A Análise Do Discurso e Questões Sobre a Linguagem

18
REVISTA X – vol. 2 (2006) 1 A ANÁLISE DO DISCURSO E QUESTÕES SOBRE A LINGUAGEM Ângela Maria Walesko Piovesan Carla Maria Forlin* Denise Mohr* Juliana Zeggio Martinez* Sandra Lopes Monteiro ∗∗ Zelir Franco* RESUMO Com subsídios oferecidos pela obra Análise de discurso: princípios e procedimentos de Eni Orlandi (2003), este texto aborda questões sobre a linguagem e apresenta reflexões sobre a Análise do Discurso e sua influência na formação de professores de línguas. Palavras-chave: Análise do discurso; formação de professores; interculturalidade; sujeito; função-autor APRESENTAÇÃO Este artigo tem como objetivo verificar em que medida a obra Análise de discurso: princípios e procedimentos de Eni Orlandi (2003) contribui para o estudo da Análise do Discurso e qual a influência dessa obra na formação de professores de línguas. Para apresentar o que ela chamou de “Pequenas aulas” sobre pontos da Análise do Discurso (doravante AD), ou como ela própria afirma, no campo de questões sobre a linguagem, Orlandi explora diferentes aspectos dessa área de conhecimento. Embora não sistematizados, desde a Antiguidade, empreendem-se estudos sobre a linguagem e sua produção de sentidos. No século XIX, as noções de sujeito e de linguagem, categorias nas quais se apoiavam as Ciências Humanas e Sociais, sofrem mudanças significativas graças a contribuições dos estudos da lingüística e da psicanálise. Essas novas noções, posteriormente, segundo Orlandi, instigarão estudos de análise do discurso nos quais se reflete sobre a linguagem, sujeito, história e ideologia. No entanto, somente nos anos sessenta é que a AD ganha força com a lingüística, o marxismo e a psicanálise, mas não se atém a esses campos do conhecimento, indo bem além de suas fronteiras. Alunas do Curso de Pós-Graduação em Letras (área de concentração: estudos lingüísticos) da Universidade Federal do Paraná. ∗∗ Sandra Lopes Monteiro é doutora em Semiótica e Lingüística Geral. Atualmente é professora do Curso de Letras Francês e professora do Curso de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (área de conhecimento: Estudos Lingüísticos).

description

Texto sobre análise do discurso

Transcript of A Análise Do Discurso e Questões Sobre a Linguagem

REVISTA X vol. 2 (2006)1A ANLISE DO DISCURSO E QUESTES SOBRE A LINGUAGEM ngela Maria Walesko Piovesan Carla Maria Forlin* Denise Mohr* Juliana Zeggio Martinez* Sandra Lopes Monteiro Zelir Franco* RESUMO ComsubsdiosoferecidospelaobraAnlisedediscurso:princpioseprocedimentosdeEniOrlandi (2003),estetextoabordaquestessobrealinguagemeapresentareflexessobreaAnlisedo Discurso e sua influncia na formao de professores de lnguas. Palavras-chave: Anlise do discurso; formao de professores; interculturalidade; sujeito; funo-autor APRESENTAO EsteartigotemcomoobjetivoverificaremquemedidaaobraAnlisedediscurso: princpioseprocedimentosdeEniOrlandi(2003)contribuiparaoestudodaAnlisedo Discurso e qual a influncia dessa obra na formao de professores de lnguas. ParaapresentaroqueelachamoudePequenasaulassobrepontosdaAnlisedo Discurso(doravanteAD),oucomoelaprpriaafirma,nocampodequestessobrea linguagem, Orlandi explora diferentes aspectos dessa rea de conhecimento. Emboranosistematizados,desdeaAntiguidade,empreendem-seestudossobrea linguagem e sua produo de sentidos. No sculo XIX, as noes de sujeito e de linguagem, categoriasnasquaisseapoiavamasCinciasHumanaseSociais,sofremmudanas significativasgraasacontribuiesdosestudosdalingsticaedapsicanlise.Essasnovas noes, posteriormente, segundo Orlandi, instigaro estudos de anlise do discurso nos quais serefletesobrealinguagem,sujeito,histriaeideologia.Noentanto,somentenosanos sessentaqueaADganhaforacomalingstica,omarxismoeapsicanlise,masnose atm a esses campos do conhecimento, indo bem alm de suas fronteiras. AlunasdoCursodePs-GraduaoemLetras(readeconcentrao:estudoslingsticos)daUniversidade Federal do Paran. SandraLopesMonteirodoutoraemSemiticaeLingsticaGeral.AtualmenteprofessoradoCursode LetrasFrancseprofessora doCurso dePs-graduaoemLetrasda UniversidadeFederal doParan(rea de conhecimento: Estudos Lingsticos). REVISTA X vol. 2 (2006)2Segundo a autora, sempre houve diferentes maneiras de se abordar a linguagem. Entre elas,porexemplo,aqueconcebealnguacomoumsistemadesignos,ouento,aque entendealinguagemcomoumsistemaderegrasformais.AAD,porsuavez,entendea linguagemcomomediaonecessriaentreohomemearealidadesocial.Estamediao feitapelodiscurso,ouseja,pelasprticasdiscursivasnasquaisohomemseinsere,sendo capazdesignificaresignificar-se.Odiscursotornapossveltantoapermannciaea continuidade,quantoodeslocamentoeatransformaodohomemedarealidadenaqual vive. Arepresentaodarealidadedaspessoas,ouseja,doseucotidiano,permeadapor smbolos. E diante deles, o processo de interpretao se desdobra. A AD permite uma relao mais prxima com a linguagem, uma vez que o discurso a prtica da linguagem e concebe-a como a intermediao entre o homem e a realidade social. Desde a antiguidade vrios estudos foram realizados, embora no sistematizados, sobre a linguagem e sua produo de sentidos, o quedeinteressediretodaAD.Noentanto,somentenosanosde1960queaADganha foracomalingstica,omarxismoeapsicanlise,masnoficapresonestescamposdo conhecimento, indo bem alm de suas fronteiras (ORLANDI, 2003) Aoconstituirodiscursocomoseuobjeto,aADrelacionaalinguagemsua exterioridade:notrabalhacomalnguaenquantosistemaabstrato,mascomalnguano