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A ÁGUA SEUS CAMINHOS E DESCAMINHOS ENTRE OS POVOS Water: its flow and misflow among civilizations Ana Piterman 1 Rosângela Maria Greco 2 RESUMO Este estudo apresenta uma revisão dos períodos históricos que antecipam e inserem a evolução dos sistemas de abastecimento de água no mundo, no Brasil e em Minas Gerais. Para alcançar tal propósito, seguimos a história da água e seu relacionamento entre a saúde e saneamento dentro do contexto econômico, político e social em todas as civilizações sendo influenciadas pelos interesses dominantes em cada período. O objetivo desta revisão bibliográfica e análise documental foi situar os problemas enfrentados pelos governos em relação ao saneamento. Pode-se inferir que este está ligado diretamente aos interesses econômicos antes mesmo dos interesses da saúde da população, pois, para os governantes, a saúde é em primeiro lugar um problema de ordem econômica. Palavras-chave: Água; Abastecimento de Água; Políticas de Abastecimento de Água; Saneamento; Tratamento de Água. ABSTRACT This study presents a review of the historical periods that precede and situate the evolution of water supply systems in the world, Brazil and Minas Gerais. To this end, we have traced the history of water and its connection with health and sanitation in an economic, political and social context in all civilizations, looking at how it comes under the influence of the dominant interest in each period. This review aims to examine the problems faced by governments with respect to water supply systems. It is possible to infer that this issue is more closely tied to economic interests than it is to the interest of the population’s health, because for the government, health is primarily a question of economic interest. Key words: Water; Water Supply; Water Supply Policy; Sanitation; Water Treatment. Introdução 1 Cirurgiã Dentista - Referência Técnica em Vigilância Sanitária e Epidemiológica da Diretoria de Ações Descentralizadas de Saúde – São João Del Rei – Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais. 2 Enfermeira, Professora, Doutora do Departamento de Enfermagem Básica da Faculdade de Enfermagem da UFJF. End.: Avenida dos Andradas, 379 apt.704 – Centro - Juiz de Fora – Minas Gerais - Cep. 36033-360 – telefone (32)32361808 E-mail: [email protected] ou [email protected] Revista APS, v.8, n.2, p. 151-164, jul./dez. 2005

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A ÁGUA SEUS CAMINHOS E DESCAMINHOS ENTRE OS POVOS

Water: its flow and misflow among civilizations

Ana Piterman1 Rosângela Maria Greco2

RESUMO Este estudo apresenta uma revisão dos períodos históricos que antecipam e inserem a evolução dos sistemas de abastecimento de água no mundo, no Brasil e em Minas Gerais. Para alcançar tal propósito, seguimos a história da água e seu relacionamento entre a saúde e saneamento dentro do contexto econômico, político e social em todas as civilizações sendo influenciadas pelos interesses dominantes em cada período. O objetivo desta revisão bibliográfica e análise documental foi situar os problemas enfrentados pelos governos em relação ao saneamento. Pode-se inferir que este está ligado diretamente aos interesses econômicos antes mesmo dos interesses da saúde da população, pois, para os governantes, a saúde é em primeiro lugar um problema de ordem econômica. Palavras-chave: Água; Abastecimento de Água; Políticas de Abastecimento de Água; Saneamento; Tratamento de Água. ABSTRACT This study presents a review of the historical periods that precede and situate the evolution of water supply systems in the world, Brazil and Minas Gerais. To this end, we have traced the history of water and its connection with health and sanitation in an economic, political and social context in all civilizations, looking at how it comes under the influence of the dominant interest in each period. This review aims to examine the problems faced by governments with respect to water supply systems. It is possible to infer that this issue is more closely tied to economic interests than it is to the interest of the population’s health, because for the government, health is primarily a question of economic interest. Key words: Water; Water Supply; Water Supply Policy; Sanitation; Water Treatment. Introdução

1 Cirurgiã Dentista - Referência Técnica em Vigilância Sanitária e Epidemiológica da Diretoria de Ações Descentralizadas de Saúde – São João Del Rei – Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais. 2 Enfermeira, Professora, Doutora do Departamento de Enfermagem Básica da Faculdade de Enfermagem da UFJF. End.: Avenida dos Andradas, 379 apt.704 – Centro - Juiz de Fora – Minas Gerais - Cep. 36033-360 – telefone (32)32361808 E-mail: [email protected] ou [email protected]

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Este estudo apresenta uma revisão dos períodos históricos que antecipam e

inserem a evolução dos sistemas de abastecimento de água no mundo, no Brasil e em Minas

Gerais.

Para alcançar tal propósito, seguimos a história da água e seu relacionamento entre a

saúde e saneamento dentro do contexto econômico, político e social em todas as

civilizações sendo influenciadas pelos interesses dominantes em cada período.

Desde as épocas mais remotas, as comunidades se estabeleceram próximas a uma

fonte de abastecimento de água, sendo esta uma condição de sobrevivência das mesmas até

os dias de hoje.

O caráter social e o binômio saúde-saneamento surgiram de demandas

principalmente econômicas, ou seja, as doenças não desejáveis deveriam ser suprimidas

para um melhor desempenho do setor econômico; sendo este um fator preponderante para a

origem das políticas públicas de implementação dos sistemas de abastecimento de água no

mundo e no Brasil.

A água é o mais importante alimento para a vida humana e tanto sua qualidade

quanto a quantidade necessárias são fatores determinantes para o binômio saúde/doença do

homem.

A Água, sua simbologia, evolução e seus caminhos e descaminhos entre os povos

As significações simbólicas da água estão presentes em todas as culturas desde as

mais antigas tradições permeadas de conteúdos mágicos. Através dos mitos e religiões,

estas alegorias sobre a água eram relacionadas com símbolo e a origem de vida, meio de

purificação e cerne de regenerescência (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988).

Chevalier e Gheerbrant (1988) definem a metáfora das águas como: Uma massa

indiferenciada, representando a infinidade dos possíveis, contendo todo o virtual, todo o

informal, o germe dos germes, todas as promessa de desenvolvimento, mas também todas

as ameaças de reabsorção. Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente,

salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se de novo num imenso

reservatório de energia e nele beber uma força nova: fase passageira de regressão e

desintegração, condicionando uma fase progressiva de reintegração e regeneração.

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Os oceanos e mares representariam a dinâmica da vida. Tudo brota do mar e tudo a

ele regressa: espaço onde ocorrem os nascimentos, as mudanças e as regenerações. Águas

em movimento, o mar simboliza um estado efêmero entre as possibilidades ainda

imprecisas e as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de

incerteza, de dúvida, de indecisão e que pode se concluir bem ou mal. É a personificação da

vida e da morte (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988).

É pelo mar que os heróis partem em busca de outras paragens. É através de

tempestades marítimas que são magicamente transportados para locais longínquos e onde

sua presença é necessária. Em todas as culturas, o mar é considerado um local de passagem,

de um estado para outro. Além disso, enquanto o oceano revela um estado de repouso do

self pela idéia do reflexo de calmaria, o mar com suas ondas e vagas indica o dinamismo da

vida (CENTENO et al., 1991).

Foi através do Mar, que se abriu ao meio, que Moisés levou o povo hebreu do Egito,

do cativeiro para a Terra Prometida, para a liberdade. Ele levou o seu povo da condição

inconsciente de escravidão para a condição consciente de alcançar sua maturidade e

assumir sua identidade. Simbolicamente, a inconsciência é sempre relacionada à escravidão

psíquica, enquanto a consciência e o conhecimento representam a liberdade, a possibilidade

de exercício do livre-arbítrio (CAVALCANTI, 1997)

O simbolismo do rio e a fluência de suas águas seriam, ao mesmo tempo, o da

possibilidade universal e o movimento das formas, fertilidade, morte e renovação. Depois

da chuva e do sol nada contribui de maneira tão óbvia para a fertilidade da terra quanto os

rios. A travessia das águas é um obstáculo que separa dois domínios, dois estados: o mundo

fenomenal e o estado incondicionado, o mundo dos sentidos e o estado de não-vinculação.

A margem oposta é o estado que existe para além do ser e do não ser (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1988).

