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NIETZSCHE E A MORTE DE DEUS Adilson Felício Feiler, SJ Introdução Um Homem profundo precisa de amigos, a não ser que tenha um Deus. Eu não tenho nem Deus nem amigos.” ( Nietzsche em carta a sua irmã Elisabeth ). A genealogia da filosofia nietzscheana consiste basicamente na crítica da cultura ocidental, nos seus mais diversos aspectos. E entre estes constituem os valores o seu arcabouço fundamental, tendo presente o sujeito como o seu fundamento subjetivo. Neste sentido, a crítica de Nietzsche tem como alvo o sujeito enquanto agente moral. De fato, Nietzsche revela-se como crítico impiedoso do passado, como dessacrador dos valores tradicionais, e entre estes destacam-se os valores do cristianismo, uma moral de fracos; revela-se então ele como profeta da “morte de Deus” lançando as bases de uma moral que vai “além do bem e do mal,” moral dos fortes, daqueles homens que estão por vir. Aqueles homens que fiéis à terra, dela possam emergir como super-homens, livres de todo o jugo da moral tradicional e criadores de valores. Nietzesche revela-se verdadeiramente como um espírito que contradiz tudo aquilo que até então foi tido como fato consumado. Ele contradiz o positivismo e sua crença no fato, que em todo o tempo foi estúpido. Contradiz o idealismo por não corresponder a realidade única que é a terra. E ainda contradiz o historicismo que confere todo o poder à história, negando em contrapartida a crença que o homem deve depositar em si mesmo. Pode-se estabelecer três grandes fases na genealogia nietzscheana. 1 ª fase – Apolínea: em que Nietzsche exalta a primitiva cultura grega ( séc VI a. C. ).época dos grandes homens ( gênios ), filósofos pré-socráticos, os aristocratas do intelecto ( Tales, Anaximandro, Heráclito, Parménides, Empédocles, Demócrico e Sócrates ); são eles homens íntegros, completos, pouco comunicativos, afortunados do povo e dos costumes, aristocratas de espírito livre e criador, procurando sempre ver o mundo como ele é e não atrás de uma moral idealista, “(...) todo o ser humano, em plena atividade, unicamente tem dignidade na medida em que, consciente ou inconsciente, é um instrumento do gênio.” ( Nietzsche, 1817 ). 2 ª fase: Nietzsche volta as costas a fase anterior e exalta Sócrates ( período médio ), período transitório de reação. 3 ª fase: reaparece o primeiro período, porém amadurecido, é um verdadeiro renascimento do primeiro período aparecendo novos conceitos como eterno retorno, vontade de potência e além-do-homem. E é de acordo com esta terceira fase que situa-se a presente reflexão. Este período pode também ser chamado de transvaloração dos valores como se verá mais adiante. O desenvolvimento que segue divide-se em três capítulos. O primeiro tem em vista proporcionar uma visão geral, porém não exaustiva da vida e obras de Nietzsche, Compreensão esta se faz sumamente importante a fim de que se possa captar com maior clareza os diversos aspectos que tecem o seu pensamento. O segundo capítulo trata da

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NIETZSCHE E A MORTE DE DEUS

Adilson Felício Feiler, SJ Introdução

“Um Homem profundo precisa de amigos, a não ser que tenha um Deus. Eu não tenho nem Deus nem amigos.” ( Nietzsche em carta a sua irmã Elisabeth ). A genealogia da filosofia nietzscheana consiste basicamente na crítica da cultura ocidental, nos seus mais diversos aspectos. E entre estes constituem os valores o seu arcabouço fundamental, tendo presente o sujeito como o seu fundamento subjetivo. Neste sentido, a crítica de Nietzsche tem como alvo o sujeito enquanto agente moral. De fato, Nietzsche revela-se como crítico impiedoso do passado, como dessacrador dos valores tradicionais, e entre estes destacam-se os valores do cristianismo, uma moral de fracos; revela-se então ele como profeta da “morte de Deus” lançando as bases de uma moral que vai “além do bem e do mal,” moral dos fortes, daqueles homens que estão por vir. Aqueles homens que fiéis à terra, dela possam emergir como super-homens, livres de todo o jugo da moral tradicional e criadores de valores. Nietzesche revela-se verdadeiramente como um espírito que contradiz tudo aquilo que até então foi tido como fato consumado. Ele contradiz o positivismo e sua crença no fato, que em todo o tempo foi estúpido. Contradiz o idealismo por não corresponder a realidade única que é a terra. E ainda contradiz o historicismo que confere todo o poder à história, negando em contrapartida a crença que o homem deve depositar em si mesmo. Pode-se estabelecer três grandes fases na genealogia nietzscheana. 1ª fase – Apolínea: em que Nietzsche exalta a primitiva cultura grega ( séc VI a. C. ).época dos grandes homens ( gênios ), filósofos pré-socráticos, os aristocratas do intelecto ( Tales, Anaximandro, Heráclito, Parménides, Empédocles, Demócrico e Sócrates ); são eles homens íntegros, completos, pouco comunicativos, afortunados do povo e dos costumes, aristocratas de espírito livre e criador, procurando sempre ver o mundo como ele é e não atrás de uma moral idealista, “(...) todo o ser humano, em plena atividade, unicamente tem dignidade na medida em que, consciente ou inconsciente, é um instrumento do gênio.” ( Nietzsche, 1817 ). 2ª fase: Nietzsche volta as costas a fase anterior e exalta Sócrates ( período médio ), período transitório de reação. 3ª fase: reaparece o primeiro período, porém amadurecido, é um verdadeiro renascimento do primeiro período aparecendo novos conceitos como eterno retorno, vontade de potência e além-do-homem. E é de acordo com esta terceira fase que situa-se a presente reflexão. Este período pode também ser chamado de transvaloração dos valores como se verá mais adiante. O desenvolvimento que segue divide-se em três capítulos. O primeiro tem em vista proporcionar uma visão geral, porém não exaustiva da vida e obras de Nietzsche, Compreensão esta se faz sumamente importante a fim de que se possa captar com maior clareza os diversos aspectos que tecem o seu pensamento. O segundo capítulo trata da

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contextualização histórica em que viveu o homem e o filósofo Nietzsche, bem como das influências de pensamento por ele recebidas, dando-se especial atenção a sua interpretação do mundo grego baseado na concepção dos deuses Apolo ( deus da ordem e da harmonia ) e Dionísio ( o deus da desordem e da música ). É basicamente na interpretação destes dois mundos que funda-se a genealogia da filosofia nietzscheana. O terceiro capítulo apresenta propriamente o tema da presente pesquisa, a transvaloração dos valores, que corresponde a fase madura da filosofia de Nietzsche, em que ele se mostra como o grande transgressor da cultura ocidental de sua época, tendo como alvo principal de sua crítica a moral cristã. Este capítulo apresenta-se através de uma tríplice divisão: a crítica da cultura, a crítica da moral e da morte de Deus ao além-do-homem. Nietzsche concebe o Deus da religião cristã como a principal causa de todo o pessimismo e ressentimento nas quais a maior parte da humanidade tem estado mergulhado, neste sentido, a morte de Deus é apresentada como condição para o surgimento do super-homem, aquele homem livre de todo o peso e jugo da moral cristã, o único criador de valores. Oxalá que estas páginas possam apresentar de maneira clara, distinta e sem preconceitos o pensamento deste autor tão importante, cujos estudiosos da filosofia não podem deixar seu nome passar em branco.

