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NOTAS EM TORNO DAS ORIGENS DA TRADIÇÃO DO MÉTODO * José dos Reis Santos Filho ** Que isto de método, sendo, como é, uma coisa indis- pensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspen- sórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quar- teirão. Brás Cubas, Machado de Assis Avaliada de forma preliminar, a seção que remeteria ao método sociológico é surpreendentemente pobre em não poucos projetos de pesquisa. Na verdade, o que nos é mostrado com ênfase privilegiada nos clássicos, nos capítulos sobre o Método, é que o grande investimento realizado por eles nessa rubrica de importância estratégica para a instituição das ciências do social, tem sido reduzido com freqüência alarmante à idéia de “procedimentos metodológicos”. Em concreto, sob esse tópico, são listados 1) o “levantamento bibliográfico pertinente ao tema”; 2) o anúncio de que, “em seguida, será realizada a “leitura” e/ou “revisão” e/ou “fichamentos” da bibliografia selecionada; 3) o estabelecimento de “discussões com o orientador”; e 4) a informação que esclarece a necessidade de “uma análise avaliativa” do caso escolhido, algo * Trata-se de um artigo resultante de uma investigação em andamento. A rigor, os primeiros resultados da pesquisa A imaginação sociológica clássica e o método tornaram-se conteúdo dos cursos que, entre os anos de 1993 e 1996, em nome do Departamento de Sociologia da FCL/Unesp/CAr., este autor ofereceu aos alunos da disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa I do Curso de Ciências Sociais. ** Professor do Departamento de Sociologia, FCL/Unesp/CAr. E-mail:[email protected]. 143 144 Estudos de Sociologia que pode tomar como forma a idéia da “realização sistemática da análise dos dados relativos ao tema da pesquisa”. Não raro, tais seções são ilustradas por definições que teriam como função esclarecer o entendimento sobre os passos a serem adotados na pesquisa. Assim, em uma situação concreta, o que quer que isso signifique, uma aluna nos informa que “o método avaliativo será resultado da junção do estudo teórico da bibliografia pertinente e da análise” do objeto em questão. Certo, no nível do assombro, é muito o que pode ser dito sobre o assunto. Em relação aos exemplos particulares, seríamos levados quase que automaticamente ao estereótipo do “mau aluno”, do “mau orientador”. É, como muitas outras, uma linha de hipóteses que não pode ser descartada. Não nos parece, entretanto, uma via adequada. Abriria terreno para um subjetivismo de difícil controle, uma situação na qual correríamos o risco de instituição de um ponto fixo da verdade, de julgamentos de valor que devem ser evitados. Ao contrário, no limite de um artigo, parece prudente estabelecer as questões e as concepções que a tradição sugeriu como método na prática que se identifica como científica. É o caminho para o estabelecimento de uma reflexão pertinente sobre o tema. Uma concepção insuficiente Um primeiro momento de crítica a essa concepção deveria superar a simples constatação da diferença com aquilo que os clássicos eventualmente disseram. Em uma outra oportunidade, voltaremos a isso. Aqui, convém notar, em primeiro lugar, que estamos lidando com um fato que escapa das fronteiras daquilo que, seguindo Khun, poderia ser chamado de “ciência normal”. Lembremos que, sob esse nome, deveríamos entender, a julgar pelas discussões que o autor faz sobre as ciências da natureza, uma forma consuetudinária de interpretar a realidade social, foco do olhar especializado da Sociologia. Coerentemente, em qualquer relação com esse objeto, certos (pré) conceitos já

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  • NOTAS EM TORNO DAS ORIGENSDA TRADIO DO MTODO*

    Jos dos Reis Santos Filho **

    Que isto de mtodo, sendo, como , uma coisa indis-pensvel, todavia melhor t-lo sem gravata nem suspen-srios, mas um pouco fresca e solta, como quem nose lhe d da vizinha fronteira, nem do inspetor de quar-teiro.

    Brs Cubas, Machado de Assis

    Avaliada de forma preliminar, a seo que remeteria aomtodo sociolgico surpreendentemente pobre em no poucosprojetos de pesquisa. Na verdade, o que nos mostrado com nfaseprivilegiada nos clssicos, nos captulos sobre o Mtodo, que ogrande investimento realizado por eles nessa rubrica de importnciaestratgica para a instituio das cincias do social, tem sido reduzidocom freqncia alarmante idia de procedimentosmetodolgicos. Em concreto, sob esse tpico, so listados 1) olevantamento bibliogrfico pertinente ao tema; 2) o anncio deque, em seguida, ser realizada a leitura e/ou reviso e/oufichamentos da bibliografia selecionada; 3) o estabelecimentode discusses com o orientador; e 4) a informao que esclarecea necessidade de uma anlise avaliativa do caso escolhido, algo

    * Trata-se de um artigo resultante de uma investigao em andamento. A rigor, osprimeiros resultados da pesquisa A imaginao sociolgica clssica e o mtodotornaram-se contedo dos cursos que, entre os anos de 1993 e 1996, em nome doDepartamento de Sociologia da FCL/Unesp/CAr., este autor ofereceu aos alunos dadisciplina Mtodos e Tcnicas de Pesquisa I do Curso de Cincias Sociais.

    ** Professor do Departamento de Sociologia, FCL/Unesp/CAr. E-mail:[email protected].

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    que pode tomar como forma a idia da realizao sistemtica daanlise dos dados relativos ao tema da pesquisa. No raro, taissees so ilustradas por definies que teriam como funoesclarecer o entendimento sobre os passos a serem adotados napesquisa. Assim, em uma situao concreta, o que quer que issosignifique, uma aluna nos informa que o mtodo avaliativo serresultado da juno do estudo terico da bibliografia pertinente eda anlise do objeto em questo.

    Certo, no nvel do assombro, muito o que pode ser ditosobre o assunto. Em relao aos exemplos particulares, seramoslevados quase que automaticamente ao esteretipo do mau aluno,do mau orientador. , como muitas outras, uma linha de hiptesesque no pode ser descartada. No nos parece, entretanto, uma viaadequada. Abriria terreno para um subjetivismo de difcil controle,uma situao na qual correramos o risco de instituio de umponto fixo da verdade, de julgamentos de valor que devem serevitados. Ao contrrio, no limite de um artigo, parece prudenteestabelecer as questes e as concepes que a tradio sugeriucomo mtodo na prtica que se identifica como cientfica. ocaminho para o estabelecimento de uma reflexo pertinente sobreo tema.

    Uma concepo insuficiente

    Um primeiro momento de crtica a essa concepo deveriasuperar a simples constatao da diferena com aquilo que osclssicos eventualmente disseram. Em uma outra oportunidade,voltaremos a isso. Aqui, convm notar, em primeiro lugar, queestamos lidando com um fato que escapa das fronteiras daquiloque, seguindo Khun, poderia ser chamado de cincia normal.

    Lembremos que, sob esse nome, deveramos entender, ajulgar pelas discusses que o autor faz sobre as cincias danatureza, uma forma consuetudinria de interpretar a realidadesocial, foco do olhar especializado da Sociologia. Coerentemente,em qualquer relao com esse objeto, certos (pr) conceitos j

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    estariam atuantes, ajustando o universo de pesquisa a um leque deconcepes tericas reconhecidas como adequadas por umacomunidade cientfica. A cincia normal, aquela que eventualmentese manifestaria tambm em projetos de estudantes que soorientados por profissionais do ofcio e/ou lidam com manuais, teria,nessa linha de argumentao, a preocupao bsica de submissodos fenmenos sociais a esquemas conceituais previamenteestabelecidos (Khun, 1978). Ocorre que, se o mtodo, no contextode um corpus terico, forma de aproximao ao social -assumamos isso preliminarmente -, nos procedimentos quediscutimos, nem sequer uma viso pr-moldada da realidade estpresente. De fato, eles permanecem aqum dos requerimentosdaquilo que poderia ser chamado cincia normal em Sociologia.Esto aqum do que expresso pelos veculos mais significativosda cincia normal: os manuais.

