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EDITORA AVE-MARIA

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EDITORAAVE-MARIA

Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige!Não desprezes a lição do Todo-poderoso,pois ele fere e cuida; se golpeia, sua mão cura.Seis vezes te salvará da angústia,e, na sétima, o mal não te atingirá.No tempo de fome, te preservará da morte,e, no combate, do gume da espada;estarás a coberto do açoite da língua,não terás medo quando vires a ruína;rirás das calamidades e da fome,não temerás as feras selvagens.Farás um pacto com as pedras do chão,e os animais dos campos estarão em paz contigo.Dentro de tua tenda conhecerás a paz,visitarás tuas terras, onde nada faltará;verás tua posteridade multiplicar-se,e teus descendentes crescerem como a erva dos campos.Entrarás maduro no sepulcro,como um feixe de trigo que se recolhe a seu tempo.Eis o que observamos; é assim; eis o que aprendemos; tira proveito disso.

Jó 5,17-27

Para o amigo Juan Andrés,

que nas muitas conversas

sobre esse tema me mostrou

que a felicidade não é

um momento na vida,

mas uma vida

consagrada a Deus.

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Anos atrás fui trabalhar durante a Semana Santa em uma cidade bem pequena no inte-

rior. Lugar em que todo mundo se conhece.

Naqueles dias o comentário na cidade era sobre um andarilho desconhecido que estava dormindo na praça em frente à igreja.

As pessoas da localidade estavam assusta-das, não sabiam de quem se tratava. Alguns ten-taram se aproximar, mas o homem não queria muita conversa; mesmo assim, eles perceberam que não era alguém perigoso.

Algumas senhoras, enquanto se encaminha-vam para as celebrações, levavam bolachas e pães para o homem – era uma atitude nobre.

Na tarde de quinta-feira, enquanto eu aten-dia confissões, o homem entrou na igreja, espe-rou todos se confessarem e perguntou:

– Padre, posso falar com o senhor?

– Mas é claro, sente-se! – respondi.

Foi um diálogo de mais ou menos uma hora e meia. E inesquecível.

Enquanto se sentava, ele foi logo avisando que não estava ali para confessar-se, e falou que fazia muito tempo que não falava com ninguém sobre sua vida, e era justamente isso que gostaria de fazer.

Contou-me que fora casado, tivera três fi-lhos, havia estudado, estava empregado, mas

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sentia um vazio muito grande, nada era capaz de fazê-lo de fato feliz.

Num belo dia, tomou forças e decidiu partir em busca de uma resposta que pudesse mudar sua vida. E desde esse momento andava de um lugar para outro, sem residência fixa.

Nos primeiros meses conseguiu hospedar-se em algumas pensões, mas com o passar do tempo o dinheiro acabou e a solução foi morar na rua.

Perguntei, então, quanto tempo havia que ele peregrinava, disse-me que mais de dez anos. Falou-me que durante esse tempo ele passara por vários estados do Brasil, mas sempre bus-cava as cidades menores. Disse que esporadi-camente recebia ajuda de desconhecidos, mas nunca quis estabelecer contato profundo com ninguém.

– E sua família? – indaguei.

Respondeu que nunca mais tinha tido contato.

Percebi nos olhos daquele homem uma sin-ceridade profunda. Eu sabia que ele não mentiria para mim, por isso quis que a conversa fosse além.

Perguntei:

– E nesse tempo, longe de tudo e de todos, você encontrou o sentido, é feliz?

Com olhar de criança, falou:

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– Meu erro foi ter saído de casa sem uma bússola interna. Confiei demais em mim. Talvez eu não precisasse ter me aventurado tanto, tal-vez a resposta estivesse bem perto. A sonhada felicidade ainda não me chegou.

– E Deus? – questionei.

– Sei pouco dele – respondeu.

Depois de um silêncio, continuou:

– Faz dias que uma frase vem martelando na minha cabeça, por isso entrei aqui, creio que é uma passagem da Bíblia, aquela que fala assim: eu sou o caminho, a verdade e a vida... acredito que talvez eu não saiba o que seja a verdade, e nem tampouco saiba viver feliz, e nunca soube, porque ainda me falta saber o caminho. E sem caminho, padre, sou testemunha de que a gente não chega a lugar algum.

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Bem-aventurado

A expressão “bem-aventurado” designa aque-le que é muito feliz ou que conquistou a felicidade completa.

Na Bíblia essa expressão quase nunca está relacionada a um desejo ou a uma saudação, como se alguém quisesse desejar felicidade ao outro; trata-se mais de uma constatação, ou seja, é como se eu encontrasse uma pessoa e depois de uma conversa com ela eu constatasse: nossa, como ela é feliz.

Encontramos alguns exemplos na Sagrada Escritura em que a bem-aventurança é utiliza-da: Feliz o homem que não procede conforme o conselho dos ímpios, não trilha o caminho dos pecadores, nem se assenta entre os escarnece-dores. Feliz aquele que se compraz no serviço do Senhor e medita sua lei dia e noite (Salmo 1,1-2).

De uma forma poética, o salmista enfatiza que a felicidade pode ser facilmente percebida na vida de todas as pessoas que escolhem tri-lhar os caminhos do Senhor e contemplam sua própria história diariamente como parte do pro-

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jeto de Deus. A vida desses bem-aventurados é marcada pela serenidade e pela paz interior, são como a árvore plantada na margem das águas correntes: dá fruto na época própria, sua folha-gem não murchará jamais. Tudo o que empreen-de, prospera (Salmo 1,3).

Feliz aquele que encontrou um amigo verdadei-ro, e que fala da justiça a um ouvido atento. Como é grande aquele que encontrou sabedoria e ciência! Mas nada é tão grande como aquele que teme o Senhor: o temor a Deus coloca-o aci-ma de tudo. Feliz o homem que recebeu o dom do temor a Deus (Eclesiástico 25,12-15).

