A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco

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Educação & Sociedade, ano XXI, nº 71, Julho/00 79 A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco: A dial é tica em Vigotski e em Marx e a quest ã o do saber objetivo na educa çã o escolar Newton Duarte* O conhecimento é o processo pelo qual o pensamento se aproxima infinita e eternamente do objeto. O reflexo da Natureza no pensamento humano deve ser compreendido não de maneira “morta”, não “abstratamente”, não sem movimento, não sem contradição, mas sim no processo eterno do movi- mento, do nascimento das contradições e sua resolução. (Lénine, 1975, p. 123) RESUMO: Vigotski, em seu “Manuscrito de 1929” afirma que a relação filogênese-ontogênese no desenvolvimento orgânico é distinta da mesma relação no desenvolvimento cultural: enquanto que o embrião humano se desenvolve sem interagir com o organismo adulto, o desenvolvimento cultural da criança só ocorre por meio da interação com o adulto, isto é, com o ser mais desenvolvido. Par- tindo dessa afirmação, o artigo analisa as relações entre a dialética em Vigotski e em Marx, apoiando-se na reflexão metodológica e epistemológica desenvolvida por Marx no texto em que afirmou que “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”. O artigo conclui com a defesa da tese de que a psicologia vigotskiana for- nece apoio a uma pedagogia que valorize a transmissão das formas mais desenvolvidas do saber objetivo produzido pela humanidade. Palavras-chave: Vigotski, Marx, dialética, epistemologia * Livre-docente em Psicologia da Educação, professor da UNESP, campus de Araraquara.

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    A anatomia do homem a chave da anatomia domacaco: A dialtica em Vigotski e em Marx e aquesto do saber objetivo na educao escolar

    Newton Duarte*

    O conhecimento o processo pelo qual o pensamento seaproxima infinita e eternamente do objeto. O reflexo da

    Natureza no pensamento humano deve ser compreendido node maneira morta, no abstratamente, no sem movimento,

    no sem contradio, mas sim no processo eterno do movi-mento, do nascimento das contradies e sua resoluo.

    (Lnine, 1975, p. 123)

    RESUMO: Vigotski, em seu Manuscrito de 1929 afirma que arelao filognese-ontognese no desenvolvimento orgnico distinta da mesma relao no desenvolvimento cultural: enquantoque o embrio humano se desenvolve sem interagir com o organismoadulto, o desenvolvimento cultural da criana s ocorre por meio dainterao com o adulto, isto , com o ser mais desenvolvido. Par-tindo dessa afirmao, o artigo analisa as relaes entre a dialticaem Vigotski e em Marx, apoiando-se na reflexo metodolgica eepistemolgica desenvolvida por Marx no texto em que afirmou quea anatomia do homem a chave da anatomia do macaco. O artigoconclui com a defesa da tese de que a psicologia vigotskiana for-nece apoio a uma pedagogia que valorize a transmisso das formasmais desenvolvidas do saber objetivo produzido pela humanidade.

    Palavras-chave: Vigotski, Marx, dialtica, epistemologia

    * Livre-docente em Psicologia da Educao, professor da UNESP, campus de Araraquara.

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    A dialtica em Vigotski

    No quero saber de graa, escolhendo um par de citaes, o que a psique, o que desejo aprender na globalidade do mtodo de Marx,como se constri a cincia, como enfocar a anlise da psique.1 Vigotski fezessa afirmao como parte de sua argumentao quanto necessidade deuma teoria geral da psicologia, uma psicologia geral, que possibilitasse aconstruo de uma psicologia marxista, superando a crise existente nes-se campo da cincia, crise essa caracterizada pela contradio entre, porum lado, o acmulo de dados obtidos atravs das pesquisas empricas e,por outro, a total fragmentao da psicologia em uma grande quantidadede correntes tericas construdas com base em pressupostos muito pou-co consistentes.

    A construo da psicologia marxista era vista por Vigotski no comoo surgimento de mais uma entre as correntes da psicologia, mas sim comoo processo de construo de uma psicologia verdadeiramente cientfica.Essa psicologia cientfica no seria, entretanto, construda atravs da jus-taposio de citaes extradas dos clssicos do marxismo a dados depesquisas empricas realizadas por meio de mtodos fundamentados empressupostos filosficos contraditrios ao marxismo. Vigotski entendia sernecessria uma teoria que realizasse a mediao entre o materialismodialtico, enquanto filosofia de mximo grau de abrangncia e universa-lidade, e os estudos sobre os fenmenos psquicos concretos. Vigotski fa-zia um paralelo entre essa teoria psicolgica mediadora e o materialismohistrico, pois este tambm tem o papel de estabelecer as necessriasmediaes entre o materialismo dialtico e a anlise das questes con-cretas, neste caso, as questes concretas da histria das sociedades e decada formao social especfica, como o capitalismo, estudado de formacientfica por Karl Marx. Por essa razo Vigotski afirmou ser necessriauma teoria que desempenhasse para a psicologia o mesmo papel que aobra O capital de Karl Marx desempenha para a anlise do capitalismo.

    nesse contexto que Vigotski criticou aqueles que pensavam es-tar construindo uma psicologia marxista justapondo dados psicolgicosempricos a citaes dos clssicos do marxismo sem questionar, entre-tanto, os pressupostos contidos na anlise dos dados e nos mtodos deobteno dos mesmos. Vigotski tambm criticou as tentativas de justapo-sio do marxismo a teorias psicolgicas estranhas ao universo marxis-ta e incompatveis com o mesmo, tentativas essas que seriam operadasatravs de dois procedimentos:

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    Se este primeiro procedimento de importao de idias alheias deuma escola a outra lembra a anexao de um territrio alheio, o se-gundo procedimento de associao de idias alheias se assemelhaa um tratado de aliana entre dois pases, mediante o qual nenhumdos dois perde sua independncia, porm chegam ao acordo deatuarem conjuntamente, partindo da comunho de interesses. Esteprocedimento ao qual se costuma recorrer quando se quer asso-ciar o marxismo e a psicologia freudiana. Neste caso se utiliza omtodo que por analogia com a geometria poderamos denominarmtodo de superposio lgica de conceitos. Define-se o sistemamarxista como monista, materialista, dialtico, etc. Depois se esta-belece o monismo, o materialismo, etc. do sistema freudiano; aosuperpor os conceitos, estes coincidem, e se declaram unidos ossistemas. Mediante um procedimento elementar eliminam-se contra-dies gritantes, bruscas, que saltam vista, excluindo-as simples-mente do sistema, considerando-as exageradas, etc. assim quese dessexualiza o freudismo, porque o pansexualismo no concordade modo algum com a filosofia de Marx. Bom, dizem-nos, admi-tamos o freudismo sem os postulados da sexualidade. Mas ocor-re que esses postulados constituem precisamente o nervo, a alma,o centro de todo o sistema. cabvel aceitar um sistema sem seucentro? Porque a psicologia freudiana sem o postulado da nature-za sexual do inconsciente o mesmo que o cristianismo sem Cristoe o budismo com Al2. (Vygotsky 1991, pp. 296-297)

    Ao contrrio daqueles que, atualmente, identificam como dog-matismo a adoo firme e explcita de uma corrente terica e, por con-seqncia, identi f icam como abertura de esp r i to a ausncia deposicionamento firme e explcito, Vigotski entendia que a clareza quan-to aos fundamentos centrais do marxismo e a adoo firme dessesfundamentos que poderia possibilitar aos psiclogos marxistas nose fecharem s questes formuladas por correntes no marxistas dapsicologia.

    No enfoque no-crtico cada um v o que quer e no o que : ummarxista encontra na psicanlise o monismo, o materialismo ou adialtica que no aparecem nela [...] O que no significa, naturalmen-te, de modo algum que os marxistas no devam estudar o incons-ciente pelo mero fato de que as concepes principais de Freudcontradigam o materialismo dialtico. Pelo contrrio, precisamenteporque a psicanlise estuda seu objeto com base em meios impr-

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    prios, necessrio conquist-lo para o marxismo, estud-lo empre-gando os meios da verdadeira metodologia3. (Vygotsky 1991, p. 302)

    Quando Vigotski afirmava querer apreender da globalidade do m-todo de Marx como se constri a cincia, isso no pode, portanto, ser in-terpretado num sentido pragmtico, bastante corrente nos dias de hojequando focalizada a questo do mtodo em educao (os mtodos depesquisa e os mtodos de ensino), como se Vigotski pretendesse ado-tar de Marx apenas aquilo que fosse imediatamente til pesquisa nocampo da psicologia. Vigotski pretendia fundamentar em Marx a constru-o da psicologia, pretendia construir uma psicologia marxista e paraisso se fazia imprescindvel a adoo do mtodo de Marx em suaglobalidade. No h margem para ecletismos nem para justaposiesque desconsiderem o ncleo da concepo marxista de ser humano, desociedade e de histria. Nesse sentido, nos dias de hoje no demaisressaltar que Vigotski entendia que o prprio desenvolvimento da psico-logia enquanto cincia est condicionado ao avano do processo deconstruo de uma sociedade socialista:

    Nossa cincia no podia nem pode desenvolver-se na velhasociedade4 [a sociedade capitalista]. Ser donos da verdade sobrea pessoa e da prpria pessoa impossvel enquanto a humanidadeno for dona da verdade sobre a sociedade e da prpria socie-dade. Pelo contrrio, na nova sociedade [a sociedade socialista],nossa cincia se encontrar no centro da vida. O salto do reinoda necessidade ao reino da liberdade formular inevitavelmentea questo do domnio de nosso prprio ser, de subordin-lo a nsmesmos. (1991, p. 406)

    Em outros trabalhos temos defendido reiteradamente a necessida-de da obra de Vigotski ser lida com base nesse universo de refernciamarxista e socialista (Duarte 1996 e 2000). Neste artigo focalizaremosespecificamente a questo das relaes entre o pensamento vigotskianoe o mtodo dialtico em Marx. O Manuscrito de 1929 de Lev Vigotski,traduzido e publicado em portugus pela primeira vez neste nmero es-pecial da revista Educao & Sociedade, apresenta vrias passagens apartir das quais pode ser abordado o tema deste artigo. Obviamente queesse manuscrito, para ser devidamente compreendido, precisa ser ana-

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    lisado luz do restante da obra vigotskiana. com esse esprito que to-maremos como ponto de partida uma passagem do citado manuscrito:

