), sem estante e com a estante escondida. Com isto, oautor concluiu que até mesmo o público sofre uma influência visual na avaliação daperformance, preferindo aquelas cujos intérpretes não dividem o palco com estantese partituras. Hoje em dia é freqüente o público presenciar a concertos cujos solistas se apresentamno palco sem partituras. Para muitos, memorizar pode ser uma tarefa extremamente

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árdua, demandando várias horas de estudo dedicadas apenas a isto. Para alguns au-tores, realizar uma execução sem partitura se tornou sinônimo de competência pro-fissional (Williamon 2002; Chaffin e Logan 2006). Excluindo esta questão “romântica”e visual em torno do instrumentista ao ser presenciado pelo público, consideramosque a memorização já é uma etapa inerente à construção da performance musical. Amemorização apresenta ainda uma grande vantagem no que se refere a maior fami-liarização do instrumentista com a obra, pois há uma maior autonomia e muitas vezesmaior confiança na performance (Williamon 2002 e Ginsborg 2004). Enseja ainda ocontrole dos níveis de ansiedade (Ray 2009 e Gordon 2006), pois memorizar induzsegurança ao performer e maior concentração no palco. Assim, o músico que buscase profissionalizar deve trabalhar a sua capacidade de memorização, pois é provávelque em algum momento de sua carreira isto será necessário.

Os métodos e processos da memorização musicalAnalogamente à musculatura, o cérebro necessita de treinamento constante para gra-var as informações das atividades de estudos e do dia a dia. Existem muitas técnicasde armazenamento das informações, mas o importante é trabalhar a forma em quemelhor se encaixa o indivíduo. Grande parte dos músicos sabem a importância docuidado na realização de movimentos corretos de dedilhados, nas respirações, comode maneira geral com todo o aparato músculo-esquelético durante as seções de estu-dos. A mesma atenção deve se ter com o cérebro ao procurar trabalhar corretamentee evitar desgastes desnecessários. Na música, a memória compreende três aspectosrelacionados aos sentidos. Gordon (2006), Hughes (apud Williamon, 2002), Fernan-dez (2001) apresentam a seguinte divisão no seu treinamento: visual, cinestésica (tátil,digital ou muscular) e auditiva. Estes elementos são chamados por Ginsborg (2004)de memórias sensoriais e podem ser trabalhadas separadamente ou concomitante-mente a fim de obter uma memorização satisfatória.A memória visual consiste em armazenar as informações impressas na partitura ououtras imagens, tais como o posicionamento das mãos no instrumento ou gestos deum regente. Ao visualizar a partitura no decorrer da performance, o intérprete reali-zaria uma espécie de leitura mental da obra. Para Chaffin et. al. (2002) a visão é umdos primeiros caminhos para a memorização de uma obra, momento que o instru-mentista sente a necessidade de prestar atenção no posicionamento das mãos e dosdedos ao executar o instrumento. Este mesmo autor considera que muitos instru-mentistas evidenciam o uso da memória visual ao apresentar dificuldade de trabalharcom edições diferentes da partitura estudada inicialmente. Nos estudos de Williamone Valentine (2002), alguns estudantes de piano demonstraram depositar confiançana visão ao segmentar a obra para memorizar a partir da representação visual da par-titura. O treinamento desta memória pode ser realizado a partir de obras curtas e depouca dificuldade mecânica, aumentando progressivamente a dificuldade das peçasaté o ponto em que freqüentemente será possível visualizar mentalmente uma per-formance inteira.

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A memória cinestésica é uma forma de memorização sensorial relacionada ao tato.É formada a partir da prática no instrumento arquivando mentalmente sensaçõesmusculares dos dedos, da mão e braço, tais como digitação, saltos e movimentos doarco no caso de instrumentos de orquestra da família das cordas. Esta memorizaçãopode ocorrer pela prática deliberada ou até mesmo de forma quase inconsciente. Se-gundo Ginsborg (2004), a memória cinestésica é muito utilizada por amadores ouquando não há compromisso com a obra. Ocorrendo muitas vezes pelo instrumentistarepetir fragmentos ou toda a obra diversas vezes até que este consiga tocar sem o au-xílio da partitura. Pode ser bem utilizada em passagens com complexidade técnicanas quais os instrumentistas possam treinar pequenos trechos como saltos, digitações,escalas, ou ainda isolar as dificuldades e executar as mãos separadas. Realizar umaperformance utilizando a memória cinestésica como principal guia da obra pode serperigoso, segundo Ginsborg (2004), uma vez que a execução musical pautada exclu-sivamente por esse elemento deixa poucas possibilidades para recuperação em casode um erro.Para realizar a memória auditiva de uma obra, o instrumentista precisa ter a capaci-dade de gravar mentalmente seqüência de alturas e ritmos, memorizando melodiase harmonias. Apesar desse aspecto da memória enfatizar o elemento auditivo, Leimere Gieseking (1949) chamam isto de memória visual na medida em que cria uma vi-sualização, isto é, uma compreensão mental de sons imaginários. Segundo estes au-tores, indivíduos com um bom nível de desenvolvimento técnico possuem umatendência natural para reter sons mentalmente. Desse modo, o músico pode imaginarcomo soaria a performance sem estar em contato com o instrumento musical, utili-zando o “ouvido interno”. Ginsborg (2004) afirma que a memória auditiva muitasvezes é formada a partir da freqüente audição do estudante, em suas diversas repeti-ções de trechos ou da totalidade da obra, em seus estudos. Segundo Santiago (2001),existem casos de músicos que desenvolvem um “ouvido fotográfico”, sendo capazesde aprender obras complexas de diferentes gêneros em apenas com algumas audi-ções.Aspectos da memorização na performance musical formados por sentidos como avisão, o tato e a audição formam respectivamente a memória visual, cinestésica e au-ditiva, fornecendo os caminhos para uma execução musical memorizada. Mas paraisto, é importante que cada instrumentista conheça suas capacidades e suas limitaçõespara fazer as suas escolhas durante a construção da performance musical. O conhecimento musical e interpretativo da obra pelo instrumentista também podeservir como auxílio para a memorização de uma obra. Para Chaffin e Logan (2006) eGinsborg (2004), conhecer os limites estruturais e os elementos de uma composiçãopode formar pontos importantes para a memorização. Assim, o instrumentista podedesenvolver a memória conceitual a partir do momento que a música começa a fazersentido para ele, sendo explorada concomitantemente aos caminhos para a memori-zação formada pelos sentidos. Mas para isto é necessário que o intérprete consiga re-conhecer estes limites estruturais da obra, trechos da música que possam ser

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fragmentados, por sinais expressivos, por aspectos interpretativos, por elementoscomposicionais ou mesmo por dificuldade técnica formando assim suas própriasidéias e conceitos sobre a obra. Para Ginsborg (2004), esta memória explora tambémpartes maiores da obra, assim como frases, seções, modulações, ritornelos e outrosaspectos que fazem parte da estrutura da obra. Provost diz que Sandor (Provost, 1992)chama a isto de “memória intelectual ou analítica”, expondo que conhecimento daestrutura e da composição musical ajudam o intérprete na memorização de uma per-formance. Chaffin e Logan (2006) abordam alguns pontos-chave para a recuperação do fluxoda obra em caso de esquecimento, utilizados por instrumentistas para lembrar deuma obra. Estes pontos-chave seriam “marcos” criados pelos intérpretes ao estudaruma obra. Podendo estes pontos-chave ser: estruturais, relacionados à estrutura daobra; expressivos, caracterizados pelas mudanças de caráter da obra, como anda-mento ou textura; interpretativos, locais onde o intérprete precisa colocar especialatenção às mudanças da obra; básicos, aspectos técnicos e mecânicos da obra. Pelasinformações podemos compreender que estes pontos-chave sugeridos por Chaffin eLogan (2006) estão vinculados à compreensão da obra e o uso dos sentidos. Podemosentender que entre estes pontos-chave, os estruturais e expressivos estariam ligadosà memória conceitual, os interpretativos fazem uso da memória auditiva e conceitual.Já as pistas básicas recorrem exclusivamente à memória cinestésica. A memória realizada através de repetições inconsciente com o instrumento pode nospassar a sensação de segurança ao executar a obra inteira sem interrupções, mas podegerar lapsos de memória em uma apresentação pública. Para evitar fatalidades é ne-cessário que o intérprete se detenha na memorização pela da prática deliberada, es-tudando conscientemente cada trecho, empregando os métodos de memorizaçãoadequados a cada passagem. Nos estudos de casos descritos por Williamon e Valen-tine (2000, 2002), Chaffin e Logan (2006) e Chaffin et. al. (2009), informa-se da im-portância do uso da memória visual, cinestésica e auditiva, de modo que mesmo amemória cinestésica pode ser fundamental para a recuperação da memória em casosde lapsos em uma performance. Santiago (2001) expõe as diversas formas como osinstrumentistas podem memorizar uma performance, sendo elas automatizadas peloindivíduo ou não.

Apesar de existir variação considerável nos modos pelos quais os músicos proce-dem para memorizar música, dependendo das percepções que têm de seus pontosfortes e fracos e das necessidades da tarefa, há, de um modo geral, duas aborda-gens: uma se baseia em processos automatizados auditivos, cinestésicos ou visuais;a outra, na análise cognitiva da estrutura da obra (Santiago 2001, 174).

Podemos compreender que a análise cognitiva da estrutura da obra, cuja autora serefere, estaria vinculada à memorização conceitual da obra, pelo fato da memória serformada pela compreensão de elementos presentes na composição musical. Comoparte desta memória conceitual, caracterizada pela compreensão de eventos, Chaffin,Logan e Begosh (2009) expõem as memórias: emocional, estrutural e lingüística.

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Sendo a memória emocional ligada ás nuances e as emoções inseridas na sua inter-pretação da obra pelo performer. A memória estrutural estariam ligada à organizaçãodas seções da obra. Memória lingüística estaria relacionado ao discurso mental queo instrumentista faz ao estudar uma obra, advertindo-o ou sugerindo relações com orestante da obra. Relacionando a memória lingüística com a memória visual e auditiva, os pianistasLeimer e Gieseking (1949) instigam o leitor ao estudo reflexivo. Assim, uma perfor-mance pode ser preparada inteiramente pela visualização mental de todos os elemen-tos da obra — notas, ritmos, harmonias, sinais de expressão e os principaisprocedimentos técnicos — na medida em que permite que o instrumentista seja capazde descrever sua execução inteiramente de memória. Mas para isto os autores consi-deram importante o estudo concentrado, o intenso treinamento auditivo durante osensaios. Como treinamento, o estudante pode começar por obras de níveis mais ele-mentares a fim de gravar estas imagens mentais.Provost (1992) alega que a maioria dos instrumentistas utilizam apenas uma ou duasformas de memorização entre a visual, cinestésica, auditiva e conceitual, enquantorecomenda todas estas formas para reter o máximo possível de informações. Por ra-zões óbvias, uma memorização musical fornecerá maior segurança se cada indivíduofizer o uso equilibrado de todos estes métodos, encontrando sua própria fórmula paraa realização de uma performance inteiramente memorizada.

ConclusõesAs formas de memorização sensorial tais com visual, cinestésica e auditiva, somadasa memória conceitual formadas pela memória emocional, estrutural e lingüística, for-mam os métodos para a realização de uma performance memorizada. Mesmo paraaqueles estudantes de música que consideram esta tarefa extremamente exigente, lem-bramos que a memorização precisa ser praticada constantemente, fazendo que o pró-prio intérprete encontre a sua forma adequada e que se sinta seguro para umaapresentação. Não é o propósito deste artigo desmerecer uma apresentação que o intérprete faz usoda partitura na execução das obras, mas de reforçar a importância do conhecimentode diferentes processos e os caminhos de uma memorização. Os autores tiveram apreocupação de expor alguns aspectos cognitivos da música para que o estudantepossa formar o seu próprio método de memorização no decorrer da sua construçãoda performance musical. Mesmo com a diversidade de propostas de sistematizaçãodos estudos visando a memorização musical existentes, qualquer processo não é apli-cável e seguro indiscriminadamente a todos os performers.

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PÔSTERES

O gesto na performance instrumental Belquior Guerrero Santos Marques

[email protected] Bertarelli Gimenes Toffolo

[email protected] Estadual de Maringá – UEM,

Laboratório de Pesquisa e Produção Sonora – LAPPSO

Palavras-chavegesto musical – performance – actio

O presente trabalho é resultado parcial de pesquisa, pretendendo fazer uma investi-gação sobre as possíveis contribuições que o gesto corporal do instrumentista podemtrazer à significação musical. Autores como Freitas (2005) afirmam que o gesto cor-poral do performer pode ser considerado como um elemento construtivo de comu-nicação e significação, fator epistemológico e expressivo e que contribui para aconstrução da significação musical como um todo. O presente trabalho partiu de umarevisão do conceito de gesto considerando desde o Actio na retórica aristotélica atéos estudos mais recentes sobre o gesto musical e a performance. Posteriormente abor-damos, segundo atores como Freitas (2005) e Iazzetta (1997), de que maneira o gestoinstrumental encontra-se, em alguns casos, distanciado da performance. Como úl-tima etapa, pretendemos demonstrar como considerar o gesto instrumental em re-lação às estruturas musicais de uma obra para violão abordando como o gesto serelaciona com a técnica instrumental e a partir disso como pode contribuir para aconstrução de significação de tais estruturas musicais. Nos últimos anos, tem sido crescente a preocupação de músicos e pesquisadoresacerca do gesto musical, questões perceptuais e discursivas, e também a investigaçãoda importância do gesto na prática artística, seja na execução de obras ou na compo-sição. Tais questões foram levantadas por autores como Smalley (1986), Zagonel(1992) e Wishart (1996) e vêm sendo exploradas por educadores, compositores e mu-sicólogos, o que proporcionou uma produção acadêmica considerável sobre o assuntonos últimos anos. Mesmo despertando um interesse maior somente após a segundametade do século XX, a preocupação do gestual como fator contribuinte à significaçãodiscursiva já está presente desde a retórica grega. Consideramos que o estudo da retórica aristotélica, principalmente do Actio, quecompõe um dos elementos desta arte, é de grande importância ao entendimento dosprocessos significativos e expressivos da gestualidade. Aristóteles ao falar sobre a arte

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retórica e discorrer sobre as etapas e elementos importantes para um discurso, de-fende como é importante para o orador se servir da gestualidade para tornar o dis-curso persuasivo. O gesto deve ser usado então para suscitar no ouvinte paixões,conduzindo-o na linguagem e reforçando a significação desta pelo gesto. Os estudos musicológicos têm afirmado que a música instrumental até o final da re-nascença era produzida principalmente a partir dos cânones composicionais típicosda música vocal e de suas formas intrínsecas de construção de significação a partirdos elementos retóricos textuais. Somente no barroco é que a música instrumentalrealmente se efetiva e as preocupações retóricas e significativas têm que ser conside-radas em um contexto que agora prescinde do conteúdo semântico textual. Neste sen-tido, podemos considerar que grande parta da experiência musical que osinstrumentistas e compositores tinham em sua bagagem, provinha do canto, e comeste, faziam associações de todos os aspectos na execução instrumental. Associaçõesque para sustentar uma coerência prosódica (herança da música vocal) ao discursomusical, usufruíam também do gesto como elemento musical, sendo este, fator in-trínseco à execução instrumental. Trabalhos recentes de autores como Freitas (2005), Iazzetta (1997) Assis e Amorin(2009) apontam dentre outros assuntos pertinentes ao gesto, como este se distanciarada prática da performance nos dias de hoje. Freitas (2005), baseando-se na obra deGusdorf, aponta que no século XIX pós revolução industrial, a concepção que haviasido concebida para a produção em larga escala, dividindo as etapas de produção eespecializando a mão de obras para setores específicos, invadiria e influenciaria opensamento moderno, afetando, obviamente, a produção científica e artística. Istorefletiria na música, como herança do romantismo, período em que o instrumentistaassumira uma posição de prestígio até então desconhecida na história da música oci-dental. O ensino musical pós revolução industrial seria direcionado à formação devirtuoses, conservatórios se moldariam a uma educação que privilegiasse a técnica,tornando a formação do músico voltada para esse fim. Essa abordagem técnica estri-tamente mecanicista, fragmentaria o conhecimento musical, fazendo com que os mú-sicos desenvolvessem a técnica desvinculada do conteúdo e da experiência musical,separando o desenvolvimento sensório motor do emotivo, cultural e perceptual. Acreditamos, que esta fragmentação do aprendizado levantada por Freitas não foiuma causa isolada que distanciaria o gesto da prática musical. Como aponta Iazzetta(1997), o surgimento da indústria fonográfica em meados do século XX também seriaum dos fatores cruciais nesta transformação. Iazzetta considera que antes do surgi-mento da indústria fonográfica músicos e ouvintes associavam o gesto de forma in-separável da prática musical, uma vez que a música, até então, só podia serreproduzida ao vivo. Mesmo no início da era fonográfica, toda a referência de escutamantinha relações com o gesto do instrumentista. A música realizada ao vivo era areferência para a gravação, e a presença do gestual necessário para determinada exe-cução musical era sustentado por uma convenção, que era perpetuada pelos instru-mentistas. Este papel de referência, com o passar do tempo se reverteu, tornando

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como prática instrumental ideal, a execução da obra que mais se aproxima de grava-ções da mesma. Esta constatação de Iazzetta pode facilmente ser relacionada à deFreitas, uma vez que a formação do músico e o contato dele com a música, neste caso,a referência musical partindo da escuta, se tornam um emaranhado cultural quetransforma o pensamento artístico, seja do músico em formação, ou da sociedade,mudando a maneira de produzir e compreender a música. Assis e Amorim constatam que a necessidade de indicações cada vez mais detalhadasna notação musical surgem devido a um distanciamento do gestual. Os autores afir-mam que no período serial, devido à alta quantidade de determinações precisas dosaspectos dinâmicos, temporais, entre outros, o interprete ficou limitado na interpre-tação de tais elementos, diminuindo sua parcela de contribuição interpretativa naobra. Sendo assim, acreditamos que a preocupação com o gesto decorrente do ato perfor-mático pode ser de grande contribuição para a construção da significação musical.Não é intuito aqui desmerecer ou colocar em xeque práticas musicais que prescindemdo gesto corporal como na música eletroacústica solo, ou outras manifestações dotipo. Nesse sentido, discursos sobre o gesto enquanto propriedade musical estruturalou conceitos de gesto como propriedade significativa que emerge do ato perceptivopodem apresentar resultados interessantes como propõem Smalley (2008). Porém,nos restringimos à significação gestual própria da prática instrumental.A idéia central deste trabalho, e o ponto em que ele se encontra no momento, é in-vestigar qual é o gestual corporal que emerge naturalmente da estrutura da obra. Cadatipo de repertório terá suas características principais, dependendo da poética musicalque a suporta, no que se refere a tensão e relaxamento, direcionalidade, entre outras.Acreditamos que o gestual do performer será diretamente interconectado e emergirádessas propriedades estruturais contribuindo efetivamente com a construção da sig-nificação musical. Vale ressaltar que não pretendemos considerar que os interpretesnão realizam os gestos apropriados durante a performance de uma obra, já que acre-ditamos que o conjunto gestual geralmente emerge das necessidades técnicas instru-mentais para realizar a obra e de suas propriedades estruturais, porém acreditamosque a consciência de tais possibilidades pode ser um fator que contribua tanto com aperformance musical quanto o entendimento de como o gestual pode ou não contri-buir com a construção da significação musical tanto pelo interprete quanto pelo ou-vinte.

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Aprendizagem e desempenho motor e procedimentos didáticos:questões no âmbito pianístico

Fernando Pabst [email protected]

Maria Bernardete Castelan Pó[email protected]

Departamento de Música – Universidade do Estado de Santa Catarina

ResumoA intenção da presente investigação foi informar, através do cruzamento interdisci-plinar de conhecimentos, a concepção de um sistema didático pianístico que funda-mentasse e justificasse seus preceitos em axiomas primariamente mecânicos ecognitivos. Trazendo à tona uma discussão acerca de conceitos-chave de áreas comobiomecânica, cinesiologia e ergonomia, este trabalho procurou confrontar os achadosinter-áreas com sua prestabilidade para a área do desempenho pianístico. Perse-guindo teoricamente os conceitos internos à grande área da coordenação motora esua viabilidade para o pianista, encontrou-se dentro da proposta teórica dos “ciclosde movimento” (Póvoas, 1999, 2006, 2007), recurso estratégico de organização domovimento, um modelo de trabalho com potencial para a continuidade desta discus-são. Buscou-se debater, negar ou confirmar os achados da autora ao tê-los aplicadosao estudo de um determinado trecho de um exemplo musical do compositor SergeiRachmaninov, sempre fazendo a ponte com o objeto deste trabalho ao tangenciar adiscussão acerca dos procedimentos didáticos na sua intersecção com questões cog-nitivas e mecânicas.

Palavras-chaveaprendizagem motora – ação pianística – ciclos de movimento

IntroduçãoEste artigo visa dar conta de progressos alcançados na pesquisa em andamento, de-nominada “Técnica, Movimento e Coordenação Motora — Conceitos e Aplicações In-terdisciplinares na Ação Pianística”. Entre as áreas tangenciadas pelo grupo depesquisa estão: biomecânica, cinesiologia, ergonomia e controle motor. Através delevantamento bibliográfico, discussões e o confrontamento de hipóteses testadas pra-ticamente ao instrumento, o grupo desenvolve pontes interáreas de interesse para osestudantes e profissionais do piano.A pesquisa tem como centro de interesse o espaço comum em potencial partilhadoentre a ação pianística e a coordenação motora. Essa articulação não somente é pos-sível como é desejada, haja vista que o movimento é o elemento-meio da ação pia-nística (Póvoas et al. 2006, 59), e um dos principais fatores de desempenho desta açãoé a coordenação motora. Convém definirmos ação pianística como uma ação tal

“construída através do processamento das questões envolvidas na música selecionando,

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coordenando e realizando tanto os elementos da construção musical que constitueme caracterizam cada obra quanto os movimentos que possibilitem esta ação” (Póvoas1999, 80). Portanto, a totalidade do conjunto físico-motor do instrumentista é con-siderada na sua estreita causalidade com o controle da coordenação motora.Eixo essencial e fator determinante da ação pianística, a coordenação motora, pro-cesso ao qual o instrumentista almeja se familiarizar plenamente, informa direta-mente outros dois conceitos — o desempenho motor e a aprendizagem motora. Essesconceitos entram em jogo quando o problema de como se adquirir a coordenaçãomotora desejada é lançado. A aquisição de habilidade passa necessariamente pela fa-miliarização com as entranhas do processo de aquisição de coordenação motora. “Acompreensão e a elaboração exatas das informações sensoriais de movimento comobase de uma direção e regulação corretas do decurso de movimento [. . .] são conhe-cidas como processo essencial da coordenação motora” (Meinel 1987, 153). Situa-se neste espaço o quinhão primariamente motor da ação pianística. Retomandoclassificações padrão, sabemos que a ação pianística realiza-se num contexto de altograu de previsibilidade ambiental e estabilidade, qualificando-se como uma habili-dade fechada, de acordo com o jargão da área das ciências do movimento. Tambémse encontra contingencialmente situada num meio termo entre habilidade discreta eseriada (Schmidt; Wrisberg 2001, 20), donde ambas se fazem presentes durante aexecução do texto musical.A fluência gestual, que requer uma motricidade calculada, deve engajar todo o corpoe não somente os dedos. Para Whiteside , a transferência do texto musical para efetivamusical “deve, além de ser centralmente controlada pela imagem sonora, ser coerente.É o corpo como um todo que transfere a idéia da música para a efetiva produção damesma.” Portanto, os dedos do pianista, a parte mais externa do aparelho pianístico,fazem “parte de um mecanismo que não pode funcionar com todas as suas vantagensinerentes sem o auxílio de um controle central” (Whiteside 1997, 3). Esse controlecentral, essa pré-visão organizacional pode ser definida como sendo o processo au-toconsciente da aprendizagem motora, onde convergem realizações práticas de mo-vimentos específicos e uma atenção cognitiva especial.Reside, na tentativa de se definir separadamente desempenho e aprendizagem mo-tores, um paradoxo, pois “repetições de performance motora são necessárias paraque os indivíduos alcancem altos níveis de aprendizagem motora, e o nível de apren-dizagem pode somente ser avaliado observando-se a performance motora de cadaum” (Schmidt e Wrisberg 2001, 35). Com freqüência, por via desta ansiedade analíticade se isolar o desempenho da aprendizagem, pode ocorrer concepções faltosas de di-dática instrumental. Almejando-se expandir a discussão para uma área mais atinenteà prática, na seção a seguir discutirei a articulação, a meu ver inevitável, entre os con-ceitos de aprendizagem e desempenho motor.

Aprendizagem e desempenho motorResumidamente, aprendizagem motora diz respeito ao ganho “relativamente perma-

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nente de habilidades associadas à prática ou à experiência” (Schmidt e Lee 2005).Nota-se, portanto, a associação direta, desde a mais enxuta definição, que existe entrea “prática” e a aprendizagem. Como demonstra a literatura da área, somente atravésde repetições da prática é possível engendrar o aprendizado motor; mas é importanteressaltar ainda que o desempenho motor, na conjuntura científica que o separa daaprendizagem motora, tem função estritamente teórica, onde uma situação-ideal dedesempenho ocorre dissociada de questões de erro, feedback (retroinformação) e, es-pecialmente neste caso, de aprendizagem. A aquisição de aprendizagem motora “acontece tanto no decurso da vida de um in-divíduo quanto através de gerações. [Ela] é a conseqüência da co-adaptação entre omaquinário neural e a anatomia estrutural” (Wolpert, Ghahramani e Flanagan 2001,488). Esse recurso adaptativo ocorre constantemente e de maneira secundária, detraços fisiológicos. A questão mais premente da ação pianística seria: como controlare regular este processo para que o mesmo aconteça de maneira privilegiada cogniti-vamente? Esta questão engendra necessariamente uma reflexão acerca dos procedi-mentos didáticos disponíveis.A concepção hegemônica e equívoca de que a aprendizagem motora e o desempenhomotor ocupam pontos extremos de uma linha a ser percorrida pelo sujeito leva ne-cessariamente a algumas conclusões, quando transportada ao contexto da ação pia-nística, a listar: que repetições, perfunctórias, de desempenho levarão ao aprendizado;que o status final do desempenho motor não abarca nenhum nível de aprendizagem;que ambos são processos assimétricos; que a conexão entre um e outro processo sedará de forma fisiológica, ao invés de consciente e com níveis de adaptabilidade di-versos. Essa concepção, que chamaremos atomista, defenderia que, conseqüentemente, aspartes equivalem ao todo. Praticamente, isso resultaria numa didática que conteriatipos de prática que são, no nosso ponto de vista, detrimentais para o aprendizadoconsistente, como, por exemplo, o estudo lentíssimo, a separação didática dos várioselementos constitutivos a serem praticados separadamente, como ritmo, articulação,dinâmica, entre outros aspectos. Segundo Whiteside (1997, 68), “o estudo lento é res-ponsável pela criação de uma infinidade de hábitos que serão prejudiciais para a ob-tenção de velocidade mais tarde”.Ao deliberarmos sobre a natureza do sistema músculo-esquelético, veremos que omesmo “é altamente não-linear, no sentido de que somar duas seqüências de coman-dos motores não resulta na soma correspondente dos movimentos” (Wolpert, Ghah-ramani e Flanagan 2001, 488). Disto extrai-se que o todo não equivale à soma daspartes, mas constitui-se em processo paralelo, mesmo alheio, à segmentação analíticado movimento, e mostra-se maior do que suas partições. Tem-se, portanto, que umadidática que advoga a separação de movimentos em micro-unidades, a ponto de des-caracterizar o movimento final desejado, como ocorre quando o estudo lentíssimoao piano é aplicado, resultaria em implicações no mínimo incertas para o instrumen-tista.

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Para uma didática sintética, que considera a primazia da perspectiva final do movi-mento, a característica final do movimento desejado deve ser mantida na sua práticadesde os momentos iniciais, visto que a colaboração de dois movimentos separadosnão resultaria no status motor final. A prática integral do movimento é uma questãoque requer atenção especial, principalmente no que diz respeito à formulação de umsistema que dê conta de sua realização satisfatória desde os estágios iniciais da prática. Esta visualização mais global do movimento e da ação pianística tende a ser benéficapara estudantes e profissionais do piano. Tendo em conta o status motor final alme-jado como caminho para a aprendizagem motora, e não o contrário, torna-se possívelconjugar os dois conceitos — aprendizagem e desempenho — num só, facilitando aocorrência de aquisição de habilidade satisfatória. Deste ponto de vista, pode-se ava-liar se um expediente didático é ou não sintético no seu tratamento da ação pianística,em oposição à uma visão analiticamente segmentada.Para dar conta da ação pianística em seu âmbito de coordenação motora integral, umsistema deveria, portanto, se conformar ao fato de que não existem maneiras teleo-lógicas de se percorrer o caminho entre aprendizagem e desempenho motor. Umexemplo de sistema que pode ser aplicado favorecendo esse ponto de vista é o recurso

“ciclos de movimento” (Póvoas 1999; 2006), que será explicado e ilustrado a seguir.

Ciclos de movimentoConcebido como princípio de relação e regulação do impulso-movimento — ciclos demovimento — o recurso é assim definido pela autora:

“[…] recurso técnico que prevê a organização do trabalho pianístico por meio daexploração consciente de movimentos nos eixos x, y e z e cuja flexibilização nesteseixos é orientada por linhas imaginárias ou desenhadas sobre trechos musicais deinteresse. A opção pela linha de trajetória do ciclo é determinada pelo design mu-sical, conforme a situação funcional mais eficiente, no sentido de otimizar a açãopianística” (Póvoas 2007, 544).

Um movimento experto tipifica-se pela negociação de diversos impulsos, por vezessendo operado por mais de uma alavanca corporal simultaneamente e, portanto sãomais complexos e naturais do que movimentos caracteristicamente retilíneos. Comeste princípio em mente, optou-se por linhas mais parabólicas, que o recurso prevêatravés da decodificação do texto em elementos gestuais e musicais, entre eles o im-pulso e o apoio. De acordo com Póvoas (2006b, 666), são “três as fases componentesde um movimento: face de impulsão, fase de percurso e fase da queda (apoio)”.Segue um exemplo da criação de linhas imaginárias em torno da partitura, acordadascom o design musical, para complementar a explanação anterior, onde as linhas man-tém o propósito de integrar o aproveitamento do impulso inicial aos impulsos inter-mediários (Póvoas 2006b, 666).

Para Kochevitsky (1967) “a realização ao piano de distâncias entre eventos musicaispara as duas mãos [mostra-se] como a questão mais difícil a ser resolvida, [. . .] devidoà conformação assimétrica do teclado”. Isto, aliado ao fato de que a coordenação bi-

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manual está exposta de uma maneira mais simplificada, justifica a escolha do referidotrecho musical para fins ilustrativos.

Figura 1 – Compassos 1 e 2 do Prelúdio para piano op.23 n.5, de Sergei Rachmaninov(Rachmaninov, 1970).

Observando-se a imagem sonora pretendida e o design musical que procede do evento,linhas imaginárias de impulso (setas para cima) e apoio (setas para baixo) foram dis-postas em volta do texto musical. Contando com a participação dos punhos atravésde gestos flexíveis e parabólicos, os eventos musicais em questão são produzidos se-qüencialmente, mesmo que realizados em uma velocidade de execução menor doque a velocidade final desejada. Por meio da elaboração encadeada de processos mo-tores plurais, a tendência de trabalho é de que grandes alavancas (como os membrossuperiores) absorvam e flexibilizem a atuação de alavancas menores (como os dedos),diminuindo, portanto, a interferência negativa de músculos antagônicos no movi-mento tido como ideal.A primeira seta para baixo indica um apoio, com o punho vindo em trajetória des-cendente na nota sol, ao início do compasso 1. Com base na flexibilidade curvilíneasugerida pelo traço imaginário, o movimento segue sem interrupção para o próximoevento — as terças no registro mais agudo e quartas para a mão esquerda — em queo punho, juntamente com o antebraço, realiza uma trajetória de impulso e lançamento.O seqüenciamento das setas, e por conseguinte das trajetórias, contém, em germe, omovimento balanceado que será imprescindível ao satisfatório desempenho musicalnas etapas finais de aprendizado. E,

“se operacionalizados de forma coordenada e contínua, os ciclos possibilitam quemais eventos sejam tocados em uma única inflexão do movimento (seta). Tal or-ganização permite desenvolver uma maior velocidade de execução (rapidez demovimento) devido à otimização da trajetória dentro de cada ciclo de movimento”(Póvoas 2007, 545).

Considerado superficialmente, a decodificação do texto musical em gestos parabólicospode apresentar-se como simples, mas é importante notar que esta transcrição deveser minuciosa, além de orientada por tentativas e erros. Ao trazer nossa atenção paraos tempos finais do primeiro compasso do exemplo, notamos que a concentração de

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eventos de flexibilização demanda que a seta ascendente inclua gestos que poucoantes eram separados por um apoio. Como o compositor especifica a pulsação firmealla marcia, o excesso de apoios não deve inibir este detalhe. Disto tem-se que pres-supor a simplicidade das linhas imaginárias pode ser enganoso, visto que não devemser traçados de modo automático, sem considerar os diversos fatores envolvidos, masde maneira heterodoxa. Na esfera da didática, “o problema que confronta professores [. . .] é como seqüenciara prática de uma variedade de tarefas dentro de uma sessão, a fim de maximizar aaprendizagem” (Schmidt e Wrisberg 2001, 247). A resposta apresentada pela utiliza-ção do recurso “ciclos de movimento” é de interesse. Concentrando sincreticamenteo movimento final em germe no estudo parcial, a utilização dos “ciclos de movimento”chama especial atenção à centralidade da questão da consciência cinestésica e cogni-tiva para a efetiva produção do aprendizado consistente. Enriquecendo o feedbackproprioceptivo, através das sólidas definições das trajetórias a serem seguidas, o usuá-rio do recurso desenvolverá uma linguagem particular e, por conseqüência, um re-pertório de movimentos para confrontar as mais variadas situações técnicas.De acordo com Whiteside (1997, 6), a descrição de uma coordenação motora apta

“teria de abranger as dificuldades do instrumento utilizando o princípio de queuma ação repetida por uma alavanca maior pode absorver ações de alavancas me-nores. A continuidade ativa das repetições das alavancas maiores não deve ser in-terrompida pelas ações das alavancas menores. Isto é essencial para uma técnicafluída.”

Além de conceber a coordenação motora de um modo diferente, o recurso “ciclos demovimentos” também concentra muito do seu atrativo na maneira de conceber aaprendizagem motora. Como os movimentos estão sendo praticados de uma maneiranão-distante da forma final que adquirirão na fase de desempenho motor, o caminhoe o paradoxo mencionados anteriormente são, de certa forma, solucionados. Comodiscorre a autora, os ciclos podem “diminuir a diferença entre a reação muscular du-rante o período de estudo em que determinada obra é executada em andamento maislento e a reação muscular nos estágios” mais próximos da velocidade pretendida (Pó-voas 2006b, 666). O aperfeiçoamento da habilidade motora advirá de uma conciliaçãototal, e não parcial ou seccionada (analítica) das partes constituintes do movimentofinal, quando da aplicação dos ciclos.

ConclusãoA formação da idéia de uma coordenação motora aplicada ao piano é diretamenteresponsável na formulação de programas de treinamento instrumentais e, portanto,de concepções didáticas que necessariamente passam pela discussão acerca da dife-renciação entre aprendizagem e desempenho motor. Se não aliarmos gestos musicaisa elementos motores mais grandiosos, a aquisição de coordenação, como processode aprendizagem motora, sofre. A secção de movimentos em reduções unitárias,como é o caso do estudo lento de trechos musicais cuja realização instrumental final

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deverá atingir altos patamares de velocidade e sem que isto seja previsto, cria verda-deiras barreiras ao desempenho musical veloz e econômico. Isso acontece porque oplanejamento, quando feito de todo, não leva em consideração o status motor finaldesejado e, na secção didática dos elementos musicais que opera, não alia estes ele-mentos com elementos gestuais. Através da utilização dos “ciclos de movimento”pode-se desenvolver um método de estudo onde a prática lenta e calculada não re-sultará em prejuízos para o desempenho final, como é de praxe, mas exatamente nocontrário: com sua negociação interdisciplinar entre design musical e biomecânica,o percurso do movimento está antecipado e definido a priori, assim como as expec-tativas sensorimotoras das ações como um todo. A revisão bibliográfica mostrou-seessencial para corroborar ou não questões e hipóteses que foram levantadas no per-curso da pesquisa, não extinguindo, beneficamente, os vastos questionamentos aindapossíveis para o pesquisador das ciências do movimento e da ação pianística.

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Ao Livro Técnico, 1987).Póvoas, M. B. C. “Controle de Movimento com Base em um Princípio de Relação e Regulação

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Póvoas, M. B. C.; Bencke, E.; Colombi, E. D. “Movimento, coordenação e desempenho músico-instrumental: conexões interdisciplinares” in Anais do I Encontro Nacional de Cognição eArtes Musicais (Curitiba, DeArtes, 2006), 59-65.

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A espectromorfologia como discurso: considerações acerca da obra teórica de Denis Smalley

Maurício [email protected]

Rael Bertarelli Gimenes [email protected]

Universidade Estadual de Maringá – UEMLaboratório de Pesquisa e Produção Sonora – LAPPSO

Resumo O texto a seguir apresenta os resultados parciais de um projeto de iniciação científicaem andamento. Este trabalho tem como objetivo a investigação dos processos de sig-nificação da Música Eletroacústica, em especial da vertente Acusmática, a partir daorganização dos materiais musicais no interior espaço composicional. Para tal propó-sito estamos utilizando como ferramenta a obra teórica do compositor Denis Smalley.Para o autor, o gesto e seus desdobramentos constituem uma importante ferramentade organização discursiva.

A metodologia utilizada foi inicialmente investigar como o conceito de gesto de Smal-ley é considerado em seus textos (1986; 1997; 2008) comparando as semelhanças ediferenças de abordagem do autor ao longo do tempo de desenvolvimento de seutrabalho teórico. Como meio de demonstrar a relevância da teoria de Smalley, estetrabalho está dividido em duas etapas. Primeiramente iremos analisar uma obra acus-mática, identificando os fatores constitutivos do discurso gestual, no qual os principaiselementos envolvidos neste processo são aqueles que possuem o movimento comoagente e estão representados nos conceitos de: gesture, gestural surrogacy, motions,structural functions e behaviour. Em um segundo momento pretendemos verificarcomo a teoria de Smalley pode ser aplicada como ferramenta composicional no quetange à organização discursiva pela criação de uma peça acusmática original.

Palavras-chaveDenis Smalley – espectromorfologia – discurso musical

Introdução: Desde o surgimento da Música Eletroacústica, evidenciado nos esforços de PierreSchaeffer, são recorrentes discussões acerca da organização dos materiais musicais ede como tais organizações podem ser significadas. Tal fato pode ser compreendidopela própria natureza do Tratado de Schaeffer. Em seu Traité des objets musicaux(1966), o autor centrou-se principalmente na descrição das propriedades do materialmusical em si, ou seja, no objeto sonoro, não discorrendo sobre as possibilidades deorganização entre eles, ou sobre suas capacidades semânticas inseridas no discursomusical. Sendo assim, os compositores eletroacústicos, contemporâneos e continua-dores das abordagens de Schaeffer, buscaram oferecer paradigmas que dessem conta

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desta problemática. Dentre os autores que se debruçaram sobre este tema, destacamosaqui o compositor Denis Smalley, cuja principal contribuição é a formulação do con-ceito de Espectromorfologia.Segundo o autor, o conceito de Espectromorfologia refere-se “à forma dinâmica doespectro de freqüências de um som ou estrutura sonora no tempo” (Smalley 2008,29). Este conceito abrange tanto a constituição do material sonoro (tipologia espectrale morfológica) quanto a maneira pela qual estes materiais podem se desenvolver noespaço composicional. Nesta última acepção, o autor identifica o conceito de gesturecomo uma das mais importantes ferramentas para a construção discursiva.Para Smalley, o gesto é entendido como uma resultante espectromofológica que dis-tancia-se de uma determinada meta e/ou dirige-se à uma determinada meta (Smalley1986, 82). Tal resultante sempre apresentou-se para a música por meio do modelodo gesto instrumental, ou seja, a aplicação física de energia sobre uma determinadafonte gera um perfil energético que possui uma relação direta com a ação visual/ener-gética do gesto físico do instrumentista. Esta relação é compreendida pelo ouvintepelo caminho inverso da causalidade gestual (espectromorfologia – fonte – causa).Devido a particularidade dos materiais sonoros da Música Acusmática, o conceito degesto para Smalley passa a ser entendido de maneira mais ampla, buscando abrangertodo o âmbito da experiência sonora e não-sonora. A partir deste princípio o autoridentificou maneiras pelas quais o gesto pode ser compreendido, ou significado, naMúsica Eletroacústica.A teoria dos substituintes gestuais (gestural surrogacy) diz respeito ao processo deafastamento dos sons em relação ao gesto físico (causa) e a fonte sonora originais.Esta teoria pode ser entendida tanto com relação aos materiais sonoros e suas refe-rências extrínsecas, quanto no desenvolvimento entre os mesmos no discurso intrín-seco à composição. No primeiro caso, Smalley propõe que a compreensão e osignificado conferido pelo ouvinte se constitui a partir da relação que os gestos sono-ros da composição possuem com os gestos da experiência humana (sonoros e não-sonoros). A partir disto, propomos também neste trabalho a utilização destesconceitos como agentes de significação a partir do discurso no interior do espaçocomposicional. Isto pode ser alcançado por meio do entendimento de relações de he-reditariedade entre os materiais musicais, que inclui, assim como a teoria dos subs-tituintes de Smalley, afastamento e indicação gestual.O primeiro nível de substituição identificado por Smalley incorpora a noção de gestoprimal (a percepção proprioceptiva) ao mundo sonoro. Pode-se dizer que trata-se do

“som primitivo”, o qual não tem uma intenção musical a priori. Neste nível os sonspossuem seu tipo de material e sua causalidade claramente identificáveis. O substi-tuinte de segundo nível diz respeito ao gesto instrumental tradicional, que contémtodos os gestos sonoros desenvolvidos pela técnica instrumental e as propriedadesespectrais de suas fontes. No terceiro nível de substituição a identificação da causa,da fonte, ou ambos, passa a ser difícil, duvidosa, ou não completamente satisfeita.Caso em que o gesto (causa e/ou fonte) passa a ser inferido. Isto se deve à possibilidade

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de manipulação do material sonoro por meio das técnicas eletroacústicas. Por fim,no substituinte remoto, o que resta são “vestígios” de causa e/ou fonte. Estas tornam-se praticamente desconhecidas ou irreconhecíveis para o ouvinte, o que o força aadentrar na espectromorfologia dos sons. Neste nível, as atividades gestuais são con-jecturadas pela trajetória energia-movimento (Smalley, 1986; 1997; 2008). Smalley(1986; 1997) identificou alguns modelos de trajetórias possíveis que se apresentamem sua forma essencial neste nível, modelos estes denominados como motions.A tipologia dos movimentos está presente em todos os níveis gestuais, no entanto,sua manipulação criativa encontra-se no terceiro nível e é imprescindível para o subs-tituinte remoto. As trajetórias identificadas pelo autor dividem-se em cinco categorias:unidirectional, movimentos que possuem uma trajetória linear; reciprocal, quandoum movimento unidirecional é balanceado pelo seu contrário; cyclic/center, movi-mentos que induzem à existência de um centro ao qual a trajetória se relaciona; bidi-rectional, movimentos que sugerem alteração da dimensão espacial por oposição deduas trajetórias; multidirectional, movimentos complexos que sugerem uma direcio-nalidade difusa.Segundo Smalley (1986), estes tipos de movimento fazem parte do complexo designespectromorfológico, que tem como ponto de partida os modelos arquetípicos damorfologia instrumental (attack, attack-decay e graduated continuant), não-instru-mental, e sua elaboração por meio de relações de correspondência e junção entremorfologias. Todas estas morfologias têm como essência o fato de serem constituídaspelo que o autor chama de spectromorphological expectation. Este conceito propõeque a significação dos movimentos sonoros se dá pela compreensão da história es-pectromorfológica dos eventos. Esta, por conseguinte deve satisfazer as três fazestemporais do movimento: onset, como os eventos começam; continuant, como semantém; termination, como acabam. No que diz respeito à organização discursiva, é evidente na teoria de Smalley como oentendimento de expectativa espectromorfológica é aplicado aos mais variados níveisde constituição da estrutura, do movimento de um simples objeto sonoro, à perfis es-truturais de alto nível. Neste último caso o autor propõe o conceito de structural func-tions, que é representado por termos que procuram explicar características regionaisde movimento. Emergence – prolongation – resolution, são exemplos do modelo onset– continuant – termination aplicado à níveis estruturais mais elevados.Por fim, temos que considerar como os materiais musicais, sejam eles objetos ou es-truturas mais elevadas, interagem no espaço composicional. Ao compreendermosque o discurso acusmático é constituído pelo gesto e suas consequências, estamosafirmando que a maneira pela qual estes materiais se relacionam depende fundamen-talmente da causalidade, ou seja, de como um evento leva a outro. Na teoria de Smal-ley estas propriedades estão agrupadas no conceito de behaviour (Smalley 1986; 1997).

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Resultados parciaisApós compreendermos os aspectos discursivos da teoria de Smalley iremos investigarcomo tais conceitos podem ser aplicados na análise dos primeiros 50'' deIncidences/Résonances, primeiro movimento de De Natura Sonorum de Bernard Par-megiani.

A peça inicia-se com um som nodal percussivo de arquétipo morfológico attack-decay(1). Este objeto, segundo o conceito de gestural surrogacy de Smalley pode ser classi-ficado como um substituinte de terceiro nível, pois parece estar no limiar entre onível instrumental e o remoto, fazendo com que a identificação deste gesto seja pre-sumida. A fase de decay, que corresponde à ressonância do objeto inicial, é sustentadanos primeiros segundos, identificando um movimento plano (unidirectional) (2). Aopoucos o movimento plano começa a se tornar oscilatório (reciprocal) (3) criando aexpectativa de uma nova direcionalidade e estimulando novos eventos de maneiravoluntária (causalidade) (4), ou seja, estes eventos não acontecem de forma confli-tuosa ou resistente.Ao considerarmos os níveis de substituintes gestuais intrinsecamente, identificamoscomo a ressonância do primeiro objeto se afasta do mesmo por meio de transforma-ções em seu conteúdo espectromorfológico, fazendo com que a expectativa de com-portamento do objeto inicial se apresente de maneira inesperada. Tais mudanças nosfazem colocar em questão sua procedência (causa e fonte), propondo-nos assim aexistência de um novo objeto. Podemos inferir então que o som ressonante se com-porta como um substituinte de terceiro nível do ataque inicial. No decorrer deste tre-cho identificamos também como outros eventos (4) estão em relação direta e sãodecorrentes do mesmo som inicial por uma herança gestual. Este fator é de funda-mental importância para a coesão do discurso nesta peça.

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Com relação ao perfil estrutural em um nível mais elevado, podemos dizer que estaprimeira seção analisada comporta-se como uma função estrutural de upbeat, enten-dendo este termo como um perfil estrutural de onset suspensivo, ársico. Enfim, emnível global, entendemos que esta peça se desenvolve entre o nível de substituiçãoterciário e remoto, sendo que (1) pode ser considerado como antecedente aos níveisde substituição, é o “instrumento” da peça, seja este primitivo ou instrumental. Po-demos conjecturar também que o objeto inicial é o gesto global da peça.

Considerações FinaisAcreditamos que, ao identificar na obra teórica de Smalley os fatores principais pelosquais se constitui o discurso na Música Eletroacústica, temos uma proposta interes-sante para experimentar como estes conceitos se apresentam em uma obra acusmáticae como os mesmos favorecem a construção da significação musical no interior do es-paço composicional. Nesse sentido ainda, podemos ressaltar que as propostas doautor para a organização discursiva podem ser de grande valia para a consideraçãode como o discurso musical, em especial da Música Acusmática, pode ser significadopelo ouvinte. Se para Smalley a construção do discurso apóia-se no conceito de gestoque por sua vez apóia-se em categorias fenomenológicas ligadas à estruturas de fundode origem corpórea e relacionadas com aspectos da escuta de dia a dia (som primi-tivo), a sua teoria pode ser uma interessante ferramenta explicativa para a área dacognição musical que se preocupa com as formas de construção de significação mu-sical, área esta que se encontra em crescimento nos últimos anos.

ReferênciasSchaeffer, Pierre. Tratado dos objetos musicais (Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993).

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Smalley, Denis. A imaginação da escuta: a escuta na era eletroacústica, Cognição & Artes Mu-sicais: Revista da Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais 3 nº 1 (2008), 27-41,e 3 nº 2 (2008), 85-96.

Smalley, Denis. “Spectro-morphology and Structuring Processes”, in S. Emmerson (Ed.), TheLanguage of Electroacoustic Music (Londres: Macmillan, 1986), 61-93.

Smalley, Denis. Spectromorphology: Explaining Sound-Shapes, Organised Sound 2 (2), 107-126.

A sonoridade no estudo Pour les Quartes de Claude Debussy: investigando processos composicionais à luz da

transdisciplinaridadeThiago Cabral Carvalho

[email protected] Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI)

ResumoO artigo contempla um ensaio analítico da peça para piano solo Pour les quartes, pre-sente na coletânea Étude (1915) do compositor francês Claude Debussy (1862-1918).Numa visão global, a composição apresenta um idiomatismo baseado sobremaneiranas sonoridades. Ao verificarmos a recorrência deste recurso, detivemo-nos em des-crevê-lo observando basicamente o comportamento acrônico e diacrônico na intençãode compreender a diversificação de complexidade/simplicidade através da forma.Para tanto, elegemos como suporte teorético e metodológico um instrumento decunho transdisciplinar, capaz de estender-se a conceitos provenientes da teoria mu-sical, musicologia, estatística, física e computação para auferir a investigação da obra(Guigue 2007). Ao final, propomos uma reflexão do que fora o ‘projeto da sonoridade’como gerador de uma estratégia peculiar no pianismo debussysta durante sua fase‘pós-tonal’. Esta preocupação pode ser vista em outros exemplos, principalmente nasobras compostas durante a primeira década do século XX, período o qual o compositoremprega o recurso de maneira maturada (Parks 1989).

Palavras-chaveDebussy – sonoridade – análise musical

IntroduçãoO período de transição entre os séculos XIX e XX é demarcado por uma série de di-

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vergências e antagonismos que, de certa maneira, foram essenciais para a proliferaçãodas mais variadas correntes estéticas e tendências conceptuais nos processos criativosmusicais durante o século XX. As nomenclaturas implodiam na mesma dinâmica dastransformações: o exemplo é o termo ‘pós-tonal’ que denota, via de regra, o conjuntode técnicas para expansão do sistema tonal.1 Posteriormente, tal dilatação culminariaem seu desprendimento total graças às investidas schoenberguianas num sistema to-talmente alheio as regras ‘do passado’. No mesmo período, os estudos musicais ga-nham espaço (e status) acadêmico: a musicologia, como disciplina histórica, deteve-se,por sua vez, na averiguação de um repertório de tradição escrita elaborada entre 1600a 1900. Pode-se, então, constatar que a publicação de Forkel (1749-1818) sobre a pri-meira biografia de Bach (1802) é anacrônica se comparado à proposta de Debussyquanto a uma mudança paradigmática estético-composicional de expansão do tona-lismo já presente nas suas peças do final do século XIX (Parks 1989).A mudança só ocorreu no final do século passado quando enfoque especulativo podeaproximar-se, com a devida consistência, das questões relativas à expansão sistêmicadaquele contexto. O interesse por questões como estas só emergiu no final da segundametade do séc. XX quando se percebe uma tendência separatista entre duas disciplinasmuito próximas à musicologia: a análise e a teoria musical contemporânea (p. ex.Agawu 1997; Cook 2001; Kramer 1995; MacCreless 1996; Morgan 1992; Rosand 1995).A valorização da análise musical naquele século é observada através do crescente vo-lume de publicações acadêmicas. Seus instrumentos metodológicos defendem umaobjetividade argumentativa na interpretação do conteúdo musical, focando, estrita-mente, os processos e técnicas empregadas no ato composicional. A abordagem es-trutural2 da música ganha, historicamente (na práxis pós-moderna/contemporânea),um preferencial defendido, inclusive, pela academia: a corrente hanslickiana. ParaHanslick “toda verdadeira obra de arte estabelecerá uma relação qualquer com nossosentimento, mas nenhuma uma relação exclusiva”. A valorização do imanente musicalencontraria, na década de sessenta, seu ponto máximo: nasce o modelo semiológicode Chomsky (1928), ao qual Molino (1975) e Nattiez (1987) transpunham para umarealidade musical em suas análises tripartidas.Com os papéis devidamente seccionados, os musicólogos, compositores e teóricospuderam desenvolver pesquisas ainda mais específicas no campo da música. Apesar

200

1 Corrêa (2005, 173) classifica em duas “as pluralidades de tendências musicais originadas,principalmente no início do séc. XX, quer sejam, a orientação ao encontro da manutenção decentros tonais (conduzindo à criação de técnicas que, de um modo [maneira] mais ou menosevidente, conservam uma funcionalidade harmônica) e a negação incondicional de quaisquerespécies de vínculos hierárquicos ou elos tonais (produzindo, num primeiro momento, a au-sência de significados harmônicos em virtude do desejo de liberdade composicional irrestrita)”.2 Sobre a nomenclatura estrutura, tomamos por base o conceito de Kerman, , cujo termo re-fere-se “à estrutura global das obras de arte – o que faz as composições ‘funcionarem’, que prin-cípios gerais e que características [peculiaridades] individuais asseguram a continuidade,coerência, organização ou teleologia da música”.

da crescente tendência em particularizar cada vez mais este conhecimento, os músicosencontraram o alento investigativo noutros campos do conhecimento, como aconte-cera na Idade Média.3 Atualmente, observamos que a situação bipolar da musicologiacitada por McCreless (1996) é complementada por pesquisadores ‘não músicos’, oriun-dos, sobretudo, destas disciplinas ‘irmãs’ (antropologia, cognição, computação, física,história, matemática, semiótica etc.).Em linhas gerais, taxonomizamos que o desprendimento progressivo frente às leistonais em busca de um novo ideal estético-musical perpassou, basicamente, a desse-melhança entre duas correntes: o discurso o neumático4 (aqui, tão somente, refe-rindo-nos ao parâmetro altura) e a sonoridade (daí subentende-se o fenômeno físicoem larga escala).Importante destacar que o fator sonoridade como gerador formal, sob um viés histó-rico, pode ser notado em exemplos mais tardios:

Compor com a sonoridade, todavia, não constitui uma preocupação nascida ape-nas no século passado. De fato, eu situaria sua origem em Rameau; no século XVIII,portanto, com uma passagem obbligata, evidentemente, por Berlioz. […] [que]vai retomar e desenvolver de várias maneiras essas experiências, as quais, no en-tanto, somente vão encontrar uma descendência muito mais tarde, a partir de Va-rèse ou ainda de Webern (Guigue 2007, 37, grifo do autor).

Em nossa análise, restringimo-nos ao pianismo do início do século passado, desta-cando Debussy como o precursor na composição orientada por sonoridades5.

ObjetivosObservar a intencionalidade generativa formal, mormente focando-nos no compor-

201

3 Citamos, por exemplo, a especulações sobre a divisão do monocórdio feitas por Boécio eGuido d’Arezzo e as contribuições de Zarlino (1517-1590), que se preocupou em codificar esintetizar toda a teoria musical do Renascimento, desde a classificação dos instrumentos atéas regras de composição e afinação da escala; e Galileu Galilei (1564-1642), que empreendeuvariadíssimas experiências relativas ao som, onde muitos o consideram como fundador daacústica experimental. Também é no século XVIII que surge a publicação dos primeiros estudossistematizados sobre os fenômenos acústicos: o artigo de Narcissus Marsh (1638-1713), inti-tulado An Introductory Essay to the Doctrine of Sounds, Containing Some Proposals for the Im-provement of Acoustics (1683), e Joseph Sauveur (1653-1716), com a obra Système General DesIntervalles des Sons, de 1701. O desenvolvimento da acústica auxiliou efetivamente o desen-volvimento da música no período, respondendo o surgimento de um novo instrumental e denovas possibilidades de estruturação, que, forçosamente, influenciaram nesta prática nos sé-culos seguintes. 4 Evidentemente, não nos referimos à notação musical empregada no cantochão, mas, sim, res-tritamente, ao parâmetro altura desconexo do contexto sonoridade que, por sua vez, abrange,além da altura, outros parâmetros do som.5 Scriabin, Ravel e Satie, por exemplo, também conservam este ideário. Cf. p. ex. Massin 1997;Griffths 1987; Carpeaux 1999 e Guigue 2007.

tamento das sonoridades em âmbito acrônico e diacrônico. Faz-se mister compreenderque esta orientação parte, fundamentalmente, das noções de unidade sonora compostae complexidade relativa, respectivamente:

[…] é um momento formado da combinação e interação de um número variávelde componentes. Este momento não tem limite temporal a priori. Ele pode serum curto segmento, um período longo, a obra inteira. A unidade sonora sempreserá um múltiplo, que se coloca no entanto como unidade potencialmente mor-fológica, estruturante da obra (Guigue 2007, 42).[…] à avaliação do grau de atividade de um dado componente numa unidade ena geração de uma dinâmica formal, é a sua taxa de complexidade relativa. A

“complexidade” máxima corresponde à configuração que contribui na produçãoda sonoridade mais “complexa” possível no domínio de competência do compo-nente. Na outra ponta, as configurações mais simples são as que puxam as sono-ridades “para baixo”, para a maior “simplicidade” estrutural (Ibid.).

Também chamamos atenção para a distinção entre componentes ativos e passivoscomo paradigmas sobressalentes a análise, pois:

[…] estes remetem a esta necessidade de colocar em perspectiva hierárquica oselementos constitutivos de uma unidade sonora composta, para resgatar apenasaqueles que realmente exercem algum impacto sobre a forma (Id., 43).

MetodologiaNa obra Pour les Quartes, detivemo-nos em avaliar os níveis de complexidade auxi-liados pela biblioteca SOAL (Sonic Object Analysis Library, http://www.cchla.ufpb.br/mus3/) implementadas no ambiente OpenMusic (http://recherche.ircam.fr/equipes/repmus/OpenMusic/), analisando dez unidades sonoras selecionadas criteriosamente,conforme as noções de componentes ativos e passivos comentadas nos objetivos.6Para tanto, confeccionamos dez arquivos no padrão MIDI (Musical Instrument DigitalInterface), privilegiando aquelas unidades que apresentavam contrastes diferenciadosgerados pela polifonia, articulação, intensidades e registros. Trata-se, portanto, deum estudo comparativo-estatístico (quantitativo) que visa elencar indícios corrobo-rantes a uma intencionalidade peculiar debussysta. Esta metodologia segue, em seusestágios de aplicação, interpretação e avaliação da sonoridade, observação aos se-guintes níveis hierárquicos das estruturas musicais:

a) Primário: constituído de classes de notas ou cromas (nível abstrato);b) Secundário: componentes pertencentes à ordem morfológica ou cinética (acrô-

nicos ou diacrônicos respectivamente) (Guigue 2007, 47-52).

202

6 Disponibilizamos para download um arquivo compactado contendo as dez unidades sele-cionadas na análise extraídas da partitura: http://dl.dropbox.com/u/9146907/Pour_les_quartes_US.zip

Pour les Quartes e Análise da SonoridadeUma constatação imediata, evidente na peça é o agrupamento fusionário e sucessivodo intervalo de quarta em suas diversas configurações interválicas: justo, expandidoe contraído.16 Por conseguinte, seria impraticável propor uma análise calcada nosmoldes ‘tradicionais’, principalmente por esta disposição acórdica ‘incomum’, pelaausência de um referencial cêntrico-tonal ou mesmo de um material melódico-temático a ser desenvolvido.

Figura 1 – Mapeamento dos acordes que compõem o estudo das Quartas de Debussy.

Para uma compreensão mais acurada do posicionamento pós-tonal debussysta, ob-servamos como o compositor administra este discurso estritamente pela sonoridade.

Critérios Analítico-Comparativos em Pour les QuartesDestacamos os parâmetros âmbito e densidade como elementos norteadores ao estudoda obra, portanto, hierarquicamente classificados como globais. Numa ordem mor-fológica, o âmbito é o preenchimento da sonoridade “em relação a um determinadoparadigma (p. ex. a tessitura total dos sons do instrumento de referência)” (Guigue2007, 49). A densidade é a “quantidade relativa de sons em relação ao máximo possíveldentro do âmbito em que a unidade sonora ocupa” (ibid.). Em seguida, cruzamosambos com parâmetros específicos, são eles: altura (registro e seguimento) e duração(ou seja, componentes cinéticos). Desta maneira, pudemos visualizar progressivamente

203

16 Intervalo expandido possui o mesmo significado de aumentado, entretanto, para Carvalho(2009, 26), expandir adéqua-se melhor (terminologicamente) ao acontecimento da dilataçãointervalar – referente ao parâmetro altura, enquanto que aumento é comumente utilizado peloparâmetro intensidade como referencial de “ganho”, de volume sonoro. Cf. também Cabral(2009, 34).

a evolução das 10 (dez) unidades sonoras no contexto geral da composição. Abaixo,enunciamos os parâmetros comparados na referida peça:

a) Âmbito e Densidade;b) Âmbito e direção das alturas;c) Densidade e Registro;d) Densidade e Duração;e) Duração e Registro.

Na seqüência, apresentamos um quadro explicativo detalhando conceitualmente cadaparâmetro em seus respectivos elementos globais:

Quadro 1 – Elementos globais e seus parâmetros na análise das sonoridades.

Avaliação do Âmbito RelativoNo exemplo que segue, verificamos comparativamente o âmbito e densidade. Pode-mos identificar uma segmentação formal a partir da 6ª. unidade sonora (dispostasno quadrante inferior) gerando movimentação oblíqua.

Acrônico Parâmetro Tradução Especificação técnica

Relative range Âmbito relativo Comparação do âmbito global da unidade com um valor máximo pré-definido (1,0) de ocupação na escala geral (ou registro global) do piano.

Absolute range Âmbito absoluto Corresponde aos limites entre as notas inferiores e superiores das unidades.

Notes per register Notas por registro

Listagem na íntegra dos registros graves aos agudos, o qual, o valor 0, representa a nulidade de uso do registro numa determinada região.

Register-filling Preenchimento do registro

Mostra o valor relativo do nível de preenchimento dos registros comparando com o total.

Label of the felt registers Rótulo dos registros Separando em 7 os rótulos numéricos dos registros, tem-se o

valor (-3) o mais grave e (3) o mais agudo.

Register distribution

Distribuição do registro

Um “peso” relativo baseado no valor de entrada definido pelo usuário como “peso do registro” de acordo com as especificidades acústicas do instrumento.

Relative density Densidade relativa

A divisão do número de notas da unidade dentro do máximo permitido (um cluster, por exemplo, receberá o valor max. 1,0).

Diacrônico

Relative duration Duração relativa

Cálculo da duração da unidade em relação a uma densidade de referência (ou seja, a maior duração da obra) em milissegundos.

Relative events density

Densidade relativa dos eventos

Divisão do número de eventos pela máxima possibilidade numérica destes, dentro da duração atual do arquivo (uma informação contida na função file-duration).

204

Gráfico 1 — Comparativo entre âmbito e densidade em Pour les Quartes.

Apresentamos no gráfico abaixo a presença dos graves e agudos no decurso da peça:

Gráfico 2 — Análise do preenchimento dos registros

Há, portanto, uma estabilização do registro grave da unidade 07 em diante.

Avaliação da Densidade RelativaAbaixo, demonstramos a evolução da densidade juntamente com o preenchimentodo registro do piano. Identificamos uma paradoxalidade nestes parâmetros, sobretudono entrecruzamento destes na unidade 06, formulando um ponto equilibrante no de-curso temporal, motivador de um seguimento sonoro-contrapontístico.

205

Gráfico 3 — Relações entre densidade e preenchimento do registroNa seqüência, ainda tomando a distribuição dos registros como parâmetro recorrente,comparamos este com a duração relativa da peça. Observamos a presença de doismomentos distintos: a) maior duração: paralelismo (unid. 01 a 04), contraposição(04 e 05) e aproximação progressiva (unid. 06 e 07); b) menor duração: cruzamentoe inversão parametral das unidades (08 a 10).

Gráfico 4 — Relações entre duração relativa e preenchimento do registroPodemos então resumir que a contraposição destas unidades avaliadas em diversosparâmetros gera indícios de particularidade na disposição formal da peça. Ao enun-ciarmos estes níveis segmentados de complexidade em contra-sentido, tomaremosaqui as unidades 05 e 09, e comparamos âmbito e densidade:

206

Gráfico 5 — Níveis de complexidade máxima entre âmbito e duração relativaEnquanto a unidade 05 possui a maior taxa de duração relativa, seu âmbito é baixo eo inverso ocorre na unidade 09, confirmando, mais uma vez, a hipótese da particu-laridade discursiva pelo seguimento sonoro-contrapontístico.É possível visualizar uma confirmação da formal destas unidades em contexto geralatravés do sonograma.17 Nele, vemos uma seqüência ascendente de eventos sonorosenquanto que, num segundo momento, temos a estaticidade como fator contrastantedo primeiro.

Figura 2 — O sonograma de Pour les Quartes: forma gerada pelos contrastes sonoros

ResultadosAo enfocarmos analiticamente a sonoridade como um processo recorrente na com-posição de Claude Debussy, buscamos enunciar, com base numa preleção técnica, in-dícios de uma particularidade estética do compositor.Ainda que a técnica seja, neste caso, o ponto de partida desta investigação, buscou-se ampliar as limitações da análise restrita ao nível imanente. Ampliamos, portanto,o estudo às particularidades estéticas e estilísticas da peça, sem nos esquecermos deconfrontar os dados com as informações oriundas do contexto histórico.Ao valorizar a autonomia estilística, entidade inerente à obra, conseguimos com-

207

17 O sonograma foi gerado a partir da performance de AIMARD (2003).

preender como Debussy aplicou a técnica da sonoridade na peça: uma preocupaçãosonoro-contrapontística é latente e, por sua vez, geradora de dois momentos contras-tantes significativos. Entendemos que esta orientação prévia seguia sim um programaideológico, mesmo que, no estágio pré-composicional, não houvesse necessidade emmaterializar cuidadosamente o planejamento, como na música serial, por exemplo.Salientamos, pois, que o feitio composicional pode ser considerado um parâmetropassível de análise, como aqui demonstramos. É justamente este elemento que nospermite discernir o feitio de um compositor para outro, independente de gênero, pe-ríodo histórico ou localização geográfica.A sistematização dos princípios técnico-processuais onipresentes no então contexto‘pós-tonal’ do início do século XX — composição por notas e/ou sonoridades — per-mitiu-nos compreender como esta expansão sistêmica fora empregada. Procedendodesta maneira, acreditamos que o mesmo percurso metodológico seja viável a umaidentificação de outras tentativas de expansão do sistema tonal experimentadas aindanaquele período ou mesmo por seus sucessores. Assim, a opção metodológica ade-quou-se a uma lógica incitada pela obra. Eventualmente, quando acionamos as in-tervenções, intuímos, tão somente, uma adequação, ainda mais fidedigna, à dialéticaali intrínseca. Ao adotarmos este posicionamento, concebemos a atividade analíticacomo mediadora, porquanto imprescindível quando em favor da música, não para ométodo.Com reflexo, elencamos uma intencionalidade estético-composicional pela recorrên-cia dos eventos sonoros, seja quando no emprego diversificado da complexidade re-lativa, ou, num projeto mais amplo, construir uma preocupação formalística atravésda sonoridade.Destarte, o presente estudo defende o envolvimento dialógico com as disciplinas queatentem direta ou indiretamente às questões de ordem quantitativa e qualitativa naanálise de dados e sua efetiva contextualização, bem como a viabilidade de adaptaçãoe/ou extensão metodológica a outros objetos de estudo: compositores de outros con-textos estético-estilísticos, de outros países, de um conjunto de obras de diversos com-positores de uma mesma corrente estética etc.

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Carpeaux, Otto Maria. Uma Nova História da Música (Rio de Janeiro: Ediouro, 1999).Carvalho, Reginaldo. Teoria Musical – Tomo II: Altura e Timbre (Teresina: Gráfica e Editora

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209

O atual estado da questão da disciplina psicologia na formaçãode músicos-intérpretes na academia brasileira

Sonia [email protected]

Leonardo Casarin [email protected]

PPG em Música da Universidade Federal de Goiás

ResumoO presente trabalho trata da disciplina psicologia na formação do artista-intérprete ena preparação da performance musical. Sabe-se que o sucesso do instrumentista emuma apresentação pública está ligado ao trabalho realizado previamente. Vários au-tores (Kreut; Ginsborg; Williamon 2008; Ray 2009) afirmam que esta preparação incluio condicionamento físico, o domínio técnico, o conhecimento do conteúdo musical enoções de disciplinas afins como neurociência e psicologia. Entretanto, num breveolhar sobre a estrutura curricular de cursos de música em universidades brasileiras,nota-se que há poucas evidências de que o preparo psicológico faça parte da forma-ção dos músicos que se dedicam à performance. O principal resultado que se chegouao observar o recorte das IES federais é que a psicologia ainda é pouco estudada naformação dos músicos e menos ainda na formação dos performers musicais.

Palavras-chavepsicologia da performance – formação do músico-intérprete – preparação para a performance

IntroduçãoCom o avanço das pesquisas na área da psicologia da música na segunda metade doséculo XX, grupos de pesquisa interdisciplinares passaram a desenvolver trabalhosque demonstram a necessidade cada vez mais latente de tratar a preparação física epsicológica na performance musical de maneira estruturada, formal e definitivamenteincluída na formação acadêmica do músico. Resultados de estudos desenvolvidos porgrupos de pesquisa do diretório CNPq têm sido de extrema relevância para estes es-tudos. Alguns destes grupos são: Performance Musical (UFG), Música, Corpo e Ciência(UFG-UFMG-UNB), Ensino, Controle e Aprendizagem na Performance Musical (UFMG)e Núcleo de Pesquisa em Performance Musical e Psicologia (UFBA).O presente trabalho tem como objetivo principal apresentar e discutir o atual estadoda questão da psicologia na formação de artistas-intérpretes na academia, em parti-cular na preparação destes artistas para a performance musical em universidades fe-derais com cursos de bacharelado e licenciatura em performance. As principaisquestões que nortearam a pesquisa são: como a psicologia está sendo empregada na

210

formação musical do intérprete de acordo com a literatura disponível? Como a psi-cologia tem sido abordada nos cursos de performance musical das universidades fe-derais brasileiras? É no processo de investigação destas questões que o presentetrabalho pretende gerar reflexões acerca do objetivo ora proposto.Através de uma breve revisão da literatura sobre o tema se estabeleceu o estado atualda questão. A pesquisa foi dividida em duas seções: inicialmente foram levantadosestudos de referência para a psicologia da performance musical segundo publicaçõesde pesquisadores atuantes no Brasil, Europa e EUA. Na segunda parte foi realizadauma busca pelos currículos de graduação nos cursos de música das universidades fe-derais brasileiras. O critério de seleção dos cursos seguiu a classificação do ENADE(Exame Nacional de Desempenho de Estudantes do INEP-MEC) de 2009, o qual con-siderou os cursos de música que atingiram os melhores conceitos na última avaliação(conceitos 3, 4 e 5). Subseqüentemente, elaborou-se um quadro comparativo dos cur-sos selecionados, que serviu de base para a discussão do estado da questão da psico-logia como disciplina aplicada na formação de artistas-intérpretes na academiabrasileira. O presente estudo está em sua primeira fase. Pretende-se aprofundar a dis-cussão em trabalhos subseqüentes.

Estudos em Psicologia da Performance MusicalA revisão de literatura evidenciou que as pesquisas empíricas em psicologia da músicativeram início na primeira metade do século XX, sendo o marco destas pesquisas re-gistrado por Carl Seashore (1938). O pesquisador desenvolveu trabalhos de análisede interpretação musical com base em experimentos que são referência principal-mente para desmistificarem a idéia de que aspectos da percepção não poderiam sermedidos ou estudados na interpretação musical. Outros marcos se consolidaram aolongo do século XX desenvolvendo idéias propostas por Seashore bem como novaspropostas surgidas principalmente dos estudos da neurociência e cibernética, nabusca por uma inteligência artificial cada vez mais eficiente. Diana Deutsch (1982 rev.1999) reuniu textos de alguns dos pesquisadores mais atuantes em psicologia da mú-sica, entre eles Alf Gabrielsson, que apresenta na publicação uma significativa revisãoda literatura sobre o tema (ampliada em publicação de 2003). Após este marco as pes-quisas se ampliaram tanto que as revisões sobre o tema não foram são mais possíveissem uma subdivisão dos estudos de psicologia da performance musical em sub-tó-picos tais como: percepção rítmica e performance, percepção corporal e performance,memória e performance, controle motor e performance, e assim por diante. Quantomais os estudos se ampliam menos viável se torna uma revisão ampla da literatura.Ao mesmo tempo, a demanda sobre estudos específicos de aspectos psicológicos re-lacionados à performance musical é cada vez mais alta, acompanhando o tambémconstante aumento da excelência em performance (Rink 2002; Williamon 2004; Chaf-fin e Logan 2006).A música começa a buscar apoio em outras áreas do conhecimento como a psicologiae as neurociências (Ray 2005), conseqüência de uma constante preocupação com o

211

preparo do intérprete para uma performance. Nota-se também que a psicologia damúsica tem se dedicado intensamente em questões como percepção musical, efeitossonoros no comportamento da mente humana e aspectos psicopedagógicos da música.A psicologia da performance focaliza o funcionamento da mente humana quanto osaspectos cognitivos como a memorização, os processos de aprendizagem, realizaçãode nuances musicais, até as interferências negativas, como a ansiedade, como prová-veis causadores e sugestões para evitar.Observou-se também que os músicos vêm se beneficiando cada vez mais dos estudosenvolvendo psicologia, à medida que se unem aos psicólogos e neurocientistas empropostas de pesquisas interdisciplinares, buscando explorar possibilidades de estudoda interpretação musical (Gerling; Souza, 2000 e Gerling; Santos, 2007). Num pri-meiro momento o músico era um participante colaborador em pesquisas, mas nofinal do século este papel foi mudando gradativamente para uma atuação mais efetivade pesquisadores atuantes e determinantes dos objetivos de muitos estudos em psi-cologia da música, notadamente nos estudos de performance musical.

Disciplina Psicologia na Formação de Músicos-Intérpretes no Brasil

Através de uma consulta aos currículos das universidades federais, foi possível traçaruma visão geral da inserção de estudos de psicologia ao longo da formação do mú-sico-intérprete. A opção pelas universidades federais se deu por ser um fator delimi-tador com dados disponíveis on-line em órgãos oficiais (MEC e site das própriasinstituições), eliminando a necessidade de um trabalho de campo neste estágio inicialda pesquisa. A consulta tomou por base os dados o ano de 2009 e mostrou que eramentão quatorze as IES federais com curso de música entre os conceitos 3, 4 e 5: UFBA,UFRGS, UFC, UFMG, UFSCAR, UFSM, UFMS, UFG, UFRJ, UNB, UFOP, UFU, UFPR, UFES.Destas, apenas quatro (UFC, UFSCAR, UFMS, UFPR) não ofereciam cursos de bachare-lado ou licenciatura em instrumento/canto. Este quadro não mudou até o momento,de acordo com os sites das instituições pesquisadas, como demonstra o quadro abaixo(figura 1).As disciplinas relacionadas à psicologia na formação acadêmica do músico estão emsua maioria voltadas para a formação de professores sem uma preocupação evidentede que o músico em formação esteja recebendo informações sobre como preparar asi mesmo para atuar profissionalmente como intérprete. Ainda que em caráter opta-tivo, dentre as 10 IES selecionadas, a UFG é a única instituição que oferece a disciplinapsicologia direcionada a preparação do intérprete de forma direta, como componenteda grade curricular. Um olhar mais aprofundado nas ementas das disciplinas aindaserá feito para que se possa determinar como o conteúdo das mesmas abordam a ati-vidade do músico prático.

212

Figura 1 – Quadro comparativo dos cursos selecionados (ENADE-INEP-MEC, 2009)

Considerações FinaisUm breve olhar sobre as publicações que abordam a psicologia da performance, dis-ponibilizadas ao longo do século XX e no início do século XXI, evidenciam uma atua-ção cada vez mais efetiva de músicos nos grupos de pesquisa, notadamente os gruposinterdisciplinares. Nestes grupos, a interação entre pesquisadores neurocientistas,psicólogos e fisiologistas com pesquisadores da área de música estão cada vez maisaprofundadas na medida em que se busca aspectos que fundamentem a preparaçãopara um performance de excelência. Entretanto, tal desenvolvimento nas pesquisasainda têm pouco reflexo nos currículos das universidades federais brasileiras que ofe-recem cursos de bacharelado em instrumento/canto ou licenciatura em música. Nota-se claramente que as disciplinas relacionadas á psicologia da música quandoconstam nas grades curriculares são quase totalmente voltadas para a atividade dedocência e não para a preparação do estudante para a atuação como músico-intérprete.Apesar disto, o Brasil vê crescer a cada dia os estudos da psicologia da música emprodutos de grupos de pesquisa interdisciplinares (a exemplo dos sediados pela UFG,

IES Curso Disciplina Relacionada à Psicologia Caráter Carga Horária

Semestral Conceito ENADE 2009

Psicologia Musical Optativa UFBA

Licenciatura em Música e

Bacharelado em Instrumento/canto

Psicologia Aplicada à Educação Bacharelado/ Optativa Licenciatura/Obrigatória

Não Informada 5

Licenciatura em Música e

Bacharelado em Instrumento/canto

Psicologia e Educação Musical Bacharelado/Optativa Licenciatura/Obrigatória

Psicologia da Educação: adolescência I Licenciatura/Optativa

UFRGS

Licenciatura em Música

Psicologia da Educação Licenciatura/Optativa

30 5

UFMG

Licenciatura em Música e

Bacharelado em Instrumento/canto

Não oferece ------------------ ----- 4

UFSM Licenciatura em Música Não oferece ------------------ ----- 4

UFG

Licenciatura em Música e

Bacharelado e Licenciatura em

Instrumento/canto

Psicologia da Performance I e II Optativa (para todos os cursos) 64 3

UFRJ

Licenciatura em Música e

Bacharelado em Instrumento/canto

Psicologia da Educação Licenciatura/Obrigatória 60 3

Psicologia da Educação 1 Bacharelado/Optativa Licenciatura/Obrigatória

Psicologia da Educação 2 Optativa/Licenciatura Psicologia Social

UNB

Licenciatura em Música e

Bacharelado em Instrumento/canto

Historia e Sistemas da Psicologia Optativa

Não Informada 3

Psicologia da Educação I Obrigatória UFOP Licenciatura em Música Psicologia Social e Comunitária Optativa

60 3

Psicologia da Educação 60 UFU Licenciatura em

Música Psicologia do Desenvolvimento Musical

Obrigatória 45 3

Psicologia da Música Obrigatória Psicologia I UFES Licenciatura em

Música Psicologia Social

Optativa 60 3

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UFMG, UNB e UFBA), além de eventos que agregam pesquisas sobre o tema (como oSIMCAM e a ANPPOM). Por fim, o principal resultado que se chegou ao observar o recorte das IES federais éque a psicologia ainda é pouco estudada na formação dos músicos e menos ainda naformação dos performers musicais.

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Representações gráficas para a progressões harmônicas em música: um experimento verificativo

Alexei Alves de Queiroz [email protected]

Palavras-chaveprogressão harmônica – grafos – notação musical

IntroduçãoNesta pesquisa serão abordadas algumas propostas de representação visual gráficapara progressões de acordes em música. O presente trabalho dá continuidade ao artigo

“Uma Notação Musical para Representação de Progressões Harmônicas UtilizandoGrafos” (Queiroz, 2009) que traz uma sugestão de leitura cíclica e bidimensional vol-tada para o registro, expressão, entendimento e memorização de ciclos harmônicos.Para isso utiliza-se a modelagem matemática formal conhecida como Diagrama deEstados, que tem por característica o entendimento de fenômenos e sistemas comoencadeamentos de estados. A suposição inerente ao diagrama é que sua representaçãográfica se aproxima dos processos mentais associados ao entendimento e memoriza-ção de sequências de acordes. A proposta do presente artigo, que aborda uma pesquisaem andamento, é o de iniciar a fase de experimentação do modelo aplicando um testecomparativo entre estudantes de música. O experimento, ainda não realizado até apublicação deste trabalho, consiste em verificar a capacidade de associação entre es-tímulos sonoros e esquemas visuais por meio de comparação. Um questionário é res-pondido tomando por base a escuta de exemplos sonoros associados aoquestionamentos. Será testada a capacidade de identificação dos símbolos com va-riados graus de familiaridade e inovação paradigmática perante uma sequência so-nora de progressões típicas. O objetivo é juntar informações sobre as vantagens edesvantagens potenciais da notação sugerida e apontar possíveis modificações futuras.

JustificativaA representação de progressões harmônicas não é, de modo algum, um aspecto es-quecido dentro da escrita musical tradicional. Há abundante simbologia envolvidana cifragem e leitura de acordes. Não se trata aqui, portanto, de preencher uma de-manda reconhecida, mas de tornar evidente uma limitação pouco notada de nossanotação musical. A idéia subjacente a essa nova notação é que alterações no modo deescrever podem e devem facilitar, incentivar e desencadear abordagens diferentes einovadoras nas áreas de composição, execução e teoria musical. A principal alteraçãodo novo modelo é a quebra do paradigma da escrita linear, unidimensional, que sem-pre entende o fluxo da leitura indo da esquerda para a direita, e do alto para a partede baixo da folha de papel. Dentro do paradigma dos grafos, o fluxo da leitura se dá

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em qualquer direção, possibilitando uma leitura verdadeiramente bidimensional, efavorecendo assim, em especial, a representação intuitiva de progressões harmônicascíclicas.

MetodologiaEm 2009 (Queiroz 2009), foi apresentado a primeira especificação formal para o Dia-grama de Estados Harmônicos Musicais (DEHM versão 2008.3.1). Este diagrama foidescrito matematicamente, com o auxílio de alguns exemplos, tendo sido apresentadocomo uma nova alternativa para a expressão escrita de progressões harmônicas emmúsica. Faltou ao artigo, entretanto, observar o DEHM em uso, de modo que fossepossível analisar, em situação realista, suas vantagens e desvantagens. Um experi-mento que lograsse dar conta disso poderia ser instrumental na obtenção de respostaspara muitas das dúvidas levantadas pelo primeiro artigo. Entre elas apontamos asquatro seguintes questões. 1) Até que ponto o modelo se mostra intuitivo a alunosde música experientes ou leigos? 2) Até que ponto o modelo se mostra análogo ou dealgum modo representativo da forma como a mente entende e memoriza as progres-sões harmônicas? 3) O esforço necessário para que alguém aprenda a ler este dia-grama pode torná-lo inviável? 4) Que ajustes podem ser feitos que facilitem sualeitura? Para ajudar a responder estas quatro questões foi elaborado um teste comparativo.Diferentes formas de representação, algumas bem conhecidas outras bastante inova-doras, são misturadas num questionário em que se pede que as pessoas identifiquemqual o símbolo que melhor representa o exemplo escutado de progressão. Será veri-ficada assim a capacidade das pessoas de associarem o estímulo sonoro à cada formacorreta de representação, contabilizando os erros e acertos obtidos por cada. Se con-siderarmos que, a cada exercício, a representação correta irá variar aleatóriamenteentre as diferentes notações musicais utilizadas, o teste irá prover dados relativos àintuitividade e compreensabilidade destas notações inéditas. Para complementar estedado objetivo, será pedido que as pessoas respondam questões discursivas que visamverificar sua compreensão destas notações alternativas. Com a combaniação de res-postas objetivas e discursivas, espera-se obter uma avaliação que verifica a aplicabi-lidade tanto quanto discute reflexivamente o DEHM.Na figura 1, vemos um exemplo de questão a ser aplicada no experimento.

Próximas atividadesO experimento está, em sua maior parte, pronto para ser aplicado, devendo ser real-izado em breve junto a alunos do curso de música da UnB. A etapa seguinte será o deanálise dos dados, onde o entendimento intuitivo dos alunos dessa notação totalmentenova, será comparado com outras notações desconhecidas pelos alunos, e algumasoutras já bem conhecidas. Essa análise será feita tomando por base o interesse emresponder as 4 questões listadas na metodologia.

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Figura 1 – Exemplo de questão. Aqui um exemplo de DEHM pode ser visto na alternativa b.

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Artes musicais, lingüística, semiótica e cognição

Discutindo a constituição da criatividade e da cognição do sujeito músico: uma reflexão entre pressupostos da abordagem

histórico-cultural, ontopsicológica e da músicaPatrícia Wazlawick

[email protected]ção e Pós-Graduação, Faculdade Antonio Meneghetti (AMF)

ResumoEste trabalho é desdobramento de pesquisa de doutorado na linha de constituiçãodo sujeito, atividade criadora e relações estéticas, cujo objetivo foi investigar os pro-cessos de criação no fazer musical como atividade mediadora na constituição do su-jeito. Trabalhou-se com músicos compositores em violão, abordandometodologicamente no viés qualitativo suas histórias de relação com a música, ope-racionalizadas por meio de entrevistas com roteiro norteador, registradas em áudio-gravação, observação de ensaios e concertos, analisados sob análise do discurso, eanálise do material musical como discurso plural constituído por muitas vozes. Ao es-tudar os processos de criação musical estudou-se como o sujeito agente deste pro-cesso produz música e produz a si mesmo, pois as ações do processo de criação,entendido como um processo onde está em jogo a criatividade, são ações que sefazem mediadoras da constituição da cognição do sujeito, bem como da imaginação,percepção, memória, emoções e sentimentos, no acontecer do projeto de vida destemesmo sujeito. A dialética fundamental: o sujeito que enquanto trabalha, age, faz,produz e constrói a si mesmo. É um estudo que focalizou a constituição do sujeito,mediado pela atividade criadora musical, e nosso olhar é o da abordagem sócio-his-tórica e histórico-cultural, bem como da ciência ontopsicológica, dialogando com ossaberes da música, articulando saberes e fazeres musicais na construção singular esocial da cognição humana. Articulou discussão entre os processos de criação no fazermusical, relação estética e constituição do sujeito investigando como as dimensõesética, estética e cognitiva podem integrar o acontecer humano de modo criativo. Per-cebemos na história de vida dos músicos que a estagnação é impossível à vida, umavez que o homem é movimento contínuo, podendo inovar de instante a instante,sendo que aqui se abre o discurso à criatividade e à autóctise histórica de acordo coma própria identidade do sujeito.

Palavras-chaveconstituição do sujeito – criatividade & cognição – escola ontopsicológica

IntroduçãoA tônica ou o leitmotiv principal deste trabalho de pesquisa foi a constituição do sujeitoe a atividade criadora. Para todos os lados que formos, em nosso âmbito de pesquisa,

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cairemos neste ponto pulsante do trabalho: os processos de criação no fazer musical,que são realizados por sujeitos situados historicamente, e como esta atividade musicalse faz mediadora na constituição de sujeitos, assim como em sua criatividade e emsua cognição como sujeito músico. Com orientação teórico-metodológica no viés da psicologia sócio-histórica e histó-rico-cultural, que possui bases epistemológicas sobremaneira no referencial teóricodo materialismo histórico-dialético, e, trabalhando principalmente com os aportesteóricos de Vygotski, entendemos que ao fazerem e objetivarem ações/atividades mu-sicais, enfim, música, os sujeitos são ao mesmo tempo feitos por suas ações, por estefazer musical. Existe aí, então, um movimento dialético do sujeito que é produto eprodutor de seu fazer, de um sujeito, no caso desta pesquisa, que constitui música eé constituído por este seu fazer.A música é composta por uma polifonia de vozes que se relacionam, se entretecem,se entremeiam. Desta forma, nos perguntávamos ao longo da pesquisa: que vozes so-noro-musicais compõem a(s) música(s) do duo de violões que foi sujeito da pesquisa?Junto a estas vozes, que vozes outras compõem e participam da constituição destessujeitos? Considerando a música como obra/objetivação artístico-estética e a vida dosujeito também como uma obra a ser composta, o que está em obra na obra? Estudar a criação humana e seu(s) processo(s) foi o maior interesse da pesquisa. Estetema específico se viabiliza, se concretiza na música, ou seja, estudar o processo decriação musical — na atividade/no fazer musical — que lógicas existem e são possíveisali. Enquanto estivéssemos debruçados sobre o tema da criação musical, estaríamossem dúvida falando das possibilidades da criação humana, mediada/ou traduzida, éóbvio, pela música, o que pode aproximar-se e assemelhar-se de tantas outras formasde criação humana, seja nas mais diversas linguagens artísticas, seja no cotidiano,seja nas áreas científicas e técnicas. Assim, ao estudar o(s) processo(s) de criação musical estudou-se como o sujeitoagente deste processo não apenas produz música, mas produz a si mesmo, pois asações do processo de criação, entendido como um processo onde está em jogo a cria-tividade, são ações que se fazem mediadoras da constituição da cognição do sujeito,bem como da imaginação, percepção, memória, emoções e sentimentos, no acontecerdo projeto de vida deste mesmo sujeito. A dialética fundamental: o sujeito que en-quanto trabalha, age, faz, produz e constrói a si mesmo; o sujeito produto e produtordo contexto e de suas atividades, de seu trabalho; e qual é (será) o sujeito possívelapós a objetivação de toda esta atividade. Portanto, este é um estudo que teve comocerne a constituição do sujeito, mediado pela atividade criadora musical. Como desdobramento e discussão posterior ao próprio trabalho de doutorado, estetexto enfatiza um diálogo entre os aspectos centrais abordados acima junto de pre-missas da escola ontopsicológica, transitando também por saberes da música, arti-culando saberes e fazeres musicais na construção singular e social da cogniçãohumana. Na interface de conhecimentos da música e ciências humanas, em diálogos

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1 Neste ponto quando nos remetemos à música, entendemos que isto é possível também àsdemais atividades criadoras e artísticas.

interdisciplinares, entendemos que para termos uma maior compreensão do fenô-meno em estudo, que se apresenta sempre em contínua transformação e movimento,precisamos nos aproximar de várias dimensões que dizem respeito à ação/atividademusical humana, em seus aspectos lógicos, cognitivos, intelectuais, estéticos e esté-sicos, percorrendo e circunscrevendo a grande relação científica & artística em relaçãoao objeto de estudo.Entendemos a partir da discussão teórico-epistemológica nas áreas acima abordadas,principalmente com fundamentação nos trabalhos de Vygotski, Bakhtin, Meneghetti(nas ciências humanas), e Ilari e Sloboda (na música), que não há porque privilegiar-se uma única e exclusiva maneira de contato com a realidade, como nos propunha ozeitgeist e lógica da modernidade, mas tecer e construir — e acima de tudo ver, en-xergar, construindo um novo olhar — os inúmeros pontos de interface, diálogo emútua constituição entre as áreas de conhecimento, uma vez que a realidade em si éplural e multifacetada, e se apresenta de inúmeras formas.Portanto, este foi um estudo articulado entre os processos de criação no fazer musical,relação estética e constituição do sujeito investigando como as dimensões ética, esté-tica e cognitiva (Bakhtin 2003) podem integrar o acontecer humano de modo criativo.A vivência no fazer musical permite objetivar estas dimensões, uma vez que estãopautadas sobre a sensibilidade e dimensão afetiva (emoções e sentimentos) ocorrendode modo inseparável aos processos intelectuais, reflexivos e cognitivos, que se com-plementam e são fundamentais para uma existência mais íntegra e plena no cotidiano.Sendo que isto é possível a sujeitos que por profissão sejam músicos (compositores,instrumentistas/intérpretes, cantores, educadores musicais e/ou musicoterapeutas),bem como é possível aos sujeitos que não tenham estudado música1 formalmente,mas que a apreciam e a cultivam em seu dia a dia.

