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Universidade Estadual de Campinas – 6 a 12 de março de 2006 9 Universidade Estadual de Campinas – 6 a 12 de março de 2006 8 CAPÍTULO 4 CAPÍTULO 5 CAPÍTULO 6 Zeferino Vaz, como interventor na UnB, recebe visita do embaixador Lincoln Gordon: 15 meses produtivos e contraditórios Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp O Ary de Arruda Veiga, Roberto Franco do Amaral e Eduardo Barros Pimentel: vitória dos “generais” Luso Ventura, editor-chefe do Diário do Povo: 200 artigos em defesa da faculdade Antonio Augusto de Almeida, o primeiro diretor Walder Hadler, o primeiro docente contratado Tanque nas ruas em abril de 1964: em artigo, Zeferino Vaz justifica porque “um pacífico homem de ciência” foi compelido a buscar a derrubada de um estado de direito Primeira turma de formandos da Medicina, em 1968: primeiro vestibular teve 1.654 candidatos para 50 vagas Antonio Barros de Ulhoa Cintra profere aula solene de instalação da Faculdade de Ciências Médicas Notícia de mesa-redonda em favor da Faculdade de Medicina e logotipo autografado por Carvalho Pinto EUSTÁQUIO GOMES [email protected] azedume do Diário do Povo para com Zeferino não era novo. Remontava a 1956, quando ele era diretor da Fa- culdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, escola funda- da por ele em 1951. Já figura influente nas es- feras de decisão sobre assuntos de educação superior, Zeferino colocou-se publicamente contra um projeto caro aos campineiros: do- tar Campinas de uma faculdade de medicina que fosse igual ou melhor que a sua. A campanha do jornal pela instalação des- sa escola na cidade começou em 1946 atra- vés de um artigo de seu editor-chefe Luso Ventura. Até à época do entrevero com Zeferino, Luso, poeta à antiga e polemista apaixonado, já havia escrito mais de 200 ar- tigos sobre o assunto. Seus argumentos tra- duziam o anseio dos médicos da cidade e das famílias que tinham filhos cursando escolas de medicina em outros centros. Se Ribeirão Preto, que era uma cidade menor e economi- camente menos importante, tinha o privilé- gio de contar com uma faculdade de medici- na, por que não Campinas? Mas Zeferino, um pioneiro do ensino mé- dico no interior paulista, achava que a rota de interiorização devia passar por outros ca- minhos. Ele se dizia inteiramente a favor de uma nova escola de medicina fora do eixo paulistano, mas não exatamente em Cam- pinas. Defendia que as escolas de medicina não deviam ficar próximas umas das outras, e que Campinas tinha contra si o fato de estar a menos de cem quilômetros da Capi- tal. Foi o bastante para inflamar o ânimo dos campineiros. — Parece claro que o projeto da Faculda- de de Medicina de Campinas tem um inimigo acérrimo, e infelizmente para nós podero- so, no professor Zeferino Vaz – constata o otorrinolaringologista Paulo Mangabeira Albernaz, professor da Escola Paulista de Medicina e campineiro de velha cepa. — Compreende-se que a criação de uma escola médica do mesmo padrão em Campinas vi- ria matematicamente prejudicar a dele, não só porque Campinas é uma “capital” mas também por ser um dos maiores centros mé- dicos do Brasil. O argumento da proximidade entre as es- colas era ridículo, dizia Albernaz. Lisboa, Porto e Coimbra são cidades próximas en- tre si e contam com escola de medicina. E na França? Só no sul há escolas médicas em Montpellier, Papignan, Toulouse e Aix. O ressentimento dos campineiros concen- trou em Zeferino todos os dissabores que vi- nham sofrendo com sucessivos governos es- taduais e com os catedráticos da Universi- dade de São Paulo que detinham, na época, o controle do ensino superior no Estado. Es- tava nas mãos da USP – a única universida- de pública no Estado, à época – o principal instrumento que autorizava ou recusava a abertura de novos cursos ou faculdades: o Conselho Estadual de Ensino Superior, pre- cursor do atual Conselho Estadual de Edu- cação. Assim, enquanto os governos criavam no papel um sem-número de faculdades para agradar seus currais políticos, o Conselho se encarregava de evitar que elas se materializas- sem desautorizando sua instalação; sem con- tar que raramente se consumava a liberação de dinheiro para tal fim. Esse expediente, ver- dadeira aberração eleitoral, começou no go- verno de Lucas Nogueira Garcez, tornou-se comum no período Jânio Quadros e teve pros- seguimento com seus sucessores Carvalho Pinto e Adhemar de Barros. Daí a irritação de Albernaz quando Zeferino, um uspiano de alto coturno, pro- nunciou-se abertamente contra a instalação de uma nova faculdade na cidade. — As opiniões do professor Vaz são cap- ciosas e ocultam no bojo interesses particu- lares – disse. Uma vez que no ano anterior Garcez ha- O via criado por decreto a escola que os campineiros tanto queriam, toda a expecta- tiva da gente mais ou menos letrada da ci- dade estava voltada para a consubstanciação desse sonho. Tanto que em outubro de 1955 o recém-criado Conse- lho de Entidades de Campinas – uma orga- nização que reunia as associações de classe e clubes de serviços da cidade – fixou como sua tarefa prioritária a orquestração de uma campanha para forçar Jânio Quadros a cum- prir a promessa feita pelo governo preceden- te. Durante três anos Jânio fez ouvidos sur- dos ao clamor que vinha de Campinas. Em 1958, no entanto, encontrou uma forma de pacificar momentaneamente os ânimos dos campineiros recriando no papel a escola exigida por eles mas ao mesmo tempo agra- ciando três outras cidades – Catanduva, São José do Rio Preto e Botucatu – com promes- sa idêntica. Ou seja, de austero o governo passou a magnânimo. Mas, paralelamente, Jânio criou uma comissão para analisar as condições específicas de cada cidade. Os campineiros não demoraram a compreen- der que se tratava de um “leilão” em que poderiam não dar o último lance. Tiveram certeza disso quando Jânio, sem consultar ninguém, confiou a presidência da comissão a Zeferino. Para