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1. Vida e obras Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken, localizada nas proximidades de Leipzig. Foi dado o nome de Frederico em honra de Frederico Guilherme IV rei da Prússia cujo nascimento ocorreu em 15 de outubro e que foi o patrono real de Karl Ludwig Nietzsche, pai de Nietzsche. Seu pai foi pastor protestante, ministério este que já seus avô e bisavô maternos haviam também exercido. Neste sentido, Nietzsche foi educado num ambiente cristão. Na sua mocidade também havia pensado em seguir a mesma carreira do pai. Com o falecimento do pai e seu irmão caçula Joseph em 1849. Sua mãe Franziska com a família mudaram para Naumburg. Nietzsche viveu ali na companhia da mãe, da avó e duas tias. O “pequeno pastor “, como era chamado pelos colegas de colégio era uma criança grave e introspectiva. Nessa época Nietzsche enamorou-se pela música e pela literatura, compôs melodias e escreveu seus primeiros versos. Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na Landesschule, famoso internato protestante em Pforta, a cinco milhas de Naumburg. Lá haviam estudado o poeta Novalis e o filósofo Fichte. Permaneceu lá durante seis anos cuja rotina de vida foi marcada pela rigidez disciplinar e pelo espírito patriótico. Foi a partir das leituras que fez de Schiller, Höderlin e Byron, bem como da influência de um de seus professores que Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo. Embora apresentasse deficiência nos estudos da matemática, destacava-se como aluno brilhante em grego, estudos bíblicos, alemão e latim. Despertou nele durante essa época especial interesse e admiração pela cultura grega. Entre seus autores favoritos destacam-se Platão e Ésquilo. Na companhia de alguns amigos fundou uma agremiação denominada “Germânia,” que consistia na composição de poemas e de peças musicais. Esta agremiação, a sua convivência com os mestres, a companhia de amigos ( já que a amizade, baseada numa relação de entendimento e de uma necessidade de amar e ser amado, conservou-se sempre viva em Nietzsche ) e a sua própria obra literária constituiram fortes influências sobre ele. Na páscoa de 1861 recebeu sua confirmação na igreja luterana, sendo que alguns anos depois deu por interrompidos os seus laços com a religião, considerando-a “um produto da infantilidade humana”. Em outubro de 1864 Nietzsche foi para Bonn, onde estudou teologia e filosofia, durante este período entregou-se a uma vida alegre e boêmia juntamente com seus companheiros. Influenciado por seu professor Ritchal, Nietzsche interrompeu estes estudos, partindo para Leipzig, onde dedicou-se ao estudo da filologia. Ritchil considerava a filologia não apenas como história das formas literárias, mas como estudo das instituições e do pensamento. Enquanto estava em Bonn Nietzsche manteve-se razoavelmente ligado ao cristianismo. Quando seu amigo Paulo Deussen afirmou-lhe não possuir a oração valor real, cuja confiança por ela inspirada não passa de uma ilusão, Nietzsche então replicou que esta era uma das tolices de Feuerbach. Em outra ocasião, quando Deussen falou-lhe elogiosamente sobre a vida de Jesus de Strauss, Nietzsche respondeu: “Se sacrificardes Jesus tendes de sacrificar também Deus”. No entanto, a dúvida o mergulhou no tormento

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ao se depreender com uma carta escrita por ele a sua irmã ( cristã praticante ): “Que andamos nós buscando? Repouso e felicidade? Não, procuramos apenas a verdade, por muito má e terrrível que ela possa ser...São estes os caminhos traçados para o homem: se desejas a paz da alma e a felicidade, crê; se pretendes ser discípulo da verdade investiga”. Daí depreende-se a consideração de Nietzsche a respeito do conforto e da segurança emocionais trazidos pela fé. Estas constituem bases inaceitáveis para uma crença. Para ele, o verdadeiro estudioso deveria ser indiferente à paz da alma e à felicidade, por isso se investigamos estamos apenas à procura da verdade, por mais repugnante que ela possa ser. Nietzsche seguiu as pagadas de Ritchil e realizou investigações originais sobre Diógenes Laércio ( séc III ), Hesíodo ( séc VIII a C ) e Homero. A partir destes trabalhos foi nomeado professor de filosofia na Basiléia, onde permaneceu por dez anos. Em outubro de 1865, Nietzsche retornou a Leipzig, dando continuidade aos seus estudos de filosofia. Neste período ele teve contato com a obra de Schopenhauer ( 1788-1860 ) – O Mundo como Verdade e Representação. Nietzsche foi atraído pela pintura que Schopenhauer faz do mundo como manifestação de uma vontade cega, assim como a posição que a estética e a música em particular ocupam em sua filosofia; e principalmente pelo seu ateísmo. Assim, a sua separação do cristianismo completou-se em Leipzig, embora viesse a manifestar isto somente mais tarde. Nietzsche durante a sua permanência em Leipzig dá testemunho de sua felicidade nestes termos: “Três coisas constituem para mim consolação;: o meu Schopenhauer, a música de Schumann e, ultimamente os meus passeios solitários “. Esta vida feliz em Leipzig foi interrompida quando em 1867, foi chamado para prestar o serviço militar, contudo, um acidente em exército de montaria livrou-o desta obrigação. Pode então retornar aos seus estudos em Leipzig. Nesta ocasião Nietzsche teve contato com Richard Wagner ( 1813-1883 ), encantando-se com o seu drama misical, principalmente com Tristão e Isolda e os mestres cantores. Entre Nietzsche e Wagner brotou então uma profunda amizade, tanto é que Nietzsche sentia profunda consolação pelo fato de permanecer na casa de campo de Wagner em Tribschen, às margens do lago de Lucerna. Nessa época, em 1872, Nietzsche esboçou o seu livro: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, que trata das relações entre a música e a tragédia grega ( relações entre a cultura grega dionisíaca, forte e grande, e socrática, racionalista, anêmica e fraca ). Esta obra contém uma interpretação sobre as linhas de força presentes na arte grega, uma teoria sobre o drama ático, uma concepção sobre o desenvolvimento da filosofia a partir de Sócrates, um juízo sobre as possibilidades de recuperação da cultura moderna a partir da cultura dos antigos, e várias outras observações sobre temas afins. Como em 1870 a Alemanha entrou em guerra com a França Nietzsche foi recrutado para servir o exército como enfermeiro. Porém, ainda durante este período ele adoece, contraindo difteria e desinteria. Essa doença originou as suas dores de cabeça e estômago que o acompanhariam durante toda a sua vida. Ao restabelecer-se, volta à Basiléia, dando continuidade ao seu trabalho. Em 1878 ocorreu um rompimento nas relações entre Nietzsche e Wagner. Isto foi devido em parte por Wagner voltar-se para o cristianismo, como por nada possuir de reformador da cultura. A sua obra escrita nesta época: Humano, Demasiado Humano, testemunha este rompimento entre ele e Wagner, bem como a sua distância da filosofia de Schopenhauer.