    Mais freqentemente, o deslocamento de estruturas do exterior parao interior: uma relao de ontogenia e filogenia diferente da ocorridano desenvolvimento orgnico. No ltimo caso, a filogenia potenciale repetida na ontogenia; no primeiro caso existe uma interao realentre ontogenia e filogenia: o homem no necessrio como umbiotipo: para o feto ou embrio humano se desenvolver no tero dame, no preciso que ele interaja com um biotipo maduro. Nodesenvolvimento cultural, essa interao constitui a principal foraimpulsionadora de todo o desenvolvimento (aritmtica, fala etc. adultae infantil). (Vygotsky 1989, p. 59, traduo de Enid A. Dobrnsky)

    Como dissemos, esse manuscrito precisa ser interpretado luz dosdemais trabalhos de Vigotski, para que possa ser percebida a importnciade um trecho como o destacado acima. Nesse trecho, Vigotski faz uma di-ferenciao entre a relao filognese-ontognese no desenvolvimento or-gnico do indivduo humano e essa mesma relao no desenvolvimentocultural, social desse indivduo. O desenvolvimento scio-cultural do indiv-duo o desenvolvimento de um indivduo histrico, portanto situado na his-tria social humana. Para que esse desenvolvimento ocorra necessrioque o indivduo se aproprie dos produtos culturais, tanto aqueles da cultu-ra material como aqueles da cultura intelectual. Essa apropriao da cultu-ra pela criana mediatizada pelos adultos que j se apropriaram damesma cultura, isto , o processo de apropriao um processomediatizado, um processo que exige a interao entre adultos e crianas(Cf. Leontiev 1978). Vigotski, no trecho citado, bem claro ao afirmar queessa interao a principal fora impulsionadora de todo o desenvolvimen-to. A transmisso pelo adulto criana, da cultura construda na histria so-cial humana, no concebida na psicologia vigotskiana apenas como umdos fatores do desenvolvimento, ela considerada o fator determinante, prin-cipal. Nota-se a a grande distncia existente entre a concepo de desen-volvimento em Vigotski e em Piaget. Este entendia que a transmisso socialseria um dos trs fatores clssicos do desenvolvimento, juntamente com ahereditariedade e o meio fsico (Piaget 1994, pp. 89-90); a esses trs fato-res deveria ser acrescentado um quarto fator, o processo de equilbrio porauto-regulaes, mais geral que os trs primeiros, que poderia ser ana-lisado de forma relativamente autnoma. Ao considerar esse processo

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    como o motor espontneo do desenvolvimento intelectual, motor que noseria determinado pela transmisso social, mas, ao contrrio, seria aqueleque determinaria a prpria possibilidade de algum xito nessa transmisso,Piaget acaba por transformar o social em algo externo ao desenvolvimentodo indivduo ou, na melhor das hipteses, em um componente secundriodesse desenvolvimento.

    Na passagem do manuscrito por ns citada neste artigo, Vigotskiressalta a importncia da interao entre o ser em desenvolvimento, isto ,o ser menos desenvolvido, e o ser adulto, o ser mais desenvolvido. Afirmao psiclogo sovitico que essa interao no necessria para o desenvol-vimento do embrio humano, mas ela fundamental para o desenvolvimentocultural do indivduo humano. Isso remete a um aspecto do mtodo dialticode Marx que adotado por Vigotski, aspecto esse sintetizado na famosametfora de Marx que adotamos como ttulo deste artigo, a de que a anatomiado homem a chave da anatomia do macaco. No texto O significado hist-rico da crise da psicologia: uma investigao metodolgica5, esse tema abordado por Vigotski no que se refere ao mtodo de investigao em psico-logia. O psiclogo sovitico defende a utilizao, pela pesquisa psicolgica,daquilo que ele chamava de mtodo inverso, isto , o estudo da essnciade determinado fenmeno atravs da anlise da forma mais desenvolvidaalcanada por tal fenmeno. Por sua vez, a essncia do fenmeno na suaforma mais desenvolvida no se apresenta ao pesquisador de forma ime-diata, mas sim de maneira mediatizada e essa mediao realizada peloprocesso de anlise, o qual trabalha com abstraes. Trata-se do mtododialtico de apropriao do concreto pelo pensamento cientfico atravs damediao do abstrato. A anlise seria um momento do processo de conhe-cimento, necessrio compreenso da realidade investigada em seu todoconcreto. Vigotski adota assim, da dialtica de Marx, dois princpios para aconstruo do conhecimento cientfico em psicologia: a abstrao e a anliseda forma mais desenvolvida.

    Vejamos o que escreveu Vigotski sobre essa questo metodolgica:

    Tratei de introduzir a aplicao deste mtodo pessoalmente napsicologia consciente, tentando deduzir as leis da psicologia daarte mediante a anlise de uma fbula, um romance e uma tra-gdia. Parti para isso da idia de que as formas mais desenvol-vidas da arte so a chave das formas atrasadas, como aanatomia do homem o em relao dos macacos e no ao con-trrio. Fao afirmaes, ademais, sobre toda a arte e no com-

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    provo todavia minhas concluses na msica, na pintura etc. Ain-da mais: no as comprovo sequer em todas ou na maioria dasvariedades de literatura; tomo somente um romance, uma tragdia.Com que direito? No estudei as fbulas nem as tragdias emenos ainda uma fbula dada e uma tragdia dada. Estudei nelaso que constitui a base de toda a arte: a natureza e o mecanismoda reao esttica. Apoiei-me nos elementos gerais da forma edo material inerentes a toda a arte. Escolhi para a anlise afbula, o romance e a tragdia mais difceis, precisamente aque-las nas quais so especialmente patentes as leis gerais: sele-cionei os monstros dentro das tragdias etc. Essa anlisepressupe fazer abstrao dos traos concretos da fbula comoum gnero determinado para concentrar o esforo na essnciada reao esttica. Por isso no digo nada da fbula como tal. Eo prprio subttulo Anlise da reao esttica indica que a fina-lidade da investigao no consiste na exposio sistemtica dadoutrina psicolgica da arte em todo seu volume e amplitude (to-das as variedades da arte, todos os problemas etc.) nem sequera investigao indutiva de uma srie determinada de fatos, massim justamente a anlise dos processos em sua essncia.(Vygotsky 1991, pp. 374-375)

    Nessa passagem, Vigotski refere-se a seu trabalho Psicologia daarte6 (Vygotsky 1972). Como possvel notar, a inteno de Vigotski nessainvestigao sobre a psicologia da arte foi descobrir a essncia da reaoesttica. Para isso ele recorreu em primeiro lugar ao mtodo da anlise,buscando detectar aquilo que constituiria a unidade mais essencial dareao esttica, independentemente do fato dessa reao esttica nuncaaparecer de forma pura, abstrata, mas sempre sob formas concretas, depen-dentes tanto do tipo de obra de arte como das relaes que se estabele-cem entre um indivduo concreto e uma obra de arte concreta. Alm derecorrer ao mtodo da abstrao, Vigotski recorreu tambm ao mtodoinverso, isto , buscou analisar formas desenvolvidas de arte, pressupondoque seu estudo revelaria aspectos vlidos tambm para formas menosdesenvolvidas, sendo que o inverso no seria necessariamente verdadeiro.Note-se que a utilizao do mtodo inverso por Vigotski implica que eleconsiderava existirem formas inferiores e formas superiores de arte. Porcerto isso soa estranho queles que busquem em Vigotski apoio paraposies pedaggicas que postulam um multiculturalismo relativista parao qual no h sentido em afirmar que existam saberes mais desenvolvidosque outros, mas apenas que existem diferentes saberes.

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    De nossa parte, que no compartilhamos em absoluto com esse tipode relativismo, consideramos positivo que Vigotski no deixe dvidas quan-to ao fato de considerar que existem formas inferiores e superiores de arte.Alis, isso nos parece bastante coerente com as investigaes realizadaspor Vigotski acerca das relaes, no desenvolvimento do pensamento in-fantil, entre os conceitos cotidianos (tambm chamados por Vigotski deconceitos espontneos ou conceitos empricos) e os conceitos cientficos.No livro Pensamento e linguagem, publicado em seu texto integral no vo-lume II das Obras Escolhidas7 de Vigotski, o autor nos mostra que os con-ceitos cientficos, ao serem ensinados criana atravs da educaoescolar, superam por incorporao os conceitos cotidianos, ao mesmotempo que a aprendizagem daqueles ocorre sobre a base da formaodestes:

    O sistema primrio, surgido na esfera dos conceitos cientficos setransfere estruturalmente ao campo dos conceitos cotidianos,reestruturando-os, modificando sua natureza interna a partir de cima.Um e outro (a dependncia dos conceitos cientficos dos espont-neos e a influncia recproca dos primeiros nos segundos) sedepreende dessa relao especfica que existe entre o conceitocientfico e o objeto, a qual se caracteriza, como dissemos, porestar mediada atravs de outro conceito e, por conseguinte, incluir,por sua vez, junto com a relao para com o objeto, a relao comoutro conceito, isto , os elementos primrios do sistema de con-ceitos. Portanto, o conceito cientfico, pelo fato de ser cientfico, porsua prpria natureza, pressupe um determinado lugar dentro dosistema dos conceitos, o qual determina sua relao com outrosconceitos. A essncia de qualquer conceito cientfico definida porMarx de um modo muito profundo: se a forma de manifestao ea essncia das coisas coincidissem, toda cincia seria suprflua[...] Esse o quid do conceito cientfico. Seria suprfluo se refletisseo objeto em sua manifestao externa como conceito emprico.(Vygotsky 1993, p. 216)

    Tanto no que se refere arte, como no que se refere relao en-tre conceitos cotidianos e conceitos cientficos, Vigotski era explcitoquanto ao que considerava superior, mais desenvolvido. Ora, essa umaquesto fundamental para os educadores pois ela toca nas questes doque ensinar, a quem ensinar, quando ensinar, como ensinar e por queensinar.