Nesse relato do livro do Eclesiástico, a bem-aventurança é marcada pelos dons que a pessoa cultiva ou adquiriu, por exemplo a riqueza de uma verdadeira amizade, que bem sabemos ser indispensável para a felicidade. O autor ainda menciona como fundamentais os dons da sabe-doria e da ciência, e num grau superior o temor a Deus. Essa passagem bíblica pode ser relacio-nada com os dons do Espírito Santo, que marcam o amadurecimento na fé do cristão. Cultivar os dons do Espírito abre as portas do interior para a felicidade. São eles: sabedoria, inteligência, con-selho, fortaleza, ciência, piedade e temor a Deus.

Disse Jesus: Bem-aventurado aquele para quem eu não for ocasião de queda! (Mateus 11,6).

Nesse versículo do Evangelho de Mateus, em que responde aos discípulos de João Batista sobre

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sua missão de Messias, Jesus descreve que são fe-lizes todos os que se apoiam na Pedra Fundamen-tal que é o Cristo e, depois de professarem sua fé não se perdem em meio a outras doutrinas.

Na parábola do semeador, Jesus falou: Mas, quanto a vós, bem-aventurados os vossos olhos, porque veem! Ditosos os vossos ouvidos, porque ouvem (Mateus 13,16).

Nessa parábola bastante conhecida, Jesus chama de felizes todos aqueles que nasceram depois da promessa realizada, sua encarnação. Muitos desejaram ver e ouvir; porém, a nós nos foi dado o privilégio de conhecer o mistério salvífico anunciado pelo Senhor. Fazemos par-te da nova aliança, estamos incorporados no corpo místico de Cristo, conhecemos sua pala-vra e podemos contemplar seus sinais através dos tempos.

Simão Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. Jesus, então, lhe disse: “Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos céus” (Mateus 16,16-17).

Diante da pergunta de Jesus “Quem vocês dizem que eu sou?”, Pedro, em nome da comuni-dade, responde afirmando que Jesus é o próprio Deus. A reposta de Pedro faz Jesus reconhecer que a fé nele é garantia de felicidade: Você, Pe-dro, é feliz, porque aceitou a revelação do mis-tério da fé.

Bem-aventurado

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Bem-aventurada és tu que creste, pois se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas! (Lucas 1,45).

No final do relato da visita de Maria à sua prima Isabel, antes de Maria cantar o Magnifi-cat, Isabel constata a felicidade da mãe de Deus: essa bem-aventurança é o selo da espiritualida-de mariana. Aquele que acredita e deposita sua confiança no Pai irrestritamente perceberá que as promessas de Deus se farão verdade. A felici-dade de Maria tem início quando ela, diante da proposta divina, diz: Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra.

Enquanto ele [Jesus] assim falava, uma mulher levantou a voz do meio do povo e lhe disse: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos que te amamentaram!”. Mas Jesus replicou: “Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lucas 11,27-28).

Neste caso, uma mulher interrompe Jesus para proclamar bem-aventurada Maria, por ter sido a mãe do Salvador; porém, ele salienta que Maria é muito mais feliz por ouvir e praticar a Palavra de Deus. Jesus destaca em Maria o papel de modelo no discipulado. Ela é feliz por estar atenta à voz do Pai.

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O Sermão da Montanha

Na Sagrada Escritura há dois relatos do Ser-mão da Montanha, um em Mateus e outro em Lucas1. A versão de Lucas é considerada uma condensação da narração de Mateus, a mais co-nhecida: nela Jesus apresenta oito2 bem-aventu-ranças, que serão a base fundamental deste livro e que chamaremos de caminhos para a felicidade.

No alto da montanha, Jesus faz um longo discurso, ou sermão, que se estende pelos capí-tulos 5, 6 e 7 de Mateus. Jesus inicia o sermão descrevendo a felicidade e a vocação dos chama-dos a ser discípulos (5,1-16); numa segunda par-te, considerada a central do discurso, Jesus con-clama os discípulos a viver a verdadeira justiça; e na terceira e última parte somos convidados a

1. Existem diferenças entre os relatos de Mateus e Lucas; porém, meu objetivo neste livro não é traçar um paralelo exegético entre os dois textos, mas fazer uma leitura espi-ritual do relato de Mateus.

2. Alguns estudiosos defendem que as bem-aventuranças são nove e não oito, devido aos versículos 11 e 12 do capítulo quinto de Mateus. Porém, para a maioria dos biblistas o número oito é mais plausível, pois, nos versículos 11 e 12, nós temos uma promessa para o futuro. Neste livro utili-zarei o número oito por ser o mais aceito.

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viver um compromisso de fidelidade com o Reino por meio da obediência (7,13-29). Darei destaque somente às bem-aventuranças, que estão nos primeiros versículos do capítulo 5.

O contexto

As bem-aventuranças são narradas por Ma-teus segundo uma lógica ascendente.

A intenção do autor é mostrar a teologia de Jesus logo no início de sua vida pública. Antes de apresentar o Sermão da Montanha, o autor descreve o Batismo de Jesus e em seguida a ten-tação no deserto. No Batismo, o Filho de Deus é revestido com a força do Espírito, e é justamente essa força, esse Espírito, que faz que Jesus vença a tentação.

Após esse episódio, ele inicia sua pregação; porém, antes mesmo de se tornar conhecido como um grande profeta, ele escolhe seus discípulos.

Diante do desconhecido, esses homens e mu-lheres chamados por Jesus dão um voto de con-fiança, pois eles “não têm certeza”.

Ainda era cedo para essas pessoas abando-narem tudo e seguirem Jesus; porém, foi justa-mente isso o que aconteceu, não tanto pelo que eles viram e ouviram, mas sobretudo graças ao que sentiram. Deus assim suscita no coração dos discípulos o desejo da entrega total.