Criação, criatividade e cogniçãoA criação não diz respeito unicamente ao trabalho de artistas, e tudo o que se produzcomo fruto e resultado de processos de criação não são necessariamente obras de arte(Zanella 2006). A criação e a invenção fazem parte da vida diária do sujeito humano,compreendendo os mais diversos trabalhos, as mais diversas atividades e fazeres, umavez que “. . . a invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da in-dústria ou da ciência, ela é potência do homem comum” (Pelbart 2003, 23). O que acontece é que o sujeito músico possui um (ou vários) modo(s) específico(s)de trabalhar com a (re)criação da matéria musical, que especificam seu trabalho decomposição, por exemplo. Ao fazê-lo está trabalhando com o tecido musical, de modológico, técnico, intelectual, cognitivo, ao passo que este seu trabalho é também umacontecer estético, que envolve criação e criatividade contínua. Importante se faz ob-servar que enquanto trabalha com estes elementos no fazer musical ele os objetiva

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ao mesmo tempo, e também os subjetiva, apropriando-se de seu fazer, constituindo-se sujeito músico nestas ações. Neste percurso todo vários processos psicológicoscomplexos estão envolvidos na criação musical e na dinâmica entre percepção, ima-ginação, reflexão e dimensão afetiva que se faz presente nos processos de criação. É visível, portanto, que a música permite expandir o universo cultural e de conheci-mentos, de modo geral, daqueles que com ela trabalham, proporcionando desenvolvera compreensão da multiplicidade de manifestações artísticas e estéticas, e sua inter-relação com a história de uma coletividade. No entanto, junto a tudo isso, elas per-mitem constituir sujeitos engajados com as possibilidades de renovar e inovar em seucotidiano, e de (re)criarem suas próprias possibilidades de vida — sujeitos que sefazem agentes de sua história, que se constituem responsáveis em se qualificar, emestudar e agir, em saber e fazer ao longo de suas vidas. Para o psicólogo russo Vygotski (1930/2003, 7), atividade criadora é “toda realizaçãohumana criadora de algo novo”. Esta atividade pode englobar aspectos ou momentosde um caráter mais reprodutor ou reprodutivo, de repetição de algo já existente, assimcomo um caráter de atividade que combina e cria, recombina e recria. De base fun-damental para a atividade criadora humana, para que possa ser exercitada, é a expe-riência anterior do sujeito, que serve de base para toda a criação, e que o ajuda aconhecer o mundo que o rodeia. Segundo Vygotski (2003), a vida que nos rodeia otempo todo nos propõe tarefas; para vivermos, sempre nos relacionamos com o con-texto, ação da qual decorre a atividade criadora. A criação diz respeito, então, e tem como base, recordar e partir de experiências vi-vidas, reelaborá-las de modo criador, combinando-as, (re)combinando-as, a combinaro antigo com o novo, para edificar novas realidades de acordo com as afeições e ne-cessidades de cada sujeito (Vygotski 2003). Vygotski (2003) descreve e explica quatroformas básicas que ligam a atividade imaginadora/criadora à realidade, ou seja, quatromodos pelos quais o processo de criação pode acontecer.No primeiro momento há o fato de que todos os elementos que integram o que viráa ser criado são tomados da realidade, isto é, são extraídos da experiência anteriordo homem (Vygotski 2003). A fonte de conhecimento é sempre a experiência passada,vivida e experenciada pelo sujeito criador. É a partir destes conhecimentos percebidose já apropriados que o sujeito irá e poderá empreender novas combinações, modifi-cações e reelaborações, mesclando elementos reais, e também os combinando comimagens da fantasia. Portanto, a atividade criadora é construída, ou seja, parte de ma-teriais que já existem no mundo — um mundo vivido, experenciado, apropriado dediversas formas e maneiras pelo sujeito ao longo de sua história de vida. Vygotski ex-plica que:

“A atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riquezae a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência éo material com o qual a fantasia constrói seus edifícios. Quanto mais rica for a ex-periência humana, tanto maior será o material do qual dispõe essa imaginação”(Vygotski 2003, 17).

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A partir da experiência acumulada nos diversos momentos de vida o sujeito dispõede elementos de construção por meio dos quais irá tecer seus processos de criação,sua atividade criadora. Mas não somente a partir dos elementos de que dispõe dire-tamente das experiências vividas, e sim das novas combinações possíveis de seremcriadas, que se configuram já como frutos da imaginação. Aqui estaria o segundomomento do acontecer do processo2 da atividade criadora. Esse momento está em relação direta e intrínseca com as experiências da alteridade,às quais o sujeito tem acesso e, a partir das quais, agora, sua fantasia — justamentepor não ter tido contato direto, mas a partir da relação com um outro — ajuda suaprópria experiência. Nesse ponto, encontra-se uma dependência dupla e recíprocaentre realidade e experiência. No primeiro momento descrito, do acontecer do pro-cesso de criação, a imaginação se apóia na experiência, e no segundo momento é aexperiência que se apóia na imaginação (Vygotski 2003).Parte integrante também desse processo, que é sempre um processo ético, estético ecognitivo (Bakhtin 2003), é o enlace emocional (Vygotski 2003) — como terceiro mo-mento. A emoção é entendida aqui como dimensão afetiva, dimensão do sensível, ouseja, emoções e sentimentos3 que fazem parte das ações humanas a todo o momento,como informação acerca das relações, do contexto e da atuação própria. Para o atocriador ambos os fatores são necessários e inseparáveis, o intelectual e o emocional,pois “sentimento e pensamento movem a criação humana” (ibid., 25).Poderíamos dizer que a dimensão afetiva, incluindo os sentimentos e as emoções, secoloca lado a lado do agir e do pensar, e com eles permeia cada momento da vida hu-mana, orientando a postura do sujeito em suas relações, pois o sentimento é tambéminformação: ele informa sobre a relação do Eu com o objeto, diz algo sobre a signifi-cação-para-nós da realidade (Heller 1980; Sartre 1938/1965). Tal como defendidopor Heller, “sentir significa estar implicado em algo (1980, 15)”. Por conseguinte, o processo de criação chama uma produção, um produto, ou seja,sua finalidade é produzir algo, criar e (re)criar algo — aqui o quarto momento. Vy-gotski destaca que as imagens do processo de criação “cobram realidade”, isto é, pre-cisam objetivar-se, existir como materialidade, ter uma existência e presença concreta:

“Consiste sua essência em que o edifício construído pela fantasia pode representaralgo completamente novo, não existente na experiência do homem, nem semelhantea nenhum outro objeto real; porém, ao receber forma nova, ao tomar nova encar-

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2 É importante considerar que este processo, ou do modo como estamos apresentando aqui,não é um processo linear, nem tampouco se dá da mesma forma para todos os sujeitos criadores,ou como um passo a passo. É da ordem do acontecimento e da complexidade na singularidadede cada sujeito. A aparente divisão é apenas uma forma didática de discorrer sobre o tema. 3 Sentimentos “são estados mais estáveis da afetividade, como o amor, a felicidade, o ódio, ouqualquer outro sentimento que não seja caracterizado pela explosão”. Emoções “se caracterizampelo caráter explosivo da afetividade, como a paixão, a alegria, a raiva, etc.” (Maheirie 2003,148; Sawaia 2001).

nação material, esta imagem ‘cristalizada’, convertida em objeto, começa a existirrealmente no mundo e a influir sobre os demais objetos” (Vygotski 2003, 24).

As objetivações criadoras, sejam quais forem, emanam da realidade, isto é, os ele-mentos que as compõem existem no contexto de vida dos homens. A partir daí, emsua cadeia quase infinita de produção/criação junto ao pensamento e aos demais pro-cessos psíquicos, reelaboram-se, sendo também produtos da imaginação criadora dohomem. Ao materializarem-se, voltam à realidade, porém, como diz Vygotski (2003,25), “trazendo já consigo uma força ativa, nova, capaz de modificar essa mesma rea-lidade, encerrando deste modo o círculo da atividade criadora da imaginação humana”.Todo fruto da imaginação, ao partir da realidade, conforme o processo que foi aquiapresentado, trabalha ativamente e é trabalhado ativamente para retornar à realidade.Ou seja, para “descobrir um círculo completo e encarnar-se de novo no real (. . .), tendea encarnar na vida” (Vygotski 2003, 51), de modo que imediatamente se torna umanova afirmação — ao pensarmos na questão do movimento dialógico.Essa compreensão, sob o ponto de vista de Maheirie, demonstra que:

“A imaginação acontece por um processo semelhante à gestação, cujo parto dá luzà criatividade. Este processo tem início na percepção que temos dos objetos reais,para depois podermos dissociar e recompor os elementos desta realidade, emforma de fantasia. Em seguida. Agrupamos os elementos modificados, e estabe-lecemos uma síntese entre eles e os elementos agrupados do contexto real. Quandoa imaginação se objetiva no mundo real, quando cristalizamos nossa ‘imagem’ nocontexto social e produzimos algo daí, estamos criando o novo” (Maheirie 2001,64).

Dessa forma, coroa-se o processo de criação com uma nova objetivação, que passa afigurar no mundo e imediatamente abre-se para que o mesmo processo possa ser re-começado, dialeticamente. Aqui podemos inserir as idéias de Bakhtin (2003) que sa-lienta que o processo de criação é ao mesmo tempo um processo triádico e dialógico:o processo de criação envolve de modo interligado uma relação a três, uma entre oautor, o herói e o ouvinte.4 O autor é compreendido como o autor-criador; a persona-gem ou o herói é o quê ou quem, temática, produto, objeto em processo de criaçãoou produzido; e o ouvinte é o leitor/interlocutor, a audiência real ou imaginária. DizBakhtin que o evento criativo “. . . não deixa de ser nem por um instante um eventode comunicação viva envolvendo todos os três” (1926, 10). Ao situarmos esta relação triádica no(s) processo(s) de criação da música, teremosque o músico-compositor é o autor-criador, aquele que opera para fazer/criar a música.No entanto, esse mesmo músico-compositor também pode ser o intérprete de sua

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4 Em O Autor e a Personagem na Atividade Estética, texto escrito entre 1920 e 1930, o foco deBakhtin (2003) é o problema da criação literária, no qual ele analisa o autor, a personagem ouo herói, e o leitor como componentes da relação triádica constitutiva da atividade estética.Bakhtin, como estudioso moderno, centrou suas análises nas formas de arte constituídas pelodiscurso verbal, porém, suas reflexões não se limitam a elas, em virtude de sua própria con-cepção ampliada da linguagem (Reis, 2007).

própria música, de si mesmo como compositor que é/foi. O ouvinte pode ser o ouvinteimaginário que ele tem apropriado em si, o outro que escuta sua obra/produção, bemcomo o ouvinte real que a escuta/escutará. A música e seu processo de criação, desde a perspectiva da criação, de Bakhtin (2003),pode ser compreendida em uma perspectiva dialógica estética (Reis 2007). Ou seja,pode ser compreendida como um enunciado estético que se constitui como per-gunta/resposta do músico autor-criador no diálogo com outro (para quem toca). Esteoutro pode ser as suas referências musicais, seus músicos parceiros, seu público, massão sempre elementos intrinsecamente constitutivos da obra. A música, toda ela, éfeita de diálogos e é organizada em diálogos, em uma trama de conversação, seja entrenotas musicais, fraseados, motivos melódicos, seqüências harmônicas, seja entre asobras e compositores com os quais o autor-criador dialoga para compor sua obra, istoé, a música é diálogo entre muitas vozes.

“Voloshinov e Bakhtin (1976) destacam a arte enquanto construção social. Todasas produções artísticas são criadas no e para o contexto social, nas relações entresujeitos. Nenhuma obra artística se reduz à sua forma, assim como, não pode serexplicada pela subjetividade do criador e/ou do contemplador. Ao contrário, sefaz na relação entre estes, num processo que Voloshinov e Bakhtin denominamde co-criação, não somente do produto enquanto forma, mas necessariamentetambém dos significados estéticos, ou conteúdo” (Urnau 2010, 212).

Conforme explica Todorov, a vida é dialógica por natureza. Segundo o autor, “viversignifica participar de um diálogo, interrogar, escutar, responder, estar de acordo, etc.”(1981, 318). A música como movimento dialógico abre sempre para os múltiplos diá-logos que existem dentro de uma composição e entre composições. E justamente porser caracterizada desta forma, a música se torna capaz de conversar conosco, ou seja,ela também irá despertar uma composição conosco mesmos. Diz Bakhtin/Voloshinov que “o poeta adquire suas palavras e aprende a entoá-las aolongo do curso de sua vida inteira no processo do seu contato multifacetado com seuambiente…” (1926, 15). Se transportarmos a figura do poeta para o músico compo-sitor, podemos pensar que o mesmo se dá com este. O material que ele articula, sendoum compositor instrumentista e não de canções, são notas musicais (e muitos outroselementos), mas não palavras, no entanto, o movimento é o mesmo. Ou seja, em mo-vimentos dialógicos o músico compositor adquire suas notas musicais no embatecom tantas vozes sonoro-musicais com as quais dialoga e das quais se apropria aolongo do curso de sua vida inteira, nos processos plurais, multifacetados na diversidadedos contextos de vida pelos quais transita, que envolvem o tempo todo as dimensõesética, estética e cognitiva da existência (Bakhtin 2003).Sendo assim, é do contexto da vida, em um constante diálogo entre autor-herói-ou-vinte, que o músico compositor busca, procura, se apropria, constrói, desconstrói ereconstrói vozes e movimentos musicais que passam a integrar as novas objetivaçõesmusicais. As composições musicais objetivam em si próprias o(s) movimento(s) dacomunicação musical viva e criadora de sujeitos que se debruçam a fazer música emsuas vidas. A música é, então, uma forma de relação social semioticamente mediada,

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construída entre um sujeito músico, sua própria produção e seu público que, também,pode ser co-criador da obra. Enfim, neste percurso dialógico triádico5 toda e cada música é cercada de tantas ou-tras músicas, com as quais ela, como objetivação em si, dialoga, e com as quais asações de seus compositores dialogam também. Assim, toda e cada música dialogacom as músicas que as antecederam, as músicas contemporâneas a ela, e as que aindalhes serão parceiras. Na música, assim como na cultura, de modo geral, vozes deontem, de hoje e do amanhã compõem o devir e porvir musical. É o processo dialó-gico que, como relembra Faraco (2006), é concebido como infindo e inesgotável.De acordo com os constructos teóricos estudados, tanto em Vygotski quanto emBakhtin, aqui apresentados, verificamos que a constituição da criatividade assimcomo da cognição do sujeito músico se dá sempre em um processo de criação, ou seja,se dá no fazer, na ação específica e contínua, uma vez que o sujeito enquanto realizaação constrói e (re)cria sua criatividade e suas capacidades cognitivas, é produto eprodutor, dialeticamente, de suas ações no fazer musical.

MetodologiaPara realização do estudo foi trabalhado com músicos compositores em violão ins-trumental, abordando metodologicamente no viés qualitativo as histórias de relaçãocom a música de cada um dos músicos participantes da pesquisa, metodologia estaque deriva da configuração das histórias de vida, operacionalizada por meio de en-trevistas semi-estruturadas organizadas por roteiro norteador previamente elaborado,e registradas em áudiogravação, realizadas individualmente com cada um dos músi-cos.O conteúdo das entrevistas foi transcrito na íntegra, lido e relido, e trabalhou-se comanálise do discurso, a partir das contribuições de Bakhtin (2006) e seus interlocutorespara a análise das informações da pesquisa. Também foram realizadas observaçõesde oito ensaios e momentos de criação musical dos músicos — registradas por meiode diário de campo, bem como registro audiovisual de quatro concertos dos músicossujeitos de pesquisa, e posterior análise do material musical como discurso pluralconstituído por muitas vozes.No desenvolver da análise construímos cinco categorias teórico-empíricas nas quaisdiscutimos as informações da pesquisa e apresentamos, então, os resultados produ-zidos, as quais ficaram assim delimitadas:

1. Vozes dos próprios músicos sobre seu processo de criação no fazer musical – Os sen-tidos do(s) processo(s) de criação musical: aqui enfocamos o que contam os pró-

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5 Certamente não esgotamos aqui a explicação deste conteúdo, que na tese de doutorado estáapresentado e discutido de modo mais amplo e completo. Para aprofundamentos sugerimos aleitura de “Música e vida em criação: dialogia e est(ética) na música de um duo de violões”(Tese de doutorado, PPGP-UFSC 2010).

prios músicos acerca da especificidade do modo como compõem música e quaissão os sentidos que produzem e conferem a este fazer.

2. Vozes dos dois músicos que dialogam entre si para compor música – Musicalidadesem diálogo & dialogia entre musicalidades: o duo possui características peculiaresde compor música e de entender possibilidades de composição, que foi ao longode seu tempo de existência objetivado pelos dois músicos, o que é analisado nestaparte.

3. Acontecências sonoras entre muitas vozes: Percursos musicais nas histórias de vidados músicos – aqui situamos historicamente momentos vividos que se fizeramimportantes na constituição dos dois sujeitos músicos-compositores, bem comopara a configuração do duo de violões, apontando para a processualidade histó-rica.

4. Uma voz que se produz em uma dialogia entre duas e muitas outras vozes — A(s)música(s) do Duo: neste ponto, de modo mais intenso, discutimos a produçãomusical dos músicos, e identificamos tantas vozes de diversas alteridades que sefazem presentes em seu trabalho de (re)criação musical.

5. Existência em devir: projetos atuais, projetos de futuro e o reviver dos sentidos. Estaparte, além de tudo o que apresenta e analisa, aponta para a situação e caráterinacabado da constituição do sujeito, da produção musical, enfatizando a impor-tância das possibilidades históricas do devir sujeito-música. Enfoca, pelas palavrase vozes dos músicos investigados, a importância da música em suas histórias devida, na constituição do sujeito que hoje são.

Criatividade e autóctise histórica Analisando as histórias de relação com a música em meio aos tantos acontecimentose movimentos da história de vida de cada sujeito, e seu percurso de formação en-quanto músico, nos mais variados contextos, compreendemos de modo dialético quecada sujeito nasce também para criar a si mesmo, tem uma história a construir comointeligência e resultados, e este ponto é muito bem estudado pela Escola Ontopsico-lógica (Meneghetti 2010). Assim, cada instante da vida, cada relação pessoal e pro-fissional, cada aprendizado mediado por tantas alteridades ao longo do percurso devida, pode ser um momento de investimento de si mesmo como preparação ao devir,como formação técnica específica e profissional, como inteligência aplicada que pro-duz resultados em seu campo de atuação. Percebemos na história de vida dos músicos que a estagnação é impossível à vida,como fundamentado por Meneghetti (2010), uma vez que o homem é movimentocontínuo, podendo ser sempre novo e inovador de instante a instante, irrepetível,sendo que aqui se abre o discurso à criatividade. Criatividade entendida no sentidode movimento onde o sujeito, ao realizar e completar uma dada tarefa e situação emsua vida é sempre motivado a uma sucessiva, proporcional, mas superior à precedente,dando e construindo respostas novas e inovadoras à situação que se lhe apresenta. Assim, neste devir criativo e criador o sujeito realiza um movimento tal em que cons-trói a si mesmo na existência, faz autoposição, faz a si mesmo, evolui, faz-se, concresce,

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e se torna mediador do mesmo movimento junto a tantos outros com os quais entraem relação. É o conceito e possibilidade humana de autóctise histórica, conforme ospressupostos da Escola Ontopsicológica, que discute também que no interior do fazerartístico — e aqui situamos a música/atividade musical — está implícito o argumentoda criatividade, da progressão, do crescimento. “É a arte que nos força a nunca estar-mos contentes com o estado alcançado, mas sermos sempre ação dinâmica” (Mene-ghetti 2010, 30). E neste sentido, quanto mais autêntico à sua própria identidade foro sujeito, maior a possibilidade de fato de produzir uma arte que seja mediadora decriatividade, sanidade, e que incentive a melhor produção e eficiência nos que comela entrarem em contato. De acordo com toda esta discussão e com os resultados da pesquisa realizada, verifi-camos que o músico torna-se, ao longo de sua história, sujeito criador musical, res-ponsável por sua autoconstrução nos diversos contextos, em meio a suas interrelações.Sendo posto pela vida, como qualquer outra individuação biológica, ao estar na dia-lética social, cada dia pode gerar a si mesmo e pode crescer continuamente, ao estarem coincidência com seu projeto de vida, enquanto se instrumentaliza, trabalha, es-tuda, aprende, troca, desenvolve suas capacidades, constrói competências, produz re-sultados, empreende sua vontade, se prepara, etc., enfim, é a dura história do fazer-se,do devir, do construir-se, pois cada homem não pode se eximir da construção da pró-pria vida (Meneghetti 2010). Daqui uma nova postura ética, estética e cognitiva seabre e se objetiva ao músico, como sujeito responsável, como sujeito criador no con-texto social. A música é uma objetivação criadora e estética humana, produzida em um contextodialógico, em uma relação dialógica, onde várias vozes se entrecruzam. É um fazercriador que permite o sujeito (re)criar sua existência em seu processo de criação —processo de criação que é da obra em si e ao mesmo tempo da própria vida, onde osujeito músico, atuando sua responsabilidade perante a si mesmo, à obra e à sua pró-pria vida, pode se construir em base a sua identidade. Neste sentido, a vida é um con-tínuo processo de criação, edificado em suas dimensões ética, estética e cognitiva,sempre em contextos coletivos/singulares.Entendemos, então, que a música e seu processo de criação são uma construção dia-lógica entre as várias vozes musicais presentes na história de um sujeito, entremeadasao processo de criação da própria vida, culminando em uma est(ética) de si. Nestahistória o sujeito é responsável por suas ações, sua formação, seu crescimento e suarealização, de modo a produzir resultados satisfatórios e coerentes para si mesmo,para seu projeto profissional e para suas relações pessoais e profissionais. Estas características e posturas éticas que estão atreladas a uma estética, são o fun-damento para as ações e intervenções no processo de criação. É deste grande palco,desta grande arena de ações e atuações que os sujeitos podem fazer a própria rein-venção da existência. Esta reinvenção não é um momento único, de revolução mar-cada ou que se dê em um único momento e basta. Ela é uma reinvenção constante econtínua, em que o sujeito constrói novas formas de compreensão acerca de si, de

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seu fazer e do mundo, e pode inovar em sua existência a cada momento, todos os dias.Porque esta postura de reinvenção, de criação de novidade na vida deve ser a cadadia, justamente para dar espaço à novidade, pois tudo está em movimento e se faznovo. A cada momento, novas possibilidades existem e se apresentam a nós enquantosomos nós mesmos seus maiores atuadores. É então uma ética e estética da existência que indica um movimento de life long lear-ning (Bernabei 2003), a formação e educação continuada ao longo da vida, o aprendera aprender constantemente em cada instância e fase da vida, bem como o responsa-bilizar-se por si, por suas ações e relações, por suas objetivações, em uma ética daresponsividade (Bakhtin 2003), no âmago das relações dialógicas que compõem su-jeitos, que compõem a vida de modo genuíno, e que considere e edifique o respeitoàs alteridades. O life long learning indica que a formação nunca está terminada, e quea aprendizagem é coextensiva da vida das pessoas e da atividade dos grupos e das so-ciedades.Daí se faz a (re)invenção da vida. Este é o maior demarcador ético/estético a orientara ação humana: a invenção da existência, no qual o sujeito se constrói e se modificaprofundamente neste processo, sempre por meio do seu fazer, da sua atividade cria-dora junto a tantas alteridades. Neste trabalho de pesquisa a música foi entendidacomo uma produção estética, como uma atividade criadora por meio da qual — aoser realizada/objetivada em processos de criação — é possível acontecer a (re)invençãoda vida: o (re)inventar a/da vida nas diversas e infindáveis condições de historicidade,e onde o sujeito é capaz de projetar novos cenários para a existência. No final das con-tas, além do produto objetivo artístico/estético da criação, é o próprio sujeito a novarealidade criada. Portanto, não há vida sem criação! O próprio sujeito se constrói noprocesso de criação. O sujeito é um processo de criação deste grande processo de cria-ção que é a vida, em contínua autóctise histórica.

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Compor, apresentar e criticar música: o ciclo da aprendizagemcriativa em um estudo de caso na educação musical escolar

Viviane [email protected]

Departamento de Música – Universidade do Estado de Santa Catarina

ResumoA presente pesquisa está situada no campo das pesquisas sobre a aprendizagem cria-tiva, conceito emergente nas áreas de Educação e de Educação Musical que focalizao desenvolvimento da criatividade de crianças e jovens em situação de aprendizagem.O objetivo da pesquisa foi investigar como as dimensões da aprendizagem criativase articulam em atividades de composição musical no contexto do ensino de músicana Educação Básica. O referencial teórico foi elaborado com base em dois eixos: asperspectivas das crianças e do professor sobre a aprendizagem criativa. O métodoconsistiu em um estudo de caso realizado em aulas de música de uma turma da 2ªsérie do ensino fundamental. A coleta de dados incluiu: (1) observação e registro emvídeo de dois conjuntos de atividades de composição musical na turma participante;(2) grupos focais com os alunos e (3) entrevistas semiestruturadas e entrevistas dereflexão com vídeo com a professora de música da turma. Os resultados revelam queas dimensões da aprendizagem criativa se articulam nas atividades de composiçãoem grupo, apresentação e crítica musical das produções dos alunos, em um ciclo queaciona processos de estabilização e desestabilização de idéias de música construídasintersubjetivamente em sala de aula. Participando das aulas como compositores, in-térpretes e audiência crítica, as crianças constroem sua identidade no grupo e tor-nam-se agentes da própria aprendizagem, construindo coletivamente o conhecimentoque sustenta as suas idéias de música, constantemente revistas, atualizadas e am-pliadas pelas suas experiências musicais e reflexivas. Ao professor, cabe proporcionarcondições para que se crie esse ambiente de relações sociais positivas, de compro-metimento com os processos de aprendizagem do grupo, de colaboração mútua, deengajamento de interesses e de valorização das contribuições das crianças em aula.

Palavras-chaveeducação musical – aprendizagem criativa – composição musical infantil

IntroduçãoA composição musical é atividade que vem sendo progressivamente valorizada noensino de música, ampliando as pesquisas que focalizam experiências criativas e com-posicionais na educação musical de crianças. Esses trabalhos incluem o estudo deprocessos e produtos de composições e improvisações, bem como os contextos sociaise culturais nos quais eles ocorrem (Barret 2003, 3). Apesar do reconhecimento daimportância da composição musical no ensino de música e da tradição de pesquisassobre o tema, ainda se constata dificuldade dos professores em trabalhar com essaatividade (Barret 2006; Berkley 2004; Stand 2006; Stephens 2003).

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Barret (2006) avalia que ainda são muito limitados os conhecimentos que possamcontribuir com o ensino e a aprendizagem da composição musical, enquanto Berkley(2001) observa que a maioria das pesquisas parece não contemplar o dinamismo doprocesso de aprendizagem. Como alerta Tafuri (2006), urge olhar para a criatividadede um ponto de vista educacional, a fim de compreender e discutir a composição emsala de aula como atividade criativa. Segundo a autora, a composição e a improvisaçãoestão estreitamente relacionadas à criatividade, e os professores precisam saber queatravés dessas atividades podem desenvolver ou inibir o potencial criativo dos estu-dantes.Sob essa óptica, a presente pesquisa (Beineke 2009)1 foi desenvolvida com o objetivode investigar como as dimensões da aprendizagem criativa se articulam em atividadesde composição musical na educação musical escolar, contemplando as perspectivasdos alunos e do professor. Aqui a composição é entendida de forma bastante ampla,incluindo arranjos e improvisações musicais, pequenas idéias musicais organizadasespontaneamente com a intenção de comunicar pensamentos musicais ou peças maiselaboradas, com ou sem a utilização de notação ou de outra forma de registro da com-posição (Swanwick, 1994).

Referencial teóricoO referencial teórico da presente pesquisa fundamenta-se em dois eixos: a perspectivadas crianças e a do professor sobre a aprendizagem criativa, buscando compreendercomo as dimensões presentes em cada uma delas se articulam no contexto diverso edinâmico da sala de aula. Em relação ao primeiro eixo, a fundamentação teórica foiconstruída com base no modelo sistêmico da criatividade de Csikszentmihalyi (1997,2007), revisto através das pesquisas e questionamentos na área da educação musical.Utilizando o conceito de aprendizagem criativa (Craft 2005; Craft, Cremin e Burnard2008), conceito emergente nas áreas de Educação e de Educação Musical, o foco in-vestigativo foi direcionado às práticas e concepções musicais das crianças, conside-rando: o domínio – idéias de música das crianças; o campo – a comunidade em salade aula; e o indivíduo – contribuições individuais e coletivas.O segundo eixo, que focaliza o ensino através das concepções e práticas do professor,baseia-se em trabalhos da área da Educação, que analisam o papel do professor naconstrução das relações sociais em sala de aula e as dimensões que caracterizam oensino criativo (Jeffrey e Woods 2009): as relações sociais em sala de aula, o engaja-mento dos interesses dos alunos e a valorização das suas contribuições nas atividades.Esses dois eixos do referencial teórico sustentam a questão norteadora desta pesquisa:a articulação entre as dimensões da aprendizagem criativa em atividades de compo-sição musical na escola básica, segundo a perspectiva dos alunos e do professor.

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1 Pesquisa de doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul, sob orientação da profa. Dra. Liane Hentschke.

Relacionando as pesquisas sobre composição na educação musical e a tradição depesquisas sobre criatividade, Burnard (2006) observa que o desenvolvimento criativonão está na criança: depende de fatores sociais e culturais que interagem na sua for-mação. Entendendo a criatividade dessa forma, o foco é deslocado das fases e pro-cessos criativos para as práticas musicais, situadas culturalmente, nas quais acriatividade ocorre. Burnard (2006) argumenta que é necessário ampliar as lentespara as bases sociais e culturais da aprendizagem, com o intuito de compreendercomo a criatividade musical é mediada culturalmente. Nessa perspectiva, a autorasugere que a visão sistêmica de criatividade desenvolvida por Csikszentmihalyi (1997)oferece um suporte para que a criatividade seja observada como um construto cultural,mas redimensionando alguns conceitos, tendo em vista o contexto educativo. Buscando uma expressão que diferencie o domínio musical, no sentido cultural amploproposto por Csikszentmihalyi (1997), do domínio musical mais restrito da sala deaula, utilizo nesta pesquisa a expressão idéias de música (Santos 2006; Brito 2007)para definir o fazer musical, as concepções sobre o que é música e o que ela significaou representa para as crianças. Segundo Brito (2007), o conceito idéias de música édinâmico, tanto em relação à mobilidade do pensamento musical, em tempos e es-paços distintos, quanto ao pensamento da criança. Nessa perspectiva, neste trabalhoa expressão idéias de música procura contemplar o dinamismo que caracteriza as ma-neiras próprias das crianças de pensar e fazer música, as quais se conectam aos seusmundos musicais, como explica Burnard (2006). Considerando o contexto da sala de aula, também é necessário refletir sobre como ocampo se configura. O que pode ser considerado original ou inovador na aula de mú-sica? Quem pode fazer essa avaliação e de que forma? Da mesma forma que o conceitode domínio, que precisa ser atualizado e revisto quando é focalizada a criatividadede crianças, também é necessário contextualizar a definição de campo da teoria sis-têmica, a fim de contemplar as especificidades dos processos de avaliação/validaçãodo que é produzido em sala de aula. Na perspectiva da aprendizagem criativa, é ne-cessário considerar que o grupo em sala de aula configura uma comunidade de práticaque se inicia coletivamente em um domínio específico: a música. Dessa maneira, acomunidade em sala de aula estabelece os critérios e participa da validação e da re-criação das idéias de música nas suas práticas musicais, em processo intersubjetivono qual as idéias de música são atualizadas e incorporadas por essa comunidade, con-figurando o campo.Em relação à perspectiva do professor no processo da aprendizagem criativa, as pes-quisas de Jeffrey e Woods (2009) revelam que a ação do professor é um elementochave para que a aprendizagem criativa possa ocorrer, sendo necessário que ele co-nheça a perspectiva das crianças sobre a própria aprendizagem, conhecimento esteque pode nortear a sua prática em sala de aula. Além disso, o ambiente que se esta-belece nas aulas está diretamente relacionado com a maneira como o professor esta-belece as relações sociais no grupo, tanto entre as próprias crianças como entreprofessor e alunos. Segundo os autores, é esse “clima” em sala de aula que alimenta oprocesso criativo.

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Buscando conceituar a natureza da aprendizagem criativa na escola primária, Jeffreye Woods (2009) argumentam que a aprendizagem das crianças está diretamente re-lacionada às interações sociais: as interações promovidas e ocorridas na sala de aulapotencializam aprendizagens, de forma que se as relações sociais em classe diminuem,a aprendizagem se torna menos significativa. Por isso, as interações pessoais devemser valorizadas sobremaneira nas construções e nas qualificações do ensino e daaprendizagem. Os autores definem três tipos de participação social em sala de aula,necessários à aprendizagem criativa: coparticipação, colaboração e coletividade, sendoque o professor, no papel de coparticipante do processo educativo, tem uma funçãofundamental no estabelecimento dessas relações em sala de aula. Jeffrey e Woods(2009) destacam ainda que a aprendizagem relevante envolve um ensino conectadoa interesses e preocupações dos alunos, levando as crianças a reconhecer e identificaressas características. Os autores identificam três áreas da pedagogia do professor es-pecialmente significativas para o ensino relevante: garantir relações sociais positivas,engajar interesses e valorizar contribuições.Essas dimensões da aprendizagem criativa, considerando as perspectivas das criançase também o papel do/a professor/a no processo educativo nortearam a elaboração dodesenho metodológico da pesquisa, bem como a análise e interpretação dos dados,como segue.

Metodologia de pesquisaA pesquisa foi realizada em uma escola comunitária, localizada na região central dePorto Alegre (RS), da qual participaram uma turma da segunda série do ensino fun-damental2 e Madalena, a professora de música. O ensino da disciplina estava previstona matriz curricular da escola, desde a Educação Infantil até a 8ª série do Ensino Fun-damental, com uma aula semanal de 50 minutos3.Considerando o objetivo desta pesquisa, optei por realizar um estudo de caso (Stake2003), por sua natureza qualitativa. Com esse enfoque, procuro contemplar a com-plexidade da sala de aula, ouvindo as crianças e a professora para discutir a criativi-dade em atividades de composição musical. O desenho da pesquisa incluiu: (1)observação e registro em vídeo de dois conjuntos de atividades de composição musicalna turma participante; (2) grupos focais com os alunos; e (3) entrevistas semiestru-turadas e de reflexão com vídeo com a professora. Esse conjunto de instrumentos de

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2 Quando foram realizadas as observações em sala de aula, o ensino fundamental na escolaainda era estruturado no sistema de oito anos. Embora pertença à rede particular de ensino, aescola é administrada comunitariamente.3 As aulas de música foram realizadas em sala equipada com vários instrumentos musicais depercussão, como xilofones, metalofones, pandeiros, triângulos, chocalhos, tambores e flautasdoces, além de um violão e um piano. O espaço físico utilizado era pequeno (aproximadamente20m2), mas nas atividades de composição em pequenos grupos os alunos utilizavam tambémo espaço do saguão, que fica em frente à sala de música.

coleta de dados foi organizado conforme a figura abaixo (figura 1); detalhes e justifi-cativas são dados a seguir.

Figura 1 – Esquema do desenho metodológico da pesquisa.

As observações das aulas foram realizadas de outubro a dezembro de 2007, numa se-qüência de sete aulas da 2ª série do ensino fundamental. A turma era formada por23 alunos com idades entre 7 e 9 anos. Nesse período, foram observados dois conjuntos de atividades de composição musical:o primeiro, uma proposta de composição de arranjo para a canção, tradicional bra-sileira, Zabelinha; e o segundo consistiu na elaboração de uma composição utilizandoa escala pentatônica. Cada conjunto de atividades incluiu: a apresentação da propostade composição pela professora; a realização da composição pelos alunos, em pequenosgrupos; a apresentação das composições para a turma e um momento de análise ecrítica das composições pela classe.O desenho da pesquisa incluiu a realização de duas modalidades de entrevista com aprofessora: entrevistas semiestruturadas e entrevistas de reflexão com vídeo, ambasrealizadas após a conclusão das observações. A entrevista semiestruturada teve o ob-jetivo de conhecer o contexto educativo no qual estava sendo realizada a pesquisa ea prática educativa da professora. Na entrevista de reflexão com vídeo a professoraassistiu às próprias aulas gravadas, sendo incentivada a refletir sobre os sentidos esignificados que ela atribui à criatividade, às atividades de composição realizadas emsala de aula e ao processo de participação dos alunos nas atividades observadas. Outro procedimento de coleta de dados foi a realização de grupos focais com os alunos,com o objetivo de conhecer as suas concepções e pensamentos sobre música, sobre aaula de música e sobre a atividade de composição musical. Os grupos focais foramintegralmente gravados em áudio e vídeo, pois assim poderiam ser captados, alémdas falas, os comportamentos não verbais dos alunos (Kleiber 2004), facilitando aindaa identificação dos alunos nas transcrições. Para a análise dos dados foi utilizado o software NVivo 85, um dos programas dispo-níveis no mercado do sistema CAQDAS (Computer-aided qualitative data analysis soft-ware), elaborado para auxiliar o pesquisador na análise de dados qualitativos.

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5 O software NVivo 8 é produzido pela QSR International Pty Ltd. (copyright © 2008).

Processos de compor, apresentar e criticar música em sala de aula

No estudo de caso realizado, apreendo que as dimensões da aprendizagem criativase articulam através do ciclo estabelecido entre as atividades de composição em gru-pos, apresentação dos trabalhos para a turma e crítica musical, esta última entendidade forma bastante ampla, incluindo as análises e sugestões das crianças e da professoraaos trabalhos apresentados em aula. Cada uma das dimensões analisadas na pers-pectiva das crianças e da professora tem uma função na aprendizagem criativa, massão as relações entre elas que criam o espaço para que a aprendizagem criativa se de-senvolva. Detalhando essa proposição, analiso o papel das atividades de composição,apresentação e crítica no processo de articulação entre as dimensões da aprendizagemcriativa, considerando a perspectiva das crianças e o papel da professora nesse pro-cesso.No estudo, as atividades de composição em grupo configuraram um espaço de expe-rimentação, exploração e atualização das idéias de música das crianças, permitindoa negociação de idéias musicais e papéis sociais entre as crianças, que favoreceramos processos colaborativos no fazer musical. Essa atividade era considerada prazerosapelas crianças, engajando-as nas aulas por diversos motivos: porque atende ao inte-resse de tocar instrumentos; pela oportunidade de trabalhar com os colegas; pelo de-safio de inventar as próprias músicas e trabalhar com autonomia. No processo decompor em pequenos grupos, as crianças também atribuíram sentido às experiênciasmusicais vividas dentro e fora da escola, expressando suas idéias de música e cons-truindo sua identidade no grupo.O papel de Madalena nesse processo era manter a organização nos grupos, garantindoo foco na atividade e a relação de respeito entre as crianças. Para tornar efetiva a co-laboração no processo de composição, foi importante o conhecimento que ela tinhados alunos e da forma como eles se relacionavam entre si, considerando as caracte-rísticas individuais das crianças, relações de liderança e status na turma, com o fitode maximizar a participação no trabalho. A dinâmica de formação dos grupos insti-tuída por Madalena, oportunizando novas parcerias nos trabalhos ao alternar traba-lhos com grupos formados pelas crianças e grupos formados por ela, contribuiu paradiversificar as formas de participação social em classe. A maneira como a professoraconduzia essas questões favorecia a construção de relações sociais positivas em aula,condição para que os alunos se sentissem confiantes em sua capacidade de realizaras atividades em aula e seguros para expor suas idéias no grupo. Cabia também à pro-fessora selecionar temas e conteúdos relevantes e de interesse das crianças ao proporas atividades de composição. Nos momentos de apresentação das composições as crianças afirmavam as idéias demúsica construídas nos pequenos grupos, reiterando idéias já elaboradas coletiva-mente pela turma ou introduzindo novas idéias de música. As apresentações tambémvalorizavam as composições das crianças, atribuindo-lhes a responsabilidade de mos-

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trar aos colegas o que produziram, sabendo que seriam avaliadas por isso. Na relaçãopalco-platéia estabelecida em aula, criava-se a oportunidade para elas terem seus tra-balhos reconhecidos pelos colegas, o que de fato constituiu um processo que, ao longodo tempo, contribuiu na construção da relevância dessas atividades. A relação palco-platéia também agregou pertinência à aula de música, conectando as crianças a prá-ticas musicais legitimadas socialmente, proporcionando a experiência de se colocarna posição de um artista que se apresenta em público. Essa vivência parece ter apro-ximado as crianças do “mundo dos músicos”, criando paralelos entre o que os músicosfazem na “vida real” e o que elas faziam na escola. A relevância das aprendizagensfoi aumentada pelo desafio e pela expectativa gerados nessa atividade, colocando-asem posição de correr riscos. As apresentações também se configuraram como um es-paço de tomada de consciência do campo, quando elas percebiam como a platéia es-tava reagindo aos seus trabalhos. O papel da professora era garantir o espaço para que todas as crianças pudessem par-ticipar das apresentações e estabelecer condições afetivas para que elas se sentissemseguras para correr o risco de se apresentar na relação palco-platéia estabelecida emaula. Novamente a qualidade das participações sociais no grupo foi fundamental, ca-bendo à professora administrar as relações entre os alunos para que se estabelecessea coparticipação nos trabalhos produzidos pela turma, construindo com eles um am-biente que favorecesse participação e colaboração. Madalena destacava em aula a im-portância das apresentações no processo de aprendizagem do grupo, valorizando opapel de ouvintes críticos das crianças e a sua capacidade para julgar os trabalhosdos colegas que se apresentam. Propondo a escuta atenta das composições dos alunos,pedindo que as tocassem mais de uma vez, melhorando a execução dos trabalhos oudestacando idéias musicais trazidas pelas crianças, Madalena valorizava a atividadeem sala de aula. Ela também aumentava a relevância dessa atividade quando conver-sava com as crianças sobre a responsabilidade delas com o público presente, relacio-nando as experiências em aula com as práticas dos músicos. A atuação da professoracomo artista, conhecida pelas crianças, aumentou a confiabilidade e a legitimidadedesse discurso para as crianças. Nas atividades de crítica musical as crianças tinham espaço para refletir sobre as prá-ticas musicais realizadas em aula, exercendo o papel de audiência crítica das compo-sições elaboradas pela turma. Esse momento da aula também agregava relevância evalor às atividades de composição musical, permitindo que elas atribuíssem signifi-cados às suas produções. O momento de crítica musical permitia mais uma forma departicipação social em aula: a coletividade, favorecendo a construção de conhecimen-tos coletivos. Nessa atividade as crianças exerciam o papel de campo, julgando os tra-balhos dos colegas e construindo intersubjetivamente os critérios comuns àcomunidade de prática musical. Refletindo sobre suas experiências, as idéias de mú-sica das crianças eram revisadas, em processos de reiteração, aceitação ou rejeição,negociando sentidos das práticas musicais e atualizando os critérios do campo. Se-gundo Martinazzo (2005), no processo intersubjetivo de aprendizagem o entendi-

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mento não significa adesão cega à idéia do outro nem submissão ao discurso hege-mônico e legitimador, mas um princípio central no estabelecimento de solidariedade,de interação e de socialização. O papel da professora nas atividades de crítica musical era de mediar as discussõesentre as crianças na construção da aprendizagem em sala de aula. Madalena desem-penhava o papel de gerenciar esse momento, garantindo espaço para as falas dos alu-nos e um ambiente de relações sociais de engajamento, de compromisso e respeitomútuo em classe para que as crianças se sentissem seguras para expressar suas idéias.A professora participava da construção do campo nas atividades de análise e críticamusical, podendo ampliar as idéias de música das crianças nesse processo quandoressaltava características musicais das composições apresentadas pelos alunos, cha-mando atenção para as idéias de música que eles introduziam. Em determinados mo-mentos, as idéias de música inicialmente rejeitadas pela turma eram questionadaspela professora, quando, baseando-se em seus conhecimentos e vivências musicais,ela as contextualizava musicalmente, propondo a apreciação de repertórios variadose novas formas de escuta musical. Isso acontecia, por exemplo, quando a professoraestabelecia relação entre as composições das crianças e outras músicas. Como salien-tam Burnard e Younker (2004), as experiências dos estudantes de falar e refletir sobrea ação revelam como se diferenciam os processos de composição das crianças, mastal processo precisa ser promovido e compreendido pelo professor. Nesse sentido, ascomposições das crianças e suas críticas musicais também permitiram que a profes-sora adquirisse conhecimentos sobre o modo como as crianças pensavam suas expe-riências musicais e como se engajavam nas propostas de sala de aula, fornecendosubsídios importantes para o planejamento das próximas atividades e acompanha-mento dos processos de aprendizagem dos alunos. Ao longo das aulas de música, as crianças ressignificaram suas experiências comocompositoras, executantes e audiência crítica, podendo, por um lado, incorporarnovas idéias de música aos seus trabalhos e críticas musicais, e, por outro, incorporaros critérios do campo estabelecidos intersubjetivamente em classe às suas composi-ções, sendo orientadas por esses critérios ao compor. Nessa perspectiva, os processosde discussão, reflexão, aceitação e rejeição provocados na produção em sala de aulaabriram espaço para ampliar as idéias de música das crianças, acionando a aprendi-zagem criativa. Já as composições avaliadas de maneira mais consensual como “bemresolvidas” não aprofundaram as críticas musicais, reafirmando no grupo as idéiasde música mais estáveis, aceitas pelas crianças. Isso não significa que a aprendizagemcriativa não estivesse ocorrendo quando os trabalhos não eram aceitos de imediato,pois o movimento da aprendizagem inclui a estabilização e a desestabilização dasidéias de música no grupo. Focalizando a perspectiva das crianças, observo que aconstrução do campo ocorria em um processo dinâmico de atualização, afirmação,reiteração e ampliação das idéias de música na comunidade de prática musical esta-belecida em aula, processo acionado através das atividades de composição, apresen-tação e crítica.

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Compondo suas músicas, as crianças tinham a oportunidade de expressar suas idéiasmusicais, mas a aprendizagem criativa era potencializada quando elas participavamtambém da construção do campo, tecendo suas críticas e análises sobre a produçãodo grupo. Como argumenta Santos (2006), atribuindo significados às suas escutas ascrianças podem ampliar e atualizar suas idéias de música, indo além de modelos pré-concebidos. Além disso, é necessário considerar o papel da professora, porque ela co-participa do processo, questionando, orientando e ampliando as idéias de música dascrianças e oportunizando-lhes que participem da construção de uma comunidade deprática musical em sala de aula. Nesse sentido, entendo que a aprendizagem numacomunidade de prática musical pode gerar transformações nas idéias de música dogrupo, mudanças essas sustentadas pelas dinâmicas de participação e engajamentoconstruídas em sala de aula. Segundo Wenger (2008, 215), “A prática transformadorade uma comunidade de aprendizagem oferece um contexto ideal para o desenvolvi-mento de novas compreensões porque a comunidade sustenta mudanças como partede uma identidade de participação”.Os processos da aprendizagem criativa não são lineares, pois cada trabalho produzido,apresentado e analisado pelas crianças pode gerar uma dinâmica própria na articu-lação entre as dimensões da criatividade. Cada um desses momentos no conjunto deatividades de composição contribuiu para que as dimensões da aprendizagem criativafossem articuladas, num processo que se transforma e atualiza em movimento cíclicoem espiral, isto é, na repetição de um ciclo que se renova, transforma e atualiza noseu processo. Tal ciclo pode ser acionado em diversos momentos na sala de aula, poisna produção de cada composição, a cada apresentação e em toda atividade de reflexãosobre música, o processo da aprendizagem criativa pode renovar-se e dar continui-dade ao ciclo de compor, apresentar e criticar música que se inicia, transformadopelas experiências musicais compartilhadas na turma. Como explica Martinazzo(2005), na dimensão intersubjetiva do conhecimento o processo de entendimentoentre os sujeitos sobre algo (as idéias de música das crianças), sempre provisório, émais valorizado do que o produto a ser alcançado. Segundo o autor, esse processo deentendimento compartilhado está na base da constituição de construções sociais epedagógicas, emancipadoras e democráticas, em que professores e alunos podemtransformar-se em sujeitos/atores do aprender juntos. Nesse processo de aprenderjuntos a relação intersubjetiva se estabelece na interação, na troca, no diálogo, na so-cialização, na construção de identidades (Martinazzo 2005, 206).

Além disso, os eventos em sala de aula são sempre singulares e circunstanciais, su-jeitos a situações não previsíveis ou determinadas pelo contexto, como o tempo daaula, que muitas vezes é insuficiente para compor, apresentar ou analisar os trabalhos.A maneira como cada trabalho repercutiu no grupo se relaciona a múltiplos fatores,como: o gerenciamento do tempo da aula; a disponibilidade da professora para ouviras crianças; a maneira como Madalena compreendia a produção das crianças; os sig-nificados que as crianças atribuíram às composições produzidas no grupo ou as re-lações de liderança e status entre os alunos. Dessa forma, as composições das criançasrefletem os encontros, influências e também as tensões provocadas na negociação in-

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tersubjetiva de idéias de música e formas de participação social na aula no decorrerdo processo de ensino e de aprendizagem. Com base no exposto, argumento que no estudo de caso aqui realizado as dimensõesda aprendizagem criativa se articulam no ciclo estabelecido entre as atividades decomposição em grupo, apresentação e crítica musical, acionando processos não li-neares de estabilização e desestabilização das idéias de música construídas intersub-jetivamente em sala de aula. Participando das aulas como compositores, intérpretese audiência crítica, as crianças constroem sua identidade no grupo, tornando-se agen-tes da própria aprendizagem, elaborando intersubjetivamente o conhecimento quesustenta suas idéias de música, constantemente revistas, atualizadas e ampliadas pelassuas experiências musicais e reflexivas. Nesse processo, a professora criava as condi-ções para que se estabelecesse um ambiente de relações sociais positivas, de compro-metimento com os processos de aprendizagem do grupo, de colaboração mútua, deengajamento de interesses e de valorização das contribuições das crianças. Ao longodo tempo, essas formas de participação social configuraram uma comunidade de prá-tica musical engajada e comprometida no processo de negociação e significação dessaspráticas, compartilhando maneiras de fazer e pensar música que sustentam a ativi-dade criativa, ao mesmo tempo em que a criatividade se desenvolvia nesse processo.

Considerações finaisCom base no estudo realizado (Beineke 2009), observei que a aprendizagem criativaé potencializada em atividades musicais que não apenas promovam a realização cria-tiva — caso das composições musicais das crianças — mas que também incentivema análise e reflexão sobre as práticas musicais da turma. Nesse processo, quando ascrianças têm a oportunidade de falar sobre a maneira como compreendem a músicae lhe atribuem significados, em conjunto com a professora, é favorecida a construçãocoletiva de conhecimentos através da colaboração, coparticipação e coletividade. Aapresentação dos trabalhos para a turma também mostrou-se importante na apren-dizagem criativa, visto que esse momento da aula contribuiu para conectar as ativi-dades da aula de música com práticas musicais socialmente legitimadas para ascrianças que fundamentam suas idéias de música e representam formas de fazer mú-sica no “mundo dos músicos” — ter seu trabalho reconhecido e valorizado peranteuma platéia crítica, disposta a ouvir e contribuir com o que os colegas elaboraram. Na prática educativa aqui investigada foi possível perceber que essas idéias são ne-gociadas intersubjetivamente na classe, como resultado do conjunto de atividades decompor, apresentar e criticar os trabalhos das crianças. Em alguns momentos ficouevidente como essas idéias são desestabilizadas ou reiteradas na turma, provocandoa atualização e redimensionamento das idéias de música elaboradas nas aulas. Nessesentido, o estudo aponta a importância de os professores não apenas contemplarema atividade de composição no ensino de música, mas também reconhecerem que ascrianças têm muito a dizer sobre os significados que atribuem a essas práticas, criandoe recriando argumentos para justificar suas idéias — provisórias — de música. Nesse

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sentido, ouvir as crianças com o intuito de conhecer as idéias de música que funda-mentam sua compreensão musical pode oferecer subsídios importantes para a con-dução das aulas pelo professor, que analisa não apenas como as crianças pensammúsica, mas também como elas atribuem significados às suas práticas musicais. Neste estudo de caso pude observar um trabalho construído com base em experiên-cias musicais diretas — compor, apresentar e analisar/criticar — que configurammeios para desencadear a aprendizagem criativa. Dessa forma, o trabalho criativo ul-trapassa o objetivo de criar algo novo para os alunos ou aplicar conhecimentos mu-sicais adquiridos, pois mais do que os produtos elaborados em aula, o foco são asaprendizagens colaborativas, de seres humanos que se relacionam fazendo música,que se escutam e que aprendem uns com os outros. Nesse sentido, o ciclo entre asatividades de compor, apresentar e criticar produções musicais em sala de aula — ati-vidades essas entendidas dentro de um processo educativo mais amplo de construçãode identidade no contexto de uma comunidade de prática musical estabelecida emaula — pode indicar uma alternativa possível quando se deseja construir uma edu-cação musical na escola básica que contribua para formar pessoas mais sensíveis, crí-ticas, transformadoras e solidárias, quando a criação abre a possibilidade de pensarum mundo melhor.

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As relações texto-música e suas implicações na performance dacanção Rosamor (1966) de Ernst Mahle

Eliana Asano [email protected]

Maria José Dias Carrasqueira de [email protected]

Programa de Pós-Graduação em Música/Instituto de Artes/Unicamp

ResumoEsta comunicação deriva de uma dissertação de mestrado e tem como objetivo prin-cipal a proposição de diretrizes interpretativas para a performance da canção Rosamor(1966) de Ernst Mahle, com especial enfoque no procedimento pianístico. Naturali-zado brasileiro, Ernst Hans Helmuth Mahle nasceu a 3 de janeiro de 1929 na cidadede Stuttgart, na Alemanha, e está no Brasil desde 1951. Sua vasta obra abrange maisde duas mil composições, incluindo composições originais e arranjos, especialmentesobre temas folclóricos de diferentes nacionalidades. A canção selecionada para apresente comunicação é composta de cinco peças breves escritas sobre cinco dife-rentes poemas de Guilherme de Almeida (1890-1969), publicados na obra Rosamor(1965). O processo analítico empregado para a compreensão dos procedimentos com-posicionais e para a elaboração da execução musical engloba o exame do texto poé-tico, da estrutura musical, das relações texto-música, dos aspectos interpretativos edos procedimentos pianísticos. A análise musical encontra fundamento na técnica deanálise desenvolvida por Schoenberg (2008) e está apresentada segundo os critériosorganizacionais de White (1994). Os demais aspectos são analisados segundo os pa-râmetros e conceitos propostos por Stein e Spillman (1996). A recombinação dosdados resultantes das análises ofereceu subsídios significativos para a elaboração da

performance da canção e permitiu um exame mais aprofundado da obra de ErnstMahle. A performance final, registrada em áudio, tem o objetivo de trazer a públicouma proposta de performance, tornando-se um instrumento de realização sonora daobra estudada. O trabalho oferece subsídios para a incipiente pesquisa acadêmicaem Cognição Musical, sobretudo para as áreas de Educação Musical e Percepção. Portratar-se de um compositor vivo e atuante no cenário musical brasileiro, o trabalhotorna-se ainda mais expressivo tendo em vista a colaboração pessoal do próprio com-positor, que disponibilizou seu arquivo particular, concedendo entrevistas e aclarandoinformações. Apoio FAPESP.

Palavras-chaveCanção de Câmara Brasileira – Performance – Ernst Mahle.

IntroduçãoEsta comunicação deriva de uma dissertação de mestrado e tem como objetivo prin-cipal a proposição de diretrizes interpretativas para a performance da canção Rosamor

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(1966) de Ernst Mahle, com especial enfoque no procedimento pianístico. Naturali-zado brasileiro, Ernst Hans Helmuth Mahle nasceu a 3 de janeiro de 1929 na cidadede Stuttgart, na Alemanha, e está no Brasil desde 1951. Sua vasta obra abrange maisde duas mil composições, incluindo peças escritas para vários instrumentos de or-questra, música de câmara para as mais variadas formações, concertinos e concertospara vários instrumentos solistas e orquestra, obras para canto, coro, orquestra decâmara, orquestra sinfônica, balés e óperas. A canção selecionada para esta comuni-cação é composta por cinco peças breves escritas sobre cinco diferentes poemas pu-blicados na obra Rosamor (1965) do escritor campineiro Guilherme de Almeida(1890-1969), principal responsável pela divulgação no Brasil do haicai, forma poéticade origem japonesa, conhecida pela brevidade de seus versos. Para efeitos de análise,adotamos a versão para voz aguda e piano, datada de 1966 e dedicada à Waldith Ac-corsi. Em comunicações pessoais, Maria Apparecida Mahle, esposa do compositor,conta que a peça fora escrita, originalmente, para coro feminino, do qual Waldith eraum dos principais sopranos. Ela não apreciava o repertório contemporâneo, mas,como já havia cantado a peça com o coro, aceitou estrear a versão para voz aguda epiano. No Catálogo de Obras (2010), além desta versão, constam outras para voz gravee piano, três vozes iguais sem acompanhamento, trio vocal e piano, soprano (tenor)e orquestra de cordas. O processo analítico empregado para a compreensão dos pro-cedimentos composicionais e para a elaboração da execução musical engloba o examedo texto poético, da estrutura musical, das relações texto-música, dos aspectos inter-pretativos e dos procedimentos pianísticos. A análise musical encontra fundamentona técnica de análise desenvolvida por Schoenberg (2008) e está apresentada segundoos critérios organizacionais de White (1994). Os demais aspectos são analisados se-gundo os parâmetros e conceitos propostos por Stein e Spillman (1996).

Considerações preliminaresO processo de análise da canção, de natureza descritiva e qualitativa, compreende oexame de cinco componentes distintos e complementares: (1) texto poético, (2) es-trutura musical, (3) relações texto-música, (4) aspectos interpretativos e (5) proce-dimentos pianísticos. A análise musical encontra fundamento na técnica de análisedesenvolvida por Schoenberg (2008) e está apresentada segundo os critérios organi-zacionais de White (1994). Os demais aspectos são analisados segundo os parâmetrose conceitos propostos por Stein e Spillman (1996). O exame dos textos poéticos apre-senta duas abordagens: sintática, que envolve o estudo dos aspectos formais, e se-mântica, que investiga o significado poético. O objetivo é relacionar os vários aspectosdo texto na busca por uma interpretação da poesia. A análise da estrutura musicaltem por objetivo principal o exame das características composicionais mais marcantesem cada uma das peças. De acordo com Cook (1987), não existe uma maneira fixapara se iniciar uma análise — ela depende da música, do analista, bem como da razãopela qual se está realizando a análise. Considerando que o trabalho aqui apresentadotem por objetivo final a performance, optamos por uma investigação musical não res-

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trita a descrições de acordes tomados isoladamente, porém, sujeita à organização mu-sical como um todo tendo em vista a elaboração da performance. A estrutura musicalé analisada em três níveis — micro, média e macro-análise —, dentro dos quais foramacrescentados parâmetros julgados relevantes pelas autoras na análise do repertórioselecionado. As relações texto-música são estabelecidas nos níveis sintático e semân-tico e revelam indícios de como o texto poético foi convertido em música. A investi-gação dos aspectos interpretativos — presentes na escrita pianística ou inferidos pelosintérpretes — tem por objetivo buscar elementos pertinentes à performance da cançãode modo a contribuir para o estabelecimento do sentido poético. Por último, foramelencados alguns efeitos pianísticos característicos na escrita pianística da canção, osquais enriquecem as imagens pictóricas do texto e são concebidos de modo a realçaro clima da canção. O objetivo final é a recombinação dos dados resultantes das aná-lises de modo a embasar uma performance da canção. A organização e a efetiva rea-lização dos dados levantados na pesquisa, quando da performance musical, estãosubordinados a gestos pianístico-instrumentais que irão determinar uma abordagemo mais próxima, ou não, a partir da compreensão pelos intérpretes, dos códigos au-torais presentes nas obras. Um dado a ser considerado é que a realização das obraspor cada intérprete passa por sua criatividade individual e pela compreensão da cenaproposta em cada canção. Supõe-se que as experiências pessoais de conteúdo emo-cional vivenciadas pelos intérpretes poderão afetar o processo agógico e a conseqüenteexpressividade da performance, imprimindo, assim, uma execução sui generis porparte de cada um.

Rosamor (1966)“A rosa, rainha da natureza vegetal, é delicada, misteriosa. Circundada pelo zum-bido das abelhas, está sozinha, não revela seus segredos, mas oferece seu perfume.Símbolo do amor, às vezes é sacudida pelos ventos.” (Mahle em comunicações pes-soais a Eliana Asano Ramos).

Texto. Na análise sintática, verificamos que os poemas das peças III e IV são regularese simétricos, ao passo que a divisão atípica dos poemas das peças I, II e V reflete apreocupação do poeta com o aspecto fônico. No poema da peça I, são seis versos cur-tos com predomínio do padrão rítmico binário iâmbico. O poeta adotou o esquemade rimas abccab, com assonância das vogais fechadas /o/ e /e/, aliteração das con-soantes /s/ e /r/ e terminações fortes. Há uma variedade de sinais de pontuação naarticulação dos versos: no v. 1, a interrogação “rosa?” implica entoação ascendente,ao passo que o ponto final no v. 6 pressupõe entoação descendente. O sinal de parên-teses no v. 2 denota um pensamento do narrador. Poema da peça I:

Rosa? Há de haver(e por que não?)A coisa inútil mastalvez das últimasrazões-de-serda criação.

(Almeida, 1965, [s.p.])

245

No poema da peça II, são oito versos curtos com predomínio do padrão rítmico bi-nário trocáico. O poeta utiliza o esquema de rimas aaabcacb, com assonância da vogalfechada /e/, aliteração da consoante /s/ e terminações fracas. O ponto final surge nosv. 2 e 8 e denota entoação descendente. Valorização de rimas internas e externas.Poema da peça II:

Eis a rosasilenciosa.Suas péta-las vermelhastêm consciênciada secretaconfidênciadas abelhas.

(Almeida, 1965, [s.p.])

No poema da peça III, os três primeiros versos são regulares: o último deles apresentauma quebra no padrão rítmico. O poeta adota o esquema de rimas abab, com asso-nância da vogal aberta /i/, aliteração da consoante /m/ e alternância de terminaçõesfortes e fracas. O sinal de dois pontos ocorre entre os v. 1-2 e v. 3-4, artifício quedenota entoação ascendente. O ponto final aparece aos finais dos v. 2 e 4 e denota en-toação descendente. Predomínio do padrão binário, em alternâncias de ritmo trocáicoe iâmbico. Poema da peça III:

Rosa sozinha:vive sem mim.E não é minha: no meu jardim.

(Almeida, 1965, [s.p.])

No poema da peça IV, são oito versos curtos e regulares, com alternância de termi-nações fortes e fracas e predomínio do padrão binário, em alternâncias de trocáico eiâmbico. O poeta adotou o esquema de rimas abacdbcd, com assonância da vogalaberta /o/ e aliteração da consoante /r/. Há um jogo sonoro entre as palavras “forma”e “fôrma”. Os v. 1-3 consistem em frases afirmativas; o sinal de dois pontos no v. 5tem função esclarecedora e denota uma entoação ascendente. Os v. 6-8 representama síntese do poema e denotam entoação final descendente. Poema da peça IV:

Houve um botãoque tinha a formade um coração.Botão de rosa,fôrma de amor:– eis que se formaa flor formosaque é Rosamor.

(Almeida, 1965, [s.p.])

No poema da peça V, os versos são irregulares. As similitudes verificadas entre os v.1-4 e v. 5-8 permitem a divisão em duas subestrofes: na primeira, assonância das vo-

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gais fechadas /e/ e /o/ e aliteração das consoantes /r/, /l/ e /s/; na segunda, assonânciadas vogais abertas /a/ e /e/ e aliteração das consoantes /n/, /t/ e /p/. Os v. 4 e 5 são in-terrogativos e denotam entoação ascendente. Os v. 3 e 7 finalizam com vírgula e im-plicam entoação ascendente. Predomínio do padrão ternário anapéstico. Poema dapeça V:

Que fúria de ventos soltospor teus refolhos revoltospassou,rosa sossegada?Que bênção de asas dolentesem tuas pet’las dormentespousou,rosa tumultuada?

(Almeida, 1965, [s.p.])

Na análise semântica, constatamos que os textos são sucintos e objetivos, com o temaligado à natureza. A linguagem é culta, com algumas inversões de membros de frase,escrita na terceira pessoa do singular, mas de fácil compreensão. Trata-se de uma me-ditação sublime do poeta sobre a singular beleza da rosa, dando-lhe qualidades deser humano. O texto tem uma persona, representada no narrador, e um modo de en-dereçamento, representado na “rosa”, embora nos poemas das peças I, II, III e IV, omodo de endereçamento pode ser representado no leitor. No poema da peça I, a ten-são semântica se intensifica até alcançar o terceiro verso: a palavra “inútil” é o ápiceda tensão emocional; a partir do v. 4, a tensão vai se dissipando. No poema da peçaII, tem-se a impressão de clímax no v. 5 na medida em que as palavras parecem termaior peso na pronúncia: apesar de haver a mesma quantidade de sílabas, as palavrasapresentam maior quantidade de encontros consonantais e vocálicos. No poema dapeça III, o texto é carregado de ambigüidades. O ponto de maior conflito emocionalestá no v. 4, no qual ocorre uma quebra no padrão rítmico. No poema da peça IV, oponto de maior tensão emocional decorre na palavra “Eis”, com sentido de surpresa,na qual ocorre uma quebra no padrão rítmico. No poema da peça V, os v. 1, 2 e 8estão impregnados de palavras que denotam agitação; os v. 3-6, de palavras que de-notam calmaria. Estrutura musical. Na análise da estrutura musical, abundância de síncopas e con-tratempos, com recorrentes indicações de mudança de andamento ao longo da canção,sugerindo valorização do enunciado poético. A intensidade, a extensão do teclado ea extensão da linha vocal são amplas. A linha vocal é predominantemente fragmen-tada e tonal, com valorização dos intervalos da tríade. A harmonia é marcada por umcampo tonal fundamental, ainda que por diversos momentos apoiada em escalas cro-máticas e modais, especialmente no modo mixolídio. Na parte do piano, combinaçõesde texturas semi-contrapontísticas e livre utilização de processos imitativos. Há umaquantidade significativa de movimentos acordais com implicações melódicas e mo-tívicas e movimentos paralelos de quartas e quintas. As relações tonais são valorizadas,sobretudo, com o emprego recorrente de acordes de sétima. Os recorrentes pontos

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pedais e notas presas indicam valorização da condução melódica e da escrita contra-pontística. Na forma, a repetição rítmico-motívica contribui como elemento unifica-dor importante para a coerência musical, sobretudo nas canções que não apresentamuma repetição formal consistente.Estrutura musical e sintática textual. Das cinco peças, a peça III, é a única que apre-senta uma estrutura regular; as demais peças consistem em grupos de frases irregu-lares. Apesar de algumas frases musicais abrangerem dois ou mais versos poéticos,todos eles são claramente demarcados na linha vocal, sobretudo ritmicamente, comonos c. 6-10 (Ex. 1).

Ex. 1 — Mahle, Rosamor (1966): peça I, c. 6-10, linha vocal.

As combinações sonoras e as sílabas tônicas são enfatizadas musicalmente nos temposfortes dos compassos, nas variações de dinâmica e de registro, nos melismas, nos des-locamentos rítmicos e na agógica, como nos c. 7-12 da peça II (Ex. 2).

Ex. 2 – Mahle, Rosamor (1966): peça II, c. 7-12, melodia vocal.

Em geral, a métrica musical corresponde aos padrões rítmicos poéticos. Nas peças I,II e III, a métrica binária musical corresponde ao padrão binário do texto. Nas peçasIV e V, a métrica ternária musical corresponde ao padrão ternário do texto. A repe-tição de alguns versos contribui para o equilíbrio formal e para a ênfase textual. Ve-rificamos repetição de versos nas peças II, c. 6-7, III, c. 5-8, e IV, c. 6-7 e 12-14.Algumas elisões constatadas na escansão poética não foram consideradas pelo com-positor na conjugação texto-música. Tal procedimento pode anular a regularidade ea simetria dos versos, bem como alterar os padrões rítmicos constatados na escansão.Isso explica porque algumas vezes um padrão binário verificado na escansão poéticavem traduzido pelo compositor em métrica ternária, e vice-versa, como no c. 6 dapeça IV (Ex. 3).

Ex. 3 – Mahle, Rosamor (1966): peça III, c. 1-6, linha vocal.

Estrutura musical e semântica textual. Na peça I, a condução harmônica contribuipara o estabelecimento da tensão emocional, cujo ápice está no c. 5. Na peça II, a ho-mogeneidade rítmica e a dinâmica estável correspondem ao sentimento de tranqüi-

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lidade da rosa. Na peça III, os contrastes na intensidade e o ritmo sincopado ilustrama ambigüidade nas palavras do narrador. Na peça IV, a descrição sublime do nasci-mento da flor fica por conta das notas em staccato, da dinâmica em p e dos movi-mentos ascendentes dos arpejos em pp. Na peça V, a “fúria de ventos soltos” éilustrada nos elementos rítmicos: saltos, notas curtas e repetições de notas dentro deum andamento rápido. Aspectos interpretativos. A linha vocal é predominantemente silábica e parlando, pro-cedimento que implica uma narrativa clara e objetiva. Na textura, a linha vocal dascinco peças é predominantemente silábica e denota uma narrativa clara e de fácilcompreensão. Os melismas surgem com a função de colocar em evidência algumapalavra em especial, como no último melisma da peça II (c. 20-24), uma onomatopéiaque evoca o zumbido das abelhas (Ex. 4).

Ex. 4 – Mahle, Rosamor (1966): peça II, c. 19-24, linha vocal.

Na peça V, os melismas nas palavras “soltos” e “revoltos” denotam agitação (Ex. 5).

Ex. 5 – Mahle, Rosamor (1966): peça V, c. 1-3.

A parte do piano dobra a linha vocal de maneira discreta e apresenta significativa in-dependência rítmica da linha vocal. As peças I, III e IV são marcadas pela texturasemi-contrapontística, com seus movimentos melódicos livres e implicações motívi-cas. As peças II e V são assinaladas pelo uso livre do processo imitativo, procedimentoque requer precisão rítmica de ambos os intérpretes e imaginação na exploração dascombinações sonoras, como nos c. 13-16 da peça II (Ex. 6).

Ex. 6 – Mahle, Rosamor (1966): peça II, c. 13-18.

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Temporalidade. A escolha do andamento é uma decisão que deve ser tomada emcomum acordo entre os intérpretes, levando em conta, dentre outros aspectos, a trans-parência na narrativa textual. Embora não haja indicação inicial de andamento, emcomunicações pessoais a esta autora, o compositor fez as seguintes sugestões: peça I,q = 58; peça II, q = 76; peça III, q = 44; peça IV, q . = 132; peça V, q = 152. Há indi-cações de alteração nas peças III e V; nas demais peças, discretas alterações podemser inferidas como elementos ornamentais com função de promover a compreensãotextual e valorizar o contorno melódico.

“Tanto na música como na língua falada as variações de andamento desempenhamum papel importante. Cremos, inclusive, que também a poesia escrita apresentavariações de andamento, autênticos rubatos. Não no papel, está claro, mas à leitura,mesmo silenciosa. Provavelmente o poeta conta com estes rubatos.” (Kiefer 1973,44-45).

Elementos de interpretação. A peça I tem uma estrutura que caminha independentesobre um ponto pedal de tônica. A linha do baixo é realçada pelo dobramento em oi-tava. O salto de quinta na linha vocal (às vezes quarta) e os movimentos cadenciaisna parte do piano são elementos característicos na peça e funcionam como propul-sores da narrativa textual, especialmente para enfatizar as questões do narrador. Adinâmica crescente-decrescente (pp - f - pp) contribui para a ênfase da tensão emo-cional no c. 5 (Ex. 7).

Ex. 7 – Mahle, Rosamor (1966): peça I, c. 4-6.

Na peça II, a dinâmica estável em torno da indicação p evoca a tranqüilidade da flor.Além das imitações entre as partes da linha vocal e do piano, os intérpretes devembuscar ressaltar os recorrentes pontos pedais como elemento unificador entre ambasas partes, como nos c. 1-6 (Ex. 8).

Ex. 8 – Mahle, Rosamor (1966): peça II, c. 1-6.

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A peça III é marcada pelos contrastes súbitos de dinâmica que correspondem à am-bigüidade presente nas palavras do narrador. A linha do baixo apresenta um ritmosincopado característico, como nos c. 1-3 (Ex. 9).

Ex. 9 – Mahle, Rosamor (1966): peça III, c. 1-3.

Na peça IV, as discretas oscilações entre o p e pp refletem a descrição amável do nas-cimento da flor. Os arpejos em legato funcionam como elementos de contraste coma linha vocal fragmentada, em estilo parlando, c. 10-12 (Ex. 10).

Ex. 10 – Mahle, Rosamor (1966): peça IV, c. 7-12.

A peça V inicia em f, tem o trecho central em p e finaliza com um crescendo, am-bientando os momentos de tranqüilidade para o agitamento da flor. As partes se imi-tam freneticamente e finalizam com um movimento paralelo imponente, ilustrandoa palavra “tumultuosa”, c. 12-14 (Ex. 11).

Ex. 11 – Mahle, Rosamor (1966): peça V, c. 12-14.

Nas peças I, II, III e IV, as decisões acerca da diversidade timbrística devem levar emconta o sentimento de lirismo que permeia as palavras do narrador. Na peça IV, osintérpretes podem explorar as possibilidades timbrísticas ao descrever a “fúria deventos soltos”, a “rosa sossegada” e a “rosa tumultuosa”.

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Procedimentos pianísticos. Na peça I, a parte do piano é caracterizada pela texturasemi-contrapontística, com movimentos acordais de implicação melódica, empregode notas presas e pontos pedais. A linha do baixo é valorizada pelo dobramento emoitava. Os movimentos cadenciais expressivos contribuem para demarcar o fraseado.A extensão do teclado é ampla, com emprego do sinal de oitava. A linha vocal estádobrada na parte do piano de maneira sutil. A intensidade é ampla, variando do ppao f. O ritmo é marcado por várias combinações que incluem síncopas, contratempos,tercinas e apojatura. Na articulação, indicação de legato. O pedal de reverberação estáindicado por meio de ligadura. Na peça II, a parte do piano é caracterizada pela tex-tura contrapontística imitativa, com movimentos melódicos em quartas paralelas epontos pedais de tônica que funcionam como elemento unificador. A extensão do te-clado é ampla, com emprego de sinal de oitava. A linha vocal está dobrada na partedo piano de maneira velada. Apesar de algumas síncopas e contratempos, o ritmo érelativamente estável. A intensidade permanece estável em torno da indicação p . Naarticulação, indicação de legato. Na peça III, a parte do piano é caracterizada pela tex-tura semi-contrapontística, com emprego de notas presas, pontos pedais e movimen-tos acordais de implicações melódicas. A linha do baixo é valorizada por meio deritmo sincopado. A extensão do teclado é ampla. A linha vocal está dobrada na partedo piano de maneira sutil. Há indicações de variação no andamento, procedimentorelacionado ao enunciado poético. A intensidade varia do p ao f, com indicações deacentuação. Na articulação, indicação de legato. O pedal de reverberação é indicadopor meio de ligadura. O ritmo é marcado por síncopas e contratempos. A peça IV éa única que apresenta um prelúdio e um poslúdio na parte do piano. A extensão doteclado é ampla e apresenta dobramentos da linha vocal de maneira velada. A inten-sidade varia do pp ao F , com indicações de acentuação. Na articulação, indicaçõesde legato e staccato. O pedal de reverberação é indicado por meio de ligadura. A tex-tura é semi-contrapontística, com emprego de notas presas e movimentos paralelosintervalares de implicações melódicas. Na peça V, a parte do piano é assinalada pelatextura semi-contrapontística e imitativa, com emprego de notas presas. Apresentauma ampla extensão do teclado e da dinâmica, que varia do p ao f. A linha vocal estádobrada na parte do piano de maneira velada. Há indicações de variação no anda-mento, procedimento intimamente ligado ao enunciado poético. Na articulação, in-dicações de legato e staccato. O pedal de reverberação é indicado por meio de ligadura.Ritmo caracterizado por síncopas, contratempos e tercinas. O trinado contribui parailustrar a “rosa tumultuosa”.

Conclusões A combinação dos dados resultantes das análises contribuiu significativamente paraa elaboração da performance da canção e permitiu um exame mais aprofundado daobra de Ernst Mahle. O estabelecimento de relações entre o texto poético e a músicarevelou a preocupação do compositor em transpor de maneira coerente a forma lite-rária para o domínio musical. Em geral, a métrica musical corresponde aos padrões

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rítmicos da poesia e a ênfase textual é obtida nos tempos fortes dos compassos, nasvariações de dinâmica e de registro, bem como nos deslocamentos rítmicos e na agó-gica. Os elementos de harmonia, ritmo, melodia e som refletem o sentimento quepermeia o texto e contribuem para a intensificação emocional do elemento poético.Na investigação dos aspectos interpretativos, a exploração das oscilações no anda-mento e das variações na dinâmica, bem como a ênfase nos deslocamentos rítmicos,tem implicações importantes na narrativa textual e contribuem para o delineamentodo contorno melódico. A linha vocal é predominantemente silábica e parlando, pro-cedimento que implica em uma narrativa clara e objetiva. O piano é um instrumentode ambientação e ilustração poética, em alguns momentos, de função descritiva. Aparte do piano se reveste de particular interesse, especialmente na maneira imagina-tiva de exprimir as imagens e os sentimentos da poesia: a concepção dos aspectos in-terpretativos deve ser concebida de modo a contribuir na construção do panoramaartístico da paisagem sonora e realçar o clima da canção. O exame da escrita pianísticarevelou efeitos instrumentais variados. Os movimentos de particular dificuldade téc-nica e a grande variedade de combinações rítmicas e sonoras são aspectos que exigemdo pianista destreza e controle de uma linha musical sob quaisquer circunstâncias eum extraordinário senso de toque e habilidade na exploração de uma sonoridade pia-nística específica. A performance final da canção está registrada em áudio e consisteem um instrumento de realização sonora da obra estudada. O trabalho oferece sub-sídios para a incipiente pesquisa acadêmica em Cognição Musical, sobretudo para asáreas de Educação Musical e Percepção, e propõe uma reflexão sobre a interpretaçãoda canção de câmara brasileira do século XX. Por tratar-se de um compositor vivo eatuante no cenário musical brasileiro, o trabalho torna-se ainda mais expressivo tendoem vista a colaboração pessoal do próprio compositor, que disponibilizou seu arquivoparticular, concedendo entrevistas e aclarando informações.

ReferênciasAlmeida, Guilherme de. Rosamor. São Paulo: Martins, 1965.Cook, Nicholas. A guide to musical analysis. Oxford: Oxford University Press, 1987.Kiefer, Bruno. Elementos da linguagem musical. Porto Alegre: Instituto Nacional do Livro/MEC,

1973.Mahle, Ernst. Catálogo de Obras. Piracicaba: manuscrito, 2010.Mahle, Ernst. Rosamor. C 26 a. Piracicaba: manuscrito, 1966. Schoenberg, Arnold. Fundamentos da Composição Musical. 3. ed. Tradução Eduardo Seincman.

São Paulo: EdUSP, 2008.Stein, Deborah e Robert Spillman. Poetry into Song: Performance and Analysis of Song. New

York: Oxford University Press, 1996.White, John D. Comprehensive music analysis. London: The Scarecrow Press, 1994.

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Metro e representação: geração de arquivos sonoros emidi a partir de textos da tragédia grega

Marcus [email protected] DE BRASÍLIA

ResumoPesquisa em andamento que consiste em uma metodologia de produção de arquivossonoros a partir das configurações métricas registradas em textos da tragédia gregaclássica. Cada etapa da metodologia é acompanhada por análise e problematizaçãode propostas preexistentes no intercampo entre música e filologia clássica, correla-cionando as práticas de extração dos registros métricos com conceitos advindos daorganização da experiência do tempo musical. Os dados da análise são de duas sériesprincipais de organização desse tempo: a ordem da durações, presente nos códigobinário dos valores quantitativos métricos; e a ordem das alturas, referente aos acen-tos tonais da língua grega. Como caso de verificação, apresentamos análise do metroanapéstico dentro de um contexto performativo específico. Conforme se mostra nosresultados preliminares, o anapesto, tido como uma mera marcha regular, na verdadese articula na tensão entre as ordens de duração e altura, proporcionando assincroniasque orientam sua recepção dentro de situações em que a flexibilidade do materialcíclico é efetivada. Tais efeitos são perceptíveis a partir dos arquivos sonoros que atua-lizam as assincronias. Assim, os dados da análise filológica dos textos são redefinidosem função de análise rítmica, reprocessada a partir de modelos computacionais deprodução e reconhecimento sonoro.

Palavras-ChaveMétrica – cognição – percepção rítmica – tragédia grega

Introdução1Os textos restantes das tragédias gregas são documentos rítmicos que, em sua distri-buição de valores temporais e acentos, apresentam-se tanto como campo de investi-gação quanto de produção de eventos sonoros (Mota 2009, Brown e Ograjensk 2010,Georgaki e Velianitis 2008). O enfrentamento destes textos passa por algumas etapasmetodológicas as quais explicitam a interdisciplinaridade do objeto de estudo.Porém, o que se observa de fato na recepção bibliográfica da métrica grega é uma di-cotomia entre a descrição dos padrões rítmicos e produção sonora, entrefilologia(texto) e música(som), entre métrica e ritmo (Hasty 1997). A partir dessa dicotomia, a métrica grega, concebida como exposição de fatos lin-güísticos, é atualizada por um conjunto de formas abstraídas de seus contextos de

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1 O que se segue é uma discussão de pesquisa em curso sobre representação e performance depadrões métricos a partir de obras dramáticas clássicas (Edital MCT/CNPq 02/2009,n.4000937/2009-3).

geração (Dale 1968, West 1982, Martinelli 1997, Steirück 2007)Tal abordagem contribuiu para a canonização da prática de se pensar metros apenascomo consequência da escansão (contagem) e etiquetagem, corroborando a idéia queos textos são entidades verbais auto-fechadas e que geram por si mesmas sua inter-pretação. Neste caso, temos o predomínio de uma representação restrita dos metrossobre as implicações de sua performance.Por outro lado, a recepção musical dos metros gregos, a partir dos dados disponibi-lizados da filologia, viu nessas formas cristalizadas presets para a composição e clas-sificação de eventos rítmicos, sem, contudo, se interrogar sobre seus específicoscontextos de produção e geração, induzindo a uma imagem universal e tácita dos me-tros (Messiaen 1956, Cooper e Meyer 1960, Houle 1987). Novamente, com o pressu-posto de formas mínimas e básicas de agrupamentos rítmicos, o estudo da métricagrega dissocia-se de seus textos, o que determina uma restrição ao acesso de sua pro-dutividade. Para superar essa dicotomia, torna-se necessário voltar aos textos, concebendo-osnão mais como formas esvaziadas de som, de expectativas de sua percepção e per-formance.

Discussão conceptual e metodológicaÀ parte detalhes editoriais — alguns impossíveis de serem resolvidos —, os textosdas tragédias encontram-se satisfatoriamente escandidos. Há discrepâncias quantoa algumas ambigüidades classificatórias: em algumas situações as formas registradaspodem ser lidas de diversas maneiras (Cole 1988). Em todo caso o que é determinante,desde a Antigüidade é a atribuição de valores temporais relativos às sílabas (Pearson1990, Ophuijsen 1987, Gentili e Lomiento 2003). A escolha das palavras na perfor-mance e depois em seu registro escrito se efetiva em função de sua composição rít-mica, ou organização do material verbal em seqüências ou agrupamentos rítmicosinicialmente relacionados a durações. Um diferencial para a proposta desta pesquisa é integrar escansão, representação eperformance. As descrições dos metros presentes nas edições críticas dos textos ofe-recem notações das quantidades das sílabas dos versos sem o recurso à sua expressãosonora. Os metros identificados são visualmente expostos em esquemas gráficos. Emdecorrência disso, forma-se uma circularidade: a escansão parece gerar o padrão rít-mico a partir das durações registradas na distribuição das sílabas e estes padrões rit-mos encontrados se completam em sua esquematização. Tal ‘ciência métrica’ para os olhos descarta atos que problematizariam os procedi-mentos e resultados da escansão (Becker 2004, David 2006). Por isso, não nos limi-tamos à representação visual dos metros decorrente na identificação dos padrõesquantitativos do verso grego. As informações geradas pela escansão foram submeti-das à mediação tecnológica, por meio de partitura rítmicas gerada em estação de tra-balho de áudio digital (DAW).

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Ao se usar a DAW para registro e produção sonora dos dados iniciais da escansão, pro-curou-se, mais do que simplesmente transferir esquemas métricos para sua digitali-zação, consolidar a ampliação de escopo do estudo dos padrões ritmos dos textosclássicos gregos. Com as ferramentas da DAW, os arquivos produzidos podem ser ma-nipulados, editados, o que pode manifestar in loco a flexibilidade dos métricos gregosdentro de um contexto realizacional, a partir de seu uso concreto. Ainda, tais arquivostornam audíveis e perceptíveis determinados processos de composição rítmica regis-trados nos textos, seja por meio da atribuição de sonoridades ao input binário métrico,seja por meio das representações visuais decorrentes da visualização dos parâmetrossonoros utilizados no registro, mixagem e edição dos arquivos.Na realização deste projeto, um dos obstáculos epistemológicos enfrentados é o daimpossibilidade de reconstrução da performance original. É proverbial a assunçãode que música não registrada é música perdida (Wilson 2005). No caso, a ‘músicaperdida da tragédia grega’ é tomada como um fato por não haver uma notação de pa-râmetros sonoros: teria restado apenas o libreto, as palavras e não a música, o espe-táculo. Para exemplificar tal obstáculo, notem-se as contradições de uma das maiores auto-ridades em música na antiguidade: de acordo com M.L. West,

“It is conventional, in writing about ancient Greek music, to voice a lament that‘the music itself ’ is almost entirely lost. So far as its melodic lines are concerned,this is true: we have only a few dozen specimens to represent a thousand year’smusic , and of these few dozen, most are tattered fragments with scarcely a linecomplete, and nearly all are from compositions of post-Classical date. Of musicfrom before the last decade of the fifth century BC we have not a single music. Onthe other hand there is quite a considerable amount of music from the Archaicand Classical periods of which we can claim to know the rhythms, with at least afair approximation to the truth. There should be litte satisfaction to be had fromknowing the ups and donws of the melodies if we had no idea or the rhythms thatgave the shape. For rhythm is the vital soul of music. The Greeks acknowledgedits fundamental role” (West 1994, 127).

A longa citação atesta tendências hegemônicas no enfretamento dos documentos mu-sicais do passado, os quais não disponibilizam registro partitural considerado com-pleto. Na posição de M. L.West, música é sinônimo de ‘melodia’ e ‘ritmo’ é ao mesmotempo algo subsidiário e basilar. Tanto que a musicalidade objetivada nesta pesquisa,a do drama grego, seria inexistente, pois não há registro melódico dela, pois, segundoWest, em não havendo registro melódico, não há música. Desde o início, desta pesquisa este obstáculo foi enfrentado na proposição de outrosobjetivos que o da reconstrução histórico-filológica da performance original. Inicial-mente, há sim registro de parâmetros sonoros nos textos da tragédia. A codificaçãorítmica ali presente, por meio de combinação de padrões métricos bem caracterizáveis,aponta para o exercício de uma prática coerente de organização do material sonoroem função de seus efeitos para uma massiva audiência. E esta codificação rítmica ébinária, na alternâncias de sons marcados como longos e breves, produzindo algo-

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ritmos claros que nos informam sobre finitas instruções sobre execuções de atributos.Uma tragédia grega pode ser interpretada como um algorítmo complexo, que dentrode limite temporais precisos, exibe eventos audíveis em sucessão, os quais se organi-zam e se relacionam entre si e expõem suas configurações e seus nexos durante suarealização diante de uma audiência. É a amplitude da experiência composicional e recepcional da tragédia grega, regis-trada em parte em seu complexo algoritmo rítmico, que aponta para opções de se en-frentar e superar o obstáculo da performance original. Mas para tanto se representar quanto performar essa complexidade é preciso corre-lacionar os valores rítmicos da escansão com as divisões do texto em função de seuspadrões métricos. O texto da tragédia compreende seções ou partes que organizamdurações temporais em diferentes formas. Temos três básicos tipos: seções com se-qüências construídas por recorrência de unidades assemelhadas; seções marcadaspor modulações em blocos justapostos ou modulações no interior desses blocos; se-ções que combinam por justaposição e/ou contraste seqüências recorrentes e modu-lantes (Hagel 2000, Zaminer 1989). Como se pode observar o complexo algoritmodas tragédias gregas trabalha com uma prática composicional heterométrica, o queenfatiza seu vínculo com a audiência por meio do reconhecimento e apropriação devariadas performances ritmizadas. Ou seja, a detalhada organização sonora evidenciauma recepção exposta a distinções aurais específicas. É como uma tragédia exibisseno decorrer de sua apresentação vários espetáculos. A trama dos acontecimentos nar-rativos cede lugar à trama dos eventos aurais.Essas mesmas seções se especificam em função de sua densidade (monofônica, bifô-nica, homofônica coral) e tipicidade (cenas de lamento, embate, reconhecimento ealusão mítica), pois os registros métricos são registros de performances: os padrõesrítmicos presentes nos textos são articulados fisicamente pelos corpos dos agentesdramáticos (Lattimore 1969). O ritmo aqui é algo que se ouve e vê em cena. Em todocaso é o acabamento sonoro-rítmico das seções que as produz e determina sua iden-tificação: tanto as falas, diálogos e performances corais e quanto os tipos de eventosse relacionam com metros e composições métricas. Diante disso, é necessário projetar uma linha do tempo à qual se acoplam as diversasseções ou partes, cada uma com seus relógios (Sethares 2007). Como se pode observar,a composição rítmica presente no texto da tragédia apresenta um ritmo estruturanteque se efetiva a partir da tensão entre a composição temporal-sonora de cada seçãoe das seções entre si. Como cada nova sessão ou projeto em uma DAW é viabilizadadentro de uma linha de tempo, a irreversibilidade dos diversos eventos rítmicos datragédia em suas configurações sincrônicas e em sucessão podem ser visualizados.Logo, o efeito trágico é sustentado pelo exploração da irreversibilidade temporal: aaudiência acompanha um universo sonoro mutante em seus nexos e transformaçõesenquanto a linha de ação do herói se completa em ruína. O descompasso entre a ri-queza e diversidade rítmica e a crescente restrição e perda de possibilidades/opçõesdo protagonista conecta a audiência ao universo sonoro-imaginativo do drama.

