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A Arte de escutar os Doentes: A Serenidade Há que escutar os doentes. Representam a seriedade, a indigência, a precariedade do nosso corpo, a incerteza do nosso futuro, a insustentável leveza do nosso ser. Há que escutar os doentes porque são a mais enfática manifestação da nossa pobreza ontológica. Mostram com clareza que não somos auto- suficientes; não são eles nem somos nós, naturalmente. Podemos acreditar que somos antes de cairmos doentes mas, quando irrompe sofrimento, o mito da auto-suficiência desfaz-se em mil pedaços. Os doentes vêem o mundo com outros olhos, percebem o tempo de outra maneira, captam a realidade com um sexto sentido que só é ativado quando se passa por situações limite. É precisamente por esse motivo que importa escutá-los, porque nos mostram a outra face da realidade, que não é menos autêntica do que aquela que estamos habituados a observar. A presença de um doente é inquietante. Obriga-nos a pensar em como vivemos, exige que consideremos o modo como dotamos de sentido as nossas atividades, o que vale a pena fazer e para onde vale a pena ir. O doente é a encarnação do limite e, ao escutá-lo, reconhecemos implicitamente os nossos limites. Escutar os doentes inspira-nos respeito e inclusive temor. Também nos angustia vê-los, aproximarmo-nos e tocar os seus corpos lacerados e doridos. Sentimos uma instintiva repugnância diante deles, uma reação negativa em relação a tudo aquilo que denota fragilidade e incerteza. O doente vive um episódio biográfico que a pessoa

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A Arte de escutar os Doentes: A Serenidade

H que escutar os doentes. Representam a seriedade, a indigncia, a precariedade do nosso corpo, a incerteza do nosso futuro, a insustentvel leveza do nosso ser.

H que escutar os doentes porque so a mais enftica manifestao da nossa pobreza ontolgica. Mostram com clareza que no somos auto-suficientes; no so eles nem somos ns, naturalmente. Podemos acreditar que somos antes de cairmos doentes mas, quando irrompe sofrimento, o mito da auto-suficincia desfaz-se em mil pedaos.

Os doentes vem o mundo com outros olhos, percebem o tempo de outra maneira, captam a realidade com um sexto sentido que s ativado quando se passa por situaes limite. precisamente por esse motivo que importa escut-los, porque nos mostram a outra face da realidade, que no menos autntica do que aquela que estamos habituados a observar.

A presena de um doente inquietante. Obriga-nos a pensar em como vivemos, exige que consideremos o modo como dotamos de sentido as nossas atividades, o que vale a pena fazer e para onde vale a pena ir. O doente a encarnao do limite e, ao escut-lo, reconhecemos implicitamente os nossos limites. Escutar os doentes inspira-nos respeito e inclusive temor. Tambm nos angustia v-los, aproximarmo-nos e tocar os seus corpos lacerados e doridos. Sentimos uma instintiva repugnncia diante deles, uma reao negativa em relao a tudo aquilo que denota fragilidade e incerteza. O doente vive um episdio biogrfico que a pessoa

s ainda desconhece. Est a descrever um amargo e indesejado captulo da vida, mas que faz parte dessa mesma vida, na ntegra. depositrio de uma experincia que no podemos ignorar. Ainda assim, preferimos ignor-la, viver do mito de que tudo esta sob controlo e de que isto no

pode acontecer comigo. No obstante, a possibilidade de ficar doente no estranha a um ser frgil e vulnervel como ns. uma das possibilidades com que mais podemos contar. por isso que devemos escutar os doentes e aprender com a sua serenidade, a sua pacincia, a sua fora de esprito. Escutar um doente grave que assumiu a sua enfermidade e que capaz de sorrir e de olhar o futuro faz-nos sentir tristemente pequenos comparados com ele, porque a sua serenidade derruba-nos e leva-nos a tomar conscincia de como sobrevalorizamos determinadas subtilezas do nosso dia-a-dia. Ainda assim, no queremos escutar os doentes. Separamo-los do resto do mundo. Consignamo-los ao mbito hospitalar, com a desculpa de que a so bem atendidos. Delegamos os nossos cuidados nos profissionais, com a desculpa de que estes esto melhor preparados do que ns (o que provavelmente verdade). Escondemo-los das crianas e at dos adolescentes. Visitamo-los com relutncia, quase por compaixo, num furo da apertada agenda e, quando estamos na sua presena, no somos capazes de olh-los nos olhos nem sabemos o que dizer. Temos medo de nos vermos neles refletidos, de cheirar o aroma autntico da vida; deprime-nos descer do stimo cu e pr os ps no cho. E por isso escondemos os doentes atrs das cortinas. No conseguimos suportar ver os seus corpos doridos, partidos, trespassados pela dor. Evita-mos o seu contato o mais que podemos. Apesar disso, a sua chamada interpela-nos e, ao escut-los, apreendemos o valor da seriedade. Tomamos conscincia de que viver no um jogo, nem um passatempo; no uma comdia estpida, mas um drama no sentido mais nobre do termo.

Os doentes tm a autoridade moral para falar do lado obscuro da vida, da fragilidade da nossa condio, da impotncia perante o mal, o sofrimento, a solido, o isolamento. Eles so sbios. Representam a seriedade e nunca ser suficiente o tempo que destinamos a compreender as suas palavras. Apenas se os escutarmos entenderemos realmente quem somos e de que que somos feitos; entenderemos que a doena no uma estranha intrusa que afecta alguns, mas uma expresso da vulnerabilidade humana, qual todos estamos expostos. H circunstncias em que a nica atitude digna a seriedade. A seriedade uma exigncia tica, ligada responsabilidade, constncia e ao compromisso sem engano nem avareza. Algo que os pais sabem muito bem. Depois do nascimento do nosso primeiro filho, tornamo-nos mais srios. Isso no nos impede de rir, se for preciso, da nossa seriedade. Como diz o filsofo francs Vladimir Janklecvitch, no se trata de ser sublime; basta ser srio e fiel.

Os doentes mostram-nos a seriedade. Esta virtude refere-se atitude que preciso ter para com quem merece ateno. A atitude sria contrria de gozo. o seu plo oposto. srio aquele que no pode ser objeto de gozo, nem de piadas fora de tom. O srio assinala, em ltima instncia, os limites que separam o humor da frivolidade.

ANTNIO MANUEL VENDA, A arte de saber escutar, Ed. Guerra e Paz, Lisboa 2010, 129-132