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Confirma-se assim a frase de Jesus: Não fos-tes vós que me escolhestes, mas eu vos escolhi e vos constituí para que vades e produzais fruto, e o vosso fruto permaneça (João 15,16). Graças à experiên cia de Deus que esses discípulos vão adquirindo no con-tato com Jesus, a fé vai se fortalecendo, enraizando-se nas entranhas de cada um deles.

A grande catequese que os discípulos recebe-ram é iniciada com um longo discurso de Jesus, o Sermão da Montanha. Assim percebemos que é imprescindível a todo aquele que deseja seguir Jesus ouvir suas orientações.

Como o próprio nome diz, o sermão é pro-ferido de uma montanha. Na Sagrada Escritura, a montanha tem uma conotação simbólica do lugar de encontro com Deus. É onde Deus fala, revela-se, mostra-se.

O Sermão da Montanha está intimamente relacionado com uma passagem fundamental do Antigo Testamento, a subida de Moisés ao monte Sinai. Moisés recebe de Deus as tábuas da Lei no alto do monte, e isso logo depois de o povo expe-rimentar a liberdade. Agora, também do alto de um monte, Jesus indica o caminho de liberdade plena aos seus discípulos.

A liberdade é entendida aqui como o rompi-mento de todas as correntes internas e externas.

Jesus quer deixar claro que se nós, discípulos dele, de fato seguirmos seus ensinamentos sere-

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mos homens e mulheres verdadeiramente livres: É para que sejamos homens livres que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos subme-tais outra vez ao jugo da escravidão (Gálatas 5,1).

No Sermão da Montanha, Jesus não rees-creve as leis ou os mandamentos, mas os enche de sentido.

No Sinai, o povo de Deus se reúne em torno do monte para ouvir Deus através de Moisés. No episódio do Novo Testamento, novamente o povo se reúne em torno da montanha para ouvir Je-sus. Agora é o próprio Deus quem fala a eles.

Antes de subir na montanha, o evangelista relata que Jesus viu as multidões.

Ver e não ser indiferente é a manifestação da misericórdia divina que vela por nós.

Em outras passagens da Sagrada Escritura, percebemos que o primeiro passo para alguém ajudar o próximo é deixar-se comover por aquilo que vê.

Um bom exemplo dessa realidade é a pará-bola do Bom Samaritano… Diante do homem caído por terra, ferido e quase morto, um sacerdote, ao vê-lo, passa adiante; um levita também vê o sofrimento do homem, mas segue seu caminho… tanto o sacerdote como o levita podem ter pen-sado assim: “Pobre senhor, vou fazer uma oração por ele para que nada de mau lhe aconteça”; ou podem ter agido de forma pior, julgando interior-

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mente: “Deve ser um bandido, alguém que mere-ce estar passando por essa situação”.

A atitude do samaritano é diferente, é a mes-ma ação que Deus tem por nós: não vira os olhos, não finge que não está vendo nada, não julga… mas é movido pela compaixão. Diz o texto que o samaritano aproximou-se, e o relato segue da forma como conhecemos.

Quando Jesus sobe na montanha para pro-ferir as bem-aventuranças, o fato de ele ter visto as multidões manifesta que ele, como Bom Pas-tor que conhece seu rebanho (cf. João 10,1-16), sabia de tudo o que afligia aquelas pessoas, co-nhecia suas dores, seus desejos mais íntimos, os segredos a ninguém revelados.

O Pastor sabe o nome de cada ovelha, suas histórias, e expõe a própria vida para que nenhu-ma delas se perca.

Assim, podemos ter certeza de que as bem-aventuranças pronunciadas pela boca de Jesus são para o conforto espiritual da multidão que está diante dele; porém, também são palavras di-rigidas aos rebanhos de qualquer tempo, pois em todas as diferentes épocas os problemas que asso-lam a vida da humanidade são sempre os mesmos.

Ao ler as bem-aventuranças é bom que eu tenha a certeza de que Jesus me viu: ele sabe o que se passa comigo, ele me conhece, ele não é e nunca será indiferente e, o mais importante, ele

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jamais dirá que desistiu de mim, que meu caso é perdido. Escrevi este parágrafo do livro na pri-meira pessoa para que possamos sentir pessoal-mente, individualmente o peso dessas palavras.

Mateus inicia o relato dizendo que Jesus, após subir a montanha, sentou-se: esse gesto manifesta a maestria, a sabedoria. Os discípu-los se aproximam para ouvir Jesus. É necessário aproximar-se dele para ouvi-lo, entendê-lo.

Nesse caso, o discípulo de Jesus não é formado pelo ensino a distância. É impossível sermos segui-dores dele se não nos sentamos aos seus pés e ou-vimos seus ensinamentos como sentenças de vida.

Mateus vai além, e escreve algo que parece insignificante: diz que Jesus abriu a boca para ensinar. O próprio Jesus nos revela que a boca fala daquilo que o coração está cheio (cf. Mateus 15,18). Ou seja, o ensinamento de Jesus – suas verdades – era o que movia seu interior.

O próprio Espírito orientava a pregação do Mestre: O espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa-nova (Lucas 4,18).

A introdução que Mateus faz ao discurso de Jesus nos questiona, ou deveria nos questionar:

Em quais momentos abrimos a boca, deseja-mos falar?

Quais são as palavras predominantes em nossas conversas?

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Uma boa análise dos últimos diálogos que tivemos na semana poderá nos assustar. Se fa-lamos daquilo que move nosso ser, então do que falamos?

Poderemos nos surpreender, percebendo que não abrimos nossa boca para instruir, apaziguar, confortar, consolar, fortalecer o outro; porém, muitas vezes, foi por meio de nossas palavras que causamos divisões, julgamos, condenamos e “envenenamos” as pessoas que nos cercam.