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Para se construir essa linha do tempo, dois tipos de tablaturas são produzidas: uma,que apresenta a macro-estrutura do texto analisado, explicitando suas partes e orien-tações temporais (Simpson e Ferrario 2006); outra, que traduz as durações relativasmarcadas nas sílabas.É justamente de posse dessas duas tablaturas que se dá a próxima fase do projeto: ageração de arquivos. O modelo ideal da representação, que subsidia discussões esté-ticas e conceptuais a respeito de ritmos em contextos performativamente orientados,é o que apresenta três distintos sistemas para uma linha do tempo dos eventos: o pri-meiro é um registro em áudio de interpretação vocal do texto grego. Essa voz-guiaenuncia o texto de acordo com a tablatura das durações previamente elaborada. Osegundo apresenta essa tablatura transcrita em notação musical tradicional vinculadoa arquivo midi, ao qual se atribui sons não melódicos (hand claps). O terceiro registraapenas a acentuação das palavras, por meio de arquivo midi vinculado a som tambémpercussivo (Acoustic Bass Drum).Neste momento, é preciso marcar o diferencial desta pesquisa. Há diversas tentativasde se passar da tablatura métrica para arquivos sonoros. S. Daitz vem realizando im-portante trabalho de metodologização dessa passagem do texto (tablatura rítmica) aoutro texto (vocal) (Daitz 1984, Daitz 1991), modelo para diversos outros empreen-dimentos de se vincular texto e som. No caso de Daitz, temos a proposição de umconjunto progressivo de regras e práticas destinadas à recitação, à leitura em voz altados textos gregos. Daitz, após discutir os sons gravados na escrita (pronúncia), e asregras para determinar a quantidade silábica (durações), apresenta leituras de trechosde Homero a Eurípedes, realizadas a partir de reperformances com a inserção de pa-râmetros sonoros: estágio 1, vocalização do ritmo (ritmo sem palavras do texto); es-tágio 2, vocalização das sílabas/vocábulos do texto dentro das durações (ritmo compalavras); estágio 3, vocalização dos vocábulos com as durações e acentos de tonici-dade/altura marcados no texto (palavras com ritmo e altura/intensidades definidas);último estágio, vocalizações que levam mais em conta o verso em sua amplitude in-terpretativa que as unidades de análise.O rico modelo de Daitz ao fim culmina em uma performance vocal (recitação) naqual o intérprete se encontra mais consciente dos parâmetros sonoros utilizados. Con-tudo, este modelo ajusta-se a leituras individuais dos textos, como uma introduçãoao universo sonoro ali registrado. É uma performance composta para a fruição dotexto, e que elimina, em razão disso, algumas outras considerações performativas,principalmente no caso do texto da tragédia, na qual temos não apenas a centralidadede atos verbais. De qualquer forma, Daitz demonstra que há no texto grego — e aperformance do texto — evidencia isso — uma mútua correlação parâmetros sonorosdissociados didaticamente para que se integrem em um resultado interpretativo.O compositor norte-americano D. Leedy vem há anos desenvolvendo o que chamade experimentos em música grega. Ele, como Daitz (e este projeto) também parte dostextos e de sua detalhada escansão métrica. Porém, o produto e o processo criativode D. Leedy situam-se em outras demandas que o da filologia, que, no caso mais ex-

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tremo de performance, alinha-se em produzir uma leitura instruída dos textos. D.Leedy aprofunda essa dificuldade da filologia com a música ao enfrentar o que elechama de “discomfort with the idea of musical performance” (Leedy 1997, 6). Se emDaitz temos um esforço de fronteiras, ao se correlacionar descrições métricas comatos de leitura que levam em conta parâmetros sonoros, em Leedy avança-se na so-breposição entre as práticas filológicas e musicais na busca de um performance es-tendida que resulta em uma representação estendida do material registrado nos textos.Dessa forma, a análise métrica se conjuga a uma análise musical, convertendo as in-formações extraída no exame dos textos em performances cantadas que tornam au-díveis não apenas decisões interpretativas individuais mas amplitude e interconexãodos parâmetros sonoros. Leedy procura o canto como forma de superar a dominânciada letra, da palavra falada nos estudos clássicos, que considera música e silêncio comomargens de um centro vocal.Entre a análise métrica e o canto, Leedy posiciona uma notação musical tradicional,com marcação das constantes mudanças de compasso e movimentos melódicos.Tanto Daitz quanto Leedy partem dos textos e dos metros. O diferencial é que Leedyse propõe a ultrapassar o verbocentrismo e suas estratégias atomizantes. A recitaçãode poemas clássicos é o limite da filologia, no afã de se aproximar de paradigmas per-formativos. Pois confunde ainda performance com execução, reforçando a centrali-dade dos atos verbais (Edwards 2002).Contudo, os experimentos de Leedy, mesmo ampliando a representação dos parâme-tro sonoros dos textos da tragédia, alcançam o limite de sua atividade justamente aoatingir a meta a qual se propõem: ao providenciar notações e performances cantadasdos textos, interrompe-se a investigação das práticas dramático-musicais registradas,as quais se valem de uma contextura de recursos e procedimentos para amplos efeitos.Essa música sem drama, assinala uma escuta reduzida: aplica uma situação camerís-tica a um evento multidimensional. Ao fim tanto Leedy quanto Daitz vinculam me-tros e sons dentro de uma concepção renascentista do drama musical: espaçosinteriores, público restrito e status privilegiado da palavra. Nesta pesquisa, contudo, a experiência de performance não se caracteriza como mo-mento culminante da atividade de se propor representações e arquivos dos metros.Antes, a amplitude do processo é que é o alvo observacional: ritmos sonoramenteperceptíveis dentro de contextos expressivos específicos nos informam da co-perti-nência entre composição, performance e recepção. A complexidade de obras dramá-tico-musicais demanda que a realidade multitarefa de sua realização sejacompreendida na integração de procedimentos, atos e efeitos (Mota 2010). Nesse sentido, justifica-se o uso de duas tablaturas: a métrica, na qual se marcam asdurações(e, conseqüentemente, os acentos) e estrutural, na qual se registram as seçõese suas divisões. No lugar de uma notação apenas, que procura simular a performancepara preencher o pressuposto vazio representacional da música da tragédia grega,temos a produção de outros formas de representação a partir mesmo desse não aca-bamento do registro. Ou seja, no lugar de preencher o ‘vazio’ ou as lacunas da tradição,

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desloca-se o foco para modos complementares de tornar compreensível os fatos ci-frados nos textos. Como se pode concluir, a passagem das tablaturas para os arquivos de som e midiacarreta não só uma mudança no perfil realizacional da pesquisa. De posse das ta-blaturas, as decisões interpretativas no registro vocal do texto metrificado acarretamo enfretamento dos limites das informações dessas tablaturas. Esta situação sincrô-nica do intérprete retoma aspectos da diacronia: parcas notações que restaram de pa-râmetros musicais dos textos clássicos gregos nos mostram que havia um vínculotradição e performance, no sentido de o intérprete não dispor uma obra mais explícitaem seu acabamento antes do ato de sua efetivação. Mesmo os sinais presentes nosfragmentos de notação melódica são esparsos, não cobrindo todas as notas a seremvocalizadas, diferentemente da notação métrica, presente em cada sílaba (Pölmanne West 2001). De forma que os textos restantes da tragédia grega manifestam a dia-lética da abertura de sua construção: não há a prerrogativa de uma instância préviaaos atos performativos. Nada substituí a unicidade e irrepetibilidade do aconteci-mento sonoro. No lugar de se pensar a inexistência de notações expandidas, a questãoé pensar a razão de se haver privilegiado um registro das durações em detrimento deoutros parâmetros (Hagel 2008). Dessa maneira, a cantilena da ‘perda da música grega’não faz sentido continuar a ser entoada. Na verdade, o que se extrai dessa cantilenaé a tentativa de aplicar uma prática musical a outra. Na prática musical de se comporobras que integravam música, dança e atuação para uma platéia massiva em compe-tições dentro festivais anuais, as estratégias compositivas foram as enfatizar o acon-tecimento multidimensional por meio de um design rítmico-sonoro (Pintacuda 1978,Scott 1984). A escritura temporalizada presente nesses fósseis espetaculares que sãoos metros da tragédia grega demonstram essa experiência de se organizar temporal-mente heterogêneos eventos sonoros e audíveis. Diante disso, o procedimento adotado na segunda fase da pesquisa foi o de, a partirda discussão e análise dos dados das tablaturas métricas e de macro-estrutura, tra-balhar, em um primeiro momento com as seções individuais, partindo inicialmenteda trilha midi baseada na escansão métrica. Como cada momento de passagem dastablaturas para a geração envolve questões específicas de sua realização, a produçãode trilha midi dos metros esbarrou em algumas questões. Inicialmente, a tablaturaapresenta apenas durações relativas binária (um tempo, meio tempo). Não há umasérie de outras elementos ou informações temporais: pausas, compassos, indicaçõesde andamento. Porém, no reverso dessa negatividade, há outros dados presentes notexto. Tudo em uma tragédia é verso. Os versos se organizam em diferentes modosde integração e divisão. Nesse sentido, a análise pode enfocar a composição do versoisolado, elenca os agrupamentos rítmicos e suas relações entre si. Ou pode ultrapassareste nível frasal, e observar como versos em conjuntos, os quais ou pertencem a seçõesmonométricas/ plurimétricas, ou seguem arranjos estróficos/não estróficos. Comose vê, mudando-se a unidade de medida altera-se a perspectiva de análise, o que ra-tifica a generalizada ritmização marcada no texto.

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Partindo do verso em seu isolamento, a frase rítmica registrada e decomposta na es-cansão precisa passar recuperar sua orientação expressiva. O momento de sua atua-lização pelos arquivos midi gerados determina a substituição de uma análiseatomizante dos metros para uma que os insira em níveis de identificação e vinculaçãomais amplos (Lerdahl e Jackendoff 1996, Temperley 2001). É a partir desse redire-cionamento que a demanda por novas informações temporais é aplicada à limitadatablatura e assim os dados ali registrados são suplementados por atos de sua ressig-nificação. Disso, alguns fenômenos já apontados pela filologia podem encontrar agorauma melhor compreensão, tais como restrições de durações em determinadas posi-ções de versos, cesuras, tensões entre as partes internas no verso e possíveis pausasfinais e em outras posições do verso. A ultrapassagem da decomposição em pés mé-tricos para a organização rítmica da frase é o pressuposto para a tradução midi dastablaturas métricas. Uma primeira dificuldade para se acessar a frase rítmica a partir das análises métricasé da contraposição entre as estratégias de escansão e a pluralidade de formas de or-ganização temporal que os metros exibem. Inicialmente, é preciso deixar claro quenão há pés métricos isolados, mesmo em uma contextura métrica homogênea(quando se ter o mesmo padrão recorrente). A sucessão do mesmo padrão é umaconstrução: mais que a extensão de uma forma base por meio de processos aditivos(Sachs 1953), temos formas de agrupamento que estabelecem relações e hierarquiasentre os materiais conjugados, que se tornam, por isso, um grupo perceptivo (Breg-man 1990). Veja-se, como exemplo o caso do anapesto não lírico. Na verdade, quando de suaocorrência, principalmente em Ésquilo, ele se apresenta em sistemas duplos que seintegram a outros sistemas (Brown, 1977, Hubard 1991). No caso, para se marcarcomo anapesto, os atos sonoros atualizam simultâneas operações para que a aparentesimplicidade rítmica seja mantida. Baseado em um contraste bem marcado de dura-ções, o anapesto aparece na tragédia associado a deslocamentos físicos de grupos co-rais em suas entradas e saídas de cena e posicionamento para o canto/dança (Smyth1896). Na tablatura rítmica temos a sucessão de unidades isócronas mas que se ar-ticulam de modos diversos. Assim, de uma proporção 2:2, o anapesto, pode se mani-festar como típico ( UU- UU-) ou como dátilo (-UU –UU-) como espondeu (— —).Ou seja, há a tensão entre durações diferentes. Para que a continuidade da ambiênciaanapéstica se manifeste e com isso a audiência associe o tempo, a sonoridade e o con-texto de cena, a versatilidade das formas simples é realizada. No registro de sua sonoridade e durações por meio de arquivos midi, os atribuiu-sea etiqueta ‘palmas’ aos valores marcados na tablatura, atualizando a orientação per-cussiva do metro, que interpreta a correlação simétrica arsis/tesis dos sistemas ana-pésticos (West 1992, 136, Pereira 2001, 86-93). Em uma comparação com outros tiposde performances culturais sonoramente orientadas, temos que os anapestos, cha-mando a atenção da audiência para o grupo de coral que ocupa o centro focal da cena,podem ser associados audiovisualmente às marcações por palmas ou instrumentos

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de percussão de timbre agudo presentes na África Negra (Sandroni 2001:25). Ou seja,em espaços públicos, dentro de um contexto interativo, a iteratividade dos sistemasanapésticos repetidos em ostinatos estritos demarca formas de participação nas fron-teiras das seções do espetáculo. Situados antes e entre seções de contracenação faladae cantada/dançada, os sistemas anapésticos apontam justamente para essas distinçõesrítmicas sonoramente perceptíveis e corporalmente efetivadas e partilhadas. A me-lodia reduzida desses sistemas, vocalizados em recitativo, entre canto e fala, colocaem primeiro plano de escuta a batida, o pulso, o movimento cadenciado, em umaauto-apresentação do coro como agente rítmico e da espetáculo como uma compo-sição temporal. A periodicidade temporal (ciclos) dos sistemas anapestos não se pro-duz pela expansão ou atualização de um esquema básico (Patel 2008, 150). Antes, emsua composição interna, em seu agrupamentos, os anapestos sustentam-se na provi-são de uma perceptível seção ou subseção de uma obra.Em virtude disso, temos o segundo tipo de arquivo, o das pulsações, associados aosacentos presentes no texto. Na recepção renascentista e pós-renascentista dos metrosgregos, valores rítmicos, que são baseados em durações, foram traduzidos por valoresde tonicidade, que são relacionados à intensidade. Assim, um anapesto foi lido comouma sucessão de duas sílabas fracas para uma forte (UU-). No texto grego originalhá um sistema de acentuações, que marca as alturas e não a intensidade. São acentosmelódicos e não dinâmicos (Allen 1973, Devine e Stephens 1994, Probert 2006). Ouseja, não há uma estrita identidade entre o plano das durações e plano das alturas noverso grego. Isso significa que a distribuição e arranjo dos grupos rítmicos pode ounão coincidir com a distribuição e arranjo dos valores de freqüência. Assim, em umaambiência anapéstica, para continuar em nosso exemplo, uma sucessão de frases rít-micas apresenta sílabas com durações breves e longas as quais o movimento melódiconão correlaciona sempre uma freqüência mais alta a uma sílaba mais longa. A assin-cronia entre os planos temporal e melódico tanto retoma a construtividade da com-posição rítmica, ao problematizar os nexos e vínculos entre as formas, quantodetermina o desdobramento perceptivo da audiência em função de uma orientaçãoda performance: os acentos melódicos destacam sílabas, ocasionando um efeito deintensidade não relacionado imediatamente às durações (David 2006). Assim no texto,os acentos melódicos marcam sílabas que conseqüentemente vão adquirir um movi-mento melódico ao se acopla uma intensidade (Allen 1968). Para traduzir esse outro ritmo, temos, seguindo a mesma linha de tempo geral emcada obra analisada, arquivos midi que traduzem por meio de som percursivo grave(bumbo), os acentos agudos e graves presentes no texto (Di Giglio 2009). Para o ou-vinte torna-se patente a organização em vários níveis da tragédia grega. Nessa or-questração de procedimentos de diversos parâmetros psicoacústicos, temos mesmopara um metro aparentemente tão simples como o anapesto, considerado uma marchade passo duplo, ou dois passos consecutivos que realizam um ciclo completo, distin-ções aurais e hierarquias de tempo diversificadas (Schomolinski 2004).Retomando os passos da metodologia, a figura 1 exibe a escansão métrica, destacando

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para cada sílaba uma duração. No mesma figura, os acentos melódicos estão marcadosno texto grego.

Figura 1

Continuando, a figura 2 exibe dois sistemas: o primeiro temos uma transcrição emnotação rítmica tradicional da escansão métrica; o segundo, a transcrição dos acentosmelódicos que marcam inputs de intensidade.

Figura 2

Como se pode notar, a presumida ‘regularidade’ e homogeneidade temporal dos ana-pestos é construída a partir de movimentos síncronos e assíncronos entre as duraçõese as intensidades. Diante disso, não apenas a identificação do padrão métrico, massua necessária variação e redefinição é o que o efetiva sua cognição e reconhecimento(Mirka 2009, Malin 2010). As ocorrências do anapesto têm aproximadamente amesma duração, mas não o mesmo ritmo. Este paradoxo se compreende pelo hori-zonte compositivo dos ritmos, articulando diversos parâmetros, probabilidades e ex-pectativas em sua realização e efeitos (Huron 2006, Temperley, 2010). SegundoBachelard, só uma pluralidade pode durar (Bachelard 1994). Nesse sentido, K. Agawu já havia externado sua insatisfação com a representação dosritmos africanos, ao atacar o que ele chama de ‘enduring myths’, presentes na estra-tégias de se descrever a musicalidade de eventos interartísticos fora de seus contextosde produção (Agawu 2003). Em situações que envolvem eventos multidimensionais,a pluralidade temporal é uma interpretação da construção de interações rítmicasentre grupos engajados na partilha de referências e atos (Cook 1998, Leman 2008,Mota 2005). A organização rítmica dessa obras negocia com e responde a organizaçãodos eventos interpessoais.O terceiro arquivo de som a partir das tablaturas é o do texto recitado. A ênfase aquié o de disponibilizar mais uma perspectiva para análise da pluralidade das duraçõesda performance dos metros gregos. Pois, como se vai observa com nesse estágios, aduração real das sílabas não se confina nos valores convencionais atribuídos. Essefato, discutido desde a antiguidade, apontava para a luta entre descrições hegemô-nicas entre metricistas e ritmicistas, ou, respectivamente, entre os que trabalhavam

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com as durações atribuídas e as proporções matemáticas das durações (Usher 1985,Mota 2010). De fato, temos sílabas escandidas como ‘curtas’ que possuem extensõesdiversas, algumas até maiores que o de uma sílaba ‘longa, como se observa na figura1’. Essa não sincronia acarreta quantizações não só na plataforma DAW, como tambémna performance (Gouyon 2005). Verticalmente, a contrametricidade muitas vezespresente na relação entre os dois sistemas da figura 2 se contrapõe à horizontal con-tinuidade das durações efetivas da fala na figura 1 (Psaroudakês 2010, Georgaki, A.;Carlé, M.; Psaroudadês, S. & Tzevelekos 2009).

ConclusãoDessa forma, o estudo dos metros gregos de uma tragédia nos possibilita o acesso auma tecnologia audiovisual que a partir da composição rítmica providencia um pri-vilegiado universo de investigação de manipulações aurais do tempo (Kechagias 2003).Além dos metros sintáticos, como o anapestos, os trímetros iambos e passagens he-terométricas das performances corais atestam tais ações multifocais. A conclusãodesta pesquisa o demonstrará, com a decorrente análise, tabulação, representação eprodução de arquivos sonoros.

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Estratégias de leitura à primeira vista: resultados, método e ferramentas de investigação a partir de um estudo piloto

Valeria Cristina [email protected]

UFPA/UFBA

José [email protected]

UNICAMP

ResumoEste artigo apresenta uma breve discussão sobre os resultados de um estudo pilotorealizado com o objetivo de testar a replicação de um procedimento de investigaçãode leitura verbal denominado “análise dos desvios de leitura”, no âmbito da leituramusical. No procedimento original, criado pelo psicolingüista K. Goodman, os leitoresfazem uma leitura oral de um texto desconhecido e recontam o que leram. Atravésda análise dos erros (desvios) cometidos, os pesquisadores procuram estabelecer ascorrelações entre fluência, compreensão, memória, conhecimento prévio e estratégiasde leitura, partindo do pressuposto de que a leitura é um “jogo psicolingüístico deadivinhação”, ou seja, um processo seletivo de pistas fornecidas pelo texto escritoorientado pelas expectativas do leitor, e que os “erros” cometidos durante eventosde leitura são indícios das estratégias utilizadas pelos leitores durante esse jogo. Naadaptação para a leitura à primeira vista, de partituras para piano, o experimento re-petiu as tarefas originais e incluiu um protocolo verbal com o intuito de relacionarconhecimento declarativo e habilidade leitora. Os resultados aqui sumarizados apon-tam para a validade do procedimento, pois o mesmo permitiu a análise das diferenças

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entre as estratégias de leitura adotadas por leitores com níveis diferenciados de ha-bilidade de leitura à primeira vista. Esses apontam também para a necessidade deajustes relativos às ferramentas utilizadas, com o intuito de garantir maior precisãono levantamento, tratamento e análise dos dados. Diante disso, este artigo remete àutilização de modelos computacionais capazes de analisar, com precisão matemática,as sutis diferenças de intensidade e tempo, dentre outros, ampliando as possibilidadesde compreensão das estratégias de leitura adotadas. Tais modelos são aqui denomi-nados de Descritores Musicais. Vários descritores musicais vêm sendo desenvolvidos,especificamente para a análise dos desvios da leitura musical.

IntroduçãoA aquisição e o desenvolvimento da leitura de partituras tem sido central na formaçãode músicos instrumentistas especialmente em escolas vocacionais vinculadas à tra-dição ocidental erudita, já que as várias modalidades de instrução estão intrinseca-mente baseadas na capacidade leitora dos candidatos a músicos, apesar de seremreconhecidas as características multifacetadas do processo de aprendizagem musical.Assim, as abordagens de ensino são freqüentemente mediadas por uma partitura aser lida e como produto do processo espera-se a correta e perfeita leitura de uma obramusical: sua execução/interpretação.A despeito da importância (real ou atribuída) à capacidade de leitura dos músicos eao desenvolvimento da mesma nos aprendizes, pode-se supor que há um certo “va-zamento” dos valores sociais, culturais, econômicos, políticos e também cognitivosatribuídos à leitura e à escrita da linguagem verbal para o âmbito da música. Se, porum lado, a leitura musical desempenha funções até certo ponto distintas da leituraem linguagem verbal, esta também se vincula e se insere no conjunto das represen-tações simbólicas relativas à produção e à utilização dos artefatos escritos, altamentevalorizados na cultura ocidental. Em um sentido importante, a música tradicionalocidental, tal como “nossa literatura, nossa ciência, nosso direito, nossa religião cons-tituem artefatos de escrita” (Olson 1997, 10) o que, em última instância, determinanossa visão de mundo. Contudo, diversamente da leitura em linguagem verbal que pode ser silenciosa ouproferida, a leitura musical visa prioritariamente a prolação, ou seja, uma leitura com-partilhada com um ouvinte. Por tender à publicização, a leitura musical é, por natu-reza, uma atividade performática com alta carga avaliativa. No conjunto complexodas habilidades de leitura musical, insere-se a leitura à primeira vista. De uma pers-pectiva cognitiva, essa modalidade pode ser comparada a uma “tarefa de transcrição”(Waters et al. 1998; Weinberger 1998), porquanto “um material é apresentado emuma forma e o performer deve realizá-la rapidamente em outra forma” (Waters et al.1998, 124). Neste sentido, a leitura à primeira vista pode ser comparada com a leituraverbal em voz alta sabendo-se que a “leitura oral é mais complexa e difícil do que aleitura silenciosa” (Smith 1991, 44) e, portanto, dentre as modalidades de leitura mu-sical, a leitura à primeira vista pode ser considerada como a de maior complexidade.

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A importância atribuída à capacidade de ler à primeira vista refere-se às funções pro-fissionais que dela dependem e também a uma tradição: até o início do século XIX,os músicos se apresentavam prioritariamente realizando leitura à primeira vista jáque, entre outros fatores, o hábito de reexibir as obras não era prática comum, o quea tornava uma habilidade importante em si mesma; um pré-requisito essencial paratodos os músicos e uma marca de altas habilidades instrumentais (Lehmann e McArt-hur 2002). Hoje, mesmo que essa prática tenha sido abandonada em prol da exibiçãode obras estudadas previamente, a leitura à primeira vista permanece importante ealtamente valorizada no processo de formação do instrumentista e em alguns círculosprofissionais. No entanto, é senso comum que “o executante que tiver a coragem desubir ao palco sem conhecimento prévio das peças a serem tocadas é um herói” (Slo-boda 2008, 88).Um conjunto de habilidades físicas e cognitivas são determinantes para a realizaçãodesta tarefa, uma vez que a leitura à primeira vista exige continuidade, capacidadede execução em tempo real, manutenção de um pulso rítmico preciso e capacidadede seguir adiante, mesmo tendo ocorrido incorreções (Wristen 2005). Essas capaci-dades dependem de “um grau elevado de habilidade de representação para ser capazde construir rapidamente um plano apropriado de execução com base em informa-ções visuais em que as indicações estruturais relevantes são apenas implícitas” (Slo-boda 2008, 117). Como performance complexificada diante das restrições inerentes à tarefa, a leituraà primeira vista tem oferecido importante material para a compreensão das exigênciascognitivas e motoras que a execução de um instrumento musical mediada pela leituraapresenta a instrumentistas iniciantes e experientes. Grande parte das investigaçõessobre execução e leitura musical recai sobre tarefas de leitura à primeira vista. Desde o final de 1920, muitos pesquisadores tem se dedicado a estudar o complexoconjunto de habilidades requeridas na leitura à primeira vista, em especial a percep-ção (visual e auditiva), as habilidades cinestésicas, a memória e a capacidade de re-solver problemas (Lehmann e McArthur 2002). Decorrem daí as pesquisas dedicadasaos aspectos cognitivos, perceptuais, motores e pedagógicos envolvidos. Assim, demaneira geral, as pesquisas com leitura à primeira vista tem dedicado especial aten-ção: 1) à percepção visual com ênfase nos movimentos oculares e na capacidade dever e reter informações da partitura; 2) aos aspectos motores da execução em diversosinstrumentos; 3) ao tipo de monitoramento visual e auditivo utilizado; 4) às estraté-gias de leitura adotadas.Nos aspectos em que se pode estabelecer alguma correlação com a leitura verbal, osresultados para a música se mostram consistentes com os estudos realizados em lin-guagem verbal, mesmo que a realização de estudos correlacionais não apontem pararelações diretas entre as habilidades de leitura musical e na linguagem verbal (Gol-demberg 1995). Estas consistências tem estabelecido uma profícua aproximação dospesquisadores da música com os procedimentos de pesquisas realizadas na área dapsicolingüística, adaptados, evidentemente, às tarefas de leitura musical. Procedi-

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mentos inspirados nos testes taquistoscópicos e nos testes cloze, por exemplo, sãofreqüentemente encontrados.

ObjetivosO estudo aqui apresentado segue a mesma tendência, todavia utilizando um proce-dimento de pesquisa que ainda não foi replicado para a leitura à primeira vista. Ado-tando-se os princípios defendidos por Kenneth Goodman, psicolingüistanorte-americano, de que: 1) a leitura é um “jogo psicolingüístico de adivinhação” ou,em outros termos, um processo seletivo de pistas fornecidas pelo texto escrito orien-tado pelas expectativas do leitor; e que 2) os “erros” cometidos durante eventos deleitura são indícios das estratégias utilizadas pelos leitores durante esse jogo, preten-deu-se evidenciar e comparar as diferenças entre as estratégias utilizadas por leitoresiniciantes e por leitores experientes durante eventos de leitura à primeira vista aopiano, a partir da análise qualitativa dos “erros” de execução, os quais são aqui cha-mados de “desvios”.

MétodoA “análise dos desvios de leitura”, como ficou conhecido este procedimento de inves-tigação, procura evidenciar as correlações entre fluência, compreensão, memória econhecimento prévio (Goodman, K. 1965; 1987; 2004; 2008; Goodman, Y. e Goodman,K. 1976; 1994; 1996). As tarefas originais são simples: leitura em voz alta de um textodesconhecido e suficientemente longo para permitir a ocorrência de, pelo menos, 25desvios e reconto aberto e livre do texto lido, que devem ser gravadas para posterioranálise. A partir da replicação desse procedimento, os pesquisadores puderam for-mular uma taxonomia e um inventário dos desvios para orientar a análise dos dados.Posteriormente, Yetta Goodman (1996) defendeu a inserção de uma terceira tarefano procedimento a qual foi denominada de “Análise Retrospectiva dos Desvios”. Nestatarefa, o leitor é incentivado a descrever as possíveis causas dos desvios cometidos apartir da audição de sua própria leitura do texto, com o propósito de conhecer melhoros leitores e seus processos de leitura. A análise dos desvios leva em consideração aexperiência do leitor e as estratégias de leitura utilizadas mediante o contexto lin-güístico específico do texto utilizado para a investigação.Ainda no âmbito das teorias lingüísticas sobre leitura, sabe-se que existem três es-tratégias principais: a leitura Ascendente (bottom-up), a Descendente (top-down) e aInterativa, embora pouco se fale sobre esta última nos trabalhos de investigação daleitura musical. Traçando-se um paralelo com a leitura na linguagem verbal, já sesabe que uma leitura nota-por-nota, tempo-por-tempo e até mesmo compasso-por-compasso, pode indicar uma leitura Ascendente, onde o leitor está simplesmente de-codificando os sinais gráficos. Leituras com muitas inserções ou substituições de notassem correções podem indicar a utilização prioritária de uma estratégia Descendente,

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1 Esse é o tipo de leitura descrita por Sloboda (2008) sobre um erro de revisão que não foi per-cebido por leitores experientes mas foi detectado por uma leitora menos experiente.

ou seja, em que as expectativas do leitor não são confrontadas com o texto escrito1.A leitura Interativa, por sua vez, seria a estratégia preferencial de leitores experientes,pois esses sabem que deve haver um equilíbrio entre as informações visuais e não-visuais durante a leitura, ou seja, lançam mão de um intercâmbio colaborativo entreas estratégias Ascendentes e Descendentes. Essas estratégias, porém, não se referemexclusivamente ao grau de desenvolvimento da capacidade de leitura. Elas dependemtambém, em grande parte, do tipo de texto que está sendo lido e do conhecimentoprévio do leitor sobre os mecanismos de leitura, sobre o assunto em questão e sobreas micro e macroestruturas presentes.No caso da música, muitas variáveis podem interferir nos resultados que, por sua vez,são de difícil dimensionamento diante da natureza característica do discurso e daexecução musical. Assim, as variáveis independentes controladas nesta investigaçãose referiram ao conhecimento prévio do leitor (tipo de instrução, experiência e voca-bulário técnico musical), mecânica de leitura (capacidade de planejamento do dedi-lhado e memória tátil), estratégias de leitura (Ascendente, Descendente e Interativa),além do próprio texto a ser lido (sistema composicional e grafofônico, micro e ma-croestruturas, marcadores textuais).Os procedimentos básicos de replicação da “análise dos desvios de leitura” já foramobjeto de um estudo piloto, o qual apontou para a viabilidade e validade desse métodode investigação (Marques, 2000). Este estudo foi realizado com 10 alunos não pianis-tas do curso de licenciatura e do bacharelado em Música da Universidade Estadualdo Ceará matriculados em Instrumento Suplementar – Teclado II e III e o texto es-colhido foi a primeira peça do Álbum para a Juventude – Op. 68 de R. Schumann, àépoca desconhecido de todos os alunos. Cada aluno, individualmente, realizou trêstarefas: 1) leitura à primeira vista da peça; 2) reprodução de memória do que haviamacabado de ler; e 3) uma análise verbal da partitura. Após 14 aulas de leitura em te-clado, esses alunos voltaram a realizar as mesmas tarefas com a mesma obra. No en-tanto, a versão lida na segunda etapa era diferente em muitos aspectos daquela quefoi lida na primeira etapa. A primeira, uma edição brasileira com revisão de SouzaLima, está escrita em compasso binário, com sinais de repetição, muitas marcaçõesde dedilhado, ligaduras de fraseado e indicações de dinâmica (Schumann 1952), foiapresentada aos leitores com o nome da obra, do compositor, do revisor, tal comoimpressa. A segunda versão lida, também à primeira vista, foi uma edição Urtext(Schumann 1977) que está escrita em compasso quaternário, sem sinais de repetição,sem marcações de dedilhado e poucas indicações de dinâmica. Os nomes da obra edo autor foram omitidos na segunda etapa. Dentre outros aspectos, pretendia-se ve-rificar se esses alunos seriam capazes de reconhecer a obra lida como sendo a mesmada primeira etapa, o que aconteceu com somente um aluno.

ResultadosOs resultados mais relevantes em relação à mecânica de leitura apontam para o tipode instrução recebida durante a iniciação à leitura de partituras em dois pentagramas.

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Dentre o complexo conjunto de variáveis aqui envolvidas, dois se destacam: o tipo deabordagem para a leitura de dois pentagramas (mãos juntas ou separadas/leitura ab-soluta ou relativa) e taxa de alternância do olhar entre partitura e teclado. Os leitoresque tinham aprendido a ler primeiro com mãos separadas e depois juntas tiverammuita dificuldade em realizar a tarefa da primeira etapa, mas obtiveram resultadosmais satisfatórios na segunda, após receberem instruções para proceder à leitura sem-pre de mãos juntas. Os leitores que desviavam o olhar da partitura para o teclado commuita freqüência também tiveram dificuldades para realizar a leitura à primeira vista,melhorando consideravelmente sua performance após instruções para olhar para oteclado somente quando necessário. Essas constatações reforçam a necessidade deuma orientação didática mais efetiva no que concerne à construção de esquemas fun-cionais que possam efetivamente ancorar as estratégias de leitura. Esses esquemasdevem estar presentes e acessíveis na memória implícita de longo prazo já que sãoresponsáveis por fornecer informações não-visuais relevantes para o desempenhomotor requerido na tarefa.Como um dos requisitos fundamentais para a leitura à primeira vista é a manutençãodo fluxo contínuo, neste estudo piloto, o único desvio analisado foi o relativo às pa-radas ou interrupções da leitura, o que no procedimento original é denominado “Pau-sas de Leitura”. Diante das dificuldades acima mencionadas, de maneira geral, osalunos sujeitos do estudo tenderam a uma leitura nota-por-nota na primeira etapa,o que demonstra claramente a opção por uma estratégia de leitura Ascendente. Noentanto, essa segmentação tende a se ampliar na medida em que o leitor consegueestabelecer hipóteses para o texto e, a partir delas, lançar mão de estratégias de pre-dição e de inferência.O exemplo a seguir demonstra como o mesmo leitor ampliou sua leitura de nota-por-nota para tempo-por-tempo na repetição da mesma frase musical.

Figura 1.1 — Exemplo de ampliação da segmentação do texto de nota para tempo na repetição da frase.

Nota-se pelas marcas de paradas que, ao inferir o padrão do comportamento melódicoda mão esquerda, o leitor foi capaz de fazer previsões que resultaram na ampliação

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da segmentação da informação visual. O mesmo ocorre quando a segmentação temcomo referência inicial o tempo do compasso, conforme a transcrição da execuçãode outro leitor, a seguir:

Figura 1.2 — Exemplo de ampliação da segmentação do texto de tempo para compasso na repetição da frase.

Este mesmo leitor parece ter percebido o comportamento estrutural das frases mu-sicais e, assim, pode ampliar o fluxo de segmentação de informações visuais com baseno sentido musical que foi construindo à medida que avançava na sua leitura, con-forme demonstram as suspensões realizadas na segunda parte da peça, transcritas aseguir:

Figura 1.3 — Exemplo de ampliação da segmentação do texto para o nível da semifrase.

Um dado que permite supor essa construção de sentido por meio da identificação dasemifrase está na sua revocação da peça lida. Este aluno foi o único que conseguiureproduzir estruturas significativas do texto no seu reconto aberto, quase com per-feição, o que reforça a constatação de que: 1) a leitura ascendente prejudica a com-preensão e a construção do sentido, sobrecarregando a memória de curto prazo e 2)não tendo sentido, as informações não podem ser armazenadas na memória de longoprazo e, portanto, não podem ser revocadas.

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Figura 1.4 — Trechos revocados com maior fidelidade (assinalados na partitura).

Interessante notar, entretanto, que todos os recontos revocaram, de alguma maneira,características ou aspectos desses mesmos trechos que seriam o inciso e o clímax ouponto culminante da peça. Os recontos dos leitores que conseguiram identificar al-guma estrutura da peça revocaram: 1) uma melodia descendente inicial, acompa-nhada por duas notas da mão esquerda em baixo d’Alberti e 2) uma melodiadescendente a partir do lá que é a nota mais aguda encontrada justamente no pontoculminante. Além disso, nesses trechos houve maior incidência de outros tipos dedesvios tais como as repetições. A revocação de traços distintivos desses trechos podereforçar a idéia de que, do ponto de vista informacional, esses são especialmente im-portantes, já que o inciso apresenta uma espécie de tópico discursivo que pode guiaras expectativas do que vem a seguir e o clímax, talvez, pela condensação de maiorcarga de informações. Porém, esse parece ser um conhecimento prévio natural, nãodiretamente vinculado a um conhecimento teórico-analítico, pois durante o protocoloverbal, nenhum leitor fez menção a eles de maneira especial.Apesar de não ser comum a adoção de estratégias para o desenvolvimento da habili-dade de revocar a partitura após a leitura à primeira vista, a inserção desta tarefaneste tipo de investigação mostrou-se necessária e útil. A falta de treinamento nestatarefa, por um lado, e a habilidade de improvisação, por outro, são variáveis a seremconsideradas. Mesmo assim, os recontos oferecem uma excelente oportunidade paraa verificação das informações que foram retidas na memória de longo prazo, ou seja,a compreensão do que foi lido.Segundo Goodman e Goodman (1994):

Nós fazemos uma distinção entre compreender — o que o leitor faz para entender,durante a leitura de um texto — e compreensão — o que um leitor entende apósconcluir a leitura. Os recontos abertos que sempre acompanham a leitura durantea análise dos desvios são um índice de compreensão. [Eles] sempre oferecem umaoportunidade para o pesquisador ou o professor ampliarem a compreensão sobrecomo os conceitos e a linguagem são usados e desenvolvidos no decorrer de umevento de leitura (Goodman e Goodman 1994, 109, grifos dos autores).

Os dados do protocolo verbal, obtidos através das respostas à pergunta: “o que vocêreconhece nesta partitura?” forneceram indicações sobre o nível de desenvolvimento

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técnico-analítico musical e foram importantes para revelar o tipo de informação prio-rizada pelos leitores. As respostas puderam ser organizadas em cinco tópicos: 1) re-ferências a sinais gráficos como notas, acidentes, figuras de valor, sinais de dinâmica,sem menção à função das mesmas no contexto da obra; 2) referências ao sistemacomposicional, forma e estilo; 3) informações extramusicais como nome da obra,compositor ou a ausência dessas informações (na segunda etapa); 4) apreciação, jul-gamento ou opinião sobre a obra; 5) dificuldades, desconhecimento, dúvidas. Comoesperado, um elevado índice de respostas pertenciam à primeira categoria na primeiraetapa. Porém, na segunda etapa, a maioria das respostas à mesma pergunta pertenciaà segunda categoria.Acompanhado da constatação da melhora no desempenho dos leitores, esse dadopode indicar que o conhecimento analítico tem estreita relação com a habilidade lei-tora por disponibilizar informação não-visual, pois a dedução das estruturas discur-sivas na música requer um conhecimento prévio que ancore esta operação, uma vezque nem sempre essas estruturas estão aparentes na informação visual. As marcastextuais da partitura musical são bem menos aparentes do que as marcas textuais dostextos escritos da linguagem verbal. Pode-se afirmar que a grafia musical e, conse-qüentemente, sua leitura muito se assemelham ao tipo de leitura utilizada na IdadeAntiga denominada scriptio continua (escrita contínua), em que ainda não se usavamos espacejamentos entre as palavras, nem tampouco sinais de pontuação. Em portu-guês atual, seria algo como:

Figura 1.5 — Início da poesia “A Avó” de Olavo Bilac (Almeida 2003, 74) em scriptiocontinua.

Fica evidente que “essa escrita [. . .] torna necessário o uso da voz e da transformaçãodo texto em língua sonora para ser compreendido” (Bajard 2007, 17-18) pois as uni-dades de significado e as inflexões das estruturas devem ser inferidas para que o textose torne compreensível.Os resultados deste estudo piloto permitiram estabelecer com segurança a hipóteseprincipal da pesquisa ora em desenvolvimento, qual seja: o procedimento de “Análisedos Desvios de Leitura” pode evidenciar as diferenças entre as estratégias de leituraadotadas por leitores iniciantes e experientes também em eventos de leitura à primeiravista de partituras com notação tradicional para piano, demonstrando também queos erros de execução (desvios) podem ser entendidos como indícios manifestos dessasestratégias. A partir desse estudo, as hipóteses secundárias relativas às variáveis aserem controladas também puderam ser mais bem delimitadas.Da realização do estudo piloto, entretanto, surgiu uma grande preocupação com os

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procedimentos de coleta, tratamento e análise dos dados, em especial a necessidadede instrumentos de registro e ferramentas de análise mais precisas. No estudo piloto,as tarefas foram gravadas em fita cassete (único recurso disponível na ocasião), o queexigiu um enorme trabalho de transcrição. Os desvios foram anotados em partiturasa partir da percepção auditiva, exclusivamente. Embora os anos de estudo e de tra-balho com música possam propiciar uma razoável experiência no reconhecimentode inconsistências ou mesmo de leves flutuações na manutenção do tempo e do an-damento, por exemplo, a validação da análise dos resultados pode ter ficado compro-metida pela ausência de um instrumento de medição mais confiável. Além do mais,comparações mais sutis entre desvios não puderam ser realizadas.Diversamente da leitura verbal, a leitura musical é constituída de sutilezas extremas.Diferenças mínimas na intensidade das notas de tempos fracos do compasso paramais ou para menos, por exemplo, podem gerar uma sensação de quebra na fluênciaou erro de articulação, tanto quanto aumentos ou diminuições nos tempos das notaspodem causar uma sensação de instabilidade de andamento. Ao mesmo tempo, essasdiferenças podem discriminar uma performance nominal de outra, considerada maisexpressiva. A observação empírica desses fenômenos, entretanto, não é suficientepara o detalhamento necessário num trabalho de investigação científica.A continuação deste estudo, atualmente em andamento, pretende utilizar como fer-ramentas de análise, modelos computacionais que predizem aspectos musicais rele-vantes à cognição musical humana. Existem diversos estudos referentes àimplementação de tais modelos. Estes são relacionados ao MIR (Music InformationRetrieval); uma subárea da cognição musical, iniciada no final da década de 1990,que se dedica a estudar, coletar e desenvolver modelos computacionais para a prediçãode aspectos musicais tais como estes são percebidos pela audição humana e identifi-cados pela mente musical. A literatura de MIR define “descritor musical” como um modelo computacional capazde predizer – com um grau aceitável de precisão – aspectos musicais, emulando assima capacidade perceptual e cognitiva humana de perceber e discriminar distintos as-pectos musicais (Lesaffre 2003). Um aspecto musical é uma característica única dainformação musical que é facilmente distinguida pela mente musical. Estes podemser qualitativos (ex: classificação de gêneros musicais), ou quantitativos (ex: prediçãode pulsação rítmica, complexidade harmônica ou densidade de eventos musicais).Descritores simbólicos predizem aspectos musicais pela coleta de dados paramétricosmusicais, como aqueles advindos da notação musical (partituras) ou de arquivos MIDI(Musical Interface Digital Instrument). Descritores acústicos coletam dados de arqui-vos de áudio. Algumas pesquisas da área também catalogam os descritores em relação à produçãomusical, onde os descritores podem ser classificados como: Performáticos ou Estru-turais. Os descritores estruturais estão relacionados a elementos contextuais, primor-dialmente advindos da notação simbólica da estrutura musical (ex: modos, séries,estruturas harmônicas, andamentos, etc.). Já os descritores performáticos descrevem

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elementos predominantemente evidenciados durante a performance de uma peçamusical, em sua interpretação ou na improvisação sobre um tema musical (ex: va-riação de andamento, dinâmica, performance expressiva), de onde pode-se supor queos aspectos estruturais tenham natureza primordialmente cognitiva, enquanto queos aspectos performáticos possuam uma natureza conotativa (relacionadas a moti-vação e ação dos gestos). Tal classificação é especialmente importante para o estudoda relação entre aspectos musicais cognitivos (musicais) e aspectos conotativos (ges-tuais) de uma performance musical, tais como os envolvidos nesta pesquisa. Estudosrelevantes sobre os aspectos performáticos musicais afirmam que “a performancemusical de qualidade não depende apenas da habilidade motora, mas também requera capacidade de gerar diferentes interpretações da mesma peça musical, de acordocom a natureza da comunicação cognitiva da estrutura musical” (Sloboda 2000). Os descritores musicais a serem aqui utilizados estão sendo desenvolvidos com fina-lidade específica para a atuação neste estudo no . Eles irão permitir a análise precisadas variações de intensidade, tempo e altura das notas executadas durante as execu-ções com leitura musical à primeira vista. Desse modo, análises estatísticas dos des-vios de leitura poderão ser realizadas, estabelecendo-se um novo patamar para avalidação deste estudo científico.

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Teoria dos Gêneros e Articulação Musical da Trilha SonoraGustavo Rocha Chritaro

[email protected] Ciocci

[email protected] Rodrigues Carrasco

[email protected] Departamento de Música, Universidade Estadual de Campinas

ResumoO trabalho que aqui apresentamos tem por propósito a revisão crítica do modelo es-trutural que foi baseado na teoria dos gêneros literários e é usado para organizar aabordagem aos processos criativos relacionados à composição de música para cinema.A partir desta revisão, visamos traçar novas perspectivas de abordagem, seguindo apremissa de que, se a teoria dos gêneros, apesar de funcional e validada, é limitadapor seu logocentrismo, o deslocamento da referência interdisciplinar para um outroparadigma, desta vez mais amplo, tem o efeito de liberar o trabalho de análise damúsica aplicada à dramaturgia e ao audiovisual de uma metodologia governada pelanarrativa. O modo como construímos nossa argumentação se divide em três momen-tos. Em primeiro lugar, expusemos uma crítica à teoria dos gêneros literários a partirda própria teoria literária. Em seguida, realizamos uma comparação entre o processode composição por elaboração temática e por improvisação, produzida a partir daoposição entre o leitmotiv wagneriano e o jazz. O terceiro passo foi construir um novoparadigma que levasse em conta as discussões anteriores, alicerçado nos fundamen-tos da produção de sentido em linguagem como dado pelo pensamento filosófico dadesconstrução, transacionismo, e pós-modernidade. Na conclusão, enunciamos os co-rolários que a crítica desse referencial teórico à teoria dos gêneros literários rendeuao ser realizado o transporte da problemática em questão para o domínio da músicaaplicada.

Palavras-chaveGêneros – Audiovisual – Trilhas

IntroduçãoA pesquisa em música aplicada à dramaturgia e ao audiovisual é um campo recentee em formação. Apesar do número de estudos acadêmicos aumentar a cada ano, en-contramos alguns obstáculos, para desenvolvimento pleno, como a escassez de refe-rências teóricas. Assim, diferentemente de trabalhos em outros campos de pesquisa,os estudos em música, como parte da trilha sonora, padecem da inópia de materialpara confronto de idéias, além da complexidade que envolve o estudo da composiçãomusical como parte da algo maior que envolve, entre outros elementos, questões dedramaturgia, narrativa e articulação audiovisual.

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Deste modo, faz-se necessária a discussão de temas vinculados à produção de músicapara cinema, desde a concepção e o estabelecimento de sua forma, convencional-mente aceita pelo público e pelos envolvidos em produções do cinema industrial.Na dissertação de mestrado de 1993, intitulada “Trilha Musical – Música e ArticulaçãoFílmica”, Ney Carrasco, fazendo uso da teoria dos gêneros literários, segundo a expo-sição de Anatol Rosenfeld em O Teatro Épico (1985), chegou à conclusão de que o Ci-nema é uma arte estruturalmente épica, onde o fator dramático — freqüentementepresente — se encontra subordinado à elaboração da narrativa (épico e narrativo,neste contexto, são usados como sinônimos).No que tange à trilha musical, o corolário mais imediato resume-se da seguinte forma:

“A música, enquanto fator da articulação fílmica, faz parte do conjunto de recursosépicos. Na composição da narrativa ela é um instrumento do qual o narrador podedispor para montar o seu discurso. Mas, assim como os outros fatores do aparatoarticulatório, ela tem que ser posta a serviço da progressão dramática do filme”(Carrasco 1993, 99).

Visto que a questão dos gêneros ocupa a posição de um pressuposto importante, nesteque é um dos poucos modelos teóricos (senão, o único) que discute a articulação datrilha musical no filme em uma perspectiva poética, faz-se oportuna a discussão emtorno da evolução teórica sobre os gêneros literários, com a esperança de que, ao ex-pandir o escopo do fundo teórico utilizado, o modelo revele, da mesma forma, outraspossibilidades de abordagem.

Discutindo sobre os Gêneros LiteráriosO próprio Rosenfeld oferece vários pontos de partida possíveis. Por exemplo, há aquestão da organização dos gêneros em três, a qual ele atribui aos gregos, principal-mente Platão e Aristóteles. Estes dois autores, no entanto, propuseram formas dife-rentes para organizar a poética de sua época. Platão, no livro três da República, falana possibilidade de expressão em dois modos, dos quais seriam derivados três gêneros.Estes dois modos seriam o da narrativa simples e direta (diegesis) e o da imitação(mímesis). Sobre os gêneros formados a partir destes dois modos, Platão se exprimiuda seguinte forma, tomando emprestada a voz de Sócrates:

“Na poesia e na prosa existem três gêneros de narrativas. Uma, inteiramente imi-tativa, que, como tu (Adimanto) dizes, é adequada à tragédia e à comédia; outra,de narração pelo próprio poeta, encontrada principalmente nos ditirambos; e, fi-nalmente, uma terceira, formada da combinação das duas precedentes, utilizadana epopéia e em muitos outros gêneros” (Platão 1999, 86, grifos nossos).

Ressalte-se, desde já, que o pensador ateniense referiu-se a estes gêneros literáriostodos como espécies da narrativa, o que já é um distanciamento conceitual em relaçãoa Rosenfeld. Retornaremos mais tarde para refletir sobre este ponto. Por ora, é maisinteressante que comparemos o esquema acima com o que Aristóteles deixou regis-trado na Poética.Para o Estagirita, a arte poética seria fruto da mímesis, a qual durante muito temporecebeu a tradução, não mais aceita, de imitação. Ela dependeria de três variáveis de-

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terminando sua atualização: os meios, os objetos, e os modos. Os meios são a matériaque dá suporte à criação poética, sua mídia. Os objetos, aquilo que se tem como re-ferência do mimetismo, da recriação, representação, re-presentificação, etc. Já a di-visão dos modos se dá em dois momentos. No primeiro, separa-se o modo em que opoeta narra, daquele em que aos personagens é permitido agir livremente. Em seguida,distingue-se a narrativa em que o poeta assume outra personalidade, daquela que érealizada em primeira pessoa.Ao se comparar as duas formas de pensamento, dentre as várias diferenças existe umamuito sutil, que diz respeito ao momento em que o poeta se apresenta narrando. Isto,porque a narrativa simples (diegesis) de Platão não é equivalente à narrativa em pri-meira pessoa de Aristóteles, por ser esta última um modo da mímesis. Contudo, nãoé correto afirmar que o Estagirita fazia menção neste ponto ao gênero lírico. Tantoem um sistema quanto em outro, o lírico está ausente do pensamento filosófico grego,pois a expressão em primeira pessoa tratada na Poética trata de uma forma narrativa.Ao mesmo tempo, não se pode ter a narrativa como uma determinante da naturezaépica. Assim como acontece na República, Aristóteles concorda com seu mentor eapresenta a narrativa como parte integrante de todas as possibilidades de expressãopoética. Mesmo que nos primeiros trechos isto não esteja dito claramente a respeitoda arte dramática, no desenvolvimento do texto fica claro que mesmo a tragédia nãopode existir sem narrativa: “(. . .) As ações e a narrativa constituem a finalidade datragédia (. . .)” (Aristóteles 1999, 44, grifo nosso); e também:

“Quando se alinham falas pelas quais se revelam caracteres, mesmo que bem cons-truídas em relação a linguagem e idéias, nem por isso ter-se-á realizado obra trá-gica; muito mais o conseguirá a tragédia que melhor se servir desses meios, mastambém provida da narrativa e de trama” (idem, grifo nosso).

A narrativa aparece, portanto, como uma operação autônoma em relação à questãodos gêneros, e sua mera presença não é suficiente para apontar a natureza, seja deum ou de outro modo. Aqui se faz presente, mais uma vez, o distanciamento entre adoutrina de Rosenfeld e dos pensadores gregos de quem ele retira sua legitimidade.De imediato, dois temas são impostos pelo choque: o que justificaria a ubiqüidade danarrativa entre os gregos, e, uma vez que ela se encontre desvinculada da épica, abusca por diferenças que restariam entre o epos e a tragédia — gênero tomado comorepresentativo da arte dramática.Um possível desenvolvimento da primeira questão passa pelo reconhecimento de umaspecto presente na tradição filosófica do ocidente que foi posto em evidência nova-mente pelo trabalho de Jacques Derrida e pela desconstrução em geral. Este aspectoé o logocentrismo, ou seja, o ponto central que a lógica ocupa no período que vai dePlatão a Heidegger.Para o que nos interessa neste trabalho, basta assinalar que o processo de construçãode uma narrativa é um processo de seleção lógico, e o é porque se estrutura sobre re-lações de causalidade. O processo narrativo é definido por Ciro Flamarion Cardosocom a expressão “post hoc, ergo propter hoc”, “depois disso, portanto por causa disto”

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(Cardoso 1999, 9). O próprio Aristóteles ilustra o princípio com suas palavras na Poé-tica:

“Ao narrar a Odisséia, (Homero) não relatou todas as experiências do herói Ulisses— como o ter sido ferido em Parnaso e o fingir-se acometido de loucura quandose arregimentou o exército, pois esses acontecimentos não tinham, necessaria-mente, que produzir outros —; ele a compôs em torno de uma ação única, comoa compreendemos, e assim também o fez com a Ilíada” (Aristóteles 1999, 47).

É esta relação lógica, ou seja, de causa e efeito, que faz com que a temporalidade possaser construída a partir da narrativa, mesmo que os acontecimentos não sejam apre-sentados em sua ordem lógica (observe-se que não é uma questão de ser a ordem

“natural”). O papel central que a lógica ocupa no pensamento grego é que trouxe, con-seqüentemente, para o centro a narrativa — a qual não passa de um processo, umaoperação, e não constitui gênero. Podemos concluir que, na cultura grega, a narrativaera tão necessária a qualquer modo de expressão poética quanto o era a presença dalógica nesta expressão. O que explicaria a ausência, ou pelo menos a pouca valorização,do lirismo nesta cultura. Outro ponto que retornará em instantes, pois ainda há umaquestão em aberto.A respeito da épica e do drama, surge o questionamento sobre que demarcações pos-síveis restaram. O primeiro argumento que salta à mente é o do meio de apresentação,o suporte. Porém, o Estagirita sustenta que não é o fato do epos não se desprender daforma escrita que o caracterizaria melhor. Isto porque, na concepção grega, a tragédia,a forma mais representativa do drama, não depende da encenação para conservarsua natureza:

“A parte cênica, embora emocionante, é a menos artística e a menos afeita à poesia.O efeito da tragédia se manifesta mesmo sem a representação e sem atores; ade-mais, para a encenação de um espetáculo agradável, contribui mais o cenógrafodo que o poeta” (Aristóteles 1999, 45).

Luiz Costa Lima oferece a seguinte comparação em relação a dois modos da poéticaem questão, onde, cabe observar, a narrativa não é usada como parâmetro:

“Ao lado destas duas espécies (tragédia e comédia), a épica, representada supre-mamente por Homero, intervém como o gênero mais antigo. Mais próxima datragédia que da comédia, contém as mesmas partes que aquela, exceto no que serefere ao acompanhamento do canto e ao próprio espetáculo (Poética 59b, 10ss).Não é por este aspecto, no entanto, que se diferencia, mas pelo metro e pela ex-tensão. Ao invés do tetrâmetro trocaico e do jâmbico, é o hexâmetro ou metro he-róico aquele que melhor se ajusta ao épico (Poética 59b, 30ss). Contudo, fora dacomunidade da língua grega antiga, esse aspecto é menos relevante que o outro.Por sua própria forma de apresentação, i. e., por não implicar uma ação encenada,mas uma narrativa, a épica ‘pode tratar de várias partes simultâneas da ação, eestas, se são apropriadas ao tema, acrescentam grandeza ao poema’” (Poética 59b,27ss). Se estas diferenças especificam o épico, mais importante que elas é o traçocomum pelo qual, indiretamente, os gêneros se associam. Dizemos indiretamente,pois a causa do elogio feito a Homero valeria de igual, do ponto de vista de Aris-tóteles, para as outras duas formas: a capacidade de o poeta logo deixar de falarem nome pessoal, cedendo a narrativa ou a cena para suas personagens: ‘pessoal-

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mente o poeta não deve dizer senão poucas coisas, pois não é nisso que é imitador’(Poética 60a, 7ss)” (Lima 2002, 257).

Deste trecho rico em informações, podemos destacar sobretudo a maior predisposiçãoda épica para a superposição de ações, construindo uma estrutura muito mais com-plexa em torno da “ação única”. Esta possibilidade é decorrência da temporalidadeser dependente unicamente da narrativa, no caso da épica, ao passo que a encenaçãoconcorre com a organização lógica para fornecer o parâmetro temporal, quando setrata da tragédia ou da comédia.Outra distinção, embora precária, que podemos apontar, é a presença de alguns ele-mentos de estilo, que recebem valor de elementos estruturais na exposição aristotélica.São eles, por exemplo, a peripécia, a hamartia, e a anagnórise. “Por peripécia entendeAristóteles a mudança da acção em sentido contrário” (Freire 1982, 109), a hamartiaconstitui uma grande falta do herói trágico, sendo porém um “erro ou equívoco quenão radica na moralidade” (ibdem, 100), e “a anagnórise, na mente de Aristóteles, sig-nifica uma mudança da ignorância para o conhecimento” (ibdem, 109). Todos estesexemplos podem ser considerados uso da narrativa com fins trágicos (e não apenasdramáticos), e, por isso mesmo, merecem o status de recursos, operações específicasconstantes do universo de possibilidades da narrativa como ferramenta. Dentro datradição grega, um dado texto era considerado mais trágico na medida em que estesrecursos estivessem presentes, e uma tragédia perfeita quando reunisse todos eles,assim como é o caso do Rei Édipo de Sófocles. Fora deste contexto, no entanto, não édifícil ver que tais recursos podem ser encontrados onde a narrativa também o puder,e esta o será onde a lógica for necessária. Dito isto, fica demonstrado o grande poderde disseminação destes elementos, e é por isso que consideramos este traço distintivoprecário desde o início, embora extremamente válido no que diz respeito aos gregos.Podemos dizer algumas palavras, finalmente, a respeito do gênero lírico. Rosenfeldoferece como exemplo de poesia lírica entre os gregos o ditirambo, “cantos dionisíacosfestivos em que se exprimiam ora alegria transbordante, ora tristeza profunda” (Ro-senfeld 1985, 16). Podemos complementar a descrição dessa modalidade poética,com o que Ângela Soares diz sobre a ode em geral, visto que o ditirambo é uma desuas variantes:

“Ode – do grego oidê, canto. Originariamente consistia num poema destinado aocanto, composto em quartetos formados por versos de metros variados, que pro-porcionassem determinados efeitos musicais e emocionais. Os três primeiros ver-sos de cada quarteto deveriam apresentar a seguinte medida: troqueu + dáctilo +troqueu e o quarto verso, dáctilo + troqueu. A poetisa grega Safo, Alceu e Ana-creonte foram os primeiros a compor odes — sendo o amor, o vinho e os prazeresgastronômicos os temas mais explorados. De acordo com o modelo clássico, asodes classificam-se em: pindáricas (exaltam os homens e os acontecimentos ilus-tres), sacras (exaltam a religião), filosóficas (de assuntos meditativo e filosóficos)— apresentando essas três o mesmo esquema estrófico, isto é, estrofes, antístrofese estâncias menores denominadas epodos. Há ainda odes sáficas (de assuntos mo-rais, compostas geralmente de quadras, com três versos decassílabos e um de qua-tro sílabas), anacreônticas (amorosas ou pastoris, de assuntos graciosos e estrutura

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estrófica variável), báquicas (ou ditirambos, de celebração dos prazeres da mesa)”(Soares 2007, 34 -35, grifo nosso na última linha).

Realmente, nos ditirambos o poeta se exprimia em primeira pessoa, mas não estãopresentes as características do gênero lírico da forma como Rosenfeld aponta. Ade-mais, outras formas da ode possuem um conteúdo fortemente narrativo. O “lirismo”,como podemos nos referir à expressão individual de emoção, não é ausente da poesiagrega, pelo contrário. Apenas cabe frisar a ausência de reflexão envolvendo este traçodistintivo entre aqueles filósofos. Soares, refletindo sobre a exposição aristotélica,constrói um paralelo entre a tragédia e o ditirambo, dizendo que segundo o meio comque se realiza a mímesis, distingue-se “a poesia ditirâmbica por um lado e a tragédiae a comédia por outro, pois, se todas elas usam o ritmo, a melodia e o verso, utili-zam-nos de modo diferente: a poesia ditirâmbica emprega todos eles simultanea-mente, enquanto a tragédia e a comédia os empregam alternadamente” (ibdem, 10).Não há, na descrição do ditirambo, a constatação do recurso mais distintivo do gênerolírico, que é apontado tanto por Soares quanto por Rosenfeld — que, inclusive, o ilus-tram através do mesmo exemplo: o quarto dos Quatro Sonetos de Meditação de Viní-cius de Moraes. Este traço distintivo é a fusão entre sujeito e objeto, que não constada reflexão grega, mas é apontado por pensadores latinos — nomeadamente Horácio,na Epistulae ad Pistones (Carta aos Pisões), segundo Soares (ibdem, 11-12). É Horácio,portanto, o responsável pela inclusão do gênero lírico no modelo tripartite de queRosenfeld se serve.O pensamento latino tinha preocupações diversas do grego, no entanto. Soares e Limaconcordam que a necessidade de classificação dos textos pelos romanos atendia auma carência legal, e Horácio impunha à literatura uma função moral e didática. Setomada a erudição romana e a alexandrina, é visível a inclinação ao pragmatismo namesma proporção em que se multiplicavam os gêneros a partir daquele período. Acaracterização da linguagem poética não serviu, a partir de então, como parâmetropara organização da produção literária.De tudo o que foi dito sobre a lírica, podemos retirar uma conclusão semelhante àque chegamos a respeito da épica. A fusão do sujeito, este fenômeno distintivo usadopara caracterizá-la, não passa de uma operação, da mesma forma que constatamosem relação à narrativa. Ambos são processos que, em determinado momento — enão no mesmo, cabe lembrar — serviram como parâmetro para a divisão da produçãoliterária. A divisão não pôde conservar-se operacional em muitos casos, chegando aoponto de não ser reconhecida como legítima por muitos pensadores, e nunca foi pos-sível aplicá-la de modo radical — fato que expôs seu caráter eminentemente teórico.Mas tudo se torna compreensível no momento em que se emancipa destes conceitosas noções destas operações, a narração e a fusão.A argumentação construída até aqui dá subsídio a uma abordagem da linguagem ci-nematográfica independente do conceito de gênero, do gênero como realidade ideal,como substância, como elemento imanente. Da abstração tripartite restam as opera-ções que deram margem ao desdobramento teórico. Sendo assim, não faz sentido

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pensar na arte cinematográfica como estruturalmente narrativa, de acordo com oconceito de narrativa apresentado aqui, subsidiada pelo logocentrismo. Os espaçosantes demarcados pela épica, dramática, e lírica perdem sua validade conceitual damesma forma.A continuidade possível frente a esta constatação passa por verificar o funcionamentode outras operações usadas na formação da poética, no Cinema e em outras artes.Como exemplo, apontado por Collins (2006), podemos citar a montagem/colagem,técnica empregada por Roland Barthes na construção de Fragmentos de um DiscursoAmoroso com o intuito de fugir à possibilidade de classificação de gênero. A monta-gem é uma terceira operação, ao lado da narração e da fusão, com capacidade de en-gendrar o discurso.Em paralelo, mesmo tendo perdido sua condição de imanência, os gêneros continuamfazendo parte do pensamento crítico e filosófico. Um exame dos desdobramentos dadiscussão pertinente a este tema permitiria uma série de modificações na teoria atualdos diversos elementos que compõem uma produção audiovisual. Um desses elemen-tos é a música, cuja inserção na produção cinematográfica é determinada por umaconvenção.

Elaboração Temática e ImprovisaçãoPor ser considerada a fonte de diversas soluções de articulação dramático-musicalposteriormente adaptadas às necessidades do cinema, convém que a ópera forneça areferência para a comparação com o jazz. Tal operação não pode ser feita sem quelevemos em conta uma certa limitação de comparabilidade entre os dois, limitaçãoque advém do fato de a ópera ser um gênero já em parte dramático ao passo que ojazz é basicamente musical, assim como de nenhum dos dois constituir uma unidadesimples, clara, distinguível — ambos são, na verdade, um conjunto de atividades ar-tísticas que se desenrolaram (que vêm se desenrolando) em um determinado período.Em outras palavras, saber que a ópera é um gênero dramático-musical, que é com-posto por árias, recitativos, coros, e peças instrumentais, etc, pode torná-la identifi-cável, mas não torna visível as várias óperas possíveis dentro do universo dasinédoque “ópera”. Da mesma forma, o jazz e os elementos que lhe são consideradoscaracterísticos — como a improvisação, o swing feeling, a elaboração e condução har-mônica específica, processos de realização como o walking bass – provêm uma visãogeral do manancial encerrado e resumido no termo que se convencionou. Em ne-nhum dos dois casos é necessário que haja a presença de todos os elementos que sãocostumeiramente atribuídos a um universo ou a outro, como observam Gridley, Max-ham, e Hoff (1989), por exemplo, a respeito do jazz.Fazendo uma generalização que visa antes dar ênfase à recorrência do que forneceruma estatística confiável, podemos repetir com Chion que nove entre dez filmes em-pregam o recurso do leitmotiv na construção de suas trilhas musicais (Chion 1990,51). Este fato pode ser explicado pela ligação que se estabeleceu entre a música de ci-nema e a ópera, em virtude da orientação narrativa da sétima arte, e que tem como

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marco de sistematização a música de Joseph Carl Breil empregada por David Griffithem O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, E.U.A., 1915) (Carrasco 2003,49-50, e 95). O leitmotiv é “um tema, ou outra idéia musical coerente, com caracte-rísticas claramente definidas de modo a reter sua identidade ao se modificar em apa-rições subseqüentes, e cujo propósito é representar ou simbolizar uma personagem,objeto, lugar, idéia, estado de espírito, força sobrenatural, ou qualquer outro ingre-diente de um trabalho dramático” (Millington 2006, p. 153, tradução e grifo nossos).O mesmo artigo levanta a diferença entre o leitmotiv e o erinnerungsmotiv, a qual nãoé desejável que nos aprofundemos, mas que reforça uma característica comum destesprocedimentos que é importante colocar. Os dois recursos diferem quanto à utilizaçãona obra — e muitas vezes o que acredita-se que seja um leitmotiv na música de umfilme é, na verdade, um erinnerungsmotiv —, mas em termos de elaboração, ambossão, como posto acima, antes de tudo construções temáticas, as quais são associadasa elementos chave de uma estrutura narrativa. O princípio que dá fundamento a esta técnica é a simultaneidade entre a repetição ea diferença no âmbito de uma mesma totalidade dentro do discurso musical. A uni-dade coerente que o tema deve prover se estabelece através de uma ou mais repetiçõesna forma original, ao passo que, gradativamente, são introduzidas variações apenasde aspectos isolados. Por exemplo, uma alteração rítmica possibilita uma leitura com-pletamente distinta da unidade temática, enquanto a manutenção da seqüência deintervalos melódicos cria a ponte entre a unidade anteriormente apresentada e a sub-seqüente. A repetição e a diferença são articuladas simultaneamente, porém, cadauma em um plano do discurso musical. No que diz respeito ao universo jazzístico, a elaboração motívica, por mais que sejaum processo presente, é de importância contingencial, não é indispensável no trata-mento do material musical, e pode ser desenvolvida sem pretensões temáticas. O ele-mento que mais tem poder para introduzir o distanciamento entre a prática musicaldo jazz e a lógica da tematização é a improvisação. Ao mesmo tempo em que a im-provisação pode ser elaborada tematicamente, ela, da mesma forma, permite a con-dução, manutenção, criação, sustentação dos processos musicais sem a necessidadeda repetição parcial ou integral de nenhum todo coerente. O papel transformado darepetição, no contexto expandido de estratégias criativas que o jazz engloba, fez comque ela se tornasse uma opção estética, ou uma questão para o improvisador. É exa-tamente esse o estado de coisas por trás das provocações que Thelonious Monk dirigiua Max Roach — “Por que não usamos a melodia? Por que a jogamos fora depois doprimeiro chorus?” (Williams 1992, 436) — e da afirmação a um solista que improvi-sava sobre um tema seu — “Você pode fazer um solo melhor se usar a melodia” (ibi-dem, 437). Mas a própria necessidade de Monk em afirmar isto já é suficiente parailustrar a autonomia do improvisador frente às demandas relativas à tematização, e,nominalmente, à repetição.O leitmotiv e a tematização não resumem, contudo, os recursos musicais de aborda-gem do drama empregados na ópera. No caso da associação, por exemplo, de um ins-

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trumento, ou família de instrumentos, a um determinado elemento da ação, comono caso dos trombones em relação ao Hades, e das flautas doces ao ambiente pastoralem Orfeu de Monteverdi (Carrasco 2003, 43), não estamos diante do mesmo princípio,mesmo que tomado por uma variação embrionária — dada a distância entre Monte-verdi e Wagner. Para que a estratégia de Monteverdi se mostre efetiva, o que ocorre éa afirmação das diferenças entre um espaço representado e outro. Os timbres, no caso,são portadores contingenciais de diferenças adicionais e arbitrárias, introduzidas pelocompositor. Tais elementos não podem ser considerados temáticos, visto que seupapel é apenas dar margem à comparação de parâmetros — eles compõe antes umaarticulação do que uma unidade. Nunca é demais lembrar: por mais que os meiospelos quais ela se dá sejam contingenciais, a diferença em si é, aqui, o elemento pri-mordial, ao passo que a repetição, sim, ocupa uma posição acessória, contingente,e/ou opcional. O Hades é construído na percepção a partir daquilo que não partilhacom a Arcádia, e vice-versa, e os dois lados são necessários para o estabelecimentode suas identidades. Sob uma perspectiva mais pontual, binária, e imediata, pode-sechegar a inferir que cada um destes ambientes mitológicos representa o exato opostodo outro. Contudo, para o posicionamento que pretendemos adotar, por mais quehaja apenas dois pólos em jogo, é vantajoso, desde já, pensar no princípio que canalizaas atribuições de cada lado como sendo mais do que uma não-identidade dentro deuma estrutura binária. A estrutura binária é apenas uma possibilidade de leitura, etomar o Hades como o oposto da Arcádia faz tanto sentido quanto tomar um trom-bone como o oposto de uma flauta doce. Nesta obra, especificamente, eles estão or-ganizados em regime de oposição, mas o que permite que este regime seja instauradoé a diferença e a arbitrariedade não essencial entre os elementos do discurso — tantofaz se em geral ou especificamente musical — e, portanto, a contingência, a motivaçãonão-essencial, a motivação contextual.

Em Busca de Novos ParadigmasDiferença e repetição são recursos que possibilitam a produção de sentido musicalsem tematização, ou em um nível anterior a ela. Isso acontece porque esses elementosconstituem os fundamentos para a criação de sentido na linguagem em geral, con-forme colocado por Derrida (2006) em seu trabalho seminal, a Gramatologia, maisespecificamente no ensaio “Lingüística e Gramatologia”, onde o argelino contra-ar-gumenta as idéias de Saussure. Uma das conclusões a que Derrida chega é a de quenão faz sentido a limitação imposta pelo lingüista de Genebra no que diz respeito àexistência de uma escritura pictográfica ou representativa. Para Saussure “não há es-critura na medida em que o grafismo mantém uma relação de figuração natural e desemelhança, qualquer que seja esta, com o que é então não significado mas represen-tado, desenhado, etc” (Derrida 2006, 40). Desta forma, estaria colocada em prática aexclusão sistemática de uma porção não-fonética da escritura, que descreve relaçõese não denominações. Se pudermos considerar, agora com o aval de Derrida, uma es-critura com tais características — e que poderia chamar-se de escritura integral oupura — seria possível tratar a música e o cinema como modalidades desta escritura.

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A partir das características que encontramos neste modelo da escritura, podemospropor uma emancipação do modelo calcado na teoria dos gêneros em relação à abor-dagem da música de cinema. Já que a escritura é, ainda segundo Derrida, arbitráriae diferencial, encontramos nestes traços os pontos comuns a todos os processos queengendram as operações que identificamos na primeira parte deste trabalho. A nar-rativa enquanto operação depende do encadeamento lógico de unidades que produ-zem uma temporalidade a partir de sua relação. A tematização é processo semelhante,no que diz respeito a essa produção de temporalidade, de historicidade. Ambas sãodependentes de um grau maior ou menor de recorrência de determinados elementos,o que torna as duas operações mais complexas em termos estruturais do que a simplesdiferenciação, que já basta para a abertura do discurso.Os mesmos elementos que constroem um discurso narrativo ou uma estrutura te-mática participam de outros níveis de discurso inevitavelmente. Como a linearidadeé uma criação feita a partir das relações que o leitor/ouvinte/espectador constrói, sópodemos sustentar uma relação de temporalidade, e portanto, lógica, fora de umanoção estrutural autônoma. A participação do receptor é preponderante, e podemossubsidiar este argumento na doutrina transacionista de Louise Rosenblatt.A relação entre o transacionismo e a música foi discutida em um artigo de MarissaSilverman, abordando as conseqüências para a performance musical de um modeloque reconhecesse a necessidade de complementação de um dado texto (uma dadaescritura) por um intérprete. Como o objetivo abrangia apenas o performer, Silvermannão especula sobre a relação da música executada com o ouvinte. Mas as observaçõesque ela faz para um, podem ser estendidas para o outro, de forma que podemos re-sumir os princípios do transacionismo em três.Em primeiro lugar, há a distinção entre texto e poema. O texto seria a impressão físicade um conjunto de caracteres, enquanto o outro é conceituado como “um evento notempo que vem a existir quando um leitor encontra um texto” (Silverman 2007, 104).O segundo princípio é o de que o significado flui da transação entre o texto e o leitor,ação que é totalmente convergente com as observações de Derrida, que afirma nãoexistir um significado essencial, mas, ao contrário, que trabalhamos o sentido atravésde uma cadeia sem fim de significantes.O terceiro princípio divide em duas as maneiras do leitor produzir o significado, quesão organizadas de acordo com duas instâncias diferentes de leitura, que vamos con-vencionar traduzi-las por aferente (efferent) e estética. Aferente tem sua raiz em “afe-rir”, e é um tipo de leitura ligada à adequatio, uma noção medieval que determina ovalor de verdade de acordo com a verosimilhança. O leitor que executa este tipo deleitura recorre a experiências passadas para construir um sentido de acordo com umcódigo ou conjunto de expectativas. A leitura estética é a experiência onde a ênfaserecai na relação que o leitor cria com o texto, no significado particular que ele estru-tura a partir de suas impressões, sentimentos, etc (cf. Rosenblatt 1994, 24-25).

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ConclusõesA partir do que foi dito aqui, podemos classificar tanto a ação de criar quanto a deassistir uma obra audiovisual como um ato de performance. E se for assim, a estruturanarrativa que se acreditava determinar a construção do discurso do cinema (e da mú-sica de cinema) se releva como uma construção (1) em potencial — não mais ima-nente — e (2) realizável apenas na instância da leitura aferente.Com base nesta argumentação fica superada a abordagem de fundo estruturalista, jáque não é mais possível pensar em desvelar uma instância superior ou mais profundade uma obra a partir do momento que esta obra, para se tornar uma realidade, ne-cessita de complementação através de um ato de performance. Por isso mesmo, aindaque se queira valorizar o papel da narrativa para organizar a abordagem da músicade cinema, há de se ter em conta que valores transitórios determinados historica-mente estarão operando para construir tal narrativa.

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PÔSTER

Música e Cinema: diálogos transdisciplinaresGlauber Resende Domingues

[email protected] de Pós-Graduação em Educação

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Este trabalho tem por objetivo apresentar o som e a música do cinema como ele-mentos potencializadores da aprendizagem musical. Às vezes a experiência cinema-tográfica se limita a ver o filme, quando que na verdade outro sentido importante, aaudição, também está em atividade. A proposta consiste então em aproximar o ex-pectador do filme das questões sonoras presentes nele, de modo a propor que esteindivíduo pense no que está ouvindo, observando questões musicais específicas comoinstrumentos, timbres, sonoridades, ou seja, elementos da linguagem musical; mastambém tentar pensar o que esta música causa, que emoções ela evoca, o que seriauma educação musical outra, num outro sentido. Este trabalho é um dos braços deuma pesquisa de mestrado que busca analisar as relações entre o cinema e a música,analisando basicamente os aspectos educativo-musicais deste encontro. Deste modoé possível pensar uma possível cognição, numa possível aprendizagem do som docinema e para o som do cinema. Alguns pesquisadores têm apostado numa concei-tuação multissensorial no que diz respeito à música. Os pesquisadores que dão su-porte para o desenvolvimento desta pesquisa são Caznók (2008) e Nicolescu (2002)no que diz respeito à multissensorialidade. Para refletir sobre as questões acerca damúsica e do som do cinema, são visitados os trabalhos de Gorbman (1987), Chion(1993) e Aspahan (2010) e para pensar uma perspectiva transdisciplinar a relaçãomúsica e cinema, são postos em discussão os trabalhos de Moraes & Valente (2008)e Lima (2010). A abordagem metodológica consiste basicamente numa perspectivaqualitativa, com ênfase em visualização de filmes e reflexão e análise de sua trilhasonora sob diversos aspectos. As conclusões ainda são um tanto difusas e passíveisde refutações, por conta da incipiência da pesquisa. Mas as leituras apontam parauma estreita relação entre estas duas linguagens artísticas e suas transversalidades,por este motivo a aposta na perspectiva transdisciplinar.

IntroduçãoDesde a Antiguidade o conhecimento científico se firma no preceito de que é possívelcompreender a realidade do mundo em que vivemos por meio de uma dissociaçãodos campos do conhecimento. Deste modo, no decorrer dos séculos, a humanidadedesenvolveu os conhecimentos a partir da lógica da fragmentação. Este pensamentofoi desenvolvido e reforçado por anos a fio. Inclusive a filosofia em seu discurso re-forçava esta idéia, tendo Platão (428 – 347 a.C.) e Descartes (1596 – 1650) como seus

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grandes exponenciais. Sendo que este aprofundou as idéias daquele.

Algumas questões sobre a transdisciplinaridadeAlgumas discussões mais contemporâneas tem apostado em outras formas de orga-nizar o conhecimento, dentre elas a transdisciplinaridade. Sobre a perspectiva datransdisciplinaridade, Lima aponta que esta

implica em aproveitar espaços e processos de produção (…) para desenvolver ex-periências que não sejam compartimentadas na grade curricular da escola. Issopermite romper, parcialmente, com os limites das disciplinas, promovendo umaprodução coletiva de conhecimentos que possibilite a integração entre sujeitos egrupos diversificados (2010, 194).

Nesta perspectiva, a autora propõe um rompimento, mesmo que parcial, simbólico,com as disciplinas ou áreas do conhecimento, mesmo que tais áreas não sejam ne-cessariamente tidas como disciplinas, como o Cinema, por exemplo.

Sobre os objetivosEste trabalho pretende articular discussões teóricas refletindo sobre alguns caminhos,alguns eixos comuns ao cinema e à música, no intuito de promover um encontro des-tas artes num ambiente de educação musical. A sua lógica de pesquisa se dá a partirde uma perspectiva transdisciplinar, pois esta, por sua vez,

“promove o encontro entre diferentes níveis de percepção e de realidade, a partirde diferentes níveis de representação, como é o caso do uso de música, sons, ima-gens, filmes e outros recursos audiovisuais.” (Moraes e Valente 2008, 62).

Transdisciplinaridade e múltiplas sensações em cinema e músicaEste conceito de transdisciplinaridade, de certa aproximação entre diferentes áreasdo conhecimento, que aqui se concentra em duas linguagens artísticas, acaba nos re-metendo à perspectiva da correspondência entre as artes, que é um assunto posto emdiscussão há bastante tempo, pelo menos desde a primeira metade do século passado(Caznok 2008). Neste período houve uma grande aproximação da música com asartes visuais. Esta correspondência entre as artes acabou também partindo para opensamento de uma unidade dos sentidos, das sensações, assunto este que será abor-dado mais adiante.Em concordância com o pensamento de Caznok, Nicolescu apontava que uma criaçãoartística, seja ela de arte performática ou não, como a pintura e a escultura, se erguecomo ponte entre os diferentes níveis de percepção dos indivíduos que estão envol-vidos na experiência, sejam eles os intérpretes ou os ouvintes (Nicolescu 2002). Destemodo, é possível afirmar que o diálogo entre duas ou mais formas diferentes de artepodem produzir diferentes efeitos de percepção de diferentes elementos. Tecendo considerações, mesmo que breves, sobre a percepção, pode-se afirmar queesta tem a ver com a sinestesia. “Do grego sýn, reunião, ação conjunta + aísthesis, sen-sação, a sinestesia é definida como a mistura espontânea de sensações. É considerada

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um fenômeno perceptivo pelo qual as equivalências, os cruzamentos e as integraçõessensoriais se expressam” (Caznok 2008, 113). Pode-se dizer, então, que ao apreciaruma obra de arte, seja ela uma arte visual (quadro, escultura, gravura) ou uma artedo tempo (teatro, música, cinema), diferentes sensações estão sendo ativadas. A au-tora afirma que “a maioria ‘esmagadora’ de combinações sensoriais envolve a visão ea audição, (. . .)” (ibidem), e propõe que existe um fator que é preponderante na mul-tissensorialidade, que é o atributo movimento. Segundo ela, o movimento é um estí-mulo a diferentes canais sensoriais. O cinema é uma arte na qual imagem e som seencontram presentes e ao qual o movimento traz uma sensação de uma continuidade,o que faz com que ele seja também uma arte temporal. Porém o cinema comercial éde certo modo cruel, quando cria um forte apelo visual apenas, tornando a músicaapenas uma mera música de fundo. A escuta do som e da música do cinema findapor ser uma escuta meramente emocional, relacionada à paridade imagem-som (As-pahan 2010). Mesmo com todo este apelo ao visual, alguns autores tem se debruçadosobre o estudo das correspondências entre o som e a imagem, especialmente na mú-sica de cinema. Normalmente estas correspondências residem basicamente no fatode as músicas de um filme oferecerem um suporte para reforçar a dramaticidade deuma cena específica do filme, causando-lhe emoções condizentes com a imagem emquestão. Primeiramente, vale a pena lembrar a contribuição de Aspahan (2010), que se apro-pria de alguns elementos apresentados por Pierre Schaeffer em seu Tratado dos objetosmusicais. Os elementos propostos pelo autor consistem basicamente no distinguir oouvir do escutar. Segundo ele, ouvir é uma capacidade fisiológica, inerente ao ser hu-mano, em que o indivíduo percebe os sons com sistema auditivo. Já o escutar asso-cia-se a uma atitude consciente e intencional do ouvinte, de modo que o este não sóperceba os materiais sonoros do som produzido, como sua ação no tempo, suas se-melhanças e diferenças. Pode-se dizer que aí reside o cerne da questão da escuta dossons do cinema.Pensando sobre a escuta, Chion (2008), um dos principais autores que discute estaquestão, sugere um tipo de escuta, chamado de escuta causal, na qual o escutar se di-rige aos efeitos em busca das causas. Aspahan (2010) exemplifica a idéia de Chioncomparando-a à escuta da voz de uma pessoa que possui certo sotaque. O indivíduoprestará mais atenção ao sotaque do que propriamente ao conteúdo da fala.Falando especificamente da música de um filme, Gorbman (1987) tece algumas con-siderações sobre sua função nas películas. Para a autora, a música tem a função deenvolver emocionalmente o espectador, de modo a desmontar seu espírito crítico, ecolocá-lo no filme, como parte de sua história. Ela ainda aponta alguns elementosque devem estar presentes numa composição de música para cinema, dentre eles ainvisibilidade e a inaudibilidade, dentre outros.

MetodologiaMoraes e Torre (2006) apontam que, para que um pesquisador possa dialogar com

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as circunstâncias e compreender as variáveis envolvidas numa pesquisa, ele precisaeleger um determinado método para fazer tais análises. Tal método vai nortear a va-lidade ou não de procedimentos e estratégias. Vale a pena ressaltar aqui o pensamentode Morin (1996, 36) a este respeito:

É preciso recordar aqui que a palavra “método” não significa metodologia. As me-todologias são guias a priori que programam as investigações, enquanto o métodoque se desprende de nossa andadura será uma ajuda à estratégia, a qual compreen-derá utilmente (. . .) segmentos programados, embora necessariamente compor-tará a descoberta e a inovação.

Morin deixa claro que é preciso que as estratégias estejam abertas ao inesperado, poisos fatos nem sempre funcionam de modo linear, principalmente nas ciências huma-nas. É preciso tomar cuidado para que o método não se torne uma “camisa de força”(Gatti 2002). Mas isto também não quer dizer que o método deva ser uma improvi-sação. Na verdade este é produto de uma atividade pensante do pesquisador (Moraese Valente 2008). Uma vez realizada a pesquisa bibliográfica e o mapeamento dos trabalhos já desen-volvidos nesta área no portal da CAPES e nas principais revistas e eventos nacionaisde Educação, proporemos o planejamento e realização de atividades “musico-cine-matográficas” em espaços disponibilizados pelo CINEAD (Grupo de Pesquisa e Exten-são Cinema para Aprender e Desaprender, coordenado pela Profª Drª AdrianaFresquet) na Escola de Cinema do CAp, na Cinemateca do Museu de Arte Modernado Rio de Janeiro (com grupos de escolas públicas) e na Unidade de Pacientes Internosno Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da UFRJ para 2011. Nopróximo ano nos dedicaremos ao tratamento e análises dos registros realizados.

ConclusãoÀ guisa de conclusão, a partir dos elementos apresentados, questiona-se o fato deporque não pensar numa educação musical a partir da música de cinema ou aindauma educação musical para a música de cinema? Seria então possível propor umaeducação das emoções da música de cinema? Que não se entenda aqui educação comoum adestramento, mas um apontar de possibilidades, de modos de se ouvir essa mú-sica. As categorias apresentadas por Gorbman podem ser um caminho inicial parauma possível educação musical do cinema, que figura-se como uma educação musicaloutra. Ainda não há conclusões fechadas sobre estas possibilidades, haja vista que apesquisa está no seu percurso inicial, mas os estudos feitos até agora tem apontadoque há uma correspondência entre as artes musicais e cinematográficas. A músicatem seu elemento visual, talvez não cinematográfico; e o cinema tem seu elementomusical, propriamente dito. E se há uma correspondência, é possível investir nestaeducação musical outra, que além da escuta, é feita também pelo olhar.Ainda não é possível apresentar dados concretos da pesquisa, pois a mesma se apre-senta num estágio inicial, mas as perspectivas são positivas quanto à execução dapesquisa.

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ReferênciasAspahan, Pedro. “Por uma pergunta sonora”in Juliana Leonel e Ricardo Fabrino Mendonça,

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Gorbman, Cláudia. Unheard Melodies: Narrative Film Music. Bloomington: Indiana UniversityPress, 1987.

Lima, Rafaela. “As TICs na escola: da recepção à expressão”, in Juliana Leonel e Ricardo FabrinoMendonça, org., Audiovisual comunitário e educação: histórias, processos e produtos, 185-201. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

Moraes, Maria Cândida e Saturnino de La Torre. “Pesquisando a partir do pensamento com-plexo: elementos para uma metodologia de desenvolvimento eco-sistêmico”, in Revista daEducação da PUC – RS nº XXIX (2006): 145-172

——— e José Armando Valente. Como pesquisar em educação a partir da complexidade e datransdisciplinaridade? São Paulo: Paulus, 2008.