Albernaz, foi como entregar o galinheiro aos cuidados da raposa. — Zeferino vai fazer o jogo de Botucatu – previu. Não demorou muito para que os receios de Albernaz se confirmassem. Em abril de 1959 a comissão entregou ao governador um relató- rio que rejeitava as pretensões de Campinas e concluía com um parecer favorável a Bo- tucatu – “por motivos técnicos, morfológicos e econômicos”. No entender de Zeferino, era uma questão de lógica que uma nova escola de medicina no interior paulista devesse situar- se no lado oposto a Ribeirão Preto, onde já existia uma, precisamente a que dirigia. Além disso, das quatro cidades candidatas, Botucatu era a única a possuir hospital próprio, com capacida- de para 700 leitos, além de ser “boca de sertão” e epicentro de onde servir tanto à Alta quanto à Baixa Sorocabana, além de alcançar com fa- cilidade a vasta região rural do noroeste do Estado. Albernaz ironizou: — É simplesmente incrível essa história de motivos morfológicos. Se se tratasse da Brigitte Bardot ou da Lollobrigida, vá lá. Mas trata-se de uma cidade. Os motivos técnicos quais seriam? E depois de listar todos os pontos favoráveis a Campinas, já então uma metrópole com 15 hospitais, 300 médicos, uma universidade confessional com dez cursos – a Católica –, 40 mil estudantes de todos os níveis e dezenas de bibliotecas, enumerou as dificuldades que Botucatu teria em mais de um sentido, inclusi- ve o de conseguir cadáveres para as aulas de anatomia e dissecção. Zeferino apanhou como um felino o argu- mento dos cadáveres. Acusou Albernaz de atraso científico: — Essa mentalidade “cadavérica” de ensi- no já está encerrada há vinte anos. — Falou o parasitólogo, grande autoridade em mosquitos e carrapatos – ironizou o médi- co campineiro. — Todos sabemos que não se pode fazer uma fenestração no vivo antes de umas cinqüenta num cadáver. E dirigindo-se aos companheiros do Conse- lho de Entidades: — Não devemos ter mais ilusões quanto aos interesses escusos do professor Zeferino. Ao ouvir essa dura expressão, “interesses escusos”, Zeferino subiu nas tamancas: — Que interesse escusos teria eu? Políti- cos, afetivos, econômicos? Não sou político, não tenho parentes em Botucatu e não pos- suo propriedades na região. Interesse na di- retoria da faculdade? Duas vezes não! Pla- nificar, executar e dirigir a de Ribeirão Pre- to já é o bastante para encher toda uma vida e satisfazer o mais vaidoso dos homens. De fato, seu apego à escola médica que criara em Ribeirão Preto superava qualquer ambição: por duas vezes, ao longo da década de 50, decli- nou o convite feito por Garcez para assumir a reitoria da USP (naquele tempo a escolha do reitor era prerrogativa direta do governador) sob o argumento de que sua faculdade de medicina ainda não estava de todo consolidada. Negava, portanto, ser contra Campinas e lastimava a animosidade dos campineiros: — É aceitável que um homem normal seja contra outro homem, contra um time de fute- bol e mesmo que um habitante de uma peque- na cidade seja inimigo de outra cidade vizinha por motivos esportivos ou por rivalidade de banda de música. Mas é manifestação de psi- cose delirante ser contra toda uma grande cidade como Campinas, com sua população culta e ati- va, com suas indústrias, seu comércio e sua la- voura. Isto soou a discurso de conciliação tardia, prontamente repudiado pelos campineiros. O fato é que, ao terminar a década de 50, Botucatu tinha a sua faculdade de medicina e Campinas, não. Na maioria dos círculos da cidade onde a idéia alguma vez teve curso, Zeferino passou a ser considerado persona non grata. A tal pon- to que, ainda em 1959, quando o governador de São Paulo já era Carvalho Pinto, foi aconselha- do pelo tribuno Otávio Bierrembach de Castro, seu amigo, a excluir Zeferino Vaz de qualquer comissão que estudasse os problemas de Campinas. E justificou: — Parece que ele tem ponto de vista firma- do contra a cidade. De como Zeferino se coloca contra a instalação da faculdade de medicina e se torna persona non grata na cidade gastado com a polêmica, Zeferino che- gou a demitir-se da comissão. Foi de- movido pelo governador Carvalho Pinto. Aos campineiros isso já não importa- va muito, pois tinham decidido contornar o Napoleãozinho e levar a luta adiante com ou sem ele no caminho. Para todos os efeitos, a es- cola de Campinas estava criada no papel e pô- la para funcionar continuava sendo uma questão política e de dinheiro. Em junho de 1959, Luso Ventura pontificou mais uma vez no Correio Popular: — Está superada a fase dos debates. Estamos empenhados na instalação. No ano seguinte os campineiros se orga- nizaram para valer. Ao tomar posse da pre- sidência da Sociedade de Medicina e Cirur- gia de Campinas, o patologista Roberto Franco do Amaral, um dos esteios do proje- to, elegeu a instalação da faculdade como prioridade número um da entidade. Pela pri- meira vez alguém definia com clareza os alvos a serem atacados de frente: o Conselho Univer- sitário da USP, que detinha o controle do Con- selho Estadual de Ensino Superior; os mem- bros do próprio Conselho Estadual; os depu- tados da Assembléia Legislativa; e o governa- dor do Estado. O Conselho de Entidades foi reativado 1 e uma nova campanha colocada em marcha. Criou-se uma estrutura com organograma e plano de ação definidos. No topo havia uma coordenação geral que tinha à frente, além de Franco do Amaral, o engenheiro Eduar- do Barros Pimentel, delegado da Federação das Indústrias do Estado na cidade, o presi- dente da Associação Comercial e Industri- al de Campinas Ruy Rodriguez e o presidente da associação local dos funcionários públi- cos, Ary de Arrruda Veiga. Abaixo deles vinham 86 “combatentes” distribuídos em onze grupos de trabalho cujos líderes foram denominados “generais”. Cada grupo tinha uma tarefa a cumprir de acordo com a tarefa geral que era a de formular estudos jurídi- cos e financeiros para a instalação da facul- dade, fazer o levantamento