mundo,comhomensexpressando-seoralmenteeporescrito,falandoproduzindosentidos, enquantosujeitoseenquantomembrosdasociedade.Emconseqncia,considerao lingsticocomopartedaprticadodiscurso1evahistriaeasociedadecomo indissociveis do fato que significam. Trata o discurso como palavra em movimento, prtica de linguagem. A lngua deve fazer sentido enquanto trabalho simblico, que significa a partir do trabalho social, constitutivo do homem e da sua histria. A linguagem deve ser entendida como mediao necessria entre o homem e a realidade natural e social. Diferentementedamaneiracomoacomunicaoentendealinguagem,ouseja, simplestransmissodemensagemdeumemissorparaumreceptor,paraaADnodiscurso no h linearidade na disposio dos elementos do quadro comunicativo, pois a lngua no apenascdigo.Asprticasdiscursivassoprocessosdeidentificaodesujeitos,de argumentao, de subjetivao e de construo da realidade, pois essas relaes de linguagem so na verdade relaes de sujeitos e de sentidos e seus efeitos so mltiplos e variados. 1 Entende-se discurso como efeito de sentido, pois no discurso que se configura a relao entre lngua, cultura e ideologia.REVISTA X vol. 2 (2006)3Orlandiexplicaqueconstantementetemosailusodequenossaspalavrasso originais, quando na verdade esquecemos involuntariamente que estamos sempre esquecendo oquejfoidito.Porisso,quandorepetimosaspalavras,ouseja,retomamospalavrasj existentes,elasadquiremnovamentesentidoenosdoailusodeoriginalidade.Oqueno podemosesquecer,defato,acondioprimeiradalinguagem:adesersempreuma incompletude. Nem os sujeitos, nem os discursos e nem os sentidos esto prontos e acabados. Eles esto sempre se fazendo num movimento constante do simblico e da histria. Estessentidosinacabadosresultamdasrelaesdefora(poder)nasquaisestamos inseridos.Aconstruodesentidosedapartirdolugarnoqualafaladosujeito constituda. Como nossa sociedade constituda por relaes hierarquizadas, essas relaes de forasosustentadaspelopoderdessesdiferenteslugares,quesefazemvalerna comunicao. Para trabalhar o sentido, a AD rene trs reas de conhecimento em suas articulaes contraditrias: a) a teoria da sintaxe e da enunciao; b) a teoria da ideologia, e c) a teoria do discurso. Paraabordaroprocessodeproduodesentidosesuarelaocomaideologia, OrlandiintroduzumanooqueconsiderabsicanaADadeformaodiscursiva2.Seas palavrasnotmumsentidoemsimesmas,porquederivamseussentidosdasformaes discursivasemqueseinscrevem.Asformaesdiscursivas,porsuavez,representamno discursoasformaesideolgicas3.Dessemodo,ossentidossempresodeterminados ideologicamente. A questo do sentido fundamental para a AD, pois a linguagem linguagem porque fazsentido,ealinguagemsfazsentidoporqueseinscrevenahistria:Odizerno propriedadeparticular.Aspalavrasnososnossas.Elassignificampelahistriaepela lngua. (...) O sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas no tem acesso ou controle sobre o modopeloqualossentidosseconstituemnele.(ORLANDI,2003,p.32).Assim,aAD rompe com a concepo de sentido como projeto de autor, rompe com a idia de um sentido originrio a ser descoberto. 2Formaesdiscursivas:conjuntodeenunciadoshistricaesocialmenteinscritos,relacionando-secomuma identidadeenunciativaassociadaaumacomunidadesocial,definindo-lheobjetosdodiscurso,conceitos, escolhastemticase,porvezes,gneropreferencial.Pode-se,ento,falardeumaFDcomunista,catlica, feminista ou ainda cientfica, mdica ou acadmica. 3 Formaes ideolgicas: modo de agir e de pensar de determinado grupo dentro da sociedade, constituindo um conjunto complexo de atitudes e de representaes que no so nem individuais nem universais. (Haroche et al., 1971 apud Brando, 1995, p. 38). REVISTA X vol. 2 (2006)4A autora explica que mesmo sem a inteno consciente, o que falamos afetado pela lngua e pela histria, pois os sentidos no esto somente nas palavras, mas na relao com a exterioridade, nas condies em que eles so produzidos e que no dependem unicamente das intenes dos sujeitos. Para a AD, a linguagem est materializada na ideologia e a ideologia se manifesta na lngua, pois no h discurso sem sujeito, sujeito sem ideologia, nem sujeitos e sentidos esto completos. O discurso o lugar possvel no qual se observa esta relao entre lnguaeideologia.Aomesmotempo,aADtentaentendercomoosobjetossimblicos produzemsentidos,isto,comoelesestoinvestidosdesignificnciaparaeporsujeitos. SegundoOrlandi,explorardemaneiradiferentearelaodesentidoconstrudaatravsdo simblico tem sido a grande contribuio da AD. Aideologianovistacomoconjuntoderepresentaes,comovisodemundoou ocultao da realidade, mas como efeito da relao necessria do sujeito com a lngua e com a histria.Poroutrolado,tambmaideologiaquefazcomquehajasujeitos.ParaPcheux (ORLANDI,2003,p.49),omundonodiretamenteapreensvelquandosetratade significao, pois o vivido dos sujeitos constitudo pela ideologia. Nossoimaginrio,segundoOrlandi,nosurgedonada,massimdomodocomoas relaessociaisseinscrevemesoregidasnahistriaporrelaesdepoder.AADento encontrasuafunoaoatravessaresseimaginrioquecondicionaossujeitosemsuas discursividades, para ento tentar explicar o modo como os sentidos esto sendo produzidos e para, enfim, ajudar os falantes a compreender melhor o que est sendo dito. Aautoratambmdistingueinteligibilidade,interpretaoecompreenso.A inteligibilidadedsentidolngua.Ainterpretaoosentido,pensando-seoco-textoeo contexto imediato. Compreender saber como um objeto simblico (enunciado, pintura etc.) produzsentido.Acompreensoprocuraexplicitarosprocessosdesignificaopresentesno texto,compreendendocomoossentidosseconstituem.Enfim,nohsentidosem