Quando Jesus abre a boca, ele repete o gesto feito pelo Pai, na criação do mundo, ao dar vida, alento, alma ao barro, ao ser humano. Tanto na Criação como no envio dos apóstolos, em que o Cristo sopra sobre eles para que sejam impregna-dos do Espírito Santo, o Ser de Deus é propagado pela boca.

Os que ouvem as palavras do Mestre, os que recebem seu hálito de vida deixam para trás o homem velho... Eis que eu renovo todas as coisas (Apocalipse 21,5).

O apóstolo João, o discípulo amado, de-monstra essa sensibilidade de estar atento aos ensinamentos de Jesus, e depois manifesta seu desejo – mais que um desejo, a compreensão de sua missão faz que ele escreva:

O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no

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tocante ao Verbo da vida – porque a vida se ma-nifestou, e nós a temos visto; damos testemunho e vos anunciamos a vida eterna, que estava no Pai e que se nos manifestou –, o que vimos e ou-vimos nós vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco. [...] para que a vossa alegria seja completa (1 João 1,1-3.4).

Quando lemos a Sagrada Escritura, de modo especial as bem-aventuranças, temos que de-sejar, ardentemente, sentarmo-nos aos pés do Mestre para ouvir suas palavras, palavras que no entanto não nos servirão somente para en-xugar uma lágrima do sofrimento que porven-tura estejamos vivendo: a Palavra de Jesus deve ser assimilada, deve penetrar em nossos poros, deve limpar nosso interior e nos transformar em criaturas novas, e deve, sobretudo, fazer que te-nhamos vontade de gritar para o mundo: “Somos testemunhas da graça de Deus!”.

O profeta Isaías atesta que a Palavra de Deus é eficaz, cumpre sempre a sua missão:

Tal como a chuva e a neve caem do céu e para lá não volvem sem ter regado a terra, sem a ter fecundado, e feito germinar as plantas, sem dar o grão a semear e o pão a comer, assim acontece à palavra que minha boca profere: não volta sem ter produzido seu efeito, sem ter executado minha vontade e cumprido sua missão (Isaías 55,10-11).

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A felicidade para Jesus

Tentemos responder de forma rápida: “Que significa felicidade?”.

Independentemente de sexo, religião, raça, condição social, todos buscam a felicidade. Mas que é, de fato, a felicidade?

A etimologia dessa palavra me surpreendeu. Confesso que a origem desse termo me abriu ho-rizontes para entender melhor o que é ser feliz.

“Feliz” provém do latim felix (genitivo felicis), palavra que originalmente queria dizer “fértil”, “frutuoso” (“que dá frutos”), “fecundo”.

Mais tarde, por extensão metafórica de sen-tido, já que o que é fértil é também propício, fa-vorável, felix tornou-se sinônimo de “afortuna-do”, “alegre”, “satisfeito”.

Felicidade é, portanto, a entrega que se faz de si na busca de dar frutos.

Podemos dizer que ser feliz não é somente chegar à colheita, mas fazer todo o trabalho que antecede ao celeiro cheio: a preparação da terra, o plantio, a espera, o cuidado durante o cresci-mento e, no final, a colheita.

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A felicidade tem início num propósito: plantar!

Enquanto se trabalha para que o fruto seja colhido, a felicidade acompanha o processo. Esse propósito deve ser verdadeiro, sincero e essen-cial em nossa vida. É o sentido que damos àquilo que fazemos.

Pra Jesus, a felicidade pode ser entendida diante dessa concepção. Na mensagem evangé-lica, Jesus nunca associa o ser feliz ao trabalho pronto, realizado, também não a uma vida des-provida de preocupação, sofrimento, perseguição.

Se ser feliz é dar frutos, vale lembrar a bela passagem em que Jesus diz: se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produz muito fruto (João 12,24).

Entendemos nesse versículo bíblico que para dar fruto é necessário expor a vida, ter uma causa primordial para a qual se vive…

Felicidade é o fundamento, o suporte que rege nossas ações. Se não há “morte”, entrega to-tal de si a um propósito, então ficamos sós, com nossos egoísmos, num mundo ilusório; porém, quando sabemos para onde queremos ir e nos co-locamos em marcha, o fruto – a felicidade – nos seguirá desde o primeiro passo.

No Evangelho de João, Jesus nos revela o caminho da tão aspirada felicidade:

Em verdade, em verdade vos digo: o servo não é maior do que o seu Senhor, nem o enviado é

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maior do que aquele que o enviou. Se compre-enderdes essas coisas, sereis felizes, sob condi-ção de as praticardes (João 13,16-17).

Assim, vemos que para Jesus a felicidade não está relacionada a um momento, não é uma circunstância, mas uma atitude de reconheci-mento do poderio de Deus sobre nós.

Deveríamos ter consciência de que nossa vida não nos pertence – temos a vida, estamos vivos… mas o sopro de vida é de Deus.

Quando nos colocamos ou tentamos nos sentar no trono que pertence ao Altíssimo, então existe sempre uma insatisfação existencial, pois, não está ao nosso alcance mudar a maioria das coisas que acontecem.

O que podemos fazer é dar sentido a tudo o que nos acontece. Nós não somos maiores que o Criador. Se crermos nisso e vivermos essa verda-de, então perceberemos, por trás de cada acon-tecimento, os olhos de Deus que velam por nós.

É difícil, eu bem sei, nos dias de hoje fa-lar de vontade de Deus. Temos nossas próprias vontades, somos livres para decidir, é verdade; porém, existe uma razão maior para estarmos vivos, e isso é inegável. Quando conseguimos contemplar nossa existência dentro desse uni-verso maior, então percebemos que existe um porquê, que as coisas simplesmente não aconte-cem por acaso.