sócio-econômi- co da região, estabelecer contatos políticos, promover o tráfico de influência e realizar palestras de convencimento. Foram listados todos os agentes políticos e admi- nistrativos cuja opinião ou poder de fogo pudesse ser útil à causa. Foram arregimen- tados os nove deputados que na época repre- sentavam a cidade na Assembléia do Esta- do e na Câmara Federal, sem distinção de partido, para azeitarem o diálogo com o po- der público 2 . A propaganda foi considerada um capítulo importante e urdiu-se uma lin- guagem de frente de batalha. O próprio arce- bispo, Dom Paulo de Tarso Campos, cunhou um slogan que depois os jornais repetiriam à larga: — Não é Campinas que precisa de uma fa- culdade de medicina, mas a medicina que precisa de uma faculdade em Campinas. Nos meses seguintes, como uma espé- cie de corrente da sorte em expansão, regis- trou-se um bombardeio de telegramas, ofí- cios, memorandos e bilhetes endereçados ao governador e aos parlamentares exigindo o De como, no apagar das luzes do governo Carvalho Pinto, Campinas é atendida com muito mais do que havia sonhado A atendimento do pleito de Campinas. Eram re- digidos e firmados por vereadores, às vezes câmaras municipais inteiras, dirigentes de instituições, capitães de indústrias, clubes de serviços e Isso com tal intensidade que a certa altura o governo já não tinha como ignorar os argumentos dos campineiros; além do que seus relatórios técnicos eram impecáveis. O Brasil tinha apenas 25 mil médicos e preci- sava de mais 90 mil – 15 mil dos quais só no Estado de São Paulo – para estar em dia com os parâmetros da Organização Mundial da Saúde. E Campinas, uma cidade para onde convergiam doentes de quase uma centena de cidades, dispunha de 1 médico para cada grupo de 3.000 pessoas, quando a recomen- dação era de 1 para cada 750. Na reunião de 14 de março de 1961, dian- te de 56 “generais”, Albernaz foi enfático: — Se preciso, vamos sacudir no nariz do governo as cifras da arrecadação municipal. Em dezembro, Carvalho Pinto deu mos- tras de mudar de postura e de conselheiro. Retirou Zeferino do caso e nomeou um seu antípoda, o reitor da USP Antônio Barros de Ulhoa Cintra, para chefiar um novo grupo de trabalho com a missão de “estudar a cri- ação de um núcleo universitário em Campi- nas”. O grupo incluía o professor de gastroenterologia Cantídio de Moura Cam- pos, o estatístico Ruy Aguiar da Silva Leme, o bioquímico Isaias Raw e o misto de biólo- go e compositor de samba Paulo Emílio Vanzolini, todos da USP ou com passagem pela USP. O grupo tinha vento a favor e trabalhou depressa, pois assumira o compromisso de concluir seu relatório ainda no governo Car- valho Pinto, que se encaminhava para o fim. Como tudo indicasse que seu sucessor viria da oposição — Adhemar de Barros tinha como principal oponente Jânio Quadros, um ex-presidente combalido pela renúncia do ano anterior —, isto significava que Zeferino, um ademarista de berço, voltaria a dar as cartas em assuntos de educação superior. Antes de apear do poder, entretanto, Carva- lho Pinto já havia concluído que a postulação de Campinas era incontornável: estava madura o suficiente para não ser colhida. E resolveu dar aos campineiros um presente maior do que eles haviam pedido: em 28 de dezembro de 1962, no apagar das luzes de seu governo, assinou o decreto que criava a Universidade Estadual de Campinas. E, a poucos dias de entregar o posto ao novo governador, nomeou como primeiro reitor da UEC (sigla que vigorou até 1966) o profes- sor Cantídio de Moura Campos. O curso foi autorizado a funcionar provi- soriamente nas dependências de um hospi- tal ainda em construção, a Maternidade de Campinas. Em fevereiro de 1963 era contra- tado seu primeiro professor, o especialista em hanseníase Walter August Hadler, que assumiu a cadeira de histologia e embriologia. Lembrou-se então que a facul- dade, única a compor até aí o projeto da nova universidade, precisava regimentalmente de um diretor. Em março foi designado para essa função o oftalmologista Antônio Augusto de Almeida. E em agosto começaram a ser instalados os primeiros departamentos, o de Genética Médica – primeiro da América Latina na especialidade – e o de Anatomia, tarefas confiadas respectivamente ao geneticista Bernardo Beiguelman, um dos pioneiros da genética humana no Brasil, e ao patologista João Batista Parolari. O primeiro vestibular, realizado em abril, atraiu 1.654 candidatos para o preenchimento de 50 vagas. Formou-se rapidamente um con- selho de curadores e em 20 de maio, quando o reitor da USP, Ulhoa Cintra, chegou para dar a aula inaugural, encontrou todo o corpo docente perfilado para cumprimentá-lo. No dia seguin- te, os alunos entraram em bando para a primei- ra aula. (E.G.) golpe militar de 31 de março de 1964 veio encontrar Zeferino pre- sidente do Conselho Estadual de Educação, depois de um ano como secre- tário da Saúde do governo Adhemar de Barros. Cinco anos mais tarde, num arti- go comemorativo da quartelada, Zeferino explicou sua posição: Pode-se perguntar por que razão um pacífico homem de ciência, acreditando com a mais profun- da fé nas virtudes do regime democrático, que por ele lutara como soldado em 1932, foi compelido a bus- car a derrubada de um estado de direito para substi- tuí-lo por um estado revolucionário. A razão esta- va em que o que existia era um pretenso estado de di- reito cujos dirigentes se preparavam ardilosamente e sub-repticiamente para implantar uma ditadura de medíocres.1 Zeferino tomou essa decisão em agosto de 1963, depois de concluir que o ministro do Trabalho do governo João Goulart, Amaury de Oliveira e Silva, estaria “prestigiando” moralmente uma greve salarial na Santa Casa de Santos, que ele, ainda secretário da Saúde, tentava a duras penas debelar. Quan- do a greve ganhou o apoio dos estivadores das docas, o ministro viajou a Santos para reunir-se com as lideranças sindicais. Ao lado do provedor da Santa Casa, Ricardo Pinto