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285 Capítulo 9 Capítulo 9 DOR EM PACIENTE COM C´NCER * ResponsÆvel pelo Serviço de Dor Crônica Instituto Nacional de Câncer, Rio de Janeiro - RJ 1 - Incidência e Prevalência De acordo com estimativas da Organizaçªo Mundial de Saœde (OMS), no ano de 2021 haverÆ 15 milhıes de novos casos de câncer, respondendo por 9 milhıes de óbitos. Atualmente, a dor relacionada ao câncer aflige mais de 8 milhıes de pacientes em todo o mundo, e irÆ acometer 50% dos paci- entes durante os vÆrios estÆgios da doença. Aproximadamente, 75% dos pacientes com câncer em fase avançada se queixam de dor, sendo a dor descrita como moderada ou insuportÆvel em 50% e 30% dos casos, respec- tivamente 1, 2, 3 . Nœmeros tªo impressionantes merecem, no mínimo, reflexªo. Especi- almente porque o emprego racional de drogas analgØsicas, por via oral, resul- ta no controle da dor em cerca de 90% dos casos. Apenas 10% dos pacientes sªo considerados nªo responsivos ao tratamento medicamentoso por via Luiz Guilherme L. Soares *

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Capítulo 9Capítulo 9

DOR EM PACIENTE COMCÂNCER

* Responsável pelo Serviço de Dor CrônicaInstituto Nacional de Câncer, Rio de Janeiro - RJ

1 - Incidência e Prevalência

De acordo com estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS),no ano de 2021 haverá 15 milhões de novos casos de câncer, respondendopor 9 milhões de óbitos. Atualmente, a dor relacionada ao câncer aflige maisde 8 milhões de pacientes em todo o mundo, e irá acometer 50% dos paci-entes durante os vários estágios da doença. Aproximadamente, 75% dospacientes com câncer em fase avançada se queixam de dor, sendo a dordescrita como moderada ou insuportável em 50% e 30% dos casos, respec-tivamente1, 2, 3.

Números tão impressionantes merecem, no mínimo, reflexão. Especi-almente porque o emprego racional de drogas analgésicas, por via oral, resul-ta no controle da dor em cerca de 90% dos casos. Apenas 10% dos pacientessão considerados não responsivos ao tratamento medicamentoso por via

Luiz Guilherme L. Soares *

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oral, necessitando, eventualmente, de vias alternativas de administração deopióides, bloqueios neurolíticos, procedimentos neurocirúrgicos, isto é, umaabordagem mais agressiva por parte do especialista em dor4, 5.

A falta de treinamento teórico e prático sobre o uso de analgésicos,entre os profissionais de saúde, representa uma das causas mais comuns deinsucesso terapêutico nesse grupo de pacientes. Outras causas incluem: custosdo tratamento, pouca disponibilidade de opióides, problemas sociais edesinformação entre pacientes e cuidadores6, 7, 8, 9.

O pleno entendimento do conceito �Dor total� é fundamental para osucesso terapêutico. Aspectos sociais, psicológicos e espirituais devem serenfatizados. Mais do que uma questão técnica, o médico envolvido no trata-mento da dor oncológica está diante de um dilema ético em que o sofrimen-to do paciente, quando não aliviado, resulta em perda da identidade, isola-mento e desumanização.

2 - Etiopatogenia

As diversas síndromes dolorosas relacionadas ao câncer são resulta-do da extensão do tumor para ossos, nervos ou vísceras, em 80% doscasos10.

A invasão óssea é considerada a causa mais comum de dor, uma vezque metástases ósseas acometem cerca de 30 a 70% de todos os pacientes comcâncer11-12. As vértebras são o sítio mais freqüentemente acometido por metástase,usualmente resultado da disseminação tumoral por via hematogênica. Uma dascomplicações mais temidas é a compressão medular decorrente de fraturasvertebrais que, se não tratada de forma emergencial, pode resultar em paraplegiaou quadriplegia13. A dor desencadeada por atividades voluntárias como, porexemplo, a mudança de decúbito, é conhecida como dor incidental e é alta-mente sugestiva de acometimento metastático ósseo.