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Mais que à compreensão desse ensinamen-to de Jesus, a felicidade está sujeita a vivermos essa verdade como regra de vida: sereis felizes, sob condição de as praticardes…

Esse ensinamento de Jesus está conectado à parábola da videira e os ramos… Nós não so-mos o agricultor, não somos a videira, somos os ramos… Esse ensinamento poderá nos libertar:

Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agri-cultor. Todo ramo que não der fruto em mim, ele o cortará; e podará todo o que der fruto, para que produza mais fruto. Vós já estais puros pela pala-vra que vos tenho anunciado. Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. O ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira.

Assim também vós: não podeis tampouco dar fruto, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós, os ramos.

Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em mim será lançado fora, como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e será queimado. Se perma-necerdes em mim, e as minhas palavras perma-necerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito. Nisso é glorificado meu Pai, para que deis muito fruto e vos torneis meus discípu-los (João 15,1-8).

É somente permanecendo em Deus que da-remos frutos, seremos felizes… mas para isso é necessário sermos podados uma vez ou outra.

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Muitas das podas que recebemos na vida nos revoltam, não as entendemos no momento, mas uma leitura mais abrangente de nossa história nos mostrará que existe por trás de cada aconte-cimento a pedagogia de Deus.

Para nós, seres humanos “modernos”, é di-fícil entender e conceber as bem-aventuranças.

Como alguém pode ser feliz ou bem-aventu-rado passando fome, sofrendo, sendo caluniado…?

Nesse caso a felicidade não está no bem-estar, na calmaria, mas na razão e no entendi-mento de estarmos passando por essa ou aquela situação.

Se estamos mergulhados em um sofrimento e a cruz é simplesmente cruz, somos crucifica-dos gritando e esperneando.

Porém, quando conseguimos ver além da-quele momento, daquela circunstância, pois pre-enchemos de sentido com um propósito maior a nossa existência, então o sofrer adquire sentido. Mesmo sofrendo, a razão maior que está moven-do a nossa existência nos fará feliz, pois não nos entregamos, não desistimos, não abaixamos nos-sa cabeça, mas “lutamos” com dignidade.

A luta aqui não é tanto contra os tormentos, pois alguns são inevitáveis – como uma doença, por exemplo –, mas se trata da luta interna que travamos conosco mesmo em face do que acredita-mos: lutar é nunca perder a esperança e ter diante

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dos olhos a fé sincera que nos move. É a adesão, é o grande amém da liturgia… Faça-se, cumpra-se sua vontade, Senhor… eu creio.

Jesus experimentou essa entrega no mo-mento mais crucial de sua vida. O texto bíblico chama esse episódio de suprema angústia:

Conforme o seu costume, Jesus saiu dali e diri-giu-se para o monte das Oliveiras, seguido dos seus discípulos. Ao chegar àquele lugar, disse-lhes: “Orai para que não caiais em tentação”. De-pois se afastou deles à distância de um tiro de pedra e, ajoelhando-se, orava: “Pai, se é de teu agrado, afasta de mim este cálice! Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua”.

Apareceu-lhe então um anjo do céu para con-fortá-lo. Ele entrou em agonia e orava ainda com mais instância, e seu suor tornou-se como gotas de sangue a escorrer pela terra. Depois de ter rezado, levantou-se, foi ter com os discípu-los e achou-os adormecidos de tristeza. Disse-lhes: “Por que dormis? Levantai-vos, orai, para não cairdes em tentação” (Lucas 22,39-46).

Sabendo da condenação inevitável, da dor de carregar a cruz e do martírio, Jesus ora ao Pai. Ele sabe de sua missão, sabe por que veio ao mundo. Na oração, manifesta o seu querer, mas não o impõe sobre os desígnios de Deus: Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua.

Aos discípulos ele ensina que a oração é a principal armadura para não cair em tentação.

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Nesse caso, a tentação maior é desistir, entregar-se ao desespero dos que navegam na vida sem a luz da fé.

A tristeza nos faz adormecer diante da vida. Dormir é o mesmo que tentar se refugiar num mundo de sonhos e não enfrentar a realidade.

Jesus questiona: Por que dormis?.

Esse questionamento é feito a nós também todas as vezes que buscamos abrigo seguro na fantasia, no irreal, e não somos fortes o suficien-te para lutar.

Jesus ordena aos discípulos: Levantai-vos, orai, para não cairdes em tentação.

Levantar nesse caso é o mesmo que assumir a vida, é carregar a própria cruz.

É no carregar a cruz que a felicidade se ma-nifesta, pois ela só beija os fortes, os corajosos, os que têm os olhos fixos nos olhos do Pai.

Quando a felicidade é volúvel, instável, en-tão não somos felizes, vivemos dormindo.

Felicidade não é o pote de ouro no fim do arco-íris, não é toda riqueza do mundo, não são todos os prazeres que a vida pode dar, não é o ter, não é o possuir, felicidade não é a pessoa que eu desejo.

A felicidade não está diante dos olhos, não pode ser apalpada com as mãos, não pode ser

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degustada pelo paladar, a felicidade não está e nunca estará fora.

Por isso somos tão infelizes, pois buscamos nas coisas algo que não se pode abraçar.

A própria expressão “buscar a felicidade” deveria ser questionada. Sempre buscamos algo que não temos ou que perdemos.

A palavra “buscar” nos remete quase sempre ao mundo externo. Por isso, fazemos associações errôneas de felicidade com objetos, pessoas ou situações.

E no caso da infelicidade chegamos a acre-ditar que em determinados momentos o mun-do conspira para a nossa infelicidade, podemos enumerar pessoas que para nós são a causa de estarmos infelizes. Isso também é perigoso, pois responsabilizamos os outros por algo pessoal.