de Oliveira, estudava a conveniência de aceitar-se ou não as condições dos grevis- tas. Zeferino tomou isso como uma afronta. Numa operação de emergência, desceu a serra na companhia de 40 enfermeiras em- prestadas do Hospital das Clínicas de São Paulo para tentar restabelecer aquele servi- ço de enfermagem . Cruzou com o ministro na entrada do hospital e desviou-se dele com o semblante carregado. Terminou de subir as escadas como se não o conhecesse. “A partir daí”, escreveu Zeferino, “não tive mais dúvida sobre o governo”: Um governo que, para alcançar seus objetivos subalternos, através do caos social, não sentia, comprovadamente, o menor escrúpulo em proceder criminosamente, não mais podia merecer o meu res- peito de cidadão e muito menos de médico.2 E ia mais longe na sua interpretação do que pretendia o governo de Jango: nada menos que “implantar o caos e a desordem social através da degradação da economia brasi- leira, mesmo à custa de vidas de crianças e de pobres trabalhadores doentes, para jus- tificar o golpe de Estado que preparava”. Caos que, na opinião do reitor da Universi- dade de São Paulo, Luís Antônio da Gama e Silva, um adepto de primeira hora do movi- mento militar, também ameaçava dominar o meio universitário e particularmente a instituição que dirigia. Quando eclodiram as primeiras notícias do golpe, na manhã de primeiro de abril de 1964, a congregação da Faculdade de Medi- cina da USP reuniu-se em sessão extraordi- nária para formalizar seu voto de confian- ça no Exército. Pela rapidez com que isso foi feito, deve ter sido o primeiro apoio Zeferino acusa o ministro do Trabalho de Jango de fomentar greves e justifica desse modo seu apoio ao golpe militar institucional que os militares receberam da sociedade civil. Houve prisões em sala de aula. A Faculdade de Filosofia foi invadida por tropas de choque e portas foram aber- tas a pontapés. O reitor cruzou os braços. O governo agradeceu cumulando Gama e Sil- va de poderes — deu-lhe o Ministério da Educação e logo em seguida o da Justiça — que ele usou para instalar, em julho, uma comis- são especial “para investigar atividades subversivas na USP” da qual fizeram par- te os professores Theodureto de Arruda Souto, da Escola Politécnica, Moacyr Amaral dos Santos, da Faculdade de Direito, e Jerô- nimo Geraldo de Campos Freire, da Facul- dade de Medicina. Três meses mais tarde, essa comissão recomendou a suspensão dos direitos políticos de 44 professores e oito alunos e funcionários. Entre os “agentes da doutrinação marxista” estavam o físico Má- rio Schenberg, o arquiteto Villanova Artigas, os sociólogos Caio Prado Júnior, Flo- restan Fernandes e Fernando Henrique Car- doso, o economista Paulo Singer e o estu- dante politécnico José Serra. Não houve san- ção imediata por parte dos órgãos de segu- rança, mas os inquéritos policial-militares instalados serviriam de base, cinco anos mais tarde, para um expurgo efetivo que alcançaria parte dos arrolados em 1964. O clima de caça às bruxas instalou-se na maioria das principais universidades bra- sileiras, sobretudo nas federais, onde não só professores eram presos ou indiciados como também reitores foram caindo um após ou- tro. A deposição do reitor e fundador da Uni- versidade de Brasília, Anísio Teixeira, um educador marcado por suas ligações com Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, homens de Jango, era uma questão de honra para o re- gime. Anísio caiu no dia 9 de abril, junto com seu vice-reitor Almir de Castro, e o campus da UnB foi invadido por tropas do Exército e da Polícia Militar de Minas Gerais, acantonadas em Brasília com me- tralhadoras em posição de fogo. O Conselho Diretor foi dissolvido e os escritórios dos professores interditados por duas semanas. Menos de uma semana depois da invasão, no dia 15, Zeferino Vaz amanheceu interventor da UnB. O próprio general-pre- sidente, Humberto de Alencar Castello Branco, convocou-o para o cargo por telefo- ne. — Preciso de você aqui para impedir a destruição da universidade – o general lhe teria dito, conforme relato posterior do pró- prio Zeferino. Os quinze meses que passou na UnB como “interventor ou reitor a serviço da Revolu- ção de 31 de Março”, segundo sua própria ex- pressão, foram ao mesmo tempo produtivos e contraditórios. A parte boa é que, hábil em arrancar dinheiro do Estado, colocou em dia as finanças da instituição. Recebido com re- servas pela comunidade universitária, sur- preendeu a todos cuidando pessoalmente da libertação dos professores e estudantes pre- sos durante a invasão. No entanto, poucos dias depois expulsou nove professores e quatro instrutores “por conveniência da ad- ministração” (mais tarde admitiu ter errado em dois casos, mas não conseguiu trazê-los de volta). Em meados de 1965 tornou a causar sur- presa ao convidar para organizar o Depar- tamento de Filosofia o professor Ernani Maria Fiori, que havia sido demitido e apo- sentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no primeiro dos 16 atos ins- titucionais do período militar. Quando as es- peranças da comunidade interna voltavam a aglutinar-se em torno dele, Zeferino foi obrigado a voltar atrás, demitindo Fiori por ordem do Planalto. Aborrecido com as interferências e abalado com a perda de prestígio interno, deu sua mis- são por terminada na ca- pital federal e passou o cargo a um homem que faria história na Univer- sidade de Brasília — o professor paulista Laerte Ramos de Carva- lho — graças não só à quantidade de uísque que consumia mas tam- bém por ter rapidamen- te conduzido a institui- ção ao abismo. Menos de dois meses depois da saída de Ze- ferino, o novo reitor de- mitiu 16 professores e, em represália, recebeu 223 cartas de demissão, o que equivalia a 80% do corpo docente da UnB. Foi a maior crise da his- tória de uma universidade no Brasil. (E.G.) Zeferino se opõe ao sonho campineiro ‘Generais’ triunfam e FCM é instalada Aventuras de um revolucionário civil