Nicolescu, Basarab. “Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso”,in Américo Sommerman, Maria F. de Mello e Vitória M. de Barros, org., Educação e Trans-disciplinaridade II, 45-70. São Paulo: Triom, 2002.

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Tecnologia, artes musicais e a mente

Do caráter transdisciplinar dos sistemas interativos musicaisMarcelo Gimenes

[email protected]úcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora, Unicamp

ResumoEste artigo aborda o caráter transdisciplinar dos sistemas interativos musicais. A títulointrodutório, é apresentada a experiência dos Ambientes Interativos Musicais (Inte-ractive Musical Environments - iMe), um sistema computacional que tem como prin-cipal objetivo investigar a evolução dos estilos musicais sob o ponto de vista datransmissão de estruturas musicais. iMe faz parte de uma nova geração de sistemasinterativos que podem contribuir de maneira significativa para a investigação da cria-tividade humana e da interatividade entre humanos e máquinas. Sistemas interativosdevem exibir troca de informações musicais, capacidades cognitivas e a capacidadede influenciar e receber influência. Esses sistemas podem ser uma excelente ferra-menta para investigar a cognição musical, uma área transdisciplinar de pesquisa quereúne a filosofia, a psicologia experimental, as neurociências e a computação com oobjetivo de estudar a natureza e a estrutura dos processos cognitivos.

IntroduçãoEm 2008, durante o Festival de Música Contemporânea organizado pelo Centro In-terdisciplinar de Pesquisa em Computação Musical (Interdisciplinary Centre for Com-puter Music Research – ICCMR) da Universidade de Plymouth (Reino Unido), osistema Ambientes Interativos Musicais (Interactive Musical Environments - iMe) (Gi-menes, Miranda et al. 2007) foi apresentado pela primeira vez em um concerto pú-blico. Este sistema tem como principal objetivo investigar a evolução dos estilosmusicais sob o ponto de vista da transmissão de estruturas (memes) musicais.iMe usa o paradigma dos agentes inteligentes (também conhecidos como agentes ra-cionais, autônomos ou de software), sistemas adaptativos que residem em um am-biente dinâmico e complexo em que sentem e agem de forma autônoma executandouma série de tarefas, a fim de atingir os objetivos para os quais foram concebidos(Maes 1991; Russell e Norvig 2002). No sistema iMe, os agentes interagem entre si ecom músicos humanos através da prática de atividades inspiradas no mundo real (ta-refas como ler, ouvir, executar, praticar, improvisar e compor música). O resultadodessas interações, que ocorrem enquanto o sistema executa simulações projetadascom uma determinada preocupação musicológica, é que os agentes aprendem e sãocapazes de desenvolver (evoluir) seu próprio estilo musical.Estilo musical, de acordo com uma famosa definição proposta por Meyer, é “uma re-

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petição de padrões, seja no comportamento humano ou nos artefatos produzidos pelocomportamento humano, que resulta de uma série de escolhas feitas dentro de umconjunto de restrições” (Meyer 1989). No sistema iMe, o estilo musical de um agente,também chamado de memória ou de visão de mundo musical, é definido como umobjeto complexo que armazena um conjunto de parâmetros (e.g. informações relati-vas a altura, ritmo, etc.) e que corresponde ao conhecimento musical do agente emum determinado momento.Para o concerto de Plymouth, uma simulação foi especialmente projetada de modoque um agente executasse duas tarefas. Durante a primeira tarefa, o agente deverialer um arquivo MIDI que continha apenas a melodia da peça Stella by Starlight, deVictor Young. Durante a segunda tarefa o agente deveria improvisar sobre este tema,juntamente com um pianista humano. O desafio de sair do ambiente controlado dolaboratório, onde o sistema havia sido inicialmente projetado e implementado, paraum ambiente onde potencialmente muitos problemas poderiam ocorrer, como umconcerto público, mostrou-se compensador. A reação do público foi positiva, tendoalgumas pessoas mencionado que haviam percebido verdadeiros diálogos entre ocomputador e o músico humano. iMe também atraiu a atenção da mídia e foi objetode duas publicações jornalísticas (Herald 2008; Johnson 2008). O vídeo dessa per-formance pode ser assistido no website www.computermusiclab.com. Uma descriçãopasso a passo dele se encontra em Gimenes (2008).No concerto de Plymouth, ao iniciar a segunda tarefa da simulação, o agente toca al-gumas notas melódicas enquanto o pianista toca acordes. Em seguida, o agente tocanotas rápidas aprendidas da performance imediatamente anterior do pianista. Oagente então executa alguns elementos harmônicos, também aprendidos do pianista.Essa troca de informações e aprendizado prossegue até o final da peça. Ora o agenteexecuta elementos (frases, escalas, acordes, etc.) extraídos da performance do pia-nista, ora este faz referência a elementos tocados pelo agente.iMe faz parte de uma nova geração de sistemas interativos (Assayag, Bloch et al., 2006;Pachet 2006) que podem contribuir de maneira significativa para a investigação dacriatividade humana e da interatividade entre humanos e máquinas. Um outro sis-tema, Continuator, apresentado por Pachet (2003), também tem a capacidade deaprender estilos musicais automaticamente (sem intervenção humana) e agnostica-mente (sem modelar nenhuma informação simbólica) podendo se integrar ao modode tocar do músico humano. OMax, um sistema computacional apresentado por As-sayag et al. (2006) possui características semelhantes.Um dos fatores que distingue iMe dos demais é a proposta musicológica de avaliar odesenvolvimento dos estilos musicais dos agentes. O sistema guarda o histórico dastransformações das memórias de cada um deles e dispõe de ferramentas para acom-panhar (medir) a evolução do seu conhecimento musical. Fugiria ao escopo deste ar-tigo detalhar cada um dos elementos e mecanismos do iMe. Para a compreensão destetexto são apresentadas aqui, contudo, algumas das suas características principais.No que diz respeito à representação musical, iMe se baseia na capacidade dos agentes

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de continuamente extrair características fundamentais do fluxo musical, como a di-reção da melodia, diferenças intervalares entre a seqüência de notas, etc. (percepção).Este fluxo é segmentado em elementos menores (memes musicais) através de técnicasinspiradas na psicologia Gestalt. Finalmente, a memória dos agentes, uma estruturaextremamente complexa, armazena representações desses elementos, bem como domodo como estes se inter-relacionam. Essa técnica foi usada com a finalidade de im-plementar o que é conhecido como aprendizagem de máquina, a capacidade do sis-tema aprender a partir de exemplos, sem a necessidade de codificar previamente umconjunto de regras.A palavra meme se relaciona, obviamente, com a teoria memética. Alguns estudiosos(Dawkins 1989) introduziram a idéia de que a evolução cultural seguiria princípiosmuito semelhantes aos que regem a evolução das espécies. Deveria haver unidadesde informação cultural da mesma forma que, na biologia, existem unidades de in-formação genética. Estas unidades de informação cultural foram chamadas dememes. Os teóricos da memética acreditam que, do mesmo modo que os padrões deinformação evoluem através de processos biológicos, os memes também evoluiriamatravés da exploração, adaptação e transformação de um espaço informacional atravésda variação, seleção e transmissão (Gabora 1997).O modelo de criatividade implementado na versão atual do iMe se inspira na tradiçãoda improvisação do jazz, de seguir uma partitura básica, que contém instruções geraissobre o tema e seqüência de acordes. No sistema, essa partitura é conhecida comoMapa de Composição e Performance (MCP). Os MCPs contém, além dos elementosda partitura do jazz, indicações de acordes, escalas, andamento e dinâmica, entre ou-tras. Os agentes aplicam o seu conhecimento prévio ao MCP, o que permite que elesimprovisem com outros agentes e com músicos humanos, gerando novos memes mu-sicais que seguem as regras desse conhecimento e, ao mesmo tempo, se adaptam aocontexto local em que se encontram durante a performance.Em sistemas como o iMe, não é possível prever o comportamento geral do sistema apartir do comportamento das suas partes. Sistemas que possuem esta propriedadesão conhecidos como complexos. Não seria possível, por exemplo, predizer o estilomusical de cada um dos agentes unicamente a partir dos mecanismos de percepção,cognição e de interação entre eles. As condições iniciais do sistema e a não linearidadedas interações fazem com que o resultado seja imprevisível. Outra característica im-portante de sistemas complexos é a ocorrência dos chamados comportamentos emer-gentes, ou seja, o aparecimento de padrões globais a partir das interações locais dosagentes. O mesmo fato ocorre na natureza, por exemplo, quando o comportamentode um bando de pássaros, impossível de ser previsto, emerge das interações locaisentre eles. Do mesmo modo, o estilo musical dos agentes, assim como o estilo musicaldo sistema iMe, como um todo, resulta das interações locais entre eles.

Os sistemas interativos musicaisDe fato, o uso de sistemas interativos já se tornou, há algum tempo, um assunto fas-

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cinante. A experiência de “ouvir o sistema e o artista se adaptarem um à performancedo outro, em observar o desenvolvimento de uma relação única entre o sistema e ohumano” é muito mais cativante do que simplesmente ouvir uma performance pré-gravada (Saltz 1997).

O problema é que o conceito de interatividade tornou-se demasiadamente popular,sendo usado nos mais variados contextos, acabando por transmitir significados im-próprios. No campo musical foi difundida a idéia de, possuindo algumas caracterís-ticas elementares, qualquer sistema poderia ser chamado de interativo. Sistemasmuito simples receberam esta denominação, por exemplo, unicamente porque res-pondem a alguns comandos do mouse. Neste caso, a palavra interativo é usada parareforçar o conceito de que estes sistemas podem ser controlados com base em algumtipo de ação do usuário em tempo real, o que os distinguiria de sistemas em relaçãoaos quais o usuário adota uma postura passiva. Essa é a idéia contida na seguinte afir-mação: “muitos compositores criaram interações musicais homem-computador atra-vés da execução de algoritmos geradores em tempo real e controlando seusparâmetros com o input de um intérprete humano . . . “ (Walker 1994).Ora, é questionável atribuir o conceito “interatividade” a esses sistemas. Uma expres-são mais apropriada talvez fosse “ reatividade”. Os conceitos são bem distintos. Inte-ração inclui a idéia de ação (ou influência) recíproca, de um fluxo bi- (ou multi)direcional de informação. Reatividade não inclui essa idéia. No contexto da interati-vidade, as ações são executadas por pessoas ou coisas e produzem um efeito sobreoutras pessoas ou coisas. Ações também podem ser executadas por agentes: “O prefixointer- na palavra “interatividade” implica a influência mútua entre os agentes que sãode certa forma tomadores autônomos de decisão” (Dobrian, 2004). Paine compartilhada mesma opinião: “o termo interatividade é, portanto, usado em excesso” . . . “ amaioria dos sistemas não são interativos, mas simplesmente reativos ou responsivos,porque lhes falta um nível de cognição “ (Paine 2002).Um conceito muito próximo ao de interatividade foi proposta por Blackwell (2006)em torno de uma comunidade conhecida como Algoritmos Vivos para a Música (LiveAlgorithms for Music). Segundo este autor, algoritmos vivos são aqueles que preen-chem três pré-requisitos: (i) interagir sem intervenção humana, (ii) contribuir deforma criativa para a música que está sendo produzida e (iii) evitar abordagens ba-seadas em regra ou mapeamento simplistas.Em vista da confusão formada em torno da expressão interatividade, uma definiçãoestrita de interatividade foi proposta por Gimenes: “Sistemas interativos musicais sãosistemas computacionais que, através da troca de informações musicais, têm a capa-cidade de perceber o ambiente, analisar e tomar ações de modo a alterar os estadosvizinhos, bem como alterar seus próprios estados internos” (Gimenes 2008). Todosos elementos mencionados anteriormente estão presentes nesta definição, especial-mente (i) a troca de informações musicais, (ii) capacidades cognitivas e (iii) a capa-cidade de influenciar e receber influência.

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A cognição musical e a transdisciplinaridadeConseqüência lógica do que foi exposto até aqui é que os sistemas interativos podemser uma excelente ferramenta para investigar a cognição musical, uma área de pes-quisa que reúne especialmente a filosofia, a psicologia experimental, as neurociênciase a computação com o objetivo de estudar a natureza e a estrutura dos processos cog-nitivos. Entre os objetos de estudo da cognição musical podem ser citados a repre-sentação e o processamento (aquisição, armazenamento, geração, etc.) doconhecimento musical pela mente. A modelagem computacional proporciona umarepresentação formal deste conhecimento e a verificação experimental de diferentesteorias cognitivas.A ascensão da cognição musical (ou musicologia cognitiva) coincidiu, nas últimasdécadas, com o interesse cada vez maior dos musicólogos por temas como memória,atenção, reconhecimento de padrões, formação de conceitos, categorização, entremuitos outros. A música como obra de arte deixa de ser o único objeto de estudo epassa a ser vista também como um processo que resulta da atuação de diversos agen-tes (músicos, ouvintes, etc.) (Honing 2006). A musicologia incorpora disciplinas mu-sicais e não-musicais, misturando ciências e humanidades e define-se como o “estudoacadêmico de quaisquer e todos os fenômenos musicais”, abordando “as questões fí-sicas, psicológicas, estéticas, sociais, culturais, políticas e históricas da música, criaçãomusical, percepção musical e do discurso musical” (Parncutt, Kessler et al. 2004).Sendo a cognição musical uma área da qual participam diversas disciplinas, surge aindagação de como deve ocorrer a integração ou interação entre elas. Além disso,tem-se que encontrar um termo que denomine adequadamente essa integração. Comessa finalidade, alguns prefixos (pluri, multi, inter, trans) são comumente usados.

“Multidisciplinar” e “pluridisciplinar”, por exemplo, têm conotação semelhante e de-signam a existência de mais de uma (ou muitas/várias) disciplina(s). O prefixo “inter”,de interdisciplinar, designa o que está entre as disciplinas. Finalmente, o prefixo trans,em transdisciplinar, designa o que está através ou além das disciplinas.Assim, a multidisciplinaridade indicaria a ocorrência de mais de uma disciplina masnão sugere, necessariamente, uma integração entre elas. Interdisciplinaridade, poroutro lado, contém a idéia de ação (ou influência) recíproca e a existência de fluxosde informação em diversos sentidos entre as disciplinas. Santos (2006) entende quetanto a pluridisciplinaridade quanto a interdisciplinaridade estabelecem colaboraçãoentre disciplinas mas não abriram mão de seus métodos ou de sua autonomia.Certas pesquisas (ditas) interdisciplinares podem, contudo, não promover uma in-tegração verdadeira, mas somente aparente. Neste caso teríamos um caso de pseudointerdisciplinaridade. A partir desse extremo (ausência de integração), outras pes-quisas podem exibir níveis crescentes de integração, até atingirem o que se denominatransdisciplinaridade. Neste caso a integração ocorreria através (de um lado ao outro)das disciplinas e além dos elementos que as constituem, resultando em uma “abran-gente revisão dos pressupostos fundamentais e métodos de uma disciplina com base

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em uma análise aprofundada dos pressupostos e métodos de outra” (Parncutt, Kessleret al. 2004). O objetivo é compreender o mundo através da unidade de conhecimento(Lucchesi e Malanga 2005).De fato, a música é ao mesmo tempo, de um lado, um fato que pertence ao mundoconcreto, uma experiência objetiva, relacionada com a obra de arte em si, e, de outro,uma experiência que se relaciona com agentes musicais, os quais processam pensa-mentos e emoções. Olhar a música pelo prisma de uma única disciplina ou de váriasporém estanques disciplinas significaria limitar a sua compreensão plena, o que avisão transdisciplinar não admite. Esta é essencialmente integrativa, holística. Ela re-conhece a “existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diferentes”e refuta “qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição e de dis-solvê-lo nas estrutura formais, sejam elas quais forem” (Freitas, Morin et al. 1994). Otodo não pode ser compreendido como a soma das partes, mas como algo que emergedas relações entre estas (Souza 2003).Apesar das questões mencionadas acima, há autores (Leman 2007) que sustentamque a diferença entre os termos multidisciplinar e transdisciplinar é sutil, pelo quepropõem que sejam usados como sinônimos. A razão seria que a pesquisa “verda-deiramente” multidisciplinar “também se baseia no trabalho que ultrapassa as fron-teiras das disciplinas envolvidas e, a partir desse momento, esse trabalho pode-sedizer que transcende as disciplinas em que se baseia” (Leman 2007).A fim de promover os estudos transdisciplinares, em 1987 foi fundado o Centro In-ternacional para a Pesquisa Transdisciplinar. O primeiro Congresso Mundial daTransdisciplinaridade ocorreu em 1994, ocasião em que foi adotada a Carta da Trans-disciplinaridade (Freitas, Morin et al. 1994), documento no qual são inscritos pre-ceitos e diretrizes do movimento. Leman (2007) argumenta, contudo, que atransdisciplinaridade não é um conceito novo, tendo existido desde o início da mu-sicologia sistemática que, em fins do século XIX, já adotava essa abordagem. Morintambém argumenta que a ciência sempre se caracterizou por uma transdisciplinari-dade intrínseca (Morin 1980 in Souza 2003)Também de acordo com Leman (Leman 2007), durante a evolução da musicologiasistemática, esta foi influenciada pela Gestalt e posteriormente pela psicologia da in-formação e cibernética. Mais recentemente, pela musicologia cognitiva. A musicologiasistemática, portanto, se basearia em uma estreita colaboração entre as disciplinascientíficas oferecendo uma maneira de entender “como as pessoas se envolvem coma música, e como a música funciona na percepção, performance e como um fenômenoestético e social” (Leman 2007). Segundo este autor, o papel da musicologia sistemá-tica hoje consiste em fomentar a abordagem transdisciplinar, usando “metodologiascentradas no objeto e no sujeito para investigar a relação entre a música, a mente, ocorpo, interação social e ambiente físico” (Leman 2008).Recentemente, um grupo de pesquisadores europeus apresentou o “Roteiro para aInvestigação da Música Digital no Reino Unido” (UK Digital Music Research Road-

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map), uma coleção de documentos em que são identificadas linhas de pesquisa paraa música digital da próxima década (Myatt 2005). O objeto de estudo desta que passoua ser chamada de “transdisciplina”, segundo os autores, seria a música mediada pelatecnologia, criada por computadores ou apresentada por meio computacional. Otermo transdisciplinar é usado extensivamente nesses documentos. O Roadmap men-ciona, por exemplo, que a transdisciplina música digital é resultado de pesquisas quecombinam arte e engenharia, além de aspectos das ciências físicas e humanas. Ocorre,contudo, que as transdisciplinas poderiam vir a ter dificuldades em conseguir suportefinanceiro porque os seus limites não se enquadrariam perfeitamente naqueles esti-pulados por organizações que tradicionalmente apóiam a pesquisa científica.

ConclusãoEste artigo introduz o sistema Ambientes Interativos Musicais (Interactive MusicalEnvironments – iMe) como ponto de partida para demonstrar de que modo os siste-mas interativos musicais podem contribuir para as pesquisas transdisciplinares, entreas quais se encontra a musicologia cognitiva. Entre as ferramentas oferecidas poresses sistemas, encontram-se as simulações computacionais, que podem ser especial-mente projetadas para abordar preocupações musicológicas específicas, como é ocaso da investigação da criatividade humana e da interatividade entre humanos e má-quinas.No iMe, agentes inteligentes interagem entre si e com músicos humanos através daprática de atividades inspiradas no mundo real. O resultado dessas interações é queos agentes aprendem e são capazes de desenvolver (evoluir) seu próprio estilo musical.O aparecimento de padrões globais (o estilo musical do sistema como um todo) apartir das interações locais dos agentes configuram o que é conhecido como com-portamento emergente.

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Tecnologia x perfomance de instrumentos em grupo para crianças: aprendendo na e com a rede

Beatriz de Freitas SallesDepartamento de Música, Universidade de Brasília

Laboratório de Análise e Atuação, Estudos e Empreendimenos Musicais – LAEM/UnBPrograma de Pós-Graduação em Artes – IDA/UnB

Juliana Rocha de Faria [email protected]

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília, Campus Planaltina

Resumo O ensino-aprendizagem da performance mediado pelo uso das tecnologias é o temaque trataremos neste artigo. Dessa forma, levantamos a seguinte questão: como ade-quar as ferramentas do ensino à distância aos desafios do aprendizado coletivo deinstrumentos? Para respondê-la, apresentaremos os resultados parciais do projeto deextensão “Piano/Teclado para Crianças em Grupo” realizado na Universidade de Bra-sília (UnB) desde 2005. A proposta é o ensino e a aprendizagem do piano/tecladoem grupo para crianças de 5,5 a 12 anos mediados por recursos tecnológicos na pers-pectiva do Ensino a Distância (EAD). As pesquisas nacionais sobre tecnologia e artesmusicais na área da cognição, de modo geral, estabelecem uma conexão dos recursostecnológicos com a composição e a análise musicais, e a neurociência (Toffolo, 2010;Bertissolo, 2010; Gimenes, 2010; Gentil-Nunes, 2010). Constatamos a ausência detrabalhos que estabeleçam uma relação da tecnologia com o ensino de instrumentoem grupo. O referencial teórico que subsidia o projeto e a análise dos resultados aquiapresentados em duas vertentes: a tecnológica e a musical. A primeira abrange ossistemas colaborativos como as redes sociais e os jogos interativos (Parente 2007;Eco 1970) e a segunda trata das inteligências múltiplas (Gardner 1994), da ludicidadeno âmbito do aprendizado musical (Maturana; Verden-Zoller 2004; Machado 2004;Martins 2003; Meifren 1993; Negrini 2001; 1998; Lebovici; Diatkine,1985; Gouvêa1975), do universo criativo da criança (Swanwick 1999; 1979; 1977); das práticas mu-sicais em grupo para o desenvolvimento de competências sociais (Bastian 2009) eda autoaprendizagem mediada pela tecnologia (Gohn 2002). Os dados foram coleta-dos durante o segundo semestre de 2010 e analisados sob a abordagem qualitativano âmbito do construtivismo social (Creswell 2010). Nesse sentido, realizamos ob-servações das situações de ensino e aprendizagem em sala de aula que foram gra-vadas em vídeo. Percebemos as possibilidades de interação e troca nos processosmediados pela tecnologia, pois o meio pode disponibilizar professores em tempo in-tegral para seus aprendizes. Além disso, o processo de registro audiovisual e a pos-tagem na rede do resultado da prática do aprendiz realizado pelos pais viabilizam apossibilidade de comparação com os vídeos tutoriais e de monitoramento online daprática correta pelo professor, ainda que não em tempo real, potencializando o apren-dizado à distância.

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Introdução“Estamos vivendo a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe a nós ex-plorar as potencialidades mais positivas desse espaço no plano econômico, político,cultural e humano. Que tentemos compreendê-lo, pois a verdadeira questão nãoé ser contra ou a favor, mas sim reconhecer as mudanças qualitativas na ecologiados signos, o ambiente inédito que resulta da extensão das novas redes de comu-nicação para a vida social e cultural. Apenas desta forma seremos capazes de de-senvolver estas novas tecnologias dentro de uma perspectiva humanista” (Lévy1999, 12).

Este novo ambiente, resultado da mudança de paradigmas das novas formas de co-municação inspira o presente artigo no sentido de explorar as possibilidades do usoda tecnologia no aprendizado da performance levantando as seguintes questões: comoadequar os recursos do ensino à distância aos desafios do aprendizado coletivo deinstrumentos? Como e quais seriam as ferramentas adequadas para o ensino depiano/teclado em grupo que utilize os recursos tecnológicos como um meio de po-tencializar tempos e espaços de aprendizado? O presente artigo refere-se ao projeto de extensão Piano/Teclado para Crianças emGrupo realizado na Universidade de Brasília e apresenta a proposta de ensino e apren-dizagem de piano em grupo com crianças de 5,5 a 12 anos mediados por recursostecnológicos dentro da perspectiva do Ensino a Distância (EAD), aqui entendido comotudo o que diz respeito aos processos de ensino e aprendizagem mediados pela tec-nologia, em plataformas alternativas ao MOODLE e nos formatos semipresencial e àdistância, no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão.Esse projeto de extensão é vinculado ao Departamento de Música (MUS) do Institutode Artes (IDA) da Universidade de Brasília (UnB) e foi criado em 2005 para oportu-nizar o acesso à formação musical por meio do ensino presencial e virtual em grupopara crianças. A proposta visa, além disso, permitir a experiência didática aos estu-dantes de música e tecnologia, a fim de criar ferramentas pedagógicas e tecnológicaspara viabilizar a percepção, o aprendizado musical e o desenvolvimento cognitivo epsicomotor da criança.Tendo em vista as dificuldades encontradas relativas à equação questões pedagógicas,didáticas, metodológicas e tecnológicas versus soluções de ensino-aprendizagem emtempo real mediadas pela internet, este projeto adquiriu uma nova dimensão com acriação, em 2010, da linha de pesquisa interdisciplinar “Música e mídias interativas”,vinculado ao grupo “Arte computacional e realidade virtual” do CNPQ cujo objetivoé a produção de pesquisa científica sobre novos processos lúdicos e de aprendizagemmusical mediados pela tecnologia computacional. Essa linha de pesquisa conta comdoutores e mestres das áreas de Educação Musical1, Performance Musical, Antropo-

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1 Dentre eles, a co-autora deste artigo que atua no projeto desde 2006 e hoje está vinculada aoInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasilia (IFB) – Campus Planaltina, ondese encontra em fase de implantação um projeto de ensino de instrumento em grupo nos mes-mos moldes do aqui apresentado, estendendo o atendimento a jovens e adultos.

logia, Engenharia Elétrica e Ciência da Computação.Atualmente, o curso de extensão está vinculado a pesquisa de doutorado “A inclusãolúdico computacional da música por meio de jogos eletrônicos” do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Universidade de Brasília. A pesquisa propõe aanálise e produção de mídias interativas, com ênfase na relação da música e suas apli-cabilidades como objetos lúdico-musicais e de aprendizagem. Além disso, procuracompreender as relações da música e suas interfaces com outras áreas do conheci-mento das ciências humanas, sociais aplicadas e da educação. Nesse sentido, essa pes-quisa busca formalizar uma pesquisa-ação para a inclusão digital de comunidadesinfanto-juvenis por meio do gamearte2, nos quais a música tem função preponderantecomo fator de sensibilização entre os seres vivos e os computadores, aqui entendidoscomo parte da evolução do ser humano no sentido darwinista, assim como a hibri-dização das linguagens visual, sonora e textual.Além disso, essa pesquisa pretende sugerir possibilidades de métodos e técnicas parao aprendizado da música que considerem tanto o desenvolvimento integral das crian-ças quanto a incorporação das linguagens textuais, sonoras e imagéticas disponibili-zadas pelas tecnologias digitais e os novos espaços de diálogos, de participação e deatuação infantil. Considera-se que o meio tecnológico, por suas características pró-prias, permite soluções para que o indivíduo possa improvisar, fazer apreciações eanálises musicais, estabelecer relações e conexões, além de coordenar os recursos deque dispõe no momento e na situação que vivencia, de forma lúdica, sem perder afunção educacional.Neste artigo apresentaremos o histórico do projeto de extensão dentro da perspectivaexperimental da criação de ferramentas para o ensino da performance em grupo paracrianças, integrando as novas possibilidades pedagógicas que a mídia da atualidadeoferece aos contextos metodológicos específicos do ensino de música. Em seguida,descreveremos o arcabouço teórico-metodológico que tem conduzido a pesquisa den-tro do projeto. E, por último, os resultados parciais obtidos por meio dos recursostecnológicos que apóiam o desenvolvimento técnico, cognitivo, motor e da prática deconjunto no ensino do teclado em grupo.

Histórico do projeto de extensãoO curso de extensão Piano/Teclado para Crianças em Grupo foi criado em 2005 paraatender uma demanda da comunidade com a proposta de oportunizar o acesso à for-mação musical por meio do ensino de instrumentos em grupo. Seu objetivo foi de-

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2 “Gamearte” pode ser definida como um misto de arte e jogo eletrônico a fim de uma propostapoética interativa em concomitância com a evolução dos meios de comunicação e, conseqüen-temente, com o avanço cultural gerado por esses meios. Essa manifestação tem como caracte-rística interações complexas entre seres reais e virtuais nas quais o usuário é personalizadopor um avatar e se torna parte integrante da obra através da manipulação dos processos deimagem e som, fornecendo e transformando dinamicamente os dados, que se alteram e evo-luem (Laurentiz, Silvia. Enciclopédia do Itaú Cultural, 2009. “Game Art”. Acesso 23/04/2011).

senvolver o potencial humano da criança por meio dos aspectos afetivo, social, psi-comotor e cognitivo a partir de uma vivência musical rica e diversificada mediadapor jogos e brincadeiras. O que pretendemos com o projeto é lançar um olhar sobrea presença das tecnologias na atualidade, testar e analisar algumas das conseqüênciasimplicadas no seu uso para a aprendizagem da música. Nas aulas do projeto, as crianças participam de atividades nas quais a interação indi-vidual com o professor, os pais e as outras crianças promovem a criatividade e ima-ginação, valorizando as respostas de cada criança para o processo de construção doconhecimento musical. O laboratório onde o curso é ministrado conta com 10 tecla-dos Yamaha PSR 313, 2 teclados Yamaha 413, mesa de som de 12 canais com duascaixas amplificadas, TV LCD 32', fones de ouvido, home theater e aparelho de som. Aproposta do curso é utilizar os recursos computacionais multimídia disponíveis, paraviabilizar e potencializar o aprendizado musical das crianças. As aulas são realizadas coletivamente na presença dos pais ou responsáveis, com todosos teclados conectados a uma mesa de som. Os conteúdos musicais são ministradospelos professores com a utilização de vídeos tutoriais produzidos no próprio labora-tório do projeto e apresentados em um monitor de plasma de 40 polegadas. Esses tu-toriais possibilitam, além da reprodução do som em alta-fidelidade, a visualizaçãodos gestos, posição da mão, dedilhado, localização espacial no teclado, além de tornarpossível isolar ou repetir determinadas passagens do conteúdo a ser apreendido, fa-cilitando sua compreensão e estudo.As atividades propostas pelos vídeos são exercitadas presencialmente em sala e depoisencaminhadas aos pais utilizando-se três meios digitais: e-mail, Youtube3 e Clube doPiano para que os pais possam auxiliar e monitorar adequadamente o estudo de seusfilhos em casa. O Clube do Piano é uma rede social fechada na qual realizamos expe-riências musicais lúdicas, didáticas e pedagógicas, envolvendo pais, alunos e moni-tores. O acesso se dá por meio de uma senha individual digitada no endereçoeletrônico: . Esse clube auxilia o processo de interação tanto dos conteúdos musicaise dos vídeos tutoriais como da comunidade. Essa interação visa, de forma ainda in-cipiente, gerar a criação de interfaces com vários níveis de complexidade para o de-senvolvimento de habilidades afetivas, motoras, lúdicas, sensório-perceptivas ecognitivas que garantam a interação fluida da sensibilidade e inteligência humanasdiante da máquina (Santaella 2003).

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3 O canal do projeto piano para crianças do Youtube foi criado vinculado à conta gmail do pro-jeto. Os vídeos tutoriais produzidos pelos professores são enviados para o canal. A configuraçãode privacidade é ativada pela opção “vídeos não listados (qualquer pessoa com o link pode vi-sualizar)”. Depois que o vídeo foi disponibilizado no canal é gerado um link que enviamos pore-mail aos pais dos alunos. Só os usuários que possuem o link podem visualizar o conteúdodo vídeo. Esta é uma forma de garantir a privacidade e a segurança do material postado, poisem muitos casos eles envolvem imagens dos alunos. Estes vídeos estão organizados dentro docanal de acordo com as turmas para facilitar a sua localização e também como uma forma demantermos o histórico e a evolução dos alunos de cada turma.

O repertório é adaptado de canções infantis e trilhas sonoras de desenhos animadose filmes atualmente em cartaz, o qual é desmembrado em elementos rítmicos, har-mônicos e melódicos que são combinados para a construção dos arranjos. Essas com-binações levam em consideração a faixa etária, o nível de maturidade técnica ecoordenação psico-motora dos alunos envolvidos. A utilização destas ferramentasdigitais pretende ampliar os tempos e espaços de aprendizagem, potencializando osquinze encontros presenciais de quarenta e cinco minutos semestrais do curso, alémde permitir a integração das questões pedagógicas, didáticas e metodológicas do en-sino em grupo por meio de um atendimento individualizado e adaptado às diferentesformas de aprendizado de cada aluno. As atividades presenciais em sala visam prioritariamente desenvolver as habilidadesmusicais da prática instrumental em conjunto equalizando e homogeneizando as ha-bilidades musicais do grupo. As atividades virtuais priorizam o desenvolvimento in-dividual das questões técnicas e de performance do instrumento propriamente dito. A seguir apresentaremos a fundamentação teórico-metodológica que detalha os re-cursos tecnológicos que podem ser adaptados para atender principalmente a de-manda extraclasse do projeto de extensão. Tais recursos são utilizados de maneira apotencializar o aprendizado dos conteúdos ministrados em sala e dar suporte paraque os pais possam monitorar o aprendizado individual de seus filhos.

Fundamentação teórico-metodológicaO referencial teórico do projeto de extensão é apresentado em duas vertentes: a tec-nológica e a musical. A primeira abrange os sistemas colaborativos como as redes so-ciais e os jogos interativos e a segunda trata das inteligências múltiplas, da ludicidadeno âmbito do aprendizado musical; do universo criativo da criança; das práticas mu-sicais em grupo para o desenvolvimento de competências sociais e da autoaprendi-zagem mediada pela tecnologia. Como metodologia atrelada à vertente da pesquisadesse projeto, utilizamos uma abordagem qualitativa, baseada no construtivismo so-cial, aqui entendido como os significados subjetivos das experiências do pesquisadorque são negociados social e historicamente e formados a partir da interação com ou-tras pessoas por meio de normas históricas e culturais que operam na vida dos indi-víduos (Creswell 2010). Neste artigo trazemos resultados levantados a partir da coletade dados por meio de observações e gravações em vídeo de situações de ensino eaprendizagem na sala de aula. As análises do material foram feitas à luz do referencialteórico apresentado a seguir.As pesquisas nacionais sobre tecnologia e artes musicais na área da cognição, de modogeral, estabelecem uma conexão dos recursos tecnológicos com a composição e aná-lise musicais e a neurociência. Em alguns trabalhos nessa vertente, por exemplo, astemáticas destacam a relação das redes neurais artificiais e a música eletroacústica(Toffolo 2010); a interação entre computador e intérprete na criação de performancemusical (Bertissolo 2010); o desenvolvimento de sistemas computacionais interativos

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musicais para explorar a evolução da música (Gimenes 2010) e a análise musical pormeio de ferramentas computacionais que traduz a linguagem musical em matemática(Gentil-Nunes 2010). Constatamos, no entanto, a ausência de trabalhos nos anais doSimpósio de Cognição e Artes Musicais (SIMCAM) que estabeleçam uma relação datecnologia com o ensino de instrumento em grupo.Os seres humanos vêm se organizando em redes colaborativas desde o começo dostempos. Há muito que este tipo de organização permite que sejamos capazes de trans-formar o mundo ao nosso redor, criando conhecimento e cultura de maneira coletiva.No sistema de aprendizado da música em rede, os métodos e técnicas musicais espe-cíficos são os mesmos que os presenciais, o que muda são os meios de comunicaçãoutilizados e naturalmente as adaptações destes meios, métodos, técnicas e as possi-bilidades múltiplas que a tecnologia nos oferece. Mas o que pode significar neste con-texto projetos colaborativos? O que significa construir um aprendizado de umdeterminado conteúdo musical utilizando o modo colaborativo de produção envol-vendo a criança atendida, seus pais, os tutores, professores e a rede mundial de com-putadores? O melhor exemplo do funcionamento do sistema colaborativo em nosso caso está naexperiência dos grupos/turmas dentro da rede social Clube do Piano, onde os con-teúdos que produzimos especificamente para cada grupo/turma interagem com ou-tros produzidos por nossos aprendizes — via pais — bem como se conectam comoutros produzidos e postados na rede, previamente selecionados por nós e postadosem nosso Clube do Piano, um microcosmo cibernético fechado, no qual todo o con-teúdo é selecionado dentro de uma matriz pedagógico-musical específica, com o ob-jetivo de construir uma proposta integrada de ensino — aprendizagem de teclado emgrupo.A construção dessa proposta de ensino e aprendizagem utilizando música e mídiasinterativas envolve os pressupostos pedagógico-musicais e os aspectos lúdicos e cog-nitivos nos processos de aprendizagem infantil. Outro aspecto discutido diz respeitoao uso adequado dos meios tecnológicos disponíveis e como adaptá-los aos objetivosa serem alcançados no projeto. Neste sentido, precisamos compreender o conceito derede social e a maneira como o homem interage com a tecnologia como uma das for-mas de representação dos relacionamentos afetivos e/ou profissionais dos seres entresi ou entre seus agrupamentos de interesses mútuos. Ela é responsável pelo compar-tilhamento de idéias entre pessoas que possuam interesses e objetivo em comum etambém valores a serem compartilhados. Segundo Parente (2007) as características das redes sociais podem ser aplicadas aosorganismos, às tecnologias, aos dispositivos, mas também à subjetividade. Somosuma rede de redes (multiplicidade), cada rede remetendo a outras redes de naturezadiversa, em um processo auto-referente. O ciberespaço deve ser entendido comosendo apenas o mais novo espaço de jogos da humanidade, que inaugura uma novaarquitetura, a arquitetura da informação. Cabe aí a pergunta do porque transformaro mundo em informação? Porque a informação permite resolver de forma prática —

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por meio de operações de seleção, de extração, de redução e de inscrição — o pro-blema da presença e da ausência em um lugar e suas formas de interação apontampara o que deve ser produzido para que a ação a distância sobre ela seja mais eficaz.Outro aspecto importante diz respeito à convergência de mídias anteriormente se-paradas e nas relações que as mesmas ajudam a construir com o usuário. Esta con-vergência diz respeito à ligação sem precedentes da imagem fotográfica fixa commídias que antes lhe eram distintas: áudio digital, vídeo, gráficos, animação e outrasespécies de dados nas novas formas de multimídias interativas. A estas mídias digitais,com suas formas de multimídia interativa continuamente renovada por suas intera-ções e transformações, celebradas por sua capacidade de gerar sentidos voláteis epolissêmicos envolvendo a participação efetiva do usuário que Santaella (2003) chamade hibridismo digital. Neste contexto, através de uma destas novas formas de multi-mídias interativas, a rede social clube do piano, disseminamos os aspectos técnicos -musicais específicos, utilizando a criatividade, a ludicidade, ressignificando conteúdos,transformando as informações, adaptando-as ao universo infantil, para desta formaviabilizar, dentro do conceito ensinando música musicalmente de Swanick, a apreen-são do conteúdo musical pelo nosso usuário, no caso as crianças do curso de extensãoPiano/Teclado em grupo. Para Deleuze e Guattari (2004), pensar além do ser, do corpo e do autor nos remeteà teoria do rizoma. Esse rizoma se regenera continuamente por suas interações etransformações. A subjetividade é como a cognição, o advento, a emergência de umafeto e de um mundo a partir de suas ações no mundo. Pensamos rizomas. Não sónas raízes que se bifurcam, crescem aleatoriamente sem comando e controle. O ri-zoma nos mostra o comportamento das redes, onde a trama de nós não mais identi-fica o ser, o corpo, o autor. Somos um produto rizomático. Multidões dentro de todosnós. Dentro e fora, fora e dentro. O corpo não tem limite. Distende-se para o infinitoe para o além. Para esses autores, as relações corpo-máquina e todas as relações quederivam dessas aproximações nos fazem entender que não mais importa diferenciaras partes. O ser natural, aquele desprovido dos males tecnológicos, jamais existiu. Oumelhor, não existe desde que as funções do homem se distendem na relação com oambiente. Eco (1970) analisou os meios áudios-visuais como instrumentos de informação mu-sical, aos quais as relações sociais se juntam para fazer funcionar o sistema informalde educação. Neste sentido, assumindo a idéia de Santaella (2003) de que a tecnologiafaz parte do corpo humano, não só nossos ouvidos mas também nossos corpos sãoampliados com a tecnociência. As novas formas de mediação tecnológica permitemao professor a onipresença enquanto emissor do conteúdo a ser apreendido. Os pro-cessos de aprendizagem musical freqüentemente dependem da repetição/imitaçãocontínua de exercícios e a tecnologia assume aqui ainda a função de tutor, uma vezque a tecnologia da transmissão de sinais ainda não permite que a ação ocorra emtempo real, o que significaria a efetiva ampliação de nossos corpos por meio da tec-nociência.

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No que diz respeito ao campo musical, a proposta de utilizar jogos e brincadeiras, defundir som e imagem, de adaptar trilhas sonoras de desenhos e filmes utilizando pro-jeções multimídia nas apresentações finais das crianças como recurso pedagógicoentre outros, parte do pressuposto da importância do lúdico na educação e na apreen-são de conteúdos a serem ministrados ao público infantil. O olhar para o fenômeno lúdico como algo inerente ao ser vivo e não apenas aos sereshumanos presentes nas mais recentes descobertas da neurociência, como na teoriadas múltiplas inteligências de Howard Gardner, apontam que a aprendizagem não selimita ao campo cognitivo, mas envolve também os processos afetivos e afirmam quea interação sensorial impulsiona os pensamentos, os sentimentos, as emoções e assensações no decorrer de nossa existência (Maturana e Verden-Zoller, 2004). As implicações educacionais da teoria das inteligências múltiplas, sob a visão de Gard-ner (1994) estariam na possibilidade de identificar o perfil intelectual de um indivíduoe direcionar seu aprendizado no sentido de aumentar suas oportunidades. As capa-cidades relacionadas a cada uma das inteligências poderiam ser usadas como meiospara adquirir informações, mesmo que estas informações sejam destinadas a outrascapacidades. Por exemplo, se aprendemos a calcular, mesmo que o meio de trans-missão seja de natureza lingüística, o conhecimento a ser adquirido é matemático.Assim, é possível afirmar que “nossas várias competências intelectuais podem tantoservir como meios quanto como mensagens, como forma e como conteúdo” (Gardner1994, 255).Partindo deste pressuposto podemos sugerir que se formularmos propostas de jogose outros recursos de aprendizado pela internet que utilizam noções musicais, o meiode transmissão é o tecnológico, que vai utilizar todos os recursos (vídeos – aula, MIDI,vídeo-games entre outros) disponíveis para viabilizar a transmissão da mensagem,mas o conhecimento a ser adquirido é musical.Segundo o Internacional Council for Childern’s Pay (ICCP)4, os brinquedos/jogospodem ser classificados em três categorias. As classificações filogenéticas analisam osbrinquedos em função da evolução da humanidade, evolução esta reproduzida pelacriança em seus jogos; as classificações psicológicas se fundamentam na explicaçãodo desenvolvimento da criança e as classificações pedagógicas distribuem os brin-quedos segundo diferentes aspectos e opções dos métodos educativos. Estes podemainda ser analisados quanto ao seu valor funcional, experimental, de estruturação ede relação, que estabelecem suas qualidades intrínsecas, dizem respeito ao que acriança pode fazer ou aprender, abrangem o desenvolvimento da personalidade e daafetividade da criança e facilitam o estabelecimento de relações com outras criançase com os adultos. Outros estudos como os de Machado (2004), Meifren (1993), Negrini (2001; 1998),Lebovici e Diatkine (1985) e Gouvêa (1975), correlacionam a ludicidade como ine-rente aos seres vivos e como substrato de promoção intrapessoal e interpessoal, arti-

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4 O Internacional Council for Childern’s Pay sistematiza, classifica e qualifica os tipos de jogos.

culando corpo/mente como uma unidade, avançando na concepção do lúdico não sócomo prática educativa essencial no período da infância bem como na formação ecapacitação profissional do docente. Neste contexto

considera-se o desenvolvimento integral das crianças, destacando-se a importân-cia de se incorporar as linguagens textuais, sonoras e imagéticas, disponibilizadaspelas tecnologias digitais, como novas oportunidades de diálogos, de participaçãoe de atuação infantil. Destaca-se, ainda, a importância de se entrelaçar o fazer e oaprender em propostas educacionais; pois é diante de situações que requerem suaatuação que o indivíduo pode improvisar, fazer apreciações, análises, estabelecerrelações e conexões, bem como coordenar os recursos de que dispõe no momentoe na situação que vivencia. Enfatiza-se ao final que, para tornar a aprendizagem ea atuação das crianças mais interessantes em contextos educacionais, deve-se fa-vorecer um trabalho baseado nas idéias que elas desenvolvem no e com o uso dosrecursos tecnológicos (Martins, 2003, p. 8).

A proposta digital interativa lúdico-pedagógica do programa de extensão funda-menta-se no conceito música como cultura (Swanwick, 1999) em que toda músicanasce num contexto social, aqui entendido como microcosmo da rede social que dásuporte ao curso piano/teclado em grupo e todo o processo musical acontece ao longoe/ou intercalando-se com outras atividades culturais, talvez com um grupo de paisatuando como agentes, ou talvez assegurando-nos da continuidade e do valor de suasheranças culturais. A proposta pedagógico-musical do curso fundamenta-se no con-ceito “ensinando música musicalmente” de Swanwick (1977), na qual o fazer e oaprender se fundem no fazendo para aprender e onde os conteúdos são inseridosatravés de vivências lúdico-musicais baseadas no imaginário infantil, através de con-teúdos programático-musicais referenciados no universo presente em seu cotidianoe através do uso de metáforas musicais. Esses jogos de improvisação permitem acriança internalizar as competências necessárias ao desenvolvimento da performancesem a necessidade de verbalização dos itens teóricos. A proposta da ênfase presencialna prática de conjunto fundamenta-se no trabalho de Bastien (2009) que discutesobre a importância das práticas musicais para o desenvolvimento das competênciassociais fundamentais na formação do indivíduo. Para Gohn (2002), o problema daautoaprendizagem musical por meio da tecnologia está na falta de monitoramentodo aprendiz por um professor.

Algumas consideraçõesÀ luz do referencial teórico e da análise dos dados coletados nas gravações em vídeosdas situações de ensino e aprendizagem presenciais do projeto de extensão conside-ramos alguns resultados relacionados ao desenvolvimento psicomotor, à postura cor-poral e a posição de mãos e dedos no teclado, à acuidade na percepção dos elementosrítmicos e melódicos, à precisão de tocar em uníssono as melodias e rítmicas estu-dadas bem como a realização dos arranjos com precisão e sincronicidade. Percebemos enormes possibilidades de interação e troca nos processos mediados pelatecnologia, pois o meio pode disponibilizar professores em tempo integral para seus

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aprendizes, uma vez que os vídeos — tutorias postados na rede social “Clube do Piano”— permitem a observação e o estudo do material através da repetição/imitação. Oprocesso de registro audiovisual e a postagem do resultado da prática do aprendizrealizado pelos pais na rede viabilizam a possibilidade de comparação com os vídeostutoriais e de monitoramento online da prática correta pelo professor, ainda que nãoem tempo real, potencializando o aprendizado das crianças em suas casas. A experiência adquirida no projeto mostrou que a interação entre pais, alunos, pro-fessores e monitores e as adequações e adaptações tecnológicas realizadas produzemresultados concretos de ensino-aprendizagem da performance em grupo. O processotorna-se eficaz, do ponto de vista da proposta do projeto, quando há apreensão doconteúdo técnico-musical, aperfeiçoamento da percepção e coordenação dos elemen-tos utilizados para viabilizar a prática instrumental em conjunto. A utilização dos re-cursos multimídia, bem como as possíveis formas de disseminação e apreensão dosconteúdos, levanta questões de cunho tecnológico específicas para o aprendizado daperfomance — via rede — ainda passíveis de soluções tais como a criação de sistemade distribuição de conteúdo multimídia online. O uso efetivo de uma rede social como atividade de inclusão centrada em habilidadesde percepção musical, faz-se necessário distribuir material multimídia (vídeos, áudio,texto e outros materiais). O uso de uma rede pública de distribuição de conteúdo(como o YouTube, por exemplo) é ineficiente e traz preocupações quanto a segurançaquando se imagina o envolvimento de crianças e adolescentes. O uso do MOODLE foidescartado pela dificuldade de adaptação do sistema a proposta do projeto. Buscamos uma solução para distribuição facilitada em rede privada que permita oaprimoramento da transmissão de sinais em tempo real com múltiplos acessos si-multâneos e com possibilidade de visualização e audição em diferentes canais simul-taneamente, principalmente, sem o delay. A visualização dos movimentos da mão no teclado sob todos os ângulos em temporeal e com a possibilidade de visualização do movimento em diferentes velocidadesé relevante quando pensamos na substituição presencial, ainda que parcial, da funçãodo professor. Ainda o desenvolvimento de jogos educativos centrados na percepçãoe na alfabetização musicais utilizando metáforas musicais adaptadas ao universo in-fantil. Para efetivar o uso das potencialidades de múltiplos teclados digitais em aulas virtuaisem grupo é importante que novas formas de interação — em tempo real — sejam dis-ponibilizadas para todo tipo de hardware disponível pelo usuário. Assim, é importanteprover uma adaptação das interfaces geralmente disponíveis em ambientes de com-putação (teclado, mouse, microfone, webcam) e buscar por alternativas originais, apro-veitando novas tecnologias de comunicação sem fio e de captação e processamentode imagens. Muitas destas soluções ainda estão em fase de pesquisa e o imaginário dessas possi-bilidades está lançado bem como os problemas levantados através da prática cotidiana

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em sala de aula. Falta agora nos conhecermos e reconhecermos em outros níveis, ex-perimentando através deste projeto de extensão as possibilidades de aprofundarmosnossas próprias necessidades desenhando para tal nossas próprias conexões.

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Ópera no Cinema: o que muda na experiência auditiva?Anselmo Guerra

[email protected] Música – Universidade Federal de Goiás

ResumoDentro do contexto de nossa pesquisa na percepção da espacialização sonora, foca-mos aqui um recorte onde avaliamos uma modalidade emergente de apreciação mu-sical: apresentação de obras operísticas em salas de cinema. Nosso objetivo éverificar quais são as mudanças da percepção do espaço sonoro impostas pelos meiostecnológicos envolvidos. Usamos como ponto de partida a fundamentação teóricados modelos básicos de localização sonora binaural, onde apresentamos sumaria-mente os modelos IIT , ITD e o Modelo Espectral. Descrevemos os diferentes sistemasde codificação de som 3D, a aplicação musical desses sistemas e os requisitos básicospara monitorização multicanal dentro dos padrões estabelecidos pela indústria cine-matográfica. Concluindo, realizamos uma breve discussão sobre questões de percep-ção encontrados na utilização destes sistemas concebidos para o entretenimentocinematográfico ao utilizá-los para a apreciação musical.

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Palavras-chavepercepção espacial do som – sistemas de som 3D – música e cinema.

IntroduçãoComo dita o senso comum, a apreciação artística de um gênero musical em sua formaoriginal é única e insubstituível. Nada como a fruição ao vivo, seja um solista, umgrupo de câmara, uma orquestra ou um espetáculo de ópera. Entretanto, acompa-nhamos há pouco tempo o sucesso de uma modalidade emergente: a apresentaçãode ópera em salas de cinema. Um exemplo disso foi a grande repercussão nacionalda versão cinematográfica da ópera Carmen de Bizet apresentada em salas especiais,aquelas preparadas para filmes em três dimensões por meio do uso de óculos especiais,produzida na tradicional Royal Opera House de Londres. Estar lá ao vivo é uma ex-periência limitada a poucos privilegiados, geográfica e economicamente.Certamente o fenômeno merece atenção em várias abordagens, incluindo as questõessociológicas, antropológicas e econômicas. No entanto, neste artigo vamos focar aquestão da percepção do espaço sonoro, seus modelos de localização sonora e os mé-todos desenvolvidos para a reconstituição de um ambiente sonoro em um registrofonográfico voltado a salas especiais de cinema.Aqui, nos concentramos em verificar quais são as mudanças da percepção do espaçosonoro impostas pelos meios tecnológicos envolvidos, os quais vão influenciar o su-cesso ou o fracasso na tentativa de dar a sensação de naturalidade e imersão sonoramais próximos à experiência ao vivo. Curioso que o destaque da mídia se limita aqualificar a sala especial como a projeção em imagens 3D, quando, na realidade, nãopode haver dissociação com o ambiente sonoro, ou seja, esta sala é necessariamenteuma sala de projeção de sons em 3D também.Para tanto, partimos da fundamentação teórica dos modelos básicos de localizaçãosonora binaural, onde apresentamos sumariamente os modelos Interaural IntensityDifference – IIT , Interaural Time Difference – ITD e o Modelo Espectral, que tentamdemonstrar como construímos no cérebro a localização e o movimento de fontes so-noras.A seguir, apresentamos os principais sistemas de codificação de som 3D, a aplicaçãomusical desses sistemas e os requisitos básicos para monitorização multicanal dentrodos padrões estabelecidos pela indústria cinematográfica. Observamos da perspectivacronológica o aumento crescente da sofisticação desses sistemas à procura da sensaçãode imersão sonora associada à cena.Concluindo, realizamos uma breve discussão sobre questões de percepção encontra-dos na utilização destes sistemas concebidos para o entretenimento cinematográficoao utilizá-los para a apreciação musical.

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Modelos básicos de localização SonoraAs diferenças interaurais são recursos que usamos para identificação de fontes sonorasno plano horizontal. Nosso sistema auditivo é capaz de perceber diferenças interauraisde fase, envoltória de amplitude e intensidade (Rossing 1990, 75-76).

1. Modelo IIDEm 1876, Lord Rayleigh realizou experimentos para determinar nossa habilidade delocalizar sons de diferentes freqüências, verificando que as freqüências graves sãomais difíceis de localizar do que as agudas. O modelo denominado IID (Interaural In-tensity Difference), explica que sons que chegam de um lado da cabeça produzem umsom mais intenso em um ouvido do que no outro. Quando se trata de freqüênciasagudas, Rayleigh explica que a cabeça produz uma “sombra” (barreira) fazendo comque o som chegue com uma intensidade menor ao outro ouvido. Mas o mesmo nãoocorre com freqüências graves porque os comprimentos de onda são grandes o sufi-ciente para difratar em tomo da cabeça.

2. Modelo ITDPosteriormente, em 1907, Rayleigh realizou um outro experimento para verificar alocalização de freqüências graves. Ele descobriu que um som chega em um ouvidoantes do outro, resultando uma diferença de fase entre os dois ouvidos. De fato,quando a freqüência está abaixo de 1 kHz, a localização depende das diferenças defase e tempo. Se a fonte é maior que aproximadamente 1.5 MHz (Sol 6) a diferençainteraural de intensidade será usada, pois o comprimento de onda será menor que odiâmetro da cabeça A esse modelo denominou-se ITD (Interaural Time Difference).Então, IID e ITD são considerados modelos complementares de localização de fontesonora.

3. Modelo EspectralApesar de IID e ITD serem os mais importantes meios de localização de fontes sonoras,ocorrem sensações ambíguas no plano médio. Não nos baseamos somente em IID eITD para identificar, por exemplo, a diferença entre o som direto em frente (O grauazimute) e direto por trás (180 graus azimute). O “Cone de Confusão” descreve regiõesonde os estímulos produzem idênticos valores de IID e ITD. Nesses casos o modeloespectral provê a eliminação da ambigüidade.As orelhas são responsáveis pelas alterações espectrais das ondas sonoras que chegam.Elas agem como filtros direcionais, impondo mudanças de amplitude e fase em funçãoda localização da fonte sonora. Grande parte das alterações espectrais são causadaspelo delay de tempo (0-300 ms) devido à arquitetura complexa da orelha. Por causada construção assimétrica das orelhas, os sons provenientes de localizações diferentesterão mudanças espectrais impostas. Essas modificações são interpretadas como in-formação de espacialização (MacIntyre e Breder 2000).

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Espacialização SonoraNa evolução da tecnologia musical encontramos a busca por um melhor realismo dereprodução espacial sonoro/musical. Da criação dos primeiros dispositivos de repro-dução monaural (1877) , passando pela criação do sistema estéreo (década de 1930)e chegando à reprodução multicanal (década de 1970) chegamos aos dias de hojecom várias opções técnicas. A origem dos sistemas 3D está no áudio para cinema(Castro 2004):

193?- Bell Labs LCR1941 - Studio Disney LCRS195? - Cinemascope LCRS197? - Quadraphonic Lf Rf Lr Rr197? - Cinerama L Lc C Rc R Ls Rs1979 - Dolby Stereo LCRS1992 - Dolby Digital LCR LsRs+LFE1993 - DTS LCR LsRs+LFE1994 – SDDS L Lc C Rc R Ls Rs+LFE

Onde:

L = left; R = right; C = center;LFE = low frequency effectsS = surround; Ls = left surround; Rs = right surround

1. Sistemas 3DO sistema Dolby Stereo usa as duas pistas óticas do filme para codificar quatro canaisde áudio. No mercado doméstico foi lançado com o nome Dolby Surround. Obtevegrande sucesso porque utiliza a mixagem estéreo em um conversor externo, propor-cionando compatibilidade com os projetores já existentes.Para proporcionar melhor dinâmica e separação de canais criou-se o Dolby ProLogicque utiliza um circuito capaz de detectar um sinal idêntico em ambos canais e utilizaressa informação para separar os canais Central e Surround, que se diferenciam pordiferença de fase. Em seguida, foi criada uma versão melhorada chamada Dolby Pro-Logic II (1991).Dolby Digital surgiu em 1992, utilizando um algoritmo de codificação perceptual paracodificar cinco canais discretos em audio full range mais um de banda limitada, cha-mado

Low Frequency Effects (LFE), em uma única pista de informação digital. A informaçãodigital é posicionada fora da pista ótica, entre as perfurações do filme, proporcionandocompatibilidade com os sistemas analógicos. LFE e sub-woofer não são a mesma coisa— o Dolby ProLogic possui sub-woofer, mas não conta com um canal discreto paraguardar a informação. O sistema Dolby Digital e seu sistema de codificação AC-3 se

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tomaram o padrão da indústria cinematográfica, e outros sistemas de áudio multica-nal: DVD, HDTV, DB. Mas foram encontradas limitações para a configuração de canaisdenominada 5.1, que forçou aos fabricantes a incorporar a codificação de um canalextra (central traseiro), introduzindo uma informação adicional junto com os dadosde áudio (Dolby Laboratories 2005 e 2011).O DTS (Digital Theater Sound 2005) surgiu em 1993. O áudio digital fica separado dapelícula, armazenado em CD-ROM, e a sincronização entre eles é feita através de umapista com time code, posicionada entre a trilha sonora ótica e os quadros do filme. Ataxa de transferência de dados é 1.5 Mb/s (24 bits e 96Khz), teoricamente superandoem qualidade o sistema Dolby Digital.Criado em 1994, o sistema mais recente no mercado é o SDDS (Sony Dynamic DigitalSound 2005). Possui um sistema de oito pistas, podendo receber mixagens LCRS, 5.1ou 6.1 canais. Os dados do sistema estão no próprio filme, como no Dolby Digital.Existem duas pistas digitais, uma em cada extremo do filme, entre as perfurações ea borda.O sistema THX foi desenvolvido em 1982 pelo técnico da Lucas Film Tornlinson Hol-man (de onde vem a sigla Tornlinson Holman eXperiment). Não é um sistema de co-dificação, mas um sistema de filtros e circuitos ativos que reproduzem na sala demixagem as características do campo sonoro de uma sala de cinema de verdade.

2. Produções musicais em sistemas 3DAs produções musicais que utilizam sistema multicanal utilizam dois princípios bá-sicos de posicionamento do sinal dentro do campo sonoro multicanal: (a) direto/am-biente, que distribui todas as fontes de sinal nos canais frontais (LCR), usando oscanais surround apenas para o ambiente e efeitos especiais, mantendo a atenção noplano frontal; (b) direto/direto, onde qualquer instrumento pode ser colocado emqualquer posição no campo sonoro, permitindo resultados criativos, porém, correndoo risco de alteração da reprodução em relação à mixagem original.

3. Standards de monitorizaçãoEncontramos dois tipos básicos de monitorização de áudio multicanal , dependendodo tipo de aplicação — reprodução doméstica ou em cinemas. A reprodução musicalem formato multicanal possui características distintas do cinema. Em geral, como ossistemas de reprodução multicanal utilizam algum tipo de codificação perceptual, amixagem deve observar a relação entre sinal direto e codificado.O padrão ITU-775 (Castro 2004, 8-9) compreende as recomendações de monitoriza-ção para reprodução doméstica - os auto-falantes devem ser do mesmo modelo e es-pecificação, distribuídos em um círculo eqüidistante da posição do ouvinte. Osângulos dos auto-falantes da direita e esquerda devem estar a 30 graus a partir docentro, e os surround, a 110 graus do centro, com 5 graus de tolerância. Para a moni-torização para cinema, o ângulo dos auto-falantes de surround muda para 120 grausdo centro, e adiciona-se um par de monitores colocados atrás do ouvinte para simularo efeito da série de monitores surround que existem comumente em cinemas. O canal

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dedicado ao subwoofer deve receber o sinal dos outros canais, passando um filtropassa-baixas (LPF). O standard THX possui um sistema de ajuste que estipula umafreqüência de corte de 8OHz e um ganho de 10 dB por banda de ⅓ de oitava.Portanto, existe uma estreita relação entre a disposição dos monitores de som, suaquantidade, qualidade e disposição angular em torno do profissional de mixagem,para que a experiência que ele tem como ouvinte seja a mais próxima possível da salade reprodução. Esta, por sua vez, também deve respeitar em seu projeto a distribuiçãocorreta determinada pelo padrão adotado, de modo que o ouvinte não perca a espa-cialização programada através da distribuição dos canais de áudio pelo conjunto dealto-falantes.

ConclusõesNeste artigo focalizamos a questão da percepção do espaço sonoro, seus modelos delocalização sonora e os métodos desenvolvidos para a reconstituição de um ambientesonoro em um registro fonográfico voltado a salas especiais de cinema. Assim, po-demos confrontar os modelos de diferença interaural de intensidade (IID), de dife-rença de fase (ITD) e o Modelo Espectral, relacionando-os com os métodos deprojeção sonora desenvolvidos ao longo da evolução tecnológica, especificamente odesenvolvimento de sistemas de projeção sonora.Assim, vemos como a crescente complexidade dos sistemas utiliza nossos processossensoriais de audição para proporcionar a percepção de localização de fontes sonoras.No caso do cinema, a questão é mais comprometedora, uma vez que a localização dafonte precisa casar com a informação visual.Historicamente estamos acostumados às limitações dos registros sonoros de acordocom sua mídia. Os apreciadores da música de concerto sabem da grande diferençaentre a experiência de ouvir uma orquestra ao vivo, em uma sala de concerto ade-quada, em relação a ouvir o mesmo evento em um LP ou CD. Entendemos que ali na-quele suporte está registrado apenas uma versão reduzida do fenômeno sonoro.A situação é mais delicada no caso específico da ópera, pois o elemento cênico é parteintegrante da obra. Mesmo as mídias de vídeo mostram-se insuficientes para captaro evento em todos seus parâmetros. As versões em VHS podem proporcionar apenasdois canais de áudio, o que satisfaz somente de maneira parcial as formas de percep-ção de espaço. Já os registros em DVD incorporaram à imagem a possibilidade de pro-jeção multicanal desde que o ouvinte disponha de um sistema de Home Theater,porém, sabendo-se agora que o resultado só seria satisfatório dependendo da quali-dade do equipamento, do isolamento acústico e da correta disposição das caixas desom.É nessa questão que as salas especiais de cinema levam vantagem em relação aos sis-temas domésticos, ao dispor de equipamentos mais sofisticados e ambiente arquite-tônico próprio. Além disso, o próprio ritual social de ir ao cinema é mais próximo daOpera House do que ficarmos em nossa sala de estar.

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Entretanto, não significa que esta é a única solução para obtermos uma imersão so-nora em 3D. Encontramos resultados bastantes satisfatórios na criação de espaçossonoros virtuais utilizando algoritmos desenvolvidos por Eli Breder e David Maclntyre(2000) implementando em Csound (Boulanger 2000) o processo de filtragem cha-mado de Head Related Transfer Function (HRTF) baseado no Modelo Espectral. Assim,como a tecnologia atual de imagem condiciona a experiência ao uso de óculos espe-ciais, o sistema binaural surround só é eficaz com o uso de fones de ouvido, ou o po-sicionamento exato do ouvinte entre duas caixas acústicas.Colhendo depoimentos sobre a experiência de assistir ópera no cinema, podemos ob-servar como o uso do novo meio pode trazer experiências que eram difíceis ou mesmoimpossíveis na sua apreciação original ao vivo. Voltando ao exemplo da ópera Carmen,apresentada em nossas salas especiais, o espetáculo inclui cenas de bastidores mos-trando a preparação de cantores e músicos da orquestra, como descreve Rafael Cruz(2011):

“O filme começa um pouco antes do início do espetáculo, onde vemos os atoresse preparando nos bastidores. Mas é tudo muito rápido. É uma espécie de prepa-ração. Depois disso eles se encaminham para o tablado, ainda com as cortinas cer-radas, e a imagem passa para a orquestra, que dá início a todo o espetáculo.Falando em orquestra, lembrei do som. É preciso dizer que o áudio é maravilhoso!A orquestra tocando ao fundo, os atores cantando, os ruídos de cena, tudo é tãonítido e sensível que nos aproxima muito da realidade de estar vendo ao vivo.Nunca vi uma qualidade sonora tão perfeita e envolvente como esta. Se há umponto alto na parte técnica do filme, certamente é o áudio.”

Interessante podermos finalmente ouvir de um cinéfilo o reconhecimento da impor-tância da qualidade sonora e de seu alto grau de imersão. Entretanto, na continuidadede seu relato, mesmo com a intenção de enaltecer o movimento das câmeras, nosatentamos para os pontos fracos do meio:

“Mas e a câmera? Como se comportou? Eis aí um fator fundamental para o sucessoou fracasso desta nova experiência: a câmera. Ela deveria simular nossos olhos dedentro da platéia (que existe e reage às cenas mais envolventes). Achei interessantecomo ela se posicionou em todo o espetáculo. Não tivemos uma câmera estática,como nos filmes do início da história do cinema. Mas também não foi frenética.Ela foi suave e parecia adivinhar para onde queríamos olhar. Em boa parte dofilme, ela consegue contemplar a totalidade do espaço de mise-en-scene, no entanto,na maior discrição, estávamos vendo um plano próximo de Carmen a cantar dra-maticamente, um suave movimento acompanhando a movimentação dos muitosatores ou simplesmente aproximando ao nível do tablado para nos sentirmos aolado de Carmen e Don José no último ato.”

Mesmo considerando que a direção de câmeras tenha sido magistral, o que fica pa-tente é que não é possível outra leitura de cena a não ser aquela que está cristalizadana filmagem. Ou seja, existe alguém que nos está impondo sua maneira particular dever e acompanhar a cena. Certamente, nem passa pela mente do cinéfilo que o mesmopode ocorrer com a sonorização, ou seja, especular que o som gravado fosse mais

“duro” em relação à nossa capacidade de ouvido seletivo, à nossa forma particular de

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perceber o som. Entretanto, nesse momento entramos numa temática que extrapolao recorte a que esse artigo se propôs, sendo assim, motivo para próximas pesquisas.

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Em direção a uma fenomenologia da composição de música gravada

Luciano de Souza [email protected]

Departamento de Música – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

ResumoO presente trabalho é uma investigação a respeito do processo composicional de mú-sica gravada. Buscou-se, através de reflexão, identificar e descrever os momentos doprocesso de tomada de decisões que ligam as composições à gravação, de modo quetorne o conteúdo técnico e estético da gravação também conteúdo composicional. Oobjeto composicional final deste trabalho é um disco, tendo este termo o sentidotanto de objeto físico como o sentido conceitual de agrupamento de composições. Autilização da fenomenologia como abordagem teórica da reflexão permitiu a identi-ficação de duas situações distintas, “composição abstrata” e “estúdio”, com processosmentais específicos que se ligam à stream of consciousness do compositor no pro-cesso de concretização em realidade do objeto musical sônico-temporal. O que é apre-sentado aqui é um recorte do trabalho maior. O foco foi colocado na análise ediscussão dos processos mentais. A discussão técnica e estética das composições pro-priamente dita fica além do escopo deste texto específico.

Palavras-chavecomposição – fenomenologia – música gravada

IntroduçãoDurante a preparação de um disco individual de composições, escrevi uma peça paratrês pianos. Convidei uma pianista conhecida para ser uma das intérpretes nesta gra-vação e, convite aceito, pusemo-nos a conversar sobre os resultados pretendidos. Eupretendia uma unidade sonora entre os três pianos, demandando dos intérpretes umesforço de uniformização da performance e uma escolha de instrumentos sem muitasdiscrepâncias timbrísticas. Durante a conversa, em minha mente a peça passou porduas transformações. A primeira transformação foi de peça para três pianos parapeça para piano a seis mãos, eliminando variedade de instrumentos. A segunda trans-formação foi de peça a seis mãos para peça para um piano e três vezes o mesmo pia-nista, eliminando as diferenças de performance entre os intérpretes. Esta segundatransformação colocava a peça em um território de impossibilidades. É evidente quetal performance não é possível ao vivo e a combinação de um intérprete e suas per-formances gravadas também não era o que se pretendia. O que não demorou a ficarclaro é que a peça que eu escrevera só tinha uma possível realização. Esta composiçãosó poderia existir do modo como fora planejada se existisse como gravação, onde omesmo intérprete tocaria três vezes, performances que seriam superpostas gerandoa performance final da peça.

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Projetar e antecipar a gravação durante a composição não era para mim novidade.Realizar versões alternativas, para palco e gravação, de uma mesmo obra também erauma prática comum no meu trabalho. O sabor de novidade daquela reflexão foi per-ceber que o processo composicional daquela composição fora em tal medida per-meado pela gravação que, mesmo aparentemente sem exigir nenhum recursoeletrônico para a execução, a peça habitava inexoravelmente o ambiente da músicagravada. As reflexões posteriores correram na direção de perceber como e em quemomento esta permeação do processo composicional pela gravação ocorre. Quais se-riam as decisões que determinam que uma composição seja “música gravada”? O presente trabalho é uma investigação a respeito do processo composicional de mú-sica gravada. Buscou-se, através de reflexão, identificar e descrever os momentos doprocesso de tomada de decisões que ligam as composições à gravação, de modo quetorne o conteúdo técnico e estético da gravação também conteúdo composicional. Foidecidido inicialmente que o foco principal do trabalho recairia sobre composiçõesque se enquadrassem no modelo de canção urbana, conforme Chaves (2006). Numaposterior elaboração desta idéia, foi definido que além de ter este trabalho como ob-jeto a composição de um conjunto de peças que se enquadrassem no modelo de can-ção urbana, deveriam estas peças formar um todo integrado, configurando umaunidade que foi chamada de disco. Definem-se, deste modo, dois planos composicio-nais: as canções autônomas e independentes e a integração das canções em uma meta-composição, o disco. A existência dois planos composicionais distintos masinterligados revelou-se um condicionador de primeira importância no processo detomada de decisões. Ao lidar com os esboços iniciais, e mesmo no processo de seleçãodos esboços que seriam aproveitados, o resultado sonoro final era antecipado e ava-liado, considerando-se o contexto imediato da peça onde seria utilizado e o contextoda meta-composição onde a peça seria inserida. Deste modo, houve casos em queantes de uma peça individual ser concluída já havia idéias de inserção desta peça emuma seqüência no disco. O processo de meta-composição levava em conta a anteci-pação da conclusão dos processos composicionais isolados. A prática de observaçãoe reflexão a respeito das dinâmicas mentais envolvidas nesta feitura de um objetocomplexo permitiu um enriquecimento da experiência e um aprofundamento dasquestões fenomenológicas colocadas em pauta, tornando-se um ponto importantedo trabalho.Quando do início do processo composicional que é objeto deste trabalho verificou-se a presença de duas situações muito específicas e delimitadas que se alternavam.Uma, denominada “composição abstrata”, englobava os processos de seleção e elabo-ração de materiais, organização inicial da forma e elaboração das partituras. A outrasituação, denominada “estúdio”, englobava os processos de concretização em reali-dade sonora que ocorriam exclusivamente no ambiente computacional; como, porexemplo, geração de timbres através de síntese, seleção e manipulação de amostrassonoras utilizando samplers, organização dos materiais musicais utilizando seqüen-ciadores e decisões a respeito da performance e gravação dos instrumentos reais, in-

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cluindo considerações e decisões a respeito de processos como microfonação dos ins-trumentos, ambiência da sala e definições gerais ou específicas de performance. Oprocesso composicional apresentou como uma de suas características a alternânciaconstante entre uma e outra situação, sem obedecer a critérios rígidos de organizaçãocronológica nem a relações de causalidade entre diferentes situações. O objeto com-posicional final deste trabalho é um disco, tendo este termo o sentido tanto de objetofísico como o sentido conceitual de agrupamento de composições.

Método1. Delimitação do Objeto

O objeto musical “música gravada” é entendido aqui como tendo características téc-nicas e estéticas específicas que o distinguirão de qualquer outro tipo de objeto mu-sical. Da mesma forma, a feitura deste objeto, o seu processo composicional, seráigualmente distinto do processo composicional que resulte em qualquer outro tipode objeto musical. A reflexão de que trata este texto tem como objetivo realçar justa-mente as características que singularizam tanto o processo como o objeto. O processocomposicional é visto neste trabalho como o processo de tomada de decisões técnicase estéticas com o qual o compositor transforma o impulso ou idéia inicial em objetomusical concreto (Schaeffer 1966). Neste sentido, faz-se uma distinção aqui entre oresultado sônico-temporal concreto do processo composicional e o que é entendidocomo composição abstrata, processo que resulta em uma imagem ou representaçãoda música e das idéias composicionais. No contexto deste trabalho, a música gravadaé o resultado concreto final, a realidade sônico-temporal que é objetivo-fim do pro-cesso composicional, enquanto a composição abstrata, vista como etapa intermediáriae acessória, tem como objeto resultante a partitura ou qualquer outra forma de re-presentação gráfica dos sons.A oposição entre composição abstrata e objeto sônico-temporal concreto, aqui apre-sentada como oposição entre música gravada e partitura, é o resultado da reflexãorealizada a respeito de uma prática composicional recorrente nos dias de hoje. As raí-zes históricas da composição de música gravada podem ser identificadas em dois mo-mentos chave.O primeiro momento é a invenção da gravação de sons, no final do século XIX. A cres-cente popularização, com a comercialização de diversos formatos de música gravadaneste período e nos anos seguintes, fez com que gradualmente a distribuição de mú-sica gravada se expandisse, dando a esta modalidade uma parcela de destaque em re-lação a circulação de música tocada ao vivo presencialmente. O desenvolvimento dosmeios de comunicação em massa, notadamente rádio, num primeiro momento, te-levisão, num segundo momento,e, nos dias atuais, internet, proporcionou um incre-mento expressivo na quantidade de música gravada em circulação. Tal situação fazcom que hoje maior parte da música que se ouve seja gravada.O segundo momento é o advento da música eletroacústica, termo usado aqui paradesignar tanto a música eletrônica como a música concreta, na segunda metade do

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século XX. Os meios eletrônicos de produção musical trouxeram aos compositores apossibilidade de compor não apenas com os sons, mas também os próprios sons (Me-nezes 2003). A manipulação direta do material sonoro pelo compositor, bem como ofato de que este processo composicional gerava como resultado não uma representa-ção (partitura), mas o próprio objeto sônico-temporal (música gravada), são as con-tribuições destacadas deste momento para o trabalho aqui apresentado.As conquistas técnicas e estéticas da música eletroacústica não tardaram em se fazerperceber na produção de música gravada. Já partir dos anos 50, mas com grande de-senvolvimento nos anos 60 e a seguir, desenvolve-se a prática de tratar o processo defeitura de música gravada como etapa ativa, criativa e expressiva da composição mu-sical, e não mais como registro passivo. Neste período são desenvolvidas inúmerastécnicas e equipamentos de estúdio que tornar-se-ão paradigma nas décadas seguin-tes, servindo inclusive como referência para os equipamentos digitais. Deste modo,mesmo quando do registro de músicas destinadas inicialmente ao palco, a utilizaçãode variadas técnicas de gravação e processamento do som influenciava consideravel-mente as características sonoras finais do objeto.A junção de, por um lado, o desenvolvimento dos meios de produção e reproduçãode música gravada com, por outro lado, a abordagem composicional surgida com amúsica eletroacústica, conduziram ao surgimento da música gravada como objetomusical autônomo, fruto de um processo composicional específico. Para que não hajadúvidas a respeito dos conceitos que serão apresentados, é importante definir o sig-nificado da expressão-chave deste trabalho, uma vez que sob os termos “música gra-vada” ou, mais simplesmente, “gravação”1 pode ser enquadrado um leque amplo deprocedimentos técnicos e de formatos para o objeto musical.No contexto deste trabalho, o termo gravação refere-se especificamente à gravaçãomulti-canais. Segundo Huber e Runstein (1997), gravação multi-canais pode ser de-finida como um meio onde múltiplas fontes sonoras são gravadas e reproduzidas emcanais isolados, podendo um canal ser gravado e regravado sem afetar os demais (op.cit., 10).Ainda que o processo de gravação multi-canais possa estar bem retratado nestas de-finições, elas nada informam sobre o suporte2 utilizado, uma vez que as diferençasde suporte não chegam a produzir alterações significativas no processo descrito, domesmo modo como não são feitas considerações sobre a diferença que há entre pro-dução e distribuição de música gravada. No caso da música gravada, diferentes su-portes podem ser utilizados nas etapas de produção e distribuição. A produção é omomento em que o objeto musical vai ser construído no estúdio. A distribuição é omomento em que o objeto musical finalizado é replicado e posto à disposição dospossíveis ouvintes.O primeiro suporte de som gravado a ser lançado comercialmente foram os cilindrosde cera utilizados no fonógrafo de Thomas Edison, em 1888 (Weber 2001). Na mesmaépoca, com uma diferença de poucos anos, foi introduzido o disco de borracha comosuporte. Ambos os suportes eram resultado de processos de gravação acústica, ou

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seja, as vibrações sonoras eram captadas por um cone ligado a uma agulha que gra-vava os sons em um suporte físico permanente (id., 8). O processo elétrico de gravação,com a utilização de microfones, foi introduzido nos anos vinte do século XX, masapenas nos anos quarenta a fita magnética surgiu como suporte mais utilizado emestúdios de gravação (ibid, 10).A fita magnética se tornou, então, o suporte por excelência para produção de músicagravada, sendo o disco de vinil o suporte mais utilizado para a distribuição. Na se-gunda metade do século XX iniciou-se o processo de desenvolvimento do computadorcomo uma ferramenta que viria a provocar mudanças no modo de produção de umamplo espectro de atividades humanas, entre as quais a música. Este processo se in-tensificou com o passar dos anos, chegando a uma situação em que “durante os anos80, com o barateamento da tecnologia digital e o aperfeiçoamento e disseminação deprogramas específicos, boa parte das atividades musicais esteve, de um modo ou deoutro, conectada a algum tipo de utilização de recursos de informática” (Iazzeta 1996,p. 9). No final do século XX consolidou-se a substituição dos suportes para músicagravada, passando a ocupar este posto o CD, substituindo o disco de vinil na distri-buição, e o disco rígido, substituindo a fita magnética na produção. Austin e Waschka(1996) dizem ser o CD “o meio de gravação que fornece disponibilidade universal degravações digitais de composições musicais feitas no computador”. Os autores pro-põem que “o ambiente definitivo para esta música é o CD”, fazendo referência a obras

“compostas especificamente para este meio” (op. cit., p. 17).A partir destas observações, pode-se definir mais precisamente a gravação multica-nais a que se faz referência neste trabalho: gravação multi-canais digital, em compu-tador — sem utilizar fita magnética. A decisão de não usar fita magnética vem aoencontro da substituição do uso de fita magnética pelo uso de disco rígido. Esta subs-tituição vem sendo notada e comentada por autores que escrevem sobre música gra-vada e música computadorizada. Rumsey (1996), por exemplo, comenta:

“O mundo do áudio está mudando rápido. Quando escrevi ‘Tapeless Sound Recor-ding’ seis anos atrás, gravar áudio digital em disco rígido de computador era antesa exceção do que a norma (…) Hoje está tornando-se antes a norma do que a ex-ceção gravar e editar som utilizando computador e meios de armazenamento emmassa (...)” (op. cit., ix).

A obsolescência progressiva da fita magnética se restringiu num primeiro momentoà substituição do suporte físico da gravação, de modo análogo à substituição do discode vinil pelo CD. Num segundo momento, porém, os demais equipamentos (proces-sadores, módulos de efeito e mesas de som, por exemplo) passaram a ser emuladospor softwares específicos para cada uma destas funções. Hoje um estúdio de gravaçãobaseado em computador pode apresentar, além do software de gravação, softwaressintetizadores, seqüenciadores, drum/loop-machines, plug-ins de efeitos e processa-mento, instrumentos virtuais e samplers. Este tipo de estúdio, que utiliza principal-mente software para as funções de produção musical, reduzindo o hardware aomínimo necessário, tem sido chamado de project studio. Como causas da substituiçãodos equipamentos de estúdio por software, Iazzeta (1996, p.10) aponta o barateamento

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do uso de computadores, o aumento da capacidade de processamento e armazena-mento de dados, o surgimento de aparelhos periféricos destinados à manipulação desom e a proliferação de software que auxiliam em diversas fases da produção musical.Apontando na mesma direção, Huber e Runstein, comentando o surgimento dos proj-ect studios, apontam como vantagens em relação aos estúdios comerciais (equipadoscom gravadores de fitas e aparelhos extracomputador)

“Relação custo-benefício: (…) Equipamentos de estúdio que duas décadas atráscustavam centenas de milhares de dólares, por exemplo, podem agora facilmenteser comprados por um décimo do preço (…); Organizar a própria programação eeconomizar enquanto trabalha: (…) Um project studio pode liberar o usuário paragravar enquanto houver humor, sem ter de se preocupar em acertar o relógio doestúdio; Vantagens criativas e funcionais: Com o advento do MIDI (…) o projectstudio oferece vantagens criativas e funcionais em relação ao commercial studiopara criação e produção de estilos personalizados de música (…).” (op. cit., 14-15)

Estas considerações forneceram a definição do método de gravação que será utilizado,a gravação multi-canais em estúdio baseado em computador, com a utilização de soft-ware de gravação propriamente dito acrescido de outros softwares para áudio digitalcomplementares.É importante salientar que o objeto deste trabalho é música gravada e que o trabalhonão pretende ser um estudo de música e tecnologia, informática musical ou mesmode música eletroacústica. Um trabalho sobre música e tecnologia deveria focar suaatenção na relação entre alguma ou algumas das diversas formas de relação entre de-senvolvimento tecnológico e prática musical. Um exemplo deste tipo de foco podeser encontrado em Miranda (1998). No capítulo 8, “Towards the cutting edge” dolivro Computer Sound Synthesis for the Electronic Musician, este autor comenta pos-sibilidades de relação entre desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento de téc-nicas de síntese sonora, estabelecendo uma abordagem composicional circunscritaa estas relações. Da mesma forma, um trabalho de informática musical focaria suaatenção em alguma ou algumas das diversas formas de relação entre informática eprática musical. Um exemplo desta abordagem é o trabalho de Winkler (1998). Nestelivro o autor apresenta uma série de possibilidades de utilização de um software porele desenvolvido para performance de música com interação entre intérpretes e com-putador. Na discussão que realiza, Winkler exclui qualquer abordagem composicionalque não contemple alguma relação entre informática e prática musical. Com relaçãoà música eletroacústica dá-se o mesmo, se o trabalho focasse sua atenção nesta formade composição deveria privilegia-la de modo amplo, como ilustram também os exem-plos citados.Evidentemente que tais abordagens são coerentes com os objetos a que se destinam,mas seriam inadequadas aqui, pois, ainda que estas áreas sejam de alguma formacorrelatas, elas não estarão em foco neste trabalho, uma vez que todas seriam limi-tantes em relação ao objeto a ser abordado. A única pré-definição, ao tratar-se de mú-sica gravada, é a existência de um determinado tipo de objeto final, não havendo

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condicionantes quanto a ferramentas e práticas musicais específicas para a realizaçãodo objeto.Não haverá, por exemplo, uma deliberada exploração das possibilidades de uso dacomputação para a produção musical. Qualquer fonte sonora é considerada válida,não importando se são ou não utilizadas técnicas ou ferramentas avançadas de pro-cessamento e produção de som. Isto significa que, para este trabalho, um violão acús-tico gravado com pouco processamento, um som programado em um sintetizador,uma simulação de bateria realizada com sampler e o modo como se dá a aplicação deefeitos sobre as gravações têm significado semelhante.Todas estas situações são cria-ções sonoras resultantes de tomada de decisões composicionais voltadas para a gra-vação, ainda que tecnicamente não representem exploração de limites naquelas áreasconsideradas de algum modo correlatas. O que importa é para o trabalho é a compo-sição de música gravada e não a composição de música a partir de um ou outro arca-bouço técnico e/ou tecnológico. O computador entra neste trabalho inicialmenteapenas como estúdio de gravação, não havendo compromisso de buscar a exploraçãodos limites das possibilidades desta ferramenta.

2. Discussão do método – fenomenologiaA reflexão a respeito do processo composicional tem por base aspectos da fenome-nologia da música, seguindo as formulações de Schutz (1976) e Clifton (1976 e 1983)e considerando as aplicações dos conceitos definidos por estes autores realizadas porChaves (2000 e 2003) e Cavazotti (2003). Estas referências foram escolhidas por pa-recerem fornecer abordagens complementares da experiência musical que podemser úteis como ferramentas para uma abordagem reflexiva do processo composicionala ser analisado neste trabalho. Mesmo trabalhando sobre um repertório limitado, Clifton propõe a existência de aomenos quatro essências da experiência musical, fornecendo para a moldura teóricadeste trabalho a idéia de “o que” é percebido. Schutz, ao descrever processos mentaisnos quais se fundamenta a experiência musical, é utilizado aqui para caracterizar o

“como” as essências identificadas por Clifton são percebidas. Chaves oferece a possi-bilidade de que a experiência musical composicional também se fundamente nos pro-cessos mentais descritos por Schutz. Cavazotti utiliza as essências propostas porClifton para classificar as descrições da percepção de um dado objeto musical. Defi-nida a moldura teórica e o modo como as diferentes referências se articulam entre si,é importante detalhar as idéias destes autores que são utilizadas. Clifton (1976, 1983), conclui que existem ao menos quatro essências comuns a todaexperiência musical: tempo, espaço, jogo e sentir, sendo estes conceitos os que sãoimportantes, dentre as formulações de Clifton, no contexto deste trabalho. Para Clif-ton, a experiência musical contém e constitui o seu próprio tempo interno, não exis-tindo um tempo independente, como um fluxo uniforme e unidirecional onde aexperiência se insira. O tempo é a experiência da consciência humana em contatocom a mudança (Clifton 1983). Não há fronteiras fixas entre presente, passado e fu-

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turo, mas permeáveis, que permitem que o Agora se integre com futuros e passados,interpenetrando-se através dos mecanismos de retenção e protenção. A experiênciatemporal da música ocorre não em uma seqüência cronológica, mas numa experiên-cia de superposição de passado, presente e futuro simultâneos. Esta junção de Agorasé, no dizer de Clifton o “campo de presença” do objeto musical. Campo de presençaé definido como “um complexo de ‘Agoras’ significativos interagindo com retençõese protenções” (Clifton 1976).Quanto ao espaço, Clifton afirma que todo ato perceptivo presume uma orientaçãoespacial (1983) e que o espaço musical é um espaço fenomênico, experienciado si-nestesicamente por um corpo consciente. Assim, ao analisar a Bagatela n.1 para quar-teto de cordas de Webern, Clifton aponta que “as primeiras três notas (por exemplo)não ‘representam’ ou ‘simbolizam’ uma linha acentuadamente ascendente, elas sãoesta linha, como um objeto da minha consciência”. (Clifton 1976). A característica si-nestésica da percepção da experiência musical deve ser entendida como definida porestruturas estabelecidas a priori. Na análise citada, Clifton diz que “reconheço ‘linhaascendente’ nesta textura porque ‘linha ascendente’ já é uma aquisição do meu corpo.Eu posso me comunicar com o significado sinestésico da música porque meu corpoestá em comunicação consigo mesmo” (id.). Por fim, Clifton considera que a expe-riência sinestésica da música, além dos aspectos de forma e movimento, evoca tam-bém experiências de qualidades táteis, exemplificando com as palavras alemãs paramodo maior (dur) e modo menor (mol), palavras que, segundo o autor, têm “tanto aver com textura como com tonalidade de cor” (ibid.). Em outro exemplo de qualidadestáteis da percepção sinestésica da experiência musical o autor considera que “na faltade condições pré-definidas para consonância e dissonância, muito da tensão de umacomposição pode vir da experiência de sons: ‘duros’, ‘ásperos’ ou ‘arenosos’” (ibid.).Clifton ressalva que não tem a intenção de estipular relações de causa e efeito, nem

“leis de percepção que façam ‘suavidade’ uma exigência de certa textura”. (ibid.), con-cluindo que “se queremos distinguir ‘movimento’ ou ‘dureza’ como um fenômeno dasua interpretação empírica, teremos que falar de ‘movimento como interpretado pelaminha conduta’ e não ‘conduta como interpretada pelo movimento’” (ibid.).A essência jogo, segundo Clifton, se manifesta em três dimensões: ritual, heurísticae aleatória. A dimensão ritual diz respeito aos comportamentos formalizados, códigose protocolos inerentes ao fazer musical. Outro aspecto importante do comportamentoritual é “a experiência de estar absorto em uma atividade cuja continuação é desejada”.(Clifton 1976). O que Clifton chama de dimensão ritual do jogo da experiência mu-sical vem a ser justamente as articulações existentes entre o sujeito e os comporta-mentos formalizados (por exemplo, quais são adotados, quais são preteridos e asrazões para estas escolhas), cujo objetivo é “permitir uma experiência de realizaçãoou consumação” (ibid.), acrescentando que “uma composição é uma aquisição pessoalna medida em que se está pessoalmente envolvido nela” (ibid.). A dimensão heurística consiste no fato de que toda experiência musical contém umelemento de descoberta. Não existem duas audições iguais de uma mesma música,

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mesmo que seja uma música que o ouvinte já conhece. A dimensão aleatória estácontida na idéia de que toda música está sujeita ao acaso no nível experiencial, sig-nificando que não há experiência musical repetível, nem possibilidade de controlepor parte do sujeito, ficando evidente, a partir destas considerações que a dimensãoaleatória tem muito em comum com o que foi estabelecido para a dimensão heurís-tica.A essência sentir é, daquelas identificadas por Clifton, a menos explorada e por eleexemplificada. O sentir é definido apenas em termos do que Clifton chama de “pos-sessão mútua” (1983). A possessão mútua é, para Clifton, condição primordial paraque um fato sonoro se converta em uma experiência musical. O autor afirma que paraque haja uma experiência musical de fato são necessários o consentimento do sujeitoem vivenciar uma experiência musical e a crença de que um dado fato sonoro é mu-sical. Assim, a vivência não consentida não se torna musical, mesmo que o objeto so-noro possa ser reconhecido como música por outros sujeitos ou pelo mesmo sujeitoem outras circunstâncias. Cabe aqui uma ressalva. O livro de Clifton foi lançado em1983, quando não havia ainda uma exposição do ouvinte a uma quantidade tãogrande de informações sonoras como passou a existir desde então. Este aumento ex-ponencial de quantidade permite especular que exista hoje um fenômeno de expe-riência musical não consentida, visto que é virtualmente impossível evitar a exposiçãoa uma quantidade avassaladora de informações musicais, assim como parece ser im-possível que se possa evitar, mesmo quando se tenta rechaçá-las, de reconhecê-lascomo música. Assim, diferentemente de Clifton, que considerava que, sem o consen-timento do perceptor, a experiência musical não se estabelece mesmo que o objetopossa ser musical em outras circunstâncias, parece, a autor e orientador, ser possívelfalar de objetos percebidos como musicais em uma vasta gama de experiências mu-sicais não consentidas. O que importa, dentro do objetivo deste trabalho, é identificarcomo as vivências musicais consentidas e não consentidas experienciadas pelo com-positor vão informar o seu trabalho, inserindo-se na sua stream of consciousness.É possível ainda entender o sentir como a essência musical ligada à memória e à sub-jetividade que estão presentes em toda experiência musical; não como um meroacompanhamento afetivo, mas como “talvez a parte mais importante do modo comoo tempo e o espaço musical se tornem significados” (Clifton, 1983). Se Clifton faz uma proposta a respeito de quais são características – essências – doobjeto sônico-temporal experienciado como musical que são irredutíveis e presentesem qualquer experiência musical, Schutz, por sua vez, apresenta uma análise amplade outro aspecto da percepção, os processos mentais envolvidos na percepção de ex-periências musicais. Das formulações de Schutz, aquelas referentes às categorias de memória, tanto re-trospectiva como prospectiva, são as que mais importam para o contexto deste tra-balho. Schutz afirma que a existência específica de uma peça de música é a suaextensão no tempo (Schutz 1976), acrescentando ainda que “a dimensão de tempoem que a obra musical existe é o tempo interior da nossa stream of consciousness” (id).