Invasões de estruturas nervosas pelo tumor são comumente observa-das em pacientes com câncer. Alguns tumores de cabeça e pescoço podemcomprimir o plexo cervical, resultando em dor retroauricular, no ombro emandíbula. A neuralgia glossofaríngea é resultado de infiltração tumoral dopescoço ou da base do crânio14, 15. Tumores de mama e pulmão podeminvadir o plexo braquial, por extensão direta ou por aumento dos linfonodos,resultando em dor de difícil controle. A infiltração da pleura parietal e da

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parede torácica, por extensão direta do tumor, pode resultar em hiperalgesiacutânea. Pacientes com tumores hilares relatam dor na região escapular ouesternal, enquanto que os tumores de lobo superior e inferior estão associa-dos à dor no ombro e tórax inferior, respectivamente16.

As estruturas viscerais, quando acometidas pela neoplasia, podemapresentar síndromes características. É o caso do tumor de esôfago quenão raramente resulta em dor retroesternal, irradiada para as costas, oupara a região retroescapular. Em outros casos, a distensão da cápsula deGlisson do fígado pode ocasionar dor abdominal, que também pode serreferida como dor no pescoço, ombro e escápula, usualmente à direita. Ostumores de cabeça de pâncreas causam mais freqüentemente dor epigástricacom irradiação para o flanco direito, enquanto que tumores de cauda depâncreas usualmente irradiam para o lado esquerdo.Outra queixa comumnesse tipo de paciente é a irradiação da dor para região dorsal, em territó-rio de T10-T11, e que, eventualmente, melhora com a posição sentada.Entretanto 67% dos pacientes com tumor de pâncreas não foram capazesde descrever uma localização precisa da dor, e a relataram como �abdomi-nal difusa�17.

Os tumores pélvicos e ginecológicos podem cursar com dor perineale tenesmo. Nesse tipo de paciente, a presença de fístulas e infecções recorren-tes agravam o quadro, e o controle de sintomas é um grande desafio.

Em alguns casos, o próprio tratamento empregado pode ser o res-ponsável pela dor do paciente. É o caso da radioterapia, um valioso trata-mento no combate ao câncer. A irradiação de estruturas pélvicas pode resul-tar em retite actínica e dor de difícil controle. As toracotomias e mastectomiaspodem resultar em dor crônica, resultado de lesões em estruturas nervosascomo o nervo intercostobraquial, durante as mastectomias18, 19, 20.

Além disso, é importante lembrar que esses pacientes podem sofrerintercorrências que cursam com dor, como emergências vasculares, úlcerasperfuradas, obstrução intestinal e fraturas vertebrais, nem sempre resultadodo câncer prévio.

3 - Avaliação

A avaliação clínica baseada na história do paciente e em exames deimagem, quando necessário, é o primeiro passo para a escolha do tratamen-

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to. Durante a entrevista com o paciente, a dor deve ser caracterizada e osseguintes pontos devem ser abordados21:

1 - Localização2 - Irradiação3 - Intensidade4 - Variação temporal5 - Fatores associados à melhora ou piora da dor.

A distinção entre dor generalizada e localizada tem importânciadiagnóstica e terapêutica. Apesar da dor generalizada ser tratada com o em-prego de analgésicos por via sistêmica, a dor localizada pode significar apresença de metástase e, em alguns casos, como na metástase óssea, a radio-terapia ou o emprego de radioisótopos pode estar indicada.

A irradiação da dor tem importância diagnóstica. É o caso do pacien-te com dor abdominal em �barra� com irradiação para o dorso altamentesugestivo de pancreatite, e observado em alguns pacientes com tumor depâncreas.

A intensidade da dor deve ser perguntada ao próprio paciente. Pode-mos utilizar, para isso, uma escala numérica verbal (ENV) de 0-10 (0= ausên-cia de dor e 10= pior dor possível). A dor é considerada leve (ENV 1-4),moderada (ENV de 5 a 7) ou intensa (ENV de 8 a 10)22.

Alguns pacientes referem episódios de dor intensa ou �crises de dor�,de inicio súbito e sobrepostos ao quadro álgico basal (breakthrough pain). Es-ses episódios usualmente duram minutos e podem acometer até 60% dospacientes com câncer, a despeito do controle adequado basal da dor. Muitosdesses casos de dor episódica podem ser precipitados pelo movimento oupor alguma atividade voluntária (dor incidental). Tradicionalmente, a presen-ça de dor episódica sinaliza uma síndrome de difícil tratamento. Nesses ca-sos, é fundamental prescrevermos opióides adicionais para as �crises de dor�.