Seja o descer das montanhas ou ao percorrer os vales, escoando-se nos lagos ou nos

mares, o rio simboliza sempre a existência humana e o curso da vida, com a sucessão de

desejos, sentimentos e intenções, e a variedade de seus desvios. A esse respeito, a teoria de

Heráclito, é significativa. No fragmento 12 da edição clássica de Diels citado por Chevalier

e Gheerbrant (1988) lê-se: “Aqueles que entram nos mesmos rios recebem a corrente de

muitas e muitas águas, e as almas exalam-se das substâncias úmidas.” Também é o

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pensamento do filósofo a respeito do mundo como devir eterno. “Nos mesmos rios

entramos e não entramos, somos e não somos”. Traduzindo poderíamos entender como

“Não conseguiríamos entrar duas vezes no mesmo rio: suas águas não são nunca as

mesmas e nós não somos nunca os mesmos”. Esta concepção expressa a idéia da mudança

contínua do mundo.

As fontes são um simbolismo de água pura e sua sacralização é universal, pois

constituem a boca da água viva ou da água virgem. Através delas se dá a primeira

manifestação, no plano das realidades humanas, da matéria cósmica fundamental, sem a

qual não seria possível assegura a fecundação e o crescimento das espécies. A água viva

que delas corre é como a chuva, o sangue divino, o sêmen do céu. É um símbolo da

maternidade. A água da fonte é a água lustral, a própria substância de pureza

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988).

Nas cerimônias matrimoniais gregas, as noivas eram colocadas em frente às

divindades domésticas diz Apuleio: “... os manes quando malfazejos chamavam larvas,

reservando o nome de lares só para os guardiões benfazejos e propícios...”, em seguida,

eram aspergidas com a água lustral e deviam tocar o fogo sagrado simbolizando a entrada

dela no futuro lar (COULANGES, 1981).

Para a psicanálise, o nascimento é representado por algo que tem uma conexão com

a água através dos sonhos. Para Freud (1980) este símbolo manifesta-se em dois sentidos

pela verdade da evolução. Todos os mamíferos terrestres, inclusive os ancestrais humanos

vieram da água, descendem de seres aquáticos e também todo o processo de gestação

ocorre no líquido amniótico do útero materno, sendo o nascimento uma proveniência

através da água. O nascimento dos heróis, dos mitos, lendas e histórias de fadas uma parte

predominante é desempenhada ou pelo abandono na água ou pelo resgate na água (FREUD,

1980).

Para Bachelard, (1998):

“A água, esse líquido universal submetido às leis do inconsciente,

sugere um líquido orgânico. A água extraordinária, a água que

surpreende o viajante, as aventuras que querem geográficas. Se ela

é matéria fundamental para o inconsciente, então deve comandar a

terra. É o sangue da Terra. A vida da Terra. É a água que vai

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arrastar toda a paisagem para o seu próprio destino. Em

particular, uma determinada água, um determinado vale (...) A

inquietação mais cedo ou mais tarde, deve surpreender-nos no

vale. O vale acumula as águas e as preocupações, uma água

subterrânea o escava e o trabalha.”

Assim a água compõe o imaginário dos povos e também é um elemento

fundamental na formação e organização das sociedades desde a pré-história.

As civilizações antigas, desde os tempos remotos, através de experiências

construíram suas formas de organização em torno das bacias hidrográficas e costas

marítimas. A água era um elemento vital para todas as culturas, onde foi objeto de

veneração e temor. Assim criaram seus mitos e símbolos para explicar as forças da

natureza. O domínio deste elemento sempre foi um alvo a ser atingido, pois disto dependia

sua sobrevivência. Com o tempo adquiriam técnicas de irrigação, de canalizações,

construção de diques e outros. Decrosse (1990) citado por Resende e Heller (2002)

considera tais técnicas fundadoras das civilizações hidráulicas na Antigüidade.

As primeiras construções de poços, chafarizes, barragens e aquedutos que se têm

notícia foram construídos no Egito, Mesopotâmia e Grécia. Os mesopotâmios já utilizavam

sistemas de irrigação (4.000 a.C.). Na Índia existia a galeria de esgotos em Nipur e os

sistemas de água e drenagem no Vale dos Hindus (3.200 a.C.). Os sumérios (5.000-4.000

a.C.) relacionavam a água às mais importantes divindades, tendo construído neste período

canais de irrigação, galerias, recalques, cisternas, reservatórios, poços, túneis e aquedutos.

Em 2.000 a.C., a poluição dos recursos hídricos era punida entre os persas e o livro Zenda

Vesta, Zoroastro fala sobre cuidados com a higiene e a saúde (ROCHA, 1997 apud

RESENDE; HELLER, 2002).

A preocupação com a água imprópria, potencial transmissora de doenças, levou os

egípcios, em 2.000 a.C. a utilizarem o sulfato de alumínio na clarificação da água, e datam

desse ano os mais antigos escritos em sânscrito sobre os cuidados que se deviam manter

com a água de consumo, tais como seu armazenamento em vasos de cobre, sua exposição

ao sol e sua filtração através do carvão. Tais escritos descrevem a purificação da água pela

fervura ao fogo, aquecimento ao sol, ou a introdução de uma barra de ferro aquecida na

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massa líquida, seguida por filtração através de areia e cascalho grosso (AZEVEDO

NETTO, 1984 apud RESENDE; HELLER, 2002).

Estes registros apontam as diversas práticas sanitárias utilizadas pelas civilizações

antigas. Porém não vinculavam a ausência de saneamento à ocorrência de doenças

transmissíveis que eram atribuídas à ira dos deuses (RESENDE; HELLER, 2002).

As primeiras elaborações científicas e filosóficas da cultura ocidental foram

idealizadas pela Escola de Mileto. Para Tales de Mileto a água era a origem de todas as

coisas – a água era o princípio da natureza úmida e continente de todas as coisas, por isso

ela era o princípio de tudo, e a terra se encontrava sobre ela. A água seria a physis que

abrangeria tanto a acepção de “fonte originária” como a de “processo” de surgimento e de

desenvolvimento, correspondendo à gênese (SILVA, 1998).

Na cultura grega a medicina tinha uma relação intrínseca com a filosofia. A primeira

praticada por médicos como disciplina autônoma que utilizavam a physiologia e a segunda

concebia a saúde como uma relação entre o homem e a natureza. A medicina tem no

pitagórico Alcmeão de Crotona sua origem e em Hipócrates de Cós sua fundação. Alcmeão

afirmava que a saúde é sustentada pelo equilíbrio ou igualdade (isonomía) das potências

(dynamis): úmido, seco, quente, frio, doce, amargo e as demais. O predomínio de uma só

(monarkhia) sobre as outras é a causa da doença. [...] Às vezes, a doença se origina por

causa externas como a qualidade da água (CHAUÍ, 2002).

Hipócrates (460-377) em seu tratado Ventos, águas e lugares relacionavam a saúde

com as estações do ano, a posição dos astros, a posição e situação geográfica dos lugares,

clima, qualidade da água e das terras assim como também associava aos hábitos

alimentares, habitação, aos exercícios físicos, condição psíquica e ao meio social, político e

religioso. Chamava a atenção de seus colegas para a relação entre a qualidade de água e a

saúde da população. Foi profético quando disse que o médico “que chega numa cidade

desconhecida deveria observar com cuidado a água utilizada por seus habitantes”. Suas

palavras, porém, caíram em descrédito por um período de aproximadamente 2000 anos de

obscurantismo (ROSEN, 1994).

A obra de Hipócrates mostrou a relevância em observar e investigar o local em que

se vivia, compreendendo uma visão preventiva, iluminada em seus ensinamentos acerca da

purificação da água, na medida em que descreveu técnicas de filtração, aconselhando sua

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fervura. Os termos “endemia" e “epidemia” (visita a todos os lugares para conhecer o

paciente – o médico que ia até o paciente e não o contrário), a medicina era uma vocação

itinerante e já era utilizado pelos gregos (RESENDE; HELLER, 2002; ROSEN, 1994).