interpretao, e no h interpretao sem a presena da ideologia que a condio bsica para a constituio dos sujeitos e dos sentidos.Noquedizrespeitointerpretao,umapartederesponsabilidadedoanalistaea outra deriva, segundo os preceitos da AD, da sua sustentao no rigor do mtodo e no alcance terico da AD. Ao tratar da interpretao como dispositivo de anlise, a autora considera que existemdoismomentosdessaanlise.Noprimeiro,ainterpretaofazpartedoobjetoda anlisee,nosegundo,precisocompreenderquenohdescrioseminterpretaoo prprio analista est envolvido na interpretao. A partir de diversos conceitos que podem ser mobilizados pelo analista, possvel fazer distintos recortes conceituais. REVISTA X vol. 2 (2006)5Umaanlisenoigualoutra.Ummesmoanalista,formulandoumaquesto diferente, tambm poder mobilizar conceitos diversos. Feita a anlise, o analista interpretar os resultados de acordo com os instrumentos tericos dos campos disciplinares de que partiu. Disso depende tambm o alcance de suas concluses. Finalmente,oqueacreditamosseragrandecontribuiodaADparaalingstica queelanospermiteumarelaomenosingnuacomalinguagem(ORLANDI,2003,p.9), vistopodera)problematizarasmaneirasdeler,porlevarosujeitofalanteouoleitorase indagarsobreoqueproduzeoqueouve;b)levaroindivduoaperceberquenopodeno estarsujeitolinguagem,aseusequvocos,asuaopacidade;c)mostrarquenoh neutralidade,ed)saberqueaentradanosimblicoirremedivelepermanente:estamos comprometidos com os sentidos e o poltico. A ANLISE DO DISCURSO E AS MUDANAS SIGNIFICATIVAS NA FORMAO DE PROFESSORES DE LINGUAGEM Muitosetemdiscutidosobrealinguagemnasltimasdcadas.Cadavezmais encontramos estudos e pesquisas que tm proporcionado novas e diferentes reflexes sobre o que vem a ser linguagem. DesdeSausurre,alinguagemsemprefoivistacomoumprocessoperfeitode comunicao,detrocasdeinformaesentreemissorereceptor,enfim,alinguagem entendida como sinnimo de cdigo. No entanto, pesquisadores como Orlandi (2003), Freitas (2004)eJordo(2005)afirmamque,nosculoXXI,nopodemosmaissertoingnuosa pontodepensarmosquealinguagemseconstituiemumasimplicidadeetransparnciade trocas de informaes: a linguagem alm de cdigo, discurso4. A AD tem sido uma das linhas tericas de muitas das pesquisas que, por sua vez, tm trazidograndesbenefciosparaosprofissionaisquetrabalhamcomalinguagem,como,por exemplo,osprofessoresdelnguasnasescolasregulares.Essespassamaentendera linguagem no somente como cdigo, mas como discurso. 4 O discurso uma dupla disperso: por um lado o cruzamento de vrios dizeres; e por outro, as vrias posies queosujeitopodeocupar.Sendoentoodiscursoheterogneo:quantonaturezadosdiferentesmateriais simblicos; (...) quanto natureza das linguagens; (...) quanto s posies do sujeito (ORLANDI, 1999, p. 70). Odiscursonodeformanenhumahomogneo,masmarcadopelamultiplicidadeealteridade,poisas palavras so sempre repletas de sentidos, e as palavras vm sempre de um j-dito na fala do outro: nenhuma palavraneutra,masinevitavelmentecarregada,ocupada,habitada,atravessadapelosdiscursosnos quais viveu sua existncia socialmente sustentada (AUTHIER-REVUS, 1990, p. 27). REVISTA X vol. 2 (2006)6Aomesmotempoemqueessesestudos(BECHEL,2006;DELONG,2005;DUNIN, 2005)levamarefletirsobreasimplicaesque as perspectivas de mundo de cada indivduo acarretamsobreocontedoeamaneiradeensinar,elesproporcionamumagrande discussosobreafunodalinguagemnaescola,conduzindoosprofessoresdelnguasa entender melhor os pressupostos que norteiam a sua formao.SegundoJordo(2006),osprofessoresdelnguaemsaladeaulapossuem normalmenteembasamentostericosquenosabemmuitobemexplicardeondevieramou comoseenraizaramtofortementenoseufazerpedaggico;soessesembasamentosque moldamaconcepodemundoeinformamasatitudeseescolhasdoindivduo.Segundoa autora,necessrioestarsempreatentoaessespressupostosquedecertaformaorientam aes,poiscertamentequandoentramosemumasaladeaula,assimcomonossosalunos, levamosconoscoumasriedeconcepesdoquesignificaensinareaprenderlnguas(cf. JORDO, 2006).OsestudosdaADtmcontribudoparaampliaroshorizontesdosprofessoresde lnguas estrangeiras e lngua materna, pois permitem esse novo olhar para a incompletude do sujeito,paraaausnciadeneutralidadedalinguagemedossentidos.Hoje,osprofessores esto mais conscientes da iluso de se pensar na linguagem como algo transparente, como se houvesseumsentidonicoeverdadeironostextos.Nossafuno,enquantoprofessoresde linguagem,passouaseradepropordiscussesenovasreaessobreosjogossimblicos permeados por ela, ao invs de sermos somente reveladores de uma verdade oculta presente nos textos. Entendendo o processo de interpretao como incompleto e obscuro, compreendemos, porexemplo,queoprocessodeleituranaescolaatividadefundamentalparaquenossos alunostenhamcontatocomoutrasinterpretaesdemundo,eassimpossamconstruirsuas identidades.Tantoaeducaogeralquantooensinodelnguasestrangeirassotimas oportunidadesparaquealunostenhamcontatocomooutro,comoquediferentedoseu modo particular de ser e possam ento entender melhor quem so e quem so os outros com quem interagem, ou melhor, com quem se engajam discursivamente (cf. FREITAS, 2004). Infelizmente,boapartedotrabalhocomalinguagemdesenvolvidanasescolasainda refleteumavisodalnguasomentecomocdigo. Mesmo as atividades de leitura ainda so vistascomoumarepresentaodeumaverdadequeesttransparentenotexto.Aprincipal conseqnciadessaconcepodeensinodalinguagemnopermitircomquealunosse percebam, nem construam suas realidades, uma vez que no esto construindo interpretaes. REVISTA X vol. 2 (2006)7Comoprofessores,importantelembrarqueatualmentenossosalunosestosendo formados para assumirem uma posio no mundo (cf. JORDO, 2005), e no mais somente para arranjarem um bom emprego (at porque formao no mais garantia de bom trabalho, se que algum dia foi). preciso refletir sobre a maneira como a sociedade da qual fazemos partefunciona,umavezqueestamos(nsetodososnossosalunos)inseridosemrelaes hierrquicasdepoder.E,sempodermosfugirdessasrelaes,omelhorseriaquenstodos aprendssemos a perceber estas construes de sentidos para melhor nos beneficiarmos delas (cf. FREITAS, 2004). No entanto, este trabalho deve ser feito com cuidado, pois no podemos tambm ter a iluso de que nossa posio enquanto professor neutra ou que nossa concepo de mundo a verdadeira. Precisamos ter cautela quando ocupamos a posio professor, pois esta carrega autoridade, e esta legitimidade conquistada pela posio hierrquica pode apagar outras vozes presentesnasaladeaula.Nodeveramosesquecerquenossavozdeprofessorumaem meioatantasoutraspresentesnaaula,queelatambmnoneutranemareproduoda realidadeouverdade.Nossavisoigualmentepermeadapelosimblico,poistambm estamosusandolentespermeadaspelanossahistriaepelosobjetossimblicosque constroem nosso mundo. Enfim, no deveramos esquecer que estamos inseridos em construes de realidade a todo o momento, para assim percebemos que ensinarumalnguaestrangeirapossibilitarcondiesparaque,aose constituircidado,oaprendiztenhaampliadooacessoaoutrosmodosde perceberefazersentidodomundo,bemcomoaoutrasformasde funcionamentoouposicionamento(prticassociais)dessemundo.(cf. FREITAS, 2004) Temos uma enorme responsabilidade social enquanto professores de linguagem, pois conhecerumalnguaestrangeiraessencialnoapenasparaquesepossa receberetransmitirmensagens,mastambmeprincipalmenteporqueuma lngua,maternaouestrangeira,nosumcdigoatravsdoqualse transmiteminformaes:umalnguaumespaodeconstruode conhecimento,umespaonoqualsedelimitampossibilidadesde entendimento e se moldam identidades; uma lngua um espao mltiplo de potencialidadesedeprocedimentosinterpretativoshierarquizados,ouseja, uma arena de conflitos, como a ela se referiu Bakhtin. (cf. JORDO, 2005) REVISTA X vol. 2 (2006)8A AD E O ESTUDO DOS ASPECTOS INTERCULTURAIS NO ENSINO DE LNGUAS AquiapresentaremosarelaoentreaADeaabordagemcomunicativaintercultural naaquisiodeumalnguaestrangeira.Nesteestudo,entende-seporabordagem comunicativa intercultural (SANTOS, 2004) aprender uma lngua aprendendo sua cultura, ou melhor, vivenciando a lngua como cultura. Vivenciar a lngua como cultura significa mais do queumasimpleseleiodeenfoquesmetodolgicos,,antesdetudo,pensaroprocessode ensino/aprendizagemdelnguaestrangeiracomoalgomaisamplo,quenoseresume simples apreenso de aspectos estruturais de uma lngua nova, estranha, mas o contato com outro sistema de valores, de leitura do mundo, dentro do qual se inclui a lngua. A cultura, ento,quenormalmenteassumeopapelsecundrionesseprocesso,emdetrimentodaforma lingstica, passa a ser a porta de entrada, o elemento fundador a partir do qual a experincia deensinareaprenderseedificaembuscadaconstruodeumdilogointercultural.Professoresealunoscomosujeitosculturaisqueso,interagindoembuscadoobjetivode ensinar e aprender uma nova lngua-cultura, colocam-se em situao de confronto, de troca e de negociao de mundos culturais e simblicos diversificados. Paraentenderarelaoentreoensinodelnguaestrangeiraeainterculturalidade, pesquisou-seoensinodeinglsparaalunosdoquartociclo(7.e8.sries)doEnsino Fundamental de uma escola privada e de uma escola pblica da cidade de Curitiba, buscando compreenderosinteressesemotivaesdessesalunoscomrelaoculturaestrangeira. Objetivava-se tambm verificar os diversos esteretipos culturais presentes em seu discurso.Percebemosduranteumestudopilotoetambmduranteanosdeconvivnciacomoutros professoresdarea,que,porfaltadetempooudeconhecimento,muitosprofessoresno aprofundamaleituradetextosapresentadosnoslivrosdidticos.Almdisso,enquanto habilidadeslingsticassodesenvolvidas,aspectosinterculturais5dalnguanoso considerados. AADconsideraqueaideologiasematerializanalinguagem,fazpartedoseu funcionamentoeseligainterpretaoenquantofatofundamentalqueatestaarelaoda histriacomalngua.Aconjunolngua/histriaspodesedarpelofuncionamentoda 5 Interculturalidade: comunicao entre povos de diferentes culturas tnicas e sociais dentro dos limites de uma nao ou encontro de pessoas de diferentes culturas e lnguas alm das barreiras polticas de estados ou pases; a interculturalidade tambm vista como o desenvolvimento de uma habilidade diplomtica de perceber as diferenas culturais da perspectivadacompreenso beminformada.Ouseja,oindivduose posicionaporque conhece aquilo de que est falando (KRAMSCH, 2000). REVISTA X vol. 2 (2006)9ideologia.Noqueserefererelaoabordagemcomunicativaeinterculturalidade, necessrioqueseconsidereavisosocialdalngua(eestaindissociveldaculturae, portanto,daideologia),partindo-sedaobservaodequeleitoreseescritoresestosocial, poltica,histricaeculturalmenteposicionadosaoagiremparaaconstruodosignificado; umavisodelnguacomofenmenofundamentaldacomunicaoentrepessoasougrupos scio/culturalmentediferentes,quepressupeumensino/aprendizagemsensveispessoa humana, ao seu momento histrico de vivncia e s relaes que estabelececom o mundo e com as pessoas sua volta. Quanto questo scio-histrica e ideolgica da linguagem, importante lembrar que oprofessordelnguaestrangeiramuitomaisdoqueummerotransmissordeumsistema lingstico; acima de tudo um grande agente na formao