A frase “os incomodados que se mudem” pa-rece fazer sentido nessas horas, pois geralmente chegamos a sonhar acordados que se “desapare-cêssemos” tudo se resolveria.

Nós podemos sair daqui, do lugar onde es-tamos inseridos, e ir em busca da felicidade no outro lado do mundo… A ideia não é nova, pelo contrário, muitos de nós acreditamos nisso: “Há horas em que tenho vontade de fugir!”

Mesmo que viajemos, deixemos tudo para trás para iniciar uma nova vida em busca da fe-

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licidade, vale lembrar que levaremos nossa prin-cipal bagagem… nós mesmos.

Não há como divorciar-nos de quem somos. A busca pela felicidade lá do outro lado do mun-do, se não for antecedida pela busca de si mesmo, numa viagem interior de autoconhecimento, não valerá nada. Dois ou três meses naquele lugar, naquela circunstância, naquele estilo de vida, nos cansarão, desistiremos. E estaremos nós, no-vamente, buscando… buscando…

O fruto da insaciável busca pela felicidade nas coisas externas é a frustração.

Uma pergunta: Você já se sentiu frustrado mesmo depois de ter conseguido tudo ou quase tudo que imaginava ser a perfeita felicidade?

Pois é, você não é o único!

O mundo de consumo em que vivemos ten-ta a todo custo através da mídia publicitária nos convencer de que se não aderirmos, se não dermos um voto de fidelidade a tudo o que ela nos propõe como sumamente necessário, seremos infelizes.

Compramos, adquirimos, acumulamos, subs-tituímos, e a busca por ser feliz vira um vício in-domável. Enriquecemos os que vendem em suas prateleiras a receita mágica da felicidade. Porém, semana que vem estaremos novamente na fila do “supermercado”.

Felicidade é virtude!

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8 caminhos para a felicidade

Na Sagrada Escritura, o número 8 é simbó-lico. O número 7 reflete a plenitude, o infinito, é um número perfeito. Vale lembrar a pergunta que Pedro fez para Jesus:

“Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu ir-mão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?”. Respondeu Jesus: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mateus 18,21-22).

Oito é portanto sete mais um, seria como que o transbordamento da plenitude... Aos olhos de Deus, oito é graça que não se cabe em si, transborda.

Maria nos dá um exemplo dessa graça, dessa felicidade, no cântico Magnificat:

Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador, por-que olhou para sua pobre serva. Por isso, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações (Lucas 1,46-48).

Assim, as oito bem-aventuranças são o trans-bordar da alma de felicidade em Deus. Não há nada que ofusque a luz, a presença de Deus em nós. Esse fogo que arde sem se ver.

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Existem caminhos para a felicidade?

Ao tratar das bem-aventuranças, não tenho a pretensão de dar receitas para alguém ser feliz.

Quando dei o título a este livro de 8 cami-nhos para a felicidade, não foi pensando em in-dicar, por meio do ensinamento de Jesus, oito roteiros com dicas como as de guias de viagem. Isso seria impossível!

Como já dissemos, não podemos conceber a felicidade como algo externo, fora de nós.

Na verdade esses caminhos não são estra-das, rodovias que se veem.

A realidade que me cerca, as situações exter-nas que vivo, os relacionamentos que estabeleço devem me conduzir a uma interiorização daquilo que sou, como sou e onde pretendo chegar. Esse é o caminho…

Essa viagem será, com toda certeza, uma das mais difíceis.

Porque, quando buscamos a verdade dentro de nós mesmos, somos colocados diante de um espelho que reflete não só nossa imagem física, mas tudo aquilo que somos interiormente. E nem sempre é fácil olhar-nos e sobretudo aceitar-nos. Porém, como diz Jesus, a verdade tem o poder de nos libertar (cf. João 8,32).

Jesus fala de oito bem-aventuranças, mas poderiam ser quinze, vinte, não importa o nú-mero, não se trata de uma cifra fechada.

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O grande bem-aventurado é aquele que en-xerga a vida como algo a mais.

O bem-aventurado é aquele que não vive somente momentos de felicidade, mas segue seu caminho existencial com uma tranquilidade in-terna capaz de constranger qualquer situação extrema.

São bem-aventurados os que são iluminados pela fé em algo e, diante desse acreditar, desse confiar, se entregam totalmente.

Bem-aventurado é aquele que constrói sua casa sobre a rocha: não importa o que vier, ven-tos, tempestades, terremotos, furacões… as ba-ses da casa não serão abaladas.

A casa aqui é entendida como o centro de nosso ser, a alma.

Ao contrário, quando edificamos nossa cons-trução interior, moldamos nosso ser guiados pela vaidade, pela fugacidade, pela prepotência, pela arrogância, quando acreditamos que somos o centro do universo, e nos coroamos como senho-res de nós mesmos, então nossa casa é construí-da sobre a areia… ao menor sopro, somos pó que o vento leva.

O mestre é claro:

“Aquele, pois, que ouve estas minhas palavras

e as põe em prática é semelhante a um homem

prudente, que edificou sua casa sobre a rocha.

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Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela, porém, não caiu, porque estava edificada na rocha. Mas aquele que ouve as minhas pala-vras e não as põe em prática é semelhante a um homem insensato, que construiu sua casa na areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela caiu e grande foi a sua ruína”. Quando Jesus terminou o discurso, a multidão ficou im-pressionada com a sua doutrina. Com efeito, ele a ensinava como quem tinha autoridade e não como os seus escribas (Mateus 7,24-27).

O caminho da felicidade é ouvir e colocar em prática a palavra de Jesus. A prudência é o equi-líbrio, é manter-se de pé sobre a rocha, mesmo em meio aos fortes ventos.

O Mestre Jesus reconhece que são bem-aventurados os que vivem a pobreza, a dor, a mansidão, os que têm sede de justiça, os que são misericordiosos, os que buscam a paz, os que são puros de coração e os que são perseguidos por causa do Reino de Deus.