    Na verdade, no difcil localizar nos livros didticos aexpresso procedimentos metodolgicos. Afinal, no nvel dasaparncias, aquilo que registramos nos pargrafos acima atenderia,como uma das grandes fases da pesquisa, ao reivindicado pelosmodelos de maior acesso ao pblico universitrio. Conforme umdeles, nessa fase de delineamento do projeto, interessa que opesquisador indique, da melhor maneira possvel, como vai realizara pesquisa (Abramo, 1988, p. 45). Ocorre que o que localizamoscom freqncia preocupante so verses abusivamentedesvirtuadas de tudo o que esses autores chamam, jsimplificadamente, de procedimentos de coleta de dados eprocedimentos de anlise e interpretao dos dados. Ainda quesegussemos exclusivamente os passos dos manuais, dificilmentechegaramos a uma banalizao to flagrante.

    Mas a localizao de um fosso entre uma compreenso doque seja a cincia normal e aquelas proposies e, mesmo, entreelas e os manuais no , por definio, critrio suficiente de crtica.No apenas pelo formalismo que pode estar implcito nacomparao ou, mesmo, pelas eventuais insuficincias dessaliteratura. No que h de fundamental, a preocupao procede

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    porque a referncia de anlise de tais projetos remete a algumasperguntas bsicas. Podemos dizer que os procedimentos lpropostos so as operaes elementares reivindicadas comocondio para a descrio e a explicao cientficas da realidade?Atenderiam eles necessidade de reproduzir os aspectos essenciaisdos fatos ou fenmenos investigados? So competentes para aobteno, a seleo e a coleta desses fatos ou fenmenos emtotalidades coerentes? So, todas, indagaes que insinuam pelomenos parte das condies de possibilidade da reconstruo darealidade nas cincias sociais (Fernandes, 1958, p. 115). E, paracada uma delas, os procedimentos metodolgicos acima descritosficam a dever. Se, para submeter cincia uma ordem defenmenos, no basta sequer, como nos dizem os clssicos, observ-los com cuidado, descrev-los, classific-los, mas impe-setrabalh-los a partir de princpios de cientificidade, consider-los luz de categorias que so, por definio, histricas, visualiz-losem relao a tipos possveis de construo, s pode ser questionveluma proposta que se apresente nos termos que denunciamos.

    No entanto, mesmo que assumamos tal avaliao, ao investirem uma reflexo no terreno dos chamados mtodos em cinciassociais, alguns cuidados so necessrios. Tomada como tal, umcampo de estudos na qual o leque de questes objeto de debates extraordinrio. um campo cuja natureza est marcada pelasprprias condies de origem da Sociologia.

    Elementos de uma ruptura

    Naquilo que nos diz respeito mais de perto, no so poucosos historiadores que entendem como sinal de ruptura entre aFilosofia social e a Sociologia, um conhecimento propriamentecientfico realizado a partir do modelo das cincias da natureza.Esse conhecimento deveria dar aos homens a matriz de suasociedade ou de sua histria, da mesma forma como a Fsica e aQumica lhes haviam dado a matriz das foras naturais (Aron,1969, p. 17). Em resumo, atravs de mecanismos que no cabe

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    descrever aqui, indubitvel que, ao sedimentar seus sucessos, ascincias da natureza assumiram o papel de modelo para qualquerinvestimento que se propusesse como cincia. Enquanto tal, algunsde seus elementos foram transformados em tpicos sem os quaisa impossibilidade do fazer cientfico est dada. significativo queo prprio ato de neg-los ou question-los tenha implicado (des)(re) qualific-los em nome do que h de sui generis naespecificidade do projeto das Cincias Sociais.

    Considerada essa influncia, no difcil concluir pelaexistncia de um ncleo de imagens que define por sua intenode cientificidade a reflexo sobre o social instituda no sculoXIX. esse o foco do imaginrio construdo sobre o momentode instituio da Sociologia. , na verdade, a transformao doescopo das cincias da natureza, apesar de todas as afirmaessobre a autonomia especfica do fazer sociolgico, em prova delegitimidade. um investimento que influenciar em parte decisivao fazer sociolgico. o que obriga um inventrio das refernciasnormalmente aceitas como caractersticas dos movimentoscientficos iniciados no sculo XVI e XVII.

    Sem a pretenso de esgot-las, a primeira a ser notada,ainda em um terreno de afirmao sobre o carter doempreendimento cientfico, a distino entre o ser e o deverser. Fundada sobre a expectativa dessa separao, a cincia danatureza procuraria nos fatos uma verdade universal que adiversidade e a relatividade do mundo hierrquico de valoresparecem totalmente incapazes de atingir (Dupuy, 1987, p. 14).Em um outro nvel, esto aqueles elementos que se tornaram deuso comum na prpria prtica das cincias. Assim, a experinciatorna-se momento fundamental para a descoberta dos segredosda natureza. No sculo XVI ela j tem reconhecida suaimportncia, no sculo XVII tem seu estatuto definido e no sculoXVIII transformada em pea chave do processo deconhecimento. Em um terceiro conjunto de preocupaes, est aidentificao das leis invariveis que afetam o funcionamento donatural. Finalmente, o mtodo aclamado como instrumento capaz

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    de no s articular a realizao de cada uma daquelas dimenses,mas tambm como o empreendimento que, por excelncia, contribuipara alcanar a verdade. , desde a compreenso cartesiana, ocaminho que, trilhado pela razo, torna possvel a procura daverdade.

    Observados, tanto Comte como Marx escreveram nasombra dos triunfos da cincia natural (Giddens, 1978, p. 11).No por acaso, em Comte, o positivo so os fatos da observao.Em Marx, as metforas falam por elas mesmas: a forma valor damercadoria a forma clula econmica. A sociedade no umcristal slido, mas um organismo... Se isso no bastasse, acomparao eloqente:

    o fsico ou observa o fenmeno fsico no qual ele ocorreem sua forma mais tpica e mais livre de influnciaperturbadora ou, sempre que possvel, realiza experimen-tos sob condies que assegurem a ocorrncia do fen-meno em sua normalidade. Neste trabalho eu tenho queexaminar o modo de produo capitalista e as condiesde produo e troca correspondentes quele modo. Atagora, o terreno clssico a Inglaterra. Esta a razo por-que a Inglaterra usada como principal ilustrao no de-senvolvimento de minhas idias tericas. (Marx, s.d., p 13)

    Cada um sua maneira, os clssicos partilhavam dootimismo no papel de uma forma de pensamento sobre o socialque pudesse clamar pela comunicao intersubjetiva isenta dosrudos do juzo de valor. Ainda assim, Pareto afirmava ser aSociologia ainda em grande parte metafsica. Diagnosticava aexistncia, em seu bojo, de princpios e argumentaes quetranscendiam a experincia. Defendia, ento, uma Sociologiaexclusivamente experimental (Pareto, 1980, p. 282 - 285). explcito tambm, alis, o esforo com que Durkheim procuraadaptar para a Sociologia a idia de experincia. No porcoincidncia, urgia, em sua compreenso, considerar e estudar os

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    fenmenos do mundo dos homens como objetos neutros,governados por leis universalmente vlidas. Em todo caso, emMarx, como em Durkheim e Weber, a possibilidade doestabelecimento de certas generalizaes em torno dofuncionamento da sociedade era objeto de busca. Tambm dealguma forma, cada uma dessas idias mantm um certo tipo derelao com a discusso sobre o mtodo. So sinais de que, aolado de no poucas declaraes, tornam possvel afirmar queaquelas presenas constituem, certamente, um grupo de elementosque interpelam de forma significativa a conscincia dos fundadores.