Platão (427-347 a.C.) considerava a necessidade de disciplinar o uso da água e

prescrevia algumas formas de penalização para aqueles que a causassem algum dano, pois

para ele, a água era a coisa mais necessária à manutenção das plantações. Já a terra, o sol e

os ventos, concorrente da água na alimentação das plantas, não estavam sujeitos ao

envenenamento, desvio ou roubo, sendo que tais danos poderiam, eventualmente, acontecer

à água, necessitando que a lei viesse em seu socorro (SILVA, 1998).

Resende e Heller (2002) afirmam que:

Se os gregos foram os precursores da medicina racional e

preventiva, os romanos foram os grandes engenheiros, que uniram

seu talento para as construções ao legado científico dos gregos.

Executaram grandes sistemas de esgotamento sanitário e banhos,

além de outras instalações sanitárias, revelando nas suas obras a

grande preocupação do Estado com as demandas coletivas, o que

determinou uma elevada abrangência dos serviços de saneamento.

A arquitetura romana (século V a.C.) contribuiu com duas importantes técnicas de

sistemas de transporte de água. Conheciam a canalização por tubulações subterrâneas com

tubos de ferro ou bronze e também os aquedutos (latim aqua – água e ducere - conduzir)

que eram arcos suspensos que aprenderam a construção com os etruscos. O primeiro a ser

construído na região foi o Aqua appia (OPAS/OMS, 1988).

Durante o império de Augusto foi criado um sistema de administração da saúde

pública em Roma, entre 27 a.C. e 14 d.C. Augusto criou uma Câmara de Água, para cuidar

dos assuntos referentes ao suprimento e abastecimento de água; uma comissão de saúde

com funções específicas; oficiais responsáveis pela inspeção sanitária dos banhos, e oficiais

encarregados da fiscalização da limpeza das ruas, da qual a população ficara encarregada

(ROSEN, 1994).

Na Idade Média (por volta de 500 - 1500) ocorreu um declínio no processo de saúde

pública com o esfacelamento da civilização greco-romana pelos bárbaros (ROSEN, 1994).

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O desenvolvimento do comércio proporcionou a formação de pequenos povoados

principalmente às planícies dos rios, orlas marítimas e rotas comerciais. Algumas cidades

surgiram em torno de mosteiros fortificados ou em castelos de senhores feudais. Utilizavam

o rio como meio de transporte e captação de água. (ROSEN, 1994).

No entanto, consumiam baixo volume de água, que em algumas localidades

chegavam a menos de um litro diário por habitante, além de reduzidas possibilidades de

banho gerando graves conseqüências para a saúde da população (SILVA, 1998). Este

período foi marcado por duas grandes epidemias: a peste de Justiniano (543) e a Peste

Negra (1348) (ROSEN, 1994).

Este período foi marcado pela freqüência contínua de enfermidades que tentavam

debelar com magias e penitências, pois desconheciam o processo das moléstias.

Incoerentemente, o conhecimento de saúde e higiene preservou-se nos claustros e igrejas,

onde havia água canalizada, latrinas apropriadas e sistema de aquecimento e ventilação

adequados (RESENDE; HELLER, 2002).

A população vivia amontoada em cortiços mantendo alguns hábitos da sua vida

rural como convivência com animais e pouco cuidado com a higiene. O suprimento

adequado de água foi amenizado com a construção de cisternas, poços cavados e fontes

naturais. Somente no ano de 1126, na França, foi construído o primeiro poço artesiano.

Depois disto, os sistemas de abastecimento de água foram sendo desenvolvidos

(RESENDE; HELLER, 2002).

As ruas, neste período, eram bastante sujas. O lixo era deixado na porta das casas,

os animais circulavam soltos, os urinóis eram esvaziados pela janela e o mau cheiro

insuportável. Este fato obrigou as autoridades municipais a interferirem no modo de vida da

população através de decretos como, por exemplo, em Paris proibiu-se a circulação de

porcos em meados do século XII. Porém, o Estado mantinha-se ausente nas ações de

saneamento propriamente dita, exercendo apenas a função de inspetor junto à população

(RESENDE; HELLER, 2002).

Contudo, com o crescimento das epidemias, foi-se remodelando o modo de vida dos

habitantes. Estabeleceu-se uma nova forma de administração sanitária, baseada na

observação do cotidiano das cidades. As soluções (empírica e intuitiva) para os problemas

foram frutos da experiência adquirida ao longo dos anos. A quarentena foi criada nesta

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época com objetivo de deter o alastramento das doenças. Medidas de proteção ambiental

foram tomadas visando à preservação dos recursos hídricos (POMPEU apud SILVA,

1998).

O Acto Inglês, promulgado em 1388, foi considerada a lei britânica mais antiga

sobre poluição das águas e do ar. Esta lei proibia o lançamento de excrementos, lixo e

detritos em fossas, rios e outras águas. Em 1453, em Augsburgo, leis rígidas de proteção

dos mananciais foram instituídas a fim de se controlar a contaminação dos rios que serviam

ao abastecimento público. Atentou-se para o problema da geração do lixo e de sua

disposição e a presença de animais no meio urbano (RESENDE; HELLER, 2002).

Por volta do século XII, com a desintegração do feudalismo, inicia-se um novo

sistema econômico, social e político: o capitalismo. A característica principal deste novo

sistema é o trabalho assalariado e não servil economia de mercado, trocas monetárias e

preocupação com o lucro. Ressurge o comércio, com o descobrimento de novas rotas

marítimas e conquista de novos continentes (RESENDE; HELLER, 2002).

Durante o mercantilismo (1500-1750) as autoridades públicas eram responsáveis

apenas pelos problemas de ordem local, podendo impedir a entrada de pessoas infectadas

em suas jurisdições. Entretanto, não podiam interferir em problemas externos como o

atracamento de navios e a entrada de mercadorias provenientes do Oriente (ARRUDA,

1977).

O desejo de riquezas por parte dos soberanos os impelia na criação de novos

conhecimentos, impulsionando a criação de escolas e desenvolvimento das ciências

naturais. As relações entre saúde e saneamento fortaleceram-se a partir daí com o início do

Renascimento (RESENDE; HELLER, 2002).

As relações entre saúde e saneamento fortaleceram-se no Renascimento. Este foi

marcado pela volta aos valores greco-romanos. Nesta época os engenheiros da Renascença

descobriram a obra “De aquis urbis Romae” tendo acesso aos detalhes da construção e

manutenção deste sistema em 1425 (SILVA, 1998).

O retorno à arte grega e romana inspirava os artistas da época a construírem

chafarizes e fontes com influências mitológicas. Shama (1996), citado por Silva (1998),

esclarece que o título de “superintendente dos rios e águas” concedido a alguns dos mais

famosos fontanierii (responsáveis pelas fontes) era muito mais que um certificado de

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engenharia, pois demonstrava o virtuosismo do controle hidráulico através das “forças

aliadas da física e da metafísica.”.

O controle dos esgotamentos sanitários, porém, não teve um desenvolvimento

suficiente e a situação do suprimento de água também não foi resolvido a contento.

Criaram-se as companhias particulares de abastecimento de água. Estas companhias

utilizaram o processo de bombeamento e ampliaram os sistemas de abastecimento de água.

A primeira companhia (Companhia New River) foi fundada em Londres e, a partir da

resolução do problema de abastecimento, preocupou-se com a qualidade da água, já que

não havia nenhum tratamento, o que causava constantes epidemias (RESENDE; HELLER,

2002).

A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra no século XVIII (1760-1850), que

alastrou se pela Europa e Estados Unidos, foi caracterizada pelas transformações técnicas,

comerciais e agrícolas promovendo transformações profundas e revolucionárias na

sociedade. Assinalou a passagem da sociedade rural para a sociedade industrial, a mudança

do trabalho artesanal para o trabalho assalariado, a utilização da energia a vapor no sistema

fabril em lugar da energia humana (ARRUDA, 1977).