Apesar da história clínica ser suficiente para o diagnóstico da síndromedolorosa, na maioria dos casos, por vezes recorremos a exames de imagem,como tomografia computadorizada, ressonância nuclear magnética ecintilografia óssea. Infelizmente, a causa da dor, na maioria das vezes, estáassociada à progressão ou recidiva do tumor.

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4 - Classificação

A dor relacionada ao câncer pode ser multifatorial, e o mesmopaciente pode referir tipos diferentes de dor durante o curso da doen-ça.

Por uma questão didática, a dor oncológica pode ser classificadade várias maneiras. Classicamente a distinção entre dor neuropática (porex: neuralgia pós-herpética) e nociceptiva visceral (por ex: tumor de pân-creas) ou nociceptiva somática (por ex: dor óssea) tem sido empregada.Infelizmente, a maioria dos pacientes com câncer apresenta síndromesdolorosas mistas onde a distinção entre nocicepção somática, visceral edor neuropática se torna impossível. Outros autores enfatizam a impor-tância de uma classificação temporal da dor. Como veremos adiante, ésabido que 30 - 60% dos pacientes com dor oncológica apresentam umavariação temporal da dor, cursando com exacerbações transitórias(�breakthrough pain�), a despeito de um controle adequado da dor basal.A taxonomia proposta pela International Association for the Study of Pain(IASP) tem sido criticada pela pouca aplicabilidade prática, apesar deenglobar variáveis importantes como etiologia, localização e variação tem-poral23, 24. The Edmonton Staging System é uma outra classificação que levaem conta alguns parâmetros propostos pela IASP, com a vantagem deprognosticar a resposta ao tratamento25, 26.

Entretanto, não existe consenso quanto a melhor maneira de classifi-car a dor oncológica. Rotineiramente, à beira do leito e de forma superficiale prática, a classificação mais utilizada baseia-se na etiologia envolvida, isto é,se a dor é ocasionada por efeitos diretos do tumor, efeitos do tratamento oucausas não diretamente relacionadas ao câncer27, 28.

4 - Tratamento

4.1 - Escada Analgésica da Organização Mundial de Saúde (0MS)

Em 1986, a OMS publicou um algoritmo que serve de modelo até osdias de hoje para o tratamento da dor oncológica. Esse algoritmo conhecidocomo �escada analgésica� é o modelo clínico que deve ser utilizado no trata-mento da dor do câncer. O índice de sucesso, quando aplicado de forma

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correta chega a 90% dos casos29, 30. Os 5 princípios básicos da escada analgé-sica são :

1 - pela boca: preferencialmente a medicação deve ser oferecida pelavia oral.

2 - pelo relógio: é fundamental respeitarmos o intervalo de adminis-tração, de acordo com a meia vida de cada droga. O medicamentodeve ser prescrito de forma regular e doses adicionais, caso neces-sário.

3 - para o indivíduo: uma avaliação contínua deve ser empregada du-rante todo o tratamento, antecipando os efeitos adversos e corri-gindo as doses e, eventualmente, trocando o opióide, no caso defalha ao esquema proposto.

4 - pela escada: Respeitar a escada analgésica da OMS.5 - atenção aos detalhes: Orientação ao paciente e aos cuidadores é

fundamental. Avaliação das condições psicosociais nos ajudam aselecionar o melhor esquema terapêutico e possíveis limitações aoesquema proposto (por exemplo: Uso da via intratecal em pacien-tes sem condições básicas de higiene ou sem cuidador envolvidono processo da doença).

Degrau 1Pacientes que não estão sob tratamento analgésico e com dor leve

a moderada devem ser tratados com drogas antiinflamatórias. As drogasempregadas incluem paracetamol e antiinflamatórios não hormonais(AINES). A baixa potência associada aos efeitos colaterais dessas medi-cações, como gastropatia, insuficiência renal e hepatopatia, limitam suaeficácia.

Degrau 2Em pacientes com dor moderada, a despeito do uso dos AINE, de-

vemos adicionar ao tratamento opióides fracos como tramadol ou codeína.Alguns investigadores preconizam o uso precoce do degrau 2, para pacientescom dor moderada e sem tratamento prévio.

