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Sumário Introdução 11 1939 17 1940 39 1941 93

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Sumário

Introdução11

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Introdução

Começarei estas memórias com um pequeno histórico familiar.No ano de 1918, o Ministério das Relações Exteriores brasi-

leiro abre concurso para o preenchimento de vaga de “terceiro oficial”. Para espanto geral, uma mulher se candidata ao cargo: Maria José de Castro Rebelo Mendes, baiana, a Marieta Mendes (minha mãe). Imediatamente a incomum situação é motivo de consulta aos mais importantes advogados do país: Rui Barbosa e Clóvis Bevilácqua, que emitem parecer favorável à inscrição de Maria José. Dias depois, o ministro do exterior, Nilo Peçanha, autoriza: “Não há na Constituição da República nenhum dis-positivo que impeça às mulheres o acesso aos cargos públicos. Entretanto não há como recusar a sua aspiração, desde que dis-so careçam e fiquem provadas as suas aptidões”. Em outubro de 1918, Maria José é classificada em primeiro lugar.

Meu pai, Henrique Pinheiro de Vasconcellos, já perten-cente ao quadro de funcionários do ministério, foi um dos seus examinadores.

Apaixonaram-se e casaram-se em 1922, sendo que meu pai foi ocupar um posto em Berlim, Alemanha. Lá eu nasci em

As imagens das páginas 10, 14, 37, 38 e 90 mostram a destruição causada por uma bomba em uma rua de Londres em 1940. ©Pat Dean.

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1923. Fui registrada no cartório de Wilmersdorf, no Consulado Brasileiro, bem como na Legação do Brasil, em Berlim.

Meses mais tarde meus pais voltaram para o Rio de Janeiro, cidade em que fui criada com meus quatro irmãos: Yara e Yolanda (ambas atualmente tradutoras, sendo que Yara é tradu-tora juramentada), Guy (atualmente embaixador aposentado) e Acyr (funcionário do Banco do Brasil aposentado, já falecido).

Em 1934 papai ocupou o cargo de conselheiro da Embaixada brasileira em Bruxelas, Bélgica.

Durante muitos anos, a diplomata que se casasse com um colega era obrigada a pedir sua demissão, conforme ocorreu com a minha mãe.

Infelizmente, em Bruxelas, ela começou a sofrer de um câncer nos ossos, o que acarretou sua morte em outubro de 1936.

A situação na Europa naquela época já era tensa. No final de 1938 meu pai foi nomeado cônsul geral do Brasil em Londres e em dezembro daquele ano ele casou-se, em segundas núpcias, com Leonor Neves (Lolô).

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1939

Embarcamos todos para a Inglaterra no dia 1o de janeiro de 1939 no navio inglês Andalucia Star.

Viajamos 11 dias vendo somente céu e mar, chegando fi-nalmente às Ilhas Tenerife, onde ficamos apenas uma tarde. Deixamos o navio e demos um passeio de carro. No dia seguin-te, 12 de janeiro, aportamos na Ilha da Madeira. Infelizmente não saltamos, pois lá permanecemos apenas uma hora anco-rados. Em volta do navio apareceram pequenas embarcações com pessoas querendo vender produtos da ilha, principalmen-te toalhas bordadas que eram a especialidade daquele lugar. Pelo que vimos de bordo, aquela ilha parecia ser muito bonita.

Numa noite em que eu estava me sentindo bem, sem enjoo, fui para o salão de bordo onde a orquestra tocava várias músi-cas de dança. Fiquei sentada olhando as pessoas que se diver-tiam, quando uma senhora chegou perto de mim e, dando-me a mão, puxou-me para o grupo dançante. Estavam tocando uma música muito animada que estava na moda naquela épo-ca. Era o “Lambeth Walk”. A senhora que me levou certamen-te ficou com pena de ver a menina acompanhar com a vista aquela animação sem ter coragem de participar. Fiquei muito animada e comecei alegremente a dançar com o grupo, quando

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vieram me buscar para descer para o camarote. Papai, que era muito severo conosco, não admitia que nós nos juntássemos a pessoas desconhecidas. Fiquei muito decepcionada pois estava começando a me divertir.