    Considerada a perspectiva de nossa reflexo, o quesignificam essas presenas constitutivas da intencionalidadecientfica da Sociologia? Nossa hiptese fundamental reivindicaum duplo enquadramento. O primeiro, que terminamos deestabelecer, supe o reconhecimento consensualmente aceitopelo senso comum sociolgico de uma interpelao que partedo escopo das cincias da natureza e remete fora dasimagens em torno do significado do fazer cincia. O segundo,de outra envergadura, sugere a insero do saber sociolgico -atravs da mediao das cincias da natureza e de todo umgrupo de elementos herdados da filosofia - em uma tradiosobre a teoria do conhecimento que remete antigidadegrega. Sobre isso, de fundamental importncia para uma discussoem torno do mtodo, algumas palavras.

    A matriz filosfica

    Uma incurso ao tema do mtodo, ainda que dentro doslimites deste artigo, obriga sinalizar a existncia de uma tradiono campo da teoria do conhecimento. Talvez seja possvel falarmosda presena de um modelo que se manifesta de forma reiterada eque remonta a Plato. H mais de dois mil anos atrs, a constituioda Cincia pensada como o caminho do verdadeiroconhecimento, do conhecimento da Verdade. certo que entre acincia de hoje e a de Plato h uma distncia mais que equivalente

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    do tempo que passou entre uma e outra. No obstante asdiferenas, em ambos os casos o objetivo um s: reduzir ahorizontalidade dos acontecimentos verticalidade doconhecimento. Em Plato, a perseguio da universalidade doconhecimento estava l como est aqui, entre as cincias. Nessequadro, a primeira caracterstica que podemos apontar noplatonismo essa valorizao da verticalidade, sobre cujo eixo vaise processar a chamada dialtica ascendente, aquela que nosremeter da particularidade sensvel universalidade das essncias(Garcia-Roza, 1983, p. 10) .

    Fixemo-nos, por alguns instantes, nessa contraposio entreo nvel do acontecimento e o nvel do conhecimento. No exagerofalar em nveis. A tradio fez com que, implcita ou explicitamente,fosse admitida a superioridade de um frente ao outro. Um capazde ascenso, o outro, no. Mais que isso, o movimento de ascenso um movimento de reduo. Do plano horizontal ao vertical, umprocesso de modificao, em que, certamente, no preservada aforma e, mesmo, a natureza plena do habitante do mundo horizontal.Afinal, um deles ponto a partir do qual a verdade do outro estabelecida. Trata-se de um procedimento que recusa o particularem detrimento do universal, que abandona o sensvel em nomedas essncias. Sob um outro aspecto, anuncia-se a passagem doreino do caos, do transitrio, para o reino da ordem, do perene. uma caracterizao aplicvel ao mundo natural, certo, mastambm ao mundo dos homens.

    E, no entanto, uma reflexo que j vinha sendo gerada hmuito tempo, pelos filsofos pr-socrticos. Ao elaborar suaproposta, Plato se est confrontando com questes e solues deseus antecessores. Em Herclito, o universo transformaocontnua. Mas uma transformao qualificada, na medida em queo logos o princpio segundo o qual as coisas so organizadas. Anatureza das coisas dependia de um conflito entre opostos. Oequilbrio dependia do conflito, a unidade da pluralidade, a identidadeda diferena, e vice-versa. Assim, as diferenas resumem-se emopostos. Os opostos so sempre encontrados em uma nica coisa.

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    Em todos os casos em que h diferena, h opostos, e em todos oscasos em que h opostos, h alguma coisa que os unifica. A unidadeem si, porm, oposta pluralidade, de modo que esta tem tambmque ser unificada em alguma coisa. Ter que haver dependnciamtua entre elas (Hamlyn, 1990, p. 20). Em Parmnides, adescrio de opostos como luz/trevas, denso/rarefeito, igual/diferente remeteria a uma descrio, em forma cosmolgica, domundo como os sentidos nos apresentam. E, em concluso, aquiloque os sentidos nos dizem deve ser rejeitado em favor da razo(Hamlyn, p. 23). Da mesma forma, tempo e espao, bem comomudanas no tempo e no espao no s so objeto de reflexocomo o resultado do trabalho de anlise que termina por negar omovimento.

    J habitam, nesses exemplos, temas constitutivos deprogramas de reflexo que no esto restritos ao universo de Plato,mas caracterizaram as incurses gnosiolgicas dos ltimos doismil e muitos anos passados. J esto a, cada qual desempenhandoseu papel, a transformao, o movimento, as diferenas. Com elesesto a representao de fugacidade e fragilidade e, quase quecomo por conseqncia, a necessidade de um princpio unificador.Por outra parte, um olhar para as faculdades humanas e vemos,tambm entre elas, uma hierarquia cuja qualificao determinadapela maior proximidade ou distncia em que esto no caminho queleva Verdade.

    A via de acesso ao conhecimento

    Alm das evidncias que encontramos nos textos clssicos,ainda que em contextos explicativos diferentes, no so poucos oshistoriadores da Sociologia que registram a presena dessa tradio.Mais ou menos rebuscadas, as anlises no s desvelam nessafonte, como tratam de detectar, nela, a inspirao para a instituioda disciplina. Assim que os procedimentos de generalizao emSociologia so considerados como deslocamentos dos fenmenosda ordem emprica para a ordem epistmica. E uma avaliao das

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    diferentes tentativas de generalizao encontrveis no trabalhosociolgico s confirmaria a insero da Sociologia nessa tradioda locao tpica em termos de uma horizontalidade dosacontecimentos e uma verticalidade do conhecimento. Cadamovimento de locao tem como funo a transposio domultiforme, do individual, do singular, para um nvel que sercaracterizado como o geral, o universal, dependendo da naturezaatribuda a ele pelo quadro terico-conceitual em que se proceda aanlise. Enquanto tal, essa tradio tornou-se parte daqueleimaginrio que informa e enforma o enfrentamento dos problemascolocados pela necessidade de legitimao do saber sociolgico.

    Alcanando o conjunto das Cincias Sociais, esse movimentode passagem do nvel do acontecimento para o nvel doconhecimento, do caos para a ordem, reconhecido comoimprescindvel. Trata-se de uma discusso que, em um campoterico mais elaborado, sinaliza a recusa do fato puro comocomponente da elaborao cientfica. Assim, citando um grandeantroplogo funcionalista, no campo deparamo-nos com um caosde fatos, alguns dos quais to pequenos que parecem serinsignificantes, outros to amplos que parecem difceis de seremabrangidos de modo sinttico.

    Mas, em sua forma bruta, esses fatos no so aindacientficos, so profundamente enganosos e s podem sercaptados corretamente pela interpretao, que penetra sobsua aparncia, apreendendo e fixando o que essencial.Apenas as leis e as generalizaes so fatos cientficos, eo trabalho de campo consiste nica e exclusivamente nainterpretao da catica realidade social, subordinando-aa regras gerais (Malinowski, 1986, p. 144).