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Em 1879, por motivos de saúde Nietzsche demitiu-se do ensino, já que a filologia não fazia parte do seu destino e inicia sua nômade vida de pensão em pensão através da Suíça, Itália e Sul da França. Em 1881, publicou a obra: Aurora, tendo pois já tomado campo as teses fundamentais do seu pensamento. A sua obra: A Gaia Ciência é de 1882, em que apresenta a promessa de um novo destino para a humanidade. Em 1882 Nietzsche travou conhecimento com a jovem russa Lou Salomé de 24 anos, por quem se apaixonou, pensando em desposá-la. Porém ela o rejeitou, unindo-se a Paul Ré, amigo e discípulo de Nietzsche. Na cidade de Rapalho, a 1883 Nietzsche concebeu sua obra prima: Assim Falou Zaratustra, concluída em Roma e Nice dois anos depois. Nela o personagem central, Zaratustra, se apresenta como o profeta anunciador de boas novas, já que com o esgotamento da suposição de Deus, abre-se a possibilidade de construir um novo sistema de valorações, afeito às realidades do ser humano finito e não a projeções ideais. Antecipa ele assim o aparecimento de uma nova espécie de ser humano, “o além-do-homem”. A 1886 publicou: Além do Bem e do Mal, obra que contém já o seu pensamento maduro, consiste numa espécie de apêndice aos escritos proféticos de Zaratustra, através de um esforço em esclarecer os pressupostos do projeto de transmutação de todos os valores encarnados pelo além-do-homem. A Genealogia da moral escreveu em 1887, obra polêmica em que ele chama a atenção no que respeita à origem dos pressupostos de nosso sistema moral, adotando para tanto uma nova perspectiva de análise, a genealógica. No ano seguinte escreveu: o Caso Wagner, O Crepúsculo dos Ídolos, O Anticristo, Ecce Homo ( espécie de autobiografia escrita no princípio de sua loucura ) e Nietzsche contra Wagner. Ainda nesse período Nietzsche vai para Turim, a cidade segundo ele dizia ser a sua cidade. Lá ele trabalhou na sua última obra: A Vontade de Poder, sem contudo concluí-la. A 03 de janeiro de 1889, cai vítima da loucura, lançando-se ao pescoço de um cavalo que o dono estava espancando em frente de sua casa em Turim. Confiado aos cuidados de sua mãe inicialmente e morta esta, de sua irmã Elisabeth. Foi internado em Basiléia, onde foi diagnosticada uma paralisia sifilítica, que progressivamente levou-o a apatia e a agonia. Sem poder dar conta do sucesso que as suas obras estavam tendo. Veio a falecer em Weimar imerso nas trevas da loucura, a 25 de agosto de 1900, tinha ele então 56 anos de idade, após 12 anos em estado de total eclipse mental. 2. Contextualização histórica

A Alemanha na época de Nietzsche apresenta-se politicamente em forma de estados independentes, razão pela qual não há um interesse por parte dos pensadores em discutir sobre questões políticas. mas em estabelecer uma cultura superior. Neste sentido, há uma ruptura entre política e cultura. Nesta época pode-se verificar também uma forte influência do iluminismo em todos os âmbitos da vida social e particular, surgindo então um movimento ( Sturm und Drang ) – tempestade e assalto, que busca romper com todo

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esse império da razão. Seus adeptos constituem verdadeiros transgressores de toda a ordem estabelecida. Em torno de 1790 surge um movimento neo-humanista que tenta resgatar os ideais culturais da civilização grega . Este movimento coloca-se contra a imitação das letras e costumes estrangeiros. Como era o que estava acontecendo na Alemanha que importava então a cultura francesa. O ideal máximo do humanismo consiste em cultivar o próprio espírito, entre os humanistas destacam-se Wilhem von Humboldt e Friedrich von Schiller. Em substituição ao neo-humanismo surge no início de séc XIX o romantismo, que busca realçar os valores nacionalistas, porém a unificação da Alemanha só se alcança com a guerra entre a França pelo primeiro ministro Otto von Bismarck, levando a fundação em 1871 do II Reich. Nesta época há um desenvolvimento acelerado da indústria, embora que tardio, para tanto urge a necessidade de um desenvolvimento na educação que capacite trabalhadores para a indústria. A educação passa assim do seu caráter humanístico para um caráter eminentemente prático, em que a quantidade adquire valor fundamental. Dentro deste contexto é que Nietzsche emerge como crítico ferrenho à cultura. Nietzsche considera os homens de então como filisteus da cultura, por serem incapazes de criar, limitando-se à imitação e ao consumo. “Ser cultivado, significa agora não deixar ver até que ponto se é mau e miserável, feroz na ambição, insaciável no lucro, egoísta e desavergonhado no prazer”. ( Nietzsche, Terceira Consideração Extemporânea: Schopenhauer Como Educador, &6 ). Na sua concepção cultural Nietzsche parte da divergência existente entre o Estado e a cultura, um vive em função da degradação do outro, de modo a que povos e indivíduos só possuírem algo se concentrarem as suas forças em torno ao Estado, o que equivale a uma debilitação da cultura. Para tanto Nietzsche aponta para uma tarefa a ser realizada por “grandes espíritos”, de desenvolver-se um conhecimento das condições da cultura que ultrapasse os estágios atuais. Urge então salvaguardar a liberdade interior que dinamiza a revolta e a rebelião contra toda a crença e ordem estabelecida e ao mesmo tempo a disciplina que desfaz os hábitos e comodidades. A cultura para Nietzsche não pode residir no Estado uniformizado ( rebanho ), mas no carácter cosmopolita, consistindo em uma empresa individual e cosmopolita. Os valores morais situados na cultura consistem o alvo da preocupação central de Nietzsche; sob quais condições e que valor têm os juízos de valor: bom e mau. 2.1. Influências recebidas No ano em que Nietzsche nasceu (1844), Augusto Comte publicava em Paris o seu “Discurso sobre o espírito positivo” e Marx e Engels davam início a sua longa amizade e profícua colaboração intelectual. Na Alemanha estava sendo lançada a segunda edição da obra de Schopenhauer: “O mundo como vontade e representação”. A definição intelectual de Nietzsche deu-se a partir de três fontes principais de influência: a teoria da vontade de Schopenhauer, as concepções musicais e culturais de Richard Wagner e a interpretação do materialismo e do darwinismo, através da leitura do neokantiano Friedrich Lange. Todas estas influências foram sendo processadas de modo

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individual e criativo, ao mesmo tempo que coroadas pela concepção pessoal da cultura grega. Passemos agora a uma análise de cada uma destas influências. a) Artur Schopenhauer e a cultura grega. Com a leitura que Nietzsche fez em Lípsia da obra de Schopenhauer: O Mundo como Vontade e representação, pode sentir a vida segundo Schopenhauer como cruel e cega racionalidade, dor e destruição. Cada página suscitava renúncia e resignação. É somente a arte que pode oferecer ao indivíduo a força e a capacidade para enfrentar a dor da vida. Diante desta situação, como forma de reação, Nietzsche escreve em 1872: O Nascimento da Tragédia. Mostrando que a civilização grega pré socrática ( séc VI a C ) é a civilização do corajoso sim à vida, através da exaltação dos valores vitais em meio a tragicidade do destino. Este mundo grego é personificado na figura de Dionísio, aquele gênio do coração, tentador, aliciador, sedutor, de embriagez criativa e paixão sexual. Ele não precisa vestir a roupagem da honestidade, veracidade e amor à sabedoria. Não possui pudor, está sempre nu. Para ele o homem é um animal agradável, valente e inventivo, pensando sempre em como torná-lo mais forte, malvado e profundo. É pois o símbolo do homem em perfeita harmonia com a natureza. Ao lado de Dionísio encontra-se Apolo, que ao contrário do primeiro é representado pela ordem e moderação. Assim, a arte grega desenvolve-se a partir da dicotomia entre Apolo e Dionísio, em contínuo conflito entre si e ao mesmo tempo em conciliação periódica. Há de fato um contraste na teoria do mundo grego, enquanto Apolo representa a arte figurativa e Dionísio a arte não figurativa da música. Da conciliação destes opostos surge a obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínia ( tragédia ativa ). Dionísio no seu impulso de destruir para criar, reveste-se da máscara de Apolo, tornando-se assim enigmático e aparente. Assim, o ser dionisíaco do caráter do mundo equivale a dizer que o mundo permanece sempre enigmático, esquivando-se às nossas avaliações e juízos. Subsiste apenas enquanto permanece movimento ( devir eracletiano ) entre vida e morte. O mundo constitui assim num trânsito metarmofoseante e permanente entre um e outro polo. A partir daqui pode-se compreender que a cosmologia nietzscheana baseia-se numa teoria de forças em constante tenção e desequilíbrio ( caráter energético ), não alcançando nunca um ponto eqüitativo; já que estas forças não podem ser subtraídas numa economia de pesos e valores. O mundo é pura energia em transformação. Constata-se então que o mundo segundo a concepção nietzscheana é basicamente dionisíaco. No entanto, o grande erro, segundo Nietzsche foi a partir de Eurípides eliminar da tragédia o elemento dionisíaco em favor dos elementos morais e intelectualistas. Sócrates então, com sua presunção de compreender o mundo e a vida com base na razão, bem como Platão, dam início à decadência manifestando em uma nova expressão da decadência. Assim toda a moral do aperfeiçoamento, inclusive a cristã foi um equívoco. A contraposição entre o mundo da idéia clara e o dos instintos, ou seja, entre o mundo sensível ( mundo da vida ) e o inteligível ( mundo das idéias ), com a depreciação do primeiro ( corpo, instintos, paixões, energia vital ) e a valorização do segundo ( espírito, racionalidade ). Desse modo, Nietzsche interpreta o cristianismo como sendo uma espécie de platonismo para o povo. Deus é assim, identificado com o reino dos valores metafísicos ( verdade ) e morais ( bem ). Diante disso, Nietzsche tece uma crítica ferrenha à necessidade metafísica, bem como ao atomismo da alma como algo