Dia 14 chegamos a Lisboa, onde também não pudemos descer porque o navio ficou pouco tempo naquele porto. Papai e Lolô desceram e demoraram tanto a voltar que o navio teve até de es-perar por eles para poder zarpar. Felizmente eu já conhecia aque-la cidade por termos passado três dias ali quando fomos para a Bélgica em 1934. Naquela época, apesar de ter apenas 11 anos, fi-quei muito emocionada no Mosteiro dos Jerônimos ao ver o tú-mulo de Camões. Outro detalhe que me impressionou naquele tempo foi o duro trabalho das mulheres portuguesas; enquanto os homens ficavam parados conversando em grupinhos, elas quase vergavam sob o peso de grandes cestos repletos de peixe ao longo do cais. Andavam descalças e usavam umas volumosas saias.

A cozinha portuguesa é muito saborosa e lembro-me de que comemos grandes peixadas regadas a vinho, tendo como sobremesa suculentos pêssegos. Atualmente sou de opinião que, havendo oportunidade, toda criança deveria viajar para ampliar seus horizontes, experimentando e observando costu-mes estranhos aos seus.

Enjoei muito na nossa viagem para a Inglaterra, principal-mente quando atravessamos o golfo de Biscaia, justamente no dia do meu 16o aniversário. O único alimento que o meu estômago suportava era cereja. Papai mandava buscar a bordo grandes vasi-lhas cheias daquelas deliciosas frutinhas para mim.

Nem pudemos comemorar porque o navio jogou tanto que poucos passageiros se aguentavam de pé. Da nossa fa-

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mília somente papai, Yolanda e os dois meninos, Guy e Acyr, conseguiram se dominar.

Depois de atravessarmos o canal da Mancha paramos em Southampton e em seguida voltamos ao continente, para o porto de Boulogne, retornando então à Inglaterra.

Após 17 dias de viagem chegamos em Gravesend, um porto no rio Tâmisa, e logo depois do desembarque tomamos um trem para Londres. Havíamos partido do Rio de Janeiro num dia belíssimo e quente, mas a nossa chegada a Londres, pelo menos para mim, foi muito deprimente. Já era noite e chovia bastante. Fiquei impressionada com as capas de oleado amare-lo dos ciclistas que luziam na semiescuridão. Fomos para um hotel (que detestei) e que ficava em Knightsbridge.

Lembro-me de um grande armário de madeira escura que havia em nosso quarto e de um velho garçom na sala de jantar que só sabia dizer que no menu tinha lamb para o almoço e jam na hora do breakfast. O tal lamb com ba-tatas era horrível de gosto. Naquele prato perdurava uma morrinha de carneiro que o pessoal da cozinha não conse-guia tirar. Fiquei com tanto horror a carne de carneiro que nunca mais quis prová-la. Entretanto, trinta anos depois, um nosso vizinho no Morumbi, em São Paulo, convidou a nossa família para um grande churrasco em sua casa. Para minha grande surpresa, ao provar o churrasco de cordeiro, achei-o delicioso. Acho que tudo depende de como tratar aquela carne especial.

Enquanto estávamos naquele hotel, saíamos para passear com Guy e Acyr, que naquela época tinham, respectivamente, seis e cinco anos.

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Fomos certa vez ao Museu de História Natural, que era con-siderado então o melhor do mundo. Lá vimos enormes esque-letos de dinossauros, que muito nos impressionaram, além dos animais empalhados e uma imensa coleção de pedras preciosas e semipreciosas. Lindo!

Pouco depois de nossa chegada a Londres acharam que eu pre-cisava de um vestido mais habillé para ser usado em visitas ao pes-soal do corpo diplomático. Fui então com Lolô e Iza à C&A que, se não me engano, ficava na Oxford Street. Foi difícil encontrar um tamanho pequeno mas finalmente nos decidimos por um de um tecido de seda pesada, azul-claro, com “mil” botõezinhos na frente. Era bonitinho e Iza adaptou-o ao meu corpo. No verão seguinte ela me deu um lindo vestido estampado de fundo cor-de-rosa. Adorei, mas não me lembro que fim levou.

Iza, de quem gostávamos tanto, era uma babá brasileira que nos acompanhava há muitos anos, cuidando de Guy e Acyr desde a morte de mamãe com imenso desvelo e carinho.

Felizmente nos mudamos pouco depois para um apartamento (um pouco apertado para nossa numerosa família) num edifício chamado Kenton Court, na Kensington High Street, onde per-manecemos (bastante contra a nossa vontade) até a nossa viagem para o Canadá em junho de 1941.