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Universidade Estadual de Campinas – 6 a 12 de março de 2006 9Universidade Estadual de Campinas – 6 a 12 de março de 20068

CAPÍTULO 4 CAPÍTULO 5

CAPÍTULO 6

Zeferino Vaz, como interventor na UnB, recebe visita doembaixador Lincoln Gordon: 15 meses produtivos e contraditórios

Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp

Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp

OAry de Arruda Veiga, Roberto Franco do Amaral eEduardo Barros Pimentel: vitória dos “generais”

Luso Ventura, editor-chefe do Diário do Povo:200 artigos em defesa da faculdade

Antonio Augusto de Almeida,o primeiro diretor

Walder Hadler, o primeiro docente contratado

Tanque nas ruas em abril de 1964: em artigo, Zeferino Vaz justifica porque “umpacífico homem de ciência” foi compelido a buscar a derrubada de um estadode direito

Primeira turma de formandos da Medicina, em 1968: primeiro vestibular teve 1.654 candidatos para 50 vagas

Antonio Barros de Ulhoa Cintra profere aula solene de instalação da Faculdade de Ciências Médicas

Notícia de mesa-redonda em favor da Faculdade de Medicina e logotipo autografado por Carvalho PintoEUSTÁQUIO [email protected]

azedume do Diário do Povo para comZeferino não era novo. Remontava a1956, quando ele era diretor da Fa-

culdade de Medicina da Universidade deSão Paulo em Ribeirão Preto, escola funda-da por ele em 1951. Já figura influente nas es-feras de decisão sobre assuntos de educaçãosuperior, Zeferino colocou-se publicamentecontra um projeto caro aos campineiros: do-tar Campinas de uma faculdade de medicinaque fosse igual ou melhor que a sua.

A campanha do jornal pela instalação des-sa escola na cidade começou em 1946 atra-vés de um artigo de seu editor-chefe LusoVentura. Até à época do entrevero comZeferino, Luso, poeta à antiga e polemistaapaixonado, já havia escrito mais de 200 ar-tigos sobre o assunto. Seus argumentos tra-duziam o anseio dos médicos da cidade e dasfamílias que tinham filhos cursando escolasde medicina em outros centros. Se RibeirãoPreto, que era uma cidade menor e economi-camente menos importante, tinha o privilé-gio de contar com uma faculdade de medici-na, por que não Campinas?

Mas Zeferino, um pioneiro do ensino mé-dico no interior paulista, achava que a rotade interiorização devia passar por outros ca-minhos. Ele se dizia inteiramente a favor deuma nova escola de medicina fora do eixopaulistano, mas não exatamente em Cam-pinas. Defendia que as escolas de medicinanão deviam ficar próximas umas das outras,e que Campinas tinha contra si o fato deestar a menos de cem quilômetros da Capi-tal.

Foi o bastante para inflamar o ânimo doscampineiros.

— Parece claro que o projeto da Faculda-de de Medicina de Campinas tem um inimigoacérrimo, e infelizmente para nós podero-so, no professor Zeferino Vaz – constata ootorrinolaringologista Paulo MangabeiraAlbernaz, professor da Escola Paulista deMedicina e campineiro de velha cepa. —Compreende-se que a criação de uma escolamédica do mesmo padrão em Campinas vi-ria matematicamente prejudicar a dele, nãosó porque Campinas é uma “capital” mastambém por ser um dos maiores centros mé-dicos do Brasil.

O argumento da proximidade entre as es-colas era ridículo, dizia Albernaz. Lisboa,Porto e Coimbra são cidades próximas en-tre si e contam com escola de medicina. E naFrança? Só no sul há escolas médicas emMontpellier, Papignan, Toulouse e Aix.

O ressentimento dos campineiros concen-trou em Zeferino todos os dissabores que vi-nham sofrendo com sucessivos governos es-taduais e com os catedráticos da Universi-dade de São Paulo que detinham, na época,o controle do ensino superior no Estado. Es-tava nas mãos da USP – a única universida-de pública no Estado, à época – o principalinstrumento que autorizava ou recusava aabertura de novos cursos ou faculdades: oConselho Estadual de Ensino Superior, pre-cursor do atual Conselho Estadual de Edu-cação. Assim, enquanto os governos criavamno papel um sem-número de faculdades paraagradar seus currais políticos, o Conselho seencarregava de evitar que elas se materializas-sem desautorizando sua instalação; sem con-tar que raramente se consumava a liberaçãode dinheiro para tal fim. Esse expediente, ver-dadeira aberração eleitoral, começou no go-verno de Lucas Nogueira Garcez, tornou-secomum no período Jânio Quadros e teve pros-seguimento com seus sucessores CarvalhoPinto e Adhemar de Barros.

Daí a irritação de Albernaz quandoZeferino, um uspiano de alto coturno, pro-nunciou-se abertamente contra a instalaçãode uma nova faculdade na cidade.

— As opiniões do professor Vaz são cap-ciosas e ocultam no bojo interesses particu-lares – disse.

Uma vez que no ano anterior Garcez ha-

O

via criado por decreto a escola que oscampineiros tanto queriam, toda a expecta-tiva da gente mais ou menos letrada da ci-dade estava voltada para aconsubstanciação desse sonho. Tanto queem outubro de 1955 o recém-criado Conse-lho de Entidades de Campinas – uma orga-nização que reunia as associações de classee clubes de serviços da cidade – fixou comosua tarefa prioritária a orquestração de umacampanha para forçar Jânio Quadros a cum-prir a promessa feita pelo governo preceden-te.

Durante três anos Jânio fez ouvidos sur-dos ao clamor que vinha de Campinas. Em1958, no entanto, encontrou uma forma depacificar momentaneamente os ânimos doscampineiros recriando no papel a escolaexigida por eles mas ao mesmo tempo agra-ciando três outras cidades – Catanduva, SãoJosé do Rio Preto e Botucatu – com promes-sa idêntica. Ou seja, de austero o governopassou a magnânimo. Mas, paralelamente,Jânio criou uma comissão para analisar ascondições específicas de cada cidade. Oscampineiros não demoraram a compreen-der que se tratava de um “leilão” em quepoderiam não dar o último lance. Tiveramcerteza disso quando Jânio, sem consultarninguém, confiou a presidência da comissãoa Zeferino. Para Albernaz, foi como entregaro galinheiro aos cuidados da raposa.

— Zeferino vai fazer o jogo de Botucatu –previu.