As profundas alterações efetuadas no campo do trabalho refletiram no olhar sobre a

saúde destes trabalhadores que também era caracterizada por mão de obra infantil. O

mercado era cada vez mais exigente e necessitava de um controle maior sobre a qualidade

de vida desta população. Incentivaram-se os estudos baseados na mortalidade e expectativa

de vida, fundaram-se hospitais compatíveis com a nova realidade impulsionados pelas

preocupações de possíveis perdas econômicas (ARRUDA, 1977).

Neste contexto, para aumentar os lucros, os operários eram submetidos a um

acentuado processo de exploração, danificando irremediavelmente sua saúde. Engels, no

texto “As condições da classe trabalhadora na Inglaterra em 1844”, demonstrou pela

primeira vez a relação entre saúde e política, considerado o primeiro estudo analítico sobre

Epidemiologia (RESENDE; HELLER, 2002).

Porém, apesar do crescimento econômico a população continuava em situação

precária relacionados à pobreza e ausência de saneamento. Isto acarretou a disseminação de

epidemias despertando na sociedade a consciência da relação entre o aglomerado de

fábricas, moradias e falta de saneamento adequado (ARRUDA, 1977).

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Edwin Chadwick (advogado), em seu relatório “The Sanitary Conditions of the

Labouring Population of Great Britain”, sobre as condições sanitárias da população

trabalhadora da Grã-Bretanha, foi veemente em sua luta para a criação de um órgão

administrativo de saúde pública relacionando pobreza e insalubridade. Assim fundou-se o

Conselho Geral de Saúde, cujas atribuições eram administrar os serviços de abastecimento

de água e esgotamento e investigar as condições sanitárias do distrito, nomeando um oficial

de saúde. Porém, foi encontrada muita resistência por parte dos proprietários de terras e

imóveis que se opuseram às desapropriações demandadas pela execução de obras de

drenagem e de abastecimento de água, tornando-se impopular e, conseqüentemente, seu

fechamento (RESENDE; HELLER, 2002).

Outros países como a França, a Alemanha e os Estados Unidos, inspirados na

Inglaterra, também iniciaram reformas sanitárias. O americano Lemuel Shatuck escreveu e

editou o Relatório da Comissão de Saúde de Massachusetts e articulou uma comissão que

se encarregaria da avaliação das condições sanitárias do Estado. As cidades costeiras como

Nova York e Boston enfrentavam graves problemas de moradia e insalubridade (SILVA,

1998).

Na França seus representantes foram Louis de Villermé, pelo estudo de

determinantes sociais das doenças, Pierre Louis, pelo uso da estatística em pesquisa clínica

e Louis Pasteur, pelas suas investigações no campo da microbiologia. Pasteur demonstrou a

existência de doenças (estudo em animais com antrax, eripsela suina e pebrina do bicho da

seda) devidas a microorganismos e sua natureza contagiosa (SILVA, 1998).

A Alemanha deu a sua contribuição na reforma sanitária idealizado por Virchow,

melhorando eminentemente as condições sanitárias da população. Segundo Scliar (1987), é

na Alemanha (1779) que surge o intervencionismo do Estado na área de Saúde Pública.

Neste ano é publicado o primeiro dos seis volumes do System einer Vollständigen

medicinischen Polizei, obra monumental com a qual Johan Peter Frank lançava o conceito

de polícia médica ou sanitária. Um conceito eminentemente autoritário e paternalista,

preocupado, sobretudo, com os aspectos legais das questões de saúde (SILVA, 1998).

A ordem é a condição essencial para o bem-estar dos súditos do imperador e dos

príncipes locais. E a forma de alcançar a ordem é a polizei. Derivado do grego politeia, a

palavra polizei tem um sentido ambíguo, é uma mescla de política e polícia e implica o

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poder da intervenção do Estado (no sentido de conjunto de ações entre o governo, a

legislação, a administração e a justiça) (SILVA, 1998).

Na segunda metade do século XIX, apesar dos países capitalistas tentarem realizar

programas sociais para melhorar a qualidade de vida de suas populações, estas aumentavam

de maneira demasiada e os esforços não foram suficientes para superar as dificuldades

enfrentadas. Entretanto, podemos perceber, através de estudos promovidos por Wood et al.

entre os anos de 1861 a 1921, que existiu uma melhora significativa na mortalidade infantil,

principalmente na Inglaterra. (SILVA, 1998).

Também no século XIX não podemos deixar de abordar a teoria dos miasmas versus

a teoria do contágio que durante um surto de cólera foi um ponto de polêmica sobre esta

questão básica na epidemiologia (RESENDE; HELLER, 2002).

Em 1854, ocorreu um grave surto de cólera em uma área restrita de Londres,

causando a morte de grande número de pessoas em curto período e provocando pânico na

população local. John Snow, médico, observou que a doença era veiculada pela água

contaminada já que produzia um fluxo intenso no sistema digestivo sem os sintomas

comuns em outras doenças relatadas. Concluiu que o microorganismo, que hoje

conhecemos como Vibrae cholerae, era introduzido através da boca e conduzido direto ao

trato digestivo. Suspeitou imediatamente da água poluída e também do uso inadequado da

água (SNOW, 1999).

Com a publicação de provas conclusivas de Snow sobre a água fornecida pela

Companhia Southwark & Vauxhall, nem mesmo o cientista mais intransigente poderia

negar a influência da água contaminada na propagação da cólera. Porém, este fato foi aceito

apenas parcialmente pois, na época, somente puderam concordar com o fato de a água

impura ter apenas uma influência parcial capaz de aumentar o risco da cólera. O trabalho

deste pesquisador não pôde ter uma influência imediata sobre a promoção de melhorias no

fornecimento de água, embora tivesse obtido algum êxito em convencer seus

contemporâneos de que o esgoto misturado à água potável era o principal fator, e não um

fator secundário na propagação da cólera (SNOW, 1999).

Snow continuou seus estudos abrangendo outras doenças baseado nos dois

princípios que ele tinha estabelecido para a cólera: a imensa importância da água como

veículo de uma infecção específica e a inveracidade de que os “eflúvios” - no caso das

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doenças infecciosas – proveniente da matéria orgânica morta pudesse ser a causa de surtos

epidêmicos conforme habitualmente se acreditava na época. Foi duramente criticado por

esta última hipótese e resolveu trabalhar com fatos concretos (SNOW, 1999).

Procurou anotações em documentos no Cartório de Registros Gerais da época para

comprovar que os óbitos não eram maiores em trabalhadores de locais notoriamente

insalubres tais como curtumes, carvoaria e fábricas de sabão em indivíduos do sexo

masculino com idades correspondentes aos seus colegas que trabalhavam na indústria.

Então relaciona, por contraste, uma associação correspondente entre a mortalidade e a

poluição das águas (SNOW, 1999).

Apresentando tabelas, aponta uma melhoria no fornecimento da água nos distritos

do sul de Londres. Estas são concluídas no segundo quadrimestre de 1855 em que as taxas

de mortalidade por causas como o tifo e a diarréia na área, tinham substancialmente

excedido as taxas de mortalidade nos distritos do norte do Tâmisa. Com o início de

alterações no fornecimento da água, tal reação foi revertida, de modo que as taxas de

mortalidade passaram a ser mais baixas nos distritos do sul que nos do norte. Seu trabalho

fora concluído com sucesso e muito contribuiu para o avanço da medicina e

particularmente nos estudos da Epidemiologia (SNOW, 1999).

A teoria do contágio veio à tona através de estudos de Koch em 1892. Durante a

epidemia de cólera em Hamburgo, ele isolou o vibrião das águas do Rio Elba. Koch

observou que, em Altona, cidade situada à jusante de Hamburgo, a água usada no

abastecimento era filtrada, evitando assim a transmissão de cólera. O mesmo procedimento

não acontecia em Hamburgo, cidade que teve oito mil mortes por cólera (KOIFMAN, 1990

apud RESENDE; ELLER, 2002).

Segundo Costa, citado por Resende e Heller (2002), a implementação de sistemas

de abastecimento de água e esgotamento sanitário só aconteceu em cidades de todo o

mundo após os surtos de cólera.

As nações tinham que reformular suas políticas sociais redefinindo o espaço

territorial e ainda perceber que as ações individuais eram insuficientes, modificando e

reorganizando a sociedade. A aristocracia compreendeu que havia perdido a imunidade

social e que deveria reconstruir um programa de saúde pública visando uma erradicação das

doenças epidêmicas (RESENDE; HELLER, 2002).