Esse prédio ainda existia em 1974 quando visitei Londres na companhia de meu filho de 13 anos e meu marido. Naquela oca-sião, meu marido tirou uma fotografia nossa em frente ao edifício.

Quando nos mudamos para esse prédio, costumávamos vi-sitar a loja de departamentos Barker, onde havia uma grande seção de livros no subsolo. Eu ficava deslumbrada, pois sem-pre adorei livros desde quando aprendi a ler, aos quatro anos.

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Quando me dei conta de que juntando as letras eu conseguia formar palavras e frases, fiquei maravilhada. Lembro-me de que, aos cinco anos, eu me refugiava debaixo da escada da nossa casa na Tijuca para poder ler em paz. Um pouco mais tarde eu subia numa árvore para ler sossegada, tentando evi-tar que me chamassem para qualquer outra atividade.

O que também nos chamava atenção eram os lindos cartões de Natal e as caixinhas com enfeites dourados do Woolworth, objetos que na época ainda não existiam no Brasil. Ainda te-nho uma daquelas caixinhas de papelão que comprei naquele tempo e onde guardo utensílios de costura.

Papai nos matriculou no Colégio Assunção no dia 27 de abril. Ficava a dez minutos a pé do nosso apartamento. Aquele colé-gio tinha um departamento para meninas estrangeiras, onde to-das elas falavam francês, mas as aulas eram dadas em inglês. As freiras, muito liberais para os padrões dos colégios religiosos do Brasil, faziam passeios turísticos com as alunas. Pouco aprende-mos do inglês, mas já sabíamos o francês por termos morado durante dois anos na Bélgica.

Os rumores de que haveria guerra na Europa já eram bem fortes, culminando com a invasão dos alemães à Polônia (em setembro de 1939), quando então a Inglaterra e a França de-clararam guerra à Alemanha.

Pouco depois de nossa instalação no apartamento em Kenton Court, eu me achava muito deprimida e comecei a ter pesadelos todas as noites. Esses pesadelos incluíam a presen-ça constante de um anão maléfico. Antes de dormir eu ficava apavorada pensando que ia ver novamente aquele ser. Ele não falava, só me olhava, seja lá onde eu estivesse. Se eu sonhava

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com uma festa e me sentia aliviada achando que ele não ia apa-recer, ao olhar para um canto qualquer da sala, verificava que ele tinha estado lá o tempo todo, sempre me fixando. Então acordava angustiada, com medo de tornar a dormir e verificar que ele não havia sumido dos meus sonhos. Felizmente, alguns meses depois ele desapareceu e nunca mais tornou a voltar. Por curiosidade, procurei ler um livro sobre sonhos e, para minha surpresa, verifiquei que sonhar com anão significava grandes distúrbios ao meu redor, domésticos ou não, singularmente graves; o que provou ser verdadeiro.

Descrevo aqui a nossa família naquela época: papai não era muito alto, tinha 47 anos, cabelos pretos que começavam a branquear, olhos castanho-escuros, muito simpático e cala-do. Lolô também era baixa, tinha cabelos e olhos castanhos. O rosto era largo e os olhos grandes. Eu, para meu grande des-gosto, era muito baixinha para os meus 16 anos. Tinha 1,50 m de altura, pois parei de crescer aos 12 anos. Meus cabelos, li-geiramente ondulados, eram castanho-claros, bem como meus olhos. Yara era um centímetro mais alta do que eu e Yolanda era a mais alta de nós três. As duas tinham cabelos e olhos castanho-escuros, sendo que os cabelos de Yolanda eram bem lisos. Guy era louro com olhos castanho-claros, mas Acyr, que naquela época tinha apenas cinco anos, era bem moreno com olhos e cabelos castanhos, bem escuros. Guy, Yolanda, Lolô e eu éramos claros. Papai, Yara e Acyr, morenos. Lolô tinha 34 anos, Yolanda 14, Guy 6 anos. Henriquinho, que nasceu em dezembro de 1939, era muito bonitinho e esperto.

Iza era confidente e conselheira de nós três, as mais velhas, che-gando a repartir conosco as raras guloseimas que o severo raciona-

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mento permitia, retirando dinheiro até de seu próprio ordenado. Achávamos tudo caro na Inglaterra em comparação com o Brasil.