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eterno e indestrutível. Tudo o que existe é o mundo, e este é circunscrito pelo nada. O mundo não é um organismo, já que para isso teria que se admitir algo fora do mundo do qual ele pudesse nutrir-se, ou ainda a admissão de um não-ser por ocasião da sua morte. No seu impulso de ultrapassar a metafísica, Nietzsche rompe todas as dicotomias, para que desfeito desta ilusão possa penetrar novamente na imanência, reafirmando a unidade do mundo em meio a sua multiplicidade e mudança conforme intuíram os gregos antes de Sócrates. O mundo segundo Nietzsche não é uma máquina, construída com vistas a um fim, já que ele é incapaz de um ser, está sempre em constante devir. O mundo apresenta-se como um “caos eterno”, pela ausência de uma ordem ( mundo dionisíaco ). Razão pela qual não é possível abarcá-lo pela escassa capacidade de compreensão. Não há quem governe o mundo, não há lei. Não há pois, uma resposta pronta e acabada sintetizada em uma unidade metafísica, mas há uma força que faz implodir este núcleo de significação de tal modo que a lógica conceitual naufrague no horizonte das metáforas, se nos oferecendo um horizonte infinito de perspectivas passíveis à descrição, não entendida enquanto uma redução conceitual, mas como um dinamismo eterno, aberto a infinitas possibilidades de interpretação. Daí advém o estilo aforístico e metafórico com que Nietzsche mesmo escreveu as suas obras. Pode-se afirmar ainda que no mundo nada vai além da “vontade de potência”. O mundo é a própria vontade de potência . Ele compreende-se como infinitude na trama das suas forças, permanecendo sempre ele mesmo. Movimentando-se “ad infinitum” sobre si mesmo, ou seja, torna-se outro no mesmo. A vontade de potência consiste neste jogo das forças, constituindo o mundo na sua auto-poiésis, em seu eterno movimento sobre si mesmo. Ë uma constante luta e devir que vai lançando os fundamentos da plena vida. Neste sentido, nada há de fixo, fixo é apenas o seu conjunto, todos os hábitos são circunstanciais sem durabilidade. Em meio a toda esta instabilidade apenas o mundo apresenta-se como um campo estável, sendo a vontade de potência o seu auto-legislador, dando curso à cultura e à história como acontecimentos inscritos na ordem da natureza em seu acontecer homem. Este curso do acontecer homem efetiva-se a partir das três transmutações que mais adiante será explicitado. Para aprofundar a compreensão cosmológica nietzscheana urge ter bem claros os conceitos de força e vontade. A força caracteriza-se como um pluralismo, como uma relação entre forças, podendo-se daí abstrair um caráter energético. A força é pura energia em transformação metarmofoseante. Não trata-se aqui de uma força mecanicista que põe em movimento a matéria ( máquina ), já que Nietzsche despoja todo o caráter material da força, identificando pluralidade de energia e realidade. Esta força na concepção nietzscheana adquire um caráter poiético, traduzindo-se numa força produtiva, criadora e criativa, o que possibilita ao mundo sempre novas formas de se exercer a potência. Esta força extravasa-se no espaço de uma temporalidade circular, através de um contínuo processo de fluir e refluir de energia, numa série ininterrupta de explosões e mutações. Ela atua desde os menores até os maiores corpos existentes, como é o caso do átomo, que no evento de sua explosão há uma conseqüente liberação de energia. Na criatura viva a pulsão de sua força traduz-se em movimento da vontade de potência.

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Quanto a vontade, contrariamente ao que muitos filósofos pensam é bastante complexa. Já que ela implica numa série de sensações ( sensação de que se deixa e sensação para o qual se vai ), bem como ainda sensação muscular. E assim como o sentir, também o pensar comanda o ato da vontade, bem como ainda o afeto. O afeto do comando é chamado “livre arbítrio”( liberdade de vontade ). Há um comando e uma obediência interior aquele que quer. Ou seja, uma tenção de duas forças opostas. Se se obedece, conhece-se as sensações de coação, sujeição, resistência; movimento que tem início tão logo manifesta-se o ato da vontade. Fica assim bem clara essa dualidade entre mandar e obedecer, que forma o querer; ao contrário de uma visão sintética do eu pura e simplesmente. O querer não basta para o agir. Só há querer quando se pode esperar o efeito da ordem, a obediência, a ação. A potência traduz-se assim em sensações. o livre arbítrio expressa-se como o multiforme estado de prazer daquele que quer ( querente ), que ordena e ao mesmo tempo identifica-se com o executor da ordem, que goza do triunfo sobres as resistências, pensando consigo que foi sua vontade que as superou. Assim, aquele que quer reúne em si as sensações de prazer bem sucedidos a as subvontades ( sub-almas ), pois nosso corpo é formado por uma estrutura social de muitas almas. É no querer que o âmbito da moral se situa, entendida como a teoria das relações de dominação sob os quais se origina o fenômeno vida. Esboçada assim a concepção de vontade, entende-se que os que querem experimentar vida devem se fazer criadores. Para tanto, o primeiro passo consiste no destroçar de valores, para que possa-se criar novos valores. Daí o conceito de transvaloração de valores, marco referencial na desconstrução de toda a ética e moral vigente na cultura ocidental. “Nietzsche foi atraído para Schopenhauer pelo ateísmo deste último, pela sua negação do sobrenaturalismo e transcendentalismo, pela sua doutrina de caráter fundalmentalmente irracional do universo”. ( Clopleston, 1979, p.211 ). Embora entre Nietzsche e Schopenhauer haja um parentesco comum, uma mesma base metafísica ( de todos os homens numa única vontade cega ), no ateísmo, e na doutrina da irracionalidade das coisas e da falta de sentido da vida; há entre ambos uma diferença de temperamento. Para Schopenhauer, frente a falta de sentido da vida a única saída é a resignação, a desconfiança, a conformidade, o ascetismo, a negação. Enquanto que para Nietzsche, diante do não-sentido da vida ele prega, em substituição ao pessimismo schopanhauriano, a força, a alegria, a rebelião, a afirmação da vida, o trabalho criador que vai preparar o além-do-homem. A filosofia de Schopenhauer põe em primeiro plano o sofrimento e a miséria da existência, representando a vida como um mal e como indesejável. Nietzsche, pelo contrário, representa a vida como um bem, desejável e alegre. Para Schopenhauer os homens são metafisicamente um, idênticos numa só vontade ( que é cega ), compadecem-se um pelo outro, já que reconhecem que o seu sofrimento é o sofrimento de todos os outros. Para Nietzsche, pelo contrário, há um reconhecimento quanto a diferença entre cada um dos seres, separando-se assim o aristocrata nietzscheano do rebanho e de seus valores. Desse modo, Nietzsche coloca-se eminentemente contra a idéia da igualdade dos homens que é imoral, recusa-se a aceitar o igualitarismo socialista e a doutrina cristã da igualdade de todos os homens perante Deus.