Não demorou muito para que os receios deAlbernaz se confirmassem. Em abril de 1959 acomissão entregou ao governador um relató-rio que rejeitava as pretensões de Campinase concluía com um parecer favorável a Bo-

tucatu – “por motivos técnicos, morfológicose econômicos”. No entender de Zeferino, erauma questão de lógica que uma nova escola demedicina no interior paulista devesse situar-se no lado oposto a Ribeirão Preto, onde já existiauma, precisamente a que dirigia. Além disso,das quatro cidades candidatas, Botucatu era aúnica a possuir hospital próprio, com capacida-de para 700 leitos, além de ser “boca de sertão”e epicentro de onde servir tanto à Alta quantoà Baixa Sorocabana, além de alcançar com fa-cilidade a vasta região rural do noroeste doEstado.

Albernaz ironizou:— É simplesmente incrível essa história de

motivos morfológicos. Se se tratasse da BrigitteBardot ou da Lollobrigida, vá lá. Mas trata-se deuma cidade. Os motivos técnicos quais seriam?

E depois de listar todos os pontos favoráveisa Campinas, já então uma metrópole com 15hospitais, 300 médicos, uma universidadeconfessional com dez cursos – a Católica –, 40mil estudantes de todos os níveis e dezenas debibliotecas, enumerou as dificuldades queBotucatu teria em mais de um sentido, inclusi-ve o de conseguir cadáveres para as aulas deanatomia e dissecção.

Zeferino apanhou como um felino o argu-mento dos cadáveres. Acusou Albernaz deatraso científico:

— Essa mentalidade “cadavérica” de ensi-no já está encerrada há vinte anos.

— Falou o parasitólogo, grande autoridadeem mosquitos e carrapatos – ironizou o médi-co campineiro. — Todos sabemos que não sepode fazer uma fenestração no vivo antes deumas cinqüenta num cadáver.

E dirigindo-se aos companheiros do Conse-lho de Entidades:

— Não devemos ter mais ilusões quanto aosinteresses escusos do professor Zeferino.

Ao ouvir essa dura expressão, “interessesescusos”, Zeferino subiu nas tamancas:

— Que interesse escusos teria eu? Políti-cos, afetivos, econômicos? Não sou político,não tenho parentes em Botucatu e não pos-suo propriedades na região. Interesse na di-retoria da faculdade? Duas vezes não! Pla-nificar, executar e dirigir a de Ribeirão Pre-to já é o bastante para encher toda uma vidae satisfazer o mais vaidoso dos homens.

De fato, seu apego à escola médica que criaraem Ribeirão Preto superava qualquer ambição:por duas vezes, ao longo da década de 50, decli-nou o convite feito por Garcez para assumir areitoria da USP (naquele tempo a escolha do reitorera prerrogativa direta do governador) sob oargumento de que sua faculdade de medicinaainda não estava de todo consolidada. Negava,portanto, ser contra Campinas e lastimava aanimosidade dos campineiros:

— É aceitável que um homem normal sejacontra outro homem, contra um time de fute-bol e mesmo que um habitante de uma peque-na cidade seja inimigo de outra cidade vizinhapor motivos esportivos ou por rivalidade debanda de música. Mas é manifestação de psi-cose delirante ser contra toda uma grande cidadecomo Campinas, com sua população culta e ati-va, com suas indústrias, seu comércio e sua la-voura.

Isto soou a discurso de conciliação tardia,prontamente repudiado pelos campineiros. Ofato é que, ao terminar a década de 50, Botucatutinha a sua faculdade de medicina e Campinas,não. Na maioria dos círculos da cidade onde aidéia alguma vez teve curso, Zeferino passoua ser considerado persona non grata. A tal pon-to que, ainda em 1959, quando o governador deSão Paulo já era Carvalho Pinto, foi aconselha-do pelo tribuno Otávio Bierrembach de Castro,seu amigo, a excluir Zeferino Vaz de qualquercomissão que estudasse os problemas deCampinas. E justificou:

— Parece que ele tem ponto de vista firma-do contra a cidade.

De como Zeferino se coloca contraa instalação da faculdade

de medicina e se torna personanon grata na cidade

gastado com a polêmica, Zeferino che-gou a demitir-se da comissão. Foi de-movido pelo governador Carvalho

Pinto. Aos campineiros isso já não importa-va muito, pois tinham decidido contornar oNapoleãozinho e levar a luta adiante com ousem ele no caminho. Para todos os efeitos, a es-cola de Campinas estava criada no papel e pô-la para funcionar continuava sendo umaquestão política e de dinheiro. Em junho de1959, Luso Ventura pontificou mais uma vezno Correio Popular:

— Está superada a fase dos debates.Estamos empenhados na instalação.

No ano seguinte os campineiros se orga-nizaram para valer. Ao tomar posse da pre-sidência da Sociedade de Medicina e Cirur-gia de Campinas, o patologista RobertoFranco do Amaral, um dos esteios do proje-to, elegeu a instalação da faculdade comoprioridade número um da entidade. Pela pri-meira vez alguém definia com clareza os alvosa serem atacados de frente: o Conselho Univer-sitário da USP, que detinha o controle do Con-selho Estadual de Ensino Superior; os mem-bros do próprio Conselho Estadual; os depu-tados da Assembléia Legislativa; e o governa-dor do Estado.

O Conselho de Entidades foi reativado1 euma nova campanha colocada em marcha.Criou-se uma estrutura com organogramae plano de ação definidos. No topo havia umacoordenação geral que tinha à frente, alémde Franco do Amaral, o engenheiro Eduar-do Barros Pimentel, delegado da Federaçãodas Indústrias do Estado na cidade, o presi-dente da Associação Comercial e Industri-al de Campinas Ruy Rodriguez e o presidenteda associação local dos funcionários públi-cos, Ary de Arrruda Veiga. Abaixo delesvinham 86 “combatentes” distribuídos emonze grupos de trabalho cujos líderes foramdenominados “generais”. Cada grupo tinhauma tarefa a cumprir de acordo com a tarefageral que era a de formular estudos jurídi-cos e financeiros para a instalação da facul-dade, fazer o levantamento sócio-econômi-co da região, estabelecer contatos políticos,promover o tráfico de influência e realizarpalestras de convencimento. Foramlistados todos os agentes políticos e admi-nistrativos cuja opinião ou poder de fogopudesse ser útil à causa. Foram arregimen-tados os nove deputados que na época repre-sentavam a cidade na Assembléia do Esta-do e na Câmara Federal, sem distinção departido, para azeitarem o diálogo com o po-der público2. A propaganda foi consideradaum capítulo importante e urdiu-se uma lin-guagem de frente de batalha. O próprio arce-bispo, Dom Paulo de Tarso Campos, cunhouum slogan que depois os jornais repetiriamà larga:

— Não é Campinas que precisa de uma fa-culdade de medicina, mas a medicina queprecisa de uma faculdade em Campinas.