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    Retomando a questo metodolgica e epistemolgica em Vigotski, importante assinalar que, ao defender a necessidade da anlise paracompreenso de determinado fenmeno psicolgico, esse pesquisadordiferenciava claramente a anlise que se reduz descrio do mais ime-diatamente visvel e a anlise que vai alm das aparncias:

    Na realidade, a psicologia nos ensina a cada passo que duas aespodem ocorrer por sua aparncia externa de maneira similar e se-rem, todavia, muito distintas por sua origem, essncia e natureza. Emcasos assim so necessrios meios especiais de anlise cientficapor detrs da semelhana exterior s diferenas internas. Nessescasos resulta necessrio, anlise cientfica, o saber descobrir sobo aspecto externo do processo seu contedo interno, sua naturezae sua origem. Toda a dificuldade da anlise cientfica radica no fatoda essncia dos objetos, isto , sua autntica e verdadeira correla-o no coincidir diretamente com a forma de suas manifestaesexternas e por isso preciso analisar os processos; preciso des-cobrir por esse meio a verdadeira relao que subjaz nesses proces-sos por detrs da forma exterior de suas manifestaes. Desvelaressas relaes a misso que h de cumprir a anlise. A autnticaanlise cientfica na psicologia se diferencia radicalmente da anlisesubjetiva, introspectiva, que por sua prpria natureza no capaz desuperar os limites da descrio pura. A partir de nosso ponto de vis-ta, somente possvel a anlise de carter objetivo j que no se tra-ta de revelar o que nos parece o fenmeno observado, mas sim oque ele na realidade. (Vygotsky 1995, p. 104, grifo nosso)

    Assim, a defesa por Vigotski do mtodo da anlise e da necessida-de da mediao das abstraes traduz sua compreenso dialtica e ma-terialista do conhecimento cientfico. Dialtica porque a apreenso darealidade pelo pensamento no se realiza de forma imediata, pelo conta-to direto com as manifestaes mais aparentes da realidade. H que sedesenvolver todo um complexo de mediaes tericas extremamente abs-tratas para se chegar essncia do real. Materialista porque Vigotski nocompartilhava de qualquer tipo de idealismo ou de subjetivismo quandodefendia a necessidade da mediao do abstrato. O conhecimentoconstrudo pelo pensamento cientfico a partir da mediao do abstrato no uma construo arbitrria da mente, no o que o fenmeno parece serao indivduo, esse conhecimento a captao, pelo pensamento, da es-sncia da realidade objetiva, reflexo dessa realidade:

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    Este novo enfoque nos mostra que a realidade determina nossaexperincia; que a realidade determina o objeto da cincia e seumtodo e que totalmente impossvel estudar os conceitos dequalquer cincia prescindindo das realidades representadas poresses conceitos. F. Engels assinala repetidas vezes que para a l-gica dialtica a metodologia da cincia o reflexo da metodologiada realidade. (Vygotsky 1991, p. 289)

    Essa epistemologia materialista e dialtica de Vigotski est emperfeita consonncia com a dialtica presente na obra de Marx. Adialtica marxiana tambm se apoia no princpio de que a abstrao uma mediao indispensvel pela qual a cincia chega essncia darealidade concreta. Marx, no prefcio da primeira edio de O capital, as-sinalou que o entendimento da parte inicial voltada para a anlise damercadoria seria a de maior dificuldade para o leitor, mas assinala tam-bm que o enfrentamento de tal dificuldade seria necessrio para que,por meio da mediao desse processo de anlise abstrata, pudesse oleitor chegar compreenso do modo de produo capitalista enquan-to totalidade concreta:

    A forma do valor, cuja figura acabada a forma do dinheiro, muitosimples e vazia de contedo. Mesmo assim, o esprito humanotem procurado fundament-la em vo h mais de 2000 anos, en-quanto, por outro lado, teve xito, ao menos aproximado, a anli-se de formas muito mais complicadas e repletas de contedo. Porqu? Porque o corpo desenvolvido mais fcil de estudar do quea clula do corpo. Alm disso, na anlise das formas econmicasno podem servir nem o microscpio nem reagentes qumicos. Afaculdade de abstrair deve substituir ambos. Para a sociedade bur-guesa, a forma celular da economia a forma de mercadoria doproduto do trabalho ou a forma do valor da mercadoria. Para o lei-go, a anlise parece perder-se em pedantismo. Trata-se, efetiva-mente, de pedantismo, mas daquele de que se ocupa a anatomiamicroscpica. (Marx 1983, pp. 12-13)

    Vigotski citava com freqncia essa passagem de Marx para de-fender a importncia do mtodo da abstrao tambm na psicologia,assim como em toda a cincia. Por essa razo Vigotski entendia que sealgum pudesse encontrar a clula da psicologia, assim como Marx

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    havia encontrado a clula do capitalismo, encontraria a chave de toda apsicologia (Vygotsky 1991, p. 377).

    Tem sido j bastante comentado pelos estudiosos de Vigotski que nocaptulo primeiro do livro Pensamento e linguagem, intitulado O problemae o mtodo de investigao (Vygotsky 1993, pp. 15-26), Vigotski critica ospesquisadores em psicologia que buscam compreender os fenmenos psi-colgicos a partir do isolamento dos elementos mais simples desses fen-menos e da anlise desses elementos em si e por si mesmos:

    Cremos que substituir esse tipo de anlise por outro muito diferen-te um passo decisivo e crtico para a teoria do pensamento e dalinguagem. Teria de ser uma anlise que segmentasse o complexoconjunto em unidades. Por unidade entendemos o resultado da an-lise que, diferentemente dos elementos, goza de todas as proprie-dades fundamentais caractersticas do conjunto e constitui umaparte viva e indivisvel da totalidade. No a frmula qumica dagua seno o estudo das molculas e do movimento molecular o queconstitui a chave da explicao das propriedades definidoras dagua. Assim, a clula viva, que conserva todas as propriedadesfundamentais da vida, definidora dos organismos vivos, a verda-deira unidade da anlise biolgica (Vygotsky 1993, pp. 19-20)

    Em substituio ao mtodo da anlise dos elementos, Vigotskipropunha o emprego do mtodo da anlise das unidades. Entretanto,convm observar que a anlise das unidades no substitui a compreensoda totalidade. A unidade, ainda que conserve as caractersticas essenciaisda totalidade (a mercadoria contm as caractersticas essenciais do capi-talismo), ela objetivamente parte de um todo e o processo de conhecimentodeve caminhar da anlise abstrata dessa unidade para a sntese concretado todo no pensamento. Essa observao particularmente importantenos dias atuais, quando, por influncia do iderio ps-moderno, existesempre uma forte tendncia a se abandonar a tentativa de compreensodo todo.

    Para esclarecer ainda mais essas mltiplas e complexas relaesprprias da dialtica existente tanto na obra de Vigotski como na de Marx,passaremos anlise, no prximo item deste artigo, da exposio deMarx acerca do mtodo dialtico. Essa anlise fora escrita como Introdu-o para a Crtica da Economia Poltica (Marx 1978, pp. 127-257). Quan-

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    do da publicao do livro, porm, Marx decidiu suprimi-la por concluirque toda antecipao perturbaria os resultados ainda por provar e queo leitor que se dispusesse a seguir seu pensamento teria de se decidira ascender do particular para o geral.

    Em Duarte (2000, pp. 128-148), analisamos essa Introduo escri-ta por Marx, no que se refere crtica, nela contida, naturalizao dosocial pela economia poltica burguesa. No prximo item deste artigo,ns nos deteremos numa questo que naquele trabalho no abordarmos,a questo do mtodo dialtico.

    A dialtica em Marx

    Em O mtodo da Economia Poltica, Marx (1978, pp. 116-123) es-tabelece relaes entre o todo e as partes, entre o abstrato e o concretoe entre o lgico e o histrico, tanto no que se refere ao pensamento (asrelaes entre as categorias enquanto questo lgico-epistemolgica),como no que se refere realidade histrico-social (as relaes entre ascategorias enquanto questo relativa ao ser, isto , questo ontolgica).

    Marx inicia sua anlise mostrando que, no terreno da cincia, nocaso, da economia poltica, ao estudar-se uma determinada realidade, porexemplo, um pas, o procedimento mais correto aparentemente seria co-mear pelo real, pelo concreto. Mas Marx mostra que existe a um equ-voco, pois o pensamento no pode se apropriar do concreto de formaimediata, no pode reproduzi-lo atravs do contato direto. O contato di-reto produz no pensamento uma representao catica do todo, queno pode ser considerada como efetiva apropriao da realidade pelopensamento. Marx (1978, p. 116), assim expe essa questo:

    Quando estudamos um dado pas do ponto de vista da EconomiaPoltica, comeamos por sua populao, sua diviso em classes,sua repartio entre cidades e campo, a orla martima; os diferentesramos da produo, a exportao e a importao, a produo eo consumo anuais, os preos das mercadorias, etc. Parece que ocorreto comear pelo real e pelo concreto, que a pressuposioprvia e efetiva; assim, em Economia, por exemplo, comear-se-iapela populao, que a base e o sujeito do ato social de produocomo um todo. No entanto, graas a uma observao mais atenta,

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    tomamos o conhecimento de que isso falso. A populao umaabstrao, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a com-pem. Por seu lado, estas classes so uma palavra vazia de sentidose ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: otrabalho assalariado, o capital, etc. Estes supem a troca, a diviso dotrabalho, os preos, etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho as-salariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preo, etc., no nada.Assim, se comessemos pela populao, teramos uma repre-sentao catica do todo, e atravs de uma determinao maisprecisa, atravs de uma anlise, chegaramos a conceitos cadavez mais simples; do concreto idealizado passaramos a abstraescada vez mais tnues at atingirmos as determinaes as maissimples. Chegados a esse ponto, teramos que voltar a fazer aviagem de modo inverso, at dar de novo com a populao, masdesta vez no com uma representao catica de um todo, pormcom uma rica totalidade de determinaes e relaes diversas.

    Qual o significado da afirmao: a populao uma abstrao, sedesprezarmos, por exemplo, as classes que a compem? Lembremosque Marx est se referindo-se anlise econmica de um pas. Nessecaso, tomar como ponto de partida a populao, isto , a populao emgeral, cujo nico elemento comum a todos os membros dessa populao o fato de pertencerem ao mesmo pas, pouco ou nada diz sobre a rea-lidade econmica desse pas se no for levado em considerao queessa populao no homognea, mas composta por classes sociais. Otermo abstrao aparece a como sinnimo de uma id ia que nocorresponde complexidade do contedo da realidade. Por essa razo,comear pela populao significa partir de uma representao caticado todo. Se essa representao inicial no capaz de traduzir adequa-damente esse todo, torna-se necessrio passar anlise: sendo a po-pulao composta de classes sociais, preciso analis-las; mas isto s possvel analisando-se o trabalho assalariado e o capital; o capital, porsua vez, s pode ser compreendido adequadamente, atravs da anli-se do seu oposto, o trabalho assalariado, sendo que a relao entre am-bos mediada pelo valor, isto , pelo valor de troca que, juntamente como valor de uso, compe a mercadoria; por sua vez, a troca entre merca-dorias mediada, no mercado, pelo equivalente geral do valor das mer-cadorias que o dinheiro, mediante o qual estabelecido o preo dasmercadorias. Partiu-se da populao (a representao catica do todo,verificou-se a necessidade de analisar as classes sociais e essa anli-se conduziu, atravs de decomposies sucessivas, de abstraes cada

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    vez mais sutis (cada vez mais tnues), s categorias mais simples, sdeterminaes mais simples, isto , ao valor que mediatiza a troca demercadorias e mediatiza a venda da fora de trabalho.