    Esse deslocamento de um nvel para outro no se faz,entretanto, por fora do aleatrio. So necessrias vias de acesso.Em Malinowski, so regras metdicas para simplificar a variedadee uniformizar a multiplicidade dos fatos. Regras que permitam

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    reduzir a multiplicidade de manifestaes de um acontecimento aum dado mais simples. Afinal, os dados brutos so praticamentecaticos em sua diversidade (Malinowski, 1986, p. 146 - 147).

    So passagens que, com marcas diferenciadas estopresentes em todos os clssicos. So presenas que sinalizam onexo dessa tradio - que estabelece uma relao entreacontecimento e conhecimento como relao tpica dehorizontalidade e verticalidade - com nosso problema, com asquestes referentes ao mtodo. No que nos interessa, em primeirolugar, nessa tradio que se inaugura h mais de vinte sculos,que podemos encontrar as referncias modelares da cinciamoderna. Depois, ainda no que nos interessa, nessa tradioque localizamos a instituio de uma reflexo sobre o mtodo,como uma via, uma mediao que realize a passagem do nveldo acontecimento para o nvel do conhecimento cientfico.

    Se quisermos falar aqui, novamente, sobre antecedentes, em Parmnides que registramos a abertura de um novo caminho,mais, do nico caminho praticvel para chegar posse da verdade.A partir dele, como afirma Jager, a imagem da via reta dainvestigao aparece constantemente. Por mais difusa que possaparecer ao cientista moderno, j possui, todavia, uma ressonnciaterminolgica que, especialmente na oposio entre o caminhocerto e o errado, se aproxima do sentido do mtodo (Jager,1986, p. 151). Esto aqui as razes longnquas deste componentefundamental do fazer cientfico.

    A literatura insinua o quo ingnuo seria acreditar que, umavez esse ponto identificado, as coisas se tornariam claras.Eminentemente ligadas s questes e temas j mencionados, estooutros tantos temas ou questes. Em um nvel ainda geral, porexemplo, no h como desvincular a discusso em torno do mtododa pergunta sobre a possibilidade do conhecimento. Trata-sede uma reflexo que deu lugar, entre outras, a disputas substantivassobre o alcance de proposies que so resultados dos processosdo conhecimento. Da mesma forma, o estabelecimento da origemdo conhecimento tambm tem seu lugar reservado na discusso

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    em torno da natureza do mtodo. O debate entre o racionalismo eo empirismo, na medida em que pe em jogo os papis dos sentidose da razo, possui uma relevncia substantiva para oestabelecimento das vias de acesso ao conhecimento. Esto a,por exemplo, as disputas entre as lgicas da induo e as dadeduo. Por outra parte, o problema da verdade do conhecimentotem obrigado a considerar, entre outras questes, a evidnciacomo um tpico a ser enfrentado (Mora, 1985, p. 230). Soreflexes que se tornam ainda mais qualificadas quando realizadaspor figuras que no s conhecem esses antecedentes como voao encontro de novas proposies. o caso de Bacon e Descartes.

    Bacon e Descartes

    Entre 1605 e 1644, vemos aparecer uma srie de livrosque, entre outros efeitos, buscavam neutralizar a filosofia naturalaristotlica. Os autores - naturais da Inglaterra, Itlia e Frana -eram Bacon, Galileu e Descartes. As obras expressavam eintervinham, cada uma a seu jeito, na histria cultural europia(Drake, 1981). So tempos em que valores e significaes atento fixadas sofrem mutaes substantivas o suficiente parasubverter toda uma forma de ver e abordar o mundo.

    Nesse quadro, um trao de distino usado como linha dedemarcao entre os trs autores. Enquanto Galileu lembradopor suas contribuies cincia, Bacon e Descartes, ao contrrio,seriam mencionados por suas filosofias (Drake 1981, p. 29). evidente, aqui, uma bela dose de exagero. Quem quer que visiteos textos de Galileu reconhecer ali no poucas incurses noterreno da filosofia. Reconhecer tambm uma bela tentativa derompimento com a cosmoviso aristotlica. Outrossim, tantoDescartes como Bacon, no por acaso considerados autorespolmicos, so, at hoje, disputados como precursores da cinciamoderna. Em Descartes, no pouco o que se aprendeu sobre aGeometria e a Matemtica. Bacon, por sua vez, teria sido o pioneirodo intento de sistematizao lgica do procedimento cientfico.

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    Ao sublinharmos a herana deixada do perodo para atradio em torno da fundamentalidade do mtodo, veremossemelhanas exuberantes entre Bacon e Descartes noreconhecimento de que o poder de julgamento e de distino doverdadeiro e do falso naturalmente igual em todos os homens(Descartes, 1965, p. 25). A atitude que se deveria esperar dointelecto de aceitao das dificuldades e dos paradoxos, desobriedade, de reconhecimento dos princpios supremos danatureza, de percepo da luz da experincia. E, no entanto, ointelecto humano no luz pura. Em Bacon, como em Descartes,o intelecto no regulado e sem apoio irregular e de todo inbilpara superar a obscuridade das coisas. Ele recebe influncia davontade e dos afetos. Da que pode gerar qualquer cincia. trado pela imaginao de paralelismos, correspondncias e relaesque no existem entre coisas singulares e cheias de disparidades. enganado por arrastar tudo para seu apoio e acordo quandoassente em uma convico. Permanece na insegurana por sedeixar abalar pelas coisas que sbita e simultaneamente seapresentam. Assim, se so corriqueiras as dificuldades no caminhoem direo ao conhecimento, se o imprio da diversidade deopinies se impe na busca da verdade, porque no aplicamosbem o esprito. Da a necessidade de bases de segurana - umprimeiro princpio, para uma nova cincia. Da a importncia domtodo como um recurso imprescindvel para o empreendimentointelectual.

    Ocorre que essa via de construo conduz Bacon a umainsatisfao paralela da descoberta dos limites do intelecto. Osmtodos at ento usados no seriam adequados busca daverdade. Fazia-se imprescindvel, portanto, o uso de procedimentosainda no tentados. A crtica predominantemente anti-aristotlica.A contraposio um novo mtodo que signifique uma nova ordem,um novo processo para continuar e promover a experincia. Assim,para que se penetre nos estratos mais profundos e distantes danatureza, necessrio que tanto as noes quanto os axiomassejam abstrados das coisas por um mtodo mais adequado e seguro

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    (Bacon, 1984, p. 51). A esperana, a nica, radica na verdadeirainduo. Ou seja, um proceder de acordo com leis seguras e deforma gradual e constante. O prprio intelecto ganhar com isso. certo que seu trabalho se torna melhor e mais correto. A propostado novo tem suas caractersticas apontadas: abstrao elevantamento das coisas por procedimentos devidos. a via queconduz verdade. O verdadeiro caminho , ento, aquele querecolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares,ascendendo contnua e gradualmente at alcanar, em ltimo lugar,os princpios de mxima generalidade (Bacon, 1984, p. 54) .

    Da mesma maneira, h em Descartes uma preocupaodiligente com a instituio de um mtodo que esteja em condiesde evitar as armadilhas que surgem no caminho do intelecto.Mtodo, segundo Descartes, so regras certas e fceis cujaobservao exata permite a distino da verdade. a forma deestar seguro, de usar em tudo a razo, seno perfeitamente, aomenos da melhor maneira. Acostuma o esprito a conceber osseus objetos. Uma exigncia no pr nada falso no lugar doverdadeiro. A segunda, chegar ao conhecimento de tudo. Paraisso, o mtodo nos explica o uso a ser feito da intuio intelectuale o meio de achar dedues que cheguem ao conhecimento detudo.