ideolgica de seus alunos e para queseevitequeesteretiposculturaisoucrisesdeidentidadeseinstalem,crucialqueo professor saiba trabalhar com o seu discurso oral/escrito, com o de seus alunos ou de outros.Noestudorealizadocomosalunosdoensinofundamentalficoudemonstradoque imprescindvelpressuporqueasfunessociaisdalnguaedesuahistoricidadesejam recuperadas,oquepodeserefetivadopormeiodoempregodeumaabordagemque pressuponha o ensino comunicativo e intercultural de leitura em lngua estrangeira. No que se refere ao tratamento do texto, Orlandi discute textualidade e discursividade, apresentandoadefiniodetextoenquantoumaunidadelingstico-histricaquesignifica. Trataotextocomodiscursoeobservaquenoaextensoquedelimitaumtextoenemo fato de ser oral ou escrito. Na aplicao do estudo piloto, observaram-se quais tipos de textos so utilizados em sala de aula (gnero, formao ideolgica e discursiva presentes no texto) e comoostextosprovenientesdoslivrosdidticossotrabalhadoscomrelaoaoaspecto intercultural.Apartirdapilotagemdosinstrumentosdecoletadedadosrealizadaem20056, observou-sequeosprofessoresrestringemotrabalhocomtextosmeratraduoe/ouos utilizamcomopretextoparaaintroduodecontedosgramaticais.Nohnenhumtipode anlise do discurso (texto) feita pelos professores. Textos sobre aspectos culturais tornam-se, na viso dos alunos, modelos de cultura, que geralmente so considerados pelos estudantes melhoresdoqueosdabrasileira.Umdilogosimplespodeapresentar,mesmoqueem 6PIOVESAN,ngelaMariaWalesko.Abordagemcomunicativainterculturalnoensinodelngua estrangeira:umestudoemsaladeaulacomahabilidadedeleituraemingls(Dissertaodemestrado). Curitiba: UFPR, 2006. REVISTA X vol. 2 (2006)10entrelinhas,informaesquepossibilitemdiscussessobreinterculturalidadeemsalade aula. No estudo realizado, considerou-se o texto enquanto discurso e procedeu-se anlise domaterialescritoutilizadopelosprofessoresnasaulasdeleituraedosdiferentesdiscursos empregadospelosinformantesdapesquisa(professoresealunos),sujeitosdodiscurso. Utilizou-se, para isto, o conceito de sujeito do discurso de Mussalim (2003, p. 110): (...)aquelequeocupaumlugarsocialeapartirdeleenuncia,sempre inserido no processo histrico que lhe permite determinadas inseres e no outras.(...)osujeitonolivreparadizeroquequer,maslevado,sem quetenhaconscinciadisso,aocuparseulugaremdeterminadaformao social e enunciar o que lhe possvel a partir do lugar que ocupa. Noestudo,utilizou-seavisodaAnlisedoDiscursoAmericanaqueconsideraa intenodossujeitosnumainteraoverbalcomoumdospilaresqueasustenta;ossujeitos socondicionadosporumadeterminadaideologiaquepredeterminaoquepoderoouno dizer em determinadas conjunturas histrico-sociais. (MUSSALIM, 2003, p. 113). Essa viso relaciona-se ao tema interculturalidade na medida em que os professores de lngua estrangeira sejamconsideradoseseconsideremeducadores,colaboradoresnaformaodosfuturos cidadosdomundoenoapenastransmissoresdeumsistemameramentelingstico,sem funo social.Odiscursodoprofessorcertamenteexerceinfluncianaformaoideolgicados alunosepodegerar,ouno,acriaodeesteretiposculturaisqueinfluenciarooaluno quantosuaformadepensareagirsocialmente.Seoprofessornopossuinenhumtipode formaoemrelaoaotrabalhointercultural,porexemplo,selimitararepassar informaes estanques sobre determinada cultura (geralmente a americana, mais enfatizada na rotina brasileira), podendo gerar nos alunos a noo de que tudo (produtos materiais, cultura de uma forma geral arte, msica etc.) melhor do que o que temos em nosso pas.Se,poroutrolado,oprofessorsouberabordaredesenvolvercontedos interculturais (entreoutroscontedos)emsaladeaula,promovendoacomparaoentreoBrasileoutras culturas,levarosalunoscompreensodequenoexistemculturasmelhoresoupiores, apenasdiferentes,ouseja,comseussignificadoseprticassociaismarcadasporsuas respectivasideologias.Poder,ento,amenizaraforadoimperialismoscio-culturalde outras culturas sobre nosso pas, prestigiando a identidade cultural do aluno. REVISTA X vol. 2 (2006)11O COMPLEXO DOS SUJEITOS NO TEXTO LITERRIO DIDTICO Orlandi(2003,p.73/76)apontaalgumascaractersticasdodiscursoque,segundoa AD, formam o autor. Ela observa que o funcionamento do discurso acontece entre o real e o imaginrio.Orealrepresentadopelosujeitoeevidenciaaidentidadecaticadodiscurso, que se traduz na fragmentao, na incompletude, na contradio. O imaginrio representado pelopapeldoautornamaterializaodotextoeconfereaeleasensaodeorganizaodo discurso emprestando a ele caractersticas tais como a unidade, a coerncia, a clareza e a no contradio. Desse modo, a autora afirma que o autor o lugar em que se constri a unidade do sujeito. Assim, na posio de autor, o sujeito adquire o sentimento (imaginrio) de que seu discurso finalmente estvel e livre das armadilhas da confuso de sentidos. Anoodequeaautoriaconfereidentidadeaosujeitoestassociadasforasde controledosujeitonodiscurso.OrlandiobservaqueFoucault(2001;2004)quemmelhor percebeasforasinternasquedetmatarefadedomesticarodiscursooudecontrolaro carterdeacontecimentododiscurso.Sendoassim,paraFoucault,osdiscursosnadatmde espontneooudeparticular,masaocontrrio,seustermossosempredeterminadospelas foras de poder que controlam a prxis humana. Assim, o carter (imaginrio) de fechamento, conferidoaodiscurso,recebecredibilidadegraassforasdepoderquedeterminamseu incio e seu fim.Para a AD, que faz distino entre discurso e texto, o momento em que asforasdecontrolemelhoralcanamoobjetivodeinculcarailusodeacabamentodo discurso quando este se transforma em texto.A realidade de