    Mas o pensamento no encerra a seu percurso. Ele agora ter quefazer o caminho inverso, isto ascender da abstrao mais simples com-plexidade do conjunto que foi representado, inicialmente, de forma catica.O trabalho analtico com as categorias mais simples e abstratas seguir ago-ra o percurso do progressivo enriquecimento da teoria interpretativa da re-alidade, at atingir novamente o todo que foi o ponto de partida, s que essetodo j no mais se apresenta ao pensamento como uma representaocatica, mas como uma rica totalidade de determinaes e relaes diver-sas. O concreto , assim, reproduzido pelo pensamento cientfico, que re-constri, no plano intelectual, a complexidade das relaes que compemo campo da realidade que constitui o objeto de pesquisa.

    Essas consideraes de Marx so da maior importncia para as ci-ncias humanas nos dias de hoje se considerarmos que muitos pesquisa-dores rejeitam a perspectiva da totalidade, limitando-se ao micro, ao casoisolado, ao particular transformado em nica instncia real, sendo que porvezes isso justificado como tentativa de dar conta da riqueza do caso sin-gular, riqueza essa que esses pesquisadores afirmam ser perdida em to-das as tentativas de viso totalizadora do real. Outras vezes essespesquisadores no chegam propriamente a negar a necessidade da com-preenso do todo, mas tal compreenso postergada a estudos futurosque porventura venham a ser desenvolvidos por algum. como se, de mi-lhares de estudos microscpicos e fragmentrios, pudesse surgir, por umpasse de mgica, uma viso articulada do todo. Se a viso do todo que di-rige essas pesquisas do caso singular em si mesmo so dirigidas pela re-presentao catica do todo, o fato que elas no so capazes de realizaraquilo a que se propem, isto , captar a riqueza do singular justamenteporque o singular s pode ser entendido em toda sua riqueza quando vistocomo parte das relaes que compem o todo. Esse nos parece ser umdos principais problemas de boa parte daquilo que no campo da pesqui-sa em educao chamado de metodologias qualitativas (expresso,alis, vaga e pouco esclarecedora), na medida em que tais metodologiastm gerado uma enorme quantidade de dissertaes e teses que, com ra-ras excees, pouco ou nada acrescentam ao processo de compreensodo concreto enquanto uma rica totalidade com mltiplas determinaes erelaes diversas. Tais trabalhos partem de uma viso catica do todo emal chegam elaborao de algumas categorias analticas.

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    A seguir, Marx afirma que o primeiro caminho (da representaocatica s abstraes mais simples) foi aquele historicamente percorri-do pelos estudos econmicos no incio dessa cincia. Marx (1978, pp.116-117) diz ento que o ltimo caminho manifestamente o mtodocientfico correto, isto , o concreto s pode ser adequadamente capta-do pelo pensamento no enquanto ponto de partida, mas enquanto pontode chegada, enquanto sntese:

    O concreto concreto porque a sntese de muitas determina-es, isto , unidade do diverso. Por isso o concreto aparece nopensamento como o processo da sntese, como resultado, nocomo ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivoe, portanto, o ponto de partida tambm da intuio e da represen-tao. No primeiro mtodo, a representao plena volatiliza-se emdeterminaes abstratas, no segundo, as determinaes abstra-tas conduzem reproduo do concreto por meio do pensamen-to. Por isso que Hegel caiu na iluso de conceber o real comoresultado do pensamento que se sintetiza em si, que se aprofundaem si, e se move por si mesmo; enquanto que o mtodo que con-siste em elevar-se do abstrato ao concreto no seno a manei-ra de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, parareproduzi-lo como concreto pensado. Mas este no de modonenhum o processo da gnese do prprio concreto. A mais sim-ples categoria econmica, suponhamos, por exemplo, o valor detroca, pressupe a populao, uma populao produzindo em de-terminadas condies e tambm certos tipos de famlias, de co-munidades ou Estados. O valor de troca nunca poderia existir deoutro modo seno como relao unilateral, abstrata de um todovivo e concreto. (grifos no original)

    Nos tempos atuais, nos quais intelectuais ps-modernos econstrutivistas rejeitam a idia de que o conhecimento seja a reproduoda realidade pelo pensamento, por considerarem tal idia positivista emecanicista, fazemos questo de ressaltar que na passagem acima citadao conhecimento explicitamente entendido como apropriao da reali-dade objetiva, com reproduo dessa realidade no pensamento, isto , aepistemologia de Marx materialista e dialtica, o concreto pensado a apropriao dialtica do concreto real atravs da mediao da anlise,mediao do abstrato. No h margem para qualquer tipo de relativismosubjetivista na epistemologia marxiana.

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    Marx esclarece, na passagem acima, que o caminho das categoriasmais simples, abstratas e unilaterais para a complexidade e concreticidadedo todo o caminho do pensamento e no da realidade, pois nesta ascategorias simples s tm existncia no interior de um todo j existente.Esse esclarecimento importante por vrias razes. Em primeiro lugar,porque previne contra as iluses idealistas, que identificam os percursos dopensamento e do conhecimento com os percursos da realidade a ser conhe-cida. Em segundo lugar, porque tambm previne contra os reducionismos nocampo epistemolgico, mostrando que o conhecimento cientfico de umadada realidade humana no pode ser alcanado sem a mediao do rduoprocesso de elaborao de abstraes e de reconstruo, no pensamento,das mltiplas relaes que compem o todo.

    O segundo aspecto importante na passagem de Marx acima ci-tada e que traz contribuies anlise que aqui desenvolvemos dizrespeito relao entre as unidades e o todo do qual elas fazem par-te. Ao mostrar que as unidades no pr-existem ao todo, ou seja, queeste no o resultado de relaes entre partes que j existiriam de for-ma autnoma e independente, Marx nos fornece uma preciosa indica-o metodolgica para a crtica s concepes a-histricas da relaoentre indivduo e sociedade. A complexidade das relaes sociais nopode ser deduzida de caractersticas pretensamente existentes em todoindivduo humano, nem mesmo deduzida diretamente das relaes dotipo face to face. Tem sido muito freqente nos estudos educacionais ainterpretao de que considerar o indivduo como um ser social seriasinnimo de considerar as relaes face to face, isto , as relaes ime-diatas entre dois indivduos. claro que no estamos desconsiderandoa importncia dessas relaes na formao da individualidade. Mas oque no concordamos com a reduo da socialidade a essas rela-es, at porque quando ocorre essa reduo, ela acaba atingindo aprpria interpretao das relaes diretas entre indivduos, que acabamsendo vistas de forma idealizada. Os estudos no campo da educaoe, mais especificamente, no campo da psicologia da educao, que re-duzem a socialidade humana aos desdobramentos de caractersticas in-dividuais ou de relaes diretas entre dois indivduos, seguem a mesmalinha de raciocnio dos economistas clssicos, criticados por Marx, quepartiam das aes individuais ou das relaes diretas entre dois indi-vduos para, ento, construrem sua viso da sociedade como um todo.Para esses economistas, o percurso percorrido pelo seu pensamentocorrespondia ao percurso social e histrico.

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    Aps analisar os dois caminhos do pensamento, isto , da represen-tao catica do todo s abstraes e destas ao todo enquanto sntese demltiplas relaes e determinaes, Marx chama a ateno para o fato deque no so os conceitos, isto , as abstraes que, em si e por si mesmos,produziriam a mencionada sntese, de maneira totalmente independenteda realidade social objetiva e do sujeito real (ou sujeitos reais). Marx esta fazendo a crtica a todo tipo de idealismo que trate os conceitos e seudesenvolvimento como algo desvinculado dos sujeitos humanos reais,histrica e socialmente situados. Trata-se aqui da mesma questo toamplamente tratada por Marx & Engels (1993, pp. 36-37) em A ideologiaalem, isto , que os homens constrem suas representaes mentais darealidade a partir da prtica social concreta, vale dizer, a partir das neces-sidades objetivamente postas pela existncia social:

    Os homens so produtores de suas representaes, suas idias,etc., mas os homens reais e ativos, tal como se acham condicio-nados por um determinado desenvolvimento de suas foras pro-dutivas e pelo intercmbio que a ele corresponde at chegar ssuas formaes mais amplas. A conscincia jamais pode ser ou-tra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens o seu pro-cesso de vida real.

    Como vimos, em O mtodo da Economia Poltica, Marx defen-de dois princpios materialistas, anti-idealistas. O primeiro o de que oconcreto real e objetivo, com toda sua complexidade, existe antes do pen-samento realizar o movimento de sua reproduo ideal e continua aexistir durante essa reproduo, em sua autonomia fora do crebro,isto , na medida em que o crebro no se comporta se noespeculativamente, teoricamente (Marx 1978, p. 117). claro que o pen-samento que reproduz idealmente o real acaba por nele interferir no mo-mento em que os sujeitos passem da atividade terica para a intervenotransformadora da realidade. O segundo princpio o de que o processode elaborao da sntese do todo no pensamento um processo desen-volvido por indivduos historicamente situados, indivduos concretos, pro-cesso de conhecimento esse que consiste na elaborao da intuioe da representao em conceitos (Marx 1978, p. 117). Assim como noplano da realidade objetiva, as categorias simples, abstratas e unilateraisno podem existir anterior e independentemente do todo, tambm noplano do pensamento, a representao catica o ponto de partida

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    para o trabalho analtico que supera essa representao pela elabora-o das categorias abstratas, as categorias simples.