Um dia fomos assistir a uma corrida de galgos, que acha-mos muito interessante, pois podia-se apostar. Os cachorros corriam atrás de uma lebre elétrica.

Em julho de 1939 apareceu um homem do governo lá em casa, com máscaras contra gás que estavam sendo distribuídas à popu-lação. Eram engraçadas e quando as colocávamos no rosto pare-cia que estávamos com um focinho de cavalo. Tinham um cheiro horrível de borracha e me davam um pouco de abafamento.

Fomos com as professoras do colégio visitar as cavalariças do rei. O cheiro dos cavalos não era nada agradável, mas as lin-das carruagens eram bastante chamativas. Também fomos com a turma do colégio a uma grande fábrica, Lyons, onde confec-cionavam doces, bolos, sorvetes etc. Gostamos muito, pois o manejo das máquinas era muito interessante; apesar do grande número de funcionários, elas faziam tudo: caixas para embala-gem e seu transporte numa esteira. Tinha uma máquina que fa-zia quatro mil bolos grandes por hora. Comemos vários doces e sorvetes de graça. No setor que passávamos recebíamos o tipo de doce que estava sendo fabricado naquela hora. Visitamos também a casa da moeda, onde apreciamos o modo de cunhar dinheiro. As moedinhas de cobre eram lindas e brilhantes e caí-am numa espécie de caixa parecendo até um “tesouro de pirata”.

Papai nunca nos proibiu que fumássemos, mas sempre que nos dava a mesada dizia que era melhor gastá-la em cinema e chocolates do que em cigarros. Era um bom conselho, pois até hoje nenhuma de nós tem o vício do fumo. As divisões da moeda inglesa, a Libra, eram bem complicadas, mas nós rapi-

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damente conseguimos absorvê-las. Tudo que comprávamos com o nosso dinheiro para uso comum era dividido por três. Entretanto havia o problema do farthing, que era a quarta parte de um penny. Resolvemos a questão decidindo que a cada pró-xima despesa uma de nós pagaria o farthing fazendo assim um rodízio e nenhuma de nós ficaria prejudicada.

Em julho anunciaram no jornal que toda Londres iria ficar à noite numa total escuridão porque ia-se fazer uma experiên-cia com aviões. Pediram que se fechassem as cortinas das casas a fim de que não se pudesse ver qualquer luz, e os carros só podiam trafegar com as pequenas luzes laterais. A experiência começaria à meia-noite. Depois que ficou tudo escuro, viam--se aviões passando no alto e os holofotes cruzando-se no céu.

No princípio de agosto de 1939, fomos a Southampton para assistir ao lançamento de um novo torpedeiro brasilei-ro chamado Juruena.

Saímos de Londres bem cedo e dentro do trem tiramos um retrato de nós três devidamente “enchapeladas”.

O cais estava cheio de brasileiros; tiraram muitas fotogra-fias e filmaram enquanto a “madrinha” fazia um discurso e quebrava uma garrafa de champanha na quilha do navio.

Nós três aparecemos no filme que passou como documen-tário no Brasil, mas infelizmente não chegamos a vê-lo. Yara, Yolanda e eu figurávamos bem no primeiro plano.

Depois fomos de ônibus até uma grande casa, onde foi ser-vido um belo almoço. No final fizeram muitos discursos em inglês e português. Em seguida tomamos o trem de volta para Londres e chegamos em casa ao anoitecer. Para nós foi um dia muito alegre e interessante.

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Naquele mesmo mês fizeram uma experiência de guerra no terreno baldio que ficava em frente ao nosso prédio. Apreciamos tudo da janela de onde se via, desde de manhã, debaixo de chuva, a construção de uma casinha de madeira. Tinha dois andares e ficou pronta à tarde. Encheram os dois andares com pedaços de pau e so-bras de madeira. Em seguida entraram policiais, mulheres-soldado e vários homens com papéis na mão. Depois acenderam um fogue-te que soltava uma fumaça cor-de-rosa, linda, e jogaram-no para dentro da casa que começou logo a se incendiar. No céu havia um avião rondando o tempo todo. Quando a casa virou uma tremenda fogueira apareceu um carro de bombeiros rebocando um aparelho. Jogaram água na casa, naturalmente tarde demais, pois era apenas uma experiência. Daquela casinha que deu tanto trabalho para ser construída, só restou um monte de cinzas. Logo todos se dispersa-ram, o avião foi-se embora e nós fomos jantar.