que o sujeito no autnomo na construo do discurso elucidada no conceito de polifonia de Bakhtin (1981). Ao analisar o aspecto peculiar das personagens dos romancesdeDostoivski,emrelaoaoutrosromancesemqueaspersonagensnose constroemdialogicamente,Bakhtinevidenciacomoaenunciaopelaspersonagensde Dostoivski construda no exerccio dialgico, entre as diferentes vozes que se confrontam e seavaliamemigualdadedeespao.Estavisododiscursoenquantoenunciaodialgica extrapolaocampodaliteraturaemBakhtin-Volochinov(1997),emqueasconcepesde dialogismoseestendematodotipodediscurso.Bakhtineseucrculomostramqueemum enunciadoconcretoasvozesseavaliam,emitindorespostasaodiscursodooutro.Neste exerccio, as diferentes vises de mundo que constituem as vozes se confrontam em igualdade deespaosocial.Sendoassim,noexercciodialgicoumdiscursonuncaprodutodeum nico pensamento, de uma nica voz. Ao ser pronunciado, o discurso se faz nico para aquele momentoscio-interativo,massempremediadoporjuzosdevalordediscursosjditos; REVISTA X vol. 2 (2006)12por outro lado, tambm no permanecer intacto, mas antes sofrer os efeitos de refrao dos juzos de valor no confronto com as vises de mundo que constituem a voz do outro que com eledialoga.EmFoucault,podemosperceberainterao/confrontodessasvozesmediadas pelas relaes de poder que controlam a prtica social. Aspercepesdepolifoniamediadapelasrelaesdepoderpermitemidentificaros diferentes tipos de sujeito que comandam o texto de literatura que compe livros didticos de inglscomolnguaestrangeira.Aidentificaodasdiferentesvozesqueautorizamotexto literriodidticopermiteapercepodosefeitosdasforasdepodernoaprendizadode ingls. Ao fazer parte do contexto didtico, o texto de literatura legitimado por um conjunto de sujeitos/autores que acaba por caracterizar o apagamento da identidade do autor original dotexto.Dessemodo,aautoriadotextodeliteraturanocontextodelivrosdidticosnose restringeaonomedoautorquesupostamenteescreveuotexto,masantessediluientreum complexodesujeitosdiscursivos.Estesdiferentessujeitossomamforasparalegitimar determinado tipo de saber que coerente com os interesses dos poderes dominantes. Aprimeiravozaseapropriardotextodeliteraturacomfinsdidticosaeditorade livrostextos.Estacontacomosprofissionaisautoresdoslivrosqueso,geralmente, lingistas.Navozeditorial,cujoobjetivoaobtenodolucropelacomercializaoda lnguaestrangeira,otextodeliteraturaperdeseucarterartsticoesetransformaem instrumentoqueveiculainformaofragmentada.Issosedeveaofatodeque,paraos objetivosqueregulamomercadocapitalista,nohinteressenaformaoreflexiva.O mercadodeprofissionaisparaaproduodebensdeconsumo,porexemplo,exigequeseu trabalhadorfaleinglsafimdeaceleraraprodutividade,masnotoleraquesuaformao sejacrticaapontodequestionarospoderesqueocontrolam.Assim,ainclusodeuma narrativa de Ernest Hemingway ou de um poema de Doroty Parker, como parte dos elementos lingsticosdeumlivrodidticodestinadoaoaprendizadodeingls,podeseresumirna prticadeaspectosgramaticaistaiscomoafixaodetemposverbais,conformeprtica comum encontrada nos livros didticos. As outras vozes que compartilham do controle do texto literrio so as das autoridades acadmicas,nasfigurasdecoordenadoresdecursosedeprofessores.Estessetransformam em co-autores do texto, responsveis pela divulgao dos objetivos do texto literrio didtico emsaladeaula.Estasvozespromoveminterfernciasnaautoriadotextoliterriomedida quedivulgamosinteressespropostospelomanualdidticoe/oupromovemresistncias, realizando adaptaes e/ou cortes no texto de acordo com sua teoria da aula.REVISTA X vol. 2 (2006)13Ocontroledotextoliterrioporestesdiversossujeitosresultanaincoernciaentreo discursodomanualdoprofessor,queasseguraumaprendizadodalnguaestrangeirasobos efeitosdoexercciodialgico,eoqueocorrenaprticarealdalnguaestrangeiracomesse tipo de texto que passou a assumir uma funo didtica. De acordo com o discurso didtico, quesedizcirculardentrodaabordagemcomunicativa,otextoliterriodevepromovero desenvolvimentodialgiconalnguaestrangeira,envolvendooalunoenquantosujeito-construtordosignificado.Noentanto,acaractersticadefragmentaodeaspectos lingsticos no exerccio com o texto literrio didtico impe ao aluno a condio de receptor passivo de mensagens cujos limites so pr-estabelecidos. Almdasforasdecontrolejmencionadas,oprpriotextoliterrio, independentementedeondecircule,tambmnoestlivredasdeterminaesdopoder.O textoliterrioenquantoobranoneutro;antescontroladopelafuno-autor.A caractersticadafuno-autorobservadaporFoucault(2001)emseuensaioOQueum autor? A funo-autor um conjunto de autorizao do texto literrio e revela como as foras depoderexercemocontrolesobreestetipodediscurso.Foucaultobservaqueotextode literatura passou a ser controlado pelo mecanismo funo-autor a partir do momento em que a crtica literria e a filosofia decretaram a morte do autor. O autor deveria sair de cena em prol da apreenso da essncia da obra literria, que deveria bastar pelo significante da escrita e pela noo de obra. Assim, a vida pessoal do autor e possibilidades de seu envolvimento enquanto sujeito naobradeveriamserdesconsiderados.Noentanto,odesaparecimentodoautorimplicarianaperda do controle sobre o discurso de literatura. Assim, para garantir o controle, o poder nomatouoautor,comodisse,masapenasosubstituiupelafuno-autor.Afuno-autor determinaalgumascondiesparaqueotextodeliteraturasejalegitimado.Estascondies caracterizamotextoliterrioparaqueeleadentrenaordemdodiscurso.Umadas caractersticas de um texto que circula sob a funo-autor o seu carter