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Para Schutz, “o fluxo da música e o fluxo da nossa stream of consciousness são inter-relacionados e simultâneos, entre eles há uma unidade, nós nadamos, por assim dizer,nesta torrente” (ibid). Analisando o elemento temporal na música, Schutz consideraque é a nossa faculdade da memória que possibilita uma atitude de reflexão, ao sairdo fluxo da stream of consciousness, detendo-o. O Agora que se transformou em pas-sado não desaparece totalmente, podendo ser relembrado:

“a qualquer momento do nosso fluxo de pensamentos, o Agora realmente expe-rienciado submerge numa lembrança desse Agora, que se torna assim um Agorapassado e que pode ser relembrado como tal por uma atitude de reflexão que as-sumimos em outro Agora, o Agora real de nossa reflexão” (ibid.).

Schutz distingue dois “tipos de rememoração dentro daquilo que chamamos lem-brança” (ibid.), os quais chama de “retenção” e “reprodução”:

“Primeiro, há atitudes reflectivas em relação a alguma experiência que foi verda-deira num Agora recém passado. A lembrança, então, cola–se imediatamente esem interrupção à experiência presente. Embora mergulhe no passado, a expe-riência verdadeira ainda é retida e, assim, o termo retenção tem sido usado paraeste tipo especial de lembrança. (. . .) O segundo tipo de lembrança — chamadareprodução — não se cola imediatamente às experiências presentes. Ela se referea Passados mais remotos que são reproduzidos nessas rememorações de outrasexperiências que tenham emergido entre o Agora passado, no qual o objeto re-memorado de nosso pensamento foi verdadeiramente experienciado, e o Agorapresente, no qual [o objeto] está sendo rememorado (ibid.).

Estas duas categorias de memória são igualmente importantes na constituição da ex-periência musical mas, da mesma forma como em relação à lembrança do Agora pas-sado, Schutz identifica processos semelhantes em relação à “dimensão de tempo queé chamada futuro” (ibid.). Segundo o autor, nós estamos sempre esperando certasocorrências e eventos. “O que nós prevemos é sugerido pelo estilo ou tipo gerais denossas experiências passadas ou pela pressuposição de que as coisas vão continuar aser o que têm sido até agora, e que o que demonstrou ser típico no passado tambémserá típico no futuro.” (ibid.). Estas expectativas, porém, são incertas e vazias, “po-dendo ou não ser preenchidas pelo evento antecipado quando este se materializar emrealidade” (ibid.).Schutz identifica dois processos de memória prospectiva:

“por um lado, há aqueles que se colam imediatamente à experiência real; podemser comparados a retenções e, por isso, o termo protenção tem sido usado paraeles e, por outro lado, há aqueles que se referem a eventos e experiências do futuromais distante; correspondem às reproduções, e são chamados antecipações nosentido estrito.” (ibid.)

Schutz salienta ainda que embora protenção e antecipação sejam vazias, é mais pro-vável que a primeira seja preenchida pela realidade do que a segunda “especialmentese uma protenção se cola a uma experiência real a qual contenha, ela própria, umaretenção do mesmo objeto.” (ibid.). Reprodução, retenção, protenção e antecipaçãosão os processos temporais constitutivos da interconectividade da stream of cons-

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ciousness; eles são igualmente constitutivos da experiência musical (ibid.).Clifton e Schutz são os formuladores da fenomenologia da música utilizada como re-ferência teórica neste trabalho. Chaves e Cavazotti, por sua vez, tomaram as idéiasdestes autores e realizaram aplicações úteis no encaminhamento da reflexão aqui pro-posta. Chaves parte das considerações de Schutz a respeito do elemento temporal da expe-riência musical do ouvinte e cogita que também o compositor talvez tenha “determi-nado a feitura do seu próprio objeto musical através de uma stream of consciousnessque inclua elementos do passado e elementos do futuro, ambos adentrando um Agorapessoal e intransferível” (Chaves, 2000). O objeto de estudo analisado nesse artigo éa produção de outro compositor que não o autor. Ao abordar o modo como o processocomposicional é permeado pela stream of consciousness do compositor, desta vez to-mando como objeto analítico uma composição própria, o autor afirma que ao analisar:

“em retrospecto o meu processo composicional no Estudo paulistano parapiano/mão esquerda (1998) e tomando-o como objeto analítico, encontro nelefortes pontos de contato com as formulações de Schutz, especificamente naquiloque se refere à experiência musical e ao elemento temporal em música” (Chaves2003).

Se no primeiro artigo a natureza do objeto analítico, uma obra realizada por outrocompositor, exigia uma abordagem necessariamente especulativa, ao escrever sobreuma produção própria o autor pode verificar o modo como os processos da memóriaestiveram ligados ao processo de tomada de decisões composicionais. Segundo Chaves,ao operar os processos da memória, “os objetos relembrados por retenção e por re-produção, e apoiados na stream of consciousness do compositor, deixam-na para in-tegrar o fluxo temporal do “objeto ideal, a ‘peça de música’ ”, o seu Agoraverdadeiramente Agora” (Chaves 2003).A possibilidade apresentada por Chaves de aplicar os conceitos de Schutz a um tra-balho composicional próprio é a referência teórica para a reflexão sobre o processocomposicional efetuada aqui, no que diz respeito à inter-relação entre a stream of con-ciousness do compositor e o processo de tomada de decisões composicionais. Deacordo com que foi ressaltado no detalhamento das idéias de Schutz esta parte da re-flexão é a que se liga ao “como”. Cavazotti vai aplicar as idéias de Clifton, sendo refe-rência para a parte da reflexão que vai lidar com o “o que”.Cavazotti analisa os relatos de sete sujeitos a partir de audições do segundo movi-mento de Três Miniaturas para violino e piano de Penderecki, classificando os relatosde acordo com as categorias propostas por Clifton. A motivação para este estudo foi

“a busca de metodologias analíticas que dessem conta do fenômeno musical em suaintegralidade e que reaproximassem a teoria da música da experiência musical” (Ca-vazotti 2003). A fenomenologia da música foi escolhida pelo autor como abordagemteórica porque “ao considerar que o fenômeno musical é constituído na relação su-jeito-objeto, pode oferecer perspectivas interessantes.” (id.), uma vez que

“A fenomenologia aplicada à música não busca ‘explicar’ a música, ou aquilo a que

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ela se refere, ou representa, ou mesmo parece. Através do método descritivo, visarecuperar a riqueza da experiência musical da forma mais integral possível bus-cando identificar os elementos ontológicos de determinado fenômeno musical.Estes elementos constitutivos são denominados essências.” (ibid)

A partir destas observações, utilizando como moldura teórica os processos mentais(retenção, reprodução, protenção e antecipação), descritos por Schutz, as quatro es-sências da experiência musical apresentadas por Clifton, a possibilidade oferecidapor Chaves de aplicar os conceitos de Schutz a um trabalho composicional próprio eutilização das essências de Clifton para classificar as descrições de um dado objetomusical realizada por Cavazotti, o que está em foco no presente trabalho é uma re-flexão sobre o processo composicional e sua articulação com os processos temporaisinternos do compositor nas diferentes etapas que constituem o vir-a-ser da peça demúsica como construção no tempo, a partir da percepção das essências do objeto ex-perienciada pelo compositor durante o processo composicional.

ResultadosA composição de um disco de música gravada é um trabalho com muitos tipos dedecisões composicionais. Inicia com decisões relacionadas a aglutinação e registrode idéias, passa por decisões relativas à realização sonora das composições e chega adecisões a respeito de agrupamento de composições e formato de difusão. Todas estasdecisões são relativas ao objeto do processo composicional, uma composição queexista como som em extensão no tempo. Se considerado apenas em termos técnico-estéticos já seria um trabalho com muitas possibilidades e experiências em torno dacomposição. Ao somar-se ao trabalho uma reflexão teorizante baseada em detalhadaobservação e registro do processo de elaboração, a composição de um disco de músicagravada demonstra-se um objeto de estudo com potencial de desvelar o modo comoo fluxo de idéias e decisões composicionais se organiza na feitura de um objeto com-plexo e multifacetado. A conclusão, na condição de reflexão final e geral a respeito detodo o trabalho, realiza um levantamento dos traços principais das dinâmicas mentaisque foram observadas no processo composicional. A partir da análise da descrição do processo de tomada de decisões composicionaisnota-se que a composição de um disco de música gravada é uma experiência musicalna qual estão combinadas percepções das essências da experiência musical, articu-ladas por processos de memória prospectiva e retrospectiva. Esta afirmação estabelecea validade da relação entre o processo composicional e as formulações de fenomeno-logia da música tomadas como referencial teórico para este trabalho. A observaçãodo processo composicional apontou também o modo como aspectos técnicos e esté-ticos das composições são adaptados às circunstâncias e características do formatoescolhido para o objeto final e dos procedimentos e das ferramentas que se utilizamna sua elaboração.A música gravada é um tipo de objeto musical com atributos específicos. Compormúsica gravada é atividade que não se confunde com outros tipos de composição. A

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interrelação entre o formato e o objeto configura uma unidade da qual também fazemparte as dinâmicas mentais envolvidas na elaboração deste objeto. As músicas quefazem parte deste trabalho sempre foram “música gravada”, mesmo na mais remotaabstração, quando existiam apenas com antecipação da experiência de um Agora fu-turo. O vir-a-ser da sua existência no tempo estabelece-se como uma concretizaçãoem realidade dos sons e estruturas musicais antecipados em acordo com a experiênciatécnica de encontrar os meios de produzir estes sons. A partir disto, não cabe falarem musica mediada por tratar-se de objeto concatenado com o seu modo de produção.Um som de piano gravado, por exemplo, que é resultado de processo de elaboraçãode um objeto “música gravada”, não é um som mediado porque não há dissociaçãoentre o modo de produção e o som experienciado.O uso do computador como ferramenta central do processo intensifica a interrelaçãoentre formato, objeto e dinâmicas mentais. A fácil passagem de um momento de abs-tração para um momento de concretização traz para o plano da elaboração a dinâmicatípica do campo de presença do objeto musical. Uma vez que os momentos da com-posição não são estanques o compositor que trabalha abstratamente com um softwareeditor de partituras pode migrar para um sintetizador virtual e elaborar aquele somantecipado. Da mesma forma esboços e fragmentos musicais podem ser registradosutilizando-se seqüenciadores e softwares de gravação. O resultado é um preenchi-mento gradativo da expectativa de concretização em realidade experienciada comoantecipação antes de concluir-se o objeto como composição abstrata. Se dentro deum processo composicional um determinado som é antecipado no momento da com-posição abstrata, logo em seguida é experienciado como realidade e posteriormenteretorna ao processo composicional como abstração, o campo de presença deste somé formado pelo presente abstrato do momento do processo composicional, por umaexperiência prospectiva como antecipação e por uma experiência retrospectiva comoretenção. A elaboração completa da experiência do som envolve as quatro essências da expe-riência musical. A dinâmica mental relativa ao tempo reflete-se na experiência espa-cial. Cada experiência musical, presente, passada ou futura, contém uma experiênciaespacial. Cada antecipação contém um espaço antecipado que passa a fazer parte daexperiência composicional. O momento presente do processo composicional é umafunção espaço-temporal.Este modelo hipotético tem finalidade apenas explicativa, pois o processo composi-cional não ocorre som a som isoladamente. Num processo composicional real, muitasdinâmicas semelhantes ocorrem simultaneamente e sem necessariamente encontrar-se em estágios semelhante de elaboração. Aspectos técnicos e estéticos, estruturasabstratas e sons concretos combinam-se carregando consigo as suas experiências es-paço-temporais intrínsecas.A multidimensionalidade desta experiência torna imprevisíveis os desdobramentosde um dado processo composicional e a imprevisibilidade é uma característica de-terminante da dimensão heurística da essência jogo. O processo composicional ad-

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quire caráter de descoberta ao combinar abstrações e concretizações em experiênciastemporais múltiplas com desdobramentos que não podem ser facilmente antecipados.O jogo estabelecido nesta trama de experiências produz satisfação técnica e estéticaque estabelece entre o compositor e a experiência da composição a relação de pos-sessão mútua inerente ao sentir identificado como essência da experiência musical.No caso da música gravada como contextualizada neste trabalho, as decisões com-posicionais podem ocorrer em nível local, geral ou meta-composicional. Cada decisãocomposicional cria um novo complexo de interações. O micro afeta e determina omacro e é afetado e determinado por este. Uma alteração em um dos níveis podeafetar, e com freqüência afeta, decisões em outros níveis. Decisões a respeito de tim-bres podem, por exemplo, criar relações de similaridade ou contraste mais evidentesentre duas músicas. Estas relações podem ser determinantes para determinar a ordemdas músicas no disco. O caminho inverso também pode ocorrer, com decisões nonível meta-composicional determinando decisões a respeito de duração de seções,por exemplo. A partir destas observações configurou-se o que foi identificado como esquema mo-delo da “partícula temporal” elementar do campo de presença do processo composi-cional. O esquema representa a dinâmica dos processos mentais de memóriaverificados na composição das peças. Estas dinâmicas ocorreram do início ao fim doprocesso. Planejamento, escrita, gravação, edição e mixagem são exemplos de ativi-dades composicionais que ocorreram segundo esta dinâmica. Este esquema pode servisto como uma micro-dinâmica mental, presente em cada Agora experiencial doprocesso composicional, ou como uma macro-dinâmica mental, que resulta da com-binação de dinâmicas mentais sucessivas e/ou simultâneas. No primeiro caso refere-se a cada decisão composicional específica e no segundo caso refere-se à soma dedecisões a partir da qual configuram-se os elementos estruturais da composição.

Figura 1 – esquema-modelo do campo de presença do processo composicional

No gráfico que apresenta o esquema-modelo podem ser vislumbradas inúmeras pos-sibilidades de relação entre referências e processos mentais. O impulso composicionalcria a antecipação de um objeto sônico-temporal abstrato, por um lado, e traz ao

Repertório de memória auditivaTimbrísticaEstilísticaSocialAfetiva

Passado Presente Futuro

Repertório de memória composicionalReferenciaisCortesRitmosProporçõesCombinações e justaposições

Idéia ou impulso composicional

concretiza-se

cria um

cria um novo

resulta em

Objeto sônico-temporal(abstrato)

Objeto sônico-temporal(real)

Tempo presente – musical ou não(também é um campo de presença)

stream of consciousness

335

Agora a experiência reproduzida de repertórios auditivos e composicionais que cons-tituem referências para a construção de um objeto sônico-temporal real. Este objetoconcreto é também um ponto de partida, gerando uma nova antecipação abstrataque se concretiza em um impulso ou idéia composicional. Esta dinâmica encontra-se acoplada à stream of consciousness, percepção do tempo presente, formada por ex-periências musicais e não-musicais. Todas estas reflexões apontam para a identificação do modo como articulam-se asubjetividade do compositor e as características sônico-temporais em um específicoprocesso composicional de música gravada. As dinâmicas mentais verificadas indicama relevância composicional de aspectos técnicos e estéticos ligados intrinsecamenteà características do objeto “música gravada”. Este trabalho conclui-se como uma amos-tra à espera de ser cotejada com outras amostras similares. A comparação de análisesde diferentes processos composicionais por seus autores constituiria uma amostragemque poderia proporcionar a investigação tanto de características comuns como de es-pecificidades em um grupo mais amplo de compositores, contribuindo para o enten-dimento de como o encadeamento de decisões composicionais transforma idéias emmúsica.

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Comparando estruturas rítmicas através sonogramas: um estudo da percepção métrica do motivo principal

da Sinfonia no. 5, Op. 67, de BeethovenPedro Paulo Köhler Bondesan dos Santos

[email protected] de Música – ECA, Universidade de São Paulo

ResumoO presente trabalho foca no estudo de diferenças existentes entre música escrita emúsica percebida. Nesse contexto, verifica se a recorrência da percepção ternária domotivo principal no primeiro movimento da Quinta Sinfonia, Op. 67, de Beethoventem um possível embasamento na alteração da estrutura métrica presente em grande

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parte das interpretações da obra. Para tanto, utiliza a ferramenta computacional So-nicVisualizer; procede medições IOI (intra-onset-interval); extrai as proporções mé-tricas dos compassos percebidos ternariamente no início do primeiro movimento eas compara com repetições do motivo em passagens percebidas como binárias, man-tidos a mesma gravação e movimento; realiza comparações entre três gravações, emque a obra foi interpretada pelas orquestras New Philharmonia, sob a regência deAntál Dorati, London Symphony Orchestra, com Pierre Boulez e Chamber Orchestra ofEurope, com Nicholaus Harnoncourt.

IntroduçãoO motivo inicial do primeiro movimento da Sinfonia nº 5, Op. 67, de Ludwig vanBeethoven (1770-1827) está organizado sob métrica binária, em que os dois tempossão divididos em duas partes iguais — nomeadamente, nos dois primeiros compassos,pausa de colcheia seguida por três colcheias e mínima com fermata. Certamente, agrande maioria de maestros e orquestras tem a intenção de deixar evidente aos ou-vintes tal particularidade, de grande relevância estrutural para a obra.No entanto, em The Complete Conductor, o maestro Gunther Schuller (1997, 122) es-timou que noventa por cento das gravações por ele observadas transformaram emternário o supracitado motivo — ou seja, no primeiro compasso, executaram pausade semínima no primeiro tempo e tercina de colcheias no segundo tempo. A respeitodo reconhecimento auditivo desta passagem pelo público, verificamos informalmenteque a pequena parcela que a descreveu como binária, em geral, tinha conhecimentoprévio da partitura, o que sugere uma possível influência desta informação sobre apercepção rítmica. Tal fato merece um experimento controlado para sua efetiva ve-rificação estatística.Aspecto que vai além das práticas interpretativas, o reconhecimento auditivo está re-lacionado à maneira segundo a qual, o ouvinte (neste caso) compreende o ritmo pro-posto pelo compositor e executado pelos intérpretes. Assim, nosso trabalho visaverificar se a percepção ternária do motivo supra-exposto encontra fundamento naalteração da estrutura métrica de seu ritmo por parte dos intérpretes ou se sua con-cepção, por Beethoven, traz intrínseco o aspecto da ambigüidade. Em outras palavras:em que medida a idéia musical e sua representação escrita são reconstruídas na mentedo ouvinte? No caso da Quinta Sinfonia, Beethoven tinha a intenção de provocar estaambigüidade rítmica?Nas interpretações que incorrem na transformação da rítmica inicial em ternária, in-variavelmente, as próximas aparições do motivo inicial (repetido, transposto ou va-riado) são claramente binárias e o compasso 2⁄4 contido dentro de um único beat, poisdada a indicação de tempo extremamente acelerado, cada compasso deve ser regido

“em um” (Schuller 1997, 110) . Procuraremos verificar as causas que provoquem estapercepção diversa de figuras escritas de maneira igual.

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Objetivos Acreditamos que a tentativa de explicar as sensações, subjetivas, de ritmo ternáriodo motivo mais famoso escrito por Beethoven em divisão claramente binária, passepela aproximação entre a percepção subjetiva e a medição objetiva da métrica nasgravações da obra. Passamos, assim, a considerar o registro gravado um documentode importância comparável à partitura, devido à sua natureza implícita de represen-tação objetiva da realização musical e à quantidade de informação contida em seubojo. No caso de obras gravadas, a produção de conteúdo engloba todo o processo em quese parte de uma leitura do texto musical proposto pelo compositor, registra-se umaconcepção conjunta de maestro e orquestra (neste caso) e esta última é reafirmada acada audição da gravação.Um problema que se apresenta está ligado ao fato desta representação da idéia musicalincorporada à interpretação gravada nem sempre estar de acordo com a idéia originaldo compositor, uma vez que a mediação pela partitura escrita é incapaz de traduzirtodas as intenções e nuances da criação. No caso de nosso exemplo, não existe qual-quer texto escrito em que Beethoven se refira ao aspecto ambíguo intrínseco ao mo-tivo de abertura da Quinta Sinfonia. O fato é que a ambigüidade existe, e permaneceo desafio de uma fiel interpretação dos compassos iniciais da sinfonia (Schuller 1997,109-110).Após manipularmos o software que será descrito a seguir, percebemos ser possívelobter algumas explicações para a percepção de diferença de intenções entre o motivoescrito e o percebido, pela a realização de medidas com base em dois parâmetros mu-sicais interligados: divisão rítmica e intensidade. Entendemos que a divisão rítmicaesteja ligada à proporção matemática das durações entre os ataques das notas, e quea intensidade está associada à concepção de dinâmica musical, que, por sua vez, podeestar relacionada tanto à organização de grandes como de pequenas unidades de ar-ticulação. No nosso caso, diz respeito à acentuação das articulações rítmicas das notasdo motivo inicial da Quinta Sinfonia. Com o propósito de separarmos os dois parâmetros e centrarmos a atenção na divisãorítmica, procurando desnudar as proporções de sua estrutura métrica, lançamos mãode um mapeamento rítmico, procedendo a medições diretamente de arquivos digitaisde áudio, de onde extraímos os tempos dos ataques, que nosso software denominaonsets (Duxbury, Bello, et al. 2003, 1). Estes onsets representam a articulação temporaldas notas tocadas por cada orquestra — no caso, a New Philharmonia, sob a regênciade Antál Dorati; a London Symphony Orchestra, com Pierre Boulez; e a Chamber Or-chestra of Europe, com Nicholaus Harnoncourt.Para tanto, utilizamos a ferramenta computacional SonicVisualizer desenvolvida peloCentre for Digital Music, Queen Mary, da University of London. O aplicativo foi de-senvolvido inicialmente para estudo de práticas interpretativas dentro do Projeto Ma-zurka e destinado a realizar a comparação de gravações de peças para piano em

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interpretações de diversas épocas e concepções estilísticas. Possui diversos filtros,através dos quais se podem realizar um mapeamento da articulação rítmica, melódicae de freqüências, dentre outras.

MétodoCom o intuito de verificar aspectos da reconstrução da idéia rítmica ternária do mo-tivo da Quinta Sinfonia, partimos de dois dentre os seis parâmetros da abordagempor regras de preferência elencados por Tempeley e Bartlete (2002, 125-128), segundoos quais a percepção métrica é construída com base em atribuições de acentuações atempos fortes, em sons com maior duração relativa, e na tendência a ouvi-los próxi-mos ao primeiro som de um agrupamento rítmico.

“(…) other factors that are involved in the perception of meter: One is grouping:when a series of notes form a group or phrase, there is a tendency to hear thestrongest beat near the beginning of the group (. . .) The system has three mainpreferences rules, witch are exactly the principles described as the essencial criteriaof metrical analysis. Event Rule: Prefer to locate beats (especially Strong beats) atonsets of events; the more events at a time point, the beter a location it is. LengthRule: Prefer to locate beats at onsets of long events (…)” (Temperley e Bartlette2002, 119-125).

No motivo em questão, a fermata contribui fortemente para que o ouvinte posicioneo tempo forte do compasso sobre ela, ao mesmo tempo que suspende a formação in-dutiva de um metro de referência que qualifique as três colcheias anteriores comoanacruse.A tarefa de comparação da interpretação da idéia escrita, do motivo inicial do pri-meiro movimento da sinfonia, com a representação das idéias formadas na mentedos ouvintes que a compreenderam como ternária, exige uma estratégia que coloqueem paralelo os instantes gravados do respectivo motivo com trechos equivalentes aomesmo. Como o primeiro movimento se desenvolve estruturalmente pela repetiçãodo motivo inicial, teremos várias oportunidades, na mesma gravação, de recolheramostras para comparação das suas durações temporais. A comparação das durações temporais poderá fornecer dados relativos à estruturainterna do motivo, ou seja, de proporções entre as durações das colcheias. Porém odado mais importante será a comparação entre o motivo percebido ternariamente esuas repetições, transposições e variações, percebidas em base binária, no decorrerdo movimento. Para que possamos empreender a medição pretendida, contamos com as supracitadasferramentas computacionais especialmente desenvolvidas para extração de dados dearquivos de áudio, integrantes do software SonicVisualiser . Trata-se de um softwarelivre, capaz de proceder a análises espectrais de tempo e de dinâmica, e permitir ano-tações na tela de visualização — equivalentes às anotações em partitura.Medir ou comparar algo exige sempre um referencial. Em nosso caso, será precisoestabelecer parâmetros de referência rítmica. Um parâmetro seria a detecção de ata-

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que de nota musical, que define o momento inicial de sua articulação.O software SonicVisualizer conta com um dispositivo de detecção automática de ata-que de nota musical que vem sendo aperfeiçoado. O ataque de uma nota é definidopor um impulso inicial chamado transiente, relacionado diretamente com a identifi-cação do som, uma vez que cada instrumento musical produz sons com maior oumenor quantidade de transientes (sons identificados como mais percussivos possuemmais transientes). Inicialmente, os métodos de detecção automática de ritmo utili-zavam a medição da variação da energia sonora no tempo e resultavam em baixa pre-cisão. Atualmente, a técnica utilizada pelo SonicVisualizer mistura a variação daenergia com a fase sonora em um domínio complexo. Segundo essa técnica, o termoonset está associado ao início perceptível da nota, sendo também identificado com oconceito de ataque da nota.Assim sendo, para medir durações de notas temos, por enquanto, o onset como pa-râmetro objetivo de medida. Conseqüentemente, qualquer medição de notas suces-sivas implicará na medição do intervalo entre onsets, ou IOI (intra-onset-intervals).Nos exemplos apresentados a seguir (Fig. 1), utilizamos a partitura escrita por Beet-hoven para concatenar momentos em que conseguimos uma medição satisfatóriacom o software em boas repetições binárias do motivo. Consideramos medição sa-tisfatória, o resultado obtido dos trechos das gravações em que a dinâmica da inter-pretação permitiu a detecção dos onsets sem a manipulação manual das marcasgeradas automaticamente pelo plug-in Note Onset Detector, no modo Domínio Com-plexo que permite também a detecção de onsets mais “suaves” (Duxbury, Bello, et al.2003, 4). Após termos realizado uma bateria de testes indicados pelos programadoresdo software, estes parâmetros mostraram ser os mais adequados para o nosso pro-pósito.Assim, escolhemos para comparação os trechos com colcheias das passagens que se-guem (Fig. 1):

Fig. 1 – Motivo inicial do primeiro movimento da quinta sinfonia de Beethoven(comp. 1-4, 18-22, 109-110, 119-122).

Pautamo-nos em três gravações da obra: (1) (Boulez conducts Beethoven, s.d.), (2)(Mercury Living Presence - Beethoven Symphonies - Dorati, 1962) (3) (NicholausHarnoncourt The Symphony Collection - CD2, 1991)

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As três gravações foram selecionadas por possibilitarem razoável grau de diversidadenas amostragens, ao responderem a três critérios auto-impostos: gravação lenta paratestes e aprendizado com o software; gravação com um maestro de renome e concep-ção consistente relacionada a fidelidade nas práticas interpretativas; uma delas nãomuito recente (Dorati). Além disso, segundo afirma Schuller (1997, 122), Dorati eHarnoncourt não transformam em ternário o motivo inicial da quinta sinfonia, en-quanto Boulez os ternariza.Ao utilizarmos o software SonicVisualizer, as medições realizadas são exportadas paraarquivos texto contendo listas de onsets marcados em segundos; estes são convertidospara o formato de planilha Excel e sua saída é realizada em modo gráfico. Em nossosexemplos, após proceder às medições das durações IOI, projetamos as tabelas em umgráfico com a sobreposição dos resultados das três gravações referidas, com o intuitode verificar se existe alguma diferença na proporção dos grupos de colcheias entre si,na mesma gravação, e entre gravações de diferentes orquestras. Para conseguirmosmelhor efeito de comparação entre as gravações, recorremos à sobreposição das cur-vas relativas a cada uma das análises utilizando tonalidades de cinza e deferentes fi-guras geométricas para os pontos relativos a cada interpretação (losango para Boulez,triângulo para Dorati e retângulo para Harnoncourt, nas Figs. 2 e 3). Desse modo,conseguimos comparar as curvas relativas aos compassos nos três sonogramas, alémde comparar diferentes compassos entre si, na mesma gravação.

Fig. 2 – A cada grupo de três colcheias na partitura correspondem três pontos no gráfico. No eixo x, os algarismos grafados antes da palavra Colcheia referem-se aos

números dos compassos; o eixo y mostra as durações IOI (intra-onset-intervals) de cadacolcheia, em milissegundos. Temos respectivamente nesta figura as curvas relativas as

estruturas métricas dos compassos 1, 3, 18, 22, 109 e 110 do primeiro movimento.

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Fig. 3 – Continuação do gráfico da figura 2 cada grupo de três colcheias na partituracorrespondem três pontos no gráfico. Temos respectivamente nesta figura as curvas

relativas as estruturas métricas dos compassos 119, 121 e a repetição de 1 e 3.

Nas Figuras 2 e 3, os compassos, em que é considerada a percepção ternária, são osde números 1, 3 e 22 e a repetição dos compassos 1 e 3 após a barra de repetição docompasso 124. Os gráficos mostram que a gravação regida por Boulez (associada àmarca com o losango) tem as colcheias mais longas, variando entre 160 ms e 330 ms,enquanto as outras variam em números médios de 140 ms e 200 ms, simplesmentedemonstrando que a interpretação de Boulez, com durações mais altas é mais lentaque as outras. Outra leitura que salta do gráfico sem grande necessidade de observa-ção é que as linhas terminam em ângulo ascendente revelando que últimas colcheiasde cada grupo, que antecedem a cabeça do compasso seguinte, têm duração propor-cionalmente maior do que suas antecessoras. Quanto à relação entre a estrutura rítmica e a percepção ternária do motivo principalcom apoio em fermata na quarta nota, a abordagem realizada se mostra inconclusiva,uma vez que o gráfico não aponta diferença significativa entre as curvas relativas aostrechos percebidos de maneira ternária e aqueles percebidos da maneira binária.O único indício significativo de diferença entre as articulações ternária e binária en-contra-se na gravação regida por Pierre Boulez, em que os trechos considerados ter-nários encontram-se no âmbito de 250 / 350 ms enquanto os trechos binários estãodentro da faixa de 150 / 250 ms. Isso significa que os trechos ternários são 100 msmais lentos que os trechos considerados binários.

Resultados A abordagem não foi suficiente para apontar uma possível relação entre a percepçãoternária do ritmo no motivo inicial e sua respectiva métrica temporal. No entanto,daremos continuidade à pesquisa por acreditarmos que fatores como a dinâmica pos-

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sam trazer subsídios mais conclusivos em relação à questão colocada. Nesse sentido, entraremos em contato com outra técnica desenvolvida pelo projetoMazurka, que trabalha com medições da dinâmica comparada ao tempo metronô-mico em arquivos de áudio (Cook 2009, 240). Nossa meta atual é conhecê-la a fundoe tentar possíveis adaptações para nosso objetivo de pesquisa.A constatação de que as colcheias que antecedem a última nota do motivo tem dura-ção média maior que as antecedentes foi uma surpresa interessante, mas de poucaserventia a nosso propósito.

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O desenvolvimento paralelo da mente e das artes musicais

A Experiência Estética e a Cognição Sensível na MusicoterapiaClara Márcia Piazzetta

[email protected] de Musicoterapia, Faculdade de Artes do Paraná

Fundação Araucária

ResumoEste trabalho é parte da pesquisa clínica, “o estudo da musicalidade como capacidadecognitiva estética no trabalho da Musicoterapia” a ser realizada no Centro de Estudose Atendimentos em Musicoterapia – CAEMT/FAP neste ano de 2011. Discute o papelda cognição sensível enquanto complementar ao pensamento lógico por uma Estéticada Percepção. Os estudos bibliográficos sugerem que as experiências musicais e o ri-quíssimo campo do ‘sentir’ são inerentes aos trabalhos musicoterapêuticos e poucose tem estudado sobre estes aspectos. Talvez seja pela dificuldade de se compreendercientificamente o ‘sentir’ humano. Não se está falando dos sentimentos ou das emo-ções apenas, mas do corpo como colaborador de qualquer processo de pensamento.Na cognição estética existe uma comunicação pela percepção das manifestações cor-porais. Nas interações musicais, sonoras, verbais e corporais inerentes aos atendi-mentos musicoterapêuticos essa comunicação constitui o contorno sonoro musicalque acolhe os participantes. Como um campo energético sonoro mantido pelas mu-sicalidades em ação e pela cognição sensível.

Palavras-chavemusicoterapia – experiência estética – cognição sensível

AbstractThis article is part of a clinical research entitled “The study of musicality as a cognitiveaesthetic capacity in music therapy work”, to take place at the Centro de Estudos eAtendimentos em Musicoterapia – CAEMT/FAP – in the year of 2011. It discusses therole of Sensitive Cognition as complementary to the logical thought through Percep-tion Aesthetics. The bibliographical studies suggest that musical experiences and thevery rich field that deals with the ‘feelings’ are inherent to music therapy. However,little has been studied about these aspects, perhaps because of the difficulty in com-prehending the “human feeling” scientifically – not only the feelings or emotions ex-clusively, but the body as a collaborator in any thinking process. In aesthetic cognitionthere is a type of communication that happens through the perception of the bodilymanifestations. In musical, sonorous, verbal and bodily interactions, intrinsic to themusic therapy services, this communication constitutes the musical surrounding thatshelters the participants, as a sonic and energetic field kept by the ongoing musica-lities (musicing) and by sensitive cognition.

Keywordsmusic therapy – esthetic experience – sensitive cognition

IntroduçãoO trabalho musicoterapêutico envolve uma manifestação artística, (música), o homem,e inquietações sobre a ação da música sobre esse homem (corpo e mente). Contudo,à medida que as pesquisas quanti e quali nessa área transdisciplinar por essênciaavançam, Música, Arte e Saúde podem ser re significadas. De modo que, música, nãoé a mesma música na Música; o ângulo de visão sobre Arte volta-se para os processosmais que os produtos construídos; Saúde distancia-se da visão médica e aproxima-se de redefinições, tais como: Saúde não é a ausência de doença, mas um estado doorganismo. Em meio a esses aspectos que envolvem o homem (homo musicus), sua musicalidade(Arte), e, suas capacidades de estar em interação num processo que visa a atingir opotencial máximo de integridade individual e ecológica do sujeito (Saúde), os desafiosna construção dos entendimentos dessa área de conhecimento são reais, enquantouma rede complexa. O poder da música e a significação musical ocupam um lugar de destaque nas inves-tigações, uma vez que no trabalho musicoterapêutico não se utiliza apenas a música,mas, a experiência da pessoa com a música. Assim, o entendimento da eficácia damúsica na e como terapia é fundamental, mas a cientificidade dessa área de conhe-cimento inerentemente complexa não se faz apenas por respostas diretas e lineares,mas também pelo entendimento do fenômeno em seu contexto, ou seja, por entendera rede formada com as áreas de conhecimentos afins à Arte e Saúde, em ação. Ocampo de investigação de fenômenos complexos é igualmente complexo. Contudo aspalavras de Ubitaran D’ambrósio devem ser lembradas: “o complexo se explica pelascoisas simples”.O presente artigo se faz considerando o caráter complexo do trabalho musicotera-pêutico bem como da experiência musical particular na vivência de cada pessoa eacredita-se que na simplicidade dos acontecimentos musicais e musicoterapêuticos,nas manifestações da musicalidade pode-se encontrar visibilidade e entendimentona investigação. Este artigo apresenta, assim, dados bibliográficos de uma pesquisa de campo em an-damento realizada no Centro de Atendimento e Estudos em Musicoterapia da Facul-dade de Artes do Paraná – CAEMT/ FAP, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisada FAP.O objetivo geral é: observar e descrever a musicalidade enquanto forma de cogniçãosensível de participantes do CAEMT no aqui e agora dos atendimentos de Musicote-rapia, a fim de aprofundar o entendimento da musicalidade das pessoas quando ematendimento musicoterapêutico.

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Com este estudo busca-se aproximar-se da relação que o homem estabelece com amúsica e sua significância para este campo de conhecimento (a Musicoterapia), ouseja, de compor algumas reflexões sobre percepção musical no âmbito da estese, dosentir. Deste modo, pretende-se distanciar-se dos espaços da lógica e das necessidadeslogocêntricas. Não se trata, assim, de abordar aspectos Neurociêntíficos, ou por umaEstética enquanto forma e conteúdo da obra de arte, mas seguir pelo campo dos sen-tidos, anterior (se é possível colocar dessa forma) ao pensamento lógico, anterior aação da explicação por palavras. Esse texto segue na direção da ‘cognição sensível’. A idéia de musicalidade distinta de qualidade musical pertencente à Filosofia da Mú-sica de Zuckerkadl (1973; 1956) aponta para uma função diferenciada da musicali-dade de cada pessoa, interessante para a Musicoterapia. Segundo Zuckerkandal amusicalidade é constitutiva do ser humano e por seu intermédio experimenta-se omeio ao redor como um fluxo contínuo, musicalidade é uma forma de cognição.

É importante distinguir entre escuta de sons e percepção musical. A pri-meira age na identificação de qualidades timbricas do som e dos parâmetros de in-tensidade, duração e afinação. A percepção musical envolve a escuta de sons comomúsica e caminha na direção das relações estabelecidas entre as notas, as ‘intenções’sonoras (qualidades dinâmicas da nota, Zuckekandl, 1956). Tanto uma capacidadehumana quanto a outra acontecem pela ação da musicalidade de cada pessoa, demodo que, se não se está no exercício do pensamento lógico (construção do conhe-cimento) da denominação do que se escuta, se está experimentando o meio à suavolta no aqui e agora, como um fluxo contínuo. Nas palavras de Zuckerkandal (1956;1973) está em ação o ‘pensamento musical’ (sons como música e movimentos) quese refere aos processos de pensamento colocados em ação para que a mente encontresentido na complexidade sonora da música. Não se trata assim, propriamente do sig-nificado do som, mas sim, da capacidade humana de entender os sons como música.Da capacidade humana de entender as qualidades dinâmicas da nota musical. Essacapacidade envolve a musicalidade, e segundo Aigen (2005), os esquemas sensórios-motores de funcionamento do pensamento. Na escuta dos sons como música a mentehumana espacializa a experiência concreta com som (ex.: escalas musicais são sonsque sobem e descem, mas na realidade os sons não se movem, apenas são sons dife-rentes um ao lado do outro e a mente entende como movimento ascendente e des-cendente). Esse complexo sistema entra em ação para o entendimento que a mentehumana tem sobre os sons como música.Mas, como se dá essa experimentação do meio em que se está como um ‘fluxo contí-nuo’, que a musicalidade proporciona? Como é estar no aqui e agora? Estar com a rea-lidade antes de interpretá-la? Todas as vezes que se busca falar sobre algumacontecimento interpreta-se os fatos atribuindo a cada gesto uma explicação (pensa-mento lógico). O campo da representação está em ação e não mais apenas o campoda realidade como ela é, mas sim de como cada um pode concebê-la e significá-la. Ocampo do sentir está no aqui e agora e é a parte complementar desse exercício dopensamento lógico e pode ser denominada cognição sensível. Como é estar nesse

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sentir na Musicoterapia? Uma possibilidade é considerar a musicalidade como cog-nição estética e assim buscar seus ‘sinais estéticos’.

Cognição e Cognição Musical Cognição, palavra de origem latina cognitione significa ato de adquirir conhecimento,faculdade do conhecer. Envolve o exercício do conhecimento enquanto processos depensamento como: atenção, memória, elaboração de idéias e também relaciona-secom a imaginação e a criatividade. Para o ‘conhecer’ considera-se fundamental a uti-lização de palavras incorporadas na linguagem verbal por meio de conceitos. Para oslogocêntricos qualquer outro modo de percepção e entendimento do que está emvolta, ou seja, outras linguagens com que se possa desenvolver um conhecimento au-têntico não tem validade, tais como o senso comum, as Artes, técnicas, etc (Camargo,2010). A cognição musical é muito recente. Pode ser também denominada de estudo damente musical (Ilari 2009). Qual o conhecimento que se adquire com a música? Ques-tão como essa permite um leque de áreas de estudos debruçadas sobre esse tema. Se-gundo Ilari (2006), o livro de John Sloboda The musical mind: the cognitive psichologyof music (1983) foi um marco. Desde então os termos Psicologia Cognitiva da Música,Ciências Cognitivas da Música e Cognição Musical são sinônimas. Caracteriza-seassim como uma área de estudos multidisciplinar:

• Paleontólogos e biólogos – buscam explicações na natureza para os fenômenosmusicais;

• Historiadores e filósofos – refletem sobre o fazer musical no curso da história hu-mana;

• Neurocientistas e psicólogos cognitivistas – estudam os atributos do cérebro eda mente musical;

• Etnomusicólogos, sociólogos e antropólogos da música – procuram evidênciasno estudo comparativo entre culturas;

• Musicólogos e instrumentistas – estudam os atributos mentais envolvidos nosprocessos de audição, composição e execução musical;

• Psicólogos desenvolvimentistas, educadores musicais e musicoterapeutas – de-dicam-se a compreender os processos de aprendizagem que garantem o desen-volvimento musical do ser humano;

• Tecnólogos, engenheiros e informáticos – estão interessados em modelar e de-senvolver máquinas inteligentes que simulam a mente musical (Ilari, 2006).

Apenas três anos se passam e Ilari (2009) publica um apanhado histórico da cogniçãomusical para melhor visualização das múltiplas facetas e complexidades envolvidasno campo de estudo da mente musical. Nesse artigo, a autora apresenta as áreas quese destacam na construção da Cognição Musical como: a Musicologia, a Psicologiada Música e as Ciências Cognitivas. Para Levitin (apud Ilari 2009, 29) os estudos no campo da Psicologia da Música têm

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por objetivos “compreender os processos mentais que sustentam uma vasta gama decomportamentos musicais como a percepção, a compreensão, a memória, a atenção,a performance e a criação”. Deste modo a Cognição Musical ocupa o primeiro lugarentre as áreas de pesquisa da Psicologia da Música. A autora adverte, contudo que oconhecimento musical delimitado por essas pesquisas centra-se na percepção das es-truturas musicais e nos processos de cognição musical e adverte que o maior desafio,está em como pesquisar a música de modo científico. Para alguns pesquisadores issoparece não ser possível, pois, ao pesquisar a música pelo viés da ciência a transformamem ciência e assim menos artística, mais cerebral e menos inspiração. A autora com-plementa que discussões filosóficas como essas são necessárias para o pesquisadornão se deixar levar por uma visão romântica da música enquanto algo ‘sublime’ emenos humana.Conclui o artigo com destaque para as palavras de Levitin “o estudo científico da mú-sica e da cognição musical está potencialmente apto a responder algumas questõesfundamentais sobre a natureza do pensamento humano e as relações entre experiência,mente, cérebro e genes” (grifo nosso, apud Ilari 2009, 33-34). Parece que o conheci-mento que se tem com o estudo da cognição musical não remete apenas a conheci-mentos musicais, mas, permite desvendar um dos maiores mistérios dofuncionamento humano: a mente. Mente musical e processos de pensamentos hu-manos estão mesmo tão próximos? Os processos de pensamentos musicais parecemfalar dos demais processos de pensamento da mente humana, mesmo os não musicais. As diversas manifestações artísticas humanas são colocadas, de modo geral, comoexpressão de sentimentos e emoções. Alcançam a subjetividade humana. Contudo,no apanhado sobre as pesquisas desenvolvidas pela Psicologia da música no campoda Cognição Musical não aparecem registros sobre experiência musical e o ‘sentir’.Pesquisas recentes da musicoterapeuta Cleo Correia demarcam espaços no campo daMúsica e Neurociências. Essa autora apresenta a Música não apenas como uma ma-nifestação artística, mas também como “um instrumento para os estudos de váriosaspectos da neurociência” (Correia, 2006). Contudo, mesmo a música sendo consi-derada uma arte e, portanto com competência para afetar o ser humano, esse ‘afetar’é estudado nos efeitos causados no funcionamento do cérebro, e não no sentir. Ross(apud Correia 2006), na procura por bases científicas para a arte, afirma que “umaobra de arte pode ser descrita e analisada, podendo constituir-se uma ciência”. E comoCiência, talvez “para ele, o maior serviço que a arte presta ao homem reside não tantoem produzir prazer, mas em provocar uma resposta, um juízo, uma articulação (grifonosso, Correia 2006). Ao lembrar-se da dificuldade citada por Ilari (2009) no âmbito da pesquisa musicalse é ciência ou se é arte, parece ser possível olhar por outro ponto de vista e alcançaro espaço do humano, dos sentimentos, do sentir. Ao lado da colocação que a Músicase transformaria em Ciência pode-se pensar: como a Ciência consideraria o sentirinerente a toda manifestação artística inclusive a música? Como é possível, pelo viéscientífico, se falar da Cognição Sensível?

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Cognição sensível por uma estética da percepçãoA cognição sensível está diretamente ligada à Estética, ao campo do sentir. O que elafaz ?

[ela] educa a percepção para a detecção de sinais provenientes da coisa sob estudo,desenvolvendo assim a leitura externa de sua existência no mundo e na interrela-ção com as outras coisas particulares que habitam a vizinhança, observando assima ocorrência das causas e efeitos em questão (Camargo 2010, 72-73).

Está diretamente ligada aos órgãos dos sentidos humanos. Contudo, não no aspectode denominações, de explicações, mas sim, “na leitura externa de sua existência nomundo”, existência essa em relação com o meio, o contexto, “com as outras coisas par-ticulares que habitam a vizinhança”. Uma maneira de se tentar explicar ou falar doinefável, do que se sente, antes que o pensamento lógico atribua a esse sentir uma ex-plicação, “observando assim a ocorrência das causas e efeitos”.Nessa direção, a Estética não se relaciona apenas a formas e conteúdos das obras dearte. Camargo (2010, 73) a apresenta como: “(gr. Aisthetikòs) esta palavra provém daraiz grega aisthesis (sensação, sentimento) em junção com o termo technè (ciência,técnica) e significa “conhecimento sensível”, aquele que conhece pelos sentidos físicos”.O autor resgata, assim, a idéia inicial de Alexander Baumgarten (séc. XVIII), filósofoalemão em discussões sobre um ‘discurso do corpo’. Deste modo, não se relacionavadiretamente com as Artes, mas sim, com o termo grego aisthesis, e “a toda a regiãoda percepção e sensação humanas, em contraste com o domínio mais rarefeito dopensamento conceitual” (ibid, 76).O conhecimento sensível é uma realidade tão antiga quanto a existência humana. Asobrevivência da espécie, nos primeiros tempos quando o logos era pouco desenvol-vido, se deveu à ação dos sentidos para defesa e preservação da espécie. Em temposatuais, com tantas conquistas tecnológicas e com tanta rapidez de comunicação, oque se faz com essa capacidade humana? Para Camargo (2010, p. 73), “esse primeiroconhecimento, amortecido e amordaçado pela hegemonia do logos, precisa ser no-vamente ativado de vez que novas exigências comunicativas emergem com a mun-dialização da audiovisualidade e da tatilidade.”.A cognição sensível mostra-se complementar ao pensamento lógico, contudo por al-guma ‘razão’, o viés científico por vezes a rejeita, e coloca-a como menos necessária epouco confiável no ato de conhecer.A estética, ou cognição sensível, produz qual conhecimento? Ela nos coloca dianteda realidade, no aqui e agora. Camargo (2010) deixa claro que em sua pesquisa, aoresgatar o pensamento inicial de Baumgarten sobre Estética, não a está considerandoapenas no campo das Artes. Ele esclarece que não desconsidera a Arte, mas sim en-tende a relação entre ambas: “as artes estão para a estética, assim como a música estápara o som”. Ou seja, nem toda estética é arte, mas toda arte está no domínio da es-tética (Camargo 2010, 75). Com isso a cognição estética é um campo de conhecimentoque ‘processa suas informações a partir da percepção de sinais’ existentes no mundo

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real. Ela processa os Saberes. Para tanto, a sensibilidade adequada para construir talconhecimento (estético) advém do treinamento da percepção humana e as manifes-tações artísticas são um ambiente muito favorável.As experiências estéticas, deste modo, favorecem a cognição sensível. Quando se sabeque se está diante de uma experiência estética? As manifestações artísticas, como jácitado, são por excelência o lugar, mas qual a condição para a existência de tal expe-riência? O encontro, na ‘estese’, ou seja: “no evento que produz um encontro afetuosoentre a expressão espontânea de sinais estéticos que vão em direção da percepção dossentidos físicos do corpo humano provocando sensações singulares no indivíduo”.Importante ressaltar que esse encontro, essa estese conta com a “inesperável emoti-vidade da sensação do mundo, para além do conceito” (Camargo 2010, 77). Com isso,ela produz todo o tipo de sensações humanas: “um susto, um orgasmo, um choqueemocional, o gozo de um afeto, uma paixão irrefletida, o sabor de uma fruta, o per-fume de uma flor, o peso de um corpo ou a percepção de calor, além da estese produ-zida pela experiência de uma obra de arte” (ibid, 79).Enquanto sensações, as esteses, são acontecimentos epifânicos, rápidos e repentinos,que desaparecem rapidamente também. Nem por isso menos importante, pois a du-ração de tempo aqui é irrelevante e pode distorcer a percepção lógica do tempo quetemos enquanto duração por mostrar-se intensa. Assim, é um acontecimento ener-gicamente vivo e cada pessoa vive um encontro, uma epifania particular e própria.Os resultados de uma experiência estética não estão no âmbito da linguagem verbal,ou mesmo de linguagens construídas na cultura. Eles não podem ser interpretados,pois esse é o campo do pensamento lógico, de modo que “ou a linguagem rouba aexistência real do momento estético, traduzindo-o num discurso em favor do logos,ou abafa o processo de estese com o tampão intelectual da conceituação. Toda inter-pretação, portanto, é uma traição à realidade dos fatos” (Camargo 2011, 82).Contudo, uma das funções da cognição é a comunicação. Assim o estese próprio da

cognição estética “poderia ser chamado de mensagem de uma comunicação estética”(ibid, 82). O que é comunicado nas experiências estéticas se dá no compartilhar dosmomentos e essa comunicação por sinais estéticos resulta em conhecimentos afetivosindividuais envolvendo pessoas, comunidades e seus corpos. Esse âmbito comunica-cional “é a garantia de uma cognição sensível” (ibid, 82) não importa o que é comu-nicado, mas o processo comunicacional que envolve pessoas no mundo. Cada umatem sensações particulares com um mesmo evento estético e isso pode ser percebido,e assim, comunicado.Discorrer sobre a complementaridade entre cognição sensível e o logos foi o objetivodos estudos de Camargo (2010). Suas idéias levam assim à reflexão sobre a existênciade uma Estética da Percepção. Essa teria como foco a cognição sensível, ou seja, ocampo do sentir, suas características de a) sensibilidade, b) inconcebível e c) insigni-ficante, seus sinais estéticos com suas qualidades como: a) sensasionalidade, afetivi-dade, emotividade, passionalidade, eroticidade e superficialidade; b)incompreensibilidade, intensividade, indefinibilidade, atemporalidade, diversidade

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e equivocidade; c) paradoxia, irregularidade, originalidade, inefabilidade, efemeri-dade e insensatez. Sob o olhar logocêntrico essas palavras trazem a idéia de coisascom pouco valor, contudo são essenciais à compreensão do campo do sentir. As ex-periências estéticas e, advindas dessas, a cognição estética, acontece pela epifania, nasurpresa, num arrebatar emocional no aqui e agora, de momentos. Aumentar suacontinuidade não depende de controles da consciência, ou de uma vontade racional.

“Ao atingir a sensibilidade do indivíduo, os sinais estéticos provocam a sensação depresença das coisas do mundo” (Camargo 2010b, 17, n/p). A Estética da Percepção,deste modo, objetiva

a constituição de um conhecimento estético do mundo, visando uma educaçãoda sensibilidade a par com a tradicional educação racionalista não como oposição,mas como contraparte do conhecimento representacional (gramatical e matemá-tico) e conteudístico (Camargo 2010b, 17, n/p).

A experiência estética sob uma Estética da Percepção se dá no aqui e agora e ofereceum conhecimento estético do mundo. É uma manifestação corporal e assim, necessitado encontro desse corpo com a materialidade da experiência estética, num deixar ser,na supressão momentânea do logos. Uma cognição sensível, inclusive a musical en-volve dar voz ao corpo. O objeto de estudo da pesquisa de base clínica que gerou esse artigo é a musicalidadedas pessoas em ação no trabalho muiscoterapêutico, de modo a melhor compreendê-la enquanto sinais estético.

Musicalidade e uma Estética da Percepção na MusicoterapiaA investigação da musicalidade sob o ângulo da Estética da Percepção busca olharpara o lado da cognição por uma mente corporificada (percepção pré-conceitual eanterior à lógica) complementar aos processos de pensamento (lógico). Uma vez queo campo teórico da Musicoterapia tem por base a integração entre Arte, Ciência eSaúde, as pesquisas têm demonstrado a aplicabilidade da música com fins terapêuti-cos em estudos sobre Música e Cérebro (Neurociências), Musicoterapia Neurológica;também os pesquisadores, ao considerarem a música como forma de interação, inte-gração e formada na cultura, focam na direção dos estudos de uma Cognição Social,Musicoterapia Centrada na Cultura; o espaço terapêutico da Musicoterapia tambémacolhe que as manifestações sonoro, musicais, corporais e verbais existentes na inte-ração entre musicoterapeuta e paciente traduzem o interior dos pacientes, Musicote-rapia Interativa.

Essas abordagens acima citadas, entre outras, trabalham o entendimentodo processo musicoterápico com a interpretação dos fenômenos clínicos e a constru-ção dos sentidos e significados pela descrição e interpretação da experiência musicalvivida. Ao que parece se está no campo do pensamento lógico, do pensamento con-ceitual com o qual aumenta-se o “estoque de conhecimento” (Zuckerkandl 1956). Asexperiências vivenciadas são, assim, compreendidas por uma ação do pensamentológico. Porém as experiências musicais/musicoterapêuticas envolvem a Música, a Arte

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e pode-se dizer que se está também imerso no campo do sentir pelo sentir, no aqui eagora, ou seja, no caminho do ‘sensível’. A música além das propriedades fisiológicase psicológicas possui as propriedades que nenhum outro agente ou meio têm. “Nelaexiste o estético e o espiritual e através do executor, o artístico” (Altshuler 1954, 34).Uma aproximação com esse ambiente musical estésico inerente ao trabalho da Mu-sicoterapia é instigante e assim como a cognição sensível é complementar ao pensa-mento lógico, a musicalidade enquanto cognição sensível é complementar àsinterpretações dos fenômenos musicoterapêuticos.As abordagens que têm por base a Música propõem uma revisão de seu conceito demodo que a vê, não como um objeto a ser manuseado, mas como uma forma de serde cada pessoa (musicing) (Eliott, apud Aigen 2005). Nesse ambiente, o conceito demusicalidade diferencia-se de como ela é compreendida pelo senso comum (habili-dade para a execução musical, ou, um dom especial) e amplia-se para o campo dapercepção auditiva (uma forma de cognição). Como capacidade de percepção auditiva(sons e vibrações) é pela musicalidade que os aspectos relacionais entre os sons, asqualidades dinâmicas da nota, favorecem a escuta dos sons como música, única paracada pessoa. A musicalidade permite a cada um perceber o fluxo das coisas à sua volta de modocontínuo, uma cognição estética atua na leitura externa de sua existência no mundo,existência essa em relação com o meio, o contexto, com as outras coisas particularesque habitam a vizinhança.No trabalho musicoterapêutico com o musicing (musicalidade em ação) como o lugardos acontecimentos terapêuticos, a estese é real, mas de que modo se manifestam ossinais estéticos e as características de sensibilidade, inconcebível e insignificante?Uma pesquisa clínica com observação de registros em vídeo de sessões individuaisbusca pelas manifestações epifanicas, pelas sensibilidades, pelas ações inconcebidase insignificantes. Observar e descrever as coisas particulares que habitam a vizinhança,existentes nas interações sonoro, musicais, corporais e verbais entre musicoterapeutae participante da sessão.Uma metodologia de pesquisa que ajude nessa busca não está pronta. Ela se fará àmedida que as sessões ocorram e os vídeos sejam observados e descritos. O que sebusca são sinais estéticos, ou seja, as qualidades das características da cognição esté-tica enquanto sensibilidade, inconcebível e insignificante.

Considerações FinaisAs experiências musicais e o riquíssimo campo do ‘sentir’ são inerentes aos trabalhosmusicoterapêuticos e pouco se tem estudado sobre estes aspectos. Talvez seja pela di-ficuldade de se estudar cientificamente o ‘sentir’ humano. Não se está falando dossentimentos ou das emoções apenas, mas do corpo como colaborador de qualquerprocesso de pensamento. Através dos estudos bibliográficos é possível afirmar que a musicalidade é uma formade cognição sensível. Se no trabalho musicoterapêutico considera-se música como

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musicalidade em ação, as transformações pessoais vividas pelos participantes se dãopela somatória de elementos conscientes, o logos (interpretação da experiência esté-tica) e inconscientes, a cognição sensível (as epifanias, os sinais estéticos). Por relatode pesquisas no campo da Musicoterapia pouco se foca nesse âmbito dos saberes, dassensações, sentimentos e percepções por elas mesmas, sem a ação interpretacionaldo logos.Na cognição estética existe uma comunicação pela percepção das manifestações cor-porais. Nas interações musicais, sonoras, verbais e corporais inerentes aos atendi-mentos musicoterapêuticos essa comunicação constitui o contorno sonoro musicalque acolhe os participantes. Como um campo energético sonoro mantido pelas mu-sicalidades em ação e pela cognição sensível.A música na musicoterapia não é mesma música na Música, isso é fato, mas o musi-coterapeuta pode fazer música pela música, pois o elemento artístico é inerente a todamanifestação musical. A construção da experiência musical/musicoterapêutica seprocessa à medida que o musicoterapeuta se encontra com a experiência estética e acognição estética do seu próprio fazer musical. A cognição sensível mostra-se im-prescindível tanto para os participantes quanto para os musicoterapeutas.Aprofundar estudos sobre a musicalidade como cognição sensível pode apresentar

elementos simples e importantes que complementam o pensamento lógico em açãonas interpretações dos fenômenos musicoterapêuticos dos atendimentos.

ReferênciasAigen, Kenneth. Music Centerede Music Therapy. Gislum, NH: Barcelona Publishers, 2005.Altshuler. Ira. “The past present and future of Musical Therapy”. In Edward Podolsky, ed., Music

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terapia. http://www.sgmt.com.br/anais/p09palestras/Mesa06_p4_CleoCorreia.pdfCorreia, Cleo; Mauro Muskat e Sandra Campos. “Música e Neurociências.” In Rev. Neurociências

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Zuckerkandl, Victor. Sound and Symbol: Music and the external word. Princeton, NJ: PrincetonUniversity Press, 1956.

———. Man the Musician. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1973.

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Um estudo sobre representações sociais de alunos de graduaçãosobre os conceitos de “música” e “musicalidade”

realizado nos pólos Brasil e ItáliaAnna Rita Addessi

[email protected]à di Bologna

Rosane Cardoso de Araú[email protected]

Universidade Federal do Paraná

Resumo O escopo para esta comunicação é a apresentação dos dados de uma pesquisa reali-zada sobre os conhecimentos implícitos de futuros professores de música. A pesquisafoi desenvolvida por meio de um estudo de comparativo, realizado em diferentespaíses (Itália, Brasil, Espanha e Israel). Para este trabalho são apresentados os resul-tado dos dados coletados no Brasil e na Itália. O estudo comparativo foi conduzidopor meio da utilização de um questionário construído com questões abertas e fecha-das, aplicado inicialmente em um estudo piloto realizado na Itália e descrito por Ad-dessi, Carugati e Selleri (2007) e Addessi e Carugati (2010). O referencial teórico foiembasado na teoria das Representações Sociais de Moscovici (1981). Nos resultadosexplicitam-se especialmente as concepções dos graduandos sobre o que é música, oque é musicalidade, as características da musicalidade infantil, especialmente no con-texto da educação de crianças em idade pré-escolar.

Palavras-chaverepresentações sociais – formação de professores – musicalidade

Introdução: objetivos e justificativa da pesquisa

Esta pesquisa foi realizada tendo como hipótese a idéia de que os conceitos de músicae musicalidade podem estar relacionados a uma contrução psicológica e social, con-forme aponta Moscovici (1981) na sua teoria das Representações Sociais. Segundoeste autor, as representações sociais são um conjunto de conceitos, afirmações e ex-plicações que o sujeito constrói, originadas na vida diária, nas inter-relações. As re-presentações sociais são processos simbólicos, de construção da realidade, que guiamas decisões e os comportamentos individuais. Sendo assim, os futuros professores(licenciandos em música), a partir de suas concepções e conhecimentos implícitos,podem ter diferentes impressões sobre o que é musica e o que é musicalidade a pontode afetar sua identidade profissional, sua forma de ensinar e também de aprender.Deste modo o foco deste estudo não foi simplesmente a investigação dos diferentessignificados que as palavras música e musicalidade podem ter, mas sim o olhar para

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os diferentes conhecimento implícitos dos professores que influenciam suas própriaspráticas didáticas. Os conhecimentos construídos pelos alunos de licenciatura em música sobre os ter-mos musicalidade, música, musicalidade infantil, vinculados às características doprofessor de música, envolvem uma complexa combinação de idéias, conceitos, este-reótipos, que nascem e se desenvolvem ao longo das dinâmicas psico-sociais viven-ciadas. No campo da psicologia social, observa-se um particular interesse depesquisadores no estudo dos conhecimentos implícitos dos professores, como é pos-sível observar nos trabalhos de Olsson (1997), Hargreaves et al. (2007), Marshall eHargreaves (2007), Hallam (2006), Chmurzynska (2006), Araújo, Santos e Hentschke(2009), Lindgren e Folkestad (2005) e Zandén (2009), dentre outros.Já sobre o conceito de musicalidade, vários autores têm discorrido sobre a compreen-são do termo, mas não existe um consenso sobre sua definição. De acordo com Wiese(2011), o termo musicalidade é objeto de estudo em diferentes campos, vinculados àmusicoterapia, etnomusicologia, psicologia e educação. Assim, de acordo com estaautora, embora o termo musicalidade seja considerado como palavra polissêmica, épossível perceber que os diferentes conceitos seguem em duas direções distintas: umque considera a musicalidade como um “dom”, um “talento” observado em algumaspessoas, e outro que enfoca a musicalidade como um traço humano. De qualquermodo, tanto Wiese (2010) quanto Maffioletti (2001) observam que o conceito de mu-sicalidade traz repercussões sobre a forma como os professores de música concebemsuas práticas de ensino.Ao buscar, portanto, referências para nortear as discussões sobre as concepções demusicalidade, encontram-se diferentes perspectivas que podem ser consideradas emsua compreensão. Por exemplo, Sloboda (2008) e Swanwick (2003) apontam paraquestões de “sensibilidade musical”, enquanto Blacking (1973) chama a atenção paraaspectos e características específicas, presentes nas diferentes sociedades, que defi-nem o indivíduo “musical”.Assim, para esta pesquisa, o objetivo foi a verificação das concepções de licenciandosem música sobre o que é música, musicalidade e as características da musicalidadeinfantil, bem como a identificação, na opinião dos participantes, de quais as caracte-rísticas do professor de música e do significado da educação musical em diferentesfases escolares. A pesquisa foi desenvolvida em duas grandes etapas: uma etapa inicial,de aplicação de um estudo-piloto realizado na Itália entre os anos de 2003 e 2006 eapresentada por Addessi, Carugati, Selleri (2007), e Addessi e Carugati (2010) e umaetapa final entre 2009 e 2010 de aplicação do questionário em outros países (Brasil,Espanha e Israel). Neste texto são focados especificamente os resultados dos pólosBrasil e Itália acerca das seguintes impressões dos participantes: A) concepções demúsica; B) concepções de musicalidade; e C) características da musicalidade infantil. A compreensão dos processos de representação social dos alunos de graduação é umobjeto significativo para a discussão de dados sobre a formação do professor de mú-

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sica. De acordo com Moscovici (1981), freqüentemente pode-se considerar os conhe-cimentos originários da representação social como contrários ao pensamento cientí-fico. Neste sentido, a busca por estas concepções e a compreensão dos pensamentosque em geral guiam as ações dos estudantes dos cursos de licenciatura em músicapode ser de grande valia para os educadores que atuam no ensino superior, nos sen-tido de auxiliar os licenciandos a reconhecer, avaliar e revalidar conceitos, precon-ceitos e idéias acerca do desenvolvimento musical infantil e do papel do educadorneste processo.

MetodologiaA pesquisa-piloto (ou estudo-piloto) foi realizada na Itália, por meio de um estudode levantamento, cujo instrumento de coleta de dados foi um questionário abertoapresentado para os estudantes universitários no início e no final de um curso de gra-duação para professores de música, durante os anos letivos de 2003/2006 (Addessi,Carugati, Selleri, 2007; Addessi e Carugati, 2010). Nele os sujeitos foram solicitadosa completar algumas frases como: “Música é . . .”, “A musicalidade é . . .”, além de per-guntas sobre “musicalidade infantil”, o conceito de educação musical e o perfil pro-fissional dos professores de música. Foram recolhidos 853 questionários. Após aclassificação das respostas, foram selecionadas algumas categorias especialmente de-finidas para a verificação das concepções dos estudantes, como por exemplo: música –comunicação, cultura, arte, etc; musicalidade – natural, talentoso, educado, capaz,criativo, etc; além de características sobre a musicalidade infantil, e sobre o professorde música.Após a aplicação do estudo-piloto na Itália, foi replicada a pesquisa em outros trêspaíses: Brasil, Israel e Espanha. Os dados de enfoque para este texto, portanto, são osresultados dos estudos comparativos entre Brasil e Itália, buscando a comparaçãopela aplicação das mesmas categorias em diferentes contextos culturais. As questõesapresentadas no questionário foram divididas em:

a) Dados de caracterização dos respondentes (idade, sexo, formação musical, ex-periência em docência);

b) Concepções sobre música, musicalidade, características da musicalidade infantilem diferentes fases etárias; graus de musicalidade;

c) Características do professor e significado da educação musical.

Neste texto, conforme apontado anteriromente, os resultados estão focados especial-mente no conceito de música, musicalidade e as características da musicalidade infan-til.

Dados da ItáliaNa Itália, os dados foram considerados pelo total de participantes do estudo piloto,aplicado pelo período de três anos (entre 2003 e 2006). Participaram do estudo 447

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alunos em início de curso e 352 alunos em final do Curso de graduação em Educaçãode Som (Universidade de Bolonha, Bolonha/Itália). Para o conceito de música (músicaé . . .), foram indicadas 17 categorias de respostas, dentre as quais os conceitos maiscitados foram 1.º Estrutura, 2.º Comunicação, 3.º Emoção. As categorias encontradasforam (ver gráfico 1):

1. Comunicação2. Arte, estética3. Harmonia4. Energia, vida5. Estrutura6. Cultura7. Matéria8. Paisagem sonora9. Emoção10. Escuta, apreciação11. Fazer música12. Experiência individual13. Dança14. Criança, infância15. Um conceito específico16. Intencionalidade17. Outras definições

Gráfico 1 – “A Música é . . .” – Itália(Início de Curso: torres pretas / Final de curso: torres brancas)

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Os dados obtidos foram referentes, portanto a alunos de licenciatura que se encon-travam tanto no início do curso quanto no final do curso. Para categorizar as respostas,foram observadas, as diferentes concepções apresentadas. Por exemplo, as respostascomo “uma forma de expressar das próprias emoções, sensações, através de uma lin-guagem com regras específicas, que tem sua própria gramática e sintaxe” foram colo-cadas em “música como comunicação” e “música como estrutura”. Respostas como

“tudo o que seja ouvida, que tem intencionalidade e expressividade” foram colocadastanto na categoria música como “comunicação” quanto na categoria “expressão”. Sobre as impressões dos respondentes a respeito da “musicalidade infantil”, a maioriados participantes afirmou que “existem crianças mais musicais”. Foram categorizadasas respostas em dois grupos, isto é, num grupo de alunos iniciantes (beginning of thecourse) no curso e num grupo de alunos em final de curso (end of the course). Emambos os grupos a maioria das respostas indicou que “sim”, existem crianças maismusicais. Em segundo lugar vieram as respostas “não”, ou seja, não existem criançasmais musicais que outras. E por fim foram verificadas, em menor quantidade, o re-sultado de alunos que não responderam a questão ou que possuíam dúvidas sobre oconceito e não opinaram (ver gráfico 2).

Gráfico 2 – “Existem crianças ‘mais musicais’ ?” – Itália

Os participantes, que responderam que “existem crianças mais musicais” foram tam-bém questionados sobre as características dessa musicalidade infantil. De acordo comas respostas obtidas, foram destacadas especialmente algumas categorias de respostaspara identificar os principais traços de musicalidade apontados. Assim, dentre as di-ferentes respostas foi possível elencar onze aspectos:

1. Caraterística natural2. Superdotação3. Elemento para ser ensinado4. Presença de habilidades específicas5. Criatividade6. Alegria vivenciada

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7. Atração pela música8. Reposta corporal para a música9. Forma de executar as atividades musicais10. Forma de apreciar11. Outras respostas

Também foi observada uma categoria de resposta “eu não sei” (ver gráfico 3):

Gráfico 3 – Protótipos das crianças mais musicais – Itália

Também este resultado foi considerado em dois grupos: iniciantes do curso (torrepreta) e alunos em final de curso (torre branca). Dentre as categorias mais indicadaspelos futuros professores observou-se que eles percebem uma maior musicalidadeem seus alunos especialmente por meio da presença de habilidades musicais especí-ficas (como facilidade rítmica, afinação, aspectos motores, dentre outras); por meioda forma como observam que as crianças se sentem atraídas pelas atividades musicais;por meio da observação de como as crianças executam as atividades musicais; e tam-bém como percebem a música, ou seja, como escutam e apreciam a música.

Dados do BrasilNo Brasil a pesquisa foi realizada no departamento de Artes da Universidade Federaldo Paraná, na cidade de Curitiba. O questionário foi enviado para alunos do curso deEducação Musical entre novembro de 2009 e março de 2010. Os alunos que respon-deram ao questionário estavam entre o terceiro e quarto anos da graduação, ou seja,em final de curso. No Brasil, portanto não foram computados, como na Itália, a opi-nião dos alunos de início de curso. Esta será uma próxima etapa de desdobramentodesta investigação. Também observa-se que no Brasil o tempo de aplicação do ques-tionário foi menor. Enquanto que para o estudo piloto a duração foi de três anos (oque permitiu a participação de um grande número de alunos), no Brasil a coleta dedados foi realizada praticamente em um semestre. Foram coletados 50 questionários.

360

Ao responderem sobre o que é música, assim como no questionário aplicado no es-tudo piloto, os resultados obtidos, indicaram as duas categorias mais citadas: emprimeiro a música como “estrutura” e em segundo a música como “comunicação eexpressão”. A música como “emoção” foi a terceira categoria mais citada (1.º Estrutura,2.º Comunicação, 3.º Emoção). Estes resultados, portanto coicidem com o resultadoalcançado com os estudantes italianos, embora no grupo de estudantes brasileirostenham participado exclusivamente alunos de final de curso. Além destas três cate-gorias, também foi bastante indicada a categoria “outros” na qual estavam descritosos seguintes termos para definição do conceito de música: capacidade inclinação, aintimidade com o som (ver gráfico 4).

Gráfico 4 – “A música é . . .” – Brasil

Sobre a questão da musicalidade, ou seja, se os licenciandos observavam que existiamcrianças mais musicais que outras, a maior parte dos estudantes brasileiros declarouque “sim”, isto é, que percebiam que existem crianças com mais musicalidade que ou-tras. Alguns, que afirmaram que “não existem crianças mais musicais que outras”,justificaram suas respostas explicando que acreditam que as crianças se tornam maisou menos musicais de acordo com o contexto em que vivem. Também foi significativoverificar que todos os respondentes opinaram ou positivamente ou negativamente:não houve alunos indecisos ou sem opinião formada (ver gráfico 5).

Gráfico 5 – “Existem crianças `mais musicais´?” – Brazil

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Já os resultados obtidos pela participação dos estudantes brasileiros que afirmaramque “existem crianças mais musicais” apontaram as características da musicalidadeinfantil principalmente por meio dos seguintes elementos: 1.º presença de habilidadesespecíficas; 2.º atração pela música; 3.º forma de executar as atividades musicais. Tam-bém foram citadas outras categorias, com menos ênfase, como a alegria, a criatividadee a forma como as crianças ouvem/apreciam a música. Na categoria “outros” foi in-cluída a questão da expressividade infantil. (Ver gráfico 6):

Gráfico 6 – Características da musicalidade infantil – Brasil

ResultadosInicialmente destacamos que o foco deste estudo — o conhecimento implícito de mú-sica — realizado com estudantes universitários de dois contextos distintos (Itália eBrasil) e interpretado por meio da teoria das representações sociais trouxe dados sig-nificativos para compreender a concepção de música e musicalidade dos estudantesenvolvidos na pesquisa. Também observa-se que o estudo-piloto, realizado na Itália,forneceu um questionário estruturado passível de aplicação em outros contextos, umavez que foi possível a aplicação do mesmo no Brasil, na Espanha e em Israel.Ao analisar os dados obtidos neste estudo, originários do estudo com os alunos de li-cenciatura brasileiros e italianos, verifica-se que, embora a coleta seja relativa a gruposde contextos distintos, os resultados foram muito semelhantes, ou seja, existem nosresultados deste estudo elementos que sugerem que as representações sociais sobremúsica e musicalidade infantil estão associadas às experiências individuais e a crençaspartilhadas. Neste sentido, Moscovici (2002) explica que as representações sociaisapresentam crenças nucleares (crenças básicas) sobre as quais os indivíduos integramsuas experiências particulares. Segundo o autor, tais experiências, quando partilhadasno espaço da representação, podem produzir transformações.Campos e Rouquette (2003), ao abordar as diferentes dimensões das representaçõessociais, explicam que estas são permeadas por elementos cognitivos e afetivos. Se-gundo os autores, embora muitas pesquisas tenham sido realizadas com foco nessateoria, ainda existem poucos estudos que focam na dimensão afetiva. Os autores

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explicam:Desde que Moscovici (1961, 1976) abriu o campo teórico do estudo das represen-tações sociais, os campos de pesquisa e aplicação vêm se multiplicando. Inúmerospesquisadores têm se dedicado ao estudo desta teoria, seja em busca do conheci-mento de novas representações (no domínio da saúde, da educação, da economia,etc), seja no desenvolvimento teórico-metodológico do próprio campo. Entretanto,se, de um lado, é forçoso reconhecer que muito pouco se tem estudado sobre a di-mensão afetiva que atravessa as representações, de outro lado, é preciso salientarque a importância desta dimensão, no funcionamento das representações, nuncafoi rejeitado, ao contrário, os principais trabalhos de elaboração e consolidaçãoda teoria reconhecem o papel da esfera emocional (da experiência privada e sub-jetiva) no funcionamento das representações. Em outras palavras, significa dizerque, se consideramos que uma representação é um conhecimento estruturado quetem um papel determinante no modo como os indivíduos vêm e reagem face àrealidade, fica evidente que este conhecimento é dotado de cargas afetivas, é atra-vessado (ou poderia se dizer, “ativado”) por um componente afetivo (Campos eRouquette 2003, 435).

Assim, para os estudantes italianos e brasileiros, suas opiniões sobre música e musi-calidade puderam ser compreendidas como impressões permeadas de elementos cog-nitivos e afetivos, construídas em momentos distintos de suas vidas, seja nasexperiências vivenciadas em diferentes contextos de aquisição de experiências, comopor exemplo, na vida familiar, na universidade, seja nas suas práticas de docência,enfim em diferentes circunstâncias. Embora os dados na Itália tenham sido coletados com grupos de estudantes de inícioe de fim de curso e no Brasil somente com estudantes de fim de curso, foi possívelconfrontar os resultados e encontrar muita similaridade nas respostas obtidas. Destemodo, após a análise dos resultados e da categorização das respostas, foi possível des-tacar as seguintes conclusões, apresentadas na síntese abaixo:

1. A maioria dos estudantes — futuros professores — tanto os italianos quanto osbrasileiros acreditam que existem crianças mais musicais que outras e para com-provar esta afirmação conseguem identificar elementos que foram categorizadosnesta pesquisa.

2. Ambos grupos — de estudantes italianos e brasileiros — que acreditam que “exis-tem crianças mais musicais” percebem a musicalidade das crianças por meio daobservação da presença de habilidades específicas no fazer musical, ou seja, umamaior facilidade de lidar com elementos rítmicos e/ou melódicos e/ou motores,dentre outros. Tanto para os estudantes italianos, quanto para os brasileiros estafoi a segunda categoria mais citada.

3. A forma como as crianças se sentem atraídas pelas atividades musicais é um ele-mento significativo que os futuros professores dos dois países observaram comocaracterística de musicalidade infantil. Para os estudantes brasileiros esta foi acategoria mais citada, enquanto que para os italianos esta foi a quarta categoriamais citada.

4. Também o modo como as crianças executam as atividades musicais, bem como

363

percebem/apreciam a música são dados relevados por todos os participantes dapesquisa como elementos que indicam musicalidade. Os estudantes italianos ci-taram em primeiro lugar a forma como as crianças executam as atividades mu-sicais como o principal elemento de observação. Já no Brasil esta foi a terceiracategoria mais indicada. No caso da categoria sobre a forma como as criançaspercebem/apreciam a música, os italianos indicaram esta, em terceiro lugar, en-quanto os brasileiros indicaram em quinto lugar.

5. Para o grupo de licenciandos brasileiros, a categoria citada em quarto lugar comouma característica das crianças musicais é a questão do talento/super-dotação.Esta categoria foi citada pelos estudantes italianos somente em sexto lugar.

6. Já o conceito de música, ou seja, a definição de o que é música, trouxe especial-mente três categorias específicas nos dados dos alunos italianos e brasileiros, istoé, a música foi considerada como uma forma a) de comunicação, b) de estruturae c) de emoção, dentre outras categorias citadas.

Assim, pode-se elencar parte dos dados sintetizados, nos resultados nas tabelas abaixo(ver tabelas 1 e 2):

Tabela 1 – Características das crianças mais musicais

Tabela 2- Conceito de música

Os dados alcançados com esta pesquisa, portanto, ilustram um exemplo de como épossível construir conceitos e compreender a opinião dos licenciandos à luz da teoriadas representações sociais. Neste sentido, entende-se que as concepções aqui sinteti-zadas representam idéias que norteiam as decisões e a prática de ensino de músicados grupos de estudantes participantes. Este enfoque, enfim, traz implicações paraas pesquisas na área da cognição, pois contribuem para a compreensão do pensa-mento dos licenciandos quanto às suas representações de música e musicalidade.

ReferênciasAddessi, Anna Rita. “Training of music teachers. Music knowledge as ‘social representations’ ”,

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ITÁLIA

BRASIL

1.º como executam as atividades musicais 1.º sentem atraídas pelas atividades musicais

2.º presença de habilidades específicas 2.º presença de habilidades específicas

3.º percebem/apreciam a música 3.º como executam as atividades musicais

4.ºsentem atraídas pelas atividades musicais 4.º talento/superdotação

ITÁLIA

BRASIL

1.º estrutura 1.º estrutura

2.º comunicação e expressão 2.º comunicação e expressão

3.º emoção 3.º emoção

364

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365

Aspectos relacionados à percepção e à cognição em propostas diferenciadas de educação musical

Denise Álvares Campos [email protected] Federal de Goiás

ResumoEste artigo é resultado de uma pesquisa realizada em educação musical, com ênfasenos aspectos pedagógicos e cognitivos presentes no desenvolvimento da percepçãomusical. A fundamentação teórica foi estabelecida por meio da associação entre apercepção e a cognição na perspectiva de Piaget, Gardner e Vigotsky, assim como aaplicação das idéias desses autores à educação musical, feita por diversos psicólogos.No âmbito específico da pedagogia musical, buscamos analisar como as diversas pro-postas dos pedagogos musicais mais conhecidos — Dalcroze, Orff, Kodály, Willems,além dos educadores da Oficina de Música — abordam o desenvolvimento da percep-ção musical, tentando estabelecer relações com a abordagem cognitiva. O objetivogeral da pesquisa foi o estudo do desenvolvimento da percepção musical em alunosde 3ª a 6ª série do ensino fundamental. Foram realizadas duas seqüências de ditadosmusicais tendo como sujeitos 262 alunos de 2 escolas públicas de Madri-Espanha. Osresultados obtidos nessa pesquisa confirmaram alguns estudos já feitos na área dapsicologia da música e se diferenciaram de outros. No primeiro grupo, podem ser ci-tados aqueles que constatam a forma gestáltica que a percepção musical assume,principalmente no início do processo de discriminação tonal. Quanto às questões dapedagogia musical, pudemos constatar que a maioria das propostas carece de umavinculação com os estudos desenvolvidos pela psicologia, sobretudo no aspecto cog-nitivo. Esta é a temática específica desse artigo, uma vez que os aspectos mais geraisda pesquisa foram relatados em outro momento.

IntroduçãoEm uma pesquisa realizada no período de 1994 a 1998 numa universidade espanhola,tratamos da questão do desenvolvimento da percepção musical na escola de educaçãobásica, traçando paralelos entre a pedagogia musical e a psicologia cognitiva. Um re-sumo geral deste trabalho foi apresentado no I SIMCAM, em 2005, na cidade de Curi-tiba. O retorno a essa temática baseia-se na necessidade que sentimos de colocar aquestão da educação musical no âmbito das discussões que ocorrem nos SIMCAM.Temos adotado essa postura em outros momentos, conforme se pode observar naspublicações que temos nos Anais de 2007 e 2009. O recorte que fazemos neste artigotrata especificamente da questão da pedagogia da percepção musical com enfoquena questão cognitiva.

A pesquisa: objetivos e metodologiaNa pesquisa já citada, a fundamentação teórica foi estabelecida por meio da associa-

366

ção entre a percepção e a cognição, na perspectiva de Piaget, Gardner e Vigotsky, eda aplicação das idéias desses autores à educação musical, feita por psicólogos comoZenatti (1969), Zimmermann (1990), Hargreaves (1986), Sloboda (1989), Vera Tejeiro(1989), Beyer (1988), dentre outros.Com relação ao desenvolvimento da percepção musical, pudemos observar que exerceuma enorme influência o fato de que o aluno vivencie um processo de educação mu-sical, conforme defendem diversos autores (Hargreaves 1986; Shuter-Dyson 1990;Sloboda 1985 e 1990; Zenatti 1991). E que tal processo será ainda mais importante,se for conduzido de forma integrada ao desenvolvimento cognitivo da criança. Váriosautores têm se interessado por tal integração, buscando compreender o desenvolvi-mento musical e propor formas específicas de atuação pedagógica (Gardner 1994;Swanwick 1988, entre outros).Tendo estabelecido essa fundamentação na psicologia cognitiva, buscamos analisarcomo as diversas propostas dos pedagogos musicais mais conhecidos — Dalcroze,Orff, Kodály, Willems e a Oficina de Música — abordam o desenvolvimento da per-cepção musical, tentando estabelecer relações com a abordagem cognitiva. Esse é umrecorte da pesquisa citada que queremos ressaltar neste artigo, uma vez que em textoanterior já explicitamos as questões mais gerais da pesquisa, tais como sujeitos, va-riáveis, instrumentos, procedimentos e resultados.

A percepção e a pedagogia musicalA ênfase dada pelos PCN à abordagem construtivista desencadeou uma série de rea-ções entre os educadores musicais. No entanto, nem sempre sabemos como relacionaressa base teórica às distintas metodologias que se apresentam em nossa área. E, defato, os pedagogos mais conhecidos também não se preocuparam em estabelecer ex-plicitamente um paralelo entre suas propostas pedagógicas e as teorias que lhes deramsuporte. Segundo já dissemos em um texto anterior (Campos 2009, 31).

Em uma de suas obras mais conhecidas, The Developmental Psychology of Music,Hargreaves analisa as propostas de renomados pedagogos musicais, como Orff,Kodály e Suzuki e diz que são propostas basicamente ‘pedagógicas’ porque “nãoincorporam uma visão implícita da natureza do desenvolvimento da criança e dopapel que a música deve ter nele (Hargreaves 1986, 221)”. Visando suprir essa la-cuna, ele diz que a psicologia cognitivo-evolutiva poderia ser a fundamentaçãopara a educação musical, na medida em que os estudos nessa área podem explicaro fenômeno do desenvolvimento musical (Hargreaves 1986, 213).

No entanto, autores conhecidos no âmbito da educação musical — com enfoque cons-trutivista — tentam extrair das distintas metodologias alguns aspectos que as apro-ximam ou distanciam da abordagem que defendem. Para entendermos a análise quefazem, entretanto, precisamos recordar os elementos básicos das distintas propostaspedagógicas. Com essa finalidade, apresentamos o conteúdo de algumas dessas pro-postas — especificamente as de Willems, Kodály, Dalcroze e Orff — nas tabelas apre-sentadas abaixo, cujo objetivo é facilitar uma comparação entre as diversasmetodologias em relação a temas específicos da educação musical.A abordagem de cada pedagogo — bem como as atividades propostas por eles — está

367

contemplada no texto da pesquisa que citamos inicialmente, com ênfase nas ativida-des para o desenvolvimento da percepção. No entanto, devido às características destetexto, faremos apenas a discussão de algumas idéias mais gerais relacionadas às di-versas propostas pedagógicas.

WILLEMS KODÁLY

1 . ÊNFASE • Relação educação musical/psicologia

• Desenvolvimento sensorial

• Leitura e escrita musical• Folclore• Canto

2. DESENVOLVIMENTO / TALENTO INATO

• Defende o desenvolvimento,mas conserva os “rótulos”

• Educação musical para todos

3. DESENVOLVIMENTO RÍTMICO

• “Movimento ordenado”• Ritmo = natureza viva, fisio-

lógica. Diferença entre ritmoe métrica.

• Ritmo das canções (c/ movi-mentos corporais).

• Uso de instrumentos de per-cussão

• Representação dos valores:___, _ “long-curt”, “bran-ne”,etc.

• Canto e movimento. Jogoscantados, danças folclóricas.

• Representação dos valores:sem dar nomes técnicos. Porsílabas (ta,ti), acompanhadasde palmas. Utilização depaus sem cabeças ( | | | | ).

4. DESENVOLVIMENTO MELÓDICO

• Melodia = natureza afetiva• Intervalo melódico = básico• Canções: Atividade principal.• Base: Escala diatônica maior.

• Canções: atividade principal• Seqüência de introdução de

intervalos e tons: 3ª m, in-tervalos da esc. Pentatônica,fá (4ª) e sí (7ª).

• Manosolfa• Base: Escala pentatônica (es-

calas maiores, menores emodais a continuação).

5. DESENVOLVIMENTOHARMÔNICO

• Harmonia = natureza men-tal, intelectual.

• Intervalos harmônicos, de-pois acordes. Execuções em3ªs. e 6as.

• Harmonia: espaço reduzidona educação musical.

• Canções a 2 vozes• Entonação de intervalos har-

mônicos, também com suasinversões

• Introdução de acordes paraacompanhamento de can-ções.

6. LEITURA E ESCRITA MUSICAL

• Fase preparatória: nome denotas (muito cedo, sem

“muletas”); gráficos para al-tura sonora; leitura relativa,sem claves.

• Pentagrama grande (c/ 11 li-nhas). Para solfejo, com 5linhas.

• Método sol-fá ou solfejo rela-tivo.

• Sem dar nomes absolutos àsnotas (inicialmente).

• Leitura e escrita: pré-requi-sito para outras atividadesmusicais.

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7. PERCEPÇÃO MUSICAL7.1 – Desenvolvimento

auditivo (aspectos gerais)

• “Audição interior”, exerci-tando: o ouvido relativo e oouvido absoluto, com maiorênfase no 1º (mas conside-rando a altura absoluta dossons).

• Canções = meio para formaro ouvido

• “Espaço intratonal” = discri-minação das sub-divisões dotom.

• Desenvolvimento do “ouvidointerno”: reconhecimento deintervalos, discriminação deinter-relações entre tons daescala, entonação silenciosade canções ou exercícios. Ob-jetivos: afinação e leitura à 1ªvista.