Após cada bem-aventurança, Jesus parece co-roar com um prêmio os que se dedicam a vivê-la. Não é uma medalha, como para quem cum-pre uma maratona. É o fruto de que falamos anteriormente. Não é uma compensação: “Olha, você está passando por isso, mas no final será recompensado.”

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Uma ação gera a outra; portanto, não é prê-mio, é resultado da semente lançada na terra, é fruto do trabalho, do labor, de querer ser sempre fiel a Deus e sua vontade. É a gratuidade do amor do Pai.

Vendo aquelas multidões, Jesus subiu à montanha.

Sentou-se e seus discípulos aproximaram-se dele.

Então, abriu a boca e lhes ensinava, dizendo:

“Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos céus!

Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!

Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra!

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!

Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia!

Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus!

Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus!” (Mateus 5,1-10)

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Primeiro caminho

A pobreza

Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos Céus.

Quando falamos em pobreza, logo imagina-mos a privação dos bens materiais.

Em nossa cultura, ser pobre está relacionado a não possuir coisas. A carência é a característica das pessoas que vivem nessa situação.

Em Mateus, essa bem-aventurança proferi-da por Jesus é espiritualizada. Feliz não é o pobre por ser pobre, mas aqueles que se fazem pobres, algo que vai além da matéria: se fazem pobres no coração. Porém, a pobreza desde o espírito supõe o desprender-se da matéria.

Essa é a recomendação do Mestre, que envia seus discípulos em missão: Disse-lhes: “Não le-veis coisa alguma para o caminho, nem bordão, nem mochila, nem pão, nem dinheiro, nem te-nhais duas túnicas” (Lucas 9,3). As palavras de Jesus parecem por demais radicais. E são: somos enviados a viver, no caminho da nossa existên-cia; quanto mais bagagem externa adquirimos, mais encarcerados nos tornamos.

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A pessoa que vive a pobreza desde o coração não estabelece uma relação de posse com as coisas e com as pessoas. O ter não vira prisão, meta de vida. A maioria das pessoas que aspira à riqueza, à maté-ria faz isso, imaginando que o possuir é a garantia da solução de todos os problemas.

Não nos enganemos: existem muitos ricos que são pobres de coração, e muitos pobres que são extremamente mesquinhos. Não podemos generalizar e nem medir essa mensagem de Je-sus pela conta bancária de alguém.

Pobre para Jesus é aquele que não vive pre-so na busca desenfreada pelo possuir. O pecado não está em ser rico, mas na relação estabelecida com o dinheiro.

Os “ricos” imaginam que seu status, prestí-gio, ouro podem comprar tudo. Esse é o principal engano que a riqueza produz. Alguns creem que, por ter uma condição de vida melhor que a maio-ria das pessoas, são melhores, especiais… alguns se sentem até endeusados.

Uma das frases célebres de Jesus faz referên-cia a esse tema: Nenhum servo pode servir a dois senhores: ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de aderir a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro (Lucas 16,13).

O problema está justamente na dependên-cia completa do dinheiro. Quando Jesus diz que não podemos servir a dois senhores, ele afirma que o dinheiro tem o poder de nos fazer escravos

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dele, pior, corremos o risco de tratar o dinheiro como um deus... de viver em função dele, perder o sono, a tranquilidade, no afã de acumular mais e mais. Para quê?

O dinheiro cega…

Quem ama o dinheiro nunca se fartará. Quem ama a riqueza não tira dela proveito. Também isso é vaidade. Quando abundam os bens, nu-merosos são aqueles que comem. Que vantagem há para os seus possuidores, senão ver como se comportam? Doce é o sono do trabalhador, tenha ele pouco ou muito para comer; mas a abundân-cia do rico o impede de dormir.

Vi uma dolorosa miséria debaixo do sol: as rique-zas que um possuidor guarda para sua própria des-graça. [...] Nu saiu ele do ventre de sua mãe, assim nu voltará. De seu trabalho nada receberá que pos-sa levar em suas mãos (Eclesiastes 5,9-12.14).

Não podemos dizer que amamos Deus, que desejamos servi-lo se é o dinheiro que rege a nos-sa vida.

Ser pobre de coração é saber que as coisas que temos não nos pertencem, pois não levare-mos nada do que temos, somente do que somos.

Um bom exemplo de pobreza, riqueza e re-lação com o dinheiro é a parábola contada por Jesus logo depois de afirmar que não podemos servir a dois senhores:

Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banque-

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teava e se regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que estava deitado à porta do rico. Ele avidamente desejava matar a fome com as migalhas que caí-am da mesa do rico… Até os cães iam lamber-lhe as chagas. Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado.

E, estando ele nos tormentos do inferno, levan-tou os olhos e viu, ao longe, Abraão e Lázaro no seu seio. Gritou, então: “Pai Abraão, compa-dece-te de mim e manda Lázaro que molhe em água a ponta de seu dedo, a fim de me refres-car a língua, pois sou cruelmente atormenta-do nestas chamas”. Abraão, porém, replicou: “Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida, mas Lázaro, males; por isso ele agora aqui é consolado, mas tu estás em tormento. Além de tudo, há entre nós e vós um grande abismo, de maneira que os que querem passar daqui para vós não o podem, nem os de lá pas-sar para cá”. O rico disse: “Rogo-te então, pai, que mandes Lázaro à casa de meu pai, pois te-nho cinco irmãos, para lhes testemunhar que não aconteça virem também eles parar neste lugar de tormentos”. Abraão respondeu: “Eles lá têm Moisés e os profetas; ouçam-nos!” O rico replicou: “Não, pai Abraão; mas, se for a eles algum dos mortos, arrepender-se-ão”. Abraão respondeu-lhe: “Se não ouvirem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite algum dos mortos” (Lucas 16,19-31).