    A ordem exigida. A ordem um preceito. H caso emque absolutamente necessria e caso em que somente til.Mas todo o mtodo consiste na ordem e disposio dos objetossobre os quais deve ser centrada a penetrao da inteligncia paradescobrir alguma verdade. Ele impe a necessidade de distinguiras coisas mais simples das que so complicadas e estabelecerordem em sua investigao. Graas a ela, podemos seguir adianteainda quando no conheamos claramente todas as coisas. suficiente que conheamos um reduzido nmero delas ou uma sentre elas. Ou, em outra formulao de Descartes, misterimaginar que todas as cousas que podem cair sob o conhecimentodos homens se encadeiam do mesmo modo e, desde que nosabstenhamos somente de aceitar por verdadeira alguma que o no

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    seja, e respeitamos sempre a ordem necessria para deduzi-lasumas das outras, nenhumas pode haver to afastadas s quais nopossamos por fim chegar, nem to ocultas que no as possamosdescobrir (Descartes, 1970).

    A ordem permite entender a reduo gradual dasproposies complicadas e obscuras a proposies mais simples.Compreende-se tambm como, partindo da intuio das proposiesque so as mais simples de todas, seria possvel chegar pelosmesmos escales ou graus ao conhecimento de todas as demais.Todas as coisas podem ser conhecidas umas pelas outras.

    O sculo XVIII

    No sculo XVIII, aps um longo perodo de gestao, afilosofia da natureza cincia e o verdadeiro sistema do mundo tido como conhecido. Se no bastasse, quase todas as outrascincias tomaram uma nova forma. No fundo de tudo isso, o modeloque provoca tamanha reverberao o da Fsica newtoniana. Comela, pretende-se que tudo foi discutido, analisado ou, pelo menos,agitado. Com Newton, o movimento de instituio de umaalternativa Fsica aristotlica - cuja aceitao diminui de formaacentuada a partir de Galileu, Bacon e Descartes chega a seumomento mais importante. Os corpos celestes - divinos,incorruptveis e de natureza diversa de nosso imperfeito mundo so vistos como colocados ao alcance definitivo da investigaohumana.

    Newton argumenta em favor de uma especificidade napesquisa realizada pela Fsica. algo que se funda sobre o mtododa experimentao e do raciocnio indutivo, dos fatos aos axiomase aos princpios.

    Como na matemtica, assim tambm na filosofia natu-ral a investigao de coisas difceis de anlise deve sem-pre preceder o mtodo de composio. Esta anlise con-siste em fazer experimentos e observaes, e em traar

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    Estudos de Sociologia

    concluses gerais deles por induo, no se admitindonenhuma objeo s concluses, seno aquelas que sotomadas dos experimentos ou certas outras verdades.(Newton, 1987, p. 204)

    O ideal de anlise supe, portanto, situar frente dainvestigao o conhecimento tal como nos dado na observaodireta. necessrio dar lugar observao pura dos fenmenos e simples demonstrao de sua conexo. Fatos conhecidos,formulao de hipteses, enfim, reduo a uma ordem atravs dainduo, o que importa, sobremaneira, para determinar as relaesentre os dados. A experincia e o progresso a adquiridos, so,ento, fundamentais para um processo ascensional progressivo,at as primeiras causas e aos elementos mais simples do cursodas coisas. Para esse pensamento, o mtodo traduz progresso aoreduzir a riqueza dos fenmenos naturais a um pequeno nmerode propriedades fundamentais da matria e a certos princpios domovimento (Cassirer, 1966, p. 97 - 99). Nesse quadro, asconseqncias lgicas da hiptese so observadas e, concordecom a observao ou a experincia, pode-se chamar teoria hiptese e us-la para sugerir nova indagao, observao ouexperincia (Dampier, 1986, p. 96). uma concepo que marcarde forma significativa a Enciclopdia.

    Diderot e DAlambert no hesitaram - como tampouco ofizeram seus predecessores, em investir na elaborao de umateoria do conhecimento. Os conhecimentos so diretos quando osrecebemos imediatamente, sem nenhuma operao de nossavontade. So os que recebemos pelos sentidos. So refletidosquando o esprito os adquire operando sobre os conhecimentosdiretos, unindo-os ou separando-os. De uma e outra classificao,fica a natureza incontestvel da existncia das sensaes. So oprincpio de todos os conhecimentos, de todas as idias. Por tudoisso, para formar noes puramente intelectuais, apenas precisamosrefletir sobre nossas sensaes. um percurso que ensina, emprimeiro lugar, nossa existncia. As primeiras idias refletidas

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    sinalizam o princpio pensante. Ele constitui uma presena nanatureza humana e no diferente de ns mesmos. O segundoconhecimento que devemos s nossas sensaes a existnciados objetos exteriores, entre os quais nosso prprio corpo. Nose pode fugir a essa constatao da existncia dos objetosexteriores. Neles deve ser procurada a causa de nossas sensaes.

    O conhecimento trabalho. Os objetos so materiais ouespirituais. A alma se ocupa desses objetos atravs das idiasdiretas ou atravs das idias refletidas. A alma opera sobre oobjeto do pensamento. E opera no sentido de um esforo deindividuao do objeto que parece ser o princpio metodolgicomais fundamental. Dele dependem todos os passos seguintes. Ajulgar pelas leituras de Diderot e DAlambert, o estudo, em suasfases mais primitivas, foi forosamente o dos indivduos (Diderot,1989). Foi somente aps a considerao de suas propriedadesparticulares e palpveis que, pela abstrao, chegamos a suaspropriedades gerais e comuns.

    Os procedimentos comparativos so permanentementelembrados. Mas o mtodo no se reduz a essas operaes. Oquadro mais geral o estudo refletido dos fenmenos. Os meiosso a j citada comparao e a arte de reduzir, tanto quanto possvel,um grande nmero de fenmenos a um nico que possa serconsiderado como seu princpio. A reduo, dependendo dadificuldade e da amplido do objeto , diga-se de passagem, umprocesso mais ou menos penoso. Mas um processo cujo resultadoqualifica a cincia: mais se diminui o nmero dos princpios deuma cincia, mais se lhes d extenso (Diderot, idem).

    no curso do progresso da prpria cincia que algunselementos constitutivos do mtodo cientfico so afirmados. Assim que no restam dvidas de que a alma procede a julgamentos. Aalma julga a maneira pela qual os conhecimentos a afetam. Sojulgamentos com nome e funo estabelecidos. Em primeiro lugar,a evidncia. Ela pertenceria s idias cuja ligao o espritopercebe imediatamente. resultado das operaes do esprito ereporta-se s especulaes metafsicas e matemticas. Depois, a

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    Estudos de Sociologia

    certeza, somente adquirida com a ajuda de um certo nmero deidias intermedirias. Ou, o que a mesma coisa, somentereconhecida s proposies cuja identidade com um princpioevidente, por si mesmo, somente pode ser descoberta por um circuitomais ou menos longo. mais prpria aos objetos fsicos, cujoconhecimento o fruto da relao constante e invarivel de nossossentidos. Em terceiro lugar, a probabilidade cuja existncia remete,sobretudo, aos fatos histricos e em geral para todos osacontecimentos passados, presentes e futuros. So fatos atribudosa uma espcie de acaso. Suas causas no so claramentedistinguveis. A quarta forma de julgamento o sentimento. deduas espcies. Uma, destinada s verdades de moral, chama-seconscincia. uma conseqncia da lei natural e da idia quetemos do bem e do mal. A outra diz respeito s belezas deexpresso: apreende com arrebatamento as belezas sublimes eimpressionantes, distingue com finura as belezas escondidas eproscreve o que somente tem sua aparncia (Diderot, 1989, p.47).