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O homem de Schopenhauer tem o seu olhar voltado para baixo, olhos de compaixão e resignação. Ao passo que o homem de Nietzsche tem os olhos voltados para cima, para frente, espelhando neles a alegria, o domínio e o triunfo. b) Richard Wagner. Quanto a segunda influência, as concepções musicais e culturais de Richard Wagner, Nietzsche as concebe uma recriação moderna dos ideais da tragédia grega, como uma nova síntese entre os mundos apolíneo e dionisíaco, apresentando a arte como um caminho para a recuperação da cultura alemã. A música wagneriana é apresentada como um antídoto positivo para a superação do racionalismo que opõe-se às forças instintivas do homem. Verifica-se, desse modo, mais uma vez a relevância que tem a cultura grega para a cultura alemã da sua época. Nietzsche louva a força condutora da vida de Wagner, como um “poder e intoxicação” transformado em criatividade artística”. O ideal artístico wagneriano recupera os mitos fundadores da cultura alemã, harmoniza-os através da música e oferece uma direção ética à nação alemã, como uma alternativa frente a religião declinante e sem sentido. Contra a terrível angústia que a morte e o tempo evocam no indivíduo, assim é preciso que este dedique-se a algo que o supere. c) Hegel e Darwin. Ainda no que se refere a uma terceira influência, a interpretação do materialismo e do darwinismo, Nietzsche constata que o objetivo da humanidade não está, de acordo com Hegel e Darwin no fim da história ou da evolução, mas na criação de uma espécie de homem mais elevado. Este é pois o horizonte, o projeto de futuro, presidido pela criatividade dos grandes homens, capazes de enormes esforços e sacrifícios por seus ideais. Pode-se em linhas gerais dizer que as duas maiores influências que se fizeram sentir sobre a genealogia da filosofia nietzscheana foram sem sombra de dúvida Arthur Schopenhauer ( 1788-17860 ) e Richard Wagner ( 1813-1883 ). Deles Nietzsche herdou os princípios basilares mediante os quais pode intuir que “(...) não há nenhuma providência que dirige o universo; todos os fenômenos não são mais do que uma vontade cega e absurda de viver, o que constitui a essência do mundo; a dor que dela nasce é a única realidade; essa vontade de viver se manifesta na música de maneira mais intensa: o mundo é música encarnada tanto quanto vontade encarnada”. “(...) Os dois princípios: apolíneo e dionisíaco são manifestações, na arte de duas pulsões côsmicas.”( Marton, 1993, p. ). 3. A transvaloração de todos os valores

3.1. A crítica da cultura Nietzsche traz em suas obras muito de penetração psicológica, porém não pode ser considerado um cientista nesta área. A doutrina que ele expõe no Zaratustra tem como interesse desenvolver as suas idéias éticas; porém não se trata de um sistema absoluto de

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ética , o que equivale a dizer neste sentido que ele não foi um filósofo moral. Nietzsche não se preocupa em analizar os juízos morais, discernindo os seus fundamentos, sua preocupação incide em elevar o homem a um tipo superior, tratando-se assim de uma filosofia assertiva, exortatória, e dinâmica, transvalorando os valores estabelecidos a fim de alcançar a verdadeira cultura, através da proclamação de uma nova tábua de valores. Nietzsche coloca nos lábios de Zaratustra ( Zoroastro, reformador religioso da Pérsia ) o ideal de uma cultura que ultrapasse o que até então estava vigente, principalmente a moral cristã, propondo uma cultura que seja a continuação e o desenvolvimento da cultura grega no seu período mais florescente. Tendo em vista a meta de estabelecer um novo ideal cultural ele critica a moral tradicional, sublevando a figura de Dionísio acima de Cristo e até mesmo de Apolo. Nietzsche revela-se como um filósofo da imoderação, um poeta trágico, homem de antíteses, como poeta e sonhador está dominado por uma inteligência sempre em elaboração e de grande poder a serviço da vida. Ele é um poeta-filósofo da cultura. No seu ensaio que escreveu sobre David Strauss define a cultura como estando acima de todas as coisas, “(...) a unidade de estilo artístico em toda a expressão da vida de um povo. Os conhecimentos e o saber em grande escala não lhe são essenciais nem são um sinal de sua existência,. E, em caso de necessidade, esses conhecimentos e esse saber podem coexistir harmonicamente com aquilo que se opõe à cultura – o barbarismo – isto é, com uma absoluta falta de estilo ou com uma desordenada amálgama de todos os estilos.” ( Copleston, 1979, p.57 ). Nietzsche tece uma crítica ferrenha a cultura alemã, considerando-a como um amálgama de vários estilos, sem nada de original, querende sempre colocar o conhecimento como o dominador da vida. Pelo contrário, Nietzsche afirma ter que estar o conhecimento a serviço da vida. “A vida é o mais alto poder dominador, porque o conhecimento que aniquilasse a vida aniquilar-se-ia também a si. O conhecimento pressupõe a vida.” ( Nietzsche, 1873, p.96 ). O conhecimento que os alemães têm no entender de Nietzsche não está unificado sob uma forma vital. Deve haver harmonia entre conteúdo e forma. “(...) a cultura significa um processo de vida, natural, original, criador e genuíno, e não um conjunto de conhecimentos históricos.”( Copleston, !979, p.59 ). O melhor produto da cultura é o sábio, aquele homem culto, nobre e douto, cuja necessidade para tanto cabe a existência de educadores que sejam eles mesmos nobres e doutos. Assim, a verdadeira cultura é aristocrata, já que tem como fim a produção da mais perfeita espécie da raça humana, espírito livre e original, o verdadeiro homem da cultura. “Para que possa haver um solo vasto profundo e frutuoso para o desenvolvimento da cultura, a enorme maioria deve, em serviço da minoria, sujeitar-se servilmente à luta pela vida, num grau mais elevado do que as suas próprias necessidades exigem.” ( Copleston, 1979, p.66 ). “(...) a escravatura é da essência da cultura.” ( Nietzsche, 1876 ). O pensamento político de Nietzsche é condicionado pela sua idéia dominante – o homem superior, a cultura aristocrática. O Estado, neste sentido, é benéfico, tanto quanto ele opera a perfeita formação da sociedade, que é necessária para a formação da verdadeira cultura, mas é perigoso tanto quanto ele se converte num ídolo, num monstro frio, subordina todos os elementos aos seus próprios interesses práticos e entrava o aparecimento de espíritos livres e criadores. Em outras palavras, o Estado deve ser um meio que proporcione o aparecimento do além-do-homem, o fruto maduro da cultura.