    Na seqncia de sua exposio, Marx formula uma questo sobrea relao entre gnese da realidade objetiva e gnese do pensamento. Aquesto a seguinte: estas categorias simples no possuem tambm umaexistncia independente histrica ou natural anterior s categorias maisconcretas? (Marx 1978, p. 117). Antes de mais nada necessrio lembraralgo que mencionamos no incio deste item: a anlise de Marx focaliza ascategorias enquanto movimento do pensamento e enquanto movimento darealidade objetiva, isto , a anlise dos processos de conhecimento e depensamento fundamenta-se, em Marx, numa concepo materialista, se-gundo a qual o movimento das categorias no pensamento a expressodos movimentos da realidade objetiva, exterior a esse pensamento. Em-bora em determinados momentos de seu texto Marx possa utilizar o ter-mo categoria limitado ao significado de categorias do pensamento,mesmo nesses momentos Marx nunca perde de vista que as categorias dopensamento expressam movimentos da realidade objetiva. A perguntaacima apresentada, formulada por Marx, pode ser traduzida da seguintemaneira: o processo histrico de desenvolvimento das sociedades seguiriao mesmo percurso do processo de conhecimento, isto , das categoriassimples s mais complexas, das categorias unilaterais s multilaterais? Aresposta dada por Marx depende, ou seja, no existe uma respostanica, uma frmula nica para responder a essa questo. Por um lado, oumelhor, num certo sentido, seria possvel afirmar-se que o processo his-trico caminha do simples ao complexo:

    ... as categorias simples so a expresso de relaes nas quaiso concreto pouco desenvolvido pode ter se realizado sem haverestabelecido ainda a relao ou o relacionamento mais complexoque se acha expresso mentalmente na categoria mais concreta,enquanto o concreto mais desenvolvido conserva a mesma cate-goria como uma relao subordinada. O dinheiro pode existir, eexistiu historicamente, antes que existisse o capital, antes queexistissem os bancos, antes que existisse o trabalho assalariado.Deste ponto de vista, pode-se dizer que a categoria mais simplespode exprimir relaes dominantes de um todo menos desenvol-vido, ou relaes subordinadas de um todo mais desenvolvido,relaes que j existiam antes que o todo tivesse se desenvolvi-do, no sentido que se expressa em uma categoria mais concreta.

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    Nesta medida, o curso do pensamento abstrato que se eleva domais simples ao complexo corresponde ao processo histrico efe-tivo. (Marx 1978, p. 118)

    Para acompanhar o raciocnio de Marx, necessrio no perderde vista os significados que ele atribui s expresses categorias abstra-tas e categorias concretas. As categorias abstratas so relaes maissimples, unilaterais, parciais, enquanto que as categorias concretas somais complexas, mais ricas e multilaterais. O dinheiro, enquanto categoriamais simples, unilateral e abstrata, existiu antes que existissem outrascategorias mais complexas como o capital, os bancos e o trabalho assala-riado. Assim, uma categoria mais simples, isto , mais abstrata, pode terdesempenhado um papel dominante enquanto pertencia a um todo menosdesenvolvido e, posteriormente, ter desempenhado um papel subordinadoao pertencer a um todo mais desenvolvido, expresso por uma categoriamais concreta. Portanto, nesse caso, o curso do pensamento, que se elevado abstrato ao concreto, isto , do simples ao conplexo, o mesmo cami-nho percorrido pelo processo histrico.

    Mas nem sempre existe essa correspondncia, pois nem sempreas categorias mais simples precedem, do ponto de vista histrico, as ca-tegorias mais complexas. Certas formas desenvolvidas de economia,como a cooperao e a diviso do trabalho existiram, segundo Marx, emdeterminadas sociedades nas quais uma categoria to simples como odinheiro no existia. O exemplo do dinheiro tambm empregado porMarx para ilustrar o fato de que uma categoria simples muda seu signi-ficado e sua importncia na dinmica social medida em que o todoconcreto da sociedade se modifique, com o transcorrer do processo his-trico. Em outras palavras, o prprio desenvolvimento da categoria sim-ples pode estar condicionado ao desenvolvido das categorias maiscomplexas, mais concretas. Marx (1978, p. 118) explica que:

    ... embora o dinheiro tenha, muito cedo e por toda parte, desempe-nhado um papel, no assume papel de elemento dominante naAntigidade, seno de modo unilateral e em determinadas naes as naes comerciais. E mesmo na Antigidade mais culta, entreos gregos e os romanos, no atinge seu completo desenvolvimento,que se pressupe existir na moderna sociedade burguesa, a noser no perodo de sua dissoluo. Essa categoria, que no entan-

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    to bem simples, s aparece portanto historicamente com todo oseu vigor nos Estados mais desenvolvidos da sociedade. E o di-nheiro no entrava de modo nenhum em todas as relaes eco-nmicas, assim, no Imprio Romano, na poca de seu perfeitodesenvolvimento, permaneceram como fundamentais o impostoe as entregas em produtos. O sistema do dinheiro, propriamen-te dito, encontrava-se completamente desenvolvido apenas noexrcito, e jamais atingiu a totalidade do trabalho. De modo que,embora a categoria mais simples possa ter existido historicamen-te antes da mais concreta, pode precisamente pertencer em seupleno desenvolvimento, intensivo e extensivo, a formas comple-xas de sociedade, enquanto que a categoria mais concreta j seachava plenamente desenvolvida em uma forma de sociedademenos avanada.

    Tambm pode ocorrer historicamente o processo pelo qual umacategoria mais concreta vai se tornando uma categoria mais abstrata, umacategoria mais complexa vai se tornando mais simples. Para exemplificarisso, Marx analisa a evoluo da categoria trabalho, enquanto categoria dopensamento econmico e tambm enquanto categoria da realidade econ-mica. Nessa anlise, Marx mostra o processo de transformao do trabalhoem uma abstrao cada vez mais simples at se constituir em trabalho emgeral, em trabalho abstrato, em fora de trabalho em geral. O trabalho focalizado enquanto categoria da economia poltica, isto , categoria dopensamento cientfico e enquanto categoria da realidade econmica obje-tiva. Marx mostra que, como realidade objetiva, no capitalismo, o trabalhose caracteriza no por seu contedo concreto, mas por ser trabalho emgeral, trabalho abstrato. Assim, o trabalhador tambm passa a ter seu serenquanto trabalhador definido no pelo contedo concreto do trabalho queele venha a realizar, mas pela capacidade de trabalho em geral. O trabalhadortorna-se trabalhador em geral, trabalhador abstrato. O capitalismo opera,dessa forma, o esvaziamento dos indivduos, transformando-os em indi-vduos abstratos.

    Como categoria do pensamento, embora a idia do trabalho em ge-ral h muito existisse para o pensamento humano, foi necessria uma evo-luo do pensamento econmico para que se considerasse a produo dariqueza como resultado do trabalho em geral e no como resultado de al-gum tipo especfico de trabalho, como o trabalho comercial, agrcola, indus-trial etc. Essa evoluo do pensamento econmico caracterizada por Marxcomo passando do monetarismo para o mercantilismo e deste para a

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    fisiocracia, at chegar, finalmente, em Adam Smith, idia do trabalho emgeral. O monetarismo situava a riqueza no no trabalho humano, mas noobjeto em si mesmo, no caso, no dinheiro. O mercantilismo realizou o pri-meiro avano ao considerar a produo da riqueza como resultante do tra-balho humano, ou seja, o trabalho mercantil. Mas como o comrcio era vistocomo um meio para a obteno de dinheiro, a riqueza ainda era conside-rada uma propriedade do objeto, a ser buscado atravs da atividade mer-cantil. A fisiocracia avanou de forma significativa porque defendeu que ariqueza produzida pelo trabalho agrcola, sendo constituda pelo produtoem geral desse trabalho. Assim, a riqueza j no era mais vista na formaparticular de um tipo de produto, no caso o dinheiro. Mas a fisiocracia ain-da limitava a riqueza aos produtos de um tipo especfico de trabalho. O pas-so decisivo foi dado por Adam Smith:

    Um enorme progresso se deve a Adam Smith, que rejeitou toda de-terminao particular da atividade criadora de riqueza, considerandoapenas o trabalho puro e simples, isto , nem o trabalho industrialnem o trabalho comercial, nem o trabalho agrcola, mas todas es-sas formas de trabalho. Com a generalidade abstrata da atividadecriadora de riqueza, igualmente se manifesta ento a generalidadedo objeto determinador da riqueza, o produto em absoluto, ou ain-da, o trabalho em geral, mas enquanto trabalho passado, objetivado.(Marx 1978, p. 119)

    Poderia parecer, primeira vista, que se teria encontrado unicamentea relao abstrata mais simples e mais antiga em que entram os homensem qualquer forma de sociedade, enquanto produtores (idem, p. 119). Marxafirma, entretanto, que tal concluso correta em certo sentido mas no emoutro. A produo material humana sempre dependeu, de certa forma, dotrabalho. possvel afirmar que a riqueza no pode existir sem o trabalhoe que o trabalho humano em geral a fonte de criao da riqueza humana.Nesse sentido, pode-se afirmar que os economistas descobriram uma rela-o simples e antiga que sempre existiu. Mas esse grau de generalidade doraciocnio nada expressa sobre o processo histrico de desenvolvimento daproduo da riqueza, tampouco explica o processo histrico de desenvolvi-mento da teoria econmica. O fato de que o trabalho abstrato seja o geradorda riqueza no significa que tanto objetiva como subjetivamente o trabalhonesse grau de abstrao estivesse dado no incio do processo histrico.Marx (1978, p. 119) mostra que, ao contrrio, esse trabalho abstrato

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    produto de uma sociedade mais complexa, na qual existe uma diversi-dade maior de trabalhos concretos:

    A indiferena em relao ao gnero de trabalho determinado pressu-pe uma totalidade muito desenvolvida de gneros de trabalho efeti-vos, nenhum dos quais domina os demais. Tampouco se produzemas abstraes mais gerais seno onde existe o desenvolvimentoconcreto mais rico, onde um aparece como comum a muitos. Entoj no pode ser pensado somente sob uma forma particular. Por ou-tro lado, essa abstrao do trabalho em geral no apenas o resul-tado intelectual de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferenaem relao ao trabalho determinado corresponde a uma forma de so-ciedade na qual os indivduos podem passar com facilidade de um tra-balho a outro e na qual o gnero determinado de trabalho fortuito,e, portanto, -lhes indiferente. Neste caso o trabalho se converteu nos como categoria, mas na efetividade em um meio de produzir rique-za em geral, deixando, como determinao, de se confundir com oindivduo em sua particularidade.