• “Micro-estruturas”, cançõesetc.

7.2 – Solfejo • Partindo da escala diatônicaMaior

• Intervalos: devem ser treina-dos (“Canções c/ interva-los”), mas depois dosexercícios com as notas daescala (“canções de 2 a 5notas”).

• Solfejo relativo: assimilaçãodos intervalos. Depois, solfejoabsoluto.

• Leitura a 1ª vista.

7.3 – Ditados melódicos

• Sugere passos práticos, quevão da imitação cantada defrases feitas pelo professor àgrafia de cada ditado.

• Inicialmente orais. Repeti-ção da frase, uso do sol-fá eda manosolfa.

7.4 – Ditados rítmicos • Idem. • Idem.

8. CRIATIVIDADE /IMPROVISAÇÃO

• Incentivo à improvisação,mas relacionada com osconteúdos já aprendidos:Participação ativa. Orien-tada pelo professor.

• O mesmo que Willems.

9. MATERIAL MUSICAL • Canções folclóricas e can-ções compostas por elemesmo.

• Instrumentos de percussão eoutros instrumentos inven-tados por ele para o treina-mento auditivo.

• Canções folclóricas e cançõescompostas por ele mesmo.

• Obras-primas.• Instrumentos: acima de tudo,

a voz humana.

10 . OBSERVAÇÕES • Belga (1889-1978)• Defende uma ampla prepa-

ração musical anterior à prá-tica instrumental.

• Húngaro (1882 – 1967).• Igual a Willems, defende

uma ampla preparação musi-cal anterior à prática instr.

369

DALCROZE ORFF

1 . ÊNFASE •“Rítmica”: expressão dos ele-mentos musicais por movi-mentos corporais.

• Ritmo = elemento coorde-nador na educação musical.

•“Música elementar” = palavra,movimento e música.

• Improvisação

2. DESENVOLVIMENTO / TALENTO INATO

• Defende o desenvolvimento. • Considera o talento, masacredita que todas as crian-ças têm algo de musicalidade.

3. DESENVOLVIMENTO RÍTMICO

• Através de movimentos cor-porais• Ritmo = movimento na mú-sica

• Começa pela recitação de palavras, pelo movimento epercussão corporal, seguidoda utilização de instrumen-tos.

4. DESENVOLVIMENTO MELÓDICO

• Percepção e expressão dalinha melódica por movi-mentos corporais.

• Improvisação com a melodia• Base: escala diatônica de

Dó M.

• Também começa pela pala-vra, pela percepção e execu-ção do intervalo de 3ª menor.

• Base: escala pentatônica.

5. DESENVOLVIMENTOHARMÔNICO

• Canto de acordes• Associação entre a percep-

ção da harmonia e os movi-mentos corporais.

• Inicialmente, acompanha-mentos simples, pentatôni-cos. Introdução gradual dosistema tonal.

6. LEITURA E ESCRITA MUSICAL

• Não é o objetivo centralnesse método.

• Deve de ser precedida pelaaudição dos sons e por res-postas ativas a eles.

• Também para Orff, não é oobjetivo central.

• Os primeiros sons e ritmosexercitados podem ser simultaneamente representa-dos.

7. PERCEPÇÀO MUSICAL7.1 – Desenvolvimento

auditivo (aspectos gerais)

• Desenvolvimento do “ou-vido interior”

• Percepção do aspecto meló-dico a partir da fala (sol-mi,inicialmente). Introduçãodos intervalos pentatônicosrestantes.

7.2 – Solfejo • Solfejo com alturas absolu-tas

• Relações tonais na escala deDó M.

• Na sua forma tradicional,não é utilizado. Procura-se apercepção musical sem umaassociação prematura com anotação musical.

7.3 – Ditados melódicos

• Inicialmente: discriminaçãode tons e associação comexercícios motores e visuais .

• Idem.

370

WillemsÉ, dentre os pedagogos musicais, aquele que mais valorizou os estudos de psicologiaaplicados ao ensino da música. No entanto, apesar da contínua referência às BasesPsicológicas da Educação Musical (Willems 1961), ele não diz explicitamente a quetipo de estudos psicológicos se refere ao defender uma ou outra idéia. As “bases psi-cológicas” parecem-nos, às vezes, um pouco abstratas, ou muito genéricas, sem de-finições mais concretas.Outros aspectos da proposta pedagógica de Willems, que se relacionam mais de pertocom a percepção musical, são também questionados por outros educadores, comoEsther Beyer e Maura Penna. Elas comentam a ênfase dada por ele ao sistema tonale à escala maior. Maura Penna comenta que

Willems propõe a exploração do espaço intratonal, através de exercícios de per-cepção com a utilização de diferentes objetos. Mas esse trabalho sonoro de Wil-lems é ‘pré-musical’, não caminhando para nenhum tipo de estruturação commicrotons, e o tipo de acompanhamento ou harmonia criado para as melodiaspentatônicas introduz aspectos característicos do tonalismo (1990, 67).

Esther Beyer comenta o fato de que, além do mais, Willems considera o sistema tonale a escala maior como algo inato (Beyer 1988, 75). De fato, Willems chega a dizer que

“a escala se apresenta como um elemento simples e natural e com freqüência canta-sepor instinto” (Willems 1961, 74). E acrescenta: “A oitava, o acorde perfeito maior, ostons e os semitons cromáticos, são normas inerentes à própria natureza dos sons e à

7.4 – Ditados rítmicos • Inicialmente: reconheci-mento de padrões rítmicossimples.

• Idem.

8. CRIATIVIDADE/IMPROVISAÇÃO

• Ênfase na improvisação(também conduzida).

• Improvisação ao piano: habilidade necessária aoprofessor. Também uma dasformas de improvisação proposta ao aluno.

• Aspecto básico no Orff-Shul-werk.

• Desenvolvida através de: pa-lavras e intervalos simples;percussão corporal e instru-mental; canções etc.

9. MATERIAL MUSICAL • Canções improvisadas aopiano para exercícios rítmicos

• Instrumental Orff. Canções etextos folclóricos.

10. OBSERVAÇÕES • Suíço (1865-1950)• Da mesma forma que os de-

mais educadores defendeuma ampla preparação mu-sical anterior à prática ins-trumental.

• Método anterior aos de Orff,Kodály e Willems.

• Alemão (1895-1982)• Prática instrumental

elementar simultânea à iniciação musical. Instrumentos “clássicos” depois.

371

do ser humano . . .” (Willems 1961, 76). Tais afirmações são hoje em dia contrárias àmaioria das investigações em psicologia, as quais vêm provando a força da acultura-ção — ou da enculturação — na formação do sentido de tonalidade e seus reflexos napercepção musical. A autora citada questiona, ainda, outros aspectos de sua proposta, como por exemplo,a ênfase dada pelo autor à utilização de canções, segundo ela, como um meio e nãocomo uma finalidade na educação musical. Ela questiona: “A entoação de canções[. . .] é causa ou conseqüência de um bom domínio auditivo?” (Beyer 1988, 75). Nóspensamos, a este respeito, que entre o bom domínio auditivo e as canções pode haveruma ajuda recíproca. Também veremos que outros músico-pedagogos (como Kodály,por exemplo), buscam nas canções o suporte para o desenvolvimento de habilidadesimportantes na educação musical.

KodályDiz-se que em seu sistema de educação musical, Kodály procurou uma “via prática”para ajudar a aprendizagem musical, mas que não inventou quase nada. “Redescobriu,isso sim, caminhos já utilizados pelos gregos e romanos e andou por eles até chegara um reencontro com o seu próprio passado musical” (Joaquín Díaz apud Cartón eGallardo, s.d., 7). No entanto, se analisarmos os mais variados métodos de educaçãomusical, provavelmente poderíamos dizer o mesmo a respeito de todos, ou quasetodos eles. Violeta H. de Gainza diz, de maneira acertada, que “um novo método cos-tuma consistir, mais do que em um conjunto de novas idéias, em um novo ordena-mento de idéias conhecidas” (1964, 17). Com relação à ‘ordenação de idéias’ proposta por Kodály, parece-nos interessante oque diz Hargreaves: “em alguns aspectos o método de Kodály pode parecer excessi-vamente intensivo e inflexível, e contrário à idéia de que a compreensão intuitiva damúsica deveria ter precedência sobre o treinamento rigoroso de habilidades formais,particularmente nos primeiros anos” (1986, 222).Hargreaves minimiza sua crítica dizendo que isto pode ser o resultado da aplicaçãode seu método na atualidade, no qual “o espírito criativo e a riqueza da canção fol-clórica tradicional, que foi uma parte vital na concepção original de Kodály, infeliz-mente parece ter-se perdido ao longo do caminho” (Hargreaves 1986, 222).

DalcrozeO método de Dalcroze é inserido pelos educadores no contexto dos ‘métodos ativospara a educação musical’, categoria na qual poderíamos incluir, também, os outrosmétodos dos quais temos falado. Ou seja, na forma de propor a educação musical, oaluno tem uma participação efetiva. O conhecimento teórico é precedido por expe-riências sensoriais e afetivas com a música.No que se refere à percepção musical, alguns autores questionam o fato de que a pro-posta de Dalcroze (assim como a de Willems, já citado) baseia-se na escala diatônica

372

maior, vinculando o desenvolvimento melódico ao sistema tonal. Apesar das expe-riências com o “espaço intratonal” que Willems propõe, da utilização da escala pen-tatônica em Orff e Kodály e de canções modais também neste último, “o sistematemperado fica mantido e, de uma forma ou de outra, os métodos encaminham-separa a norma tonal” (Penna 1990, 67). De qualquer forma, isto apenas se diferencianos métodos que têm como objetivo a apreciação e a produção da música contempo-rânea, dos quais falaremos mais adiante.De forma genérica, o método de Dalcroze representa desde o ponto de vista dos psi-cólogos, uma oposição à aprendizagem “reiterativa, rotineira”. Davidson e Scripp ocontrapõem ao método de Suzuki, o qual “centra-se na aquisição de conhecimentosmusicais através de técnicas instrumentais” e “a aprendizagem produz-se através daacumulação de novas habilidades” (1991, 105-6). Porém, “o desenvolvimento musicalinfantil de Dalcroze depende mais de como a criança se aproxima da música e decomo ela a experimenta do que da forma pela qual a criança adapta-se ao repertórioou aos modelos técnicos que imitam as normas culturais” (Davidson e Scripp 1991,107). Dizem, ainda, que “os dois métodos mostram sua preocupação pelas primeirasetapas da aprendizagem da música e destacam o modo de representação física, enativo,da música . . .” . Mas:

Sua orientação psicológica difere de formas diversas. Em uma, o desenvolvimentoé contínuo, progressivo e aprende-se mediante a imitação exteriorizada e a repe-tição rotineira [...] Em Dalcroze, em princípio o desenvolvimento caracteriza-sepor um desdobramento da expressão musical através de um repertório de movi-mentos físicos e gestos (eurítmicos), passando depois às destrezas de alfabetizaçãomusical através da leitura, a escrita e o canto, e, por último, aos experimentos pes-soais com a improvisação ao piano. As crianças que recebem uma preparação tipoDalcroze começam seus estudos instrumentais tendo recebido já um considerávele amplo treinamento musical (Davidson e Scripp 1991, 108).

Parece-nos lógico que, apesar das considerações quanto ao enfoque fortemente tonalde seu método, para a percepção musical em termos gerais, tal ênfase nos sentidos ena ação do aluno será sempre mais produtiva do que a simples absorção de modelosou de conceitos musicais abstratos. Contudo, considerando-se que esse é um métodoque, como vários outros, fundamenta-se na prática da educação musical (é claro, ali-cerçada na observação e em uma longa experiência), não apresenta detalhes sobre aforma como se processa o desenvolvimento da percepção. E é neste ponto onde pen-samos que a relação entre música e psicologia poderia ser de muita utilidade para aeducação musical.

OrffHá dois princípios básicos defendidos por Orff: o primeiro, que, na criança, reativa-se o curso do desenvolvimento musical, desde seus aspectos mais primitivos até osmais desenvolvidos (Landis e Carder 1972, 72). O segundo, que o ritmo das palavrasserve para fundamentar os ritmos musicais (Landis e Carder 1972, 104). Na realidadeos dois princípios encontram-se no contexto de uma visão que relaciona fatores filo-

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genéticos e ontogenéticos.Não é nossa intenção discutir em profundidade essas questões, mas, no texto da pes-quisa citada, fizemos referência à influência da linguagem na percepção musicalquando falamos da contribuição de Vigotsky. Destacamos, então, a compreensão queele expressa de que inclusive os processos elementares da mente humana — como éo caso da percepção — se desenvolvem num contexto social, no qual se formam ossistemas simbólicos que o ser humano utiliza. Quanto à visão ‘antropológica’ do de-senvolvimento musical, se por um lado existem aqueles que a criticam, também temos,entre os cognitivistas, aqueles que defendem a necessidade de um paralelismo entreos aspectos filogenéticos da música e os ontogenéticos:

Para que a abordagem musical seja cognitiva, é necessário que, à semelhança doprogresso intelectual descrito por Piaget, o desenvolvimento musical do sujeitoreedite a história musical da civilização. Isto porque se as características gerais dahistória musical da civilização estiverem desvinculadas da construção teórica sobrea ontogênese do indivíduo, esta teoria incorrerá no risco de incoerência e incon-sistência com os demais processos cognitivos de uma pessoa (Beyer 1988, 80).

No âmbito dos psicólogos que se preocupam com o desenvolvimento musical, a pro-posta de Orff é vista de forma positiva. Swanwick, por exemplo, diz que Orff foi “oprimeiro educador da música ‘progressista’ (Swanwick 1988, 18). Hargreaves avaliaa sua contribuição dizendo que “é claramente centrada na criança, e atingível até porcrianças muito pequenas; talvez por estas razões, seja tão conhecido e extensamenteadotado ao redor do mundo” (Hargreaves 1986, 221).Os méritos que tem o método Orff para o desenvolvimento da percepção musical sãode caráter mais global, como, por exemplo, a possibilidade de exercer a atividade per-ceptiva partindo de estímulos e formas de representação diversas, baseadas na açãodo próprio aluno.

A oficina de músicaEssa proposta metodológica não está incluída nas tabelas apresentadas anteriormente,por suas características específicas. Sobre estas características falamos em um livrointitulado A oficina de música: uma caracterização de sua metodologia (Campos 1988).Poderíamos estabelecer aqui apenas alguns aspectos básicos sobre os quais encon-tramos concordância nas diversas práticas que pudemos observar, tais como:

• A definição da metodologia como sendo algo que propicia o ‘aprender através dofazer’, ou seja, a produção musical. Segundo os alunos entrevistados a melhordefinição seria a de uma metodologia cujo objetivo é o desenvolvimento da cria-tividade. Eles também falam do desenvolvimento do raciocínio lógico.

• O planejamento das aulas é flexível. Não é negada sua existência, mas este é maisou menos importante dependendo do próprio educador. É adaptável ao grupode alunos e ao desenvolvimento da turma.

• É enfatizada a avaliação sistemática do processo, a qual é feita com a participaçãodos alunos.

374

• O professor deve adotar como postura ‘incentivar sem interferir’. Em geral, é maisalto o grau de controle por parte do professor na etapa inicial do processo.

• Tal professor deve caracterizar-se, segundo os alunos, pela criatividade, funda-mentação teórica e auto-expressão espontânea.

• As etapas a percorrer não são rigidamente estabelecidas. Há consenso quanto àexistência de uma etapa inicial de experimentação, e, para um grande númerode educadores, há uma etapa final de reflexão e análise (ainda que esses sejammomentos constantes em todo o processo).

• A forma de organização dos alunos é, quase sempre, em grupos, o que demonstraa valorização do aspecto social da experiência.

Nessa metodologia, a percepção musical se vê diante de um ‘universo sonoro’ muitomais amplo. Segundo M. Schafer, é preciso

Apresentar aos alunos de todas as idades os sons do ambiente; tratar a paisagemsonora do mundo como uma composição musical, da qual o homem é o principalcompositor; e fazer julgamentos críticos que levem à melhoria de sua qualidade(Schafer 1991, 284).

Essas idéias podem ser muito proveitosas, se, de fato, forem desenvolvidas com todaa abrangência e liberdade com que são propostas. Especificamente quanto à percepçãoe discriminação dos tons musicais e dos intervalos que eles constituem, estes devemser percebidos sem vinculações a funções tonais, o que seria proveitoso para a músicacontemporânea, mas algumas atividades mais específicas seriam necessárias para acompreensão da música tonal. De fato, se é possível preparar alunos com uma visãoampliada do universo sonoro, então todas as atividades perceptivas teriam, também,que se adaptar a esse propósito, favorecendo uma percepção musical globalizadora ecapaz de uma aproximação específica aos elementos musicais, tonais ou não.Estabelecendo um vínculo com a questão cognitiva, podemos observar que, dentreaqueles que se preocuparam com uma abordagem cognitiva para a educação musical,Esther Beyer elaborou uma proposta em 6 etapas, que se aproxima bastante da me-todologia da Oficina de Música, sobretudo quando propõe etapas que buscam a im-provisação, a expressão musical, os ‘ensaios de escrita’ e as ‘oficinas de parâmetros’(Beyer 1988, 138-147).

ConclusõesPodemos ver em todas essas propostas pedagógicas a preocupação com uma expe-riência significativa da música. Nas distintas abordagens, os educadores musicais bus-cam aproximar a criança da música estimulando sua participação ativa, suacapacidade de perceber, expressar e criar tendo como base o material sonoro. Todosesses aspectos são avaliados de forma positiva pelos estudiosos que relacionam a edu-cação musical e os aspectos cognitivos.O desenvolvimento auditivo é considerado por todos como um fator extremamenteimportante, sobretudo na etapa inicial. No entanto, nota-se que nessas propostas me-

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todológicas falta um vínculo com os estudos sobre o desenvolvimento cognitivo dosalunos. Está claro que o que sensibiliza o aluno é a música em si mesma, mas o edu-cador deve estar consciente da direção que dá ao processo pedagógico, para que cadaetapa seja proposta coerentemente. Parece-nos que essa associação entre a música ea cognição poderia trazer enormes benefícios para o processo de educação musical.Estaríamos, assim, possibilitando que os conteúdos musicais sejam desenvolvidosconsiderando não só as excelentes idéias dos pedagogos musicais, mas, também, res-peitando as características psicológicas de nossos alunos.

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376

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The MIROR Project: Music Interaction Relying on ReflexionAnna Rita Addessi

[email protected] of Bologna, Dept. of Music and Performing Arts

AbstractThe MIROR project is an European Union funded project under the 7th Frameworkprogramme (FP7/2007-2013, Technology-enhanced learning, grant agreement n°258338). The project is in its first year and the aim of this presentation is to explainits background and rationale, describe the aims and structure. The project is designedon a spiral structure involving coupled interactions between the technical partners(SONY-CSL, Paris and the University of Genoa) and the psycho-pedagogical partners(University of Bologna-coordinator, the Universities of Exeter, Gothenburg and Athens).A SME is part of the Consortium (Compedia, Israel) with the expertise in pedagogicalsoftware and market analysis. The MIROR Project deals with the development of aninnovative adaptive system for music learning and teaching based on the reflexiveinteraction paradigm. The reflexive interaction paradigm is based on the idea of let-ting users manipulate virtual copies of themselves, through specifically designed ma-chine-learning software referred to as interactive reflexive musical systems (IRMS).We propose to extend the IRMS paradigm with the analysis and synthesis of multi-sensory expressive gesture to increase its impact on the musical pedagogy of youngchildren. The MIROR platform will be developed in the context of early childhoodmusic education. It will act as an advanced cognitive tutor, designed to promote spe-cific cognitive abilities in the field of music improvisation, both in formal learningcontexts (kindergartens, primary schools, music schools) and informal ones (at home,kinder centres, etc.). The project will integrate both psychological case-study experi-ments, aiming to experiment cognitive hypothesis concerning the mirroring behaviour

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and the learning efficacy of the platform, and validation studies aiming at developingthe software in concrete educational settings.

IntroductionThe MIROR project is an European Union funded project under the 7th Frameworkprogramme (FP7/2007-2013, Technology-enhanced learning, grant agreement n°258338). The objective of the MIROR project is to develop and validate a novel softwareplatform for music learning and teaching based on the notion of reflexive interaction.The MIROR platform will address improvisation, composition and body performancecontexts both in “formal” situations (music schools, individual and collective lessons)and “informal” ones (e.g. at home). The technical design of this educational softwarewill integrate from the start pedagogical constraints stemming from psychologicaland pedagogical experiments conducted throughout the project. The project buildsupon a cross-disciplinary research team and exploits the synergies between learningand cognition in humans and machines. The Consortium is composed by the Uni-versity of Bologna (coordinator), Dr Anna Rita Addessi; SONY-Computer Science Lab-oratory, Paris, Dr François Pachet University of Genoa, Dr Gualtiero Volpi; Universityof Exeter, Dr Susan Young; University of Gothenburg, Prof. Bengt Olsson; Universityof Athens, Dr Christina Anagnostopoulou and Compedia, Israel, Dr Shai Newman.

The problem of musical learning in the interactive scenarioHow does musical learning in children take place? How is it affected by old and newtechnologies? These questions are directly relevant for setting the background to theMIROR project. Recent studies dealing with musical invention in very young children(2-4 years) have suggested that the origin of new musical ideas is structurally an-chored in the development of sympathetic interaction established between the adultand the child while playing with musical instruments (Young 2004, Burnard 2006,McPherson 2006). Furthermore, according to some developmental theories, theadult/infant relationship has an important role in the affective, cognitive and musicaldevelopment of the child (Fogel 2000, Malloch 2000, Trevarthen 2000, Stern 2004,Imberty 2005). The question therefore arises as to which models of cognitive devel-opment and learning are produced when these relationships are established not be-tween two human subjects, but between a child and a machine. New technologiescan be considered not only as “tools” for didactic support, but also as languages and

“brainframe” (De Kerckhove 1991) that affect, form and profoundly shape theprocesses of music learning and the musicality of children. In a review of music tech-nology in education, Webster (2002) concludes that there is a scarcity of research onusing music technology with young children. The reasons for this may lie in ideologiesand established traditions of early childhood music education practice. From birth,children are immersed in everyday musical worlds mediated increasingly by digitaltechnologies. They arrive in pre-school education equipped with a range of compe-tences and concepts about music and musical process derived from these experiences.

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The issue is not whether digitised technologies should be part of early childhoodmusic education, but how pedagogical approaches need to be transformed in orderto best serve the competences children have, and will need, to function effectively infuture music-audio cultures (Folkestad et al. 1998, Young 2006).Another reason for this limited impact is the lack of collaboration between the systemdesign and educational communities. More precisely, the community of ITS (Intelli-gent Tutoring Systems) is mainly interested in issues related to designing novel sys-tems that integrate pedagogical goals in musical systems. These systems may containtechnical and conceptual innovations, but they are not widely used because they donot take into account educational and psychological perspectives from the start. Onthe other hand, experimental psychologists have mainly studied the impact of existingmusic software for music education, rather than being actively involved in the devel-opment of the system.We also notice the lack of music education in schools and pre-schools for childhoodand early childhood: music education is still often absent in primary school, and evenmore so in nurseries and kindergartens, in spite of the important role the musical ex-perience and expression plays in children’s daily life, as recent investigations haveshown (see, e.g. Ilari e Gluschankoff 2009, Addessi e Young 2009). This situation isdue to several reasons: western cultural approach to music education based on the

“adult” instruments and repertoires; the educators and teachers of the compulsoryschools, and the music teachers of the Conservatoires and Music Schools, are nottrained for teaching music to young children; there is a gap between the traditionalstrategies of music teaching and real learning of young children; methodologies andtools for young children music education are often not well-developed and established.Even if the more recent research and experimental practices in young childhood’smusic education have strongly improved this sector (see for example the Early Child-hood Music Education Seminars – www.isme.org; the European Network of MusicEducators and Researchers of Young Children – www.meryc.eu) the music educationof young children is still absent in the most schools, nurseries, kindergartens andmusic schools.

The MIROR Project In this context, we decided to pursue the concepts and technologies known as Reflex-ive Interaction, initially elaborated at the Sony-Computer Science Laboratory in Paris(Pachet 2006), which represent a new generation of computationally augmented mu-sical environments. The effectiveness of the promising pedagogical concept has beenlargely demonstrated through previous researches carried out since 2003. The exper-iments (the pilot protocol, didactic experiences in the kindergarten, experiments inteaching improvisation classes) have shown the extraordinary potential of these newgeneration of software for educational purposes not only in the specific field of themusic education but also in the wider field of learning strategies (Addessi e Pachet2005, 2006; Ferrari, Addessi, Pachet 2006; Benghi, Addessi, Pachet 2008). The scien-

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tific results of these experiments have been recognised by several scholars who areexperts in music education and technologies, and who have highlighted both the tech-nological and research methodological innovations of these studies: Webster (2007),Burnard (2007), Thiebaut (2006), Also Bryan-Kinns (2004), Fober (2006), Fober, Letz,Orlarey (2007), Mc Gregor (2007), Young (2008).Building on the promising results of these studies, the MIROR project aims at devel-oping the potential of IRMS and turning it into a novel form of pedagogical softwareand associated pedagogy. The main output of the project will be the MIROR platform,and will be specifically designed for musical education in young children, at the schooland at home, and in more general way at kinder centers, children hospital depart-ments, centers for mother and child, and so on.

ObjectivesThe MIROR project aims primarily at developing the potential of IRMS for the benefitof music education. This includes the design, implementation and validation of con-crete pedagogical scenarios in which these IRMS organize and stimulate the learning/ teaching processes in the domains of music improvisation, composition and bodyperformance. More precisely, MIROR ’s primary goals are the following:

a) Develop an innovative adaptive and intuitive system for music education, basedon the “reflexive interaction” paradigm: the MIROR Platform (http://www.mirorproject.eu/index.php?id=79). The platform will be developed in thecontext of early childhood music education, as a new learning appliances and ad-vanced tutors, able to promote specific cognitive processing and abilities in thefield of music exploration, improvisation and composition. The MIROR Platformwill address music improvisation (MIROR-Improvisation, http://www.mirorproject.eu/index.php?id=84), composition (MIROR-Composition,http://www.mirorproject.eu/index.php?id=85) and exploration with/of body ges-ture (MIROR-Body gesture, http://www.mirorproject.eu/index.php?id=86).

b) Developing a detailed analysis aiming at assessing the impact of the reflexive in-teraction paradigm for both music learning and general cognitive/learning pro-cesses.

c) Promoting an active approach to musical culture, based on “music-making” con-cept, rather than “music-consuming”; promoting the use of the MIROR Platformby children and adults, enabling a wider access to music by experts as well as nonexperts, and enhance the diffusion of music culture through experiments withthe MIROR Platform in several countries, producing an User Guide and Teachers’Guide.

The paradigm of reflexive interactionThe reflexive interaction paradigm is based on the idea of letting users manipulatevirtual copies of themselves, through specifically designed machine-learning softwarereferred to as interactive reflexive musical systems (IRMS). Reflexive Interaction soft-

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ware are essentially intelligent mirrors, that continuously attempt to learn and repro-duce the musical behaviour of the users. Departing from traditional pedagogical ap-proaches such as improvisation, composition and others, are not produced directlyby man-machine interactions, but as side-effects of these mirroring interactions.

Interactive Reflexive Musical SystemsInteractive Reflexive Musical Systems, IRMS in short, were originally invented at theSONY Computer Science Laboratory in Paris (Pachet 2003). The notion of IRMS wasdeveloped by experimenting with novel forms of man-machine interactions, in whichthe user essentially manipulates an “image” of himself/herself. Indeed, traditionalapproaches in man-machine interactions consist in designing algorithms and inter-faces that help the user solve a given, predefined task. Departing from these approa-ches, IRMS are designed without a specific task in mind, but rather as intelligent

“Mirrors”. Interactions with the users are analysed by IRMS to build progressively a(computational) model of this user in a given domain (such as musical performance).The output of an IRMS is a “mimetic response” to a user interaction. This general ideastemmed from a concrete project dealing with musical improvisation, The Continua-tor (Pachet 2003, 2004, 2006). The Continuator is able to interactively learn and re-produce music of “the same style” as a human playing the keyboard, and it is perceivedas a stylistic musical mirror: the musical phrases generated by the system are similarbut different from those played by the users. In a typical session with the Continuator,a user freely plays musical phrases with a (midi) keyboard, and the system producesan immediate answer, increasingly close to its musical style (see Figure 1).

Figure 1 — A simple melody (top staff) is continued by the Continuator in the samestyle (as from Pachet 2003)

Technically, the Continuator was based on the integration of a machine-learning com-ponent specialized in learning and producing musical streams, in an interactive sys-tem. Many algorithms have been proposed to model musical style, from the earlydays of information theory in the 50s, to the works of David Cope (Cope 1996), whoshowed that a computer could generate new music “in the style” of virtually any

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known composer. However, these mimetic performances were the result of off-lineprocesses, often involving human intervention, in particular for structuring musicalpieces. The Continuator was the first system to propose a musical style learning al-gorithm in a purely interactive, real-time context (Pachet, 2003).

IRMS and Expressive Gesture Analysis technologyThe basic concept in the paradigm of Reflexive Interaction is to establish a dialoguebetween the user and the machine, in which the user tries to “teach” the machinehis/her musical language. The effectiveness of such a dialogue will be greatly increasedby introducing the dimensions of expressivity and emotion. The MIROR project willinclude design of an expressive interface for real-time analysis of emotions throughmultimodal, expressive features to further develop the children capacity for impro-visation, composition and creative performance. An innovative aspect of the MIRORproject will be to endow Interactive Reflexive Musical Systems with the capability ofexploiting mechanisms of expressive emotional communication. In particular, thisnovel generation of IRMS (emotional IRMS) will integrate modules able to analyzeand process in real-time the expressive content conveyed by users through their full-body movement and gesture. Research on emotional IRMS will be grounded on theEyesWeb XMI platform (www.eyesweb.org , see Figure 2).

Figure 2 — A running EyesWeb application for expressive gesture processing. Expressive gesture qualities such as energy and fluidity are extracted and mapped in a2D space (trajectory in the upper left window). Occupation rates for regions in such aspace are then computed. In the case displayed in the figure a higher amount of quick

and fluid gestures is detected.

EyesWeb XMI (for eXtended Multimodal Interaction) is open-platform, supporting

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on the one hand multimodal processing both in its conceptual and technical aspects,and allowing on the other hand fast development of robust application prototypes foruse in artistic performances, in education, in interactive multimedia installations andapplications.(Camurri e Coglio 1998; Camurri e Volpe 2004; Camurri, Canepa, Volpe2003).

The IRMS and the childrenThe effectiveness of the promising pedagogical concept has been largely demonstratedthrough previous researches carried out since 2003 with children and the Continuator.The experiments (the pilot protocol, didactic experiences in the kindergarten, expe-riments in teaching improvisation classes) have shown the extraordinary potentialof these new generation of software for educational purposes not only in the specificfield of the music education but also in the wider field of learning strategies (Addessie Pachet 2005, 2006; Addessi et al. 2006; Ferrari, Addessi, Pachet 2006; Benghi, Ad-dessi, Pachet 2008). These studies showed that the IRMS paradigm not only “workswith children” but that it yields a novel and efficient approach to learning/teaching,as it develops fascinating and spectacular child/machine interaction. One innovativefeature of the Continuator is the creation of a natural, organic dialogue with the child.This dialogue is based on the mechanism of repetition and variation, that is also anatural mechanisms observed in infant/mother interactions (Malloch 2000, Trevart-hen 2000, Stern 2004, Imberty 2005). Between the Continuator and the child a cir-cular interaction is set up, in which the child’s musical style influences the system,which answers by borrowing the child’s musical fragments, in a continuous dialoguebased on the musical improvisation. These studies have produced a number of resultsthat suggest that IRMS have a potential not fully exploited. In particular, the followingobservations were made and substantiated:

a) Nature of the interaction: the results would suggest that the Continuator is ableto develop interesting child/computer interaction, very similar to that betweenhumans. This phenomenon seems to have its origins in the ability of the systemto replicate the musical style of children. The interaction based on repetition/va-riation allows the children to organise their musical discourse, passing from ex-ploration to genuine musical invention.

b) Creative Flow state: the system creates a state of well-being very similar to the onedescribed in the Flow theory of Csikzsentmihalyi (1996). We created a particulargrid of observation, based on Csikzsentmihalyi’s emotional states. The resultsshow that when a child plays with the Continuator, he/she reaches a constanthigh level of Flow.

c) Attention Span: by attention span we mean the subjects’ tendency to persist intheir contact with the objects or activities, irrespective of any underlying aim.The attention span of the children was measured for each task (with/withouththe Continuator, alone/with a friend). It was observed that the tasks involvingthe system produced the longest mean times of attention.

d) Exploration, Improvisation: the children explored the keyboard and the means of

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making sound in a myriad of different ways: with their elbows, head, buttocks,or forearm, with their hands in their sleeves, chopping, with just one finger, se-veral fingers, the palm of the hand. The analysis of the improvisations revealedrhythmic and melodic patterns, synchronization on the same pulse, forms of songand accompaniment, individual improvisation styles, brief formal constructionsbased on imitation, repetition, alternation and contrast. Both in the explorationand in the improvisations, personalized styles could be observed in their ap-proach to producing sounds, or handling of the instrument.

e) Thinking in sound: An important observation made was that the main channel ofchildren/machine interaction is listening, encouraging the children to think insound.

f) Pedagogical issues: The interaction with the Continuator also developed autonomyand intrinsic motivation, enhanced collaborative playing and particular learningmodels as self-learning, self-regulation and self-practising.

Figura 3 — Children playing with the Continuator exhibiting various criteria of Flow:excitement, improvisation (as in Addessi & Pachet 2005).

Webster (2007), in his review of literacy in music education and technology research,affirms that “this study is one of the first studies to be published that deals with three-to five-year-old children interacting with technology of this sort . . . what makes thisstudy important for this review is that the technology made possible levels of analysisnot readily noted before” (p. 1320). Fober (2006) writes “le feedback sonore est égale-ment exploré tant pour ses qualités pédagogiques que pour ses effets sur la créationet l’interprétation musicale”. See also the comments by Burnard (2007), Thiebaut(2006), Bryan-Kinns (2004), Fober, Letz, Orlarey (2007), Mc Gregor (2007). Young(2008) writes that “the Continuator, see Addessi & Pachet 2005, may allow childrento improvise with themselves in ways that develop their understanding of musicalphrase and structure that would not have been possible without the software” (p. 41).

Psychological and pedagogical issuesThe pedagogical issues are mostly related to the difficulty of organizing a pedagogical

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setting and material around the basic IRMS type of interaction. Pedagogical program-mes have to include scenarios where specific dimensions of music must be emphasi-zed. The issue here is to add pedagogical constraints in the basic IRMS interactionso as to allow the development of such scenarios easily. Furthermore, the organisa-tional learning contexts have to be tested and validated, on the basis of new studiesand social development of music education (Olsson 2007). The MIROR Platform willallow children, teachers and music-makers, to improvise and compose in differentschooling and social contexts. Another important issue is the pedagogic exploitationof the possibility of communicating with the machine through body movements.These issues will be addressed by introducing the expressive gesture analysis, as willbe implemented in the MIROR-Body Gesture.

Educational theories implemented by IRMSThanks to its capacities to replicate the musical behavior and evolve in an organicfashion with the user, IRMS translate into technological design several theoretical con-cepts of learning development and the theory of creativity:

• Mirror behaviour: The capacity to replicate the behaviour of others grounds onone part on non-conscious processing known as the “chameleon effect” (Char-trand and Bargh 1999). Recent studies (Lakin et al. 2003) suggest that the mereperception of another’s behavior automatically increases the likelihood of enga-ging in that behavior oneself. Neuroscientific studies root these non-consciousmechanisms in the mirror neuron system (MNS), a network of neurons, whichbecome active during the execution and observation of actions (Rizzolatti et al.2006).

• In the field of vocal and musical development, a similar structure based on repe-tition and variation has been observed by Stern (2004) and Trevarthen (2000) inthe relationship between mother and infant, and by Imberty (2005) in the fieldof musical development. As Imberty points out, during the course of this inte-raction the mother imitates before being imitated by the child. Anzieu (1996)calls this kind of infant experience ‘musical wrapping’ of the Self, which rendersthe concept particularly well.

• From a educational point of view, similar interactions based on the mirroringbehaviour, have also been observed recently in young children and adults whilethey play (Burnard 2000, Young 2004, McPherson 2006). This kind of interper-sonal dimension has been recognized as a potential source of musical creativityfor young children. In the field of pedagogical theories, the theory of variation(Pramling et al. 2009) shall allow further studies about this issue.

• In particular, IRMS promote especially the “optimal experience” described by theFlow Theory introduced by Csikszentmiahlyi (1996). Flow describes the so-called

“optimal experience” as situations in which people reach mental states resultingfrom an optimal balance between skills and challenges. The Continuator men-tioned above has been shown to be a type of “Flow machine” in the sense that itproduces, by definition, a response corresponding to the skill level of the user(Pachet 2004). Most importantly, Flow theory introduces a series of concrete in-

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dicators (Custodero 2005), which can be measured during recorded experiments(see Addessi, Ferrari, Carlotti, Pachet 2006), This strong potential of IRMS willbe use to enhance the state of “well-being” and creativity in children and adultsover the interaction with the MIROR Platform.

• IRMS also exploit the Vygotskian concept of zone of proximal development (ZPD).In this way, IRMS establish an interaction between pairs, where the mirroring re-flection creates a balance between challenges and skills, a basis to create Flow ex-periences and creative processes. This characteristic will enable the MIRORPlatform to enhance self-regulation, self-initiated activities, and the learner-cen-tered approach .

• Furthermore, IRMS support children in mixing old musical skills with new ones,in an original and autotelic way, according to the “fiction cognitive” perspective(Guerra 2002), where the innovative technology enables the subject to see andlisten in a more original way, bringing out previous childhood experiences.

• IRMS generate very complex reactions, where the children are expected to formdifferentiated judgments about “self ” and “others”. In literature, these forms ofawareness are considered crucial for the building of the child’s identity. IRMS, bymeans of its mirror effect, help towards the construction of a “musical self ”, or,in the words of Turkle (1984), a “Second self ”, where not only the machine seemsto think, but also think like the user.

• Finally, the MIROR project owes to the Laban Movement Analysis (LMA), elabo-rated by the Hungarian dance artist and theorist Rudolf Laban (1879-1958). LMAhas been widely used in the field of dance education and was applied also to musicand movement education. This analytical approach is the basis of the expressivegesture analysis implemented by the EYESWeb technology (Camurri & Volpe2003). The MIROR project will exploit this theoretical framework coming fromthe dance context to develop musical abilities of children.

Related projects in music education and new technology and steps forward

The issue of teaching how to improvise. Unlike most of existing projects based on tea-ching to perform the musical repertoire, the MIROR Project will focus on the impro-visation, composition and creative performance. The software will allow children to

“invent” music (children as music-makers) and enhance musical creativity. Improvi-sation, as a basic form of creativity, should be regarded as a very strong support tocreative thinking because it motivates children to use their imagination, self-regula-tion and the intrinsic motivation to create music. With IRMS, children learn to im-provise by interacting with a computer, which is necessary if their teacher cannot, ordoes not want to, improvise. The body issue in music education. The MIROR Project will explicitly integrate multi-modal interface gesture analysis in the learning/cognition processes activated duringchild/machine interaction. It will lead to new forms of musical expression, based onthe integration of music and dance in particular.

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The issue of music education in early childhood. The MIROR Project is focused on youngchildren 3 to 5 years old, because at this age the problem of the interaction betweenchild and machine takes on a fundamental role in the learning process. Early child-hood is a very interesting field for studying general musical cognitive development.The project will exploit this kind of research by means of experimental observationand analysis of the interaction modes and of children’s musical performances.The issue of fixed musical objectives. The IRMS emphasizes a particular kind of inter-action where the objectives are not established by neither the machine nor by the user,but by the actual interaction between child and machine.The issue of adaptation to learners. The center of attention in the reflexive interactionprocess is the subject engaged in the interaction. Reflexive interactions naturally pro-duce a learner-centered approach.The issue of attractiveness. The experiments realized so far with IRMS have showed ahigh level of excitement, attention span and intrinsic motivation in children playingwith the Continuator where the only interface is the keyboard. These findings showthat the attractiveness of IRMS is based on the conceptual and technical features ofthe software rather than on external or nicely designed GUIs.The issue of formal, non formal and informal music education. Thanks to the supportof the member of the Advisory and Liaison Board, the MIROR Project will be con-cerned not only with formal music education, but also with basic music education incompulsory schooling, music invention (improvisation and composition) in informaleducation and in different social contexts and organisational learning (sound groups,garage groups, etc.), particular social contexts, special needs groups and therapeuticsettings.Music therapy and new technology. The studies realised so far has shown that the

“reflexive interaction” could be a versatile device to enhance and stimulate expressivebehaviour and communication in autism. Furthermore, the optimal experience gen-erated by the interaction with IRMS creates states of “well being”, having a strong ther-apeutic potential. We aim at exploiting this potential of IRMS in a systematic way, incollaboration with specialists in special needs education, psychiatry and music therapy. Methodological issue: Psychological and pedagogical evaluation. The MIROR Projectwill test the system’s prototype by means of both psychological experiments into learn-ing/cognition processes activated during the child/IRMS interaction, and pedagogicalvalidation in practical contexts and music classroom settings. The experiments willbe based on experimental protocols and observation method, case-study and actionresearch.

The Work planThe work plan of the project foresees the work package of Management, 1 work pack-age for the Specification user’s requirements, 2 work packages of technological im-plementation, 2 work packages of testing and validation, 1 work package for User

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Interface implementation, and finally one packege for Dissemination and Exploita-tion:

Figura 4 — Work package interaction.

The research activities are focalised on the combination of a series of technologicaldevelopments needed for this goal, with a series of experiments with children in va-rious pedagogical contexts, aiming at validating these technologies both technicallyand pedagogically, as follows:

Technical modules and Prototype implementationCore technological modules. In this package all the core technological modules willbe developed by the technical partners. They will be designed to be easily inter-con-nectible, possibly running on different machines, through the use of established com-munication protocols (Open Sound Control, Midi, IP).MIROR Platform development. In this work-package, the three prototypes will be de-signed according to the spiral model of specification and constructed by assemblingcore modules developed in WP3. Prototypes will include: 1) MIROR-Improvisation,2) MIROR-Composition and 3) MIROR-Body Gesture.

Testing and validation: Psychological and pedagogical experimentsPsychological experiments. Firstly several pilot protocols (based on case-studies) willbe carried out with a few number of young participants in order to observe and val-idate the interaction between the children and the MIROR platform (mirroringprocesses, improvisational music abilities, flow music-making experience, measureof creative thinking in music), by qualitative and quantitative methodologies. Theaims are to analyse and test the adaptive and intuitive characteristics of the MIRORplatform, the mirroring process and the child/machine music interaction and to givecontinuous feedback to the prototype implementation. MIROR Pedagogical experiments: On the basis of the previous experiments, the sce-narios described above will be tested with more children at various schools. Thisphase is aimed at testing the learning efficacy of the MIROR Platform in the field of

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music education, notably the assessing learning outcomes and the feedback/guidancemechanisms, the interfaces, the pedagogical material for pupils/teacher in real di-dactic practice contexts (schools, music schools, etc.), and evaluating the suitabilityof the platform in different organisational learning contexts.

User InterfacesThis workpackage is devoted to the design and implementation of the two main in-terfaces of the project: the teacher interface and the end-user (child) interfaces. Theteacher interface will enable the teacher to setup the sessions, record the various in-formation, and manage this information off-line, after the sessions. The interfaces forthe children will be specific to each of the 3 applications (Miror-impro, Miror-Compoand Miror-Gesture) and will be notably designed for young child/children also usingthe platform alone.

The ConsortiumThe MIROR consortium will be composed of partners with complementary expertise,in order to create a synergic team able to successfully cover all the competences ne-cessary to carry out the project. The consortium will include technology providers,experts in cognitive sciences of music and music education, experts in experimentalsciences, and final users.

• Experts in music education, socio-psychology of music: Universities of Bologna,Athens, Exeter, Gothenburg. The contribution of educational and psychologicalpartners will be to collect users’ requirements, to analyse the most importantcharacteristics of MIROR both form a psychological and educational point of view.They will lead a detailed analysis of the cognitive and learning processes activatedby the reflexive interaction. Their expertise in different methods of music edu-cation research will lead to a cross-disciplinary study based on experimental pro-tocols, observation, case-study, action research, empirical questionnaire.

• Technology partners: SONY-CSL and University of Genoa. Technology providerswill operate in close collaboration with psychological and pedagogical experts,in order to provide tools for the implementation of educational paths that are ef-fective from the education point of view and consistent from the historic pointof view. The presence of 2 different technological partners enables the Consor-tium to put together 2 different interactive technologies: music interaction andmultimodal gesture analysis. The SONY-CSL is the pioneer of the idea of reflexivemusical interaction. The DIST-University of Genoa enhances the reflexive conceptby mean the results of the prior project on gesture analysis. The collaborationwill lead to the creation of a novel platform for music improvisation and creativeperformance, with a particular focus on children. Furthermore, the multimodalgesture analysis will enable the consortium not only to create performance pro-totypes but also to analyse the children’s creative performance.

• Experts in music analysis: Universities of Bologna and Athens. The structure ofrepetition/variation has been considered by several approaches, to music analysis,

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as for example the semiological analysis (Ruwet 1966, Nattiez 1987, Meeùs 1993),and it has been developed in the field of computer music analysis (e.g. Anagnos-topoulou et al. 2005). Music analysis of improvisation and production of the chil-dren interacting with the IRMS will lead to an analysis of the cognitive processesinvolved in musical learning and development.

• Final users, mainly schools, will have the key task of testing and evaluating therealised tools and will also participate to the dissemination activities. An Advisoryand Liaison Board is created for this kind of contribution. The partners will col-laborate in order to develop and disseminate the results in the national schools,music school, special needs schools and therapeutic settings.

• SME for marketing analysis and industrial exploitation plan. Compedia’s role inthe project is to develop abilities in order to support the industrial exploitationplan and the commercial potential of the project. The expertise of Compedia isthe development and production of educational software for children and youngadults.

The integration of researches of cross-disciplinary teams allows the creation of an ef-fective spiral characterised by the concept of inter-reliability. The results of one team,notably the technological team, will influence and are influenced by the results of an-other team (psycho and pedagogical team). Different research methods and ap-proaches will be used (basic research, experimental, observation, action research):these factors will enable the Consortium to study different aspects of the problemand to validate the results by means of cross-control.

The Advisory and Liaison BoardThe final users will be represented by the members of the Advisory and Liaison Board,who will also ensure exploitation of the results. At the moment, the following entitiesand experts in the field have officially expressed their interest to the MIROR activitiesand to attend the ALB: EuNET MERYC: the European Network for Music Educatorsand Researchers of Young Children (www.meryc.eu); ESCOM – European Society forthe Cognitive Sciences of Music (www.escom.org);Associazione Nazionale Danza Ed-ucazione Scuola, Italy; La Società della Civetta, Theatre for children, Italy; MOUSIKé– Associazione culturale per le Arti, Italy; MUSIC SPACE ITALY. Lori A. Custodero, Co-lumbia University, USA; Dr. Beatriz Ilari, State University of Campinas, Brazil; Prof.Gary McPherson, School of Music, Illinois University at Urbana Champaign, USA;Prof. Bo Nilsson, Kristianstad University, Sweden; Prof. Dr Leon van Noorden, In-stitute for Psycho-acoustics and Electronic Music (IPEM). University of Ghen; DrNaomi Ziv, Max Stern Academic College of Emek Yizre’el, Israel.

For more information on on the MIROR Project see: www.mirorproject.eu

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Paralelos entre concepções de alfabetização e letramento em um contexto interdisciplinar

Samara Pires da Silva [email protected]

Faculdade de Educação, Universidade de Brasília (UnB)

Ricardo Dourado [email protected]

Departamento de Música, Universidade de Brasília (UnB)

ResumoOs termos alfabetização e letramento são amplamente utilizados para descrever oprocesso de aquisição das habilidades e competências de leitura e escrita de umadeterminada língua falada. A partir da concepção da música como um processo delinguagem, o termo alfabetização também é aplicado ao processo de aprendizagemda leitura e escrita musicais. O presente artigo discute algumas concepções acercada alfabetização e do letramento e como estes são compreendidos dentro do processode produção musical mediado pela cognição. Ao promover uma discussão teóricaentre alguns autores das áreas de pedagogia e música, foi possível um melhor en-tendimento e esclarecimento das práticas existentes que remetem ao ensino e apren-dizado de uma linguagem escrita, no entanto fica evidente a falta de uma discussãoaprofundada na literatura da área de música que fundamente uma concepção am-plamente aceita no Brasil do processo de aquisição do código musical.

Palavras-chaveAlfabetização – Letramento – Educação Musical

Introdução A música e a língua materna são formas de expressão da sociedade, com isso, sãoconsideradas linguagens, pois possuem um código escrito que permite a comunicaçãoentre os indivíduos. Uma criança no processo de apropriação da linguagem, tantoverbal quanto musical, passa pelo reconhecimento do mundo por meio da linguagemem que está aprendendo.Por meio de observações obtidas nas aulas do Programa Música para Crianças (MPC)da Universidade de Brasília (UnB) gerou-se o interesse em discutir o assunto desteartigo. Dentre os relatos de crianças percebeu-se a motivação relacionada à escritamusical. Nestes relatos estão: a vontade que uma criança expressou em querer ler oque continha em um livro levado por ela para a aula, no qual continha a pauta musi-cal; Em outro caso uma criança ao se deparar com uma partitura disse que tinha von-tade de aprender o que estava escrito ali.O contato visual com uma partitura ou com um texto desperta o interesse e a curio-

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sidade, por parte das crianças, em entender o que está escrito. Ao vivenciar essas ex-periências em uma sala de aula, eis os questionamentos que foram feitos: Como oprocesso de aquisição da leitura e escrita musical está relacionado com a alfabetiza-ção? Em termos conceituais como é vista a alfabetização e por sua vez o letramentono contexto da língua materna e da educação musical?Ao proporcionar momentos de contato com a escrita musical ocorre, muitas vezes, oestímulo e o interesse da criança em se apropriar dessa forma de escrita. Alguns re-latos de crianças mostram a importância do contato prévio com o sistema notacional,independente da linguagem. Quando ensinamos crianças somos constantementequestionados sobre a coerência dos nossos procedimentos. Rubem Alves (2002), em seu livro Por uma educação romântica, mostra como nosdias de hoje o conceito de alfabetização é utilizado de forma simplista. Ele afirma que

“Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem do “alfabeto”. “Alfabeto” é umconjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem” (p. 39). Para reforçaresse pensamento ele ainda faz um jogo comparando com a música. No capítulo “Oprazer da leitura”, Alves (2002) coloca:

Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras, imagino que o ensino da músicadeveria se chamar “dorremizar”: aprender o dó, o ré, o mi . . . Juntam-se as notase a música aparece! Posso imaginar, então, uma aula de iniciação musical em queos alunos ficassem repetindo as notas, sob a regência da professora, na esperançade que, da repetição das notas, a música aparecesse . . . (p. 40)

Devido ao sentido para o termo alfabetização, fez-se necessário utilizar a palavra le-tramento para incorporar os significados não esclarecidos com o termo inicial. O pre-sente trabalho vem por meio de uma discussão teórica entre as significações deconceitos, para refletir a cerca da alfabetização e do letramento na língua materna ena linguagem musical. Além de verificar como eles são apresentados e se há relaçãoentre esses conceitos nas duas áreas, dentro da bibliografia pesquisada.

Concepções de alfabetização e letramento na língua materna O processo histórico da alfabetização está vinculado com a compreensão e a reflexãoda linguagem, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa.A palavra alfabetização, segundo o Dicionário Aurélio, significa “tornar o indivíduocapaz de ler e escrever. Alfabetização: ação de alfabetizar”.Alfabetização por Soares (2010) “em seu sentido próprio, específico [é o] processode aquisição do código escrito, das habilidades de leitura e escrita.” (p. 15) Essa pri-meira conceituação sobre o termo implica uma aquisição de um código, sendo elepertencente de uma linguagem que pressupõe uma organização e compreensão, poiscomo afirma Ferreiro (1985) “Nenhum conjunto de palavras, porém, por mais vastoque seja, constitui por si mesmo uma linguagem: enquanto não tivermos regras pre-cisas para combinar tais elementos, produzindo orações aceitáveis, não teremos umalinguagem.” (p.21)Ainda segundo Magda Soares (2010) o conceito de Alfabetização “é um processo de

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representação de fonemas em grafemas, e vice-versa, mas é também um processo decompreensão/expressão de significados por meio do código escrito.” (p.16). Alémdisso, a alfabetização tem por objetivo segundo a autora:

Em seu sentido pleno, o processo de alfabetização deve levar à aprendizagem nãode uma mera tradução do oral para o escrito, e deste para aquele, mas à aprendi-zagem de uma peculiar e muitas vezes idiossincrática relação fonemas-grafemas,de um outro código, que tem, em relação ao código oral, especificidade morfoló-gica e sintática, autonomia de recursos de articulação do texto e estratégias pró-prias de expressão/compreensão. (p. 17)

Há métodos caracterizados ao processo de alfabetização, no qual os professores bus-cam soluções de ensino, como afirma Ferreiro (1985). Dentre os principais métodosestão os sintéticos e os analíticos. Os sintéticos partem de elementos menores do quea palavra, ou seja, a letra. Correspondendo da parte para o todo. Já o método analíticoparte da palavra ou de unidades maiores. A leitura é uma tarefa fundamentalmentevisual.Ainda segundo Ferreiro (2001, 13), há a denominação de escrita alfabética, comosendo “sistemas de representação cujo intuito original — e primordial — é representaras diferenças entre os significantes.” Segundo Morais (2006, 3):

o sistema de notação alfabética constitui em si um domínio cognitivo, um objetode conhecimento com propriedades que o aprendiz precisa reconstruir mental-mente, a fim de vir a usar, com independência, o conhecimento de relações letra-som, que lhe permitirá ser cada vez mais letrado.

Ferreiro compartilha com a idéia de a alfabetização ser um processo contínuo e quenão está restrita à sala de aula. Um dos pontos principais na pesquisa dessa psicólogaé a compreensão do processo de alfabetização independente dos métodos. Deve-seconsiderar que a criança aprende porque ela possui uma curiosidade inata e vontadede conhecer o mundo. A partir daí, a criança tem condições suficientes de assimilara leitura e escrita. “através da teoria de Piaget [o] sujeito que procura ativamente com-preender o mundo que o rodeia, e trata de resolver as interrogações que este mundoprovoca.” (Ferreiro 1985, 26). Dentro dessa perspectiva, o professor e o método nãoassumem o papel principal. “Isso [é] possível porque, nenhuma criança espera receberas instruções de um adulto para começar a classificar, ordenar os objetos de seumundo cotidiano.” (Ferrero 1985, 27) O sujeito tem que primeiro ter contato com oque quer compreender, por meio do contado com os outros e os objetos, que na rea-lidade são as experiências. A aprendizagem é uma conseqüência, uma síntese reali-zada pelas funções psíquicas e físicas.Já na visão de Paulo Freire entende-se a alfabetização como “capaz de levar o sujeitoa organizar seu pensamento de forma sistematizada, levando-o à reflexão crítica e,assim, com possibilidade de provocar transformações sociais.” (Silva, 2004, p. 4)Vygotsky faz uma critica pertinente ao processo de aquisição da língua escrita. Eleafirma que muitas vezes a escola quer que o ritmo de aprendizado da criança na lin-guagem escrita acompanhe a linguagem oral, sendo que esta (linguagem oral) já

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houve apropriação por ter mais tempo de contato. Com isso, a língua escrita sempreirá caminhar atrás da língua falada. Em seu livro Pensamento e linguagem, Vygotskyafirma que:

Na conversação, todas as frases são impelidas por um motivo: o desejo ou a ne-cessidade conduzem os pedidos, as perguntas arrastam consigo as respostas, o es-panto leva à explicação. (. . .) Os motivos para escrever são mais abstratos, maisintelectualizados, encontram-se mais afastados das necessidades imediatas. Nodiscurso escrito, somos obrigados a recriar a situação, a representá-la para conosco.Isto exige um certo distanciamento face à situação real (p.71).

Nessa perspectiva, o trabalho deve ser centrado no sujeito que aprende. Considerandoa aprendizagem fruto da assimilação da criança aos processos de leitura e escrita enão atribuir, somente, aos métodos o mérito de aprendizagem. Além disso, as habi-lidades desenvolvidas anteriormente (no processo de aquisição da língua falada) aoprocesso de leitura e escrita não devem receber uma atenção maior do que o próprioprocesso da aquisição da leitura e da escrita. Ao considerar que “(. . .) mediação emtermos genéricos, é o processo de intervenção de um elemento intermediário numarelação (. . .).” (Oliveira 1997, 26 apud Vygotsky 2001). Tem-se que para Vygotsky oprofessor, “por meio da linguagem, intervém e auxilia na construção e reelaboraçãodo conhecimento do aluno” (Vygotsky 2001). Sendo assim como um mediador noprocesso de aquisição da língua escrita.Em se tratando da experiência social e cultural com a leitura e escrita, Francisco SilvaCavalcante Junior (1997) entende que todas as práticas sociais evolventes da leiturae da escrita, incluindo aqui as artes, são denominadas Letramento. Segundo o Dicio-nário Houaiss (2001) ao termo letramento são atribuídos três significados: “1. Repre-sentação da linguagem falada por meio de sinais; escrita. 2. Alfabetização (‘processo’).3. (década de 1980) conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de dife-rentes tipos de materiais escritos” (Dicionário Houaiss 2001, 1474 apud Silva 2004,2).Além disso, “Soares (1998), afirma que a denominação letramento é uma versão, emportuguês, da palavra inglesa “literacy”. Palavra essa que quer dizer pessoa educada,especialmente capaz de ler e escrever (educated; especially able to read andwrite)”(Soares 1998, apud Silva 2004 p.3).O termo “letramento” ainda não tem um consenso na língua portuguesa. SegundoSoares (1998), letramento é “uma palavra recém-chegada ao vocabulário da Educaçãoe das Ciências Lingüísticas” (Silva 2004, 2). Silva afirma que em alguns casos letra-mento assume assimilação com o termo Alfabetização.O letramento é entendido por Magda Soares (2010) como toda a prática social queenvolva de alguma forma a leitura e a escrita. O indivíduo deve-se por meio da apro-priação da leitura e escrita participar do ambiente social que ela o oferece.Silva (2007) também considera a Alfabetização como um simples aprendizado de umcódigo. O que Silva tenta esclarecer é a distinção do termo alfabetização e do termoletramento, tomando como pressuposto que o letramento surge a partir da alfabeti-

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zação, a partir do que o termo não conseguiu suprir. O termo Alfabeto funcional dálugar ao termo letramento, em Portugal. Além da distinção que “Alfabetização refereum conhecimento obtido, estável, enquanto literacia designa um conhecimento pro-cessual em aberto” (Silva 2007, 4). Por literacia a autora entende:

como a capacidade de cada indivíduo compreender e usar a informação escritacontida em vários materiais impressos, de modo a atingir os seus objectivos, a de-senvolver os seus próprios conhecimentos e potencialidades e a participar activa-mente na sociedade. A definição de literacia vai para além da mera compreensãoe decodificação de textos, para incluir um conjunto de capacidades de processa-mento de informação que os adultos usam na resolução de tarefas associadas como trabalho, a vida pessoal e os contextos sociais. (p.6)

De acordo com o PCN de Língua Portuguesa na perspectiva das práticas sociais, con-siderando que nenhum indivíduo (da sociedade urbana) pode ser iletrado, afirma-se que

São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, aindaque às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa con-cepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, nãoexiste grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de algumaforma, de algumas dessas práticas (p.21).

Magda Soares (2010) ainda faz distinção dos conceitos de alfabetização e letramentocomo:

entre saber ler e escrever, ser alfabetizado, e viver na condição ou estado de quemsabe ler e escrever, ser letrado (atribuindo a essa palavra o sentido que tem literateem inglês). Ou seja: a pessoa que aprende a ler e a escrever — que se torna alfabe-tizada — e que passa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se nas práticassociais de leitura e de escrita — que se torna letrada — é diferente de uma pessoaque ou não sabe ler e escrever — é analfabeta — ou, sabendo ler e escrever, nãofaz uso da leitura e da escrita — é alfabetizada, mas não é letrada, não vive no es-tado ou condição de quem sabe ler e escrever e pratica a leitura e a escrita.( p. 36)

“Lagos (1990, p. 16) apresenta o conceito de Magda Soares sobre analfabeto: “Analfa-beto é aquele que não usufrui do mundo da escrita, por não ter as habilidades ou portê-las, mas não usá-las, por não poder ou não querer fazê-lo”.” (p.2)O letramento também assume uma conceituação que vai além da alfabetização aoconsiderar que uma pessoa letrada não necessariamente é alfabetizada. O termo as-sume esse papel quando um indivíduo participa de atividades que envolvem a leiturae a escrita, mas não possui as habilidades de ler e escrever. Ao considerar um sujeitoque convive e mora em um ambiente cercado pela escrita, que tem consciência daimportância dessas habilidades, mas não as possui, esta é considerada uma pessoaletrada, porém não alfabetizada.Assim, o letramento envolve as práticas sociais dos indivíduos com o contato com osistema de escrita, independente de ser antes da alfabetização, em conjunto ou pos-terior a esse processo.Alves (2009) em seu artigo afirma que, em qualquer “sistema de comunicação escrita”,

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deve-se considerar as experiências sociais dos sujeitos e também refletir sobre o papeldo professor e demais instâncias ao longo do processo. A “alfabetização como o apren-dizado do alfabeto e de sua utilização como código de comunicação” (Alves 2009, 3)necessariamente implica a compreensão e a utilização nas práticas sociais, pois a co-municação por meio desse código pressupõe socialização. Ser alfabetizado pressupõea aquisição de habilidades tanto “habilidades mecânicas (codificação e decodificação)do ato de ler, mas da capacidade de interpretar, compreender, criticar, re-significar eproduzir conhecimento.” (Alves 2009, 3). Soares (2003), afirma que:

(. . .) uma teoria coerente da alfabetização deverá basear-se em um conceito desseprocesso suficientemente abrangente para incluir a abordagem “mecânica” doler/escrever, o enfoque da língua escrita como um meio de expressão/compreensão,com especificidade e autonomia em relação à língua oral, e, ainda, os determinan-tes sociais das funções da aprendizagem da língua escrita (Soares 2003, 18).

É interessante pensar na re-significação e unificação do conceito de alfabetização, aoinvés de criar outra palavra para tentar explicar o que a alfabetização já faz. O que sedeve pensar, como já foi muito estudado, é na alfabetização como um processo e nãocomo um objeto que ao nos apropriarmos dele não temos mais nada a aprender sobreesse objeto. O principal motivo para afirmar o processo é considerar que o sujeito queaprende está em constante transformação e ao adquirir um conhecimento tem a ca-pacidade de re-significá-lo de acordo com as suas experiências e vivências, pois todosos sujeitos são seres culturais, sociais e históricos.

A leitura e escrita da música na educação musicalOs conceitos de alfabetização e letramento não devem ser transpostos diretamentepara a área de música, sem uma reflexão sobre os processos envolvidos na área. Pri-meiramente para considerar e discutir sobre alfabetização e letramento musical é ne-cessário entender a Música como uma linguagem. Watanabe (2009, 20) afirma que

“A Música, enquanto linguagem, tem um sistema de códigos de grafia. O processo decodificação e decodificação desta linguagem torna necessária a sua alfabetização”. Eleentende que a “alfabetização é concebida como um processo de apropriação de ins-trumentos de interpretação de significantes.” (p. 21)A música pressupõe um contato anterior com a forma auditiva e oral, para depoispassar ao entendimento do código escrito. Por estar inserido no convívio e nas expe-riências do sujeito pode fazer parte de um processo de Alfabetização musical e nãode “dorremizar.” (Alves 2002)A semelhança entre o processo de aquisição da língua materna e a linguagem musicalé compreendida por Watanabe (2009), que afirma que

Para que o som, tanto da palavra quanto musical, ficasse registrado, elaboraram-se sistemas de significações que permitissem a sua perpetuação [. . .]. Com a in-venção da escrita gráfica e musical os signos vieram substituir os desenhos e assim,iniciou-se toda a teorização para a sua aprendizagem. [. . .] A gênese da grafia so-nora é comparativamente semelhante à gênese dos vocábulos, das funções classi-ficatórias e da imitação (Abrahão 2005, 91 apud Watanabe 2009).

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Watanabe (2009) na citação acima apresenta uma relação entre a alfabetização e a al-fabetização musical convergente na necessidade do homem em criar um registro grá-fico para significar o som.A alfabetização é um termo explicitado por autores para definir a aquisição do códigomusical, porém em se tratando do termo letramento na linguagem musical, ele sóaparece com a citação de uma autora no qual introduz o termo à diversas áreas afir-mando haver “mundos letrados”. Entende-se por letramento musical como uma de-nominação pertencente ao “trânsito do homem na diversidade dos “mundos letrados”,cada um deles marcado pela especificidade de um universo.” (Colello, p.10)Os dois termos podem ser aplicados ao contexto da educação musical, porém em setratando de ensino e aprendizagem da língua escrita é mais eficaz a utilização dotermo alfabetização musical, pois implica a aquisição de um código que pode ser con-siderado uma linguagem por apresentar estruturas tanto orais quanto escritas.

Considerações finaisO processo de aprendizagem dos códigos de uma linguagem passam pelo domíniodos símbolos que constituem a própria linguagem. No caso da escrita, o código é oalfabeto, mas no caso da música o código refere-se a conjunção de elementos meló-dicos e rítmicos usados na partitura musical. Observa-se que o termo alfabetizaçãoé utilizado no contexto musical como uma transposição direta de um conceito daárea de linguagem para a área de música. A simples transposição de um termo deuma área de conhecimento para outro, neste caso, limita a compreensão do próprioprocesso de aprendizagem musical, pois o alfabeto musical apresenta dois códigossimultâneos (rítmico e melódico) e o convívio com exemplos de notação musical sãomuito limitados para a maioria dos cidadãos.O termo alfabetização possui uma discussão maior que envolve tanto codificação/decodificação de um sistema de códigos, seja ele a escrita alfabética ou a escrita mu-sical, como as práticas sociais e culturais dos indivíduos com esses sistemas. Consi-derando a alfabetização musical, muito se fala no processo de aquisição do códigomusical, mas há poucas referências, dentre as pesquisadas, que compete à alfabeti-zação musical às práticas e vivências com a música.Já o termo letramento, por ter pouco tempo de existência na língua portuguesa aindaapresenta grandes distinções. O entendimento do termo passa pelo envolvimentocom as práticas sociais, porém ainda não está claro se o letramento surge antes da al-fabetização, durante o processo de alfabetização ou se ele se apresenta posteriormenteà aquisição da leitura e escrita do código. No caso da educação musical, o termo le-tramento não foi encontrado em uso no Brasil. Em termos da educação musical, os estudos, analisados neste trabalho relacionam-se principalmente com os estudos de Emília Ferreiro, nos quais são consideradas arepresentatividade da escrita e o processo de compreensão da escrita da língua ma-terna pela criança. No entanto, a discussão do termo alfabetização musical pode ser

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ampliada para incluir os processos de significação de códigos simultâneos (ritmo emelodia) e os fatores sociais que motivam a inclusão do código musical na experiênciade vida das crianças.

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Vygotsky l. S. Pensamento e Linguagem. Edição eletrônica: Ridendo Castigat Mores, 2001.http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/vigo.html

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A participação do educador no desenvolvimento da mente musical no ambiente escolar

Christiana Damasceno Rodrigues da [email protected]

Faculdade de Educação – Universidade de Brasília

ResumoCom a recente implantação da obrigatoriedade do ensino de música nas escolas, sur-giu a necessidade de se pensar no atual momento em que se encontra o educadorperante a legislação vigente, e em como ela poderá ser um aporte para o professorsem formação específica na área (também será discutido sobre a sua formação aca-dêmica), para que ele saiba trabalhar a música em sala de aula. Também serão abor-dados os fatores que poderão interferir no processo de aprendizado da criança nesseâmbito, dando ênfase à importância que possui o educador no processo do aprendere no desenvolvimento da criança. É importante observar que o ensino de música nasescolas ainda é muito recente e, portanto, ainda não há formação específica paratodos os educadores atuantes nas séries iniciais e, portanto, foi realizada uma reflexãoa respeito das implicações legais e as normas educacionais que permeiam esse con-texto.

Introdução A música é uma das principais e mais importantes formas de expressão presentes noser humano. Os diferentes processos de desenvolvimento pelos quais ele passa no de-correr da sua vida são marcados por manifestações musicais e sonoras em diversosmomentos. Partindo dessa perspectiva, “se o som é tão presente em nossas vidas, eleé um grande instrumento para a estimulação da percepção e do desenvolvimentonormal.” (Carvalho 1987). No ensino de música no contexto escolar, o aprender através da musica trata princi-palmente de observar, apreciar, compreender os elementos presentes na música e emoutras atividades onde ela está presente, conceder à criança momentos de interação,explorar sua musicalidade, possibilitando a compreensão das emoções ao ouvir outocar determinada música ou instrumento. Onde a criança passaria por esse processo?Bastian (2009) diz que, quanto mais cedo a criança tiver contato com as artes, espe-cialmente com a música, mais rápido ela irá aprender música, bem como o seu de-senvolvimento cognitivo, será facilitado.

A música e o som são dois elementos importantes quando nos referimos à esti-mulação essencial. Mas este trabalho deve ser equilibrado para que a criança tomecontato com a produção sonoro/musical de maneira agradável, para que maistarde o “brincar com a música” não se torne um “brincar de música”.1

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1 Carvalho, P. M. Ribeiro, II Encontro Nacional de Pesquisa em Música (Belo Horizonte: Im-prensa Universitária, 1987), 290.

Metodologia Em virtude da necessidade de um método direcionado ao ensino de música na escola,foram propostas algumas reflexões a respeito da postura e da formação do educador,que não deverá se restringir apenas ao ensinar, mas que seja de forma que englobeos aspectos que envolvem o processo de ensino/aprendizagem. Para atender aos objetivos do objeto em discussão, foram levantadas concepções dealguns autores da literatura correlata acerca do processo de aprendizagem da criançae do real papel do professor, que será explicitada ao longo deste artigo. Sobre essetema, Moyles, sua função seria de

“[...]a aprendizagem seja contínua e desenvolvimentista em si mesma, e inclua fa-tores além dos puramente intelectuais. [...] parte da tarefa do professor é propor-cionar situações de brincar livre e dirigido que tentem atender às necessidades deaprendizagem das crianças” (Moyles 2002, 31-45).

A autora propõe que “a aprendizagem precisa basear-se em experiências prévias”Moyles (2002). Logo, para seja construído de forma efetiva, o objetivo seria propiciarmomentos de experiências para que a criança possa se desenvolver, considerando amusicalidade presente em cada um.

A formação e o papel a ser desempenhado pelo professor A formação do educador é de fundamental importância no que concerne ao desen-volvimento cognitivo e ao aprendizado da criança na escola, bem como a participaçãoativa da família e daqueles que, direta e indiretamente, exerçam algum tipo de in-fluência no desenvolvimento da criança. No currículo acadêmico do curso de Pedagogia e das licenciaturas, normalmente nãose encontram disciplinas de caráter obrigatório relacionadas à educação musical. Coma determinação legal vigente, a complementação da formação dos educadores serãomedidas a serem planejadas e delineadas a longo prazo. Pensando em planos ime-diatos, a realização de oficinas e cursos de formação direcionados para essa área, pro-vavelmente traria resultados de caráter paliativo. Essas ações teriam como objetivoprincipal de formar o educador e torná-lo mais preparado para atuar na escola.Para pensar sobre as formas de solucionar possíveis problemas e refletir quanto aotema em questão, teríamos que pensar a respeito do motivo pelo qual ela existe, sobrea importância que ela atribui à aprendizagem e ao desenvolvimento da criança. Bas-tian (2009) faz algumas colocações a esse respeito, dizendo que a educação musicalexiste para

“[. . .] oferecer às crianças a oportunidade de experimentar a música emocional-mente, com todos os sentidos e com alegria e, dadas as possibilidades, autoexer-citar-se no canto, na dança, na execução de um instrumento musical, em (gruposde) improvisação, na criação de trilhas sonoras, na encenação, na meditação, nosjogos interativos e comunicativos e em muitos outros campos técnicos de expe-riência e de aprendizagem, a fim de, com isso, desenvolver suas predisposições ecapacidades musicais. A educação musical serve também para o futuro desenvol-

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vimento da capacidade de percepção (musical) [. . .] futuro desenvolvimento deuma abertura musical e capacidade de experiência etc.” (Bastian 2009, 46).

a) Aspectos legaisNo tocante à legislação correlata, a determinação legal sobre a implantação do ensinode música nas escolas gerou a necessidade de contratar profissionais da área para tra-balharem nas salas de aula. A Lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, que dispõe sobrea obrigatoriedade do ensino de música na educação básica, determina que “§ 6º Amúsica deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricularde que trata o § 2º deste artigo.”. Entretanto, na Mensagem de Veto nº 622, emitidano mesmo ano (que veta parcialmente o artigo 2º da mesma lei), explica que o ensinode música nas escolas não deverá ser necessariamente ministrado por profissionaiscom formação específica na área, uma vez que:

“No tocante ao parágrafo único do art. 62 (da Lei nº 9.394/96), é necessário que setenha muita clareza sobre o que significa ‘formação específica na área’. [...] Adi-cionalmente, esta exigência vai além da definição de uma diretriz curricular e es-tabelece, sem precedentes, uma formação específica para a transferência de umconteúdo.” (In http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Msg/VEP-622-08.htm)

Além da legislação, as normas contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)de Artes, propõem que o ensino de música nas séries iniciais deva ser pautado noscritérios de “comunicação e expressão em música: interpretação, improvisação e com-posição; [. . .] escuta, envolvimento e compreensão da linguagem musical; A músicacomo produto cultural e histórico: música e sons do mundo”. (PCN, 1997)Apesar das determinações legais, na prática, a realidade é um pouco diferente. Alémde produzir meios para a realização das aulas, conciliando a seus conhecimentos esua prática docente com o que é exigido atualmente por lei, de forma a atender asnormas instituídas pelas autoridades competentes nesse campo, que sejam adequadospara a realização das aulas, o professor precisa buscar a formação complementar que,a princípio, não recebeu durante a graduação. Por exemplo, pode-se mencionar ocurso de Pedagogia da Universidade de Brasília, no Distrito Federal, onde, no currí-culo das disciplinas obrigatórias não há qualquer disciplina que trate a respeito daeducação musical. No tocante às disciplinas optativas, há somente a disciplina Fun-damentos da Linguagem Musical na Educação, para atender a demanda de alunos dePedagogia e das licenciaturas.

b) Construção do aprender e do fazer musicalA forma de vida social da criança tem relação direta com o seu processo de aprendi-zagem. Alguns aspectos da vida contemporânea que são nocivos ao seu pleno desen-volvimento, como estímulos que tenham em vista superestimular ou incentivamcomportamentos passivos da criança perante algum problema, devem ser direciona-dos a um equilíbrio, pois, ou se formarão crianças estressadas pela superestimulaçãocontínua, ou crianças passivas e com dificuldades de memória e, conseqüentemente,com a aprendizagem. (Levine; Ilari 2003, 7-16).

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Citando um meio favorável à aquisição do conhecimento, a ludicidade adquire umagrande importância, pois, aliada à educação musical, torna-se um poderoso recursoque poderá propiciar o desenvolvimento cognitivo da criança. Seria possível trazerum novo significado do fazer musical na escola. Ela cria inúmeras possibilidades dea criança de explorar e experimentar novos elementos que surgem à sua volta e, de-senvolvendo aos poucos, um alto grau de criatividade e sensibilidade, abrindo novasportas onde a imaginação e o intelecto serão cada vez mais desenvolvidos (Garrocho,2003). Entretanto, da mesma forma que a superestimulação ou o oposto podem exer-cer conseqüências de caráter prejudicial para a criança, é preciso que haja uma dosa-gem no brincar. Ele deve ser realizado com a finalidade de atingir os objetivospropostos no currículo escolar. Da mesma forma que uma aula de ciências deve tero momento lúdico e o momento específico para dedicação ao estudo, a aula de músicatambém precisaria ter o fundo do aprender, sem que a brincadeira seja banalizada. As desvantagens da aplicação do ensino de música nas escolas constituem-se aindacomo um desafio, pois a falta de uma complementação na formação do educadorpode fazer com que a combinação da música com o ensino de outras matérias setransformem em um obstáculo difícil de ser superado. A conseqüência seria o usoda música como produto, ou seja, a função de educar musicalmente seria perdida. Asatividades escolares precisam receber um complemento adequado para que as aulassejam mais ricas e proveitosas, e conciliadas com o dia-a-dia escolar.Também a postura do professor constitui um fator determinante no processo doaprender. Facilitar o contato interpessoal entre professor e aluno, estimular a con-fiança da criança, para que ela tenha condições de participar mais livremente das ati-vidades propostas. Além disso, aceitar os alunos sem cobrar resultados imediatos,motivá-los, reforçar o bom desempenho e respeitar o nível cognitivo de cada um, bemcomo considerar as experiências que cada aluno leva consigo desde cedo, de formaque as aulas possam ser mais proveitosas para ambos. No tocante ao local de realização das aulas, torná-lo mais receptivo, acolhedor, pos-sível para que a manifestação musical possa ocorrer, seriam formas eficazes para aconstrução do aprender e um importante critério a ser considerado. Para que sejapossível a construção de um ambiente propício para seu desenvolvimento, é precisoque seja dada abertura à criança, para que ela possa se exprimir, uma vez que ela pre-cisa sentir confiança em poder expressar-se musicalmente de acordo com a sua pró-pria vontade, expondo suas emoções e atitudes, pois “diferentemente do talento, ainteligência musical é um traço compartilhado [. . .], um traço que todos possuem emum certo grau e que é passível de ser modificado” (Ilari, 2003).A respeito da música no contexto educacional, Bastian diz que:

“A música é [. . .] um espaço livre e um campo experimental para a fantasia esté-tico-musical e sociomusical. O primeiro desafio que resta é elaborar uma aula demúsica que esteja em sintonia com a comprovada alegria pela música e que coliguea exigência da arte com a orientação da cultura musical, tanto tradicional quantomoderna. Nenhum professor de música pode duvidar desse fundamento singular

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da disciplina de música, se ele não quiser suprimir sua específica e inconfundívelidentidade” (Bastian 2009, 47).

c) Considerações finais Para compreender atual momento da educação musical nas escolas, é essencial re-fletirmos criticamente sobre os elementos e participantes contribuintes desse processo,como a formação acadêmica do educador, a falta de formação específica, a forma douso da música no contexto escolar, os aspectos legais em vigência e os elementos quepermeiam a ordem de fatores que propiciem o fazer musical. Existe ainda a dificuldade de compreender a respeito de como a música será utilizadana Educação. Ela é um meio necessário para se estimular o aprendizado da criança,pois a partir dela seria possível ensinar de forma mais livre, além tornar possível aexploração da musicalidade, e contribuir para o seu desenvolvimento.

ReferênciasBastian, H. G. Música na escola: a contribuição da música no aprendizado e no convívio social

da criança. 1ª ed. São Paulo: Paulinas, 2009.Brasil. Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação

nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htmBrasil. Lei n. 11769, de 18 de agosto de 2008. Torna obrigatório o ensino da música na educação

básica. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11769.htmRibeiro Carvalho, Paula Maria. “Estimulação essencial através da música”. In II Encontro Na-

cional de Pesquisa em Música – São João del-Rei, 1985. Belo Horizonte: Imprensa Univer-sitária, 1987.

Garrocho, L. C. Uma Poética do Brincar. Revista Pedagógica 9, nº 53 (set/out. 2003).Ilari, B. “A música e o cérebro: algumas implicações do neurodesenvolvimento para a educação

musical”. Revista da ABEM 9 (set. 2003): 7-16.Brasil. Ministério da Educação. Mensagem de Veto n. 622, de 18 de agosto de 2008.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Msg/VEP-622-08.htmMoyles, J. “O Brincar e a Aprendizagem”. In: Moyles, J. Só brincar? O papel do brincar na edu-

cação infantil, 31-45. Porto Alegre: Artmed, 2002.Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais, vol. 7, Arte. Brasília,

1997. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro06.pdf

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Articulações pedagógicas e criatividade musical: um recortesobre o desenvolvimento da mente criativa musical

Vilma de Oliveira Silva Fogaç[email protected]

Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia

ResumoEsse trabalho relata uma pesquisa para obtenção de grau mestre, que foi realizadano Programa de Pós-Graduação em Música na Universidade Federal da Bahia. A pes-quisa foi um estudo de caso, realizado com um estagiário do curso de Licenciaturaem Música da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. A pesquisa teve ointuito de responder a seguinte questão: “Como o estagiário de música realiza arti-culações pedagógicas (pontes) para o desenvolvimento de uma pedagogia musicalcriativa e para o desenvolvimento da criatividade musical do aluno de iniciação mu-sical?”. O objetivo geral da pesquisa foi construir as competências articulatórias deum licenciando em música, para que, de uma forma mais específica, ele desenvol-vesse a mente criativa musical de seus alunos de música, através de atividades deimprovisação e composição musical. Paralelo às estratégias e ações articulatórias –com base no referencial teórico “Abordagem PONTES” em desenvolvimento pela edu-cadora musical Profª. Drª. Alda Oliveira — no sentido de conquistar os alunos para osfazeres criativos musicais e proporcionar um ambiente favorável ao desenvolvimentoda personalidade criativa musical, foram realizadas atividades de criação musical que,além de servirem de gancho para a abordagem de conteúdos teóricos e práticos (téc-nica instrumental e performance), serviam para alimentar o próprio espírito criativomusical do aluno. Ao fim da pesquisa, pôde-se verificar a importância da realizaçãodas ‘pontes’ de articulação no desenvolvimento da mente criativa musical do alunode música, bem como, para fomentar no professor de música em formação compe-tências para a realização de uma pedagogia musical criativa, didaticamente e musi-calmente, acolhedora e pronta para lidar com os imprevistos e tensões do processode ensino-aprendizagem musical.

Palavras-chavecriatividade – articulações – aprendizagem musical

IntroduçãoA reflexão acerca da formação acadêmica da autora em Educação Musical, o seu es-tágio no curso da disciplina Prática de Ensino (MUS 185) e o diálogo com colegas daárea foram os fatores motrizes para despertar seu interesse pelo assunto criatividadepedagógico-musical, desenvolvimento das habilidades criativas musicais do discentee formação continuada do professor de música. Da necessidade de melhor compreen-der o processo criativo musical no ensino e na aprendizagem da música nasceu, par-tindo de sua práxis pedagógica-musical, o interesse em desenvolver essa pesquisa.O estágio da autora foi realizado no IMIT (Iniciação Musical com Introdução ao Te-

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clado) projeto de extensão da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia(EMUS – UFBA), criado em 1987 por Alda Oliveira. Esse projeto já utilizava desdeaquele momento, procedimentos básicos de composição, audição e execução, assimcomo também de expressão corporal, introdução à leitura e escrita musical, introdu-ção à técnica instrumental (piano e outros teclados) e apreciação de obras do reper-tório musical de vários estilos e contextos, especialmente nacionais. As três primeirascitadas (composição, audição e performance - CAP) são as principais atividades su-geridas pelo educador inglês, Keith Swanwick, através da proposta do modeloC(L)A(S)P (1979), para uma educação musical equilibrada. Depois da vinda destegrande educador ao Brasil, durante a realização do evento de criação da AssociaçãoBrasileira de Educação Musical em Salvador (em 1990), a teoria de Swanwick ficousendo conhecida e, devido à sua grande aplicabilidade e coerência, Oliveira decidiuadotá-la como fundamentação para o que já era realizado na práxis educativa dentrodos procedimentos pedagógicos do projeto IMIT.Assim, conforme essa fundamentação, a aula de música no IMIT deveria contemplarcinco práticas musicais: técnica, execução, composição, literatura e apreciação. Aorefletir sobre sua prática de ensino no estágio, a autora/pesquisadora percebeu quese encontrava muitas vezes sem um norteador para as atividades de criação musical,as atividades não tinham um fluxo de objetivos, eram desconectadas e esparsas. Apesquisadora também observou outras práticas de ensino e projetos de educação mu-sical como atividade curricular para a disciplina Iniciação Musical II (MUS 181), eencontrou problemas semelhantes com a questão da criatividade musical em sala deaula. Tais problemas se referiam tanto ao desenvolvimento da criatividade musicaldo aluno (que é intimamente ligado à construção de uma personalidade criativa)quanto às propostas pedagógicas-musicais para a solução desses e de outros proble-mas da práxis educacional realizada em sala de aula que, pode ser entendida como a

“[. . .] relação dinâmica entre teoria e prática, ou seja, teoria/prática” (Oliveira 2008, 5). Este trabalho relata uma pesquisa para obtenção de grau mestre, que foi realizada noPrograma de Pós-Graduação em Música na Universidade Federal da Bahia. A pesquisateve por objetivo buscar resposta para a seguinte questão: “Como o estagiário de mú-sica realiza articulações pedagógicas (pontes) para o desenvolvimento de uma peda-gogia musical criativa e para o desenvolvimento da criatividade musical do aluno deiniciação musical?”. Então, esse trabalho irá relatar o desenvolvimento e resultadosdessa pesquisa, com especial atenção para os resultados do desenvolvimento da mentee personalidade criativa musical dos alunos de um estagiário do curso de Licenciaturaem Música da EMUS-UFBA. Maiores informações sobre a Abordagem PONTES e sobrecomo ela embasa esse estudo, estão publicadas na revista dinamarquesa Chara, es-pecialmente voltada para o tema ‘Criatividade e espontaneidade no ensino das artes’,o que veio trazer à pesquisa, um importante reconhecimento pelos estudiosos da área.

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1 Oliveira, Alda; Vilma de O. S. Fogaça. The PONTES Approach for a creative and continuededucation of music teachers. In: CHARA – Journal of Creativity, Spontaneity and Learning 1,nº. 3 (2010), Copenhagenn, 2010. http://www.chara.dk/artikler/20100303.pdf

ObjetivoO objetivo geral da pesquisa foi construir as competências articulatórias de um licen-ciando em música, para que, de modo mais específico, ele desenvolvesse a mente cria-tiva musical de seus alunos de música, através de atividades de improvisação ecomposição musical.

1. Objetivos Específicos• Promover a articulação entre os três âmbitos da universidade: pós-graduação,

graduação e extensão, em serviço da pesquisa e do ensino na área musical.• Promover a construção de competências articulatórias num estagiário do curso

de graduação em Licenciatura em Música da EMUS/UFBA, em prol de uma peda-gogia musical criativa.

• Desenvolver uma pedagogia que favoreça, de uma maneira especial, a construçãoda personalidade criativa e da mente criativa musical do aluno do curso de ex-tensão, dentro do planejamento de aprendizagem musical como um todo.

Metodologia e FundamentaçãoNo desenvolvimento desse trabalho foram contempladas diversas áreas de conheci-mento, por exemplo: musicais, pedagógicas, sócio-culturais e psicológicas. Então,para responder uma questão, cuja investigação perpassa por tais saberes diversos,torna-se aconselhável o uso da pesquisa qualitativa:

“A pesquisa qualitativa recobre, hoje, um campo transdisciplinar, envolvendo asciências humanas e sociais, assumindo tradições ou multiparadigmas de análise,derivadas do positivismo, do marxismo, da teoria crítica e do construtivismo, eadotando multimétodos de investigação para o estudo de um fenômeno situadono local em que ocorre, e enfim, procurando tanto encontrar o sentido desse fe-nômeno quanto interpretar os significados que as pessoas dão a eles.” (Chizzotti2003, 221).

A estratégia de pesquisa foi o estudo de caso. O sujeito em estudo foi um aluno docurso de graduação em Licenciatura em Música, da EMUS/UFBA. A pesquisadora foiprofessora-orientadora do estágio supervisionado do sujeito e cuidou de sua formaçãono referencial teórico da Abordagem PONTES. O estágio foi desenvolvido no IMIT (Ini-ciação Musical com Introdução ao Teclado), curso de extensão de musicalização daprópria universidade, cuja turma era composta por seis crianças entre 8 e 10 anos deidade. A coleta de dados constituiu, principalmente, no registro de articulações rea-lizadas pelo estagiário com o intuito de desenvolver a criatividade musical de seusalunos. Buscando a confiabilidade para a obtenção de resultados dessa pesquisa, a autoraapoiou a coleta de dados em diferentes instrumentos de coleta. A escolha de utilizardiversos instrumentos na obtenção de dados foi de suma importância para que fossempossíveis as comparações entre os dados oriundos de diferentes fontes e devido a ma-neira com que seriam posteriormente analisados, avaliados e seus resultados apre-sentados, a saber: diário de campo e reflexivo, fichas de relato de um observador

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independente, entrevista semi-estruturada e registros em material audiovisual.O anonimato foi a medida adotada com o objetivo de proteger a identidade dos me-nores envolvidos na pesquisa (os alunos do estagiário), seus nomes reais foram omi-tidos e foram usados, para referência de cada um deles, pseudônimos. O estagiáriotambém teve seu nome substituído por pseudônimo. Para o uso de imagens, a pes-quisadora colheu junto aos pais ou responsáveis pelas crianças e do próprio estagiário,autorizações por escrito e registradas quanto ao uso de imagem, de direito exclusivoda pesquisadora.

1. Fundamentação TeóricaOs teóricos têm dedicado seus estudos a dois produtos em especial: a composiçãomusical e a improvisação musical. Entretanto, os produtos da criatividade musicaltambém se estendem a outros domínios, como arranjos, instrumentação e orques-tração, que apesar de tratarem a música previamente existente, eles dão para a músicaum novo aspecto ou caráter. Além disso, a criatividade está presente no exercício dasatividades musicais em geral, como explica Hallam: “Música é as duas coisas, a criaçãoe a execução da arte. Composição, improvisação e a interpretação musical, todas re-querem criatividade” (2007, 70). A criatividade musical é o assunto tratado dentro do tema maior que é a formaçãodocente. Aqui a formação docente é tratada dentro do estágio que transcorre no cum-primento da disciplina Prática de Ensino (MUS 185), conforme rege o artigo primeirodo Capítulo I da lei que regulamenta o estágio:2

“Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de tra-balho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejamfreqüentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educaçãoprofissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensinofundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos. (Brasil2008)”.