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Como já pode-se constatar, toda e qualquer forma de convencionalismos constitui um passo atrás para o amadurecimento da cultura que é essencialmente dinâmica, criadora e livre de forças coercitivas. Desse modo, a música ajuda o homem a libertar-se de convenções, exprimindo seu verdadeiro sentir. Já que a música manifesta um regresso a natureza e também uma remodelação da mesma vindo a desembocar na necessidade de uma nova cultura. 3.2. A crítica da moral

Existem três grandes períodos no itinerário intelectual de Nietzsche. O primeiro período que vai de 1871 a 1878 é chamado de pessimismo romântico. O segundo que vai de 1878 a 1883 é chamado de positivismo cético. E ainda um terceiro que vai de 1883 a 1888 é denominado período da transvaloração dos valores, situando-se as suas obras principais: Assim falou Zaratusura, Além do bem e do mal, e A genealogia da moral. Aqui ele empenha-se de forma consistente em elaborar a própria filosofia, construindo os conceitos de Eterno Retorno, a teoria das forças, Vontade de Potência, introduzindo ainda as noções de valor e o seu procedimento genealógico. E é precisamente neste período que situa-se a presente reflexão. A noção nietzscheana de valor está ligada a uma subversão crítica, pondo em questão o valor dos valores que até o presente nunca foram postos em causa por acreditar-se que existiam num mundo além. Como não há nenhum mundo além do sensível, como pelo contrário pensava Platão, esses valores não passam de criações humanas em um determinado tempo, lugar e situação. Nietzsche então parte por examinar as condições acima que originaram esses valores, bem como de que valor inspirou a criação dos demais valores. Nietzsche não apresenta-se como um mero niilista ou anarquista na esfera moral, mas seu intento é estabelecer uma nova tábua de valores, ou melhor dizendo, resgatar os antigos valores que foram sufocados e obscurecidos pela moral tradicional e entre estes figura com bastante força a moral cristã. “Ninguém, até agora, sentiu a moral cristã indigna de si; para isso havia a necessidade de altura, de uma largueza de vista e de uma profundidade psicológica que até agora, não se acreditava ser possível.” “O que me define, o que me faz estar aparte de todo o resto da humanidade, é o fato de que desmascarei a moral cristã.” ( Nietzsche, 1888, p138 ). No Zaratustra Nietzsche diz que ele há de ser um criador no bem e no mal, um destruidor que há de espatifar os valores. Neste sentido, para criar novos valores é preciso antes destruir, negando o tipo de homem que até aqui tem sido considerado como superior, o bom, o amável e o caridoso; e a negação da moral cristã, a moral da decadência. Esta moral é decadente por superestimar a bondade e a compaixão, incapaz de promover a ascendência da afirmação da vida. “Para poder dizer não a tudo o que representa na terra o movimento ascendente da vida, a boa constituição física, a potência, a beleza, a afirmação de si mesmo, o instinto de ressentimento que aqui se tornou gênio, teve de inventar um outro mundo, a partir do qual essa afirmação da vida aparecesse como o mal em si, como o que devia ser regeitado.” ( Nietzsche, 1888, af.24 ). A religião cristã representa assim essa inversão dos valores, pregando a palavra pobre como bom e santo. Daqui depreende-se duas morais: a moral dos fracos, que é uma moral de

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ressentimento, da negação e da oposição, e a moral dos fortes que é a moral; da força, da afirmação, da vida. A perspectiva de análise adotada por Nietzsche no que se refere a questão dos valores é a genealógica. Este procedimento comporta dois movimentos inseparáveis, de um lado relacionar os valores com as avaliações e, de outro relacionar as avaliações com os valores. Deve-se adotar um critério de avaliação que não pode ser avaliado, caso contrário cairia-se num círculo vicioso. Esse critério é pois a vida. Avaliar uma avaliação significa questionar se é sintoma de vida ascendente ou declinante. “Os conceitos possuem uma origem e um desenvolvimento – nascem, evoluem e se transformam. Em lugar de examinar os conceitos prima facie, como se fossem entidades acabadas e imutáveis, devemos identificar as circunstâncias humanas a partir das quais eles se formaram, cuidando sempre de não confundir sua origem com seu uso presente e tampouco sua origem com seus desenvolvimentos posteriores. Da origem dos conceitos morais ao seu uso presente existe uma sucessão de etapas e usos que é preciso reconstituir cuidadosamente.” ( Boeira, 2002, p46 ). Ao criticar os valores Nietzsche toma como critério de avaliação a vida enquanto vontade de potência; constitui assim a vontade de potência parâmetro para o procedimento genealógico. Intimamente ligado a vontade de potência está o conceito de força ,cuja manifestação se dá como vontade de potência. A força é concebida em relação a um agir sobre. Ela não pode ser concebida numa relação de causalidade, é um puro efetivar-se, atua sobre todas as outras forças, bem como sobre todas as resistências o que constitui estímulo para mais potência, manifesta-se como um querer-ser-mais-forte. “Toda força motora é vontade de potência, não existe fora dela nenhuma força física ou psíquica.” ( Nietzsche, 1888, 14 [121] ). Esse querer-vir-a-ser-mais-forte não está voltado a uma finalidade, é um contínuo exercer-se insaciável. Por ser tributária da ciência da época, a noção de força permite postular a homogeneidade de todos os acontecimentos. Cai por terra assim a velha dicotomia metafísica entre físico e psíquico, orgânico e inorgânico, material e espiritual. O mundo não é nada além de que vontade de potência. Nietzsche aponta a metafísica e a religião como os fundamentos sob os quais se assentam os valores. Desse modo, ao tomar a vida como vontade de potência ele rejeita estes fundamentos, já que a vida não se acha além dos fenômenos e a vontade de potência não existe fora das forças. Constata-se assim que a sua reflexão é puramente experimental, baseada em dados científicos, não havendo lugar para os valores transcendentes. Nietzsche apresenta-se como o anunciador daquilo que está por vir;, o niilismo, que é a total ausência de sentido. Em decorrência do desmoronamento destes valores transcendentes Nietzsche tem como projeto assentar novos valores em novas bases que é a terra. As forças para Nietzsche são finitas mas que se efetivam num tempo infinito. Elas são vontade de potência. Daí decorre o conceito de eterno retorno. Este conceito ele teve em 1881 numa de suas caminhadas habituais, junto a um rochedo nos Alpes em forma de pirâmide em Surlei, constituindo o seu pensamento mais abissal. Tudo está constantemente retornando. O universo não tem um objetivo, se tivesse já teria realizado. Não há um Deus que governa o universo. A eternidade e a finitude são os dois elementos que constituem o universo. Cada instante traz a marca da eternidade, tudo existiu e passará a existir novamente. O universo é animado por um movimento circular que não