    Uma questo a formular

    Na tradio que se firmou atravs dessas (e muitas outras)figuras proeminentes, a reflexo que enfatizou o momento instituinteda cincia apresenta algumas caractersticas essenciais. Sem fugira uma matriz estabelecida em um passado clssico, ela abarcano apenas o mtodo, mas tambm uma ontologia, uma gnosiologia,uma epistemologia e, inclusive, em muitos sentidos, umaantropologia. Quando possvel perceber como um dos traos donovo conhecimento que se anuncia no sculo XVII o surgimentode um universo cujos componentes so colocados no mesmo nvelde ser, est sendo sinalizada a centralidade do entendimento danatureza do prprio objeto da prtica cientfica. Quando nossosautores preocupam-se com as importncias especficas dasfaculdades humanas no processo de cognio, maisespecificamente, na caracterizao do sujeito cognoscente e do

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    objeto cognoscvel, penetram no s no terreno de uma teoria doconhecimento, mas estabelecem bases por mais incompletasque sejam de uma definio do homem. Da mesma forma, aodefinirem como cientficos as fronteiras de seus investimentos,caracterizam as possibilidades e os limites de suas prticas, assimcomo suas necessidades. Na verdade, o mtodo sustenta-se e parte de uma relao estabelecida entre cada uma dessasdimenses que tornam-se constituintes de um saber. Nesse sentido,o que nomearemos como mtodo do conhecimento sociolgico um caminho, uma via. Na verdade, uma estratgia que, apartir de certos pressupostos ontolgicos, antropolgicos,gnoseolgicos e epistemolgicos, comporta um conjunto deoperaes conceitualmente norteadas que fazem emergir comoacontecimentos tericos os objetos - os objetos do conhecimentopretendido pela sociologia.

    De fato, justo na medida em que podemos definir o mtodocomo algo que d lugar a acontecimentos, no podemos entend-lo fora de cenrios onde atuam com fora de legitimidadeconcepes sobre o ser do objeto, a natureza do sujeito, o carterdas relaes que sujeito e objeto estabelecem entre si. Foi porconsiderarem elementos como esses que os clssicos clamarampara as cincias do social uma especificidade irredutvel. porconsiderarmos essa tradio que recusamos intencionalidadecientfica a procedimentos metodolgicos que a bagatelizem. por considerarmos essa tradio que supomos cada momento deelaborao do mtodo para cada pesquisa concreta um momentoem que a instituio da Sociologia se repe como instante dereafirmao de sua intencionalidade cientfica. o que faz domtodo, permanentemente, uma questo a ser formulada.

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    NOTAS

    1 A julgar pela pgina na Web do Curso de Ps-Graduao em Sociologia do Depar-tamento de Sociologia da FFLCH da Universidade de So Paulo, para a seleo deprojetos, retira-se do horizonte, inclusive, a idia de procedimentos metodolgicos.

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    Estudos de Sociologia

    Ali, o que importa so procedimentos de pesquisa, j que esta ltima definidaem termos operacionais. Conforme as instrues, no projeto, deve ser identifica-do o universo emprico que servir de campo de investigao do problema socio-lgico antes apresentado. Descrevem-se as tcnicas de investigao, o material aser pesquisado, local, fontes, informantes, arquivos, jornais, bancos de dados, bibli-otecas, sites da Internet etc. Se a pesquisa comporta trabalho de campo, seusprocedimentos devem informar se a pesquisa ser qualitativa ou quantitativa, se deuniverso amostral, se atravs de entrevistas gravadas ou escritas, ou se por aplica-o de questionrio ou formulrio. Quando se usar entrevista ou aplicao deformulrio/questionrio, um modelo preliminar de instrumento deve ser anexadoao projeto. No caso de pesquisa estritamente terica, as bibliotecas e arquivos aserem usados, bem como outras fontes, devem ser devidamente nomeados. Astcnicas de anlise de dados (qualitativas e quantitativas), se for o caso, devem, porsua vez, ser explicitadas.

    2 Com o cuidado, inclusive, de sinalizar onde essa bibliografia ser procurada. Porexemplo, conforme um caso, tal bibliografia ser coletada nos programas Unibiblie Isi.

    3 Para fins desse levantamento, nos utilizamos de quatro projetos de pesquisa bemsucedidos em exames de seleo para a ps-graduao em nvel de mestrado (4) edoutorado (1).

    4 Deixamos aqui nosso protesto. A leitura de Khun importante o suficiente paraque a editora cuidasse de uma traduo altura. Principalmente no que se refere aoPosfcio de 1969, onde faltam, inclusive, passagens significativas do texto origi-nal.

    5 Estaremos considerando imaginrio como articulao de imagens (Lima,1984, p. 61).

    6 uma constatao que no implica desconhecimento das tenses criadas pelaimportao dos traos sabidamente constituintes daqueles corpos do saber. Vol-taremos a isso em trabalho de pesquisa em desenvolvimento.

    7 No restam dvidas quanto ao fato de esses elementos no esgotarem as presenasque poderiam ser elencadas. De fato, como j insinuamos, nossa listagem desseselementos no completa. Por exemplo, as suposies (hipteses) no estoaqui mencionadas. Mas j eram parte do fazer das cincias. Na verdade, outrosaspectos de importncia mais remota para nossa discusso, mas de grande relevn-cia para o enfrentamento de alguns impasses que ainda atormentam a Sociologiapoderiam ser apontados. Esto ali as idias de progresso e a existncia de um poderatravs do conhecer. Essa ltima atravs da pretenso de aquisio da matriz dasociedade. A primeira, presente na imagem de marcha progressiva. Em qualquerhiptese, de uma forma ou de outra, na maior parte das vezes, como j anunciamos,

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    sendo qualificados e requalificados, cada um desses elementos aparece nas obras dosfundadores das Cincias Sociais.

    8 O que hoje designamos cincia foi entendido pelos gregos, sobretudo, como osaber daquilo sobre cuja base possvel fabricar algo (Gadamer, 1983, p. 12).

    9 Trata-se de um reconhecimento explicitado entre os prprios praticantes dascincias da natureza. Prigogine e Stengers chamam ateno para o fato de aquesto da cincia clssica ser, nela mesma, uma ilustrao de uma dicotomia queatravessa a histria do pensamento ocidental. Segundo eles, somente o imutvelmundo das idias foi tradicionalmente reconhecido como iluminado pelo sol dointeligvel, para usar a expresso de Plato. Da mesma forma ainda segundo osautores, somente leis eternas foram consideradas capazes de expressar aracionalidade cientfica (Prigogine, 1984, p. 7).

    10 Os estudos sobre as religies antigas, por exemplo, demonstram isso com clareza.Cassirer observa que todas as religies absorvem uma cosmogonia e uma doutrinamoral que coincidem em entregar divindade o duplo papel e a dupla misso defundadora da ordem astronmica e de criadora da ordem moral, arrancando os doismundos da ao das potncias do caos (Cassirer, 1955, pag. 8).