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Entretanto, estas transformações no âmbito das ações adotadas em políticas de

saneamento foram bastante lentas e fruto de conjunturas político-sociais que ora

aceleravam e ora dificultavam o processo. As epidemias alastrantes da cólera e febre

amarela eram um obstáculo a serem vencidas, pois se aumentava o risco com a circulação

de mercadorias transportadas pelos navios e trânsito dos imigrantes. A exigência das

quarentenas atingia em cheio o movimento do comércio internacional obrigando o debate e

a interferência política das autoridades sobre a saúde pública. A população sempre foi

passiva em relação aos problemas sanitários e dependia exclusivamente da intervenção

estatal, e estas, por sua vez, promoveram as mudanças pela força das epidemias emergentes

e sua relação com o regime capitalista (RESENDE; HELLER, 2002).

A primeira conferência de saúde em Paris ocorrida em l85l, codificou medidas para

controlar a cólera, a praga e a febre amarela e a primeira convenção sanitária internacional

foi assinada em 1892. No início do século XX (1907), numa conferência em Paris, criou-se

o primeiro Escritório Internacional de Higiene Pública. Em 1921, foi instituído a Liga da

Organização de Higiene das Nações e no dia 7 de abril de 1948 foi fundada a OMS

(Organização Mundial de Saúde), quando foi ratificada sua constituição pelos vinte e seis

países necessários (OPAS/OMS, 1988).

A maioria dos países, em grande parte subdesenvolvidos tecnologicamente e

economicamente, tem enfrentado problemas de doenças infecciosas, de abastecimento de

água pura, de esgotamento e elevação do padrão geral de vida a um nível mínimo aceitável.

Em verdade, ainda há muito a fazer na área de saneamento ambiental, controle de doenças e

educação em saúde e nutrição. Nos anos recentes aumentou também a discussão sobre as

mudanças sociais e econômicas que acompanham o industrialismo. Cresceu a consciência

quanto ao problema da poluição atmosférica similar à preocupação com a poluição da água,

mais antiga (ROSEN, 1994).

Muitos problemas de saúde encontraram solução na teoria, e esse conhecimento

aguarda aplicação na prática. Estas dificuldades exigem uma ação social e política

permeada de conhecimentos técnicos. Também devemos entender que a percepção do

horizonte deve ser estendida sempre além no tempo e no espaço (ROSEN, 1994). Citando

Guimarães Rosa “... porque a cabeça é uma só, e as coisas que há e que estão para haver

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são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a

cabeça, para o total.” (GUIMARÃES ROSA, 1985).

A História dos Sistemas de Abastecimento de Água no Brasil e Minas Gerais

Antes do descobrimento, o Brasil era habitado por tribos indígenas que se

deslocavam em busca de alimento e água não tendo preocupações maiores com

saneamento, pois o país era um continente em tamanho, porém, despovoado. Entretanto, os

índios tinham hábitos salutares, pois utilizavam água pura, tinham conhecimento de ervas

medicinais, banhavam-se diariamente e reservavam locais específicos para as necessidades

fisiológicas e a disposição do lixo. Quando os europeus chegaram ao país para colonizá-lo,

trouxe doenças para eles, além de serem forçados ao trabalho. Isto propiciou um processo

gradual de dominação e extermínio (RESENDE; HELLER, 2002).

Neste período, a fixação dos europeus, principalmente na costa brasileira visando a

extração máxima de matéria-prima, determinou os primeiros passos para o povoamento e

construção de vilas e cidades no Brasil. As casas eram simples e a água era trazida de

mananciais próximos às residências. Era armazenada em potes, atendendo aos afazeres

domésticos, à higiene corporal e ao preparo dos alimentos. A abundância de recursos

hídricos e utilização de mão de obra escrava para o seu transporte e armazenamento fizeram

com que os sistemas de abastecimento de água não fossem implantados durante os três

primeiros séculos da colonização (RESENDE; HELLER, 2002).

Em 1550 com o início do tráfico negreiro foram instituídos os agentes sanitários

alcunhados de “tigres”. Eram encarregados de esvaziar os potes nos quais eram despejados

os dejetos das casas-grandes e abastecer as casa com água para o uso diário (RESENDE;

HELLER, 2002).

Na administração de Maurício de Nassau (1637-1644), período de ocupação

holandesa, a preocupação com a saúde foi preponderante, levando a realização de várias

intervenções relacionadas com a infra-estrutura urbana. Foram realizadas obras de

drenagem, dessecamento de terrenos alagados, diques, canais e ancoradouros, tornado

evidente o caráter empreendedor e o senso coletivo do administrador holandês. Estas

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intervenções foram legitimadas pela Teoria dos Miasmas constituindo, assim, as primeiras

intervenções coletivas de saneamento realizadas no país (RESENDE; HELLER, 2002).

Foi a partir do ciclo do ouro que o comércio interior desenvolveu-se no país. O

isolamento das cidades mineiras levava seus habitantes a se tornarem totalmente

dependentes de gêneros alimentícios. Muito comum era encontrar tropeiros

comercializando esses produtos na região. Os principais centros urbanos são formados a

partir de núcleos em Minas no século XVIII nas cidades de Vila Rica, Mariana, São João

Del Rei, Diamantina e Serro do Frio (ALENCAR et al. 1985; SANTOS, 1978). Os

primeiros chafarizes foram construídos nesta época, com a finalidade de abastecimento

público. A administração portuguesa determinava que a captação e a distribuição da água

eram de responsabilidade exclusiva de cada vila, embora as atribuições municipais fossem

mal delimitadas e subordinadas à centralização monárquica (SILVA, 1998).

Apesar da construção dos chafarizes, a oferta de água não era satisfatória. A

população carente era obrigada a realizar longos deslocamentos por falta de chafarizes

próximos ou por serem alguns destes explorados por companhias particulares que

comercializavam a água. Tal fato demonstrava que somente uma minoria da população se

beneficiava com o atendimento dos serviços básicos. Somente com a consolidação da

República esta situação tenderia a mudar (SILVA, 1998).

A primeira autoridade sanitária no Brasil foi criada por D. João VI em 1808 que,

após algumas modificações, passou a corresponder ao cargo de Diretor-Geral da Saúde

Pública. Os serviços de saneamento nos portos foram organizados na forma de Inspeção

dos Portos, 1829, ficando sob responsabilidade do município o exame de todos os navios

que ancorassem em seu território, antes do desembarque. No ano de 1849 foram criadas a

Comissão Central de Saúde Pública, a Comissão Central de Engenharia e, em 1850, a Junta

de Higiene Pública. Essas comissões passaram a levantar os problemas sanitários,

restringindo-se às ações realizadas na capital do Império (COSTA, 1994 apud RESENDE;

HELLER, 2002).

A Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra refletiu nos aspectos socioeconômico

e político-cultural deliberando novas organizações de poder. No Brasil, no final do século

XIX, a economia era predominantemente agrícola, com concentração de poder nas

oligarquias cafeeiras que embora fosse beneficiária do Estado, também o influenciava

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ativamente transformando assim instrumento de seu interesse. A produção manufatureira

era incipiente por não conseguir competir com produtos europeus. Com a demanda de

serviços de saneamento nas cidades que aumentavam sua população, o Estado encarregava-

se dos serviços de abastecimento de água e esgotos e as companhias inglesas forneciam os

serviços de infra-estrutura cabendo ao poder público a regulamentação das concessões

(RESENDE; HELLER, 2002).

Com a expansão da economia urgia criar condições básicas para o desenvolvimento

das atividades econômicas. As cidades brasileiras, principalmente, as portuárias como o Rio

de Janeiro e Santos foram objetos de reformas no saneamento. Saturnino de Brito (l893-

1929), engenheiro sanitarista, deu um grande impulso a estas mudanças (RESENDE;

HELLER, 2002). Foi responsável pelo surgimento da consistência técnica voltada para a

realidade nacional, tendo um papel preponderante na adoção do sistema separador absoluto

do esgotamento sanitário em substituição ao sistema unitário inglês e na criação e defesa

das “bacias protegidas”, além da utilização de tratamento físico-químico nas águas de

abastecimento (RESENDE; HELLER, 2002).

