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Homenzinho A

O T E R M I N A R a cerimônia da entrega dos prêmios, t i t ia Cal levou-me

para casa .Eu estava num dia de plena felicidade. Ia pela rua a rir

para tudo, exibindo no peito a medalhinha de prata que me coube

e a exigir, com os olhos, que os transeuntes olhassem a

medalhinha. Almoço, em casa de titia Calu, foi quase um

almoço de festa. Titio Eugênio levantou o copo e bebeu à minha

saúde. —Àsaúde, disse ele, do menino brioso que

conquistou um dosmais belos prêmios do colégio em que se

educa!Ànoitinha titia mandou que o Julinho saísse a passear

comigo. —Vá despedir-se da cidade, disse-me, que você

irá passar trêsmeses longe dela.

Saímos para a rua. Eu ia silencioso ao lado do Julinho,sonhando,

fantasiando, fazendo castelos no ar.

Via-me chegando à vila. O porto estava assim de povo. Toda

agente miúda à minha espera: o Canutinho, o Antonico, a

Conceição,o Bicho-de-coco, a B i l u c a , o

Fala Mole, o Pata-choca, oDedé, o Laleco,opróprio Sinhozinho... A escola

inteira ali, no porto...

E a g e n t e g r a n d e t a m b é m : o p a d r e

Z a c a r i a s , o p a i d o Sinhozinho, o juiz municipal, o

telegrafista, o coletor, dona Janoca,dona Neném, dona Rosinha, o

pai e a mãe da Biluca, o Biné...

Eu saltaria com a medalhinha no peito.

Minha mãe a beijar-me longamente...

Meu pai a apertar-me nos braços...

Vovô e vovó afogando-me em carinhos...

Ameninada disputando o meu braço, olhos acesos em cima

da medalhinha...

Pedestal do cruzeiro, à noite... Eu contando novidades...

Ameninada, em derredor, ouvindo religiosamente.

Durante as férias não haveria na vila ninguém mais importante

do que eu.

Naquele momento íamos entrando no Largo do Carmo.

O J u l i n h o p a r o u .

—O n d e v a mo s a g o r a ?

— À f a r m á c i a , r e s p o n d i .

— F a z e r o q u ê ?

—Ver as bolas de luz.

Uma censura relampejou lhe nos olhos.

—Que idéia!! Não sei como você não quer uma

mamadeira!Você não é mais criança. Terminou hoje o curso

primário. Já é,portanto, um homenzinho. Então um homem se

abala de casa paraver globos luminosos de farmácia?

Ecom um tom de voz que era uma vaia:

—O r a , s e u C a z u z a ! Caí em mim. Num segundo tudo se

transformou dentro do meuser.

Empinei o peito. Tomei um ar de quem estava cheio de

vento.Meti os dois dedos nas cavas do coletinho e fui andando

para afrente, a passos firmes.

Ninguém me olhava. Ninguém fazia caso de minha figurinha.Mas

eu estava convencido de que toda aquela gente me

apontava,dizendo:

—Este é o Cazuza! Ele não é mais criança. Agora é

umhomenzinho!

Rio, dezembro de 1936 a junho de 1937.