de propriedade. Foucault (ibid., p. 274-275) observa que at a Idade Mdia a questo autoral no tinha nenhumarelevncia.Oqueimportavaeraodiscursoemsi,enquantoatoenoquemo pronunciou.Noentanto,emdadomomentodahistria,comousododiscursoparaatosde transgresso,opodercriamecanismosparacontrolaroqueditoeporquemdito.Estes mecanismos colocaram ento o discurso no carterdepropriedadeesurgiramcomacriao deregrassobreosdireitosdoautor,bemcomosobreasrelaesautores/editoresesobreos direitos de reproduo. A partir de ento o discurso deixa de ser apenas um ato e passa a ser REVISTA X vol. 2 (2006)14um produto, uma coisa, um bem. A idia de obra enquanto propriedade , portanto, uma das caractersticas da funo-autor. Outracaractersticadeumtextoquecirculasobafuno-autoraexignciadesua identidade. Ainda que se pregue que o autor est morto, que sua identidade separada do que eleescreve,oanonimatodeumaobranosuportado.Paradoxalmente,nossosvalores culturaisexigemqueaobratenhaumaassinaturaparaserlegitimada.Outroaspectoque caracterizaafuno-autorofatodeodiscursoreceberaureadeoperaocomplexa:o discurso legitimado pela autoridade do poder criador, a qual reforada pelo prestgio da escrita.E, finalmente, a funo-autor se caracteriza por remeter o autor pluralidade de egos, pelaforadeelementos(signos),taiscomopronomes,advrbiosdetempoedelugar,ea conjugaodeverbos,queconfiguramoautoraumalterego,queafirmaoautorentresua condio de escritor real e locutor fictcio.Amediaodotextodeliteraturapelasdiferentesvozesdocontextodidticoeas diferentes vozes que caracterizam a funo-autor evidenciam como o prestgio da literatura autorizadonocontextodolivrodidticoenquantofontedignadecredibilidadeparao aprendizado de ingls. O controle do discurso do texto literrio didtico , portanto, exercido atravs deste grupo de sujeitos/autores que atuam no fortalecimento dos valores da cultura dominante.Caracterizando-sepelaatuaonaopacidade,semassumirumaidentidade individualizadaeclara,estessujeitosdodiscursoliterriodidticosoosmediadoresdas relaes de poder. ALGUMAS IMPLICAES DO CONCEITO DE FUNO-AUTOR Foucaultevidenciaqueomecanismofuno-autorestimpregnadodeintenesde controle.Certosdiscursos,especialmenteodiscursoliterrio,devemserlegitimadospela funo-autor por ser este o mecanismo de controle que lhes cabe na esfera de dominao em queopoderprecisacontrolarsemrevelarassuasintenes.Noentanto,oqueincomoda OrlandiaafirmaodeFoucaultdequecertostiposdetextonoprecisamdeautoria. Segundo ele, discursos que envolvem a prtica cotidiana formal tais como contratos, receitas tcnicas, decretos, podem at ter uma identificao, uma assinatura, mas no tm autor, uma vezquenoestoveiculadosnascaractersticasdefuno-autor.MasparaOrlandiesta concepoimprpriaumavezqueparaaADofatodeumdiscursoapresentarunidade REVISTA X vol. 2 (2006)15significaqueeletemautor.Osconceitosdeunidadeetextualidadesodependentesda autoria. AdiscordnciadeOrlanditrazimplicaesparaaapreensodopensamentode Foucault,poisrevelaqueaADnoapreendeopontocentraldasdiscusseseFoucaultque diz respeito s conseqncias das relaes (no est faltando algo aqui, est meio capenga) de podernaprxishumana.AsconsideraesdeFoucaultmostramqueseumdiscursonose identifica pela autoria, significa que tal discurso ou nunca ser legitimado ou que se trata de umdiscursocujaordemnoprecisasercontroladapelafuno-autor.Osdiscursosqueno necessitamdeautorianasuacirculaosoosqueestosoboutrosmecanismosdecoero tais como as coeres jurdicas, por exemplo. Desse modo, ao afirmar que um texto pode at noterautorespecficomas,pelafuno-autor,sempreseimputaumaautoriaaele,... Orlandievidenciaquedesconsideraascaractersticasdasrelaesdepoderesqueenvolvem um texto/discurso legitimado pela funo-autor. Ao imputar a funo-autor a qualquer texto, a ADtrataoconceitocomosendoapenasmaisumtermo,umsinnimodeautor,que utilizadoapenascomoumaidentidadeautoralalternativa,umoutrotipodeassinatura,sem que seja relevante considerar as implicaes histrico-polticas envolvidas em tal conceito.AindaquealgunstermosutilizadosporFoucaulttaiscomosujeito,discurso,autor sejamosmesmosdaAD,oseuobjetivonoaanlisesistemticadediscurso.Elefaz anlisedodiscurso,naqualodiscursosemprevistocomoelementoquecontrolae controladopelopoderemdomniosespecficos.Suasdiscussesnobuscamregularidades discursivasparaaidentificaodosujeitoatravsdeconceitoseteoriasemanlisede discurso. Foucault, na observao da atuao dos poderes, preocupa-se em enxergar as foras decontroledodiscursoondeelasmenosserevelam,ondeelasnosemostramemcarter regular e homogneo. Para ele, o que interessa observar as foras que conseguem destruir o discurso enquanto acontecimento. Ou seja, sua preocupao observar como o poder controla osujeitodiscursivoimpondolimitesaodiscurso.Suasconsideraespercebemcomoeste sujeito, que se v obrigado a conviver na multiplicidade de discursos, enredado nas malhas dopoderetambmcomoestesujeitopromoveresistnciasnosdomnioslocaisdequefaz parte.Aoobservarascaractersticasdafuno-autor,Foucaultconseguemostrarcomoo podercontrolaaliteratura.Eleexpeoautorliterriocomoapenasmaisumindivduoque atua em liberdade controlada, na forma em que os poderes determinam.Assim, para Foucault mais produtivo, para a sobrevivncia do sujeito nas redes do poder, o entendimento de como este sujeito se relaciona com o poder e no apenas como o poder o revela, o identifica. REVISTA X vol. 2 (2006)16Desse modo, se o objetivo da AD a identificao do autor pelas supostas ideologias queocontrolam,paraFoucault(2001-p.271)maisprodutivolocalizaroespaodeixado