    Marx cita ento como exemplo os Estados Unidos, onde o capitalis-mo se apresentava na sua forma mais desenvolvida. Nesse pas, o traba-lho enquanto abstrao, enquanto trabalho em geral, apresentava-se pelaprimeira vez na histria como realidade objetiva, pois o trabalhador nomais se caracterizava por realizar um tipo particular de trabalho, mas sim porrealizar o trabalho em geral, por possuir uma fora de trabalho em geral.

    Somente no capitalismo o trabalho pode existir em sua forma maisabstrata, enquanto indiferena em relao aos tipos particulares de traba-lho e aos produtos particulares do trabalho, tornando-se importante apenaso trabalho em geral, tanto o acumulado, objetivado no capital, como o tra-balho vivo, a fora de trabalho do indivduo trabalhador, enquanto fora detrabalho abstrata, fora de trabalho em geral. Da mesma forma, foi precisoque essa realidade existisse para que os economistas formulassem a con-cepo da riqueza enquanto trabalho em geral, trabalho abstratamente con-cebido. Assim, o trabalho, tanto na realidade scio-econmica como nacincia (isto , a economia poltica), mostrou-se em sua forma mais abstra-ta no no incio da histria mas apenas com o surgimento do capitalismo.

    Neste ponto a anlise de Marx das relaes histricas entre ascategorias abstratas e as categorias concretas leva formulao da fa-

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    mosa tese marxiana acerca das relaes entre o lgico e o histrico: aanlise da lgica de um determinado fenmeno na sua forma mais de-senvolvida a chave para a anlise do processo histrico de desenvol-vimento desse fenmeno:

    A sociedade burguesa a organizao histrica mais desenvolvida,mais diferenciada da produo. As categorias que exprimem suasrelaes, a compreenso de sua prpria articulao, permitempenetrar na articulao e nas relaes de produo de todas as for-mas de sociedades desaparecidas, sobre cujas runas e elementosse acha edificada, e cujos vestgios, no ultrapassados ainda, levade arrasto, desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicadoque toma assim toda a sua significao etc. A anatomia do homem a chave da anatomia do macaco. O que nas espcies animaisinferiores indica uma forma superior no pode, ao contrrio, sercompreendido seno quando se conhece a forma superior. A econo-mia burguesa fornece a chave da economia da antigidade etc.Porm, no conforme o mtodo dos economistas que fazem desa-parecer todas as diferenas histricas e vem a forma burguesa emtodas as formas de sociedade. (Marx 1978, p. 120)

    O fato de Marx empregar uma metfora biolgica, a qual faz refern-cia evoluo das espcies, do macaco ao homem, no significa que Marxanalisasse o processo histrico numa perspectiva evolucionista linear nemmesmo numa perspectiva teleolgica da histria. A histria para Marx nopersegue uma meta estabelecida previamente por algum ou por algo. Aexistncia da forma burguesa de sociedade no estava pr-estabelecida jno incio da histria, ela um produto do devenir histrico. Sendo produtode um processo histrico, a sociedade burguesa carrega em si mesma asmarcas desse processo. Os economistas so criticados por Marx por acha-rem que as caractersticas prprias da sociedade burguesa, prprias do ca-pitalismo, j estavam presentes nas formas mais primitivas de vida social.Dessa forma os economistas concebem de maneira totalmente a-histricao capitalismo, o que constitui um procedimento ideolgico de eternizaodas relaes capitalistas de produo e de naturalizao do mercado. Mastambm fica evidente nas palavras de Marx que, mesmo sem adotar umaposio evolucionista ingnua, ele via a histria como um processo de de-senvolvimento. Essa uma idia atualmente muito contestada pelos ps-mo-dernos e mesmo por certos neomarxistas. Embora no haja aqui espao paraentrar em detalhes sobre a questo da idia de desenvolvimento e de pro-

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    gresso na perspectiva dialtica do materialismo histrico de Marx, assinalamosque consideramos um grande equvoco contrapor a idia de desenvolvimentoa uma viso crtica da histria, como se esta tivesse que necessariamentenegar o desenvolvimento e o progresso. Esse equvoco decorre de um tipode relativismo que produz conseqncias fortemente reacionrias. No demais citar aqui uma passagem de Gramsci sobre essa questo:

    indubitvel que o progresso foi uma ideologia democrtica, bemcomo tambm indubitvel que tenha servido politicamente naformao dos modernos estados constitucionais etc. Igualmente incontestvel que ela hoje j no mais est em seu auge. Mas emque sentido? No no sentido de que se tenha perdido a f napossibilidade de dominar racionalmente a natureza e o acaso,mas no sentido democrtico; ou seja, de que os portadoresoficiais do progresso tornaram-se incapazes deste domnio, jque suscitaram foras destruidoras atuais to perigosas e angus-tiantes quanto as do passado [...], tais como as crises, o desem-prego etc. A crise da idia de progresso, portanto, no umacrise da idia em si, mas uma crise dos portadores dessa idia,os quais se tornaram, eles mesmos, uma natureza que deveser dominada. Os ataques idia de progresso, nessa situao,so muito interessados e tendenciosos. (1995, p. 45)

    bvio que a concordncia com a afirmao de Marx, de que acompreenso da lgica da sociedade burguesa permite compreender associedades que a precederam, exige a aceitao do pressuposto de quea sociedade burguesa a organizao histrica mais desenvolvida e,conseqentemente, da idia de desenvolvimento histrico, de progressohistrico. Para Marx, a despeito do capitalismo ser uma sociedade gerado-ra das mais profundas formas de alienao j existentes, a sociedadeburguesa constitui-se num avano em relao s sociedades precedentespor criar as condies para a passagem ao socialismo.

    Em termos metodolgicos, a afirmao de que a anatomia dohomem a chave da anatomia do macaco significa que a pesquisadeve partir da fase mais desenvolvida do objeto investigado para entoanalisar sua gnese e, depois da anlise dessa gnese, retornar aoponto de partida, isto , fase mais evoluda, agora compreendida deforma ainda mais concreta, iluminada pela anlise histrica. Mas essaanlise, apoiada na dialtica entre o lgico e o histrico, s se realiza

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    de forma verdadeiramente esclarecedora do objeto investigado se forapoiada numa perspectiva crtica, isto , se for realizada a crticadaquilo que esteja sendo tomado como a forma mais desenvolvida.Se no houver essa perspectiva crtica, a anlise histrica torna-se umrecurso de legitimao da situao atual, deixando de ser uma formade compreender melhor as possibilidades de transformao dessasituao. Marx tinha clareza quanto a isso e chamava a ateno parao fato de que a perspectiva crtica em relao sociedade burguesadeveria fazer com que o pesquisador tomasse as devidas cautelaspara no adotar uma posio evolucionista ingnua em sua anlisehistrica:

    Como, alm disso, a prpria sociedade burguesa apenas umaforma opositiva do desenvolvimento, certas relaes pertencentes aformas anteriores nela s podero ser novamente encontradasquando completamente atrofiadas, ou mesmo disfaradas; por exem-plo, a propriedade comunal. Se certo, portanto, que as categoriasda economia burguesa possuem o carter de verdade para todasas demais formas de sociedade, no se deve tomar isso seno cumgrano salis [em sentido bem determinado]. Podem ser desenvolvidas,atrofiadas, caricaturadas, mas sempre essencialmente distintas. Ochamado desenvolvimento histrico repousa em geral sobre o fato dea ltima forma considerar as formas passadas como etapas quelevam a seu prprio grau de desenvolvimento, e dado que ela rara-mente capaz de fazer a sua prpria crtica, e isso em condiesbem determinadas, concebe-os sempre sob um aspecto unilateral. Areligio crist s pode ajudar a compreender objetivamente as mitolo-gias anteriores depois de ter feito, at certo grau, por assim dizer,dynamei, a sua prpria crtica. Igualmente, a economia burguesa sconseguiu compreender as sociedades feudal, antiga, oriental,quando comeou a autocrtica da sociedade burguesa. Na medidaem que a economia burguesa, criando uma nova mitologia, no seidentificou pura e simplesmente com o passado, a crtica que fez ssociedades anteriores, em particular sociedade feudal, contra aqual tinha ainda que lutar diretamente, assemelhou-se crtica dopaganismo feita pelo cristianismo, ou do catolicismo feita pelareligio protestante. (1978, pp. 120-121)

    Para concluir sua exposio sobre a questo metodolgica, Marxchama a ateno para o fato de que, embora o conhecimento cientfico ca-minhe do abstrato ao concreto, da parte para o todo, preciso nunca es-

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    quecer que na realidade objetiva o todo j existe antes que ele seja re-produzido no plano do pensamento. Isso tem implicaes metodolgicasdecisivas, pois, sendo esse todo possuidor de certas caractersticas queo definem e o diferenciam de outros que o precederam, essas caracters-ticas tambm determinam o ser das partes. Em outras palavras, ainda queo pensamento se detenha em uma parte do todo, jamais deve ser esque-cido que essa parte no tem existncia em si e por si mesma e tambmno dever ser esquecido que essa parte assume caractersticas distintas,dependendo de a qual todo ela pertena. Vejamos ento como Marx ex-pe essa questo. De incio, ele alerta para o fato de que o objeto j existeantes de ser tratado como objeto do conhecimento cientfico:

    Do mesmo modo que toda cincia histrica e social em geral pre-ciso ter sempre em conta, a propsito do curso das categoriaseconmicas, que o sujeito, nesse caso a sociedade burguesa mo-derna, est dado tanto na realidade efetiva como no crebro; queas categorias exprimem portanto formas de modos de ser, deter-minaes de existncia, freqentemente aspectos isolados destasociedade determinada, deste sujeito, e que, por conseguinte, estasociedade de maneira nenhuma se inicia, inclusive do ponto devista cientfico, somente a partir do momento em que se trata delacomo tal. (Marx 1978, p. 121)

    Ora, essa observao da maior importncia pois quando o co-nhecimento cientfico parte da premissa de que o objeto j existe enquan-to um todo com determinadas caractersticas, a lgica do percurso quevai do abstrato ao concreto no pode tomar qualquer abstrao comoponto de partida, nem mesmo iludir-se com aquilo que parea ser o pontode partida mais natural:

    Nada parece mais natural, por exemplo, do que comear pela ren-da da terra, pela propriedade fundiria, dado que est ligada ter-ra, fonte de produo de qualquer sociedade que atingiu um certograu de estabilidade agricultura. Ora, nada seria mais errado.Em todas as formas de sociedade se encontra uma produo de-terminada, superior a todas as demais, e cuja situao aponta suaposio e influncia sobre as outras. uma luz universal de quese embebem todas as cores, e que as modifica em sua particula-ridade. (Marx 1978, pp. 121)