No mesmo artigo “o estágio visa ao aprendizado de competências próprias da ativi-dade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento doeducando para a vida cidadã e para o trabalho” (Brasil 2008). O currículo dos cursosde graduação deve contemplar a experiência da prática profissional, essa experimen-tação é fundamental na formação do licenciando:

“Uma das formas de conhecer é fazendo igual, imitando, copiando, experimen-tando (no sentindo de adquirir experiência), praticando.O exercício de qualquer profissão é prático nesse sentido, na medida em que setrata de fazer ‘algo’ ou ‘ação’. A profissão de professor é também prática. E se ocurso tem por função preparar o futuro profissional para praticar é adequado quetenha a preocupação com a prática”. (Pimenta 2006, 28).

Eis descrita a função do estágio: “visa à preparação para o trabalho produtivo de edu-candos que estejam freqüentando o ensino regular em instituições de educação su-perior”, “aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à

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2 Lei nº. 11.788, de 25 de Setembro de 2008.

contextualização curricular” e “se o curso tem por função preparar o futuro profis-sional para praticar é adequado que tenha a preocupação com a prática”. A aprendi-zagem, fruto da experiência e da reflexão das experiências de cada dia, dará aoprofessor em início de carreira, subsídios para prosseguir no magistério de maneiraa ser responsável pela sua docência.A pesquisa “Criatividade Musical: Abordagem PONTES no desenvolvimento das com-petências articulatórias do professor de música” foi fundamentada em diversos au-tores: Piaget (1972), Sloboda (2008), Vygotsky, Gardner (1995), Koutsoupidou (2008),Gainza (1983), Nachmanovich (1996), Olsen (2010), Widmer (2004), Alencar (1986),entre outros, utilizados no estudo dos assuntos ‘criatividade’ e ‘criatividade musical’;quanto ao aspecto da formação de professores, a pesquisa de doutorado de ZuraidaBastião (2009). Todavia, teve especial atenção a “Abordagem PONTES”, em desenvol-vimento Pela educadora musical Alda Oliveira desde o ano 2001, por ser o referencialteórico que embasou a construção das competências articulatórias do estagiário emestudo.O que fazer diante de uma realidade em que nossos objetivos e necessidades, muitasvezes, são colocados distantes do núcleo do processo educacional? É necessário for-mar professores capazes de raciocinarem seus próprios meios para resolverem as ad-versidades encontradas. A “Abordagem PONTES”, teoria para uma abordagempedagógico-musical que, vai muito além do conceito de método, pois visa o desen-volvimento de articulações entre o educador musical – aluno – contexto, podendoser considerada uma das novidades para a formação de professores e o desenvolvi-mento de competências criativas no mesmo, como a autora explica, sobre a aborda-gem PONTES:

Lida com criatividade pedagógica, com postura docente, adequação e aproximaçãoestratégica aos alunos, às instituições, e também com o aproveitamento das opor-tunidades (sinais que a vida e as próprias atividades dão a quem está envolvido)que aparecem durante a praxis educacional, entendida como relação dinâmicaentre teoria e prática, ou seja, teoria/prática (2008, 4).

A formação que contempla as habilidades criativas do educador musical faz com queele tenha sempre à mão um material precioso: ele mesmo. Pois este, juntando a istobom senso, sensibilidade e discernimento será capaz de elaborar soluções para as di-versas dificuldades que se levantarão por diferentes motivos em seu magistério mu-sical. Ao desenvolver a abordagem, Alda Oliveira utilizou a palavra ‘pontes’ como metáforapara as articulações significativas desenvolvidas em um contexto educacional. Umaarticulação significativa, dentro da abordagem, é aquela que está descrita em PONTES,que é um acróstico metafórico que representa os focos de relevância pedagógica paraas articulações, os quais foram identificados e registrados pela autora como: positi-vidade, observação, naturalidade, técnica, expressividade e sensibilidade. Nas palavrasda autora da abordagem, cada articulação se define como:

• Positividade na relação educacional e pessoal entre o professor e o educando,

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entre o professor e a turma; perseverança, poder de articulação e habilidade demanter a motivação do aluno acreditando no potencial do aluno para aprendere se desenvolver.

• Observação cuidadosa do desenvolvimento do educando e do contexto sociocul-tural, das situações do cotidiano e da realidade de sala de aula, os repertóriosmusicais e as representações.

• Naturalidade nas ações educativas e musicais; simplicidade nas relações com oaluno, com o conteúdo curricular e com a vida, com as instituições, contexto eparticipantes, tentando compreender o que o aluno expressa ou quer saber eaprender.

• Técnica pedagógica adequada (e não mecânica), ao ensino e aprendizagem emcada situação específica; habilidade para desenhar, desenvolver e criar novas es-truturas de ensino e aprendizagem (de diferentes dimensões); habilidade de usarestratégias didáticas, modos de usar os diversos materiais (incluindo a voz) e ins-trumentos musicais para refinamento das ações e expressões dos alunos, visandoa comunicação das idéias, conteúdos e significados de forma artística, musical eexpressiva; técnica usada como elemento facilitador da expressão humana.

• Expressividade musical e criatividade artística; esperança e fé na capacidade dedesenvolvimento da expressividade e aprendizagem do aluno.

• Sensibilidade às diversas manifestações musicais e artísticas das culturas domundo, do contexto sociocultural e do educando; a sensibilidade se refere à ca-pacidade docente para potencializar os talentos de cada aluno, de burilar artisti-camente e encaminhar as aptidões humanas. (Oliveira 2008, 22).

Procedimentos Metodológicos: de pesquisa e pedagogiaDe maneira sucinta, a estratégia de ação em prol do alcance dos objetivos, foi:

• Formação do estagiário na Abordagem PONTES: a pesquisadora, na função deorientadora do estagiário desenvolveu sua formação nesse referencial teórico du-rante as aulas de orientação docente para estágio. Além do estudo da apostila

“Pontes Educacionais em Música”, desenvolvida por Alda Oliveira (2008), foramdiscutidas as articulações em sala de aula, as oportunidades perdidas de realizaruma articulação, a elaboração e os resultados das atividades de criação musicale o desenvolvimento da mente criativa musical dos alunos, de maneira individuale coletiva. Esse foi um procedimento indispensável para a obtenção de resultados.Foi através dessa ação, que se prolongou por todo o estágio, que o estagiário cons-truiu uma pedagogia musical eficiente, criativa e autônoma. A ação da pesquisa-dora-orientadora esteve firmemente

• Registro em diário de campo e material audiovisual da participação dos alunosem atividades de criação musical e das ações articulatórias desenvolvidas peloestagiário durante esse momento, para estudos e reflexões posteriores. O registroem diário de campo foi fundamental para a reflexão do processo de pesquisa eestágio e para o planejamento de procedimentos e ações futuras. Também, é im-portante ressaltar que a coleta de dados em material áudio visual é um resultadodo desenvolvimento da personalidade criativa e autoconfiante dos alunos. No

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início do estágio, esse procedimento não foi possível devido à inibição dos alunosfrente ao registro de suas ações e suas músicas. Com o realizar de um trabalhovoltado para o desenvolvimento da personalidade criativa musical, conseqüen-temente, a segurança dos alunos em relação às suas atitudes e criações, foi de-senvolvida, de maneira que a captura de som-imagem passou a ser encarada comnaturalidade por parte deles.

Em busca das idéias e ações criativas musicais dos alunos, o estagiário desenvolveutrês direções na construção das ‘pontes’:

a) No desenvolvimento da personalidade criativa musical dos seus alunos, partindoda construção de um contexto favorável. O processo de estímulo à produção mu-sical está intimamente ligado à construção da personalidade criativa, que segundoAlencar: “Na medida ainda que os traços associados à criatividade, como espon-taneidade, curiosidade, independência, iniciativa, forem cultivados e reforçadosno meio social onde o indivíduo se acha inserido, produções criativas terão maischances de ocorrer” (Alencar 1986, 38). Esse direcionamento das articulações,favoreceu de maneira direta, além desse aspectos acima citados, ao desenvolvi-mento de autoconfiança nas atitudes criativas musicais, na exposição da produçãocriativa musical e no apreço pela música criada por si próprio.

b) No desenvolvimento de sua criatividade pedagógica-musical: Alencar levanta aseguinte questão em sua pesquisa: “Professores mais criativos têm alunos maiscriativos?” (2007, 45). Podemos perguntar, no caso da educação musical, quaisfatores implicam na estimulação produção criativa musical do aluno? Supondoque, um professor criativo pedagogicamente e musicalmente tenha mais chancesde realizar ‘pontes’ de articulações, visto que. como já foi mencionado sobre Abor-dagem PONTES, “[. . .] lida com criatividade pedagógica [. . .], foi preciso raciocinartambém sobre a personalidade criativa do professor de música. Esse foco de ar-ticulações trouxe a proposta criativa do ensino de música. Esse procedimentoteve uma participação maciça da pesquisadora-orientadora, que especulou sobreas competências pedagógicas-criativas do estagiário, provocou o estagiário a‘ousar’ criativamente em sala de aula ajudando-lhe a perceber e observar oportu-nidades de realização de um trabalho criativo musical, ainda que esse, não tivessesido planejado.

c) Na produção criativa musical dos alunos: das ‘pontes’ com a música criadas pelosalunos, surgiam novas possibilidades musicais e alargavam os horizontes criativosmusicais das crianças. Schafer fala sobre o objetivo e valor da criação musical emsala de aula: “descobrir o potencial criativo das crianças, para que possam fazermúsica por si mesmas” (1991, 284). Vejamos agora, maiores detalhes acerca dessedirecionamento, pois é o desenvolvimento das competências criativas musicaisdos alunos, que vêm ornar de sucesso esse trabalho.

O objetivo “descobrir o potencial criativo das crianças” é um alvo a ser perseguidopelo educador: fazer revelar as criações dos alunos, estimulá-los a criar, encorajando-as a se arriscarem a externar sua música interior, apresentá-la ao mundo é dar-lhes aoportunidade de manipular os materiais musicais, elaborar novos resultados, mexere misturar os conteúdos, aguçar sua expectativa estética, enfim, permitir que eles

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tomem posse e articulem o conhecimento construído, tendo uma experiência musicalplena. Swanwick e Tillman (1986) publicaram a “Teoria do Desenvolvimento Espiral”, ins-pirada na teoria piagetiana que tenta explicar o desenvolvimento cognitivo musicala partir de análise de composições de crianças de diversas idades, em várias partesdo mundo. Então, para a obra Ensinando Música Musicalmente Swanwick desenvolveum precioso conceito sobre composição livre de fronteiras rígidas:

“Falo de ‘composições’ num sentido muito amplo, incluindo das mais breves ma-nifestações, assim como a invenção mais desenvolvida. Há composição quandoexiste uma certa liberdade para eleger a organização da música, com ou sem nor-mas notacionais ou de outro gênero para interpretação detalhada”. (2003, 67).

É interessante notar a importância da ação do professor na orientação da atividade,bem como, o discernimento necessário para que, especialmente em crianças, a ativi-dade de criação possa ser de alguma maneira conduzida pelo professor, e que nãoseja confundida com um momento de realização qualquer. Todavia, esta orientaçãodeve limitar-se a sugestões que auxiliem o aluno a elaborar e expor sua idéia musical.A orientação da criação não transgride o processo quando realizada corretamente,antes, o estimula, se respeitando a idéia do aluno: “O bom clima pedagógico demo-crático é o que o educando vai aprendendo à custa de sua prática mesmo que sua cu-riosidade como sua liberdade deve estar sujeito a limites, mas em permanenteexercício” (1998, 95).Conhecimento musical, prática de pesquisa pedagógico-musical, exercício da artemusical são elementos imprescindíveis para uma formação plena do educador mu-sical, todavia, a sensibilidade em notar o aluno e ‘garimpar’ sua música interior, res-peitar o ‘ser musical’ deste aluno, é um exercício vivo que alimenta a vida musical.Após sua formação na referida abordagem, o estagiário mostrou-se capaz de realizararticulações pedagógicas-musicais com objetivo direcionado ao desenvolvimentocriativo musical de seus alunos. Em entrevista, o estagiário disse sentir-se pronto paracriar estratégias didáticas-musicais em situações inusitadas, articular-se com diversosmateriais simbólicos (sorriso, silêncio, som, gestos, expressões, entre outros) emtempo real de aula a fim de contribuir com a construção de novas questões e soluçõesde problemas no processo de ensino-aprendizagem e preparado para estimular a pro-dução criativa musical do aluno, bem como, receber suas criações musicais de ma-neira útil à novas provocações criativas e a desenvolver a autoconfiança em seusalunos.No início do ano letivo, foi observado muitas recusas para participar de atividadesde criação e improvisação musical, por parte dos alunos. Com o trabalho de articu-lação pedagógica (como já foi dito que foram realizadas articulações com esse fimespecífico), o estagiário pode promover nos alunos o desenvolvimento do prazer e daautoconfiança durante processos criativos musicais. As atitudes desse estagiário deacolhimento e valorização dos produtos criativos musicais dos alunos, desenvolveramneles a tranqüilidade para a exposição, amenizou o medo do julgamento alheio e cria-

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ram apreço pelo próprio trabalho. Prosseguir nos processos criativos, pode ser bemmais difícil que começar, dependerá de como o sujeito construiu as experiências econceitos em relação ao seu processo criativo musical, de exposição e autojulgamento:

“a maneira mais fácil de fazer arte é renunciar a qualquer expectativa de sucesso oufracasso e simplesmente ir em frente.” (Nachmanovitch 1990, 124).

Resultados e ConclusõesNa pesquisa sobre “Os Efeitos de Diferentes Estilos de Ensino de Criatividade Musical”(Koutsoupidou, 2008) a “confiança”, entre outros, figura na lista de objetivos pedagó-gicos (“Teaching Objectives”), como habilidade a ser adquirida pelo aluno que estáem processo de aprendizagem de sua criatividade musical e ele define como: “Con-fiança: A habilidade para executar ou fazer música sem medo de crítica.” (Koutsou-pidou 2008, 317). Segundo o mesmo autor, se referindo ainda a esse trabalho, naentrevista realizada com os participantes da pesquisa, o aumento da confiança dosalunos é o segundo objetivo mais importante das aulas para o desenvolvimento dacriatividade musical dos alunos de música, vindo depois apenas do desenvolvimentoda própria criatividade (p. 317-318). Os alunos do estagiário realizaram improvisaçãomusical diante do público composto por pais e amigos de alunos de diversas turmasem duas ocasiões, sendo que no último recital, eles demonstraram estarem à vontade,concentrados e felizes de se encontrarem naquela situação. Dessa experiência, umaconquista significativa refere-se a um aluno de nove anos, que tinha fobia à exposição,por esse motivo se tratava em psicoterapia, e venceu essa dificuldade durante o trans-correr desse trabalho.O desenvolvimento da aprendizagem musical esteve intimamente ligado ao desen-volvimento da criatividade musical, portanto, os avanços foram bem diferenciados,de acordo com as experiências criativas de cada um. O estagiário tinha um plano decurso estruturado, com objetivos e conteúdos a serem cumpridos, todavia, os resul-tados de aprendizagem musical conseguidos, mediante o trabalho de desenvolvi-mento criativo musical, foram além do planejado. Houve desenvolvimento coletivoem determinados aspectos, por exemplo, os conteúdos teóricos apresentados foramvisivelmente incorporados às suas construções musicais, todos os alunos apresenta-ram esse desenvolvimento. Outro ponto que o grupo caminhou junto, mesmo que apassos e velocidades diferentes, foi a habilidade de tocar e improvisar em conjunto,que segundo a pesquisa supracitada de Koutsoupidou (2008), tocar em grupo era oterceiro objetivo mais importante em processos de desenvolvimento da criatividademusical.Conteúdos técnicos pianísticos, considerados de complexa apreensão para o primeiroano de estudo do instrumento (especialmente no caso do IMIT, que no primeiro anoo estudo instrumental é compartilhado por outros instrumentos, como metalofones,marimba e percussões diversas), foram de maneira espontânea, abordados pelos pró-prios alunos, exemplo: na tentativa de resolver a expansão de altura em sua criaçãomusical, o aluno Felipe introduziu em sua prática a passagem de dedos, essa técnica

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ganhou presença constante em suas improvisações ao piano, passando a fazê-la comdesenvoltura. Outros colegas que o observavam, também adotaram esse conteúdo. O aluno Breno, ampliou esse trabalho e começou a realizar o cruzamento de mãosno teclado, assim, à medida que cada um encontrava uma solução técnica para osproblemas de execução das suas idéias musicais, através da situação exposição (exe-cutante)-observação (colegas como platéia), era compartilhada com todos e todosadotavam essas soluções, desenvolvendo a técnica e a performance pianística.Nos aspectos da produção musical, com o passar do tempo, os alunos passaram acriar canções mais elaboradas melodicamente e estruturalmente, à medida que agre-gavam os conteúdos teóricos-práticos musicais que aprendiam em outros momentosda aula e que se sentiam mais confortáveis para experimentar as possibilidades queocorriam em suas mentes. No segundo semestre do ano letivo um aluno realizou uma‘composição’, no sentido de que ele apreendeu sua melodia, a repetiu várias vezes edepois todos trabalharam no desenvolvimento dessa idéia musical. O estagiário per-guntou aos alunos o que havia diferente entre aquela canção, que primariamente cha-mavam de “a música de Paulo” e as demais que criaram e o próprio Paulo respondeu

“é que as outras eu tocava e não sabia aonde ia dar e essa, agora, eu sei como ela começae termina”, os demais colegas também falaram que suas outras criações eles vão “fa-zendo” e tocando ao mesmo tempo e aquela, eles aprenderam e quando mudam al-guma coisa, sabem aonde estão “mexendo”.Essa discussão conceitual revelou pensamentos que se assemelham bastante com osconceitos de Sloboda (2008, 180), acerca de ‘improvisação’ e ‘composição’: “a tônicado processo composicional parece ser o trabalho de moldar de aperfeiçoar idéias mu-sicais [. . .]. Na improvisação, o compositor não tem a oportunidade de moldar e aper-feiçoar seu material.” Todavia, para Sloboda, a situação do improvisador é complexaporque “sua primeira idéia precisa funcionar” (idem), e esse conceito do que seja

“funcionar” é muito controverso. Então o trabalho feito com os alunos foi de valorizartoda produção musical criada por eles, utilizando esses materiais para articular váriosconteúdos musicais e discutir conceitos e práticas. Eles passaram a acreditar que todatentativa era válida, pois, mesmo quando eles achavam que não “funcionava” (sim,eles se referiam espontaneamente dessa forma para dizer que não tinham alcançadoum resultado melódico desejado) sempre poderia ser útil ao grupo de alguma forma.A composição musical acima referida, posteriormente Paulo a chamou de Black Jack,que era uma breve idéia musical, com síncopa e bastante sugestiva para desdobra-mentos. O Black Jack se tornou um hits nas aulas, a partir de desdobramentos dessacanção, foram apresentados todos os demais conteúdos. Os alunos começaram a uti-lizar como refrão numa espécie de ‘rondó-improvisativo’ e a explorou em muitas pos-sibilidades musicais e em vários instrumentos: piano, metalofones eacompanhamento percussivo.Foi nos trabalhos desenvolvidos com Black Jack que foi possível observar um dadoimportante: o desenvolvimento da percepção métrica e harmônica dos alunos.

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Quando os alunos sentavam em roda com os metalofones para executarem o ‘rondó-improvisativo’, o estagiário se sentava ao piano para acompanha-los e estabelecia oscombinados. Em geral, a norma era a seguinte: todos tocavam junto o refrão e ime-diatamente em seguida, um aluno continuava desenvolvendo a idéia musical até que,quando terminasse, todos tocavam novamente o refrão e o colega da direita conti-nuaria improvisando e assim por diante. O estagiário começou acompanhar harmo-nicamente a canção, a princípio ele acompanhava apenas o refrão, deixando omomento de improvisação completamente livre de padrões (fosse harmônicos ou rít-micos), todavia, quando os alunos demonstraram estar bastante confortáveis comessas atividades, ele começou a manter o acompanhamento, repetindo como se fosseostinato, durante a improvisação e à medida que realizavam repetidamente essa ati-vidade pode-se observar que:

• Os alunos começaram a organizar a métrica da improvisação, suas improvisaçõestinham a medida proporcional ao refrão, ou seja;

• As improvisações forma se tornando mais extensas, mas, sem perder a proporçãoda quadratura do refrão, elas se expandiam à medida que novos conteúdos eramagregados à criação musical;

• As improvisações, que a princípio não seguiam a seqüência harmônica tocadaao piano, aos poucos, foram sendo construídas de maneira a se encaixarem naharmonia. Essa percepção começou a ser notada, quando nas improvisações emgeral, verificava-se que a condução melódica pedia uma cadência perfeita quandoiam finalizar seus improvisos. Quando o estagiário começou a acompanhar osseus improvisos, a evolução da percepção harmônica chegou num ponto em que,toda a improvisação seguia o encadeamento, que era simples, composto apenaspor acordes de tônica e dominante, mas, é fato, que improvisar em cima de umaharmonia previamente estabelecida pode ser uma tarefa complexa, especialmentequando se trata de crianças em seu primeiro ano completo de aprendizado mu-sical e tendo suas primeiras experiências criativas musicais dirigidas.

Naturalmente que, apesar de todos apresentarem esse resultado de desenvolvimentoem linhas gerais, de maneira particular, eles obtiveram resultados diferentes entresim. Alguns os resultados mais relevantes foram quanto ao desenvolvimento de apren-dizagem e agregação de conteúdos à criação musical, outros, os maiores avançosforam quanto às atitudes no momento de criar, a autoconfiança, a segurança em si-tuações de exposição e prazer em realizar atividades criativas musicais.Portanto, concluiu-se que a Abordagem PONTES foi uma ferramenta preciosa no de-senvolvimento das competências articulatórias do estagiário, preparando-o para ar-ticular-se com variados matérias simbólicos e lidar com situações inusitadas, bemcomo, foi importante no desenvolvimento da criatividade musical de seus alunos.

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Articulações entre música, educação e neurociências:idéias para o ensino superior

Luciane [email protected]

Departamento de Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

ResumoEste trabalho propõe-se a apresentar e discutir elementos de articulação entre Música,Educação e Neurociências, com a convicção de que estudos dessa natureza podemenriquecer as reflexões e as práticas no âmbito da música, tanto quanto a práticamusical pode favorecer processos de regeneração, adaptação, ampliação ou aperfei-çoamento das atividades neurológicas. Boa parte desta investigação teórica foi pes-quisada e elaborada a partir da constatação da necessidade de se levar a estudantesuniversitários do curso de Graduação em Música da UFRGS (onde a autora é docente)uma introdução aos estudos de neurociências aplicadas à música. Objetivando esti-mular a desmistificação quanto à inacessibilidade de pesquisas neurocientíficas, ini-ciou-se a elaboração de um objeto de aprendizagem, no formato de uma unidadede estudo para ambiente virtual de aprendizagem, intitulada “Processos mentais eEducação Musical: Neurociências”. Essa produção consiste de um conjunto de infor-mações e atividades abordando princípios do funcionamento do sistema nervoso,bem como um panorama das recentes pesquisas na área e as ligações com o campoda cognição musical. É precisamente esse material que norteará o presente texto,com o intuito de corroborar, também, na divulgação de idéias para a inserção da te-mática no planejamento curricular do Ensino Superior de Música. O texto, conformea unidade de estudo que se baseou, está dividido entre os tópicos: Fatores do desen-volvimento intelectual; Neurociência como campo de conhecimento recente; Contri-buições das Neurociências para a Educação Musical; Estímulos musicais eneuroplasticidade; Possíveis relações cerebrais entre música, linguagem e memória.Os estudos possuem como fundamentação teórica pesquisas de Spitzer (2003), Sacks(2007), Sloboda (2008), Levitan (2010), dentre outros.

Introdução ao diálogo entre neurociências e músicaA proposta deste trabalho é propor a discussão sobre a necessidade de estudos intro-dutórios na área de conhecimentos neurocientíficos, focando nas relações entre mú-sica, educação e as neurociências. Compreende-se que estudos dessa natureza podemenriquecer as reflexões e as práticas no âmbito da música, tanto quanto a prática mu-sical pode favorecer inúmeros processos de regeneração, adaptação, ampliação ouaperfeiçoamento das atividades neurológicas. Boa parte desta investigação teórica foi pesquisada e elaborada a partir da constataçãoda necessidade de se levar a estudantes universitários do Curso de Música da UFRGS,nas modalidades presencial e a distância onde a autora é docente, uma introduçãoaos estudos relacionando neurociências e música. Ao longo desses estudos busca-se,

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primordialmente, a compreensão, por parte dos alunos, da relevância da temática noprocesso educativo. Objetivando estimular a desmistificação quanto à inacessibilidade de pesquisas neu-rocientíficas, concepção ainda presente mesmo no ambiente acadêmico, foi elaboradauma Unidade de Estudo intitulada “Processos mentais e Educação Musical: Neuro-ciências” (Cuervo 2009), com princípios sobre o funcionamento do sistema nervoso,além de uma apresentação do panorama das recentes pesquisas na área e as ligaçõescom o campo da cognição musical. É precisamente este material que norteará estetrabalho, com o intuito de corroborar, também, na divulgação de idéias para a inser-ção da temática no planejamento curricular do Ensino Superior de Música. O texto, conforme a unidade de estudo que o baseou, está dividido entre os tópicos:Fatores do desenvolvimento intelectual; Neurociência como campo de conhecimentorecente; Contribuições das Neurociências para a Educação Musical; Estímulos musi-cais e neuroplasticidade; Possíveis relações cerebrais entre música, linguagem e me-mória e Coerção, emoção e uso terapêutico da música. Ao final deste trabalho, seráexposto um recorte do Glossário de termos neurocientíficos mais utilizados na áreade cognição e educação musical, com fins didáticos. O estudo exposto a seguir possui como fundamentação teórica pesquisas de Spitzer(2003), Sacks (2007), Sloboda (2008), Levitan (2010), dentre outros.

Fatores no desenvolvimento intelectual Pela sua complexidade, a introdução ao campo das neurociências exige uma aborda-gem multidisciplinar, abarcando princípios da biologia, psicologia cognitiva, psico-física acústica, entre outras. No entanto, o foco deste trabalho concentra-se na análisee na reflexão sobre as concepções contemporâneas das Neurociências e suas impli-cações para a Educação Musical. As pesquisas recentes em neurociência e música comprovaram que existem diversasformas de aprendizagem, e destacam a importância do desenvolvimento de habili-dades musicais por fomentarem a conexão de processos mentais, emocionais e sen-soriomotores. Boa parte dos neurocientistas concorda na impossibilidade de ignorar as vivênciasmusicais — portanto o ambiente sociocultural — como fator influente nos resultadosde testes realizados. Piaget (1973) afirma existir um conjunto de fatores que influen-ciam no desenvolvimento intelectual do ser humano. Para ele, fatores sociais e bioló-gicos, experiência física e o processo de equilibração (termo piagetiano, que indica odesafio que uma nova aprendizagem gera, “desestabilizando” o sujeito em busca doequilíbrio) são elementos que estão imbricados no desenvolvimento intelectual hu-mano e são indissociáveis entre si. Em consonância com este pensamento, Cuervo(2009, 75) defende que esses fatores não agem de forma independente, mas, sim, con-comitantemente:

“Em relação à musicalidade, bem como em qualquer área de desenvolvimento

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intelectual, fatores biológicos e culturais são complementares, formando uma rede de elementos indissociáveis entre si. Relacionando essas afirmações à música,constatamos que a musicalidade é constituída por um conjunto de elementos dofazer musical que vão além de habilidades técnicas específicas”.

Piaget conjecturou que, nas décadas seguintes aos seus estudos, seriam desenvolvidosmecanismos de investigação da atividade cerebral que possibilitariam ampliar deforma extraordinária os conhecimentos relativos à mente humana (Piaget, 1976). Defato, diferentes técnicas de pesquisa da atividade cerebral, como a Tomografia porEmissão de Pósitrons (PET) e Ressonância Magnética Funcional (FMRI) auxiliaramnas descobertas sobre ações do cérebro em seres vivos e não limitaram os estudos decérebros lesionados ou sem vida ou recortes amorfos. Em termos de desenvolvimento e aprendizado, por exemplo, Riesgo (2011) ressaltaque existem elementos comuns em qualquer cultura:

Graças à neurotransmissão elétrica, populações inteiras de neurônios iniciam seufuncionamento de modo sincrônico, como se um timer disparasse. Por isso, crian-ças de diferentes etnias e diferentes locais firmam a cabeça, sentam, ficam em pée caminham em idades similares.

Riesgo (2011) também argüi que, enquanto no processo neuromaturacional da ges-tação aos primeiros meses de vida o fator biológico (genético) é predominante e ine-xorável, a parte final do desenvolvimento, “que poderia ser denominada como‘aprendizado’, pode ser atribuída às mais recentes aquisições neurológicas (cognição,linguagem, memória, etc.)” e sofre maior influência do ambiente. Este é apenas um exemplo de pesquisas produzidas por neurocientistas que auxiliamos educadores no sentido de fornecer subsídios científicos no campo do desenvolvi-mento intelectual humano. Como argumenta Relvas (2010, 21):

Muitas vezes, comparamos alguns estudantes e nos perguntamos por quê unsaprendem e outros têm determinadas dificuldades em compreender a aula. Emalgumas situações, discriminamos até mesmo suas inteligências, medindo e men-surando por meio de conceitos e notas, a fim de utilizar-se como medida de apren-dizagem no desempenho escolar.

Ao compreender a importância dos estudos neurocientíficos numa abordagem mul-tidisciplinar e contribuindo de forma relevante no processo educacional, Relvas (2010,21) direciona a sua produção a educadores. A autora estimula os professores a refletirsobre formas de desenvolver inteligências e habilidades múltiplas no alunado, “pormeio do conhecimento de como o cérebro funciona em suas diferentes dimensõesbiológicas, psicológicas, sociais e ambientais”. Sekeff (2007, 114) compreende que “a parte da cultura humana chamada de música,produto exclusivamente humano, é também formada de uma dimensão biológica ecultural”. Portanto, nossas experiências em contato com o objeto “música”, nossas pre-ferências e percepções dos sons formam uma intrincada rede de conexões, onde asneurociências trazem agora novas formas de conhecimento e análise, com uma pro-fundidade antes nunca alcançada.

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Assim, podemos afirmar que, para a elaboração de um plano de ensino destinado aonível superior, é necessário que se tenha em mente dois importantes elementos: danatureza multidisciplinar dos estudos de neurociências aplicadas à música e educação,bem como dos diversos fatores que estão imbricados no complexo processo globalde desenvolvimento humano.

Neurociência como campo de conhecimento recente A partir das últimas décadas do século XX, surgiram diversas técnicas de pesquisaneurocientífica que possibilitaram avanços significativos nos chamados estados sub-jetivos, cujas emoções, arte e crenças humanas estão implicadas. Nesse sentido, a idéiade que a subjetividade, a imaterialidade e as abstrações do pensamento devam serincluídas nos estudos neurocientíficos é bastante nova. Através de diferentes técnicas de imageamento cerebral (que permitem captar ima-gens do cérebro em funcionamento), especialmente a Ressonância Magnética Fun-cional (RMF), os neurocientistas começaram a desvendar os mecanismos cerebraisda inteligência humana e desmistificar ou confirmar teorias e idéias difundidas nasociedade contemporânea. Relvas (2010, 14), cuja atuação inclui os papéis de neurocientista e educadora na es-cola regular, defende que a compreensão sobre a forma que aprendemos passa sobreo conhecimento relativo ao funcionamento do sistema nervoso central, que ela definecomo o “organizador dos nossos comportamentos”. Para ela, ensinar uma nova habi-lidade implica em utilizar o máximo da capacidade de funcionamento cerebral, poisensinar pressupõe um planejamento de novos caminhos de resolver desafios, o queabarca as diversas áreas do cérebro num esforço de máxima eficiência. A necessidade das pesquisas desencadeadas nas últimas décadas fez com que a Or-ganização Mundial da Saúde denominasse os anos 90 como a “Década do Cérebro”,com algumas descobertas fundamentais sobre o sistema nervoso central (SNC). Noentanto, o volume e a qualidade de pesquisas realizadas a partir dos anos 2000 já po-deriam tomar para si o título de “Década do Cérebro”. Algumas das mais importantes contribuições referem-se à desmistificação de idéiasdifundidas no uso comum, alguns dos quais Riesgo (2011) questiona a seguir. A pri-meira delas é de que utilizaríamos somente uma parte do cérebro para desenvolver-mos algumas habilidades. Segundo suas palavras, em concordância com asafirmações de Relvas (2010): “Não é verdade, pelo menos no que se refere à memória.Na realidade, para dar conta das atividades do dia a dia, e em especial daquelas rela-tivas ao aprendizado, é necessário que lancemos mão de toda a nossa capacidade dis-ponível da memória, que precisa ser ocupada até que se chegue próximo do limite depraticamente todo espaço mnemônico à disposição, para o bom desempenho de cadaatividade” (Riesgo 2011). Outro mito é está relacionado ao primeiro, definido por Riesgo (2010) como o “medode esquecer”. O autor esclarece que é saudável esquecermos algumas coisas, pois se-

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lecionamos as informações que nos são importantes — caso contrário poderíamoschegar a um verdadeiro tormento: “Se uma pessoa perdesse a capacidade de esquecer,poderia entrar em surto psicótico, tal a tormenta crescente de informações com asquais teria que lidar e conviver diariamente até o fim da vida”. Levitin (2003) também tratou de alguns conceitos e pensamentos difundidos no meiocomum. Ele explica que uma parte significativa do processo de difusão e recepçãosonora do que se imaginava ser um som proveniente do mundo sonoro exterior,ocorre no interior do cérebro. Por exemplo, a representação dos sons graves e agudos,que não são diferenciados pelos tímpanos, mas têm sua freqüência minuciosamentemedida pelo cérebro e a partir daí é que se constrói uma representação interna comvariações de alturas. A idéia defendida pelo autor é que o cérebro não somente recebee cria representações interiormente, mas gera significado nesse processo (Levitin2003). Como explica Janzen (2008), questões de natureza neurofisiológicas descobertas porestudos dos neuromusicais contemporâneos refletem e fomentam o crescente inte-resse sobre a pesquisa para diversos campos da música. A música e a linguagem, utilizadas como ferramentas de estudo exploratório das fun-ções cerebrais, têm colaborado para o abandono de velhos dogmas e para a criaçãode um novo mapeamento das redes neuronais. A seguir, serão discutidos argumentossobre mitos e fatos científicos ligados à produção musical e atividade cerebral, assimcomo as possíveis aproximações da música e da linguagem como formas da essênciada produção humana.

Contribuições da Neurociência para a Educação MusicalPor enquanto é cedo para analisarmos com exatidão a contribuição direta desses es-tudos para a prática pedagógico-musical, pois o campo de investigação é ainda recente.Contudo, já existem pesquisas que apontam para a importância da música como ele-mento para a ampliação das funções cerebrais, em termos quantitativos e qualitativos.Para Janzen (2008), as Neurociências têm desenvolvido estudos com a música “a fimde compreender como a mente percebe, interpreta, apreende e comanda a música,como também, desvendar os processos anatomofisiológicos envolvidos na percepção,aprendizagem e cognição musical”. A aprendizagem e a educação estão intimamente relacionadas com conhecimentosobre desenvolvimento do cérebro. Como educadores musicais, devemos constante-mente nos esforçar no estudo e assimilação de conhecimentos interdisciplinares dis-poníveis, os quais nos possibilitam conhecer melhor o aluno enquanto sujeito daaprendizagem. Precisamos nos cercar de subsídios que auxiliem na compreensão deuma prática de ensino-aprendizagem que torne o objeto significativo para o aluno,buscando refletir sobre os mecanismos que estão envolvidos na complexa e subjetivaconstrução do conhecimento (Cuervo 2009). Cuervo (2008) entende que, dentre as atribuições do educador musical, deveria haver

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um esforço constante “no estudo e assimilação de conhecimentos interdisciplinaresdisponíveis, os quais nos possibilitam conhecer melhor o aluno enquanto sujeito daaprendizagem”. Da mesma forma, defende-se a necessidade de reunir subsídios queauxiliem na compreensão de uma prática de ensino-aprendizagem que torne o objetosignificativo para o aluno, buscando refletir sobre os mecanismos que estão envolvidosna complexa e subjetiva construção do conhecimento. Uma importante contribuição das pesquisas relacionadas ao funcionamento do SNCé na área das preferências pessoais. Como explica Herculano-Houzel (2007), cada cé-rebro possui suas preferências nos critérios de escolha da “boa música”, mas algunsdesses critérios aparecem nos mais variados cérebros. A autora coloca que é a satis-fação produzida pelo estímulo no sistema de recompensa que faz com que o cérebrogoste de música. Segundo ela:

Músicas que chamam nossa atenção possuem uma estrutura melódica e temporalcomplexa o suficiente para que os processos automáticos de análise de padrõesque o cérebro faz desde a primeira nota tenham um certo trabalho para criar ex-pectativas sobre como a melodia deve prosseguir. Esse processo (não consciente)de tentar adivinhar as próximas notas e, eventualmente, acertar é um estímulo aosistema de recompensa, que mantém o cérebro interessado em continuar a brin-cadeira e faz com que ele goste da música.

O ganho oriundo desse empenho em relacionar música e ciências pode ser muitomaior do que vem sendo proposto no contexto acadêmico. Como afirmam Muszkatet al. (2000):

“O esforço de trazer a música para as ciências da saúde poderá representar, por umlado, a transcendência de uma prática musical hedonista baseada apenas no ouvir-prazer e, por outro, a ampliação da visão da própria neurociência, para além doenfoque racionalista, que negligencia o subjetivo e o relativo expresso nas artes”.

No campo da percepção musical, também podemos citar contribuições das neuro-ciências. Muszkat et al (2000) e Janzen (2008) realizaram amplas pesquisas biblio-gráficas a respeito do funcionamento da mente musical pelo viés da neurociência, eé baseado desses autores que serão expostas, resumidamente, algumas das principaisinformações já encontradas sobre os parâmetros musicais e o cérebro:

• Altura: Pesquisas recentes sugerem existir um engajamento de áreas envolvidasnos processamentos das imagens, como estratégia visual para a assimilação e de-codificação das alturas dos sons, e especula-se que intervalos consonantes seriammelhor recebidos pelo cérebro que os dissonantes.

• Harmonia: A percepção harmônica da hierarquia tonal (funções de tensão e re-laxamento da tônica, dominante e subdominante) está diretamente relacionadaàs vivências musicais do indivíduo. Também é possível afirmar que adultos ini-ciantes e crianças utilizam menos a memória para decodificar acordes que osmúsicos experientes.

• Melodia: O termo melodia empregado aqui se refere a seqüências organizadasde notas, conforme um sentido musical. Nesse aspecto, pesquisas sugerem quehá uma grande importância na identificação do desenho (do contorno melódico)

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de uma melodia, sendo pouco relacionada à exatidão de notas e intervalos. • Ritmo: A métrica é um importante elemento para conhecer como o cérebro re-

cebe e interpreta o ritmo. Pesquisas sugerem que pode haver um elo neurobioló-gico entre a fala expressiva e o ritmo musical. O ritmo, como integração de some movimento, consiste num elemento crucial para a coordenação de movimentoslocomotores básicos.

Levitin (2010) argumenta que uma das mais surpreendentes descobertas sobre a re-lação da música no cérebro e seu processamento geral diz respeito à teoria de que apercepção musical não é um produto de uma área específica do cérebro, ao contráriodo que ocorre em outras habilidades, mas pela coordenação e colaboração simultâneade um enorme conjunto de sistemas neurológicos.

Estímulos musicais e neuroplasticidadeMuitos conceitos defendidos até meados do século XX caíram por terra a partir doavanço das tecnologias empregadas nas neurociências. Talvez o mais importante delesseja relativo à plasticidade cerebral: não faz muito tempo, pensava-se que o cérebrocompletava sua estrutura de forma rígida até os três anos. Porém, a tendência con-temporânea é de descrever o cérebro como um sistema complexo e flexível, formadopor áreas específicas e gerais que podem se reestruturar conforme a necessidade, en-globando funções cognitivas, emocionais e sensoriais. Atualmente, compreende-se que em termos de plasticidade cerebral, o sistema ner-voso da criança é mais plástico que o de um adulto, e este é um dos argumentos paraa atenção redobrada no processo educativo escolar, um contexto altamente favorávelpara o desenvolvimento humano. No entanto, isso é completamente diferente do quepropor ações que “valham a pena” somente no estado precoce do desenvolvimentohumano, ou seja, nos primeiros anos de vida. Spitzer (2007), apesar grandes contribuições para a compreensão do desenvolvimentocerebral e a aprendizagem, afirmou que “o que não se aprende em criança, nuncamais se aprende”. Contrárias a essa teoria, inúmeras pesquisas comprovaram que aorganização que o tecido cerebral assume no início da vida não é definitiva. Para Her-culano-Houzel (2005), no entanto, a maturidade cerebral é alcançada aproximada-mente aos 30 anos, mas a capacidade de aprender é infinita. O cérebro possui umahabilidade incrível de reconfigurar-se de acordo com as informações que recebe domeio externo.Nas palavras de Relvas (2010, 96): “A ciência acreditava que, uma vez completado oseu desenvolvimento, o cérebro era incapaz de mudar, particularmente em relaçãoàs células nervosas, os neurônios”. Isso acarretaria, segundo a autora, uma incapaci-dade adaptação, reestruturação ou regeneração de partes cerebrais danificadas porderrames ou tumores. Hoje, no entanto, sabe-se que apesar de não ter alterado a suaanatômica em nível macroscópico, essa alteração ocorre no limiar microscópico atra-vés da experiência e da aprendizagem (Relvas 2010, 97).

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Pode-se dizer, assim, que cada vez que vivencia-se uma nova experiência, ocorre umrearranjo de redes neurais, ampliando as conexões do saber por meio de sinapses, oque acarretará numa multiplicidade de reações ao ambiente, como explica Relvas(2010). Conforme estudos relativamente recentes, a música é capaz de mudar anatomica-mente o cérebro. Já foi comprovado por pesquisas que o corpo caloso (a grande co-missura que liga os dois hemisférios cerebrais) é maior nos músicos profissionais.Além disso, pessoas que sabem tocar um instrumento têm uma área mais extensa docórtex cerebral ativada pela apreciação musical. A constatação de que a lateralização(localização em hemisférios direito ou esquerdo) das funções musicais é diferente nocérebro dos músicos, quando comparados a indivíduos sem treinamento musical, su-gere um influente papel da música na plasticidade cerebral (Muszkat et al. 2000).

Possíveis relações cerebrais entre música, linguagem e memória

A música e a linguagem, utilizadas como ferramentas de estudo exploratório das fun-ções cerebrais, têm colaborado para o abandono de velhos dogmas e para a criaçãode um novo mapeamento das redes neuronais. A espécie humana é essencialmente lingüística. A voz falada, em si, envolve inflexões,entonações, ritmo, andamento e um contorno melódico. E a música é uma arte quese utiliza da linguagem de símbolos naturais ou convenções para a comunicação eexpressão.Existem paralelos possíveis entre a linguagem e a música: do ponto de vista neuro-funcional, ambas dependem de esquemas sensoriais:

“responsáveis pela recepção e pelo processamento auditivo (fonemas, sons), visual(grafemas da leitura verbal e musical), da integridade funcional das regiões en-volvidas com atenção e memória e das estruturas [. . .] responsáveis pelo encadea-mento e organização temporal e motora necessárias para a fala e para a execuçãomusical” (Muszkat et al. 2000, 73).

Por meio de estudos recentes, é possível afirmar que não existe uma área específica eúnica direcionada à música e à linguagem no cérebro. Como coloca Herculano-Houzel(2007), a música utiliza as mesmas regiões do cérebro que a linguagem: “e temos, porexemplo, uma especializada em ouvir letra e música, localizada no lobo temporal;uma especializada em compreender os sons e seus significados; outra no córtex pré-motor que se encarrega de produzir palavras e melodia”. Ou seja, se podemos afirmarque todos possuímos as capacidades naturais para desenvolver a linguagem, podemostambém fazer essa mesma afirmação no campo da musicalidade, conforme estudosde Cuervo (2009).Outro campo que abrigou muitas especulações e ainda surpreende é em relação àmemória. A música envolve o armazenamento de símbolos organizados, estimulandonossa memória verbal e não-verbal. Para Sacks (2007), os padrões mnemônicos (deauxílio à memória) contidos nas rimas, métricas e canto, são os recursos mais pode-

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rosos para a capacidade de retenção e memorização da mente e estão presentes emtodas as culturas. A memória (seja ela visual, verbal ou não-verbal) está relacionada com a capacidadede identificação de melodias, ritmos e acordes. Sabemos, também, da sua importânciana performance musical (mesmo quando lemos partitura), na transmissão oral decanções folclóricas, na retenção de informações teóricas e históricas, envolvendo umainfinidade de co-relações possíveis com a música. A contemporaneidade trouxe, de forma irremediável, uma onipresença da música,uma possibilidade de incessante repetição. Sacks (2007) alerta para o fato de que amúsica passou a estar em todo lugar, multiplicando-se como um bombardeio musical,queiramos ou não, gerando certa tensão em nosso sistema auditivo, especialmentesensível e podendo culminar em perda de audição ou distúrbios de memória. Quando a imaginação musical normal transpõe um limite e se torna uma obsessãoinconsciente por horas e dias a fio, pode surgir um processo coercitivo que Sacks(2007, 51) associa a uma espécie de convulsão: “a música entrou e subverteu umaparte do cérebro, forçando-o a disparar de maneira repetitiva e autônoma”. Sacks (2007, 329) acredita que a percepção da música e as emoções que ela pode des-pertar não dependem exclusivamente da memória, e a música não tem de ser conhe-cida para exercer poder emocional. Vielliard (2005, 50) explica que a música produzreações fisiológicas cujo alcance parece depender do conteúdo emocional. Segundoela, “estudos mostraram que a música ativa as mesmas zonas cerebrais que participamdo processamento das emoções”Já existem pesquisas que apontam para a importância da música como elemento paraa ampliação das funções cerebrais, em termos quantitativos e qualitativos. Para Janzen(2008), as Neurociências têm desenvolvido estudos com a música “a fim de com-preender como a mente percebe, interpreta, apreende e comanda a música, comotambém, desvendar os processos anatomofisiológicos envolvidos na percepção, apren-dizagem e cognição musical”. Por outro lado, não podemos diminuir a grande importância da música como auxílioa distúrbios e doenças como amnésia e Parkinson, no que a musicoterapia vem con-tribuindo de forma reconhecida pelo meio neurocientífico. Nas palavras de Sacks(2007): “Música do tipo certo pode orientar um paciente quando mais nada é capazde fazê-lo”.

Idéias para o Ensino SuperiorEste trabalho buscou compartilhar alguns dos principais argumentos em favor do fo-mento aos estudos que articulem as áreas propostas: música, educação e neurociência.No entanto, não há qualquer expectativa de esgotar o assunto e a sua potencial con-tribuição para a área da música no ambiente acadêmico — pelo contrário, o objetivodesses estudos é o de desencadear o interesse por pesquisas e discussões que articulemdiferentes pontos de vista, a fim de corroborar com sua aplicação especialmente no

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Ensino Superior. É nesse espaço onde são formados os novos professores de música,novos educadores, que precisam atender às complexidades da função docente quetranscendem conhecimentos específicos da área musical, mas que, ao mesmo tempo,destinam-se ao desenvolvimento primordial e essencialmente musical.

Glossário de termos neurocientíficos

Corpo caloso: Estrutura de junção, responsável por conectar os dois hemisférios (es-querdo e direito) dos cérebros de mamíferos.

Córtex cerebral: Do latim, a palavra córtex significa “casca”, assim denominado porser a camada mais externa dos vertebrados.

Córtex pré-frontal (PFC): porção mais anterior da superfície do cérebro, geralmentedividido em:

Córtex órbito-frontal (OFC): regiões mais ventrais e inferiores, localizadas atrás dosolhos, entre as órbitas. Exerce papel fundamental no comportamento social, re-gulado pelas emoções e pelas experiências passadas.

Impulsos nervosos: Reações físico-químicas que ocorrem nas superfícies dos neu-rônios, conectando-os; já foram identificadas mais de 50 substâncias.

Neurônios: Células do sistema nervoso responsáveis pelos processos que conduzemimpulsos nervosos para o corpo e do corpo para a célula nervosa.

Neuroplasticidade: Nas palavras de Relvas (2010, 33): “ela é a propriedade do sistemanervoso que permite o desenvolvimento de alterações estruturais em resposta àexperiência, e como adaptação a condições mutantes e a estímulos repetidos”.

Núcleo acumbens: Órgão neurotransmissor que possui como função a estruturaçãocerebral, tendo associado a ele respostas motoras e controle da liberação de do-pamina - ligado ao sistema de recompensa.

Receptores de Dopamina: Na adolescência, há uma brusca queda na produção dereceptores de dopamina (cerca de ⅓), e isso pode explicar o “tédio” pelo qual osadolescentes passam. Se antes certos estímulos eram interessantes, agora nãocausam ativação suficiente do sistema de recompensa.

Sinapse: Pontos onde as extremidades de neurônios vizinhos se encontram e o estí-mulo de um neurônio para o outro passa através dos neurotransmissores. É aquique a aprendizagem acontece em termos neurocientíficos: cada fato, imagem, vi-vência, estimula a realização de uma sinapse. As sinapses atingem o ápice naadolescência, sofrendo um gradativo declínio ao longo da vida — isso não signi-fica que deixamos de aprender, mas, sim, que selecionamos melhor as informa-ções que devem ser assimiladas e não precisamos dar “choques” em nosso sistemade recompensa.

Sistema de recompensa: Conjunto de estruturas cerebrais responsáveis por premiarcom prazer ou bem-estar aqueles comportamentos úteis ou interessantes. “A ati-vação do sistema de recompensa é o que nos faz querer mais tudo que foi ou podeser bom” (Herculano-Houzel, 96).

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ReferênciasCuervo, L. Música para um cérebro em transformação: Reflexões sobre a música na adoles-

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Ilari. Londrina: EdUEL, 2008.Spitzer, M. Aprendizagem: neurociências e a escola da vida. Lisboa: Climepsi Editores, 2007.

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Aplicações da teoria piagetiana à aula de musicalização infantilJordanna Vieira Duarte

[email protected]

ResumoNo presente artigo, discorremos sobre a musicalização de crianças com idade entrequatro e sete anos, tendo como referência a Teoria Construtivista de Jean Piaget (Neu-châtel, 1896 - Genebra, 1980) no que se refere à material didático e pedagógico,além de recursos metodológicos, adaptados à fase de desenvolvimento psíquico dascrianças e se esses, podem contribuir para o aprendizado da música. Como norteado-res do caminho a ser trilhado, passamos à compreensão do universo infantil buscandoentender como se estruturam as percepções das crianças e a maneira como estasconstroem e estabelecem o conhecimento, de modo específico, ao estágio pré-ope-ratório. Utilizamos pesquisa longitudinal, onde, por dois anos (2006 a 2008) foramobservadas aulas de musicalização infantil, individual e coletiva. Como objetivo, ve-rificamos se a estrutura teórica adaptada representa um mobilizador e facilitador daaprendizagem musical e, ainda, se estimula aquisição de novos conteúdos.

Palavras-chavemusicalização infantil – teoria construtivista – material pedagógico adaptado.

IntroduçãoSabemos através dos estudos da Psicologia que os processos de desenvolvimento hu-mano se estruturam e, provavelmente, dependam de três grandes circunstâncias: aprimeira, é que o desenvolvimento das pessoas tem relação direta com a etapa de vidaem que se encontram, a segunda, é que se estão diretamente interrelacionados comas dimensões sociais, culturais e históricas que permeiam suas existências e, a terceira,é que realizam-se sobre as experiências particulares de cada indivíduo, não sendoportanto, generalizáveis (Palacios 1995). Assim, enquanto as duas primeiras circuns-tâncias demandam certa homogeneidade nas estruturas do desenvolvimento, é naterceira que percebemos que cada pessoa se desenvolve e apreende o mundo de ma-neira particular e diferente das demais.De acordo com essa teoria, podemos dizer que na musicalização a combinação dosrecursos didáticos e metodológicos devem ser pensados no sentido de possibilitaruma educação que respeite tanto o que é comum quanto o que é particular a cadaaluno/indivíduo. Para fins de conceituação neste artigo, distinguiremos aqui dois ter-mos bastante utilizados pelos professores de música: a aprendizagem musical e a mu-sicalização.Entendemos por aprendizagem musical, em sentido restrito, um tipo de educaçãodirigida à prática ou domínio de um instrumento musical e seus conteúdos teóricose/ou práticos, tendo em vista a aquisição de habilidade ou conhecimento específico.Por musicalização, compreendida em sentido amplo, entendemos e a adotamos como

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um processo vivo e ativo capaz de transformar as pessoas em indivíduos conscientesdo fazer musical. É uma educação que visa além da estimulação dos fundamentosteóricos necessários à prática musical formar pessoas capazes de apreciar, consumir,criar música e, acima de tudo, de se expressarem por meio dos sons (Brito 2003).Feita as definições, observamos duas práticas comuns: de um lado a prática do ensinomusical focado em modelos de estratégias desvinculadas da experiência do sujeito e,de outro, o privilégio da experiência prévia e do desenvolvimento da sensibilidadeexpressiva antes da iniciação formal dos conteúdos. Nessa perspectiva, Gainza (1964,12) afirma que “só terá direito de chamar-se ‘educação’ musical um ensino que sejacapaz de contemplar as necessidades inerentes ao desenvolvimento da personalidadeinfantil”, portanto, necessitamos observar o universo infantil e gerar, a partir dele, re-cursos que contribuam para uma verdadeira musicalização.Adotamos a prática da musicalização de acordo com o referencial teórico da teoriaconstrutivista de Jean Piaget, porque entendemos que a articulação entre fazer e com-preender são práticas possíveis e necessárias à construção do conhecimento musicalem crianças.

O Construtivismo PiagetianoA teoria construtivista, que tem suas bases na epistemologia genética e na pesquisasócio-histórica, foi consolidada pelo estudo de um expressivo grupo de teóricos quena França teve como principal representante Henri Wallon (1879/1962), enquantoque na Rússia despontaram os nomes de Lev Semenovitch Vygotsky (1896/1934),Alexander Luria (1902/1977) e Alexei Leontiev (1903/1979) e na Suíça, seu mais co-nhecido e divulgado pensador, Jean Piaget (1896/1980). Através da produção destesestudiosos sabemos que o conhecimento é resultante das experiências que o sujeitodesenvolve com o ambiente. Interessa-nos neste artigo, o que Jean Piaget, em mais de 50 anos de estudo sobre osprocessos de desenvolvimento infantil, concluiu acerca do psiquismo das crianças,admitindo que estas desvendam o mundo através de duas chaves: a sua própria açãono ambiente e o modo como esta ação é internalizada enquanto construção internado mundo.As fontes de organização utilizadas para a compreensão das interações entre a criançae o mundo são consolidadas em esquemas (padrões de comportamento devidamenteorganizados para compreender a realidade) que por sua vez passam pelos processosde assimilação (incorporação do novo a uma estrutura já conhecida), acomodação(transformação que o organismo sofre para lidar com o ambiente) e adaptação (mo-dificação dos esquemas para que aja adaptação à nova situação).Piaget (1972) distinguiu que no desenvolvimento psíquico, apesar do seu caráter glo-bal, há três funções que se manifestam diferenciadamente: a) funções de representa-ção, que permitem representar, por exemplo, um objeto por uma palavra, ou seja, éa representação de um significado usando um significante; b) funções afetivas, res-

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ponsáveis por alavancar o desenvolvimento cognitivo e que podem ser analisadas apartir das relações estabelecidas com o outro sob o ponto de vista das regras morais,que vão desde a anomia (ausência de regras), passando pela heteronomia (regras im-postas pelos outros) até o desenvolvimento da autonomia moral; e, c) funções de co-nhecimento, responsáveis pela abordagem e conhecimento que se faz do mundo e aorganização da realidade.No que diz respeito à cognição, foi pela última função que Piaget estruturou e dividiuteoricamente o psiquismo infantil em estágios entendidos como “períodos dotadosde características bem definidas, as quais expõem uma estrutura qualitativamentediferente da que a precedera e das que a sucederão, ao mesmo tempo em que prepa-ram o indivíduo para o estágio seguinte” (Goulart 2000, 27). Divididos por faixas etá-rias aproximadas, temos quatro estágios definidos: estágio sensório-motor, estágiopré-operatório, estágio operatório concreto e estágio operatório formal. O estágio sensório-motor compreende o período que vai do nascimento até a aquisi-ção da linguagem, por volta dos dois anos, onde a inteligência se desenvolve atravésde ações práticas baseadas principalmente em atividades sensoriais (percepção) emotoras, portanto, há neste período o estabelecimento das sensações e dos movi-mentos. É a partir do estágio pré-operatório, que compreende a fase dos dois aos seteanos, que se desenvolvem os processos de simbolização mediados principalmentepela linguagem, embora o pensamento ainda esteja ligado aos recortes da fase anterior,os símbolos são gerados pela ação prática e pela socialização (Coll et al. 1995).O período que se estende dos sete aos 12 anos onde há a consolidação e a organizaçãodo pensamento representativo possibilitando a aquisição das operações concretas, ouseja, período em que a criança passa da intuição às operações lógicas (classificação eseriação) e numéricas (Coll et al. 1995) é definido como o estágio operatório concretoe, marcado pela adolescência, o estágio operatório formal, inicia-se a partir dos 12anos até por volta dos 15 anos sendo a característica principal a distinção entre o reale o possível (a partir dos 11 ou 12 anos) permitida em grande parte pela descentraçãoda fase concreta e direcionado-se para as questões abstratas e futuras (Goulart, 2000).Apresentamos em linhas gerais os quatro estágios descritos na teoria construtivistae passamos agora, a descrever algumas da características do estágio pré-operatório,objeto de nosso estudo.

Principais características do estágio pré-operatórioSegundo Martí (1995) o estágio pré-operatório é uma etapa importantíssima para odesenvolvimento psíquico, pois a criança dá continuidade aos avanços da fase anterior(sensório-motora) direcionando-se à compreensão do mundo através do reforço dafunção simbólica: de uma visão prática da realidade, a criança passa a interagir como mundo através da representação “baseada em esquemas de ação internos e simbó-licos, mediante os quais a criança manipula a realidade não mais diretamente, senãoatravés de diferentes sucedâneos – signos, símbolos, imagens, conceitos, etc.” (p. 135).

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Na função simbólica o pensamento e a organização da realidade são apreendidos atra-vés dos sentidos e representados através de símbolos. Esta função é mediada e pro-movida principalmente por meio da linguagem (evocação verbal de acontecimentosdo passado), da imaginação (ou imagem mental, que é uma imitação interiorizada),do jogo simbólico (jogo de faz de conta) e da imitação diferida (imitação do objetofeita na ausência deste). O pensamento é baseado em pré-conceitos oscilando entre a individualidade dos ob-jetos e a generalidade dos conceitos, procedendo por analogias imediatas e não pordedução. Entre os quatro e sete anos, há a instalação do pensamento intuitivo, ou seja,as representações dos objetos estão baseadas a partir da percepção e as organizaçõesperceptivas são fundadas sobre configurações estáticas (assimilação à própria ação).Com isso, os esquemas de ação partem de bases representacionais da realidade (Martí,1995) (Goulart, 2000).No que diz respeito à experiência social e ao desenvolvimento cognitivo, as criançasde dois a quatro anos estão inseridas em contextos sociais basicamente familiares(pais e irmãos), as relações espaciais e temporais são ainda primárias, apresentamegocentrismo cognitivo e geralmente participam dos primeiros anos da pré-escola,onde se desenvolve a psicomotricidade, porém, dos quatro aos sete anos, os contextosinterrelacionais passam a ser mais diversificados com a escola e a interação entre ogrupo de iguais.Entre quatro e sete anos de idade, as crianças estão realizando as primeiras conquistasem direção aos processos de autocontrole, estabelecimento da preferência lateral eao esquema corporal (independência motora, coordenação, tônus, controle respira-tório, equilíbrio, estruturação do espaço e do tempo) (Mora e Palacios, 1995), ajus-tando a psicomotricidade fina e consolidando a lateralidade.A independência motora (realizar movimentos com uma mão sem que outros mem-bros do corpo realizem movimentos paralelos, por exemplo) e a coordenação (realizarmovimentos encadeados e independentes) só serão conquistadas, na maioria doscasos, a partir dos sete e oito anos. O tônus muscular, tão importante na regulaçãodos movimentos, será percebido pelas crianças, através da prática, de maneira a ajus-tar seu controle às exigências de cada situação (a letra ainda grande necessita de es-paço para se desenvolver e só depois, vai passar a respeitar os limites de margem eespaços).Realizando conexões entre a teoria apresentada e a educação musical, podemos dizerque “a criança vai desenvolver e exercitar seu comportamento em relação à músicade maneira progressiva e adaptada ao estágio em que se encontram as suas estruturascognitivas, respeitando as características comuns e as diferenças individuais” (Lacár-cel 1995, 12).Respeitados estes aspectos e preocupados em abordar o universo infantil em sua rea-lidade global, passamos a compreender a educação musical, no que se refere aos ma-teriais didáticos, procedimentos metodológicos e sistematização de atividades,

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consonante com o estágio de desenvolvimento psíquico que os alunos apresentam.Levando em consideração proporcionar aprendizagem eficaz e lúdica dos conteúdosda música, o objetivo é verificar se a estrutura de conteúdos teóricos adaptados semanifesta enquanto mobilizador da aprendizagem e se estimula a aquisição de novosconteúdos.

O caso estudadoUtilizamos pesquisa longitudinal, onde, por dois anos (2006 a 2008) foram observadasaulas de musicalização infantil, individual e coletiva, com crianças entre quatro e seteanos de idade, ambos os sexos, matriculadas em uma escola particular de música emGoiânia. Escolhemos a faixa etária de quatro a sete anos de idade para o presente estudo porque,de acordo com a teoria construtivista, as crianças estão no estágio pré-operatório dodesenvolvimento psíquico e as funções de representação estão fortemente em ascen-são.Na escola, o caderno de desenho foi utilizado como recurso didático e metodológicoem detrimento ao caderno pautado, próprio e mais comum no ensino da música, porpossibilitar a construção de atividades lúdicas (colagens, pinturas, desenhos) e, prin-cipalmente, por atender às demandas cognitivas das crianças (maior visualização, es-paço para a escrita e ajuste da psicomotricidade fina, por exemplo). A concepção do caderno de desenho, no que se refere à sua estrutura metodológica,às atividades práticas e ao direcionamento didático das aulas, foi desenvolvida e apli-cada para a musicalização de crianças e adolescentes matriculados na escola em ques-tão. A estruturação metodológica e didática foi criada há oito anos (onde surgiramas primeiras experiências com o caderno de desenho), aperfeiçoada ao longo dotempo e consolidada nos últimos quatro anos.

Recorte da sistematização dos conteúdos(1) Capa do caderno: motivação para o estudo da música; (2) nome das notas musi-cais: fora da seqüência (para fixar a memorização); (3) registros grave, médio, agudo:desenhos, brincadeiras no piano e grafia no caderno; (4) grupo de ‘3 e 2 teclas pretas’do piano com sons grave, médio e agudo; (5) desenho das mãozinhas da criança nocaderno: número dos dedos; (6) nota Dó no piano: grupo de ‘2 teclas pretas’ e registroda nota no caderno, colagem e pintura do tecladinho; (7) ritmo e pulsação: atividadesde sensação corporal e depois registro no caderno trabalhando inicialmente com osom e o silêncio, depois se estendendo para as figuras de metade e dobro; (8) nota Fáno piano: grupo de ‘3 teclas pretas’ e posterior registro no caderno; (9) conceito depauta; (10) claves de Sol e Fá; (11) início do registro das notas na pauta. A seqüência didática e metodológica formatada no caderno de desenho foi criadapara trabalhar tanto conteúdos teóricos (leitura musical) quanto práticos (percepçãorítmica e técnica do instrumento/piano) e para ser vivenciada ao mesmo tempo, onde

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a criança ao aprender, por exemplo, uma nota nova, passa a tocá-la também ao piano.

ConclusõesNotamos que a sistematização dos conteúdos teóricos adaptados e formatados no ca-derno de desenho mobilizou as crianças para a aprendizagem de conteúdos teóricose práticos, pois estas se desenvolveram na aprendizagem lendo partituras com faci-lidade, fluência e entendendo o ritmo com precisão e eficácia, permitindo que, aofinal de cada semestre letivo, se apresentassem em recitais tocando em média trêsmúsicas cada uma. Interessante observar que as crianças gostaram de manusear ocaderno de desenho e desempenharam as atividades com interesse.Percebemos que experiências em acordo com as necessidades de adaptação (porexemplo, o tamanho das folhas em branco do caderno possibilitou atividades rele-vantes ao grau de psicomotricidade da criança), linguagem (abordagens do universoinfantil) e a seqüência de atividades, proporcionaram aprendizagem eficaz e lúdicados conteúdos da música.Cabe a nós, educadores musicais, direcionar nosso olhar de maneira mais atenta aoaluno, observando e compreendendo as fases de seu desenvolvimento, bem comoadaptarmos o material pedagógico para atender às demandas intelectuais necessárias,uma vez que a aprendizagem depende da compreensão daquilo que se estuda. Concluímos acreditando que a musicalização infantil, quando permeada por situaçõesestimuladoras, lúdicas e possíveis de experimentação, influencia diretamente o apren-dizado, tanto no que se refere à compreensão quanto à internalização dos conteúdosmusicais. Estes, por sua vez, se estabelecem enquanto linguagem e a maneira comoo educador musical experiencia a música com a criança será fator preponderante paraque ela se comunique com o mundo por meio dos sons, assumindo níveis singularesde significação pessoal e artística.

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artes musicais e cognição social

Representações sociais e prática musical: pesquisa-ação com formação de professores

Diana [email protected]

Departamento de Música Aplicada – Universidade Federal da Bahia

ResumoExiste um distanciamento ainda acentuado entre as práticas de ensino efetuadas nauniversidade, o currículo musical e a comunidade brasileira. Isso, porque há uma tra-dição secular do ensino da música, centrada nas práticas ocidentais, cultivada nãoapenas no Brasil. Essa prática, que se iniciou nas schola cantorum da Idade Média eculminou nos Conservatórios europeus dos séculos XVIII e XIX (cujo modelo poste-riormente se difundiu pelo mundo), em geral desconsidera o diálogo com outras mú-sicas e outras formas de aprendizagem que não aquelas decorrentes do ensinoconservatorial. Este ensino, capaz de gerar músicos excelentes, prioriza os indivíduosconsiderados talentosos e não considera os processos alternativos de aprendizado,por se fundamentar na tradição e desprezar a inovação. Contudo, merece ser revisi-tado. É crescente o interesse na reflexão sobre essas práticas tradicionais, inclusive na lite-ratura proveniente do próprio berço desta tradição, como no livro The Reflective Con-servatory, em que são relatados esforços empreendidos pela Guildhall School of Musicand Drama, de Londres, para desenvolver o modelo clássico de conservatório demodo a adequá-lo às necessidades atuais das artes performáticas (Odam e Bannan2005). Já em artigo de 1994, eu alertava que, normalmente, os processos utilizadospelos professores de instrumento de instituições de ensino são formais, individuais epor motivação extrínseca; nota-se uma tendência à acomodação aos processos pormeio dos quais foram eles próprios educados, sem uma exploração de novos métodos,ocorrendo, inclusive uma acomodação ao repertório padrão: ouvem-se dezenas dealunos a repetirem as mesmas obras anos após anos, como se só aquelas existissem,fomentando um “mecanismo” generalizado (Santiago 1994). Merriam (1964) — destacando o conceito de enculturação, cunhado por Herskovitspara definir o processo de aprendizagem da cultura pelo indivíduo — caracteriza trêsprocessos básicos de aprendizado da cultura. Esses aspectos seriam a socialização,que se dá pela exposição do indivíduo à cultura; a educação, entendida como um pro-cesso de interações pedagógicas não concentradas, que envolve a combinação de trêsfatores: técnica, o agente e o conteúdo; e a escolarização, um processo pedagógico

concentrado, que se dá em um lugar específico, em uma hora determinada, dirigidopor pessoas previamente preparadas. Merriam ainda aponta a importância das ques-tões que cercam o aprendizado da música, por nos fornecerem um conhecimento decomo a música é produzida, bem como uma compreensão das técnicas, agentes econteúdo da educação musical numa dada sociedade (Merriam 1964, 161).Considerando-se que, enquanto membros de uma comunidade, tornamo-nos nósmesmos, é nela que emergimos como atores sociais competentes e aprendemos a falaruma língua. Sem comunidade, portanto, seria muito difícil, se não impossível, tor-nar-se pessoa. Jovchelovitch destaca a representação como o material do qual todosos saberes são feitos. Para compreender um sistema de conhecimento, considera ne-cessário compreender quem, como, o que, por que e para que ele tenta representar(Jovchelovitch 2008, 289-290). Destaca ainda que, longe de ser cópia ou reflexo domundo exterior, a representação é uma construção ativa de atores sociais. Ela expressaa complexidade das interrelações entre mundos interno e externo, entre sujeitos in-dividuais e as coletividades às quais eles pertencem, entre estruturas psíquicas e rea-lidades sociais. O trabalho da representação, multifacetado, move-se incessantementedo social ao individual, constituindo-se em foco privilegiado para a compreensão dosfenômenos psicossociais (Jovchelovitch 2008, 70).A atuação acadêmica no ensino dos instrumentos musicais não deve desconsideraresses tópicos, ainda muito mais presentes nas considerações dos etnomusicólogosque nas dos professores de instrumento. Sabe-se que o contexto social nos influenciadiretamente, mas nem sempre se leva isto em conta na prática pedagógica da academia. Resultados indiretos obtidos quando da realização do Projeto de Pesquisa Estilos deatuação e desempenho na execução musical: aspectos da prática musical e da perfor-mance em duas escolas de música no Brasil (CNPq, 2007-2010), coordenado por DianaSantiago, foram impactantes. Para melhor compreender a prática musical, além dasobservações previstas, foi elaborado um levantamento por meio de questionário, emque buscávamos caracterizar a prática musical dos sujeitos participantes nas duas Es-colas estudadas, a Escola de Música da UFBA e a Escola de Música e Belas Artes doParaná. O resultado revelou a profunda discrepância entre a quantidade de horas deprática investidas pelos alunos de cada instituição, decorrente, presumimos, das tra-dições culturais de cada estado.Importante ressaltar, o currículo do século XXI deve buscar o planejamento compar-tilhado (Doll Jr. 2002), fruto das interações professor-aluno, que levará ao conheci-mento aprofundado e não meramente técnico. Esse planejamento consideraplanejamento e execução como atividades conjuntas, integradas, não atividades uni-laterais, seqüenciais e seriais. Portanto, por que manter, em todas as circunstâncias esem questionamento, práticas tradicionais? Por que recusar-se a experimentar? A música é um fenômeno decorrente de indivíduos, sociedade e cultura. Ao resumi-rem as funções sociais da música para o indivíduo na vida diária, Hargreaves e Northobservam suas três formas básicas de manifestação: facilitando o gerenciamento da

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auto-identidade, das relações interpessoais e do humor (Radocy e Boyle 2003). A mú-sica, portanto, é fenômeno importante na vida do indivíduo: somos a única espéciecapaz de realizá-la e ela decorre da própria evolução da raça (Cross 2006). Reforçandoessa constatação, os neurocientistas apontam a importância da música no desenvol-vimento dos processos cognitivos (Colwell 2006). Livros recentes, tais como o livro Music Education for Changing Times: Guiding Visionsfor Practice editado por Thomas Regelski e Terry Gates e publicado em 2009, apontampara uma divisão desnecessária entre a música da academia e a música da sociedade.Discutem, ainda, tendências atuais na promoção de uma abordagem igualitária, cen-trada no aluno, e sugerem que os alunos devem ter a oportunidade e habilidade paraengajarem significativamente, conectando-se com sua comunidade, em música quedenominam de “sua”, durante sua juventude (Palmer 2010).É proposta do presente projeto, em andamento, observar as características das ma-nifestações musicais no contexto da comunidade-alvo e criar espaços para que os in-divíduos que a constituem possam ter outras possibilidades de execução musical nolocal. Pesquisa-ação de caráter pedagógico, vinculada à extensão, tem como questãonorteadora a busca dos elementos que favorecem a criação, numa comunidade, degrupos musicais de aprendizagem e ao mesmo tempo estabelecem um diálogo entreos saberes locais e os saberes acadêmicos. Assume caráter de formação de professores,pois possibilitará estágio de formação aos alunos de graduação interessados.Com isso, pretendemos, a partir do contexto sócio-cultural e contando com a parti-cipação de seus membros, construir material pedagógico diferenciado, observar as-pectos ainda inexplorados da vivência musical em Salvador e testar tecnologia deinclusão social.

ReferênciasColwell, Richard, ed. MENC handbook of musical cognition and development. Oxford: Oxford

University Press, 2006.Cross, Ian. Música, mente e evolução. Cognição e Artes Musicais 1, 22-29. Curitiba: DeArtes

UFPR, 2006.Doll Jr., William E. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. 2ª reimp. Porto Alegre: Artmed,

2002.Jovchelovitch, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura. Petrópolis:

Editora Vozes, 2008.Merriam, Alan. The anthropology of music. Evanston (Ill.): Northwestern University Press, 1964.Palmer, C. Michael. “Book Review: Music Education for Changing Times: Guiding Visions for

Practice”. In Thomas A. Regelski e J. Terry Gates, ed. (2009). British Journal of Music Edu-cation 27, nº 3, 319-320.

Radocy, Rudolf E. & Boyle, J. David. Psychological foundations of musical behavior. 4th ed.Springfield (Ill., USA): Charles C. Thomas Publisher, 2003.

Santiago, Diana. Processos da Educação Musical Instrumental. Anais do III Encontro Anual daABEM, 215-231. Salvador: Associação Brasileira de Educação Musical, 1994.

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Musicoterapia e cognição: a importância do fazer musical para estímulo e manutenção das funções executivas

de idosos institucionalizadosFlávia Barros Nogueira

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RESUMOO crescente aumento da população idosa reflete os avanços científicos vivenciadosnas ultimas décadas. Apesar de a longevidade representar uma conquista a ser co-memorada, novas problemáticas surgem na sociedade, tais como a ausência de adap-tações estruturais, falta de preparo das famílias e do próprio idoso. Assim, a carênciade recursos e estruturas da sociedade e o despreparo dos núcleos familiares levammuitos idosos a um estado de isolamento e abandono. Frente a essa situação, a opçãode muitas famílias é internar seu parente idoso em instituições geriátricas. Na insti-tuição o idoso recebe assistência de diversos profissionais, mas também pouco apouco é desprovido de sua autonomia, sem a qual, passa a requerer cada vez menosdas funções executivas, colaborando com o empobrecimento de estratégias cognitivas.A ausência de desafios e autonomia podem ser fatores que contribuem no declíniodos processos de raciocínio e tomada de decisão. Apesar das diversas atividades ofe-recidas pelas instituições, é comum a falta de motivação e engajamento dos idosos,contribuindo para a inatividade e conseqüentemente, para os déficits cognitivos. Aoaliar mecanismos racionais e emocionais, a música atua como um recurso potente,seja na prevenção, como no estímulo dos mecanismos cognitivos. O fazer musical,além de motivador, proporciona ao indivíduo idoso, novas experiências, implicandono aprendizado e desenvolvimento de novas habilidades. Essas experiências oferecemao cérebro a possibilidade de adaptarem-se, envolvendo uma rede complexa de ati-vidades neurais. O desafio apresentado pelo fazer musical, requer do idoso respostasrápidas e adequadas, acionando assim, funções executivas como memória de trabalhoe atenção. O presente trabalho visa realizar uma pesquisa bibliográfica que ofereçafundamentos teóricos sólidos acerca dos benefícios de um processo musicoterapêuticocom pacientes idosos institucionalizados, seja na promoção de saúde, prevenindo osdéficits, ou resgatando a eficácia cognitiva, trazendo assim melhor qualidade de vidaao idoso.

Palavras-chaveidoso – musicoterapia – cognição

IntroduçãoDe acordo com estimativas, afirma-se que a população idosa em 2025 corresponderáa aproximadamente 15% da população brasileira (Saad 1991, apud Gonçalves 2005,15).Apesar do aumento da expectativa de vida ser um fator positivo, esse crescimento dapopulação idosa representa grave problema social. As rápidas mudanças no estilo de

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vida da sociedade contribuem para essa problemática, além disso, as políticas socioe-conômicas não atendem as necessidades dessa camada da população. Muitas famílias,ao deparar frente à incapacidade de cuidar e agir de forma adequada opta pela insti-tucionalização do familiar idoso. Na instituição, espera-se que a pessoa seja bem cuidada, alimentada, tenha assistênciade enfermeiros, geriatras e demais profissionais preparados para atendê-la. Outro as-pecto positivo, é que além dos cuidados básicos, o idoso passa a conviver com outraspessoas, sendo retirado do seu isolamento, situação comum nas famílias modernasnas quais todos os membros adultos trabalham fora. Por outro lado, essa pessoa vê-se num local estranho, desprovida de privacidade, poismuitas vezes divide o quarto, compartilha uma moradia com pessoas de interesses,costumes e até culturas muito diferentes dos seus, tem de adaptar-se a normas e ho-rários e, principalmente, longe de seus familiares.É comum que idosos institucionalizados passem a sentirem-se solitários e deprimidos.A falta de motivação pode levar o idoso saudável ao estado de embotamento e ocio-sidade que freqüentemente, acarreta perdas cognitivas. Além dos quadros depressivos,a inatividade e a falta de estímulos e desafios do paciente institucionalizado tambémpodem levar a uma perda da memória e lentidão de raciocínio.Portanto, não basta apenas estimular cognitivamente, é preciso trabalhar a qualidadeafetiva do paciente e a qualidade de vida dentro da instituição. Trabalhando questõescognitivas, como memória e linguagem, a música e seus elementos estimulam tam-bém aspectos emocionais e ainda promove a integração, quando trabalhada em grupo.Assim, a musicoterapia na instituição pode ser uma importante ferramenta de estí-mulo ao paciente idoso.

Funções cognitivasCognição é um termo amplo que envolve uma grande variedade de atividades e pro-cessos mentais conscientes. Segundo o dicionário, “cognição” é descrita como ato deconhecer; conhecimento, percepção (Dicionário Aurélio 2009). As funções cognitivas envolvem raciocínio, atenção, memória, pensamento, imagi-nação, juízo e discurso (Duran 2004). É também a partir das funções cognitivas a re-solução de problemas e tomadas de decisão. Embora todas as funções descritas sejam essenciais para a qualidade de vida e auto-nomia de um indivíduo, neste trabalho são abordadas funções como raciocínio e me-mória, especificamente memória de trabalho, assim como as relações destas com asdemais funções e correlações com as emoções e as interações sociais.

RaciocínioA finalidade do raciocínio, segundo Damásio (1996), é a decisão, sendo que a essênciada decisão consiste em escolher uma opção de resposta, seja ela uma ação não verbal,uma palavra, uma frase ou a combinação de ambas. Para o autor, os termos raciocinar

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e decidir estão estreitamente relacionados e interligados, ou seja, para que um indi-víduo tenha autonomia sobre suas ações, deve ser capaz, num processo cíclico, de ra-ciocinar e decidir: “Para decidir, julgue; para julgar, raciocine; para raciocinar, decida(sobre o que raciocinar)” (Johnson-Laird 1993 apud Damásio 1996, 197).Assim, se o raciocínio se relaciona com a decisão, é preciso haver o julgamento, ouseja, o juízo. Para tomar uma decisão, o indivíduo depende de uma capacidade dejuízo, mediado pelo raciocínio, para assim escolher a opção mais adequada.Os termos raciocinar e decidir requerem, daquele que decide, um conhecimentosobre: a situação a ser decidida, as diferentes opções de ação e as consequências decada uma das ações, sejam consequências imediatas ou futuras (Damásio 1996, 197).Portanto, a decisão depende de um conhecimento prévio tanto da situação, como daspossíveis consequências. Para o autor, esses conhecimentos estão armazenados namemória, podendo ser conscientes ou não e são aprendidos ao longo da vida atravésdas experiências. Algumas ações são conscientes apenas nas primeiras experiências,porém, ao longo do tempo, o cérebro humano aprende a tomar decisões que evitamdanos e consequências prejudiciais, escolhendo sempre a resposta mais vantajosa (p.198). Tais respostas podem ser desde um conhecimento corporal, que acusa quandoé preciso se alimentar, desviar-se de um objeto evitando colisões, até decisões queenvolvem a escolha de uma carreira e resolução de problemas matemáticos. Portanto,em todos os momentos estamos construindo e usufruindo de conhecimentos arma-zenados.

“Para chegar a uma seleção da resposta final, é preciso recorrer ao raciocínio, e issoimplica ter em mente uma grande quantidade de fatos e de resultados correspon-dentes a ações hipotéticas e confrontá-los com os objetivos intermédios e finais,requerendo todos eles um método, uma espécie de plano de jogo escolhido entreos diversos planos que ensaiamos no passado em inúmeras ocasiões” (Damásio1996, 199).

MemóriaViu-se que a memória é a função cognitiva fundamental para que um indivíduo possaelaborar mecanismos de resposta, sendo, portanto, a base de todas as atividades co-tidianas.A memória é dividida em dois tipos fundamentais: a memória de curto de prazo, queelabora e retém as informações de forma limitada e por um período curto de tempo;e a memória de longo prazo, que conserva dados por um longo período de tempo,apresentando-se com uma capacidade quase ilimitada de reter informações (Longoni2003, 8-9). Com as mesmas características da memória de curto prazo, ou seja, com capacidadelimitada e manutenção temporária de informações, encontra-se a memória de tra-balho. Para Longoni (2003), a diferença da memória de curto prazo e a memória detrabalho está na complexidade de articulação desta. Seu funcionamento não se dácomo um mero depósito temporário, mas sim como um elaborador de informações

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durante a execução de diferentes tarefas cognitivas. A memória de trabalho, portanto,pode ser definida como a habilidade de manter as informações na mente, durante aexecução de uma tarefa específica.

Marcador somático e a cognição socialPara que um indivíduo possua autonomia em suas decisões cotidianas, viu-se a im-portância do raciocínio e da memória, especialmente, da memória de trabalho.Porém, o raciocínio em si não seria suficiente sem as experiências adquiridas ao longoda vida, já que são estas que alimentam as estratégias usadas no ato de raciocinar.A hipótese do marcador somático foi proposta por Damásio (1996) para descreverestados corporais evocados pelas experiências induzindo a tomada de decisões. Otermo marcador refere-se às marcas deixadas através da experiência; e somático, re-ferindo-se a estados corporais (Damásio 1996, 205). Esses marcadores estão diretamente relacionados com a atenção, pois acionam umalerta que converge à atenção para um determinado resultado negativo, ou um sinalde incentivo quando o marcador é positivo (ibid, 206).Todavia, sem a atenção e a memória de trabalho não é possível realizar uma atividademental coerente. A ação dos marcadores somáticos não é possível sem essas duas im-portantes funções. Por meio do sistema cognitivo, os marcadores impulsionam e sãoigualmente impulsionados pela atenção e memória de trabalho (ibid, 230-1).Porém, os marcadores ocorrem num ambiente social, ou seja, o indivíduo recebe osestímulos do meio através de relações interpessoais, das novas experiências, espe-cialmente no âmbito social. Damásio ainda afirma que quando o cérebro, ou uma so-ciedade é deficiente, é improvável que os marcadores somáticos sejam eficientes (p.210). Então, em um sujeito sem patologias cerebrais, as interações socioculturaisainda podem interferir na eficiência cognitiva.Sob o ponto de vista evolutivo, a tomada de decisão pertence primeiramente à regu-lação biológica, seguida das experiências pessoais e sociais e por fim, pelo conjuntode operações abstrato simbólicas. Esses mecanismos integrados conferem ao sujeitoo raciocínio criativo (Damásio 1996, 224). Para o autor, a maioria dos marcadores usados na tomada racional de decisões foicriada durante o processo de educação e socialização. A sintonia entre os aspectosbiológicos e socioculturais parece ser fundamental para uma cognição saudável:

“Os marcadores somáticos são, portanto, adquiridos por meio da experiência, sobo controle de um sistema interno de preferências e sob a influência de um conjuntoexterno de circunstancias que incluem não só entidades e fenômenos com os quaiso organismo tem de interagir, mas também convenções sociais e regras éticas”.(ibid, 211)

A presença de respostas cognitivas adequadas depende de numa relação estreita entreas funções cognitivas que envolvem a memória de trabalho e atenção e as experiênciassociais, formadoras dos marcadores somáticos.

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Assim, o desenvolvimento e manutenção de uma cognição social saudável permitemao indivíduo interpretar e responder de maneira adequada os signos sociais. Por outrolado, a diminuição de experiências sociais, associadas com um déficit no processa-mento da memória de trabalho poderia levar a uma diminuição de marcadores, econseqüentemente, em perdas da eficácia cognitiva.

Cognição e envelhecimentoO processo de envelhecimento pode acarretar num declínio das capacidades, tantofísicas, como cognitivas (Argimon 2005). Quando comparados com pessoas mais jo-vens, o idoso apresenta lentidão cognitiva leve, generalizada e perda de precisão (Gor-man e Campbell 1995 apud Argimon 2005). Segundo Nordon e colaboradores (2009),o envelhecimento fisiológico não é igual em todos os sistemas do corpo humano. Cadasistema inicia seu envelhecimento e perde capacidades funcionais em momentos dis-tintos, porém, lineares. O envelhecimento cerebral também apresenta um ritmo especial. Sabe-se que quantomais estímulo intelectual é apresentado ao cérebro, mais tempo ele demorará emapresentar declínio cognitivo (Nordon et al. 2009).Diversos estudos apontam que o processo de envelhecimento, mesmo saudável, re-sulta em importantes mudanças associadas ao lóbulo frontal, especialmente o córtexpré-frontal (Bakos 2008, 21), o qual acarreta alterações nos processos cognitivos com-plexos denominados funções executivas. As funções executivas envolvem a regulação dos processos cotidianos e estão relacio-nadas com a memória de trabalho e a atenção. São, portanto, processos demandadossempre que surgem situações novas ao organismo, e estes, por não possuir ainda umprocesso automatizado, recorrem às funções executivas a fim de resolver o problemaapresentado.

“Estas funções estão, portanto, envolvidas com inibir os processos em execuçãoquando estes não estão coerentes com o contexto, iniciar uma nova conduta, mo-nitorar esta conduta mudando de estratégia sempre que o ambiente exigir e tomardecisões frente às alternativas apresentadas pelo ambiente” (Carvalho 2010).

Estudos comparativos entre adultos jovens e idosos, (Wood et al. 2001, Bakos 2008;Carvalho 2010) constataram que idosos apresentam pior desempenho cognitivo emcomparação a adultos jovens, devido às falhas na memória de trabalho. Estes estudos demonstraram diferenças na maneira como se dá o processamento cog-nitivo entre idosos e jovens: a população jovem demonstrou melhor desempenho de-vido a uma maior rapidez de processamento aliado à capacidade de aprendizado aolongo dos problemas propostos, já a população idosa apresentou dificuldades espe-cialmente no aprendizado durante as tarefas, porém, estas dificuldades foram com-pensadas utilizando-se especialmente de processos emocionais, em detrimento dosprocessos racionais utilizados pela população mais jovem.Os resultados destes estudos apontam para um déficit na memória de trabalho emindivíduos idosos, fundamental para o aprendizado, mas demonstram também o im-

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portante papel desempenhado pelos marcadores somáticos na tomada de decisão.Para Carvalho (2010), os marcadores somáticos não tomam decisões, mas auxiliamno processo, simplificando as alternativas de resposta. Portanto, no envelhecimento, as perdas cognitivas ocorrem, em maior ou menor graudependendo de inúmeros aspectos, os quais não são tratados neste trabalho, mas, emtodos os indivíduos que não sofreram lesões cerebrais, os marcadores somáticos de-sempenham papel fundamental para a vida cotidiana e, segundo Damásio, continuamao longo da existência e não cessam com a idade avançada, antes, o processo de cres-cimento e aprendizagem só encerra-se com a morte.

“[…] o crescimento do número de estímulos somaticamente marcados terminaapenas quando a vida chega ao fim, pelo que é adequado descrever esse cresci-mento como um processo contínuo de aprendizagem”. (Damásio 1996, 212)

O processamento cognitivo de idosos institucionalizadosAs funções executivas são essenciais na vida cotidiana de um indivíduo, pois regulamos processos cognitivos. Para Nordon e colaboradores (2009, 6), o envelhecimento acarreta em importanteprejuízo nas funções executivas, tais como a capacidade de planejamento, tomada dedecisões e execução de tarefas cotidianas.Sabe-se que as funções executivas são processos acionados sempre que novos eventosrequerem respostas adequadas. Estas respostas, demandadas do ambiente, alimentamos marcadores somáticos que auxiliam na tomada de decisões. Então, em concordân-cia com diversos autores já citados, idosos utilizam-se de mecanismos somáticos paraauxiliar na tomada de decisões, tais mecanismos são formados através da experiênciasocial e pessoal (Damásio 1996, 211; Nordon 2009, 7; Carvalho 2010, 72).A partir destas afirmações, é possível pensar que um ambiente que não requer do in-divíduo situações que exigem decisões e que não oferece estímulos novos, contribuipara o empobrecimento de um repertório cognitivo funcional. O idoso asilado, em condições satisfatórias, recebe assistência de profissionais pre-parados, alimenta-se adequadamente, tem suas atividades monitoradas a fim de evitarquedas, o ambiente físico é adaptado, evitando-se assim barreiras “perigosas” nadeambulação, enfim, tem o suporte necessário para uma vida saudável.Por outro lado, vive sob a rotina imposta pela instituição. Não é dado ao idoso o poderde escolhas como quando e o quê comer, vestir, tomar banho, onde e com quem dor-mir, quando o quarto é dividido com outros. As suas necessidades são logo atendidaspela equipe, que, no intuito de oferecer conforto e bom atendimento, presta toda aassistência necessária. As regras institucionais são inevitáveis, já que para se estabelecer a organização, elasse fazem necessárias, assim como a assistência prestada pelos profissionais. Porém,esta falta de autonomia dos idosos asilados pode acarretar nas perdas cognitivas jácitadas neste trabalho (Nordon 2009, 7).