    11 Como nos diz Deleuze,Plato convidava-nos a distinguir duas dimenses:1) adas coisas limitadas e medidas, das qualidades fixas, quer sejam permanentes outemporrias, mas supondo sempre freadas assim como repousos, estabelecimentosde presentes, designaes de sujeitos: tal sujeito tem tal grandeza, tal pequenez emtal momento; 2) e, ainda, um puro devir sem medida, verdadeiro devir-louco queno se detm nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se aopresente, fazendo coincidir o futuro e o passado, o mais e o menos, o demasiado eo insuficiente na simultaneidade de uma matria indcil (Deleuze, 1974, p. 5).

    12 Na segunda parte do poema escrito por Parmnides, o fragmento 8 argumentacom a inexistncia do tempo, como o entendemos. A julgar pelas concluses deHamlyn, distinguir passado e futuro do presente implica a possibilidade de dizer queele no - uma vez que dizer que foi ou que ser implicar contrast-lo com oele . De modo que, se ele , no foi no passado, nem ser . Haveria, assim,apenas um eterno agora, nenhum tempo propriamente dito. Dai no poderhaver fenmeno que envolva tempo e passado, presente e futuro. Quanto questo do espao, Parmnides mantm a completeza daquilo que , a impossi-bilidade de ele ser exposto a qualquer coisa, e a impossibilidade da diferenciaoespacial. Na verdade, a nica coisa que se pode dizer a respeito daquilo que queele (Hamlyn, 1990, p. 25 - 26).

    13 Lembremos que Herclito e Parmnides esto sendo chamados a testemunhar jna qualidade de filsofos. Antes deles e ao lado deles, nos lugares em que vivem oufora deles, no so poucos os exemplos de mitos e narrativas religiosas cujoscontedos so indicativos de questes muito semelhantes. Cassirer lembra que no

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    Estudos de Sociologia

    mito cosmognico babilnico vemos Marduk, o heri, em plena batalha contra ocaos informe. Uma vez vencedor, instaura os eternos signos que simbolizam aordem do universo e a da justia. Cassirer traz esse exemplo como prova darelao entre as concepes do universo fsico e mundo moral (Cassirer, 1955, p.8- 9).

    14 Nesse quadro, Ginsberg, citado por Bottomore, inventaria seis tipos de generali-zao na cincia social. O primeiro a correlao emprica entre fenmenossociais concretos (por exemplo, a vida urbana e os ndices de divrcios). O segun-do so as generalizaes formulando as condies sob as quais as instituies ououtras formaes sociais surgem (por exemplo, vrias explicaes sobre a origemdo capitalismo). O terceiro so as generalizaes afirmando que as modificaesem determinadas instituies esto regularmente associadas s modificaes emoutras instituies (por exemplo, associao entre as modificaes na estrutura declasses e outras modificaes sociais, na teoria de Marx). O quarto, generalizaesafirmando a existncia de repeties rtmicas ou fases-seqncia de vrios tipos(por exemplo, tentativas de distinguir as fases do desenvolvimento econmi-co). O quinto, generalizaes descrevendo as principais tendncias na evoluo dahumanidade como um todo (por exemplo, a lei de trs estgios de Comte, a teoriamarxista do desenvolvimento desde a sociedade primitiva at a sociedade comunis-ta). Finalmente, as leis sobre as implicaes de suposies relacionadas com ocomportamento humano (por exemplo, certas leis de teoria econmica) (Ginsberg,19700, p. 31).

    15 Mas h um outro contexto no qual esses mesmos pontos de partida da tradioesto presentes. Trata-se do trabalho da cincia nos campos social e poltico. Seusefeitos so, aqui, muito mais abrangentes que aqueles a que chegamos atravs dabusca pura da verdade cientfica. E isso tanto mais verdade quanto mais nosaproximamos dos problemas levantados pelo veio crise poltico-social/ordem.Davi, por exemplo, reconhece em Durkheim sua ligao com uma linguagemfilosfica que remonta a Plato, passando por Comte e Saint-Simon. A analogia lmpida. Plato sonhava subtrair a cidade desordem e ao excesso mediante amais sbia constituio; e no concebia essa constituio a no ser baseada nacincia - e, no, na simples opinio - que ainda no era, para ele, sem dvida, acincia dos fatos, como a Sociologia positiva do sculo XIX, mas a cincia dasidias, como a concebia; nem por isso era menos, a seu ver, a nica verdadeiracincia, e o nico meio de salvao, assim para o homem como para a cidade.Segue ele: Mais prximo de ns, e diante da mesma ocasio de crise poltica emoral, desta vez aberta por obra da Revoluo Francesa, e das reconstruesreclamadas pelas negaes dessa revoluo, pede Augusto Comte cincia quedeseja positiva, o segredo da reorganizao mental e moral da humanidade. E sempre a mesma salvao pela cincia que Durkheim busca apaixonadamente,depois da comoo dos espritos e das instituies, consecutiva, em Frana, derrota de 70, e em presena desse abalo de outro gnero, mas acompanhado de

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    anloga necessidade de reorganizao, o abalo provocado pelo desenvolvimentoindustrial. Transformaes das coisas reclamam transformaes dos homens. S cincia deve caber inspirar, dirigir e executar essas reconstrues necessrias; e,como a crise das sociedades, a cincia que a resolver deve ser cincia das socie-dades: tal a convico de que surgiu, e que sustenta a Sociologia durkheiminiana,filha da mesma f absoluta na cincia, presente na poltica de Plato e no positivismode Augusto Comte (Davi, 1983, p.XIV e XV).

    16 Parmnides o primeiro pensador que levanta conscientemente o problema domtodo cientfico e o primeiro que distingue com clareza os dois caminhos princi-pais que a filosofia posterior h de seguir: a percepo e o pensamento (Jager,1986, p.151).

    17 Destacamos como exemplo a tese que pede ateno para o fato de que os juzosou proposies acompanhados de predicados do tipo verdadeiro, falso, sereferem a determinadas circunstncias, condies, situaes, momentos do tempo,etc.. De tal forma essas qualificaes seriam importantes que uma proposioseria verdadeira (e o seria de forma absoluta), dentro de condies especificadas(Mora, 1985, p. 266).

    18 Uma reflexo que, de forma muitas vezes reiterada, significou profisso de f emrgos relacionados faculdade do conhecimento (na qual a contraposio senti-dos x razo, assumiu posio de destaque). guisa de exemplo, Bacon registra queos que se dedicaram s cincias foram ou empricos - que, maneira das formigas,acumulam e usam as provises -, ou os racionalistas - que, maneira das aranhas,de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. So formas de elaborao que,de acordo com o autor, devem ser rejeitadas. Na verdade, uma outra imagempermite a introduo de um modelo ideal. Assim, a abelha representa a posiointermediria. Recolhe a matria das flores do jardim e do campo e com seusprprios recursos a transforma e digere. O material fornecido deve ser modificadoe elaborado pelo intelecto. Em concluso, muito se deve esperar da alianaestreita e slida (ainda no levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimen-tal e a racional (Bacon, 1984, p. 63).

    19 Ademais, aceitando o risco de tangenciar uma discusso complexa e com aciden-tes que impedem qualquer viso linear sobre sua histria, chamemos ateno parao fato de que cada uma dessas dimenses da discusso em torno do conhecimentoenfrenta os plos sujeito/objeto. Conforme a tradio que desagua no sculo XIX,a iniciativa do conhecer pertence, por certo, ao sujeito cognoscente. Esta iniciati-va define precisamente sua subjetividade. uma iniciativa que tem como um deseus efeitos, precisamente, fazer presente ou manifesto o objeto, tornar evidentea realidade mesma, fazer falar os fatos. , alm disso, uma afirmao que deve sertomada com cautela. Em primeiro lugar porque, com o estruturalismo, o sujeito,a conscincia, vo apagar-se em proveito da regra, do cdigo e da estrutura (Dosse1993: 24). Depois, porque uma das mais influentes reflexes sobre a teoria do

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    conhecimento cientfico, a de Popper, prope o que seria uma epistemologia semsujeito (Santos Filho, 1993).