Em setembro de 1939 nossa casa parecia estar abrigando um morto; cortinas inteiramente pretas, lâmpadas fracas ou azuis, papéis pretos colados nas janelas, tudo por causa do bla-ckout 1, pois da rua não se deveria ver nem um raio de luz, por menor que fosse. Fora, a escuridão era tanta que as pessoas não enxergavam umas às outras. Precisávamos de muita pre-caução e, para que não houvessem abalroamentos, tínhamos umas pequenas lanternas de pilha, que deviam estar sempre voltadas para o chão quando acesas.

Quando a guerra foi declarada em setembro de 1939, meu pai ficou muito preocupado, pois tinha uma família grande para cuidar. Sua esposa estava grávida e ele já tinha cinco fi-lhos menores. 1. Escurecimento como defesa antiaérea.

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Começara o racionamento e cada pessoa tinha direito a meio quilo de açúcar por mês. E essa quantidade era designada para uma família de diplomata neutro; imaginem o restante do povo! Quando se conseguia fazer um simples bolo, toda a fa-mília havia contribuído com um pouco de sua cota individual.

Assim que comecei a ler inglês razoavelmente, procurei livros fáceis, tipo histórias de fadas etc. Entretanto, aqueles livros não mais me interessavam. Perto do nosso apartamento morava, em uma boa casa, uma senhora brasileira, dona Alice, viúva de um inglês, tio do ator de cinema Robert Donat, que lhe deixara uma grande biblioteca. Ela e a irmã, também brasileira e viúva de um inglês, apelidada de “Boneca” por ter sido muito mimosa na ju-ventude, frequentavam a nossa casa. O filho de dona Boneca, Gordon, trabalhava no consulado do Brasil. A dona da biblio-teca, percebendo o meu interesse pelos livros, franqueou-me as suas coleções, para minha grande alegria.

Um dos primeiros livros que li em inglês intitulava-se Palms e versava sobre as perseguições aos primeiros cristãos na an-tiga Roma. Fiquei empolgada com aquela leitura e (santa ino-cência) comentei o livro com Iza, acrescentando que felizmente não existiam mais perseguições em nossa época nem suas con-sequentes torturas. Mal sabiam os meus cândidos 16 anos que Hitler perseguia os judeus e outras raças não arianas com uma ferocidade semelhante à da Roma imperial.

Só viemos a saber sobre aquele terrível episódio em nossa época muito tempo mais tarde!

Lembro-me bem das andanças do primeiro-ministro inglês, Chamberlain, que tentava entrar em acordo com Hitler pouco antes da invasão da Polônia pela Alemanha nazista em 1939.

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Iza, na sua simplicidade, comentava: “Esse Chamberlain pa-rece um ‘bumbum de jaleco’ (termo pernambucano que signifi-ca um ‘bobo alegre’) para cima e para baixo. Será que ele ainda não percebeu que Hitler não está nem ligando para ele?”

Ouvimos pelo rádio a declaração de guerra de Churchill. Pouco depois soou o primeiro alarme para nós. Devia ser um treinamento para a população, porque teria havido uma peque-na incursão aérea dos alemães no sul da Inglaterra. Lembro-me de que eu estava no jardim do nosso prédio tomando um pouco de sol naquele lindo dia de agosto quando ouvi o alar-me. Fiquei tão apavorada que minhas pernas tremiam e eu mal consegui atingir o shelter 2 que ficava no subsolo do edifício.

A tudo a gente se acostuma! Quantas centenas de verda-deiros alarmes, de reais bombardeios sobre Londres, ouvimos depois! Fomos nos acostumando com eles a princípio por se-rem espaçados. Porém tornaram-se mais frequentes à medida que os combates se intensificavam, culminando no fulminante ataque do dia 7 de setembro de 1940.

Depois da declaração de guerra todos eram obrigados a levar a tiracolo uma caixa de papelão contendo uma máscara contra gás.

Naquela época, achávamos que a Inglaterra estava bem defendida. O nosso shelter ficava numa espécie de porão do prédio. Eram duas salas grandes: numa havia mesinhas de jogo, sofás, rádio, poltronas etc. Na outra havia uma mesa de pingue-pongue (provisoriamente).