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tem fim, isso devido a esse caráter dinâmico da força, num querer-vir-a-ser-mais-forte que impede o cessar do combate. O eterno retorno é assim a mais extrema forma de niilismo, pois a existência é sem sentido ou finalidade, repetindo-se continuamente. Para tanto, Nietzsche diz que temos que amá-la como o nosso único destino [ amor fati ]. Essa é a superação do niilismo, estamos assim, condenados a viver inúmeras vezes, e todas sem razão e objetivo. Contudo, é no amor fati que repousa a grandeza no homem, a afirmação do necessário e inevitável eterno retorno, que é afirmação da vida, um elevar-se acima da moral. No contexto de eterno retorno não há espaço para a moral tida como verdade imutável, já que tudo está em contínuo processo de devir, manifestando-se no homem através de um criar e recriar permanente. “Quebrai, quebrai as tábuas dos sempre descontentes! Quebrai, quebrai as tábuas já velhas dos devotos e aniquilai as máximas dos caluniadores do mundo.”( Nietzsche, 1882, p158 ). 3.3. Da morte de Deus ao além do homem Além das críticas que Nietzsche faz ao idealismo por intentar criar um antimundo, negando em conseqüência este mundo que é tudo e somente tudo o que existe. Suas críticas também dirigem-se ao positivismo, cuja pretensão é a de enquadrar solidamente a vasta realidade em suas pobres malhas teóricas; bem como ao evolucionismo darwinista e ao romantismo. Tudo isso para Nietzsche é humano, demasiado humano, apresentando como verdade absoluta que é preciso desmascarar. Pois os filósofos de modo geral têm o hábito de fazer com que suas instituições tornadas abstratas e submetidas a um crivo, que posteriormente defendem com razões que buscam ser chamadas de “verdades .” Até agora toda a ciência, bem como todas as demais formas de saber assentaram suas bases na aparência e na ignorância. Nas aventuras de um mundo simplificado e artificial. Constitui de fato um martírio para o filósofo o sacrifício pela verdade. Para tanto eles deverão corromper a inocência e a neutralidade de sua consciência, escolhendo uma boa, animosa e livre solidão, a fim de que permaneçam bons em algum sentido. Todo aquele que está voltado para o conhecimento deve desenclausurar-se de seu castelo, laçando-se a grande e inusitada aventura do fastio, compaixão, nojo, tristeza e isolamento. Talvez os cínicos sejam considerados para isso como modelos, já que sintetizam em si próprios o animal, a vulgaridade, a regra. Conseguem por detrás de sua aparente vulgaridade despertar fascínio. Bom, como foi apresentado no início deste capítulo, os alvos da crítica de Nietzsche, no seu afã de desconstruir tudo aquilo foi até agora edificado como valor fundamental a reger a vida humana, tanto a nível individual como a nível coletivo, incidem de maneira mais brutal sobre a moral cristã vivida pela fé. E esta apresenta-se como uma mutilação da liberdade do espírito. É uma verdadeira neurose religiosa a negação do mundo e da vontade, esta renúncia de si mesmo diante de um Deus. Nietzsche, em nome do instinto dionisíaco, daquele homem grego, forte e sadio do séc VI a C, que ama a vida e o mundo, proclama a morte de Deus. Este Deus, identificado com o ideal de pobreza, submissão, resignação e o desprezo da vida presente em função de uma vida beatífica no futuro é próprio de uma moral de escravos, fracos, vencidos e ressentidos contra tudo o que é nobre, belo e aristocrático.

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Sobressai assim, uma diferença básica entre dois tipos de morais: a moral dos senhores e a moral dos escravos. De acordo com a obra Além do Bem e do Mal os senhores consideram bom tudo o que é elevado e ruim todo o contrário. Essa designação foi aplicada primeiro a homens e só depois às suas ações. O homem nobre determina e cria os seus valores, morais. Essa espécie de homem honra a si próprio, orgulhando-se de não ser feito para a compaixão. O princípio básico desta moral é de que o dever só existe frente aos iguais. Já, frente aos de categoria inferior, como diferente pode-se agir ao bel-prazer, além do bem e do mal. Quanto ao segundo tipo, a moral dos escravos, apresenta-se com pessimismo que respeita a sua própria figura, Assim, para aliviar o peso da existência, a compaixão, a afabilidade,... recebem todas as honras, ao contrário da moral anterior. Segundo esta moral o mau inspira medo. Já na moral dos senhores é o bom que inspira medo. É pois na característica de utilidade da moral escrava que se distingue bom e mau. Na moral escrava bom equivale a estúpido. É típico ainda dessa moral escrava o anseio por liberdade, bem como a vaidade, alegrando-se com cada opinião boa ou mesmo ruim que ouve sobre si mesmo e prosternando-se diante delas. Nietzsche na sua obra: A Gaia Ciência, descreve um homem louco que anuncia aos homens que Deus está morto. Assim, ao eliminar-se Deus, elimina-se do mesmo modo todos os valores que até então serviam de base e fundamento para a vida; aquele sol que iluminava os seus caminhos. Pois essa moral cristã, assim como a ciência racionalista constituem os principais obstáculos para a evolução da sociedade moderna. Com a morte de Deus, está da mesma forma eliminado o mundo sobrenatural, juntamente os seus valores e ideais a ele ligados. Em conseqüência disto abrem-se os olhos para o ideal de um homem afirmador do mundo e da vida, o homem velho desaparece, dando lugar ao homem novo, criador de valores, que dá curso à evolução da modernidade. A religião é entendida na modernidade como inferior, ingênua e infantil. Para os filósofos do futuro a religião será utilizada como educação e cultivo de forma diferenciada, dependendo do tipo de homens. Para os fortes e dominadores a religião é um meio de vencer resistências para dominar. É uma força que une dominadores e súditos, denunciando e entregando aqueles à consciência destes. A religião pode ser utilizada como instrumento para manter a paz na política e no governo. Aos dominados a religião oferece orientação e oportunidade para dominar e comandar – vontade de autodomínio. Contudo, é preciso ter claro que religião aqui não significa religião cristã, já que a humanidade pode ser anti-cristã, porém não anti-religiosa, pois já entre os antigos gregos, na época áurea considerada por Nietzsche cultivava-se a religião. Nietzsche teve como grande alvo de sua critica o cristianismo, por defender tudo o que é nocivo ao homem, considerando pecado tudo o que é valor e prazer na terra, em defesa de tudo o que é fraco e arruinado. O cristianismo constitui-se assim a religião da compaixão, valorizando aqueles sentimentos de abnegação e renúncia de si em favor dos outros, que revelam-se mais como sedução. A compaixão contribui assim no sentido de perder-se força obstacularizando a lei do desenvolvimento, que é a lei da seleção. A fé em Deus pregada pelo cristianismo, alicerça-se nos sentimentos de compaixão e renúncia de si em favor de outros, já não condiz mais na configuração do mundo moderno. Pois este último fundamenta-se no progresso, na ciência e na técnica. E num mundo assim configurado a compaixão não seria nada mais do que a prática do niilismo.

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A figura deste Deus cristão representa para a configuração atual do mundo, doença, degeneração e contradição da vida, no seu eterno “não”. Deus representa a divinização do nada. No entanto, Nietzsche distingue Jesus e o cristianismo. Este último representa exatamente o contrário do que seu fundador quis e fez. Cristo com sua morte tinha em vista apontar como se deve viver, afirmando assim a prática da vida, que encerra todo o conteúdo do Evangelho. O cristianismo então com todos os seus dogmatismos em forma de Igreja fez com que o Evangelho fosse sepultado com o seu fundador. Contudo, o renascimento representou uma verdadeira transvaloração dos valores cristãos, na sua afirmação de tudo o que é elevado, belo e temerário; a vitória dos valores aristocráticos, os nobres instintos terrenos consignados na figura do papa. Porém um frustrado monge alemão, Lutero, no dizer de Nietzsche, indignou-se contra o renascimento e a tudo o que ele representava, restaurando novamente a Igreja. Dito em outras palavras, eliminando dela tudo o que o renascimento havia-lhe conferido de afirmação da vida. É, pois frente a este cristianismo que Nietzsche desfere toda a sua crítica. um cristianismo que em tudo perverte o amor e a esperança na vida, dando em troca a promessa do além, que na verdade é o nada, já que nada pode ir além do mundo e da vida. Neste sentido, é que a idéia de Deus neste mundo moderno já não representa nada, equivalendo a afirmar que Ele está morto. Com a declaração da morte de Deus rompe-se aquele quadro de valores, fruto da anulação de si e de todo o ressentimento, como já anteriormente foi visto. Possibilita-se assim a afirmação dos instintos mais sadios, instintos que ligam o homem à terra ( que é a alegria, a saúde, o amor, a intelectualidade superior...). Pois seria lícito considerar como real apenas o nosso mundo dos desejos e paixões, impulsos e afetos, já que pensar significa apenas a relação desses impulsos entre si. Bastando então a partir disso uma compreensão do mundo material. Reconhece-se enfim, a vontade como atuante, a causalidade da vontade como a única. A vontade atuando sobre a vontade e não sobre a matéria. Essa vontade atuando sobre a vontade origina os efeitos. E todo o acontecer mecânico é impulsionado por uma força que eventualmente age, que é força de vontade, efeito da vontade. Toda a vida instintiva é uma ramificação de uma forma básica da vontade de potência. Assim, poderia-se reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de potência, toda a força atuante é vontade de potência ( o mundo, a inteligência...). A vontade de potência, em outras palavras, é a força criadora de valores. A criação consiste num pulsar de forças adormecidas que, como constitutivas do mundo são como ele “vontade de potência.” Essa atividade de criar coincide com a do escultor que, confere forma ao conjunto de forças na medida em que se abre ao mundo, traduzindo em atividade o devir do mundo. É assim, o mundo quem cria e é ele próprio produto de sua própria criação: “autocriação”. O criar como ato de existir na sua totalidade não é o princípio primeiro de um processo. Indissoluvelmente articulada a criação está a destruição ( romper com a ordem estabelecida, a começar pela moral como norma do agir ). Criar e destruir são duas faces de um mesmo processo ( único movimento ). É a criação um meio de cura a serviço da vida, porém que implica em sofrimento e sofredores. Todo o conhecimento e toda a filosofia estão submetidos à égide da criação, supondo um anterior processo de destruição, transvaloração, o que implica em dor e