Também desaprovava veementemente a maneira de intervenção do poder público

com a ocorrência de uma epidemia sem planejamento prévio ou recursos suficientes para a

realização de uma ação efetiva (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO apud RESENDE;

HELLER, 2002).

No período da Primeira República destacamos o movimento sanitarista iniciado por

intelectuais, dirigentes da saúde pública e autoridades, marcados principalmente pela gestão

de Oswaldo Cruz (1903-1909). O Rio de Janeiro passava por um momento crítico em

relação às epidemias de febre amarela, peste e varíola. Oswaldo Cruz enfatizou uma

interferência no saneamento da cidade, modificando as políticas de saúde pública

consolidando a modernização do país (HOCHMAN, 1998).

Entre as medidas adotadas por Oswaldo Cruz podemos destacar a criação da

Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) que passou a gerenciar a condução das políticas

de saúde da capital federal e dos estados, além de controlar a vigilância nos portos. As

políticas de saneamento também ficaram subordinadas a este órgão (HOCHMAN, 1998).

Em 1904 ocorreu a obrigatoriedade da vacinação antivariólica pelo crescente

aumento da doença. A nova lei, batizada de código das torturas, encontrou muitas

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resistências entre os políticos, militares e camadas populares. Os cariocas, desalojados de

suas casas e humilhados pelo governo autoritário, uniu-se ao episódio conhecido como

“Revolta das Vacinas” (RESENDE; HELLER, 2002).

No início do século XX, após as descobertas científicas efetivadas no campo da

medicina, introduziu-se a idéia de prevenção e assim reveste-se de um caráter social.

Novos papéis são desenhados para a saúde, como a observação das circunstâncias em que

vive a população brasileira e, assim, os médicos iniciaram uma viagem pelos sertões e

interior do país para estudar estas condições de saúde da população rural e sua relação com

a falta de saneamento inadequado (RESENDE; HELLER, 2002).

Esta expedição realizou um relatório com amplo levantamento das condições

climáticas, sócio-econômicas, nosológicas, descrição da fauna e flora e os tipos de

habitação em que vivia a população (ALBURQUERQUE et al, 1991). Este apontava a

necessidade de ações profiláticas que impedissem a associação perversa entre

disponibilidade de água e focos de doenças, especialmente a malária (ALBUQUERQUE et

al, 1991).

O resultado foi assombroso, pois obtiveram um diagnóstico em que a população

campesina desassistida do poder público e miserável estava infectada pela ancilostomíase

(amarelão), malária (impaludismo) e doença de Chagas (tripanossomíase americana). Estas

moléstias podiam ser evitáveis com a prevenção (RESENDE; HELLER, 2002).

Segundo Penna e Neiva os sertanejos eram ignorantes, abandonados, isolados com

instrumentos primitivos de trabalho, desconhecendo o uso da moeda, tradicionalista e

refratário ao progresso. Esse quadro de isolamento era responsável pela ausência de

qualquer sentimento de identidade nacional. Desconheciam qualquer símbolo ou referência

nacional, ou melhor, “... a única bandeira que conhecem é a do divino” (PENNA; NEIVA,

1916 apud HOCHMAN, 1998).

Nos centros urbanos, em locais insalubres, o problema resumia em três endemias

como a febre amarela, a varíola e a peste bubônica. O país era um imenso hospital

(HOCHMAN, 1998).

Em 1886, foi criada a Reforma Mamoré instituindo o Conselho Superior de Saúde

Pública. Os serviços sanitários foram divididos em duas inspetorias gerais: uma de higiene,

encarregada da higiene terrestre, com ênfase na capital imperial; e outra de saúde dos

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portos, responsável pela higiene marítima, que se organizava ao longo dos portos do país.

Esta configuração foi transmitida ao Governo Provisório da República (1890), ampliou o

poder da Inspetoria Geral de Higiene sobre os estados e adicionou-lhes mais atribuições,

“desmunicipalizando a higiene” (BARBOSA; RESENDE 1909; FONTENELLE, 1922

apud HOCHMAN, 1998).

A constituição de 1891 transformou as províncias em estados e determinou as

competências do governo federal e dos estados e do poder legislativo delimitando, assim, a

estrutura política do país. Nesta disposição da constituição de 1891, os estados eram

autônomos em suas políticas internas e o Governo Federal era responsável pelas políticas

externas (HOCHMAN, 1998).

Embora a constituição não fizesse nenhuma menção à saúde e ao saneamento,

interpretou-se através dos artigos 5º e 6º, que a higiene caberia aos estados e municípios. A

lei orçamentária referente às despesas de 1892 indicou que todos os serviços sanitários da

Capital Federal caberiam ao Governo Federal e os Estados assumiriam todas as ações em

seus respectivos territórios (HOCHMAN, 1998).

No entanto, os Estados e Municípios passavam por problemas de ordem financeira e

eram pouco estruturados, além da incompetência e inércia configurando um poder loca

(entenda-se poder estadual) quase ausente e os serviços de higiene federal e municipal não

conseguiam responder favoravelmente às dificuldades agravados por uma divisão

considerada ineficaz. Isto resultava em pequena margem de resolutividade no campo da

saúde e saneamento (HOCHMAN, 1998).

Talvez o único Estado brasileiro que tivesse em condições de implementar uma

política de saúde e saneamento fosse São Paulo e algumas capitais como o Rio de Janeiro.

Telles (1984) relata que o Rio de Janeiro foi a quinta cidade no mundo a adotar um sistema

de coleta de esgoto modernizada baseado no modelo inglês, concluído em 1864. No

entanto, o sistema de abastecimento de água teve sua construção posterior ao dos esgotos

(HOCHMAN, 1998).

Segundo comentário de José Maria Bello, o país não mais estaria dividido em

Estados e Municípios, e sim em três regiões (periferia do DF, litoral e interior), definidas

não por critérios geopolíticos, mas pela presença das três grandes endemias rurais. E ainda,

conforme a interpretação de Afrânio Peixoto, os sertões do Brasil começavam no fim da

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Avenida Central (hoje Rio Branco). A doença, o verdadeiro elo da Federação, redefiniria o

próprio mapa do Brasil (HOCHMAN, 1998).

Estes autores queriam enfatizar que os sertões não eram um lugar utópico ou bem

longe o suficiente para continuar excluído das políticas públicas, pois se as endemias

haviam chegado na avenida da capital federal e instaladas em suas cercanias e as elites

não poderiam fechar os olhos e ignorar estes episódios (HOCHMAN, 1998).

Concluiu-se que a maneira mais adequada de reestruturar os estados seria estatizar o

saneamento e a saúde no nível central. Assim o poder de decisão é centralizado no governo

federal delineando e executando todas as políticas públicas do binômio saúde-saneamento,

conquistando um instrumento legal que consolida sua presença nas unidades federativas

com atribuições como notificação compulsória das doenças infecto-contagiosas, a

fiscalização sanitária em habitações e fábricas, o controle sanitário sobre os alimentos, a

instituição da vacinação, a princípio obrigatória e depois estimulada através de campanhas

de conscientização, e a fiscalização sobre o exercício da medicina e farmácia

(HOCHMAN, 1998).

Neste período, os sanitaristas criaram a Liga Pró-Saneamento do Brasil. O médico

Belisário Penna foi uma das principais lideranças da Liga juntamente com Artur Neiva e

Monteiro Lobato, um de seus colaboradores criando o personagem Jeca Tatu. Este

movimento tinha o objetivo de prevenir as autoridades públicas e as elites intelectuais sobre

o problema da escassez do saneamento no interior do Brasil e foi reconhecido como a

mobilização para o saneamento dos sertões (HOCHMAN, 1998).

O governo Getúlio Vargas iniciado em 1930 fomenta uma extensa reformulação

política e administrativa, suspendendo a Constituição de 1891, passando a governar por

decretos até 1934, ano da promulgação da nova Constituição onde as ações sanitárias eram

exercidas pelo então Ministério da Educação e Saúde Pública (RESENDE; HELLER,

2002).