2. Abrigo antiaéreo.

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A chegada e a partida de navios começou a ficar um tanto incerta a partir de agosto porque muitos navios foram requisi-tados para a guerra e só de vez em quando partia algum para o Brasil.

No princípio de 1939 recebemos, desoladas, a notícia da morte de nossa querida avó, mãe de mamãe. Para nós, as três meninas, foi um grande golpe. Até escrevi uma poesia em sua memória: ela morreu de tristeza com nossa ausência.

Adeus minha avó queridaQue tanto me amou na vida,Que por mim morreu de amor;Hei de lembrar-me saudosaDa sua face amorosaDe seu afeto, o calor.

Da minha infância a alegriaQuando risonha eu a viaAbrir os braços, sorrir,E eu então me aninhavaNo colo de quem me amavaE me fazia dormir.

Eu me lembro que d’históriaGravou-se em minha memória,Nunca mais pude esquecer.E eu escutava enlevadaA cabecinha encostadaEm suas mãos a tremer.

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Agora minha avozinhaTu me deixaste sozinhaA recordar-me de ti.Já foi-se a felicidade,Só tenho então a saudadeDe quem não está mais aqui!

Em junho de 1939, no apartamento do edifício Kenton Court, na Kensington High Street, Lolô cismou que precisava de uma cozinheira de forno e fogão. Após algumas pesquisas no Rio de Janeiro, foi escolhida Ermelinda, mulata gorda, que chegou a Londres para nos servir em junho de 1939 envolta em alvos linhos tremilicantes e uma imaculada touca branca.

Previsivelmente ela não estava fadada a permanecer em nossa casa, embora cozinhasse primorosamente, depois de vá-rias estadas em residências de ministros e embaixadores no Rio de Janeiro. Logo começaram os desentendimentos, sen-do ela acusada de praticar macumbas e ser adepta do livro de ocultismo de São Cipriano. Em vista disso, não tardou que fos-se recambiada para o seu lugar de origem. Papai então embar-cou-a para o Rio de Janeiro a bordo do Highland Chieftain.

Chegando lá ela foi entrevistada pelo jornal O Globo já que esse navio havia sido perseguido por um submari-no alemão, tendo a sorte de se livrar do ataque. Ela decla-rou que havia voltado para o Brasil por não querer ficar em Londres. “É que as coisas não estão nada boas por lá”, declarou ela ao repórter. Ermelinda não gostou de ter a ali-mentação sob medida, racionada. Disse, por exemplo, que 250 g de manteiga por semana era o que se permitia para

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nove pessoas e que uma galinha custava de 35 a 40 mil-réis. Sobre sua viagem, informou que nada ocorreu durante a

mesma. “Deram apenas alguns tiros. Disseram que havia sido para experimentar um canhão. Não nos assustamos por ter-mos sido antes avisados”. Ermelinda referiu-se a dois navios que se achavam em Londres, atracados no mesmo cais que o Highland Chieftain. Estes, cujos nomes ela não se lembrava, eram, um japonês e o outro inglês. Eles partiram depois do Highland Chieftain e foram afundados. Ela soube disso pelo camaroteiro do transatlântico inglês em que viajou, tendo ele lhe esclarecido que soubera do fato pelo rádio.

Como a guerra ainda não tinha sido declarada, podia-se viajar tranquilamente num vapor do Loyde Brasileiro através do Atlântico.

Tínhamos então uma diarista, Mrs. Burton, que fazia os serviços de faxina e lavagem da louça. Essa criatura nunca ti-rava o chapéu da cabeça, nem durante o trabalho. Lavava o chão e, com solenidade, toda a louça e panelas, completamente trajada, colocando apenas um avental por cima do capote mar-rom. Não tinha um aspecto muito limpo e depois de algum tempo em nossa casa resolveu se casar com o irmão de seu fa-lecido marido, já morto havia dois anos. Ambos pertenciam a uma família de 22 irmãos, cuja mãe, a mesma de todos, ainda estava viva, forte e gorda.

Iza continuava fielmente cuidando de Guy e Acyr e cozinhan-do quando necessário.