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    Embora a agricultura seja, a partir de determinado estgio de de-senvolvimento, a forma mais natural de produo da existncia huma-na, no significa que seja tambm o melhor ponto de partida paracompreender a produo na sociedade capitalista:

    Na sociedade burguesa o contrrio. A agricultura transforma-semais e mais em simples ramo da indstria e dominada comple-tamente pelo capital. A mesma coisa ocorre com a renda da ter-ra. Em todas em que domina a propriedade fundiria, a relaocom a natureza ainda preponderante. Naquelas em que dominao capital, o que prevalece o elemento produzido social e histori-camente. No se compreende a renda da terra sem o capital, en-tretanto compreende-se o capital sem a renda da terra. Deveconstituir o ponto inicial e o ponto final a ser desenvolvido antesda propriedade da terra. Depois de considerar particularmente ume outro, deve-se estudar sua relao recproca. (Marx 1978, pp.121-122)

    Aqui vale a pena fazer meno ao fato de que, na psicologia scio-histrica de Vigotski e seguidores, a anlise de funes e faculdades ps-quicas tinha por pressuposto que o desenvolvimento de cada funopsquica no autnomo, mas sim depende de um todo do qual ela par-te. Citaremos dois exemplos. O primeiro o de Vigotski, analisando o desen-volvimento da personalidade da criana e de sua concepo de mundo:

    ... o menor de qualquer avano na esfera do desenvolvimento cul-tural consiste, como vimos, em que o homem domina os processosde seu prprio comportamento. Porm a premissa imprescindvelpara esse domnio a formao da personalidade, de modo queo desenvolvimento de uma ou outra funo depende e est semprecondicionado pelo desenvolvimento global da personalidade.(Vygotsky 1995, p. 329)

    O segundo exemplo extramos de Leontiev, mais especificamentede seu conceito de atividade principal que, de certa forma, aprimora aconcepo de Vigotski exposta na passagem acima citada. SegundoLeontiev, a atividade principal ento a atividade cujo desenvolvimen-to governa as mudanas mais importantes nos processos psquicos e nos

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    traos psicolgicos da personalidade da criana, em um certo estgio deseu desenvolvimento (Leontiev 1988, p. 65). Infelizmente no h espa-o aqui para analisarmos a importncia do conceito de atividade princi-pal para a psicologia do desenvolvimento e para a educao.

    Retomando o texto de Marx, ele conclui sua resposta perguntapor ele mesmo formulada, acerca das relaes entre o lgico e o hist-rico, ou seja, se a ordem seguida pelo pensamento cientfico no proces-so de construo terica da compreenso de uma dada sociedade seriaa mesma seguida pelo processo histrico:

    Seria, pois, impraticvel e errneo colocar as categorias econ-micas na ordem segundo a qual tiveram historicamente uma aodeterminante. A ordem em que se sucedem se acha determinada,ao contrrio, pelo relacionamento que tm umas com as outras nasociedade burguesa, e que precisamente o inverso do que pa-rece ser uma relao natural, ou do que corresponde srie dodesenvolvimento histrico. (Marx 1978, p. 122)

    Assim, na dialtica entre o lgico e o histrico, o pensamento hu-mano analisa a lgica da fase mais desenvolvida do objeto e vai his-tria para compreender a gnese desse objeto e compreender as fasesanteriores do processo histrico. Essa anlise histrica, por sua vez,aprofunda a compreenso da fase mais desenvolvida, tornando aindamais rica a reproduo do concreto pelo pensamento, reproduo essaque requer, como vimos, a mediao das abstraes.

    Finalizando este item sobre o mtodo dialtico em Marx, podemosagora retomar a passagem do manuscrito de Vigotski, em que este afirmaque a interao entre a criana, enquanto ser em desenvolvimento, e oadulto, enquanto ser desenvolvido, a principal fonte impulsionadora dodesenvolvimento cultural da criana, que Vigotski diferenciava do desen-volvimento orgnico. Para a psicologia e para a educao, a anlise do de-senvolvimento da criana precisa, portanto, partir do mais desenvolvidopara o menos desenvolvido. Poderamos afirmar que o adulto desenvolvi-do a chave para a compreenso do desenvolvimento infantil. Mas tam-bm no podemos esquecer que esse desenvolvimento infantil se d pelainterao com o adulto j desenvolvido. Isso diferencia a ontognese dafilognese, pois o desenvolvimento histrico do gnero humano partiu desi mesmo e no da interao com uma forma mais evoluda de ser. J no

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    caso do desenvolvimento cultural da criana, existe uma forma mais evo-luda de ser que produz o desenvolvimento da forma menos evoluda. Issotorna extremamente complexa a anlise do desenvolvimento infantil e peno centro dessa anlise a questo da educao, pois tal desenvolvimen-to fruto do processo educativo. Nos limites deste artigo, no poderemosextrair todas as implicaes dessa concepo, mas apresentaremos, noprximo item, a ttulo de exemplificao dessas implicaes, uma breveanlise da questo do saber na educao escolar.

    A dialtica do pensamento como reflexo da realidade objetiva e aquesto do saber na educao escolar

    No livro Pedagogia histrico-cr tica: primeiras aproximaes,Dermeval Saviani expe que a tarefa dessa pedagogia em relao educao escolar implica:

    a) Identificao das formas mais desenvolvidas em que se ex-pressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendoas condies de sua produo e compreendendo as suas princi-pais manifestaes, bem como as tendncias atuais de transfor-mao; b) Converso do saber objetivo em saber escolar de modoa torn-lo assimilvel pelos alunos no espao e tempo escolares;c) Provimento dos meios necessrios para que os alunos no ape-nas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreen-dam o processo de sua produo bem como as tendncias de suatransformao. (Saviani 1997, p. 14)

    Nosso entendimento o de que a psicologia vigotskiana forneceapoio a essa formulao de Saviani acerca da tarefa da pedagogia hist-rico-crtica no tocante educao escolar. A anlise que apresentamos nositens anteriores deste artigo procurou evidenciar as relaes entre adialtica em Vigotski e em Marx e acreditamos ter mostrado que tanto Marxcomo Vigotski no s defendiam que o saber objetivo, isto , que ele re-flete a realidade objetivamente existente, como tambm defendiam queexiste um processo de desenvolvimento do saber, o que resulta na exis-tncia de formas mais evoludas do saber. Por fim, ficou evidente que tan-to para Marx como para Vigotski, as formas mais desenvolvidas devem ser

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    o ponto de partida para a compreenso das formas menos desenvolvidas.Assim como a concepo pedaggica de Dermeval Saviani, tambm apsicologia vigotskiana apoia-se no mtodo dialtico de Marx, em cujo m-bito no h margem nem para o evolucionismo ingnuo (seja no plano dahistria da organizao social humana, seja no plano da histria do co-nhecimento), nem para o relativismo que nega a existncia de formas maisdesenvolvidas de vida social e de conhecimento, nem, finalmente, para osubjetivismo que nega o conhecimento enquanto apropriao da realida-de objetiva pelo pensamento. Talvez no seja demais explicitar que ao res-saltar esses aspectos da epistemologia de Marx, da psicologia de Vigotskie da pedagogia de Saviani, estamos intencionalmente nos contrapondo tnica dominante nos iderios pedaggicos contemporneos, que conce-bem o processo educativo como um processo de interao entre signifi-cados subjetivos e individuais em oposio transmisso de um saberobjetivo socialmente construdo e que condenam como autoritria,etnocntrica, falocntrica e racista a defesa de que existam saberes maisdesenvolvidos, que passaram a ter validade universal para o gnero hu-mano e que devam ser transmitidos pela escola.

    A ttulo tanto de concluso deste artigo como de incentivo ao de-bate sobre essa questo, analisaremos algumas consideraes deVigotski acerca das relaes entre pensamento e realidade objetiva.

    No volume IV das Obras escolhidas, ao analisar O desenvolvi-mento das funes psquicas superiores na idade de transio8, Vigotskiaborda, a certa altura, o princpio do pensamento como reflexo da reali-dade objetiva, mostrando que um equvoco pensar que esse princpioimplica em passividade do sujeito perante essa realidade:

    Quando se estuda o reflexo, sem consider-lo em movimento, podedizer-se que se uma ou outra operao, por exemplo, a linguagemou a conscincia, reflete algum processo que se desenvolve obje-tivamente, neste caso a linguagem no pode cumprir nenhuma fun-o essencial, j que o reflexo em um espelho no pode modificaro destino do objeto refletido. Porm se tomamos um fenmeno emdesenvolvimento, veremos que graas ao reflexo dos nexos obje-tivos e, em particular, ao autoreflexo da prtica humana no pensa-mento verbal do ser humano, surge sua autoconscincia e suapossibilidade de dirigir conscientemente suas aes. A conscin-cia, em geral, reflete a existncia. Esta a tese de todo o materia-lismo (V. I. Lnine, Obras completas, t. 18, p. 343, edio russa).

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    O domnio da natureza que se revela na prtica da humanidade, o resultado do reflexo objetivamente fiel dos fenmenos e proces-sos da natureza na mente humana, e demonstra que esse reflexo(no marco da prtica) uma verdade objetiva, absoluta, eterna(ibidem, p. 198). (Vygotsky 1996b, p. 164)

    Essas citaes que Vigotski faz de Lnine se encontram, comonos informado pelo prprio Vigotski, no tomo 18 das Obras Comple-tas em russo, sendo portanto citaes extradas do livro Materialismoe empiriocrit icismo: notas crt icas sobre uma fi losofia reacionria(Lnine 1982). Consideramos duplamente interessante citar essa pas-sagem de Vigotski. Primeiro porque nela Vigotski mostra que, ao con-trrio do que afirmam os crticos do princpio do conhecimento comoreflexo da realidade objetiva, esse reflexo fundamental para que oindivduo se torne sujeito de suas aes e para a construo de suapersonalidade (lembramos que se trata de um texto no qual Vigotskiaborda o perodo da adolescncia e de um momento do texto no qualo psiclogo sovitico focaliza o desenvolvimento da capacidade deautocontrole). O outro motivo o fato de Vigotski estar citando umaobra de Lnine que, segundo alguns marxistas ocidentais, defende-ria uma teoria do conhecimento no dialtica, resvalando para umaepistemologia mecanicista e positivista. Assinalamos que vemos a ne-cessidade de ser retomado o estudo desse livro, pois tais crticas nosparecem fortemente influenciadas por um esprito ps-moderno queacaba por negar a luta entre o idealismo e o materialismo. Note-se quetodo o livro de Lnine foi escrito para mostrar que as tentativas de seencontrar uma terceira via ao materialismo e ao idealismo, bem comoas tentativas de se decretar como superada a luta pelo materialismoe contra o idealismo, acabam resultando em defesas disfaradas deposies idealistas e solipsistas. Esse o caso das concepes deErnest Mach (1838-1916) criticadas por Lnine, como tambm ocaso do pragmatismo, em suas vrias vertentes.