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A chave de interpretação dessa parábola é que o rico vivia voltado para sua própria osten-tação. Ele não tinha olhos para mais nada, a não ser para seu próprio umbigo. Lázaro, o pobre, es-tava deitado à porta do rico… mas nem por isso era visto; ao contrário, era ignorado. Quando não vive a pobreza desde o coração, a pessoa tende a não enxergar mais ninguém que não seja ela mesma. Não há caridade, altruísmo, doação de si… É o egoísmo levado ao extremo.

Parece ser um caso irreal, folhetim de novela, mas se avaliarmos a relação que estabelecemos com o dinheiro nos daremos conta de que mui-tas vezes somos tentados a acreditar que nossa felicidade está nas coisas que podemos comprar.

O artífice do mal usou esse argumento até para tentar Jesus: O demônio transportou-o, uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mos-trou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: “Eu te darei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares”. Respondeu-lhe Jesus: “Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Mateus 4,8-10).

Os religiosos (homens e mulheres que se consagram a Deus professando os votos de po-breza, castidade e obediência) são formados para viver essa pobreza desde o coração. Não se trata de privar-se dos bens materiais, mas de consagrar-se inteiramente, unicamente a Deus.

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Muitas congregações religiosas tentam fazer que seus formandos tenham uma experiência pasto-ral junto aos mais necessitados, os fragilizados socialmente. A intenção não é tanto evangelizá-los, mas que sejam evangelizados por eles, que percebam que em geral os que nada têm são os que mais conseguem doar.

Naquele mesma hora, Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse: “Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou graças porque escondeste es-tas coisas aos sábios e inteligentes e as revelas-te aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te porque assim foi do teu agrado” (Lucas 10,21).

A pobreza de coração gera humildade. E so-mente as pessoas humildes sabem reconhecer a presença, a manifestação, a graça de Deus nas coisas mais simples. São sensíveis, agradecidas…

Outra característica da pessoa que vive a pobreza desde o coração é a confiança na provi-dência de Deus. Quando acreditamos que nosso dinheiro pode providenciar tudo, então Deus foi sepultado em nosso existir.

Crer na providência é rezar como o salmista:

O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Em verdes prados ele me faz repousar. Conduz-me junto às águas refrescantes, restaura as forças de minha alma. Pelos caminhos retos ele me leva, por amor do seu nome. Ainda que eu atra-vesse o vale escuro, nada temerei, pois estais comigo. Vosso bordão e vosso báculo são o meu

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amparo. Preparais para mim a mesa à vista de meus inimigos. Derramais o perfume sobre mi-nha cabeça, e transborda minha taça. A vossa bondade e misericórdia hão de seguir-me por todos os dias de minha vida. E habitarei na casa do Senhor por longos dias (Salmo 22).

A felicidade na pobreza de coração

Quando eu cursava a faculdade de teologia em Curitiba, trabalhei dois anos num albergue chamado São João Batista, das irmãs vicentinas, que acolhia pessoas de várias partes do Brasil e do exterior que vinham até aquela cidade para fazer tratamento de câncer. O tratamento geralmente era longo, e como as pessoas atendidas, em sua maioria, eram muito pobres, elas não podiam via-jar com frequência para suas cidades de origem.

Meu trabalho era me aproximar das pessoas e conversar com elas, coisa simples, nada elabo-rado… eu pouco falava, minha função era ouvir.

Cada história era uma aula teológica para mim. Confesso que em muitos casos eu chorava por dentro, pois sabia que não poderia fazer nada.

Nesse meu trabalho eu conheci uma senhora que chegou para o tratamento de um câncer já adiantado, uma metástase. No albergue ela esta-va sozinha, a família era de muito longe. O que me chamava a atenção nessa senhora, aparente-mente pobre, enferma, só, era uma alegria que

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contagiava todos os albergados. Não era um sor-riso plástico, externo, mas de uma sinceridade arrebatadora.

Um dia em nossa conversa perguntei a ela:

– O que faz você rir, passando por todos es-ses problemas?

Ela me respondeu:

– Deus nunca deixou de sorrir para mim, eu só retribuo.

Aparentemente pobre, enferma, só… apa-rentemente.

Os pobres de coração são felizes, pois encon-traram sua riqueza em Deus.

Fruto – deles é o Reino dos Céus

O Reino dos Céus será de quem aqui na terra já viveu antecipadamente o que é ser regido pelo Altíssimo.

Não se trata de uma novidade, mas de uma continuação no céu do que experimentamos aqui.

O pobre de coração deposita toda a sua con-fiança em Deus e em sua vontade, vive voltado para ser uma oblação agradável ao Pai.

Por isso, no Reino Celeste tomarão “posse” do paraíso os que foram capazes de desprender-se de tudo, os que não viveram apegados às vai-dades, às fugacidades.

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O Reino dos Céus pertencerá aos que vivem livremente sem o peso de estar atados na prepo-tência, na falta de humildade.

O Reino dos Céus é também semelhante a um tesouro escondido num campo. Um homem o encontra, mas o esconde de novo. E, cheio de alegria, vai, vende tudo o que tem para com-prar aquele campo.

O Reino dos Céus é ainda semelhante a um ne-gociante que procura pérolas preciosas. Encon-trando uma de grande valor, vai, vende tudo o que possui e a compra (Mateus 13,44-46).

Oração para viver a felicidade na pobreza de coração

Senhor, dai-me a pobreza de coração,que eu saiba me desapegar

de todas as coisas ou pessoasque me aprisionam interiormente.

Sei que nada nem ninguém me pertence,fazei que minha vida seja

uma busca constante da liberdade da alma e que a felicidade que provém

de ti, essa sim, possa imperarno meu pobre coração.

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