Não sei o que meu pai pensava sobre a situação da Europa na-quela época em que fomos para a Inglaterra pois, naquele tempo, as crianças não eram informadas sobre determinadas opiniões de

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seus pais. As crianças não participavam das conversas de adultos e meu pai não gostava que lêssemos jornais. Depois do falecimento de minha mãe, minhas irmãs e eu fomos internadas no Colégio Regina Coeli, um colégio de freiras italianas, muito rigoroso e, portanto, pouco sabíamos da situação mundial.

Lolô era muito ciumenta e, por isso, quase não havia diálogo entre papai e nós três. Certa vez, aos 16 anos, arrisquei-me a fazer um comentário durante uma conversa entre meu pai e ela, mas fui rispidamente censurada: “Criança não deve se meter em con-versa de adulto!” Papai ficou calado. Em vista disso, recolhi-me ao cubículo de minha insignificância e nunca mais interrompi qual-quer assunto discutido entre eles.

Guy e Acyr gostavam muito de folhear os álbuns de fotografias em que apareciam retratos de mamãe, que eles pouco conhece-ram, pois quando ela morreu Guy tinha três anos e Acyr apenas dois.

Numa ocasião, quando eles estavam contemplando a imagem de mamãe, Lolô passou e, por qualquer motivo que não me lem-bro, censurou os meninos. Acyr olhou magoado para ela e excla-mou: “Ah, Lolô, era tão bom quando você não existia!”

A situação política na Europa naquela época já era tensa, tendo começado com a ascensão de Hitler, Mussolini e Franco ao poder. Na guerra civil na Espanha os nazistas faziam experiências com as suas bombas sobre cidades espanholas tais como Guernica.

Minhas irmãs, Yara e Yolanda, mantinham um diário cada uma, onde descreviam minuciosamente os acontecimentos de cada dia e que agora, relendo-os, muito avivaram a minha memória.

O inverno, no princípio do ano de 1940, foi um dos mais frios de que se tinha notícia e os jornais disseram que desde a

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Batalha de Waterloo em 1815, portanto havia mais de um sécu-lo, não caía tanta neve na Inglaterra.

Assim que chegamos e nos instalamos em Londres, papai contratou uma professora de inglês, Miss Barns, para toda a família. Era uma figura extraordinária!

Até hoje sinto saudades dela. Ela contava que sua mãe, que era francesa alsaciana, em 1870, aos 14 anos, havia subido numa árvore para brincar, quando avistou o brilho das baionetas prus-sianas dentro de um bosque. Era um destacamento do exército alemão que se preparava para atacar a França. A menina saiu correndo e foi contar na aldeia em que morava o que havia visto, dando assim o alarme aos franceses.

Miss Barns não era religiosa, mas contou que quando o seu apartamento foi atingido por uma bomba, ela não sofreu nada porque estava debaixo de uma mesa empunhando um terço, “pelas dúvidas”!

Ela dizia que nós três éramos como uma barra de chocolate com três pedaços absolutamente iguais!

Quando chegamos a Londres, observei que havia muitos in-dianos na cidade. No nosso prédio morava uma família india-na. Os homens sempre usando turbante, às vezes com uma joia no centro do mesmo. Eram geralmente bonitos, com grandes olhos escuros e aveludados e quase sempre barbados. As mu-lheres, também graciosas, com deslumbrantes saris e com sinais pretos ou de ouro na testa e um enfeite de ouro na asa do nariz. Todos tinham um porte digno e reservado. Mais tarde, quando começaram os bombardeios, quase não vi mais indianos na rua.

Quando Henriquinho (Henrique Oswaldo) nasceu, em de-zembro de 1939, Lolô ficou em uma nursing home (materni-

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dade) não muito distante do nosso apartamento, porém um pouco longe para irmos a pé. Como ela não gostava da comida do hospital, cada uma de nós três ia a cada dia levar-lhe uma suculenta canja, preparada por Iza, dentro de uma marmita.

Nessa época a guerra contra a Alemanha já havia sido de-clarada por Churchill, mas os bombardeios ainda não haviam começado em Londres; entretanto, já havia o blackout e a ci-dade inteira ficava às escuras. Além da escuridão, tínhamos o célebre fog 3, que era tão espesso e amarelo esverdeado, que tí-nhamos a impressão de que poderia ser cortado com uma faca. Perdia-se a visão de qualquer objeto ou pessoa a uma distância de apenas um metro. Parecia uma parede! O ônibus que nos levava à nursing home precisava ir batendo as rodas no meio--fio da calçada para não se perder no fog. Para andar na rua usávamos uma pequena lanterna, um flash ou torch para nossa orientação. Mesmo assim, em noites de grande fog, aquela pe-quena lanterna quase não ajudava os nossos passos.