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sofrimento. Deve-se retornar à terra para que da terra surja o além-do-homem. Assim toda a passividade deve ser substituída pela atividade criativa. Já não há mais ordem, nem sentido, apenas a necessidade que o mundo tem de se aceitar e se repetir, num eterno processo de retorno sobre si mesmo. Ao contrário de como o movimento do mundo era concebido pelo cristianismo, movimento retilínio em direção a um fim, ou o progresso de devir concebido pelo historicismo hegeliano e pós-hegeliano. Tudo assim, segundo Nietzsche retorna como foi outrora. Esse retorno representa assim o “caos eterno.” Assim, como já foi apresentado, o eterno retorno representa para o mundo uma verdadeira necessidade. Nietzsche desenvolve então, como já foi analisado, a doutrina do “amor fati ,”que é amar esse necessário, aceitar o mundo e amá-lo, não fugindo dele como ensinava a doutrina platônica e cristã. No seu livro: Assim Falou Zaratustra, Nietzsche apresenta o processo das três transmutações. Este processo está ligado, como produto, ao macro processo de devir permanente, “eterno retorno “ao qual está submetido o mundo. A primera fase desse processo metarmofoseante é representada pelo homem camelo. Aquele homem que carrega sobre si todo o peso da moral, especialmente a moral cristã ( tu deves ). Representa a anulação de si mesmo, o ressentimento e a resistência. O homem camelo está ligado à moral do homem escravo. Segue em seguida uma segunda fase de transmutação, representada pelo homem leão. que é o homem forte, autoafirmador de si mesmo ( eu quero ). Aquele homem que despoja-se de todo o jugo e peso imputado-lhe pela moral cristã. Liga-se este a moral dos senhores. Aqueles que tem em si toda a força em dominar os outros. A potência do leão traz em si a capacidade para criar liberdade para uma nova criação. Chega-se enfim a terceira fase de transmutação, representada pelo homem criança. Inocência é a criança, um esquecimento para começar-de-novo. é o homem que conforma-se a natureza, que retorna à terra para que da terra brote o além-do-homem. A inocência e a nudez da criança personifica o mundo dionisíaco, o mundo que não se esconde sob o véu de dogmatismos, mas que mostra-se assim como ele é: “vontade de potência.” A mensagem que Zaratustra quer deixar é a de que é o super-homem o sentido da terra, e não aqueles valores transcendentes, sobrenaturais, pregados pelo cristianismo. Mas é o super-homem aquele que, conformado à terra cria valores que são a saúde, a vontade forte, o amor, a embriagez dionisíaca e o novo orgulho. É este o homem plenamente livre, saudável, que não se aliena nas coisas sobrenaturais. Mas, naturalmente afirmado, é fiel à terra, tem os pés no chão e dela não se esquiva. Nietzsche concebe o homem como Protágoras o concebia: “O homem é a medida de todas as cisas.” O homem é uma corda estendida entre o bruto, que tem a sua espinha encurvada diante das ilusões cruéis pregadas pelo cristianismo e o super-homem, que ama a vida e cria valores, dando sentido à terra em nome de sua fidelidade a ela. Está aí pois a sua “vontade de potência.” Ao atingir a metade deste caminho brilhará o sol meridiano da vida, anunciando a esperança de um novo porvir. Já que com a morte de Deus, foi eliminado o grande obstáculo que impedia a emancipação deste homem novo, superior, senhor e criador de valores.

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Conclusão

Pode-se verificar no decorrer desta dissertação que o principal intento de Nietzsche com a sua estratégia de transvaloração de todos os valores tradicionais, culminando na proclamação da morte de Deus, era o de afirmar a vida do homem, super-homem, em meio ao clima de resignação e pessimismo no qual toda a humanidade estava mergulhada. Em nome do progresso da sociedade moderna Nietzsche aponta para o homem da terra, para que dela brote o além-do-homem, afirmador de si mesmo e criador de valores. Para tanto Nietzsche exalta a cultura grega, que permaneceu como a fina flor do passado, um passado que ele desejava ver aproveitado e desenvolvido no futuro. Desse modo, parece que Nietzsche baseia suas reflexões em raízes iluministas, porém num iluminismo menos entusiástico e superficial e mais consciente de uma tragédia, procurando desafiá-la. Está da mesma forma presente em seu pensamento a desconfiança com relação à metafísica, a eliminação da atitude dogmática, o reconhecimento do limite da finitude humana e a crítica à religião. Constituem pois todos esses elementos como vindos ao encontro da afirmação do “humano, demasiado humano.” A noção de eterno retorno representa em Nietzsche a idéia de martelo a desmantelar os velhos valores, permitindo assim a seleção e o aprimoramento dos fortes. Não há mais o velho dualismo metafísico. O além-do-homem é identificado com o mundo. “O homem é algo que deve ser superado (...) o além-do-homem é o sentido da terra.” ( Nietzsche, 1882, cp3 ). O super-homem é aquele que “(...) organiza o caos de suas paixões e integra numa totalidade cada traço de seu caráter, de quem percebe que o seu próprio ser está envolvido no cosmo. de sorte que afirmá-lo é afirmar tudo o que é, foi e será.” ( Marton, 1993, p.69 ). “os filósofos propriamente ditos são os criadores de valores determinando o para onde e o para que. Seu conhecer é criar e, seu criar é uma legislação, sua vontade de verdade é vontade de potência.”( Nietzsche, 1885, cp.211 ). As investigações éticas em Nietzsche repousam em bases cosmológicas. A genealogia revela-se assim um procedimento inovador a fim de diagnosticar os valores estabelecidos; ela é também uma poderosa arma de crítica nas mãos do filósofo do seu e de nosso tempo. Pela genealogia se é possível investigar a proveniência e as transformações por que passam os valores, relacionando as avaliações com os valores, a fim de se encontrar um critério de avaliação que se imponha por si mesmo, que é a vida. Logo, como já foi acenado na apresentação deste, a importância da influência de Nietzsche para o pensamento moderno não pode ser ignorado. Já que a genealogia do seu pensamento preparou a posterior eclosão das correntes filosóficas do existencialismo, da filosofia da linguagem e da psicanálise.

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Apêndice A MORTE DE DEUS * O homem louco. - Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?” gritou ele,” já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não vemos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda em cima” e embaixo”? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós , assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra, sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? com que água poderemos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca Houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais “, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos .Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram !”- Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitáva-se a responder: O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?.” _______________________ (*) A Gaia Ciência, & 125.

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Bibliografia

Fontes primárias

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