Este determinou uma ampla remodelação nos serviços sanitários do país,

procurando garantir a burocracia federal numa estratégia decorrente do centralismo

político-administrativo imposto por Vargas. A partir desta data foram nomeados os

interventores de saúde nos Estados, com o objetivo de criar ou reorganizar os DES

(Departamentos Estaduais de Saneamento), nos quais foram instaladas seções de

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engenharia sanitária, sendo os próprios governadores também intitulados interventores da

saúde pelo Presidente da República (RESENDE; HELLER, 2002).

Ao mesmo tempo, nos Estados, foi instituída uma nova estrutura administrativa para

os serviços de saneamento, constituindo os departamentos estadual e federal sob a forma de

administração centralizada. Essa prática mostrou sua fragilidade quando os municípios, sem

condições de gerirem os próprios sistemas, viram os recursos investidos desperdiçados,

graças à própria incapacidade de administrá-los e mantê-los. Rodrigues & Alves apontam a

Constituição de 1934 como a que mais expressamente tratou da Saúde Pública como

responsabilidade governamental, prevendo a participação dos municípios nos problemas

sanitários (RESENDE; HELLER, 2002).

Também no ano de 1934 deu-se um importante passo com a criação do Decreto que

institui o Código das Águas. Este estabelecia as normas do aproveitamento de recursos

hídricos, principalmente com fins energéticos. Ainda válido hoje, o decreto também foi um

dos primeiros dispositivos de controle do uso de recursos hídricos no país e o suporte para a

gestão pública do setor de saneamento (SILVA, 1998). O Código das Águas foi idealizado

pelo jurista Alfredo Valladão inspirado na legislação francesa e italiana sobre o direito das

águas. Deu ênfase a ampliação dos domínios público e federal sobre as águas e a

regulamentação da indústria hidrelétrica. Considerou um problema difícil com difícil

solução pela sua complexidade relacionada também aos vários ramos de direito e outras

disciplinas afins (HOCHMAN, 1998).

No final da década 1920/1930 algumas agências federais notadamente a Inspetoria

Federal de Obras Contra as Secas – IFOCS e o Serviço de Águas do Ministério da

Agricultura, iniciavam a efetivação e operação das primeiras redes hidrométricas básicas no

Brasil (SOUZA, 1993).

Anteriormente, a essa época a maioria das estações hidrométricas implantadas no

país tinham objetivos específicos ou setoriais e geralmente forma introduzidas para apoio e

empreendimentos de origem internacional. Em Minas Gerais, os registros mais antigos de

fenômenos hidrológicos remontam ao ano de 1913 e estavam associados à atividade de

mineração (SOUZA, 1993).

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O Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE – foi o

responsável pela instalação das primeiras estações hidrométricas básicas no estado de

Minas Gerais; em meados da década de 1920/1930 (SOUZA, 1993).

A instalação pioneira em Pirapora ocorreu em 1924 e, até o final de 1930, haviam

sido estabelecidos mais de três dezenas de estações nas bacias hidrográficas dos rios São

Francisco, Rio Doce, Rio Grande e Paraíba do Sul (SOUZA, 1993).

A rede básica inicial foi expandida no período subseqüente até cobrir, ao final da

década de 1940/1950, todas as principais bacias hidrográficas do Estado. Outras

contribuições importantes se sucederam como a representada pela rede básica, implantada

pela então Superintendência do Vale do São Francisco – SUVALE (SOUZA, 1993).

A rede instalada pela SUVALE, a partir de 1952, apresentava um padrão superior de

operação e forneceu importantes subsídios complementares ao conhecimento hidrológico

do Estado, até 1976, que foi parcialmente desativada e teve suas estações remanescentes

incorporadas ao programa hidrométrico mantido pelo DNAEE (SOUZA, 1993).

No estado de Minas Gerais, o programa hidrométrico mantido pela Companhia

Energética de Minas Gerais – CEMIG, a partir de 1962, assume especial importância. Essa

concessionária executou e ainda vem executando importantes levantamentos hidrométricos,

seja com o aproveitamento de estações já existentes, seja com a realização de uma

apreciável rede própria. A operação hidrométrica da CEMIG alcançou, em território

mineiro em todo o período, 169 estações distintas, abrangendo as bacias do Rio Doce, Rio

São Francisco, Rio Paranaíba, Rio Grande, Rio Jequitinhonha e Rio Paraíba do Sul

(SOUZA, 1993).

Merece registro, também, o programa hidrométrico mantido em algumas áreas do

Estado por FURNAS – Centrais Elétricas S. A. As investigações dessas empresas em

bacias do nordeste mineiro, por exemplo, embora recentes, representam uma contribuição

complementar para o conhecimento hidrológico naquela região (SOUZA, 1993).

O decreto federal 77.410 de 12/04/76 obrigava o DNAEE a executar e a atualizar o

cadastramento das estações hidrométricas operadas no País, incluindo aquelas de existência

efêmera e objetivos transitórios (SOUZA, 1993).

O inventário resultante deste cadastramento registra, para o território do Estado de

Minas Gerais, a instalação e operação de 1115 estações hidrométricas, desde a época mais

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remota até o ano de 1987. Esse total inclui tanto as estações já extintas quanto aquelas que

permanecem em operação, distribuindo-se pelas bacias dos rios S. Francisco (409), Grande

(223), Doce (216), Paraíba do Sul (89), Jequitinhonha (74), Paranaíba (73), Pardo (4) e

outros (27) (SOUZA, 1993).

Segundo Resende e Heller (2002), em 1964 foi constituída a COMAG (Companhia

Mineira de Água e Esgoto), empresa dotada de grande flexibilidade institucional,

caracterizada pela adequação das ações à realidade dos municípios mineiros e apresentando

uma visão do saneamento como indutor do crescimento econômico. De acordo com o

médico Paiva Neto, diretor-presidente da COMAG em 1970/1971, “o problema da saúde

era um problema para o desenvolvimento”, sendo o aspecto epidemiológico amplamente

valorizado por aquela companhia.

A COMAG atuava como concessionária dos serviços de água e esgotos, até que o

município alcançasse o equilíbrio quanto ao número de economias e o serviço, sua auto-

sustentação. Também prestava assistência técnica e financiava aos serviços municipais

autônomos (SOUZA, 1993).

Em 1974, a COMAG passa a ser denominada COPASA-MG (Companhia de

Saneamento de Minas Gerais) de acordo com a Lei nº 6 475 e um ano após a adesão do

Estado ao PLANASA (Plano Nacional de Saneamento) (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO,

1997).

No início de sua implantação e a adesão ao PLANASA representou a inserção do

Estado na estratégia macroeconômica do desenvolvimento industrial brasileiro. Ainda que

na década de 70 houvesse uma crise econômica internacional provocada pelo aumento dos

valores do petróleo, o poder público mantém sua política de recursos e financiamento para

implantação e manutenção dos sistemas de abastecimentos de água (FUNDAÇÃO JOÃO

PINHEIRO, 1997).

Devemos lembrar que nos anos 60-70 os Governadores eram nomeados pelo

Presidente da República e os Prefeitos pelos Governadores, através da instauração do AI-2

e AI-3 com o regime ditatorial instaurado no Brasil. Por isso, o ambiente era bastante

favorável para que os governos municipais transferissem os serviços de saneamento às

companhias estaduais (DÓRIA 1992 apud RESENDE; HELLER, 2002). Além disto, os

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municípios estavam bastante empobrecidos após a reforma tributária de 1965 (RESENDE;

HELLER, 2002).

Também argumentaram que esta transferência tinha como objetivo uniformizar a

política nacional e saneamento, sendo a centralização das ações um instrumento eficiente

para a eliminação do peso das pressões locais que impediam a adoção de tarifas realistas

(RESENDE; HELLER, 2002).

Assim, a definição das políticas de saneamento ficou concentrada nos governos

federal e estadual que passaram a controlar a totalidade dos recursos federais disponíveis

para o setor. Portanto, o critério para a alocação dos recursos passou a ter como parâmetro o

retorno dos investimentos, relegando a saúde pública a um plano secundário (RESENDE;

HELLER, 2002).