No primeiro ou segundo dia depois do nascimento de Henriquinho, levamos Guy e Acyr para visitar o irmãozinho. Acyr ficou muito surpreso, pois ele esperava encontrar um menino que falasse e pudesse brincar com ele.

Pouco depois que a guerra foi declarada, de nossas janelas no terceiro andar, começamos a ver grandes levas de refugiados que passavam em busca de um asilo em Londres. Primeiro vieram os poloneses, depois os belgas e holandeses e, por fim, os france-ses. Todos, coitados, muito mal vestidos, envergando, com raras

3. Nevoeiro espesso bastante comum em Londres.

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exceções, casacos surrados que haviam conseguido arrumar na hora extrema da fuga de seus países de origem. Entre eles, al-guns judeus assustados e temerosos. Enfim, uma tragédia!

Em setembro de 1939 os colégios foram fechados e as crianças enviadas para o campo ou pequenas cidades não atingidas pelos bombardeios, ou então para os Estados Unidos e Canadá. Porém, tragicamente, vários comboios marítimos que levavam aquelas crianças foram atacados e afundados por submarinos alemães.

Papai queria que nós fôssemos para uma escola no campo, mas não quisemos deixá-lo sujeito aos ataques do inimigo en-quanto nós ficávamos a salvo em algum recanto da Inglaterra. Ficamos, portanto, todos juntos.

Nós três continuávamos a ter imensas saudades do Brasil e do calor do Rio de Janeiro e estávamos loucas para voltar ao nosso país.

Papai mandou buscar no Rio nossos livros de estudo da quarta série ginasial e logo começamos a estudá-los com muito sacrifício.

De nossas janelas avistávamos a pequena torre da igreja ca-tólica que frequentávamos.

Não tínhamos amigas da nossa idade nem colegas por não estarmos frequentando um colégio.

Nossa rua era muito movimentada, mas quase não se ouvia buzinar e quando um carro utilizava a buzina as pessoas fica-vam olhando, ao contrário do que acontecia no Brasil antes de embarcarmos: era uma barulheira!

Guy e Acyr ganharam seus primeiros terninhos de menino grande e ficaram muito orgulhosos com as roupas novas.

Como o filme e o livro Gone with the Wind (E o Vento Levou) estavam fazendo grande sucesso em Londres, fomos depres-

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sa comprar o livro antes que o preço subisse, o que aconteceu pouco depois: o preço quase dobrou. Infelizmente, Lolô e pa-pai acharam que o volume era “impróprio” para mocinhas e o mesmo foi devidamente confiscado. Fiquei irritadíssima e oportunamente comprei um exemplar de outra edição, consi-deravelmente melhorada, com fotos do filme. Passei a ler o livro debaixo da cama, escondendo-o das vistas de Lolô. Tenho este volume até hoje em minha biblioteca!

Nossa querida professora de inglês, Miss Barns, costuma-va nos contar interessantes episódios da história da Inglaterra e incentivou papai a comprar uma História da Inglaterra em quatro volumes, toda ilustrada, que possuo até hoje.

Como Guy e Acyr precisavam sair para brincar ao ar livre, Yara, Yolanda e às vezes eu, costumávamos levá-los ao Holland Walk, uma passagem cheia de bancos onde se podia sentar à vontade. Quando eu também ia, achava o lugar um tanto mo-nótono, pois não era realmente um parque; porém os meninos podiam correr e brincar sem perigo do trânsito de carros, que ali não era permitido.

De vez em quando íamos ao Kensington Park ou Hyde Park com eles, mas esses parques eram um pouco mais longe de nossa casa. Os meninos ficavam naturalmente sujos e um dia quando chegamos em casa encontramos o senhor Elpídio Pereira, maestro e funcionário do consulado. Era muito brin-calhão e gostava de crianças. Ele pegou Acyr no colo e deu-lhe uma palmada amigável. Porém, para grande vergonha nossa, das calças de lã do garoto desprendeu-se uma nuvem de pó que quase sufocou o senhor Elpídio. Ele deu uma gargalhada, divertindo-se conosco.