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Degrau 3O degrau 3 é reservado para os pacientes que não obtiveram controle

da dor com o uso de opióides fracos e AINES. Nesse degrau, substituímosos opióides fracos por opióides fortes como morfina, metadona, oxicodonaou fentanil. É importante lembrar que não existe limite de dosagem para osopióides fortes, e a dose considerada máxima é aquela que consegue o me-lhor balanço entre analgesia e efeitos colaterais.

4.2 - Opióides Fortes

Os opióides fortes mais empregados no nosso meio são a morfina,fentanil transdérmico, metadona e oxicodona30.

A morfina é o opióide mais utilizado para o controle da dor oncológica.O principal sítio de metabolismo da droga é o fígado, onde, por um processode glucoronidação, são formados seus principais metabólitos: morfina-3-glucoronídeo (M3G) e morfina-6-glucoronídeo (M6G). A M6G possui açãoanalgésica, diferentemente da M3G. É sabido que os efeitos analgésicos damorfina assim como boa parte dos efeitos colaterais se devem à relação entreM3G e M6G no sangue. Além da via oral, podemos utilizar a via subcutânea,para o tratamento domiciliar, respeitando a equivalência das dosagens entre asvias. Usualmente, quando utilizamos a via subcutânea, empregamos a metadeou um terço da dose oral prévia. Além disso, devemos respeitar o intervalo deadministração entre as doses que é de 4 horas. Existem no mercado, formula-ções de liberação lenta, em que o intervalo entre as doses é de 8 e 12h.

O fentanil transdérmico (�patch�) se tornou extremamente popular notratamento da dor oncológica. A droga está disponível em adesivos de 25,50, 75, 100 mcg/h. Apesar de alguns estudos utilizarem a droga no trata-mento da dor aguda, seu uso deve ser recomendado apenas durante o trata-mento da dor crônica. É importante lembrar que depois de aplicado, seuinicio de ação é lento (8-10 horas), e, após retirado, seu efeito ainda persistepor 8-12 horas31. Em pacientes com tumor de cabeça e pescoço, impossibi-litados de ingerir analgésicos pela via oral, seu uso é bem indicado. Outrosgrupos que se beneficiam da droga são crianças e pacientes com efeitoscolaterais severos à morfina, como delirium, constipação e vômitos.Entretanto,o fentanil transdérmico deve ser substituído a cada 72 horas; logo, em paci-entes com dor descontrolada, outras opções deverão ser consideradas. Uma

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minoria dos pacientes necessitará de trocas mais freqüentes, a cada 48horas. Nesses casos, devemos considerar um aumento da dose do adesi-vo, ou um outro opióide, levando em conta o custo benefício do trata-mento32.

A oxicodona é um opióide com excelente biodisponibilidade oral ecom metabólitos relativamente inativos. Sua potência é estimada como sen-do o dobro, em relação à morfina. A droga é uma valiosa alternativa emrelação à morfina, especialmente nos pacientes intolerantes aos seus efeitosadversos33.

Durante os últimos anos, a metadona vem ganhando destaque notratamento da dor oncológica. Características como baixo custo, excelentebiodisponibilidade oral, ausência de metabólitos ativos e facilidade de ad-ministração a cada 8 ou 12h tornou a droga bastante utilizada na doroncológica. Entretanto, a sua extrema variabilidade farmacocinética in-terindividual consiste uma barreira para o seu uso por muitos médicos. Ameia vida da metadona pode variar até 120 horas. A via intravenosa é duasvezes mais potente que a via oral. Apesar de a droga poder ser administra-da por via subcutânea, alertamos que a toxicidade local é comum e se evi-dencia pelo surgimento de eritema e dor no local de administração. A suapotência equianalgésica em relação à morfina é variável34, 35, 36. Assim, empacientes em uso de até 100 mg de morfina, utilizamos uma taxa de con-versão entre morfina e metadona de 1:5. Naqueles pacientes em uso de 100e 300 mg de morfina, adotamos uma taxa de 1:10, e acima de 300 mg demorfina, empregamos 1:12. A nossa rotina atual é admitir os pacientes comdor descontrolada durante o rodízio com a metadona ou manter contatotelefônico durante o rodízio da morfina para metadona.