    O trecho citado, em Vigotski, no deixa margem para dvidasquanto ao fato deste autor adotar o princpio do conhecimento en-quanto reflexo, e que isso no significa, de modo algum, que Vigotskiadota uma concepo do pensamento como algo passivo perante arealidade objetiva, nela includa a ao do prprio sujeito pensante.Ao assumir o princpio do reflexo, Vigotski est assumindo a objetivi-dade do conhecimento. Assim, podemos afirmar que a psicologia

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    vigotskiana d total respaldo a uma pedagogia na qual a escola devater como papel central possibilitar a apropriao do conhecimentoobjetivo pelos alunos.

    Como vimos no texto de Marx, o reflexo da realidade objetiva nopensamento, isto , a apropriao do concreto pelo pensamento se dpela mediao das abstraes, pela mediao dos conceitos mais abstra-tos. O que aparentemente seria um afastamento da realidade concreta ,na verdade, o caminho para o conhecimento cada vez mais profundo dosprocessos essenciais da realidade objetiva. Vigotski via no desenvolvi-mento desse tipo de pensamento um dos momentos essenciais da passa-gem da infncia adolescncia, por meio da formao do pensamentopor conceitos.

    Vigotski conhecia Os cadernos sobre a dialtica de Hegel, nosquais Lnine fez suas anotaes de estudo da filosofia hegeliana. Nes-sas anotaes, Lnine abordou a questo da abstrao e dos concei-tos como processo de maior domnio da realidade pelo pensamento:

    No fundo, Hegel tem toda a razo contra Kant. Ao elevar-se doconcreto ao abstrato o pensamento no se afasta se ver-dadeiro (N.B.) (e Kant, como todos os filsofos, fala do pensa-mento verdadeiro) da verdade, pois aproxima-se dela. Asabstraes de matria e de lei natural, a abstrao de valor etc.,numa palavra, todas as abstraes cientficas (justas, srias eno arbitrrias), refletem mais profundamente, mais exatamentee mais completamente a Natureza. Da intuio viva ao pensa-mento abstrato e deste prtica: eis o caminho dialtico doconhecimento do verdadeiro, do conhecimento da realidadeobjetiva. (Lnine 1975, p. 95, as observaes entre parntesesconstam do original)

    Mais adiante, Lnine volta questo da importncia da abstrao edos conceitos como apropriao da realidade objetiva pelo pensamento:

    A formao dos conceitos (abstratos) e das operaes comeles implica j a representao, a certeza, a conscincia dasleis objetivas e da conexo universal. Desligar a causalidadedesta conexo absurdo. Impossvel negar a objetividade dos

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    conceitos, a objetividade do universal no particular e no sin-gular. Hegel estudou, portanto, muito mais profundamente doque Kant e outros, o reflexo dos movimentos do mundo obje-tivo no movimento dos conceitos. Do mesmo modo que a sim-ples forma do valor, o ato isolado da troca de dada mercadoriapor outra abarca j, numa forma no evoluda, todas as con-tradies fundamentais do capitalismo, assim como a maissimples generalizao, a primeira e mais simples formao dosconceitos (opinies, silogismos, etc.), significa o conhecimentocada vez mais profundo, pelo homem, do encadeamento uni-versal objetivo. aqui que se deve procurar o sentido verda-deiro, a significao e o papel da lgica de Hegel. (Lnine 1975,pp. 103-104)

    No texto O desenvolvimento das funes psquicas superioresna idade de transio, Vigotski cita o trecho acima em apoio sua tesede que a passagem ao pensamento por conceitos o passo decisivo,na adolescncia, para o desenvolvimento da personalidade e da con-cepo de mundo do indivduo (cf. Vygotsky 1996b, p. 198).

    Nessa concepo vigotskiana do desenvolvimento da persona-lidade atravs do conhecimento mais profundo da realidade objetiva,includas nesta as aes realizadas pelos seres humanos e pelo prprioindivduo em desenvolvimento, evidencia-se a importncia da educaoescolar, da transmisso do saber objetivo pelo trabalho educativo naescola. Ao conseguir que o indivduo se aproprie desse saber, conver-tendo-o em rgo de sua individualidade (segundo uma expresso deMarx), o trabalho educativo estar possibilitando que o indivduo possair alm dos conceitos cotidianos, possa ter esses conceitos superadospor incorporao pelos conceitos cientficos e assim possa conhecer deforma mais concreta, pela mediao das abstraes, a realidade da qualele parte9.

    Esse processo indispensvel ao desenvolvimento da individua-lidade para-si, tal como a conceituamos no livro resultante de nossa tesede doutorado (Duarte 1993). E Vigotski tinha bastante clareza quanto importncia da passagem do em si ao para si no desenvolvimento do serhumano, isto , no processo que vai da infncia idade adulta. Isso por-que Vigotski tinha clareza quanto ao ponto de chegada do processo dedesenvolvimento, tinha clareza de que a anatomia do homem a chaveda anatomia do macaco:

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    A frase de J. J. Rousseau referente ao perodo de maturao sexual,de que o homem nasce duas vezes, primeiro para existir e depoispara continuar a espcie, pode aplicar-se tambm ao desenvolvimentopsicolgico e cultural do adolescente. To somente ento, ao chegara esse ponto de viragem, comea o adolescente a prosseguir a vidada humanidade, a vida do gnero humano. Para expressar melhor adiferena entre a criana e o adolescente utilizaremos a tese de Hegelsobre a coisa em si e a coisa para si. Ele dizia que todas as coisasexistem no comeo em si, mas com isto a questo no se esgota eno processo de desenvolvimento a coisa se converte em coisa parasi. O homem, dizia Hegel, em si uma criana cuja tarefa no con-siste em permanecer no abstrato e incompleto em si, mas em sertambm para si, isto , converter-se em um ser livre e racional. Poisbem, essa transformao da criana do ser humano em si em ado-lescente o ser humano para si configura o contedo principal detoda a crise da idade de transio. (Vygotsky, 1996b, p. 200)

    Essa passagem do ser humano em ser para si constitui, segundonosso entendimento, a expresso maior da concepo do homem comoum ser livre e universal contida na perspectiva de Marx acerca da socie-dade comunista.

    Notas

    1. Vigotski 1991a, p. 391. Trata-se do texto O significado histrico da crise dapsicologia: uma investigao psicolgica. Utilizaremos a edio em espanhol,publicada no primeiro volume das Obras escolhidas desse autor. Esse textofoi editado em portugus numa coletnea intitulada Teoria e mtodo em psi-cologia (Vigotski, 1996a). Entretanto, no empregaremos aqui a edio emportugus porque, ao compar-la com o texto em espanhol, este pareceu-nosmais condizente com as idias de Vigotski.

    2. Na edio em portugus o final desse pargrafo fica sem sentido pois estassim escrito: o mesmo que o cristianismo sem Cristo ou o budismo semAl. (Vigotski, 1996a, p. 257)

    3. Na edio em portugus o sentido do raciocnio de Vigotski distorcido, pois l-se o seguinte: necessrio conquist-la para o marxismo, estud-la empregandoos meios da verdadeira metodologia. Ora, parece-nos muito mais condizentecom o raciocnio de Vigotski que deva ser conquistado pelo marxismo o incons-ciente, isto , o objeto da psicanlise e no a prpria psicanlise.

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    4. Na edio em portugus (Vigotski 1996a, p. 417), essa frase inteira foi su-primida! Entendemos que falhas de digitao e reviso podem ocorrer. Masa ausncia de uma frase to decisiva no aceitvel.

    5. Vigotski (1991, p. 257-406).6. Existe uma edio em portugus de Psicologia da arte, (Vigotski 1999), mas

    a edio em espanhol mais completa por incluir um texto de Vigotskiintitulado A tragdia de Hamlet, prncipe da Dinamarca, de W. Shakespearee por apresentar um prlogo escrito por Leontiev, tambm excludo da edi-o em portugus.

    7. Sobre as distores do pensamento de Vigotski operadas pela traduo re-sumida do livro Pensamento e linguagem existente em portugus, veja-se nos-so livro Vigotski e o Aprender a Aprender: crtica s apropriaes neoliberaise ps-modernas da teoria vigotskiana (Duarte 2000).

    8. Vigotski (1996b, p.43): Quando Vigotski escrevia seu livro, muitos auto-res qualificavam como transio toda a etapa da adolescncia, utilizandoesses termos como equivalentes, subentendendo a passagem da infncia idade adulta. Vigotski compar tilhava esse ponto de vista. (nota da edi-o russa).

    9. Analisamos o papel da educao escolar enquanto mediao, na forma-o dos indivduos entre a esfera da vida cotidiana e as esferas no-co-tidianas da prtica social (cincia, arte, filosofia e poltica) em nosso livroEducao escolar, teoria do cotidiano e a Escola de Vigotski (Duarte 1996).

    Encaminhado para publicao em maio de 2000

    The man anatomy is the key to the monkey anatomy: Thedialectics in Vigotski and in Marx and the issue about

    objective knowledge in school education.ABSTRACT: Vygotsky, in his manuscr ipt Concrete HumanPsychology, asserts that the relationship ontogeny-philogeny incultural development is different from the same relationship in organicdevelopment: the human fetus develops itself without an interectionwith a mature biotype, whereas in cultural development this interactionis the most important force for all development. Thus, this articleanalysis the relationship between the dialectics present in Vygotskyand in Marx, substantiated in methodological and epistemologicalreflexion done by Marx on the text whereby he asserts that thehuman anatomy is the key for monkey anatomy. The conclusion ofthis article defends that Vygotskys psychology supports a pedagogywhich one appreciates the conduction of children to learn the highestobjective knowledge produce by all mankind.

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