A dependência do Sistema Financeiro do Saneamento (SFS) de recursos externos

vinha se acentuando desde 1974, quando deixam de existir as transferências da União, a

fundo perdido, para aquele sistema, passando o BNH a mobilizar a ajuda de empréstimos

externos. O maior volume de recursos aporta no país via Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BIRD), sendo aplicado no PLANASA, através do BNH, que concedia os

recursos às unidades federadas (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1997).

O PLANASA entrou em declínio em 1986 com a extinção do BNH, ficando o

saneamento em estado de indefinição e de imobilidade. Em 1993, o Congresso Nacional

aprovou o PLC 199, que dispunha sobre a Política Nacional de Saneamento e seus

instrumentos. No entanto, esta foi vetada integralmente pelo governo de Fernando Henrique

Cardoso, com a justificativa que contrariava os interesses públicos. O governo apresentou

então o Projeto de Modernização do Setor de Saneamento (PMSS), que seria financiado

pelo BIRD, nos moldes da doutrina neoliberal (RESENDE; HELLER, 2002).

Segundo os autores Resende e Heller (2002), podemos destacar algumas conquistas

alcançadas durante a vigência do PLANASA:

• Aumento da capacitação técnica dos profissionais da área de saneamento.

• Planejamento de mananciais em escala regional.

• Controle da qualidade da água.

• Cobrança dos serviços prestados com base em critérios de monitoramento

normalizados.

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• Desenvolvimento de tecnologias de controle de perdas.

• Existência de uma estrutura sólida de ação em entidades como a ABES, a ASSEMAE e

sindicatos de trabalhadores da categoria.

Em 1999, o governo federal apresentou ao BIRD um documento - “Regulação do

Setor de Saneamento no Brasil. Prioridades imediatas” - que aponta uma estratégia de

transferência para o setor privado dos serviços de abastecimento de água que fossem

viáveis economicamente, e os municípios arcando com os serviços de baixa rentabilidade

RESENDE; HELLER, 2002).

O país encontra-se hoje em uma situação crítica relacionada com a precariedade dos

investimentos em saneamento público, acentuando ainda mais as doenças relacionadas ao

tratamento adequado da água e esgotamento sanitário, tais como febre amarela, dengue,

cólera, leptospirose e outras. A crise do setor é apenas parte de um contexto crônico de

crise social no país (RESENDE; HELLER, 2002).

A título de conclusão Este é um breve histórico da evolução do saneamento nas sociedades humanas desde

a Antigüidade até os dias atuais. O objetivo desta revisão foi situar os problemas

enfrentados pelos governos em relação ao saneamento. Pode-se inferir que este está ligado

diretamente aos interesses econômicos antes mesmo dos interesses da saúde da população,

pois para os governantes a saúde é em primeiro lugar um problema de ordem econômica.

Uma nação necessita de ser saudável para que produza; no entanto, em países pobres como

o Brasil, o saneamento deixa muito a desejar.

Da água disponível em todo o planeta apenas 0,8% pode ser utilizada para o consumo

humano, pois 97% representa o total de água salgada distribuída e o restante encontra-se

nas calotas polares. Desta pequena porcentagem, apenas 3% está na forma de água

superficial, sendo que o restante representa em forma de águas subterrâneas. Também

podemos perceber que deste pequeno volume de água doce, 12% encontra-se disponível em

terras brasileiras, o que aumenta a nossa responsabilidade com este precioso patrimônio

ambiental (BARROS et al., 1995).

Apesar de sermos beneficiados com esta disponibilidade, as políticas de saneamento

não foram suficientes para atingir uma racionalidade em seu uso, isto é, tanto na

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preservação dos mananciais como em sua correta exploração. Este baixo investimento

acarreta uma disparidade na distribuição de água com qualidade para toda a população em

nosso território. A região Norte do país concentra o maior volume de recursos hídricos,

porém a densidade de sua população é baixa ocasionando uma maior oferta em quantidade

de água, mas o governo não investe na qualidade desta água ofertada. Na região Sudeste

ocorre o inverso, isto é, um grande número de concentração de população. Isto proporciona

um maior investimento econômico por parte do governo em saneamento básico e

distribuição de água tratada justamente por ser uma região de peso economicamente para o

país.

O investimento em saneamento básico e a ampliação dos serviços médico-hospitalares

são diretamente proporcionais à renda da população. No país, havendo uma distribuição

desigual de renda, o acesso diferenciado aos recursos de saúde, incluindo os programas de

saúde materno-infantil, imunização e ao saneamento são privilégios de camadas mais

abastadas da sociedade que estão em condições de pagar pelos serviços (IBGE,1999).

Segundo dados do Ministério da Saúde (DATASUS), 30% de morte com crianças de

menos de um ano de idade é por diarréia; também 5,5 milhões de brasileiros são

acometidos por esquistossomose, há um aumento de casos de cólera e outras doenças que

são veiculadas pela água. Também sabemos que o Brasil concentra em quarenta vezes a

renda na camada mais rica do que nos mais empobrecidos. Esta população fica

completamente sem acesso aos serviços de saneamento e saúde comprometendo todo o seu

bem estar preconizado pela Organização Mundial de Saúde.

A ausência de saneamento básico interfere diretamente na saúde da população e

principalmente nos índices de mortalidade infantil. Segundo o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) em pesquisas sobre Informações Básicas de Meio Ambiente

onde há esgotamento sanitário inadequado a taxa de mortalidade de crianças até 5 anos é

72% superior à verificada onde há esgotamento adequado. Na região Nordeste, municípios

pobres sem condições de investimento em serviços de saneamento básico, a taxa de

mortalidade infantil é de 74,3 mortes por mil nascidos vivos. Já na região Sul, considerada

economicamente mais próspera, alguns municípios, onde o saneamento é satisfatório, a taxa

é reduzida a 27,4 mortes por mil nascidos vivos. (IBGE, 1999).

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Ainda segundo Indicadores de Desenvolvimento Sustentável, divulgados pelo IBGE

no ano de 2002, houve 375 internações por 100.000 habitantes por doenças como diarréia,

dengue, febre amarela e leptospirose, todas de veiculação hídrica.

Desde a década de 90, os investimentos públicos em saneamento vêm se reduzindo.

Os investimentos privados ainda aguardam uma definição por parte do Congresso para

definir a regulamentação no setor, pois as regras não são claras. O governo federal entende

que cabe aos municípios gerenciar as políticas de saneamento, mas isto pode gerar

distorções aumentando as desigualdades sociais em cidades pequenas como a grande

maioria de nosso país, que não pode contar com recursos disponíveis para tal fim.

Grande parte dos municípios conta com o Programa de Saúde da Família (PSF) –

Projeto do SUS/Ministério da Saúde - em que atuam os Agentes Comunitários de Saúde.

Estes profissionais estão em contato direto com a população mais desassistida e consegue

detectar parte destas doenças providenciando seu tratamento, muitas vezes evitando

internação ou óbito. O problema é que a causa das doenças não sendo eliminada, a

população fica sujeita a nova reinfecção.

Sabemos que as políticas públicas em Saneamento Básico não são prioridade dos

governos que se sucedem. A escassez de investimentos na área sobrecarrega o setor Saúde

que tem que arcar com todos os custos e, além disto, a ausência de saneamento é uma

injustiça social para com a população que não conta com uma rede de proteção social

aumentando ainda mais a exclusão social.

Esperamos que as políticas de saneamento sejam estimuladas para que as novas

gerações possam viver num país com menos desigualdades e tenham um acesso à água

adequada que lhes é de direito, como assegura a Declaração Universal dos Direitos do

Homem.

Através da simbologia da água, podemos dizer que as ações de saneamento, ora são

imobilizadas em águas paradas, ora correm como um rio caudaloso expandindo suas ações,

rastros são desfeitos e refeitos de outras formas, mas a história continua sendo escrita e

esforços continuam sendo envidados.

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Submissão: junho de 2005 Aprovação: outubro de 2005

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