Não devemos superestimar as atuais tabelas de conversão entreopióides, uma que vez que foram baseadas, na sua maioria, em estudos nãocontrolados, relatos de caso e modelos farmacológicos pouco confiáveis. Astabelas disponíveis atualmente servem para guiar o médico durante o trata-mento, mas não devem ser seguidas como uma �receita de bolo�. Algunsopióides, como a metadona, têm interações medicamentosas importantesque devem ser consideradas no início do plano analgésico a ser propostopara cada paciente. Além disso, a utilização das taxas de conversão de formabidirecional deve ser contra-indicada.

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4.3 - Efeitos Colaterais dos Opióides

O uso crônico dos opióides está associado a uma grande variedadede efeitos colaterais. Os mais comuns são náuseas, vômitos, distúrbioscognitivos, sedação e mioclonia. A prevalência desses efeitos é influenciadapela extensão da doença, idade do paciente, presença de insuficiência renal ouhepática, uso de outros medicamentos, dose e via de administração doopióide37.

Sintomas gastrointestinais são bastante freqüentes. Náusea e vômitossão comuns no início do tratamento, mas tolerância a esse efeito se desenvol-ve rapidamente. Nos pacientes com queixas significativas, a metoclopramidae o ondansetron usualmente controlam os sintomas. Por outro lado, a cons-tipação intestinal persiste ao longo do tratamento, e o uso concomitante delaxativos é quase universal. Nesses pacientes, uma dieta rica em fibras, orien-tada pelo nutricionista é importante.

Os efeitos cognitivos do uso de opióides incluem sonolência, altera-ções do humor e distúrbios do sensório, como alucinações visuais e auditi-vas e delirium. Nesses casos, a exclusão de um processo infeccioso, hiper-calcemia e outros distúrbios metabólicos é fundamental. O uso de neuro-lépticos, como o haloperidol, está indicado até a identificação da causaenvolvida. A sonolência excessiva pode ser tratada com psicoestimulantescomo o metilfenidato ou com a substituição do opióide. A substituição doopióide ou da via de administração freqüentemente resulta em um balançofavorável entre os metabólitos da morfina, especialmente a M3G. Nessescasos, o simples aumento da hidratação pode promover um �washout� des-ses metabólitos e a restauração da função cognitiva. Essa medida é especi-almente útil entre os opióides hidrossolúveis. A mioclonia pode ocorrercom o uso de qualquer opióide. Entretanto, em pacientes com insuficiênciarenal ou hepática, sua ocorrência é mais freqüente. A utilização declonazepam, ou valproato pode ser utilizada, assim como a substituição e,se possível, a redução da dose do opióide38, 39, 40.

4.4 - Procedimentos Invasivos

Infelizmente, cerca de 10% dos pacientes não obtêm analgesiasatisfatória com medicações e são considerados refratários ao tratamento,

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enquanto que ouros não toleram os efeitos colaterais como a sedação exces-siva, náuseas, vômito e delirium. Nesse grupo de pacientes, alguns procedi-mentos invasivos podem ser empregados como bloqueios de nervos, analgesiaespinhal e intervenções cirúrgicas. Uma explicação detalhada de cada proce-dimento iria além dos objetivos deste capítulo, e comentaremos apenas osprocedimentos mais realizados por anestesiologistas.

4.4.1 - Neurólise Química do Eixo Simpático

São procedimentos empregados como adjuvantes no controle da dorde origem visceral. Raramente, após o procedimento, a medicação analgésicapode ser suspensa, especialmente porque muitos desses pacientes apresentamcomponentes somáticos e neuropáticos não identificados previamente. En-tretanto, a redução do consumo de opióides é obtida em um número signi-ficativo de pacientes. Nos pacientes que apresentam doença extensa e que omecanismo da dor é multifatorial, a indicação do procedimento deve serquestionada, já que a sua eficácia é reduzida consideravelmente. Os procedi-mentos mais comumente empregados são o bloqueio de plexo hipogástricosuperior, plexo celíaco e gânglio ímpar. Esses bloqueios devem ser realizadoscom o auxílio de fluoroscopia ou tomografia computadorizada, e as subs-tâncias injetadas para a neurólise são habitualmente o álcool 50-100% oufenol 6-10%.