vagopeladesapariodoautoreentendercomoeporqueeleocupado.Istoimplicaa razo de certos discursos serem legitimados pela funo-autor. Para Foucault o que deve ser analisado so os locais preparados para os novos sujeitos. necessrio detectar o que ocorre quando o autor desaparece. Quando um espao deixado vago preenchido, ocupado por outros;outrossujeitosseapropriamdodiscursoetaldesaparecimentoenovaapropriao sempreenvolvemopoder.Istofoioqueocorreucaracterizandoosurgimentodafuno-autor. Quando a morte do autor foi decretada pela crtica e pela filosofia foi preciso criar um substitutoparalegitimarotextoliterriosurgiuentoocomplexofuno-autor.Assim,a funo-autornoapenasumtermoquepodeseraplicadoaqualquer discurso/texto,poisa razo de sua existncia est firmada em uma autorizao que se diferencia de outros tipos de texto. Oconceitofuno-autoralertaqueprecisoentenderporqueasforasdepoder resolveram dizer que no interessa a vida de Proust, de Kafka; que suas identidades enquanto indivduosdeveriamdesaparecer,queoqueinteressasosuasobrasindependentesqueo sujeito no importante uma vez que a escrita e a noo de obra bastam para o que interessa da literatura. O raciocnio de Foucault aponta que tal concepo envolve o poder que controla odiscursoatravsdalegitimaodoprestgioda escritaedanoodeobra.Assim,sedita que ovalordeuma narrativaescrita superior aumanarrativaperpetuadanaoralidade,por exemplo.Etambmqueumtextoapenastemvalorliterriosefazpartedeumcnonede obra. Aoidentificaroconceitofuno-autor,Foucaultmostracomoopodercria mecanismos para perpetuar o controle e/ou para intensific-lo. Quando o poder determina que os sujeitos de certos discursos desapaream em favor de uma compreenso mais purificada dessesdiscursos,oobjetivocontrolaroconhecimentoreflexivoecrtico.Serealmenteo autortivessesadodecena,comopregaacrticaeafilosofia,qualquerumpoderiase apropriar do discurso e isto colocaria em risco o poder. Assim, Foucault observa que a morte doautorumafalcia,umajogadaderegrasocultas,decretadaspelopoderquealmeja controlarsemseridentificado.Oautorestbemvivo(ebemcontrolado)atravsdo mecanismo da funo-autor, nos textos em que sua presena necessria. REVISTA X vol. 2 (2006)17REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS AUTHIER-REVUZ,J.Heterogeneidadesenunciativas.CadernosdeEstudosLingsticos. Campinas, UNICAMP/IEL, n. 19, 1990. BAKHTIN,MikhailM.ProblemasdapoticadeDostoievski.RiodeJaneiro:Forense Universitria, 1981. BAKHTIN-VOLOCHINOV.MarxismoeFilosofiadaLinguagem.SoPaulo:Editora Hucitec, 1997. BECHEL,MariaC.B.Aleituracompreensivaemespanhollnguaestrangeira:como trabalhar?Queoutroscaminhosempregar?Curitiba,2006.108f.Dissertao(Mestradoem EstudosLingsticos)SetordecinciasHumanasLetraseArtes,UniversidadeFederaldo Paran. BRANDO,H.N.IntroduoAnlisedoDiscurso.4.ed.Campinas,SP:Editorada UNICAMP, 1995. CASTRO,Gilberto.Embuscadeumalingsticasociolgica:contribuiesparauma leituradeBakhtin.Dissertao(MestradoemLingsticadeLnguaPortuguesa).Curitiba: UFPR,1993. PCHEUX,Michel;DAVALLON,Jean;ACHARD,Pierre;DURRAND,Jacques; ORLANDI,Eni.Papeldememria.TraduodeJosHortaNunes.Campinas:Pontes, 1999. DELONG,SilviaRegina.Asnoesdeframeseesquemasnoprocessodeleitura compreensivaemespanhollnguaestrangeira.Curitiba,2005.151f.Dissertao (MestradoemEstudosLingsticos)SetordecinciasHumanasLetraseArtes, Universidade Federal do Paran. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. So Paulo: Pontes, 1987. DUNIN,MiriamP.M.F.LesFrustrseavanguardaparisiensedosanos70:omodode expressodeumsujeitoemcrise.Curitiba,2005.158f.Dissertao(MestradoemEstudos Lingsticos) Setor de cincias Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paran. FREITAS, M. A. Educao e ensino de lngua estrangeira hoje: implicaes para a formao de seus respectivos profissionais e aprendizes. In: VIEIRA ABRAHO, M. H. (Org.) Prtica de ensino de lngua estrangeira: experincias e reflexes. Campinas: Pontes Editores, 2004. REVISTA X vol. 2 (2006)18FOUCAULT,Michel.Aordemdodiscurso.Trad.deLauraF.ASampaio.SoPaulo:Ed. Loyola, 2004. __________ O que um autor? In: Esttica literatura e pintura, msica e cinema. (De quem o livro?) Trad. Ins AD. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2001. __________ Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2004. HAROCHE,C.Fazerdizer,quererdizer.TraduodeEniOrlandi.SoPaulo:Editora Hucitec, 1992. JORDO,C.M.Oensinodelnguasestrangeiras:decdigoadiscurso.Curitiba,2006 (mimeo). __________ . O professor de lngua estrangeira e o compromisso social. In: CRISTOVO, V. etal(Orgs.)Construindoumacomunidadedeformadoresdeprofessoresdeingls. Londrina, 2005. KRAMSCH, C. Social discursive constructions of self in L2 learning. In: LANTOLF. J. (Ed.), Sociocultural theory and second language learning. New York: Oxford, 2000, p. 133-153. MUSSALIM,F.Anlisedodiscurso.In:MUSSALIM,F.;BENTES,A.C.(Org.). Introduo lingstica: domnios e fronteiras. 2. ed. So Paulo: Cortez, 2001. p. 101-142. MUSSALIM. F.; BENTES, A C. Introduo lingstica: domnios e fronteiras. So Paulo: Cortez, v. 2, 2003. ORLANDI, Eni P. Anlise de discurso: princpios e procedimentos. 5 ed. Campinas: Pontes, 2003. POSSENTI,S.Teoriadodiscurso:umcasodemltiplasrupturas.In:MUSSALIM,F.; BENTES,A.C.(Org.). Introduo lingstica: fundamentos epistemolgicos. SoPaulo: Cortez, 2004. p. 353392. SANTOS,EdleiseM.O.Abordagemcomunicativaintercultural(ACIN):umaproposta paraensinareaprenderlnguanodilogodeculturas.Campinas,2004.440f.Tese (DoutoradoemLingsticaAplicada)InstitutodeEstudosdaLinguagemdaUniversidade Estadual de Campinas.