    20 Permitir a entrada em cena de dois pensadores que, com Galileu, inauguraramveios epistemolgicos para a era moderna, no significa acreditar na Idade Mdiacomo Idade das Trevas. Seria estupidez, nos dias de hoje, se deixar conduzir por talpreconceito. Nem Bacon nem Descartes teria tido sequer uma linguagem com quese expressar filosoficamente no houvessem eles conhecido a contribuio medie-val. Mais a mais, possvel localizar em um autor como Toms de Aquino, entreoutros, as marcas dessa matriz da teoria do conhecimento platnica. prova dissoa distino que realiza entre entes incorruptveis e imveis, entes mveis eincorruptveis e entes mveis e corruptveis. So distines que ajudam, em suaobra, a fundar as diferenas epistemolgicas das cincias (Nascimento, 1998, p.75). Deixando, portanto, suas marcas na filosofia da Idade Mdia, nossas questesso, todas, questes que obrigaram e abrigaram investimentos que se acentuam comnovas caractersticas durante o Renascimento. provvel, inclusive, como que-rem muitos historiadores, que os que hoje consideramos pioneiros no tenhamdesenvolvido um investimento satisfatrio na (re) fundao de uma epistemologiaou, mesmo, em uma teoria sobre o mtodo. Leonardo da Vinci , certamente, umexemplo disso. Ainda assim ele, como outros, estiveram ativamente ocupados como que, hoje, muitos reconhecemos como prtica cientfica. Tudo indica teremexibido uma familiaridade extraordinria com tudo o que depois passamos a reco-nhecer como princpios do mtodo. Se, como deseja Blake, escassamente teri-am tido conscincia disso, no importa (Blake, 1989, p. 11). O que parece valer o fato de terem imposto a reflexo sobre seus procedimentos queles que perce-beram o significado de suas obras. E, se tudo isso verdade, deixamos de lado essesperodos - da mesma forma como no aprofundamos outros, por estarmos interes-sados mais imediatamente naquelas presenas que so mais claramente percept-veis como mediaes para a instituio do saber sociolgico.

    21 Caso no bastasse outro motivo, ela presenciou e foi marcada pelo aparecimen-to de trs pensadores clebres, numa s gerao, em trs pases diferentes, apsquatro sculos de autoridade aristotlica na cincia, e todos eles se lhe opunhamcom bases slidas, embora diferentes (Drake, 1981, p 28).

    22 Mais a mais, seguindo a Koyr, talvez fosse melhor falar, quanto ao sculo XVII,de uma revoluo cientfica e filosfica: impossvel separar o aspecto filosfi-co do puramente cientfico desse processo, pois um e outro se mostraminterdependentes e estreitamente unidos (Koyr, 1979, p. 14).

    23 auto-evidente, aqui, nestas passagens, o pressuposto do mtodo como condiode superao do reino dos acontecimentos.

    24 De acordo com Foucault, a discusso de Descartes sobre a ordem faz parte domovimento que inaugura a ruptura com o pensamento que se move no elementoda semelhana. Ao recus-la, Descartes institui na comparao uma busca pela

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    universalizao e por sua forma mais pura. A comparao, na reflexo cartesiana, reportada ordem (Foucault, 1985, p. 65 e segs.).

    25 As coisas no so consideradas em sua natureza isolada Depois da intuio dealgumas proposies simples, quando tiramos delas outra concluso, til recorrers mesmas proposies e, num movimento contnuo e completamente ininterruptodo pensamento, refletir em suas diversas relaes mtuas e conceber de maneiradistinta vrias delas por vez, na medida do possvel; dessa maneira, com efeito,nosso conhecimento se torna muito mais certo e cresce sobretudo a extenso donosso esprito (Descartes, 1970).

    26 Isso de tal maneira que, cada vez que se encontra uma dificuldade, podemosimediatamente dar-nos conta da utilidade de rever, qu outras e em que ordem. Poroutro lado, preciso, em cada srie de coisas em que deduzimos umas das outras, darconta daquilo que o mais simples e de como todo o resto est mais, menos ouigualmente longe dela (Descartes, 1970).

    27 E isso no se deteve no aspecto do mtodo. Nas palavras de Prigoine e Stengers,durante algum tempo pde ser mantida por alguns a iluso de que a atrao, postaem frmulas pela lei da gravitao, permitiria atribuir natureza uma animaointrnseca e, depois de generalizada, explicaria a gnese de formas de atividade cadavez mais especficas e eletivas, at s interaes que constituem a sociedadehumana (Prigogine, 1991, p. 39).

    28 DAlambert, lments de Philosophie, citado por Cassirer (1966, p. 92).

    29 E, no entanto, no h lugar para ingenuidade. No sculo XIX, o nome de Newtoncongrega o que tem de modelo para as cincias. Longe de significar consenso,isso ponto para divergncias. Principalmente no que diz respeito ao mtodo, adisputa pela interpretao adequada da proposta newtoniana garante as polmicase a pluralidade no seio da produo cientfica (Prigogine, 1991, p. 20).

    30 Novamente, qualquer viso de linearidade, de apaziguamento nos debates enga-nosa. A natureza das relaes entre os fenmenos alvo de no poucas discusses.As explicaes variaram entre os muitos empirismos e os no poucos racionalismos(Canguilhem, 1970, p. 168).

    31 A Enciclopdia uma expresso desse movimento cultural a que chamamosIlustrao. Seus principais objetivos eram, como Enciclopdia, expor a ordem eo encadeamento dos conhecimentos humanos; e Dicionrio, contar os princ-pios gerais em que se baseiam e os detalhes mais essenciais que formam o corpo ea substncia de cada cincia, de cada arte, de cada ofcio, sem qualquer discrimina-o. Sua inteno, nas palavras de Diderot e DAlambert, seus editores, era, expres-samente, examinar a genealogia e a filiao de nossos conhecimentos, as causasque devem t-los feito nascer e os caracteres que os distinguem. Trata-se de umaaventura que remonta at origem e formao das idias (Diderot, 1989).

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    Estudos de Sociologia

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    RESUMO: Este artigo tem como motivao inicial inquietaes nascidasda leitura de alguns trabalhos que se apresentam como projetos de pes-quisa em Cincias Sociais. Mais especificamente, nos chama ateno adiscusso freqentemente apresentada como procedimentosmetodolgicos. Em nome de um enfrentamento das deficincias que alijulgamos presentes, procuramos resgatar traos de uma trajetria da dis-cusso sobre o mtodo. Nesse itinerrio, assumimos como pressupostosubjacente que cada um dos clssicos fundadores conhecia o que h defundamental na tradio da reflexo sobre o tema.

    PALAVRAS-CHAVE: Sociologia; Teoria do Conhecimento; Mtodo.

    ABSTRACT: This paper originates itself from some questions born fromthe reading of a few projects of research papers in Social Sciences. Morespecifically, what calls the attention is the frequent argumentation aboutthe methodological procedures .Because of the deficiencies present inthose texts, we tried to rescue some of the points in that argumentation.In this way, we have assumed as an underlying pressuposition that eachof the classics knew exactly what is fundamental in the tradition of method.

    KEY WORDS: Sociology, theory of knowledge, method.

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    Estudos de Sociologia