Nos meses seguintes, como uma espé-cie de corrente da sorte em expansão, regis-trou-se um bombardeio de telegramas, ofí-cios, memorandos e bilhetes endereçados aogovernador e aos parlamentares exigindo o

De como, no apagar das luzesdo governo Carvalho Pinto,

Campinas é atendida com muitomais do que havia sonhado

A

atendimento do pleito de Campinas. Eram re-digidos e firmados por vereadores, às vezescâmaras municipais inteiras, dirigentes deinstituições, capitães de indústrias, clubes deserviços e Isso com tal intensidade que a certaaltura o governo já não tinha como ignoraros argumentos dos campineiros; além do queseus relatórios técnicos eram impecáveis. OBrasil tinha apenas 25 mil médicos e preci-sava de mais 90 mil – 15 mil dos quais só noEstado de São Paulo – para estar em dia comos parâmetros da Organização Mundial daSaúde. E Campinas, uma cidade para ondeconvergiam doentes de quase uma centenade cidades, dispunha de 1 médico para cadagrupo de 3.000 pessoas, quando a recomen-dação era de 1 para cada 750.

Na reunião de 14 de março de 1961, dian-te de 56 “generais”, Albernaz foi enfático:

— Se preciso, vamos sacudir no nariz dogoverno as cifras da arrecadação municipal.

Em dezembro, Carvalho Pinto deu mos-tras de mudar de postura e de conselheiro.Retirou Zeferino do caso e nomeou um seuantípoda, o reitor da USP Antônio Barros deUlhoa Cintra, para chefiar um novo grupode trabalho com a missão de “estudar a cri-ação de um núcleo universitário em Campi-nas”. O grupo incluía o professor degastroenterologia Cantídio de Moura Cam-pos, o estatístico Ruy Aguiar da Silva Leme,o bioquímico Isaias Raw e o misto de biólo-go e compositor de samba Paulo EmílioVanzolini, todos da USP ou com passagempela USP.

O grupo tinha vento a favor e trabalhoudepressa, pois assumira o compromisso deconcluir seu relatório ainda no governo Car-valho Pinto, que se encaminhava para o fim.Como tudo indicasse que seu sucessor viriada oposição — Adhemar de Barros tinhacomo principal oponente Jânio Quadros, umex-presidente combalido pela renúncia doano anterior —, isto significava que Zeferino,um ademarista de berço, voltaria a dar ascartas em assuntos de educação superior.Antes de apear do poder, entretanto, Carva-lho Pinto já havia concluído que a postulaçãode Campinas era incontornável: estavamadura o suficiente para não ser colhida. Eresolveu dar aos campineiros um presentemaior do que eles haviam pedido: em 28 dedezembro de 1962, no apagar das luzes deseu governo, assinou o decreto que criava aUniversidade Estadual de Campinas. E, apoucos dias de entregar o posto ao novogovernador, nomeou como primeiro reitorda UEC (sigla que vigorou até 1966) o profes-sor Cantídio de Moura Campos.

O curso foi autorizado a funcionar provi-soriamente nas dependências de um hospi-tal ainda em construção, a Maternidade deCampinas. Em fevereiro de 1963 era contra-tado seu primeiro professor, o especialistaem hanseníase Walter August Hadler, queassumiu a cadeira de histologia eembriologia. Lembrou-se então que a facul-dade, única a compor até aí o projeto da novauniversidade, precisava regimentalmentede um diretor. Em março foi designado paraessa função o oftalmologista Antônio Augustode Almeida. E em agosto começaram a serinstalados os primeiros departamentos, o deGenética Médica – primeiro da AméricaLatina na especialidade – e o de Anatomia,tarefas confiadas respectivamente aogeneticista Bernardo Beiguelman, um dospioneiros da genética humana no Brasil, e aopatologista João Batista Parolari.

O primeiro vestibular, realizado em abril,atraiu 1.654 candidatos para o preenchimentode 50 vagas. Formou-se rapidamente um con-selho de curadores e em 20 de maio, quando oreitor da USP, Ulhoa Cintra, chegou para dar aaula inaugural, encontrou todo o corpo docenteperfilado para cumprimentá-lo. No dia seguin-te, os alunos entraram em bando para a primei-ra aula. (E.G.)

golpe militar de 31 de março de1964 veio encontrar Zeferino pre-sidente do Conselho Estadual de

Educação, depois de um ano como secre-tário da Saúde do governo Adhemar de

Barros. Cinco anos mais tarde, num arti-go comemorativo da quartelada, Zeferino

explicou sua posição:

Pode-se perguntar por que razão um pacíficohomem de ciência, acreditando com a mais profun-da fé nas virtudes do regime democrático, que por elelutara como soldado em 1932, foi compelido a bus-car a derrubada de um estado de direito para substi-tuí-lo por um estado revolucionário. A razão esta-va em que o que existia era um pretenso estado de di-reito cujos dirigentes se preparavam ardilosamentee sub-repticiamente para implantar uma ditadura demedíocres.1

Zeferino tomou essa decisão em agosto de1963, depois de concluir que o ministro doTrabalho do governo João Goulart, Amauryde Oliveira e Silva, estaria “prestigiando”moralmente uma greve salarial na SantaCasa de Santos, que ele, ainda secretário daSaúde, tentava a duras penas debelar. Quan-do a greve ganhou o apoio dos estivadoresdas docas, o ministro viajou a Santos parareunir-se com as lideranças sindicais. Aolado do provedor da Santa Casa, RicardoPinto de Oliveira, estudava a conveniênciade aceitar-se ou não as condições dos grevis-tas. Zeferino tomou isso como uma afronta.Numa operação de emergência, desceu aserra na companhia de 40 enfermeiras em-prestadas do Hospital das Clínicas de SãoPaulo para tentar restabelecer aquele servi-ço de enfermagem . Cruzou com o ministrona entrada do hospital e desviou-se dele como semblante carregado. Terminou de subiras escadas como se não o conhecesse. “Apartir daí”, escreveu Zeferino, “não tivemais dúvida sobre o governo”:

Um governo que, para alcançar seus objetivossubalternos, através do caos social, não sentia,comprovadamente, o menor escrúpulo em procedercriminosamente, não mais podia merecer o meu res-peito de cidadão e muito menos de médico.2

E ia mais longe na sua interpretação do quepretendia o governo de Jango: nada menosque “implantar o caos e a desordem socialatravés da degradação da economia brasi-leira, mesmo à custa de vidas de crianças ede pobres trabalhadores doentes, para jus-tificar o golpe de Estado que preparava”.Caos que, na opinião do reitor da Universi-dade de São Paulo, Luís Antônio da Gama eSilva, um adepto de primeira hora do movi-mento militar, também ameaçava dominaro meio universitário e particularmente ainstituição que dirigia.

Quando eclodiram as primeiras notíciasdo golpe, na manhã de primeiro de abril de1964, a congregação da Faculdade de Medi-cina da USP reuniu-se em sessão extraordi-nária para formalizar seu voto de confian-ça no Exército. Pela rapidez com que isso foifeito, deve ter sido o primeiro apoio

Zeferino acusa o ministro doTrabalho de Jango de fomentar

greves e justifica dessemodo seu apoio ao golpe militar

institucional que os militares receberam dasociedade civil. Houve prisões em sala deaula. A Faculdade de Filosofia foi invadidapor tropas de choque e portas foram aber-tas a pontapés. O reitor cruzou os braços. Ogoverno agradeceu cumulando Gama e Sil-va de poderes — deu-lhe o Ministério daEducação e logo em seguida o da Justiça — queele usou para instalar, em julho, uma comis-são especial “para investigar atividadessubversivas na USP” da qual fizeram par-te os professores Theodureto de ArrudaSouto, da Escola Politécnica, Moacyr Amaraldos Santos, da Faculdade de Direito, e Jerô-nimo Geraldo de Campos Freire, da Facul-dade de Medicina. Três meses mais tarde,essa comissão recomendou a suspensão dosdireitos políticos de 44 professores e oitoalunos e funcionários. Entre os “agentes dadoutrinação marxista” estavam o físico Má-rio Schenberg, o arquiteto VillanovaArtigas, os sociólogos Caio Prado Júnior, Flo-restan Fernandes e Fernando Henrique Car-doso, o economista Paulo Singer e o estu-dante politécnico José Serra. Não houve san-ção imediata por parte dos órgãos de segu-rança, mas os inquéritos policial-militaresinstalados serviriam de base, cinco anosmais tarde, para um expurgo efetivo quealcançaria parte dos arrolados em 1964.

O clima de caça às bruxas instalou-se namaioria das principais universidades bra-sileiras, sobretudo nas federais, onde não sóprofessores eram presos ou indiciados comotambém reitores foram caindo um após ou-tro. A deposição do reitor e fundador da Uni-versidade de Brasília, Anísio Teixeira, umeducador marcado por suas ligações comDarcy Ribeiro e Leonel Brizola, homens deJango, era uma questão de honra para o re-gime. Anísio caiu no dia 9 de abril, junto comseu vice-reitor Almir de Castro, e o campusda UnB foi invadido por tropas do Exércitoe da Polícia Militar de Minas Gerais,acantonadas em Brasília com me-tralhadoras em posição de fogo. O ConselhoDiretor foi dissolvido e os escritórios dosprofessores interditados por duas semanas.

Menos de uma semana depois da invasão,no dia 15, Zeferino Vaz amanheceuinterventor da UnB. O próprio general-pre-sidente, Humberto de Alencar CastelloBranco, convocou-o para o cargo por telefo-ne.

— Preciso de você aqui para impedir adestruição da universidade – o general lheteria dito, conforme relato posterior do pró-prio Zeferino.

Os quinze meses que passou na UnB como“interventor ou reitor a serviço da Revolu-ção de 31 de Março”, segundo sua própria ex-pressão, foram ao mesmo tempo produtivose contraditórios. A parte boa é que, hábil emarrancar dinheiro do Estado, colocou em diaas finanças da instituição. Recebido com re-servas pela comunidade universitária, sur-preendeu a todos cuidando pessoalmente dalibertação dos professores e estudantes pre-sos durante a invasão. No entanto, poucosdias depois expulsou nove professores equatro instrutores “por conveniência da ad-ministração” (mais tarde admitiu ter erradoem dois casos, mas não conseguiu trazê-losde volta).

Em meados de 1965 tornou a causar sur-presa ao convidar para organizar o Depar-tamento de Filosofia o professor ErnaniMaria Fiori, que havia sido demitido e apo-sentado da Universidade Federal do RioGrande do Sul no primeiro dos 16 atos ins-titucionais do período militar. Quando as es-peranças da comunidade interna voltavama aglutinar-se em torno dele, Zeferino foiobrigado a voltar atrás, demitindo Fiori porordem do Planalto.

Aborrecido com as interferências e abaladocom a perda de prestígio interno, deu sua mis-

são por terminada na ca-pital federal e passou ocargo a um homem quefaria história na Univer-sidade de Brasília — oprofessor paulistaLaerte Ramos de Carva-lho — graças não só àquantidade de uísqueque consumia mas tam-bém por ter rapidamen-te conduzido a institui-ção ao abismo.

Menos de dois mesesdepois da saída de Ze-ferino, o novo reitor de-mitiu 16 professores e,em represália, recebeu223 cartas de demissão,o que equivalia a 80% do

corpo docente da UnB. Foi a maior crise da his-tória de uma universidade no Brasil. (E.G.)

Zeferino se opõe ao sonho campineiro ‘Generais’ triunfam e FCM é instaladaAventuras de

um revolucionáriocivil