Bloqueio do Plexo Hipogástrico Superior

Esse bloqueio é usualmente empregado em pacientes com dor pélvicade difícil controle, como, por exemplo, no tumor de útero. O plexo hipogás-trico superior é uma estrutura bilateral e retroperitoneal localizada em níveldo terço inferior de L5 e do terço superior de S1. A interrupção das fibrasnervosas aferentes que inervam as estruturas pélvicas e que caminham aolongo de nervos simpáticos e gânglios é o objetivo da técnica.

Bloqueio do Plexo Celíaco

O plexo celíaco está situado no espaço retroperitoneal, em nível deT12 e L1, anterior à crura diafragmática, envolvendo a aorta e as artérias

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celíaca e mesentérica. A neurólise do plexo celíaco é normalmente emprega-da nos pacientes com dor abdominal localizada no andar superior do abdo-me, como no tumor de pâncreas. O plexo celíaco também é responsávelpela inervação do: fígado, vesícula biliar, omentum e o trato alimentar desdeo estômago até a porção transversa do cólon. Inúmeras complicações asso-ciadas ao bloqueio já foram descritas como: diarréia, vômitos, hipotensão,paraplegia e pneumotórax.

Bloqueio do Gânglio Ímpar

O gânglio ímpar é uma estrutura retroperitoneal única, localizada emnível da junção sacrococcígea. Essa estrutura limita o final da cadeia simpáticabilateral. Aferentes viscerais que inervam períneo, reto distal, ânus, uretra distal,vulva e terço distal da vagina convergem em nível do gânglio impar. A neurólisedesse gânglio pode resultar no alívio da dor, em pacientes com dor perineal,entretanto, a experiência clínica é limitada e o valor desse bloqueio, na práticacínica diária, ainda é indeterminado. O procedimento é considerado seguro e,até o momento complicações importantes ainda não foram relatadas.

4.4.2 - Neurólises Periféricas

São procedimentos indicados em pacientes com uma expectativa devida limitada e após esgotadas todas as tentativas para o controle da dor. Apersistência da dor após o procedimento, lesão de estruturas adjacentes efibras motoras, e o surgimento de dor central estão entre os possíveis efeitoscolaterais. Entretanto, uma revisão da literatura apenas evidenciou um benefí-cio temporário, especialmente nos casos em que existia alodinia41.

4.4.3 - Analgesia Espinhal

A administração intraespinhal de opióides ganhou importância após odescobrimento de receptores opióides na substância gelatinosa da medula,em 1976; com o reconhecimento de que os opióides possuem ação analgési-ca supraespinhal e espinhal. O sistema descendente inibitório da dor começacom projeções do córtex frontal e hipotálamo, e se dirige à substância cin-zenta periaquedutal, no mesencéfalo. A partir desse ponto, o sistema se pro-

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jeta para ponte dorsal e a medula rostroventral, através do da funículo dorsal,para terminar na substância gelatinosa do corno posterior medula espinhal.Esse sistema descendente inibe neurônios nociceptivos ascendentes de segun-da ordem, bloqueando a transmissão da dor. Na medula, no nível do cornodorsal, opióides pré sinápticos, diminuem a excitabilidade primária aferente einibem a liberação da substância P. Os potenciais de ação evocados poraminoácidos excitatórios são suprimidos, no nível pós sináptico42, 43.

A indicação mais aceita sobre a utilização da via espinhal, em pacientescom câncer, é a incapacidade de obter um balanço satisfatório entre analgesiae efeitos adversos dos opióides44.

Existem diversas maneiras de administração de opióides por via espi-nhal, como: intratecal, epidural, bolus ou infusão contínua. Na nossa experiên-cia, a via intratecal é a mais indicada, pois além de doses menores de opióides,não observamos fibrose na ponta do cateter, uma complicação comum davia epidural, que resulta em dor durante a administração dos analgésicos enos obrigando, muitas vezes, à retirada do cateter.

Podemos utilizar inúmeros opióides pela via espinhal. Entretanto, amorfina é o opióide mais utilizado, respeitando-se a taxa de conversão entrevia oral e epidural 1: 10 (10mg oral=lmg epidural) e 1:100 para a via intratecal(100 mg oral= 1mg intratecal) Além disso, por vezes, combinamos adjuvantescomo bupivacaína e/ou clonidina, obtendo, assim, maior potencialização daanalgesia45, 46.

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