A Arte de Esquecer

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A arte de esquecer Pôr os sentimentos de lado é permitir que a vida prossiga VAN MARTINS 17/09/2014 09h0 O livro mais triste que conheço sobre o amor se chama O legado de Eszter, do húngaro Sándor Márai. Quando o li, tive a sensação de que minha vida, como a da personagem, seria destruída pela esperança de um romance irrecuperável. Eszter espera pela visita do grande amor do passado, que a salvará de uma existência de solidão e vergonha. Eu esperava pelo retorno de uma mulher que nunca voltou. Lembro o livro, o período e a dor como partes de um mesmo corpo. A prosa límpida e hipnótica de Márai ligava a vida da mulher no início do século XX à minha, que se desenrolava às vésperas do século XXI. As personagens e as palavras dele deram àquele momento as cores de uma profunda melancolia, mas a tingiram, ao mesmo tempo, de uma estranha lucidez. Lembro-me de pensar, de forma um pouco dramática, que afundava de olhos abertos. Fui procurar ontem o livro na minha estante e descobri que não está mais lá. Sumiu, assim como o afeto inextinguível que eu sentia. Alguém levou meu livro embora, ou se esqueceu de devolvê-lo. O tempo dispôs silenciosamente da minha paixão. Diante disso, me ocorre que esquecer é uma benção – ou uma arte, a aprimorar meticulosamente ao longo da vida. Pôr pessoas e sentimentos de lado é permitir que a existência prossiga. Não há nada que eu gostaria tanto de ensinar aos outros e a mim mesmo como a capacidade de deixar sentimentos para trás. Olho ao redor e vejo gente encalhada como barcos na areia. Homens e mulheres. Esperam pelo passado, embora a vida se espraie em possibilidades à volta delas. Precisam de tempo para se recuperar, mas carecem de luz. Necessitam entender que a dor – embora inevitável – não constitui uma virtude, nem mesmo um caminho. Tem apenas ser superada, para que o futuro aconteça. A Eszter de Márai vive encarcerada no universo moral e jurídico legado a ela pelo século XIX. Mulher, seu destino era ligado às decisões de um homem, Lajos. Ela espera porque não tem meios de agir. Ser corrompida pela esperança e pelo perdão é o que lhe resta. Sua posição na sociedade consiste numa espécie inexorável de destino. Não há, no mundo em que vivemos, uma jaula social correspondente a essa. Fazemos nossas escolhas no interior de amplos limites existenciais. Somos inteiramente responsáveis por nossos sentimentos, ou ao menos pelas atitudes que tomamos diante deles. Se decidimos ficar e esperar, se

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A arte de esquecerPr os sentimentos de lado permitir que a vida prossigaVAN MARTINS17/09/2014 09h0O livro mais triste que conheo sobre o amor se chama O legado de Eszter, do hngaro Sndor Mrai. Quando o li, tive a sensao de que minha vida, como a da personagem, seria destruda pela esperana de um romance irrecupervel. Eszter espera pela visita do grande amor do passado, que a salvar de uma existncia de solido e vergonha. Eu esperava pelo retorno de uma mulher que nunca voltou.Lembro o livro, o perodo e a dor como partes de um mesmo corpo. A prosa lmpida e hipntica de Mrai ligava a vida da mulher no incio do sculo XX minha, que se desenrolava s vsperas do sculo XXI. As personagens e as palavras dele deram quele momento as cores de uma profunda melancolia, mas a tingiram, ao mesmo tempo, de uma estranha lucidez. Lembro-me de pensar, de forma um pouco dramtica, que afundava de olhos abertos.Fui procurar ontem o livro na minha estante e descobri que no est mais l. Sumiu, assim como o afeto inextinguvel que eu sentia. Algum levou meu livro embora, ou se esqueceu de devolv-lo. O tempo disps silenciosamente da minha paixo. Diante disso, me ocorre que esquecer uma beno ou uma arte, a aprimorar meticulosamente ao longo da vida. Pr pessoas e sentimentos de lado permitir que a existncia prossiga.No h nada que eu gostaria tanto de ensinar aos outros e a mim mesmo como a capacidade de deixar sentimentos para trs. Olho ao redor e vejo gente encalhada como barcos na areia. Homens e mulheres. Esperam pelo passado, embora a vida se espraie em possibilidades volta delas. Precisam de tempo para se recuperar, mas carecem de luz. Necessitam entender que a dor embora inevitvel no constitui uma virtude, nem mesmo um caminho. Tem apenas ser superada, para que o futuro acontea.A Eszter de Mrai vive encarcerada no universo moral e jurdico legado a ela pelo sculo XIX. Mulher, seu destino era ligado s decises de um homem, Lajos. Ela espera porque no tem meios de agir. Ser corrompida pela esperana e pelo perdo o que lhe resta. Sua posio na sociedade consiste numa espcie inexorvel de destino.No h, no mundo em que vivemos, uma jaula social correspondente a essa. Fazemos nossas escolhas no interior de amplos limites existenciais. Somos inteiramente responsveis por nossos sentimentos, ou ao menos pelas atitudes que tomamos diante deles. Se decidimos ficar e esperar, se permitimos nos tornar o objeto passivo das manipulaes ou indecises alheias, no h um Lajos a quem acusar.Ainda assim, construmos prises mentais nossa volta. Prisioneiros de uma noo ridcula de amor do sculo XIX, quando ainda no havia liberdade pessoal, imaginamos que o amor nico e eterno e que perd-lo equivale a perder a vida, como um trem que passasse uma nica vez numa estao deserta. Nada mais longe da realidade. Nossa vida se abre desde o incio em mltiplas possibilidades e se desenvolve em companhia de inmeras pessoas. Alguns tero papis importantes e duradouros. Outros sero passagens breves e luminosas, como uma tarde de vero. Todos, com uma ou outra exceo monumental, veremos partir. Ns mesmos iremos embora em incontveis ocasies. Nos restar o desapego, como antes s restava a Eszter a resignao.Por isso, a arte de esquecer essencial. Ela me parece a mais moderna das sabedorias sentimentais, aquela que mais permite mover-se no mundo como ele , no como nos fizeram crer que ele seria. Nesse mundo haver sexo, haver paixo e, s vezes, haver amor. provvel que haja desencontro e ruptura e que sejamos forados a comear de novo, sozinhos. Esse o ciclo da vida como ela se apresenta no sculo XXI. Nele, deixar para trs e esquecer to essencial quanto reconhecer e se vincular. Consiste no nosso legado sentimental. Ele comeou a ser elaborado por tipos rebeldes nos anos 60 e continua a ser refeito hoje em dia. Nada tem a ver com o legado de Eszter, embora este ainda nos ensine e nos comova.

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