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Destaca-se também, além da importância de estímulos e novos desafios, o papel fun-damental do ambiente social. Apesar da presença de colegas idosos na instituição, es-tudos já apontaram uma preferência pelo isolamento em detrimento às interaçõessociais (Deps in Neri, 1993; Moura, 2005). Souza e colaboradores (2009), em estudo realizado com idosos institucionalizados,verificaram as perdas cognitivas em indivíduos saudáveis e concluíram que não ape-nas fatores biológicos, mas também fatores ambientais influenciam na capacidadecognitiva. Para os autores, a falta de estímulos intelectuais e culturais assim como aausência de interações sociais contribui para o agravamento de mecanismos cogni-tivos.A institucionalização do idoso, ao mesmo tempo em que presta assistência, colaboracom o empobrecimento de estratégias cognitivas. A ausência de desafios e autonomiapode ser um fator que contribui no declínio dos processos de raciocínio e tomada dedecisão.Como a institucionalização é muitas vezes inevitável, e até preferível em vários casos,torna-se necessário oferecer recursos que contribuam na manutenção e estímulo dosmecanismos cognitivos, evitando declínios acentuados, garantindo assim, autonomiae independência necessária à qualidade de vida do sujeito idoso asilado.Aliando a ação de estímulos racionais e emocionais, a musicoterapia apresenta-secomo um recurso importante na manutenção e desenvolvimento das capacidadescognitivas de indivíduos idosos institucionalizados (Souza 2006, 1221).

Musicoterapia e cogniçãoA musicoterapia tem sido utilizada não só por causa do poder terapêutico que a mú-sica possui como objeto intermediário de uma relação, mas também pelo reconheci-mento científico fornecido por pesquisas e estudos investigativos da neurociênciacognitiva da música (Peretz e Zatorre 2005).Segundo pesquisas, idosos são capazes de usar seus mecanismos cognitivos para ad-quirir novas formas de conhecimento factual de habilidades (Schaie 1990: Bandura1989 apud Neri 1993).Para a neurociência, o cérebro não tem que entrar em declínio à medida que enve-lhecemos. Apesar do envelhecimento, o cérebro possui a capacidade de crescer, adap-tar e alterar padrões de conexões (Katz e Manning 2000, apud Castro Pinto 2006). O uso da música em um processo musicoterapêutico pode potencializar as interco-nexões cerebrais, colaborar para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo assimcomo atuar na manutenção de funções preservadas.

“[…] a partir do modo como o cérebro organiza-se para processar a música, a mu-sicalidade parece ser uma função integradora, uma função que coordena outrasfunções ou que as enriquece e, ainda, uma função capaz de colocar o meio cerebralem movimento, em fluxo, pois para processar a música formam-se diversas cadeiasneurais e ativam-se diferentes centros trabalhando em conjunto” (Queiroz 2003,33 apud Silva Jr. 2008).

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Em uma sessão musicoterapêutica, a produção sonoro-musical do paciente implicana realização de várias tarefas: tocar um instrumento, cantar, memorizar peças eletras musicais, improvisar. Todas as produções realizadas nesse fazer musical, com-binam rápidas respostas, tanto motoras como cognitivas (Peretz e Zatorre 2005).Embora o processo musicoterapêutico não tenha como objetivo o aprendizado mu-sical, o profissional musicoterapeuta trabalha com recursos sonoro-musicais com fi-nalidade terapêutica, utilizando-se de técnicas específicas, traçando objetivos e planoterapêutico.Além disso, as atividades sonoras apresentam ao indivíduo, principalmente ao nãomúsico, novas experiências, implicando no aprendizado e estímulo de novas habili-dades. Essas experiências oferecem ao cérebro a possibilidade de adaptarem-se, en-volvendo uma rede complexa de atividades neurais.Pesquisas recentes (Andrade, 2004; Janata, 2009) apontam para os efeitos que a au-dição musical produz em mecanismos como atenção e memória de trabalho. Utili-zando-se de ressonância magnética, Janata, demonstrou que, além de ativar oscórtices superiores e sub corticais, a audição musical suscitou fortes reações nos cór-tices pré-frontais, região responsável pelo armazenamento das experiências sensoriaise coordenação das funções executivas. Neste estudo, o autor aponta para a evocaçãoda memória autobiográfica acionada pela escuta musical. Segundo Janata, a expe-riência musical significativa produz marcas profundas no córtex, integrando nos cór-tices pré-frontais, música, emoção e memória. (Janata 2009, 2) Assim, a música exerceforte impacto na recuperação da memória autobiográfica. Pederiva e Tristão (2006) confirmam que as experiências musicais envolvem umagrande estrutura neural e ainda geram mudanças no funcionamento cerebral:

“O aprendizado por meio da experiência na atividade musical é acompanhado pormudanças, que estão sempre em desenvolvimento, o que não é trabalho de umúnico módulo neural, mas ocorrem conjuntamente em uma grande estrutura” (Pe-deriva e Tristão 2006, 84).

Para esses autores, a escuta musical proporciona um conjunto de operações percep-tivas e cognitivas, independentes ou relacionadas a experiências prévias de memória,fazendo com que a audição musical atue como um dispositivo para atividades neuraiscomplexas (Pederiva e Tristão 2006, 85). No setting musicoterapêutico, tais experiên-cias oferecem ao paciente a oportunidade de ouvir uma produção musical. Portanto,a escuta musical representa uma tarefa extremamente complexa, pois envolve asso-ciações, imagens, sejam elas perceptivas ou evocadas1, expectativas, emoções, entreoutras coisas.Segundo Corrêa (1998), […] o processamento cognitivo da música envolve estruturascerebrais específicas e, muitas vezes, funcionalmente independentes das estruturas

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1 Imagens perceptivas: Segundo Damásio (1996), são formadas sob controle dos receptores sen-soriais orientadas pelo exterior (p. 123). Imagens evocadas: formadas sob o controle de dispo-sições contidas no interior do cérebro, como recordações ou planejamentos futuros (p. 124)

envolvidas na linguagem verbal. Souza (2006) confirma que a música, como linguagem não verbal, aciona áreas cere-brais específicas, muitas vezes, independente das áreas envolvidas na linguagem ver-bal. Assim, o fazer musical é capaz de acionar regiões inacessíveis do cérebro quemuitas vezes a linguagem verbal já não pode alcançar. (Souza, 2006) A complexidade requerida pelo fazer musical integra vários aspectos associativos:

“[…] constatamos que o indivíduo, além de partilhar suas experiências de vida, re-corda, retém, utiliza, associa e integra pensamentos e representações internas re-fletidas no musical. A música nos alcança onde, muitas vezes, a palavra nãoconsegue alcançar. Na emoção expressada em uma canção, pode estar a conexãodo passado com o presente, impulsionando o indivíduo à vivência do novo”. (Souza2006, 1221)

Musicoterapia com idosos institucionalizadosA institucionalização pode levar o idoso saudável a um estado de embotamento eociosidade acarretando perdas cognitivas. É comum a presença de sentimentos desolidão e quadros depressivos em tais indivíduos, atuando como fatores agravantesno processo de declínio.Em pesquisa realizada com residentes de instituições geriátricas, Deps (apud Neri1993) constatou que maior parte do dia, os idosos ficavam ociosos, sentados em si-lêncio ou deitados. A pesquisa também demonstrou que a interação social entre os companheiros é muitobaixa. A falta de comunicação e laços afetivos contribui para o isolamento e apatia.As limitações decorrentes da idade avançada não é o indicativo preponderante nafalta de atividades desses indivíduos. Fatores emocionais, baixa auto-estima e umconceito negativo acerca da velhice colocam o idoso em situação de entrega e desâ-nimo, dificultando a busca por uma vida mais ativa. A maioria dos idosos entrevis-tados não tem nenhum plano de vida e acreditam que a única opção é aguardar amorte.Ao se isolar, o idoso deixa de estimular tanto os movimentos motores como cognitivose emocionais conduzindo-o a um declínio acelerado.A intervenção musicoterapêutica pode contribuir na retirada do idoso dessa situaçãoapática. O fazer musical estimula a criatividade do indivíduo que se encontra na ins-tituição, em estado de isolamento e melancolia.

“Acredita-se que a função da Musicoterapia é criar, manter e fomentar a comuni-cação, resgatando a espontaneidade perdida pelo homem ao longo de sua existên-cia, estimulando a criatividade e liberando o indivíduo de condutas estereotipadas,de sua rigidez e cristalizações, comportamentos adquiridos durante o processo eenvelhecimento” (Souza in Pinto et al. 2006).

Ao estimular a criatividade, o indivíduo desprende-se das atitudes e pensamentoscristalizados, possibilita uma reelaboração de sua própria existência e compreensãoda fase por ele vivenciada. A velhice não precisa ser um período de inatividade. Ao

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se libertar dos estereótipos negativos, o indivíduo pode viver uma velhice plena eativa.O sujeito que vivencia a velhice de forma positiva, tem maiores chances de se manterativo, em detrimento à inatividade. Enquanto a inatividade leva à estagnação e declí-nios fisiológicos e cognitivos (Nordon 2009), manter uma rotina ativa promove estí-mulos importantes na prevenção, manutenção e desenvolvimento funcional doindivíduo.O desafio apresentado pelo fazer musical, requer do idoso, respostas rápidas e ade-quadas, acionando assim, funções executivas como atenção e memória de trabalho. A forte carga afetiva e emocional proporcionada pela música contribui também paraque os marcadores somáticos sejam estabelecidos. Segundo Damásio, o papel dasemoções no córtex cerebral é fundamental. Para o autor, a emoção desencadeada pelaaudição de uma melodia induz a liberação de substâncias neuroquímicas, gerando,simultaneamente, alterações cognitivas (Damásio 1996, 175). As funções executivas são coordenadas pelos córtices pré-frontais, os quais são res-ponsáveis por receber os sinais de todas as regiões sensoriais. Estes sinais recebidospelo córtex pré-frontal “alimentam” o repertório de marcadores somáticos e emgrande parte, é coextensivo com o sistema das emoções secundárias2 (ibid, 213). A música, ao aliar mecanismos racionais e emocionais, atua como um recurso potenteno estímulo cortical.

“A criação e a recriação musical têm como elementos primordiais o pensar e o sen-tir humano, estruturados em ritmos, melodias e harmonias, possuindo comoamálgama a razão e a emoção” (Souza 2006, 1217).

Os diversos elementos que compõem a estrutura musical atuam como dispositivosno resgate de imagens e podem desencadear diversas associações neurais.

“Assim, é esperado que, como uma peça de música que se desdobra no tempo, estáfornecendo pistas na forma de sons de instrumentos (timbre), melodias, progres-sões de acordes e letras, podem desencadear uma série de associações. Desta forma,uma peça musical pode tornar-se um substituto, ou um ‘gatilho’ para esses pen-samentos, lembranças e emoções que são evocadas” (Janata 2009, 5).

A carga emocional expressada na música potencializa os sinalizadores somáticos.Além disso, o prazer encontrado na realização musical representa um elemento mo-tivador importante.Viu-se que idosos institucionalizados muitas vezes encontram-se desmotivados e emestados depressivos. A musicoterapia pode proporcionar um caminho eficaz na buscapor uma vida mais ativa.

“[…] constatamos que a linguagem musical pode proporcionar um caminho revi-talizador de busca do prazer de viver, de conviver, de criar e desenvolver novas

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2 Emoções secundárias: Estímulo que, embora possa atuar diretamente na amígdala (emoçõesprimárias), é também analisado no processo de pensamento e pode a partir daí, ativar os cór-tices pré-frontais. (Damásio 1996, 167)

formas de viver. A música como linguagem maleável e pertencente à vida do in-divíduo possibilita, de forma prazerosa e não ameaçadora, esse caminho para atransformação do idoso”. (Souza 2006, 1221)

Portanto, ao utiliza-se da música e de sua qualidade polissêmica, ou seja, das maisvariadas significações que ela pode representar para o sujeito idoso, a intervençãomusicoterapêutica, realizada através das técnicas utilizadas pelo musicoterapeuta,atua de forma global, tanto no estímulo das potencialidades funcionais, como tambémnos processos afetivos e nas relações interpessoais.

Considerações finaisA institucionalização do idoso, apesar de ainda ser vista por muitos como uma reso-lução negativa, associada ao abandono, pode representar uma saída benéfica paramuitos idosos e familiares que não dispõem de condições adequadas de cuidados.Por outro lado, vários estudos demonstraram que a institucionalização pode contri-buir para as perdas da eficácia cognitiva de idosos não demenciados, devido a váriosfatores, entre eles, a falta de desafios e experiências que alimentam os marcadoressomáticos, responsáveis no auxílio das funções executivas.A musicoterapia aplicada à terceira idade é um campo fértil para que novas desco-bertas e estratégias sejam utilizadas na melhoria da qualidade de vida do sujeito idoso.Com o avanço das pesquisas científicas, comprova-se cada vez mais, a importânciado fazer musical para a funcionalidade cognitiva de indivíduos. Além disso, a músicaé capaz de atuar no campo afetivo e emocional, e assim, atuando conjuntamente commecanismos funcionais, representa uma ferramenta eficaz na reabilitação e prevençãodos declínios funcionais, além de auxiliar no processo de sociabilização.Outro fator de grande relevância é o fato de a música ser um elemento motivadorpara o idoso. Estudos comprovam que indivíduos que se recusam a participar das di-versas atividades oferecidas nas instituições aderem às sessões de musicoterapia comprazer e entusiasmo.

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A desinstitucionalização da doença mental e da figura do doente mental através da criação de um espaço de aula de

música para pacientes psiquiátricos em uma escola de músicaThelma Sydenstricker Alvares

[email protected] Federal do Rio de Janeiro

ResumoEste trabalho discute os resultados do primeiro ano do desenvolvimento do projetode pesquisa realizada com pacientes psiquiátricos na Escola de Música da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro. Há um movimento nacional e internacional em prol da in-clusão social de indivíduos que encontram barreiras no acesso, entre outros, à edu-cação, ao trabalho e à cultura. Percebemos que apesar desta mobilização, que incluia reforma psiquiátrica, a pessoa com doença mental permanece ainda à margem doprocesso de inclusão social. O estigma de indivíduo perigoso continua associado àpessoa com doença mental como discutido por autores tais como Foucault, Basagliae Nise da Silveira. As questões centrais desta pesquisa qualitativa são: 1. Como a edu-cação musical pode contribuir para inclusão social de pessoas com doença mental? 2.Quais mudanças o aprendizado musical que ocorre em uma escola de música trazpara pessoas com doença mental? 3. De que forma a educação musical que ocorrefora dos muros do hospital pode contribuir com a desinstitucionalização do doentemental/doença mental? 4. Há necessidade de adequações na metodologia de ensino?Quais adequações? As principais abordagens e procedimentos metodológicos adota-dos são: observação participante, registro das aulas, entrevistas semi-abertas. As prin-cipais concepções teóricas que norteiam a pesquisa são: a. estudo da motivação naaprendizagem musical como um campo importante de investigação que possa con-tribuir para o desenvolvimento de uma metodologia do ensino de música para pes-soas com doença mental b. Concepção de Paulo Freire de que a educação é vistacomo meio de transformação e de afirmação do homem no mundo e não de adap-tação. c. Teoria das representações sociais d. Os três princípios de ação para educaçãomusical discutidos por Swanwick: 1. Considerar a música como discurso 2. Consideraro discurso do aluno e 3. Enfatizar a fluência musical. A análise das aulas, das apre-sentações musicais e entrevistas apontam para necessidade da valorização do co-nhecimento musical trazido pelos alunos e do processo de criação musical coletiva(feita por alunos e professores) realizado nas aulas; isto vem viabilizando um diálogoe o desenvolvimento de uma identidade que não é associada à doença mental. Arealização das aulas em uma escola de música também tem contribuído para a de-sinstitucionalização tanto do doente como da doença mental e para a desconstruçãoda idéia do louco como um indivíduo perigoso permitindo assim a inclusão social. Al-gumas adequações na metodologia do ensino de música serão discutidas enfatizandoas aulas nas quais algum aluno estava em momento de crise.

Palavras-chavesaúde mental – educação musical – inclusão

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Este trabalho discute os desafios e resultados encontrados no primeiro ano do desen-volvimento do projeto de pesquisa realizado com pacientes psiquiátricos na Escolade Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os participantes do pro-jeto são pacientes do hospital-dia do Instituto de Psiquiatria (IPUB) da UFRJ ondetambém são oferecidas aulas de música ministradas por alunos do curso de licencia-tura em música e do mestrado em educação musical da Escola de Música. A imple-mentação de aulas de música no hospital-dia ocorreu em 2008 e trouxe mudançasna rotina do hospital que passou a ter um grupo de pessoas com um novo olhar. Estegrupo, sem formação terapêutica, desenvolve um trabalho com objetivos exclusiva-mente pedagógicos. Como exemplo de mudanças ocorridas, podemos citar o caso deum paciente que passava por uma fase de depressão profunda e que não estava se-guindo adequadamente o tratamento. Segundo um dos terapeutas do hospital-dia,após o início das aulas de música, o paciente passou a aderir ao tratamento, tendo namúsica um estímulo para buscar sua melhora. Atualmente este paciente, que tem di-ploma de curso superior, está sendo tratado no ambulatório, não mais necessitandodo tratamento mais intenso oferecido pelo hospital-dia. Além disso, ele está se pre-parando para prestar concurso. Após a implementação das aulas de música no hospital-dia, a autora achou necessárioampliar a possibilidade do estudo de música criando um espaço de educação musical,fora dos muros do hospital, na Escola de Música. Um projeto de pesquisa (Alvares2010) foi elaborado tendo como questões centrais: 1. Como a educação musical podecontribuir para inclusão social de pessoas com doença mental? 2. Quais mudanças oaprendizado musical que ocorre em uma escola de música traz para pessoas comdoença mental? 3. De que forma a educação musical que ocorre fora dos muros dohospital pode contribuir com a desinstitucionalização (Amarante 1995) do doentemental/doença mental? 4. Há necessidade de adequações na metodologia de ensino?Quais adequações? Gostaríamos inicialmente de discutir alguns dos desafios encontrados neste projetoutilizando a teoria das representações sociais de Moscovici (2003) que tem como ob-jetivo explicar os fenômenos do homem a partir de uma perspectiva coletiva, semperder de vista a individualidade. Esta teoria se refere ao estudo das trocas simbólicasque ocorrem em nossos ambientes sociais e que estão presentes nas relações inter-pessoais contribuindo para a criação da cultura de um grupo social. Segundo Jodelet(2005) as representações sociais podem ser definidas como uma forma de conheci-mento, socialmente elaborada e partilhada, que colabora para a construção de umarealidade comum a um conjunto social. “Moscovici se interessou não apenas em com-preender como o conhecimento é produzido, mas principalmente em analisar seuimpacto nas práticas sociais e vice-versa” (Oliveira 2004, 1). Ao se trabalhar com pes-soas com transtorno mental que ao longo da história têm ficado à margem da socie-dade (Foucault 1978), podemos entender com as idéias de Moscovici porque, apesardas políticas sociais inclusivas (Brasil 2005; Brasil 2010) e das mudanças significativasno tratamento psiquiátrico, a pessoa com transtorno mental ainda encontra grandes

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barreiras em seu acesso à educação, trabalho, moradia, cultura, etc. Em pesquisa realizada com as famílias de pessoas com doença mental, Pereira (2003,74) buscou identificar as representações sociais destas famílias sobre a doença mental,

“… considerando os conceitos que pairam, circulam e se cristalizam no cotidiano einfluenciam a realidade”. Na análise das entrevistas, Pereira identificou representaçõesorganicistas da doença que foram divididas da seguinte maneira:

1. Representação da doença como algo de difícil compreensão para a ciência e degrande sofrimento para o doente e sua família: “É uma doença assim, nem euacho, nem os médicos acham, ninguém sabe tá bom?”; “… é a doença mais so-fredora do que qualquer outra doença” (p. 76).

2. Representação da doença como um defeito da pessoa e como uma doença comprognóstico desanimador: “… é um descontrole da cabeça”; “É doença que nãotem cura” (p. 76).

3. Representação da doença associada à perda, dano orgânico: “O médico falou queele perdeu uma parte da cabeça” (p. 77).

4. Representação da doença como “…“falha, defeito” da pessoa, expropriando-a deuma condição humana. ‘…essa doença deixou ele animal irracional, um animal…uma cabeça irracional que criou mundo irracional’” (p. 77)

5. Representação da doença como algo associado à hereditariedade e ao sobrena-tural (‘’encosto”): “Eu acredito que essa doença também é de reencarnação sabepor que? Ele tem tio que morreu louco e ele tem o mesmo sistema do tio, igual,eu já fui no Centro Espírita e eles confirmaram isso” (p. 78) Esta representaçãoda doença gera uma diminuição do sentimento de culpa e aumenta a condescen-dência em relação à pessoa com doença mental, gerando assim conflitos fami-liares: “… os outros em casa ficam meio revoltados. Eu acho que é difícil acompreensão dos outros, dos irmãos né?” (p. 78) Pereira também percebeu queas desavenças familiares também foram vistos como determinantes da doençamental: “…naquele ambiente ele foi ficando assim e eu pensei que fosse malan-dragem…” (p. 79)

Pereira também analisou representações da doença mental em nível subjetivo no quala subjetividade da pessoa e sua dimensão social são valorizadas: “…num ponto euacho que é o gênio da pessoa, do jeito de ser que pode ficar difícil, pode ir ficandograve, se a pessoa não vê saída acaba perdendo o controle” (p. 79); “Fugindo, isolando… ela se isola tanto porque não consegue viver, porque não consegue se ajudar …não consegue, fica só, perde o controle” (p. 80). Pereira conclui sua pesquisa dizendoque “um dos aspectos imprescindíveis no processo de mudanças na assistência psi-quiátrica é a desconstrução das representações sociais” (p. 80). Apesar de tambémter encontrado a idéia da doença mental como susceptibilidade humana na qual háa possibilidade de uma reversão parcial da situação vivida, Pereira observou que aindaprevalece “… a internalização de ideologias, ancoradas no saber vigente, que colocama doença mental como fato imutável decorrente de fatores orgânicos” (p. 81).Acreditamos que, como discutido por Pereira (2003) em relação à assistência psi-

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quiátrica, a desconstrução das representações sociais acerca do “louco’’ também sejao maior desafio encontrado em sua inclusão no sistema educacional. Em nossa pes-quisa, observamos duas situações que demonstram a representação social da pessoacom transtorno mental como alguém perigoso e/ou incapaz. Antes do projeto de pes-quisa ser iniciado, uma pessoa (acreditamos que seja uma de nossas alunas do IPUB)ligou para Escola de Música perguntando se na Escola eram oferecidas aulas de mú-sica para pessoas com problemas psiquiátricos. Ao relatar o episódio, a pessoa queatendeu o telefone relatou à autora: “Eu disse que não. Falei que tinha uma professoraque dava aula lá no Instituto de Psiquiatria. A senhora não pretende dar aulas aqui,não é professora? Porque se a senhora for, eu vou precisar avisar todos professores”.Em outra situação recente, um aluno do IPUB após um ano de estudo conosco, mos-trou interesse em entrar em uma escola de música e nos pediu ajuda para que encon-trassemos um curso em que pudesse se matricular. Em uma escola de música há umcurso que prepara os alunos para provas de seleção em escolas de música. Este cursoé direcionado a pessoas com pouco ou nenhum conhecimento teórico de música epensamos encaminhar nosso aluno para este curso. No entanto, ao saber que se tra-tava de um aluno com transtorno mental, o professor disse que ele poderia assistir auma aula, mas que provavelmente aquele não seria o curso indicado para ele. Segundo a Dra. Nise da Silveira, “as coisas não são ultrapassadas tão facilmente, sãotransformadas. É um processo lento. O que cura é o afeto. O que cura é a ausência depreconceitos” (Horta 2008, 340). Como nós educadores musicais podemos contribuircom esta transformação? Como criar um ambiente pedagógico que não seja “conta-minado” pelo conceito de que a pessoa com transtorno mental é perigosa, imprevisívelou incapaz? Em discussão relacionada ao fracasso/sucesso escolar de alunos de classesdesfavorecidas, Nicolaci-da-Costa afirma que tanto o sucesso como o fracasso escolar

“(…) pode implicar sofrimento, uma vez que o preço desse sucesso é o abandono dosvalores, das atitudes, dos comportamentos e da linguagem de seu grupo socioculturalde origem, arriscando-se, assim, a perder por completo sua identidade cultural” (apudAlves-Mazzotti 2008, 41). A pessoa com transtorno mental possui uma identidade cultural? Sua identidade estáassociada a sua história individual, sócio-cultural ou está ainda submetida ao saberpsiquiátrico? Segundo Pereira (2003, 73) “(…) a prática psiquiátrica “adota” ou tutelao doente, tirando-o do convívio social e familiar”. Jean-Marc Raynaud, na apresenta-ção do livro de Jacques Lesage de La Haye (2007, 10), A morte do manicômio, afirma:

O louco já não faz mais parte da paisagem. Ele é (cada vez menos) confinado emasilos. Semi-oculto em hospitais de dia, em apartamentos terapêuticos, em locaisde vida institucionalizados. Vagueia-se incógnitos na vida de todos os dias trajandosuas vastas camisas químicas de todos os tipos. Ele não tem mais seu lugar entrenós. E ainda menos em nós. O louco, doravante, é o OUTRO. O estrangeiro. Aquelea quem se deve temer. Excluir. Ocultar. Encarcerar. Negar. No diapasão do delin-qüente, do jovem, do velho, do deficiente, do desempregado.

Acreditamos que a criação de um espaço educacional, com uma dinâmica não cen-tralizada na doença/doente mental e sim na capacidade do aluno, seja o passo mais

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importante para se desconstruir as representações sociais do louco e viabilizar a in-clusão de pessoas com transtorno mental na educação. Alvares (2009) relata uma ex-periência realizada com alunos de licenciatura em música e com pacientespsiquiátricos, estagiários e funcionários de um Centro de Atenção Psicossocial (CAP).Durante um semestre, os alunos de música fizeram ensaios de um grupo vocal doCAP sem, no entanto, saber quem eram os pacientes, funcionários ou estagiários. Foiinteressante perceber a curiosidade dos alunos (ou talvez necessidade) em “classificar”quem seriam as pessoas com doença mental: “Ah, ele é paciente … Com certeza. Ela?Acho que não … Ela deve ser funcionária…’’ Nos ensaios havia um rodízio de papéisa fim de permitir que todos os alunos tivessem a oportunidade de participar tantocomo educador musical quanto como membro do grupo vocal. Em uma apresentaçãomusical do grupo no teatro da universidade ouvimos o seguinte comentário entre aspessoas da platéia: “Mas quem são os usuários do serviço neste grupo?” Um dos alu-nos, bastante incomodado, disse: “Professora, isto quer dizer que eles [a platéia]acham que eu posso ser louco!” Novamente percebemos uma busca de definição des-tes papéis e um incômodo com a possibilidade de ser visto como doente mental. Emuma prática musical os papéis dos “saudáveis” e dos “doentes” se desfazem, abrindo-se um espaço para troca de experiências e interação musical o que demonstra a im-portância do ambiente para a desconstrução de representações sociais que excluemos indivíduos.Em nosso trabalho na Escola de Música, buscamos planejar as aulas a partir de umdiálogo com os alunos, buscando desenvolver um programa que valorize aquilo queeles trazem para as aulas. Por exemplo, a seleção de repertório é feita junto aos alunose a criação de arranjos, com as músicas escolhidas pelo grupo, é feita com a partici-pação de todos. Desta maneira, criamos uma dinâmica que estimula uma participaçãoativa, delineando nossas ações a partir da interação com os alunos. Acreditamos queisto seja importante em qualquer situação de ensino; o homem deve ser sujeito e nãoobjeto de sua educação (Freire 2001). No entanto, esta participação ativa é funda-mental ao se trabalhar com pessoas que são pacientes psiquiátricos, uma vez que apossibilidade de ter voz ativa em suas vidas é bastante restrita. Esta dinâmica permiteuma interação renovadora que possibilita o surgimento de uma identidade separadado “patológico”. Em uma aula, uma aluna se referia a si apenas como uma pacientepsiquiátrica; não se percebia a noção de uma identidade dissociada da doença mental.A autora disse à aluna: “Aqui nós não trabalhamos com pacientes psiquiátricos. Aquisó temos alunos de música”. A aluna olhou um pouco surpresa e outro aluno falou le-vantando o braço: “Isso!”. Segundo Amarante (1995), a desinstitucionalização requer a criação de novas possi-bilidades de experiências sociais; não se restringe apenas a tirar a pessoa com trans-torno mental do hospital psiquiátrico. A educação musical pode ser uma dessaspossibilidades que traz novas perspectivas de vida para estas pessoas. Percebemosque nossos alunos, de modo geral, apresentam as mesmas condições de aprendizagemde qualquer outro aluno. Notamos que alguns possuem um pouco mais de dificuldade

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de coordenação motora e acreditamos que isto possa estar associado ao uso de me-dicação, mas isto não se configura, de maneira alguma, como uma barreira para oaprendizado musical. O Passo (Ciavatta 2003) tem sido um método que nos vem ajudando a superar estasdificuldades do processo ensino-aprendizagem. Este método também tem sido im-portante quando algum aluno se apresenta agitado ou mesmo em início de surto. Per-cebemos uma agitação motora e expressão verbal desenfreada que nem sempre temconexão com a realidade externa. De modo geral, os alunos não vão à Escola de Mú-sica quando se encontram neste estado. Este é um acordo entre a pesquisadora e aequipe do hospital-dia. Nossa recomendação é que, nestes momentos, os alunos pro-curem ajuda terapêutica e retornem as aulas assim que a equipe do hospital-dia acharindicado. No entanto, aconteceu que uma aluna foi a aula quando estava em iníciode um surto. O Passo nos auxiliou a canalizar a agitação motora da aluna, facilitandosua participação e integração com o grupo. Ela conseguiu executar todas as atividadesda aula. Inicialmente, sua movimentação não seguiu a do grupo, mas gradualmenteela entrou no ritmo da turma. Seu discurso verbal foi espontaneamente organizadoem uma improvisação que acompanhou e enriqueceu a atividade rítmica do grupo.Esta aluna foi internada no Instituto de Psiquiatria após esta aula. Alguns dias depois,nós fizemos uma apresentação musical na festa Junina do IPUB quando ela ainda es-tava internada. No hospital fizemos um rápido ensaio onde ela relembrou o que tí-nhamos trabalhado nas aulas e assim participou da apresentação.A Declaração de Salamanca (1994) apresenta-se como um dos mais importantes do-cumentos sobre educação inclusiva. Um dos pontos abordados neste documento éque a escola deve se adaptar ao aluno com necessidades educacionais especiais e nãoo aluno à escola. A Escola de Música da UFRJ não tem tradição de receber alunos “di-ferentes” e é esperado que haja um estranhamento, mesmo que velado, com a chegadadeste grupo discente. Acreditamos que seja nossa responsabilidade criar mecanismospara sensibilizar a comunidade, possibilitando o desenvolvimento de um novo olharque acolha a diversidade. Temos duas estratégicas básicas: uma que ocorre nos diasde aula. Antes do início da aula, temos um intervalo quando alunos e professores ge-ralmente tomam café na cantina. É um momento de descontração e nossos alunosdo IPUB participam deste momento, permitindo que as pessoas os vejam com natu-ralidade. Nós também nos aproximamos da equipe de segurança da Escola que hojenos auxilia a receber nossos alunos. Se alguém chega agitado, o segurança gentilmenteacompanha o aluno até a sala de aula. Um dos seguranças nos disse “As pessoas pre-cisam ser bem recebidas nos lugares. Pode deixar com a gente!”. Nós também orga-nizamos uma apresentação musical na Escola de Música reunindo nossos alunos,alunos do Instituto de Psiquiatria, os Cancioneiros (grupo musical composto por pes-soas com transtorno mental) e os alunos do Benjamin Constant (alunos com defi-ciência visual). Desta maneira, novas interações, novos vínculos, percepções, olharese, conseqüentemente, novas representações sociais vão sendo criadas. Acreditamosque este seja o passo para se criar uma educação que acolha a diversidade. É interes-

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sante notar, após um ano de trabalho, a mudança na aparência mais cuidada dos alu-nos e suas atitudes que demonstram maior familiaridade com o ambiente da Escola.Talvez um ano de participação em um espaço educacional, não sendo identificadoscomo os “pacientes psiquiátricos”, tenha contribuído para o surgimento de uma re-presentação social sobre si diferente das que tinham antes do início das aulas. Certa-mente, a apresentação musical destes alunos na Escola de Música também contribuiupara que algumas pessoas da Escola mudem sua percepção do indivíduo dito“louco”.É significativo o nome Somos um escolhido para o grupo (sugerido por um dos alunose aceito por unanimidade) por ocasião de nossa apresentação na Escola de Música. De acordo com a teoria da autodeterminação (Araújo, 2009), o ser humano tem umapropensão inata para o aprendizado e o ambiente fortalece ou enfraquece esta pro-pensão. Segundo Fleith e Alencar (2010, 215), “embora possa ser considerada, emparte, inata, a motivação intrínseca pode ser cultivada, em larga escala, pelo ambientesocial”. Infelizmente a educação, de modo geral, não motiva o aluno e exclui aquelesque não se encaixam no perfil do aluno “ideal” ou, pelo menos, “adequado”. Outrasvezes, o aluno que não tem um comportamento que deixa evidente suas dificuldades,fica despercebido durante seus anos escolares. O Rio de Janeiro viveu recentemente uma grande tragédia com o brutal ataque deum ex-aluno em uma escola em Realengo que culminou com a morte de 12 criançase com o suicídio do atirador. Esperamos que tal fato sirva de alerta para que possamosrepensar nosso sistema educacional. Se o autor deste crime, ainda quando criança,tivesse recebido o tratamento e o acompanhamento necessário, talvez as famílias e oBrasil não vivessem hoje tão doloroso luto. Mas infelizmente ele era “quietinho” eapresentava bom resultado acadêmico. No entanto, nos relatos de vizinhos, ex-colegas,ex-professores foi constatado que o rapaz sempre teve comportamento “estranho”,anti-social. Onde estavam os educadores? Onde estavam a equipe de saúde e de as-sistência social? Que seres humanos estamos formando para o amanhã?

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Eu ensino como você aprende? Processos cognitivos de aprendizagem em música

Simone Marques Braga [email protected]

Centro Estadual de Arte e Design da Bahia – Universidade Federal da Bahia

ResumoAprender é um processo de aquisição de conhecimentos, habilidades, valores e dodesenvolvimento da capacidade de pensar, julgar e empregar conceitos que condu-zam às mudanças de atitudes e de comportamentos. Tradicionalmente, a análisedesta tentativa centrou-se em torno do ensino conduzido por professores. Agora, com

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a mudança de paradigmas educacionais, aprender significa ir além da instrução diretae pode ser promovido em contextos e situações variadas. Neste sentido, alguns au-tores (Sloboda 2008; Green 2010) defende que o processo da aprendizagem e do de-senvolvimento de habilidades musicais ocorre em diversas formas a partir dainteração do indivíduo com o meio musical, baseando-se nas tendências inatas, naenculturação e no treino. Outro fator importante para o processo da aprendizagem éconsiderar as experiências prévias. Com o propósito de discutir a diversidade da apren-dizagem em diferentes contextos educacionais, este trabalho se propõe responder aquestão-problema: Eu ensino como você aprende?, ao apresentar considerações doprocesso cognitivo de 04 educandos adultos, na disciplina Piano, em curso profissio-nalizante de música. Os objetivos foram verificar o processo de aprendizagem musicalno instrumento piano e elaborar estratégias de ensino adequadas a estes processos.A investigação, que teve como campo empírico a sala de aula, foi realizada a partirdo estudo de caso e da observação participante. Como resultado, pode-se verificar aimportância de diagnosticar o processo de aprendizagem de cada educando, vistoque cada um constrói o conhecimento musical de forma variada, para desenvolvermetodologias e estratégias didáticas personalizadas. Tal ação favoreceu e potencia-lizou as facilidades de aprendizagem e as habilidades musicais no processo do ensinomusical, além de aproveitar-se das influências do contexto social e do conhecimentoprévio dos educandos envolvidos, ao fazer uso de estratégias adotadas entre práticasmusicais sociais, como as realizadas entre músicos de igrejas e de bandas.

Palavras-chaveensino de piano, metodologia personalizada, processo de aprendizagem.

Introdução Aprender é um processo de aquisição de conhecimentos, habilidades, valores e es-sencialmente do desenvolvimento da capacidade de pensar, julgar e empregar con-ceitos que conduzam às mudanças de atitudes e de comportamentos. De acordo comBranco (2010, 1), aprender é a “aquisição ou mudança relativamente estável e dura-doura do comportamento e/ou do conhecimento, devido à experiência, ao treino ouao estudo e com uma função adaptativa relativamente ao meio e às suas mudanças”.Neste sentido, a educação pode ser definida como a tentativa consciente de promovera aprendizagem de outras pessoas. Tradicionalmente, a análise desta tentativa centrou-se em torno do ensino conduzidopor professores. Agora, com a mudança de paradigmas educacionais, aprender sig-nifica ir além da instrução direta e pode ser promovidos em contextos alternativos,em ambientes criativos e variados, ambientes virtuais de aprendizagem, além da in-terferência entre pares. Woolfolk (2000) aponta ainda para o outro fator como a exis-tência de variedades de nível de desenvolvimento cognitivo entre alunos por acreditarque estes percebem e processam informação de forma diferente. Alguns aprendemprocurando significado, outros através de reflexões, testando teorias ou por tentativade acertos e erros. O presente artigo não tem o propósito de discutir esta diversidade acerca da apren-

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dizagem nos aspectos cognitivos. Contudo, se propôs a investigar as formas de apren-dizagem entre músicos populares ao responder a seguinte questão-problema: Eu en-sino como você aprende?. Para responder a questão apresenta algumas consideraçõesacerca do processo de desenvolvimento de alguns educandos na disciplina Piano emcurso profissionalizante de música, como resultado de uma breve pesquisa desenvol-vida na disciplina Fundamentos de Educação IV, no Programa de Pós-Graduação emEducação Música da Universidade Federal da Bahia. A questão tem como justificativaconsiderar os processos de aprendizagem diferenciados, sobretudo, dos educandoscom experiências prévias em práticas musicais sociais, para favorecer o seu desen-volvimento. Desta forma, cabe ao educador compreender e considerar a complexibilidade e a di-versidade de processos de aprendizagens presentes em diferentes contextos educa-cionais e em processos cognitivos dos educandos para adotar procedimentosmetodológicos favoráveis, como os relatados nesta experiência, realizada no CentroEstadual de Arte e Design da Bahia, na disciplina Piano, que teve como objetivos ve-rificar práticas de aprendizagem musical informal (Green 2001), o processo de apren-dizagem musical no instrumento piano e elaborar estratégias de ensino adequadas aestes processos.

Aprendizagem em músicaNa sua inserção no ambiente escolar, os educandos trazem consigo conhecimentos,habilidades, crenças e conceitos prévios que irão influenciar na aquisição de novosconhecimentos. É fundamental que o educador busque investigar as habilidades jádesenvolvidas e o processo de como são desenvolvidas, para favorecer a sua aprendi-zagem musical. Contudo, a compreensão e a consideração do processo de desenvol-vimento de habilidades musicais, variam de cultura para cultura. Neste sentido, aeducadora Ilari (2007) argumenta que, para grande parte dos brasileiros, a músicaainda não é vista como uma habilidade a ser desenvolvida, e sim como um dom ouaptidão que não exige necessariamente um treino musical específico. Tal concepçãoé compartilhada por uma parcela significativa de músicos, imersos em práticas mu-sicais sociais, que associam o seu desenvolvimento ao talento musical, como citaCouto (2009, 91):

Na cultura da música popular existe a crença, equivocada, da não necessidade deestudo para a sua aprendizagem, atribuindo-se a aquisição de conhecimentos ehabilidades musicais ao talento, ou ao dom divino — principalmente por ser umrepertório marginalizado durante muito tempo por instituições de ensino formalde música (Couto 2009, 91).

Além de boa parte de alguns educadores, em detrimento a outra concepção que ig-nora o desenvolvimento musical em práticas musicais sociais. Historicamente, du-rante grande período, o universo de aprendizagem do músico popular foi ignoradopelo contexto formal do ensino musical. Neste contexto, outro fator importante parao processo da aprendizagem e, conseqüentemente, para a construção do conheci-mento, é a consideração destas experiências prévias. De acordo com estudos norte

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americanos1, a visão contemporânea a respeito da aprendizagem é que as pessoaselaboram o novo conhecimento e o entendimento com base no que já sabem e naquiloque acreditam. Nesta perspectiva:

A aprendizagem acontece a partir do que já se conhece, do que já se aprendeu.Assim, os costumes e tradições (elementos da cultura do indivíduo) precisam serconsiderados no processo de ensino-aprendizagem, pois fornecem pistas sobreum ponto de partida, um referencial para o trabalho educativo, a construção doconhecimento (Ribeiro 2007, 1).

Neste processo de construção do conhecimento é que se desenvolvem as habilidades.Este desenvolvimento requer um processo de aprendizagem que exige organizaçãodo raciocínio lógico, consciente, prática e interação do sujeito com o meio. É precisoque os alunos compreendam para que serve o conhecimento, quando e como aplicá-lo, em situações em que o meio requer um determinado saber. Este meio, o contextopelo qual a pessoa está inserida e as particularidades de determinadas áreas de co-nhecimentos e disciplinas, influenciam o desenvolvimento de variadas habilidadescomo as pessoais, interpessoais, motoras, cognitivas, profissionais, sociais, gerenciaise musicais, que posteriormente, caso estimulado, poderá transformar-se em compe-tências. Sobre esta construção, Sloboda (2008) defende que o processo de desenvolvimentode habilidades musicais ocorre a partir da interação do indivíduo com o meio musical,baseando-se nas tendências inatas, em dois processos distintos: a enculturação e otreino. O autor considera que a enculturação, que acontece desde o nascimento atépor volta dos dez anos, implica no desenvolvimento de habilidades musicais, geral-mente sem esforço autoconsciente ou instrução explícita. Enquanto que o treino im-plica no desenvolvimento de habilidades musicais específicas por meio de um esforçoautoconsciente através de um ambiente educacional. Tais concepções encontram res-sonâncias com as argumentações de outros autores. Quanto ao treino, Hargreaves e Zimmerman (2006) o associam com a aprendizagemmusical a partir de um esforço autoconsciente, um esforço dirigido para se aprendermúsica. Já a enculturação, Green (2001, 22), também destaca o processo do desen-volvimento musical a partir dela, contudo sem limitá-la a um determinado períodoou faixa etária: “aquisição de habilidades e conhecimento musical [acontece] porimersão diária em música e em práticas musicais de um determinado contexto social”.Segundo pesquisas realizadas, acerca do processo de aprendizagem de músicos po-pulares ingleses, que resultou no livro How popular musicians learn (Green 2001), noqual participaram 14 músicos populares, a educadora procurou conhecer a trajetóriada aprendizagem desses músicos e aspectos a ela relacionados. A pesquisa apontoupara aprendizagem através da enculturação por meio da imersão em práticas musicais,

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1 Estudos realizados pela Comissão de Educação e Ciências Sociais e do Comportamento doConselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos em 1999, com o intuito de relacionar asdescobertas sobre a ciência da aprendizagem com a prática em sala de aula.

denominadas por “práticas de aprendizagem informal de música”, ao envolver o tocar,o compor e o ouvir músicas do contexto no qual o indivíduo está inserido, tambémpor meio da interação entre pares:

As práticas informais englobam aspectos como a escolha do repertório — direta-mente ligada a músicas de que muito se conhece e das quais se tenha grande afe-tividade —, e as práticas aurais como o copiar “de ouvido” músicas de gravações.Também há o fato de a aprendizagem acontecer em grupos, de maneira conscienteou inconsciente, através da interação com parentes, colegas e outros músicos queatuam sem a função formal de um professor. Também, como aspecto diretamenteligado ao aprendizado de músicos populares, existe a integração entre compor,tocar e ouvir com grande ênfase na criatividade (Couto 2009, 92).

Neste contexto, a maioria dos músicos populares são aprendizes por enculturação,por imersão continuada isolada, em uma prática de aprendizagem solitária, e porimitação entre pares, em uma prática de aprendizagem através do outro e do meiosocial. Outras pesquisas recentes, (Lacorte 2008; Green 2010; Queiroz 2009), um dosgrandes veículos de aprendizagem de músicos populares é a interação, seja entre pares,meios de comunicação ou pela internet:

As primeiras vivências ocorrem em contextos variados em meio a práticas infor-mais: entre familiares, parentes, vizinhos, amigos, convívio na igreja, escola, fa-lando, tocando junto, assistindo ou ouvindo outros músicos, entre outros. Deacordo a Lacorte (2007) músicos mais experientes passam o seu conhecimentopara os iniciantes de maneira casual, ensinando aspectos práticos musicais semmuita explicação teórica: “o aprendizado se dá, inicialmente, pelo tocar juntos,falar, assistir e ouvir outros músicos, e, principalmente, mediante o trabalho cria-tivo feito em conjunto” (Braga 2008, 304).

A interação entre pares age positivamente no desenvolvimento da autonomia e daautomotivação, ao contribuir para a organização e direcionamento do próprio estudoe aprendizado tendo por base suas necessidades e objetivos pessoais. Alguns proce-dimentos adotados pelos educandos neste autodirecionamento dos estudos são de-senvolvidos como hábitos de estudos peculiares tal escuta diária de músicas emdiversos ambientes entre eles casa, trabalho, shows e apresentações. Por esta razão aaudição torna-se um dos sentidos muito valorizado entre os músicos.Quanto a esta audição, Queiroz (2008) destaca a sua importância ao envolver a audi-ção nesta prática como principal processo utilizado para aprendizagem destes músicosassociada a experimentação. Green (2001) complementa que a audição e imitação,na etapa inicial da aprendizagem, requerem alto grau de atenção e intenção auditiva.Neste processo é que desenvolve e caracteriza-se o “tirar de ouvido”, uma das carac-terísticas da transmissão oral. Green defende que a utilização destas práticas de apren-dizagem informal nas aulas poderá oferecer aos educandos certo grau de autonomiacom relação a seus professores, ao aumentar suas capacidades para o desenvolvimentodo aprendizado musical de forma independente. Todavia, faz-se necessário investigaro contexto social ao qual o educando origina-se para fazer uso das estratégias destaprática de aprendizagem informal, para desenvolver ou potencializar habilidades, co-

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nhecimentos a serem complementados, processos e aspectos favoráveis para o de-senvolvimento da aprendizagem, conforme destaca Swanwick (2003, 67):

Cada aluno traz consigo um domínio de compreensão musical quando chega asnossas instituições educacionais. Não os introduzimos na música; eles são bemfamiliarizados com ela, embora não tenham submetido aos vários métodos deanálise que pensamos ser importantes para seu desenvolvimento futuro. Temosde estar conscientes do desenvolvimento e da autonomia do aluno […] não po-demos nos eximir de compreender tudo o que está envolvido com esses aspectos.

A experiência: como você aprende piano? Com os objetivos de verificar e fazer uso de práticas de aprendizagem musical infor-mal no instrumento piano no contexto educacional formal, verificar o processo deaprendizagem musical no instrumento piano e elaborar estratégias de ensino ade-quadas a estes processos, foram selecionados 04 alunos adultos como objetos de in-vestigação: 01 músico de igreja, 01 músico de banda e 02 educandos dos níveismusicais de iniciação e intermediário. A escolha se justifica pela necessidade de ve-rificar as práticas de aprendizagem informal realizadas nos ambiente sociais comoas bandas e as igrejas de dois educandos, diferentes da experiência dos outros doisque não eram inseridos em nenhuma prática musical social. A investigação, que tevecomo campo empírico a sala de aula e a função do pesquisador como professor dasturmas envolvidas, optou pela adoção do estudo de caso e da observação participante.Segundo Yin (2005) há três tipos de situações para as quais se indica a utilização doestudo de caso: quando o caso em pauta é crítico para testar uma hipótese ou teoriapreviamente explicitada; quando o fato é extremo ou único; ou quando o caso é re-velador, tendo o pesquisador acesso a uma situação ou fenômeno até então inacessívelà investigação científica. O autor afirma que o estudo de caso é um dos tipos de pes-quisa qualitativa em crescente aceitação na área da educação. Possivelmente, estaaceitação é em função das características desta modalidade de pesquisa destacadaspor Bogdan e Biklen (1982), como a maior preocupação com o processo do que como produto, ao considerar o ambiente natural como fonte direta de dados, onde o pes-quisador é o principal instrumento para investigar o significado que as pessoas dãoàs coisas e à sua vida. De acordo com Dias (2000, 1), a vantagem de sua utilização “épermitir ao pesquisador concentrar-se em um aspecto ou situação específica e iden-tificar, ou tentar identificar, os diversos processos que interagem no contexto estudado”.Em geral, se constituem na estratégia preferida quando o como e/ou o por quê são asperguntas centrais:

[…] é uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa pro-fundamente. Pode ser caracterizado como um estudo de uma entidade bem defi-nida, como um programa, uma instituição, um sistema educativo, uma pessoa ouuma unidade social. Visa conhecer o seu “como” e os seus “porquês”, evidenciandoa sua unidade e identidade próprias. É uma investigação que se assume como par-ticularística, debruçando-se sobre uma situação específica, procurando descobriro que há nela de mais essencial e característico (Martins 2002, 1).

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Na presente pesquisa a questão é verificar o “como” se aprende e suas implicações noensino musical através da aplicação de instrumentos como o uso de entrevistas (semi-estruturadas e não estruturadas) e a observação participante. Os instrumentos sele-cionados foram fundamentais para responder a questão problema, ao especular asformas variadas de aprendizagem dos educandos. A primeira etapa da experiência foi a aplicação de entrevista, com questões estrutu-radas e semi-estruturadas, com o primeiro grupo, com o propósito de diagnosticaras práticas de aprendizagem informais utilizadas em seu contexto social. Paralelo aaplicação desta entrevista, 08 aulas foram observadas, para verificar o processo deaprendizagem de duas peças musicais, uma da realidade sócio-cultural do educandoe outra completamente desconhecida, conseqüentemente, distante de sua realidade.A segunda etapa foi a análise das práticas informais, apontadas nas entrevistas, a ob-servação do processo de aprendizagem das 02 peças desenvolvidas com o primeirogrupo. A análise possibilitou a elaboração de abordagens didáticas para a sua possívelaplicação com o segundo grupo, composto por educandos iniciantes. Apesar das abordagens elaboradas apresentarem a característica similar, através dautilização de peças musicais pouco extensas, ao garantir que a sua aprendizagem fosserealizada na aula planejada, apresentaram algumas divergências como a supervalo-rização da leitura musical em oposição ao ensino por imitação ou através da partici-pação ativa dos educandos por meio da interação diferenciadas: 1) ensino de pequenapeça com leitura a primeira vista e em pequenos trechos (através de compassos, frases,mãos separadas, entre outros); 2) ensino de pequena peça por imitação; 3) ensino depequena peça com análise musical; 4) abordagem interativa entre os dois educandos.Em paralelo às abordagens, a observação docente foi realizada e registrada em diáriode campo através de anotações do desenvolvimento dos educandos. As abordagensforam realizadas com a freqüência quinzenal, para evitar que uma influenciasse o de-senvolvido da abordagem aplicada posteriormente, tendo como objeto quatro peças,de nível musical bem similar, sendo duas familiares e duas desconhecidas pelos par-ticipantes, conforme verificação anterior a experiência.

Resultados A análise das respostas do questionário aplicado na primeira etapa foi essencial paradar prosseguimento à experiência, através da elaboração de abordagens didáticas aserem desenvolvidas com o segundo grupo. A análise possibilitou adequar algumasestratégias utilizadas em práticas de aprendizagem informal de música entre músicosde bandas e de igrejas para o processo de ensino-aprendizagem de educandos ini-ciantes.Como resultado desta análise, verificou-se que os educandos advindos de práticas deaprendizagem informais desenvolvem uma maneira de aprender baseada na práticapor imitação, denominado pela literatura inglesa de práticas aurais ou popularmenteconhecida como “tocar de ouvido”:

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De todos os aspectos envolvidos no processo de aprendizagem da música popular,o aural é considerado o mais importante, pois é através dele que os músicos ad-quirem o conhecimento e as habilidades musicais (Feichas 2006). As práticas au-rais envolvem o fazer-musical de ouvido, ou seja, “criar, atuar, lembrar e ensinarmúsicas sem o uso de notação escrita” (Lilliestam 1995, 195). A partir de ativida-des como copiar músicas de ouvido de gravações ou observar e imitar colegas eparentes, os músicos populares adquirem suas capacidades para improvisar e criar.Também desenvolvem o ouvido harmônico, rítmico e melódico (Couto 2009, 94).

Em virtude a percepção auditiva bem desenvolvida, a verificação das tonalidades edas progressões harmônicas torna-se um recurso fundamental para o aprendizado epara o aperfeiçoamento da execução. Neste sentido, uma das abordagens aplicadascom os educandos iniciantes, favoreceram o desenvolvimento desta percepção audi-tiva, através do ensino por imitação, articulado com questionamentos docentes acercada estrutura musical como a identificação da tonalidade, compasso, acordes utilizados,forma, entre outros, além de possibilitar maior familiarização com os recursos doinstrumento. Para a execução da peça era propostos desafios como a mudança de ar-ticulação ou o acréscimo do pedal de acordo a apreciação auditiva do efeito dos mes-mos. Entretanto, a abordagem por imitação, associada às peças ensinadas através daleitura por trechos e pela análise musical atingiu grande aceitação entre os educandos,por favorecer uma maior compreensão musical.Outro resultado verificado foi a influência do outro no processo da prática de apren-dizagem informal, através da interação entre pares ao abordar a prática e a troca deconceitos musicais. Razão pela qual, uma das abordagens didáticas desenvolveu a in-teração entre os educandos através de aula em caráter coletivo, a qual após a execução,os participantes eram encorajados a compartilhar comentários e sugestões para a exe-cução do outro. Apesar de alguns comentários e orientações, não trazerem grandesnovidades, estes ganharam um valor diferenciado por ser compartilhado entre pares,além de possibilitar a construção e organização de conhecimentos. A verbalização decada educando possibilitou diagnosticar a sua apreensão do conhecimento e desen-volver uma atitude questionadora, autônoma e independente, ao constituir em umimportante índice de aprendizagem auxiliando no monitoramento da eficácia do pro-cesso de ensino-aprendizagem. Outro fator constatado nas entrevistas é que a utilização de músicas familiares no re-pertório a ser desenvolvido torna-se mais significativa para o aprendizado. Neste con-texto, estudos realizados pelo Conselho Nacional de Pesquisas dos Estados Unidos(2008), argumentam que a aprendizagem melhora quando os professores dão atençãoao conhecimento e às crenças trazidas pelos alunos para a sala de aula. Quando uti-lizados como ponto de partida para a nova instrução estes monitoram as mudançasde concepção dos alunos à medida que esta instrução evolui. Neste sentido, das 04peças selecionadas, as familiares foram apreendidas com maior facilidade entre osparticipantes.Todavia, além dos resultados alcançados em cada abordagem, notou-se que todo o

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processo percorrido para identificar as formas favoráveis de aprendizagem de cadaeducando é que garantem o desenvolvimento musical e a conscientização docentequanto aos processos educacionais variados entre os educandos, visto que as suas fa-cilidades de aprendizagem foram intensificadas. Diagnosticar o processo de apren-dizagem de cada educando oportuniza o desenvolvimento de metodologias eestratégias didáticas personalizadas.

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A musicoterapia na intervenção precoce: uma experiência com crianças deficientes visuais

Elvira Alves dos [email protected]

Claudia Regina Oliveira [email protected]

Luana Anastácia Torres [email protected]

Priscileny Sales [email protected]

Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás

Resumo Este trabalho apresenta um relato de experiência clínica durante o estágio supervi-sionado de acadêmicas do Curso de Musicoterapia (graduação) em um centro de re-ferência para atendimento de deficientes visuais. Busca-se evidenciar a contribuiçãodo musicoterapeuta, inserido como um profissional participante de uma equipe mul-tiprofissional que atua na intervenção precoce. Foram considerados doze atendimen-tos realizados com dois pacientes diagnosticados com deficiência visual, participantesde um grupo de seis crianças, atendido semanalmente, em sessões de noventa mi-nutos, por equipe multiprofissional composta por: educador físico, psicóloga, musico-terapeuta e estagiários. Também participavam os cuidadores. O paciente G., do sexomasculino, tinha dois anos e R., do sexo feminino, tinha três anos. Os dados foramcoletados por meio de entrevista inicial, leitura de prontuários, relatórios das sessõese, para avaliar o processo, devolutiva ou feedback, realizada com pais ou responsáveis.O principal objetivo do processo musicoterapêutico foi desenvolver capacidades sen-soriais, psicomotoras, sociais e afetivas, visando o desenvolvimento cognitivo musicale, principalmente, o social. Os recursos utilizados foram instrumentos de percussão,violão, voz e aparelho de som. Inicialmente os pacientes tinham muitas dificuldadesem participar das atividades, demonstrando resistência, irritabilidade, baixa tolerânciaà frustração, dificuldade de interação e falta de empatia com os profissionais. Duranteos atendimentos, os profissionais buscavam desenvolver as capacidades das criançasvisando auxiliar nos relacionamentos interpessoais, na aquisição de normas sociais eno desenvolvimento da capacidade afetiva. As principais ações das estagiárias e damusicoterapeuta foram a utilização das canções e dos instrumentos musicais, utiliza-dos com distintas funções terapêuticas, conduzidas no decorrer do processo. Consi-dera-se que a Musicoterapia contribuiu: para melhorar a relação terapêutica entrepacientes e equipe multiprofissional; para a participação efetiva nas atividades; e,para maior interação com os outros membros do grupo, favorecendo a cognição sociale contribuindo para evidenciar seu papel de “atores em construção”.

Palavras-ChavesMusicoterapia, Intervenção Precoce, Deficiência Visual

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IntroduçãoEste trabalho apresenta um relato de experiência clínica durante o estágio supervi-sionado de acadêmicas do Curso de Musicoterapia (graduação). Tem como principalobjetivo relatar a experiência de dois casos atendidos em um centro de referênciapara atendimento de deficientes visuais, no qual se evidencia a contribuição da Mu-sicoterapia inserida em uma equipe multiprofissional. A Deficiência Visual pode ser definida como uma “limitação sensorial capaz de anularou reduzir a capacidade de ver, abrangendo vários graus de acuidades visuais” (Mor-gado et al. 2010). A partir do nascimento, a criança sofre profundas modificações, passando de umacondição de total dependência, controlada apenas por movimentos reflexos, até setornar um ser independente com desejos próprios. Estas modificações se dão princi-palmente nas áreas motora, sensorial e psíquica. A criança cega apresenta um altorisco em seu desenvolvimento; uma vez que 80% das informações são recebidas pelavisão, o déficit visual dificulta a troca com o meio. Assim, compreende-se a impor-tância da estimulação, visto que a mesma contribuirá para o desenvolvimento cog-nitivo de uma forma ampla (Figueira, s/d). Para Najavas e Caniato (2003, 2), a estimulação precoce é “um conjunto de processospreventivos e/ou terapêuticos para assegurar à criança um melhor intercâmbio como meio em que vive durante a primeira infância”. Segundo Gagliardo e Nobre (2001),a intervenção precoce é um recurso precioso para o desenvolvimento da criança de-ficiente visual, é um processo que se estabelece com a parceria entre médicos, tera-peutas e a família. Von Baranow (1999, 10) afirma que “em Musicoterapia utilizamos os efeitos da mú-sica nos seres humanos nos níveis físico, mental, emocional e social, como facilitadorda expressão, dos movimentos e sentimentos, estimulando o aprendizado, a mobili-zação e a organização interna que permitam ao individuo uma evolução.”

Relato de Experiência e DiscussãoForam considerados doze atendimentos realizados com dois pacientes diagnosticadoscom deficiência visual, participantes de um grupo de seis crianças, atendido sema-nalmente por equipe multiprofissional composta por: educador físico, psicóloga, mu-sicoterapeuta e estagiários. O paciente G., do sexo masculino, tinha dois anos e R., dosexo feminino, tinha três anos. Os dados foram coletados por meio de entrevista ini-cial, prontuários, relatórios e, para avaliar o processo, devolutiva ou feedback, realizadacom pais ou responsáveis. O objetivo geral do processo musicoterapêutico foi o de desenvolver capacidades sen-soriais, psicomotoras, sociais e afetivas, visando o desenvolvimento cognitivo musicale, principalmente, o social. A re-criação (Bruscia 2000) foi a experiência musical maisutilizada. Nela, o paciente reproduz uma música ou trecho, cantando ou tocando uminstrumento. Os recursos utilizados foram instrumentos de percussão, violão, voz eaparelho de som.

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Inicialmente os pacientes G. e R. tinham muitas dificuldades em participar das ativi-dades, demonstrando resistência, irritabilidade, baixa tolerância à frustração, difi-culdade de interação e falta de empatia com os profissionais. Segundo a equipe, essescomportamentos eram apresentados pelo forte vínculo de G. com a mãe, dificultandoassim a formação do vínculo com outras pessoas e a oscilação de humor e falta de li-mites de R., que ao se sentir contrariada, dava “birras” durante o atendimento.Segundo Gagliardo e Nobre (2001), o vínculo entre mãe-bebê é um dos primeiros as-pectos que podem ser afetados no desenvolvimento de crianças deficientes visuais. Onascimento da criança deficiente gera uma série de mudanças nas relações familiarese os sentimentos mais freqüentes são os de negação, rejeição, culpa e superproteção. Segundo Legarda e Miketa (2008), a estimulação precoce visa o desenvolvimento dascapacidades sociais, que deverá ajudar o paciente nos relacionamentos interpessoaise na aquisição de normas sociais e no desenvolvimento da capacidade afetiva, que visalevar a criança a se expressar de um modo espontâneo e a desenvolver a autonomia.Durante os atendimentos, os profissionais buscavam desenvolver essas capacidades,a partir de atividades tais como: dança e manuseio de instrumentos, expressão cor-poral, contos sonoros e musicais, que exploravam conteúdos do cotidiano das crianças,como alimentação, escovação, etc. O repertório de músicas infantis visava também odesenvolvimento motor. As canções mais utilizadas eram: “Cabeça, ombro, Joelho ePé”, “Eu danço o Poch”, “Meu lanchinho”, música de boas vindas e de despedida. O violão, utilizado pela musicoterapeuta, funcionou como objeto integrador que, se-gundo Benenzon (1985, 49), é o “instrumento que em grupo lidera sobre os demaisinstrumentos e absorve a dinâmica de um vínculo”. Geralmente os pacientes associa-vam o inicio das atividades ao seu som e pediam para se sentar ao lado da musicote-rapeuta por causa do instrumento. Apenas em um atendimento o violão não estevepresente. Nele, tanto as crianças como os cuidadores e terapeutas, tocaram os instru-mentos percussivos, mas era possível observar que nesse tocar não tinha a mesmaintensidade e motivação que havia com a utilização do violão. Entendemos que o ins-trumento foi importante para estabelecer o vínculo entre os membros do grupo. O paciente G., geralmente, não participava efetivamente dos atendimentos, ficandosempre no colo da mãe. Aos poucos, foi sendo estimulado a participar das atividadesque eram desenvolvidas. O violão era o instrumento que mais chamava sua atenção,sendo o objeto intermediário. Segundo Benenzon (1985, 47), “objeto intermediárioé um instrumento de comunicação capaz de atuar terapeuticamente sobre o pacientemediante a relação.” Após ganhar de seu pai, um violão de brinquedo, G. passou alevá-lo para os atendimentos e tocava ao lado da musicoterapeuta. Também começoua se relacionar com os outros profissionais, participando das experiências musicais eatividades propostas. Com o decorrer do processo, nessa construção de vínculo comos profissionais e com o grupo, a criança conseguiu participar efetivamente dos aten-dimentos, chegando a se deslocar pelo espaço da instituição, sem a presença da mãe,por um tempo significativo.Quanto ao outro paciente (R.), elegia geralmente o tambor, demonstrando assim tra-

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ços de liderança (Benenzon, 1985). Comumente evitava compartilhar instrumentos.Embora explorasse outros instrumentos, não permitia que nenhuma outra criançatocasse o tambor. Ao terminar as atividades musicais, R. se recusava a entregar osinstrumentos e a participar de outras atividades, quando chorava e se debatia no chãoda sala. A mãe foi instruída pela psicóloga a ignorar as “birras”. No decorrer dos aten-dimentos R. passou a participar ativamente das atividades, principalmente as musicais,pulando, tocando e dançando. Nos últimos atendimentos já não se irritava. Ramires (2003) afirma que a “cognição social reconhece a criança ativa e interativa,atribuindo a ela um papel construtivo no seu desenvolvimento. Mais do que uma re-ceptora de inputs sociais, essa criança é um ator pensante no mundo das pessoas”.(p.404) Percebeu-se, nos dois casos atendidos, que as atividades musicais evidencia-ram esse papel de “atores em construção”.

Considerações FinaisA música pode ser um agente socializante e sua utilização em grupo tende a unir aspessoas, ou seja, a formar vínculos, propiciando a expressão de sentimentos. SegundoBlasco (1999), a música provoca e favorece a expressão, sem necessidade de palavras.Neste estudo foi possível observar a importância das experiências musicais (Bruscia,2000). As intervenções da musicoterapeuta e das estagiárias facilitaram a construçãode vínculos, que nesse caso foi o diferencial do processo terapêutico para que as crian-ças pudessem desenvolver suas capacidades afetivas, sociais e cognitivas. A Musico-terapia, portanto, contribuiu para melhorar a relação terapêutica entre pacientes eequipe multiprofissional; para a participação efetiva nas atividades; e, para maior in-teração com os outros membros do grupo, favorecendo a cognição social.

ReferênciasBenenzon, R. O. Manual de Musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros, 1985.Blasco, S.P. Compêndio de Musicoterapia. Barcelona, 1999.Bruscia, Keneth E. Definindo Musicoterapia. Trad. Mariza V. F. Conde. 2. ed. Rio de Janeiro:

Enelivros, 2000.Figueira, M. M. A. Assistência fisioterapia à criança portadora de cegueira congênita.

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flexão e crítica 16, n.2 (2003): 403-410. http://www.scielo.br/pdf/prc /v16n2/a20v16n2.pdfVon Baranow, A. L. Musicoterapia: Uma visão geral. Rio de Janeiro: Enelivros, 1999.

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Humanizando por meio dos sons: a musicoterapia melhorandoa qualidade de vida de crianças e adolescentes

em tratamento de câncerJéssica do Carmo Rivas

[email protected] São Salvador

Lídia Fidelina dos [email protected]

Rosângela Silva do [email protected]

Universidade Federal da Bahia

Resumo O tratamento do câncer é considerado invasivo e seus efeitos costumam comprometero bem-estar físico e emocional dos pacientes. Este artigo tem como objetivo apre-sentar um relato de experiência de estágio em musicoterapia, realizado no Núcleode Apoio e Combate ao Câncer Infantil (NACCI), localizado em Salvador, Bahia. To-mando como pressupostos teóricos autores como Montenegro e Bruscia, a partir detécnicas e práticas musicoterápicas, foram realizadas sessões de musicoterapia comcrianças e adolescentes oncológicos, visando contribuir com a melhoria da qualidadede vida dos mesmos. A realização de atividades musicais gera ativações cerebrais re-queridas em práticas tais como escutar e cantar canções, tocar instrumentos, identi-ficar e reproduzir ritmos. Dessa forma, acredita-se que, envolvidos nessas atividades,os pacientes além de desviar o foco de sua atenção da doença para algo prazeroso,conseguirão experimentar a música de forma significativa tanto do ponto de vista fí-sico e afetivo quanto do cognitivo o que poderá contribuir para a promoção de seubem-estar. O trabalho discute algumas políticas públicas de combate ao câncer in-fanto-juvenil e a função da humanização no ambiente hospitalar, no sentido de com-preender o homem como um ser biopsicossocial. Os procedimentos metodológicosenvolveram entrevista informal e registros das falas dos pais e acompanhantes. Aexperiência de estágio resultou na melhoria da qualidade de vida dos pacientes, ob-servada nos sorrisos, na interação com as musicoterapeutas e colegas, nos movimen-tos corporais livres e criação de coreografias para as canções. Observou-se tambéma necessidade de disponibilizar informações para a sociedade sobre a importância damusicoterapia e, com base nas políticas públicas de humanização, pleitear o acessode musicoterapeutas em hospitais de Salvador.

Palavras-chaveMusicoterapia; Câncer; Qualidade de vida

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Introdução No Brasil, o combate ao câncer infantil tem sido uma luta dos profissionais da áreade saúde, visando encontrar formas mais eficazes de cura, bem como implementarações específicas do setor de saúde que possam contribuir para detectar a existênciada doença em tempo hábil. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), “estima-se que em torno de 70% das crianças acometidas de câncer podem ser curadas, sediagnosticadas precocemente e tratadas em centros especializados” (Brasil 1996-2010).O câncer é formado por células com defeito no fuso mitótico, que crescem sem res-peitar os limites normais, invadindo e danificando tecidos adjacentes. É uma dasdoenças que mais mata no Brasil, principalmente quando forma metástase1, pois, nãotem um sintoma especifico, mas, desconfortos em alguma parte de corpo ou doresde cabeça intensa, dependendo de onde ele esteja localizado.A transformação de célula normal em cancerosa se dá por alteração de seu DNA, coma participação de vírus, substâncias químicas do ambiente ou da alimentação e agen-tes físicos como certo tipo de radiação. Atualmente são conhecidas mais de 200 mo-léculas cancerígenas. A única propriedade comum a todos os cancerígenos é acapacidade de causar dano ao genoma celular (Montenegro 2006).Inicialmente se chamava de tumor, qualquer aumento de volume localizado em umórgão (inchaço), independentemente da causa ou resultado de alguma inflamação.Com os avanços na medicina, o termo utilizado para designar a proliferação celularpassou a ser neoplasia, denominação considerada mais adequada, que significa novocrescimento. Existe uma diversidade de nomes dados para cada tipo de câncer. Tu-mores originados de tecido conjuntivo são chamados de carcinoma, tumores malig-nos (câncer); tumores originados de célula epiteliais secretoras recebem o nome deadenomas, quando são benignos. A diferença é que, quando o tumor é maligno ouestá em local de difícil acesso, ou irrigado por vários vasos sanguíneos, ele é chamadode câncer devido a dificuldade de realizações cirúrgicas, sendo necessárias sessõesde radioterapia ou quimioterapia. Já em caso de tumores benignos a retirada podeser feita sem causar lesões a outros tecidos (Carvalho 1993).Por se tratar de uma patologia que afeta grande número de crianças e adolescentes,cujo tratamento é considerado invasivo e seus efeitos costumam comprometer o bem-estar físico e emocional dos pacientes, o objetivo deste trabalho é apresentar a musi-coterapia como uma intervenção auxiliar, no sentido de melhorar a qualidade de vida

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1 Metástase é a formação de uma nova lesão tumoral (cancerígena), a partir da primeira, porém,sem continuidade entre as duas. No caso do intestino, por exemplo, uma vez instalado, o câncerem metástase se expande pelo corpo atingindo tecidos normais do hospedeiro. Dessa forma,o processo de metástase depende da interação entre as células malignas, onde essa célula can-cerosa migra de um lugar pra outro através dos vasos sanguíneos e linfáticos, e, ao chegar aum determinado tecido, se instala sendo rapidamente vascularizada ao receber nutrientes dosvasos sanguíneos (Montenegro, 2006).

dessa clientela. Como afirma Bruscia (2000, 205), “[…] a música e a relação cliente-terapeuta são necessárias e utilizadas igualmente para abordar necessidades signifi-cativas do cliente durante um longo período de tempo.” Para tanto, foi utilizada umadas áreas da musicoterapia, a saber, a recreativa, que por sua vez,

[…] inclui todas as aplicações da música ou da musicoterapia em que o foco pri-mário é o prazer pessoal, a diversão ou o engajamento em atividades sociais e cul-turais. Isso inclui programas individuais, comunitários e institucionais que buscamajudar os indivíduos a se engajar em atividades sociais e de lazer que irão melhorara qualidade de vida (Bruscia 2000, p. 169).

Pretendeu-se, proporcionar aos pacientes momentos de felicidade e bem-estar a partirde sua identidade sonora, uma vez que, através da música é possível buscar uma formade desviar o foco da doença para um universo sonoro que lhes afeta e toca (Sloboda1989). Segundo Correia (2006, 1), estudos apontam para a “existência de interaçõesneurais que provocam as reações humanas ao estímulo musical, mostrando que nos-sos cérebros têm circuitos distintos para perceber, processar e tocar música”.A evocação afetiva que a música de forma inusitada, intensa e inesperada suscita noser humano, relacionada ao sistema límbico, tem acesso direto à afetividade. SegundoCorreia e Campos,

A música, mais que qualquer outra arte, tem uma representação neuropsicológicaextensa. Por não necessitar […] de codificação lingüística, tem acesso direto à afe-tividade, às áreas límbicas, que controlam nossos impulsos, emoções e motivação(2000, 72).

Assim, práticas musicais utilizadas em sessões musicoterápicas tais como cantar can-ções, ler partituras, compor, tocar instrumentos dentre outras, ao serem realizadas,além de acionar atividades do cérebro, podendo contribuir para seu bom desenvol-vimento, acessa diretamente a afetividade, proporcionando ao paciente experiênciasignificativa e terapeutica a partir das atividades musicais. Nesse sentido, conside-rando as dificuldades vividas por estes pacientes, pretendeu-se proporcionar-lhesmelhor qualidade de vida e alternativas de superação, por meio de sons, músicas ins-trumentais e canções, considerando o poder que a música tem de afetar o ser hu-mano.

Ações voltadas para a humanizaçãoConsiderando que, ao ser internado, cada paciente leva consigo aquilo que é propria-mente seu, que ele não é só um corpo, mas sim, um ser integral, e ainda levando emconta as especificidades do processo do adoecer, no caso em questão, o câncer, a im-plantação de ações no sentido da humanização tem sido requerida no espaço hospi-talar, como é o caso do PENAH2 que tem como um de seus objetivos promover aatenção integral à população (Brasil 2001). No setor pediátrico, essa humanização está recebendo atenção especial pelo fato deas “[…] crianças serem muito frágeis e precisarem de cuidados extras” (Matos 2009,

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2 Programa de Humanização da Assistência Hospitalar

136). Profissionais da área da saúde têm compreendido a necessidade de desenvolverum trabalho multidisciplinar. Assim, no espaço hospitalar “estão sendo incluídos […] médicos, assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, enfermeiros, familiares, volun-tários, artistas, arte-educadores, palhaços, musicoterapeutas […]” (Matos 2009, 136). Dessa forma será possível adicionar o foco psicossocial ao biomédico proporcionandouma visão holística do indivíduo o que poderá

[…] modificar aqueles fatores mentais, emocionais, sociais ou espirituais que con-tribuem para o problema biomédico ou oferecer formas de apoio psicossocial aocliente, ao longo do curso de uma doença, de um tratamento médico ou na con-valescência (Bruscia 2000, 201).

Nessa perspectiva, Gallichio (2001, 82) afirma que “a musicoterapia vê o ser humanocomo um todo, onde corpo e mente, psiquê e soma, matéria e espírito formam umtodo indivisível.”

A experiência na casa de apoioO estágio foi realizado por duas musicoterapeutas atendendo cinco meninos e onzemeninas entre 6 e 17 anos de idade. Realizou-se uma entrevista informal com os res-ponsáveis pela instituição e uma ficha musicoterápica foi preenchida pelos pacientes.Considerou-se, ainda, falas de pais e acompanhantes sobre o diagnóstico informadopelos médicos. As sessões aconteceram duas vezes por semana, em dias e horáriosfixos, com duração de 45 minutos, onde foram atendidos individualmente, ou emgrupos de dois ou três pacientes, organizados por faixa etária. Todas as sessões iniciavam com a execução de uma música tocada por violão e flautatransversal ou MP4, depois eram executadas canções com participação coletiva se-guida de improvisação, onde eles escolhiam o que queriam tocar podendo trocar deinstrumentos a qualquer momento caso desejassem. Enquanto experimentavam etocavam, as musicoterapeutas interagiam com eles estimulando a auto-expressão ecriatividade, promovendo momentos de bem-estar, felicidade e socialização. Em uma das sessões, um paciente comentou: Amanhã eu já vou embora pra minhacasa. A musicoterapeuta iniciou um diálogo musicado, perguntando melodicamente:Onde é? E ele, musicalmente respondeu: Em Coité, e sorriu quando percebeu quehavia rimado. A partir daí houve a continuação de um extenso diálogo entre os dois,onde perguntas e respostas foram realizadas melodicamente. Foi um momento muitorico, principalmente, porque ele emocionou-se bastante ao falar de um amigo quehavia deixado por lá, de sua “egüinha” e de seus familiares. Nas sessões dos adolescentes, após o momento inicial, seguia-se o acompanhamentoe a análise das letras, bem como prática de presentear, banho sonoro, dentre outras.Em uma das sessões após escutar e cantar a canção “Feminina”, de Joyce, ao perguntara uma paciente qual a parte da canção de que ela mais gostou, ela respondeu: Não éno cabelo, no dengo ou no olhar. É ser menina por todo o lugar. Ao perguntar o porquê,ela disse: É porque não importa o cabelo. E eu sou uma menina. Esta paciente identi-ficou-se com a canção que a ajudou a elevar sua auto-estima, pois entendeu que pode

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ser feminina a despeito da ausência de cabelo. A demonstração de entusiasmo destapaciente como também a conclusão que chegou a partir da compreensão do sentidoda letra, confirmou que a musicoterapia pode contribuir no sentido de promoverbem-estar e melhoria da qualidade de vida de pacientes oncológicos.

Considerações finaisMuito tem sido feito no sentido de combater o câncer infantil e no caso específico, amusicoterapia contribuiu de forma eficaz para o resultado positivo do trabalho. Estaresposta foi dada pelas próprias crianças e adolescentes e observada nas expressõese sorrisos deles, na interação de forma divertida, e prazerosa com colegas e musico-terapeutas, na participação efetiva e criação espontânea de coreografias para as can-ções, o que resultou no bem- estar observado logo após as sessões.Essa experimentação pode ser compreendida e validada por meio de algumas falasdos pacientes que merecem ser destacadas: Tia, depois dessa, você canta uma músicapra mim? Mas, tem que ser uma bem grande pra demorar de acabar. Outro disse: Vocêscantaram essa música e eu fiz uma viagem lá pra minha casa, na roça… Nesse sentido a musicoterapia, mais uma vez, contribuiu para a melhoria da qualidadede vida de pacientes funcionando como uma terapia auxiliar no tratamento desta pa-tologia. Após a observação dos resultados obtidos, pretende-se ampliar a discussão nosentido de informar a sociedade sobre a relevância e função da musicoterapia, pro-movendo o acesso de musicoterapeutas nos hospitais de Salvador e conscientizandoas autoridades para a importância da musicoterapia como terapia auxiliar na área clí-nica.

ReferênciasBrasil. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar Ministério da Saúde Se-

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Janeiro: Enelivros, 2000.Carvalho, G. Citologia oncológica. São Paulo: Atheneu, 1993.Correia, CMF; Campos, CJR. 2000. Revista Neurociências 8 nº2: 70-75. http://bit.ly/gPvgk4Correia, CMF. “Musicoterapia e Neurociência”. Palestra no XII Simpósio Brasileiro de Musico-

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polis: Ed. Vozes, 2009.Montenegro, Mário R. Patologia: processos gerais. 4ª Ed. São Paulo: Ateneu, 2006.Sloboda, John. The Musical Mind: the cognitive psychology of music. Oxford: Claredon Press,

1989.

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Motivação para aprender um instrumento musical na vida adulta: um estudo em andamento

Andréa Matias [email protected]

ResumoEsse trabalho apresenta uma pesquisa em andamento que tem como objetivo prin-cipal compreender os processos motivacionais de alunos de instrumento que iniciaramseus estudos na fase adulta da vida. A pesquisa é um trabalho de conclusão do cursode Licenciatura em Música da UFPB e será realizado com alunos matriculados nasprincipais escolas de música da rede pública e privada da cidade de João Pessoa - PB.Com o objetivo de identificar os principais motivos que levaram adultos a iniciar edar continuidade aos seus estudos de música, assim como verificar quais as suas ex-pectativas em relação às aulas de instrumento, pretende-se refletir acerca do papelda motivação para o aprendizado de um instrumento musical na fase adulta. A pri-meira parte deste trabalho revisa os conceitos de motivação para aprendizagem;orientações motivacionais intrínseca e extrínseca, assim como as crenças de autoefi-cácia. Posteriormente, são apresentados os objetivos e a metodologia da pesquisaem andamento e, por fim, serão apontadas conclusões e implicações preliminares.

IntroduçãoO presente trabalho apresenta uma pesquisa em andamento que tem como objetivoprincipal compreender os processos motivacionais que levam adultos a iniciar e con-tinuar o estudo de um instrumento. Participarão do estudo alunos com uma faixaetária acima de 30 anos, que estudam instrumento nas principais escolas de músicatanto da rede pública quanto particular da cidade de João Pessoa, no estado da Pa-raíba.Tendo em vista o aumento da procura pelo estudo de instrumento musical por pes-soas adultas, e do entendimento da motivação como um dos principais determinantesdo êxito e da qualidade da aprendizagem (Guimarães 2001; Boruchovicth 2001), acre-ditamos ser de grande importância compreender quais as expectativas destes adultos,bem como os motivos que os impulsionaram a iniciar e permanecer em seus estudosde um instrumento musical.Nesse sentido, refletir sobre a maneira como acontece o ensino de instrumento comadultos, descobrir os motivos pelos quais desejam continuar aprendendo e estudandomúsica, assim como investigar quais são as principais expectativas e dificuldades en-contradas por eles durante todo o processo de ensino e aprendizagem musical, pos-sibilitará uma maior compreensão e clareza acerca da relevância dos processosmotivacionais no âmbito da aprendizagem da música na maturidade.O estudo da motivação, como componente de fundamental importância no desen-

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volvimento das mais variadas atividades humanas, tem sido desenvolvido por dife-rentes autores das áreas da Educação e da Psicologia, tais como Guimarães (2001);Bzuneck (2001; 2010); Boruchovitch (2001); Azzi & Polydoro (2010); entre outros.Esses autores concordam com definição de Bzuneck (2001), que entende a motivaçãocomo um conjunto de fatores psicológicos, ou como um processo, que assegura aconstância e o direcionamento da atenção no desenvolvimento das atividades reali-zadas.Dentre os pesquisadores que desenvolveram estudos sobre motivação e música, po-demos citar alguns autores brasileiros como Araújo & Pickler (2008), Cavalcanti(2009), Albuquerque (2010), Pizzato (2009), Vilela (2009), Zerbinatti (2009), Figuei-redo (2010), Galvão (2006), Mateiro (2007), dentre outros. Esses estudos têm reveladoresultados que podem auxiliar educadores musicais e pesquisadores a compreendero grau de envolvimento ativo dos alunos nas tarefas musicais realizadas, bem comorefletir acerca de seus resultados sobre as atividades realizadas.

Motivação intrínseca e extrínsecaA motivação vem sendo abordada por diversos autores (Bandura apud Bzuneck 2001;Guimarães 2001; Bzuneck 2010; Boruchovicth 2001) como um processo ou como umconjunto de fatores psicológicos que levam o indivíduo a iniciar um comportamentodirecionado a uma finalidade.Os estudos sobre motivação têm demonstrado a existência de duas orientações mo-tivacionais: a intrínseca e a extrínseca (Guimarães 2001; Bzuneck, 2001; Borucho-victh, 2001). Como explica Guimarães (2001), a motivação intrínseca

[…] refere-se à escolha e realização de determinada atividade por sua própriacausa, por esta ser interessante, atraente ou, de alguma forma, geradora de satis-fação. Tal comprometimento com uma atividade é considerado ao mesmo tempoespontâneo, parte do interesse individual, e autotélico, isto é, a atividade é um fimde si mesma (Guimarães 2001, 37).

Deste modo, a participação em uma determinada atividade é o principal objetivo, ouseja, a motivação intrínseca configura-se como uma tendência para buscar novas ati-vidades e desafios. O indivíduo realiza determinada atividade por considerá-la inte-ressante ou divertida, é uma orientação motivacional que tem por característica aautonomia do aluno em relação a sua aprendizagem.Já a motivação extrínseca tem sido definida como a motivação para trabalhar em res-posta a algo externo à tarefa com a finalidade de atender solicitações ou pressões deoutras pessoas, ou de demonstrar competências e habilidades. Um exemplo desta res-posta é o engajamento em determinada atividade como forma de obtenção de recom-pensas externas, materiais ou sociais (Guimarães 2001; Bzuneck 2001; Boruchovicth2001; Neves; Boruchovicth 2004).

Crenças de autoeficáciaAo se perguntar se é capaz de realizar uma determinada atividade, o indivíduo está

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se questionando acerca das suas crenças de autoeficácia em relação a algo. Bandura(1986 apud Bzuneck 2001, 116) define-as como “julgamentos das pessoas em suascapacidades para organizar e executar cursos de ação requeridos para alcançar de-terminados tipos de desempenho”. Ou seja, trata-se de uma avaliação ou percepçãopessoal do seu próprio desempenho em uma determinada tarefa.Os estudos de Bandura (1986 apud Bzuneck 2001) evidenciaram que as pessoas comum elevado índice de autoeficácia acreditam ser capazes de lidar com os diversosacontecimentos da sua vida. Estas pessoas imaginam-se capazes de ultrapassar obs-táculos, procuram desafios e persistem para vencê-los.Por outro lado, as pessoas com baixos índices de autoeficácia tendem a sentirem-seinúteis e desconfiam de sua capacidade para ultrapassar obstáculos. Estas pessoastendem a desistir facilmente quando encontram um obstáculo, por não acreditaremque a sua atitude faça diferença (Bzuneck 2001; Cavalcanti 2009).As crenças de autoeficácia de alunos ou profissionais da música também são de fun-damental importância, tendo em vista que muitas vezes músicos se encontram emsituações nas quais precisam, por exemplo, executar um repertório com certo graude dificuldade, ser avaliados ou apresentar-se para uma platéia. Nesse sentido Caval-canti (2009) explica que, mesmo tendo obtido as competências necessárias para umdesempenho satisfatório “os instrumentistas com baixas crenças em suas capacidadespodem antecipar uma situação de fracasso, demonstrando vulnerabilidade e alto nívelde estresse e ansiedade” (Cavalcanti 2009, 94).Durante todo o processo de aprendizagem, a confiança do aluno em suas própriascapacidades pode ser de extrema importância no que se refere à qualidade do seu de-sempenho e/ou até para a continuidade do seu processo de aprendizagem musical.Como explicam Pajares e Olaz (2008 apud Cavalcanti 2009, 93) “o indivíduo que con-fia em suas capacidades persiste diante das dificuldades, procura esforçar-se o sufi-ciente para atingir seus objetivos e, geralmente, alcança um bom resultado”.

ObjetivosEste trabalho pretende compreender os processos motivacionais de alunos de instru-mento que iniciaram seus estudos na fase adulta da vida. Para isso, será realizado umlevantamento desses alunos, visando identificar quais motivos os levaram a iniciar edar continuidades aos seus estudos de música, bem como verificar quais as suas ex-pectativas em relação às aulas de instrumento. Além disso, pretende-se refletir acercado papel da motivação para o aprendizado de um instrumento na fase adulta.

MetodologiaPara investigar os principais processos motivacionais de adultos estudantes de ins-trumento, o presente estudo pretende realizar um estudo de levantamento e um pe-queno estudo de caso. Para tanto, serão aplicados questionários com o maior númeropossível de alunos de instrumento, matriculados nas principais escolas de música

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tanto da rede pública quanto privada da cidade de João Pessoa. Posteriormente serãorealizadas entrevistas com parte dos alunos, escolhidos a partir dos seguintes critérios:1) aceitar participar da pesquisa; 2) estar de acordo em gravar as entrevistas realiza-das; 3) estar na faixa etária acima de 30 anos; 4) ter iniciado os estudos de instrumentona fase adulta; 5) estudar o instrumento há mais de um ano.Diante das delimitações da pesquisa, os instrumentos de coleta de dados determina-dos foram: questionários e entrevistas. Os questionários serão realizados com o ob-jetivo de fazer um levantamento dos alunos de instrumento que iniciaram seusestudos na vida adulta, matriculados nas principais escolas de música da cidade deJoão Pessoa e colher as informações iniciais, para posteriormente realizar as entre-vistas que serão gravadas e transcritas, coletando depoimentos e informações queevidenciem quais os processos motivacionais inseridos no processo de aprendizagem,bem como as principais expectativas e dificuldades encontradas.Deste modo, os procedimentos de organização e análise dos dados serão a descriçãoe análise dos principais processos e situações captadas nos questionários; a ediçãodas gravações de áudio, selecionando os trechos mais relevantes para o processo deanálise; a realização de transcrições textuais e a análise dos relatos e depoimentosorais obtidos a partir das entrevistas realizadas, e por fim, a análise e entrecruzamentodos dados obtidos durante a pesquisa.

Conclusões e implicações preliminaresA pesquisa encontra-se em andamento, no entanto, uma análise preliminar da fun-damentação teórica deste estudo sugere que, os professores podem e devem explorara força motivacional advinda da motivação intrínseca, destacando o esforço pessoalcomo um valor importante, tirando o foco dos alunos das recompensas vindas apenasdas notas, das premiações, da comparação do desempenho, entre outras, que figuramcomo motivações extrínsecas. O ensino e a utilização adequada de estratégias deaprendizagem têm contribuído para ajudar o aluno a aprender, a processar, a arma-zenar e a utilizar melhor o conhecimento. Apresentar desafios, promover curiosidades,diversificar planejamentos de atividades, compartilhar decisões, são exemplos de es-tratégias de aprendizagem favoráveis à motivação dos alunos e de fácil implementação.A partir daí, é possível concluir que toda forma de ensino deve propiciar aos alunoso desenvolvimento tanto das reais competências, quanto das crenças de que as pos-suem. Deste modo eles terão mais motivação para aprender, continuar aprendendoe, consequentemente, para desenvolver um maior controle sobre os seus própriosprocessos de aprendizagem, levando o aluno a vislumbrar que a aprendizagem mu-sical, e de qualquer outra área, ocorrerá de forma mais eficaz se a motivação adequadapara aprender for estimulada nos alunos.

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Departamento de Música - Instituto de ArtesPrograma de Pós-Graduação Música em Contexto

Comissão Organizadora Ricardo Dourado Freire (UnB) - Coordenação Geral

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