A ARTETERAPIA NA EDUCAÇÃO: UM CAMINHO DE … RIBEIRO TUPINAMBA.pdf · Eu sou aquela mulher A quem...
Transcript of A ARTETERAPIA NA EDUCAÇÃO: UM CAMINHO DE … RIBEIRO TUPINAMBA.pdf · Eu sou aquela mulher A quem...
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO
INSTITUTO DE PESQUISAS PEDAGÓGICAS
DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS
PROJETO “A VEZ DO MESTRE”
A ARTETERAPIA NA EDUCAÇÃO:
UM CAMINHO DE TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA
POR: DOMINIQUE RIBEIRO TUPINAMBÁ
TURMA: 38
ORIENTADOR: PROF. NILSON GUEDES DE FREITAS
RIO DE JANEIRO
MARÇO/2003
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO
INSTITUTO DE PESQUISAS PEDAGÓGICAS
DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS
PROJETO “A VEZ DO MESTRE”
A ARTETERAPIA NA EDUCAÇÃO:
UM CAMINHO DE TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA
DOMINIQUE RIBEIRO TUPINAMBÁ
Trabalho monográfico apresentado como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Especialista em Arteterapia em Educação e
Saúde.
RIO DE JANEIRO
MARÇO/2003
AGRADECIMENTOS
À Professora Moema Quintanilha, pela delicadeza e auxílio
inestimáveis;
Ao Professor Nílson Guedes de Freitas, pela orientação segura;
À amiga Eliane Bezerra, sem cujo apoio nada seria feito;
À Lúcia, Diretora da Escola Municipal Camilo Castelo Branco,
que dá asas a todas as minhas Artes;
Às colegas do curso de Arteterapia, especialmente Lúcia,
Patrícia, Rosa e Dulcinéia, pelas saudáveis gargalhadas e pelo
espírito de equipe;
À Professora Ana Paula Lettieri, por tornar os finais de tarde de
sábado, bons.
DEDICATÓRIA
À minha avó, Antonia Ribeiro, pelas cantigas e longas histórias;
Ao meu pai, Tarcísio Tupinambá, por me transmitir de maneira
tão intensa a consciência social;
Aos meus filhos Rodrigo, Pablo e Leila Tupinambá, pela alegria
e gozações que me tiram do sério;
Ao meu namorado João Rodrigues, por seu amor e apoio;
Aos meus alunos e alunas da Escola Municipal Camilo Castelo
Branco, que com sua vitalidade despertam e estimulam em mim
o desejo de criar e inventar.
Eu sou aquela mulher
A quem o tempo muito
ensinou
Ensinou a amar a vida
Não desistir da luta
E ser otimista.
Creio numa força imanente
Que vai ligando a Família
Humana
Numa corrente luminosa
De Fraternidade Universal.
Creio nos valores humanos
E na superação dos erros
E angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
Generosidade e idealismo.
Creio numa profilaxia futura
Dos vícios e violências do
presente.
Cora Coralina – “Eu Creio”.
RESUMO
Este trabalho propõe a utilização da Arteterapia como prática
pedagógica no Ensino Fundamental, visando colaborar com o
processo ensino - aprendizagem para o desenvolvimento
integral do aluno, pela conjugação de seus aspectos cognitivo
e psíquico através da criatividade. Espera contribuir para a
concretização de uma Educação diferenciada na sociedade
pós-moderna, que forme pessoas mais sensíveis, humanas e
conscientes de seus direitos e deveres perante si próprias, a
sociedade em que vivem e o Cosmos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 7
CAPÍTULO I – A ESCOLA TRADICIONAL: UM MODELO DESGASTADO.. 10
1.1 A História no Currículo do Ensino Fundamental ...................................10
1.2 O Perfil Atual da Escola Pública ............................................................. 12
1.3 O Que Isso Tem a Ver Comigo? ..............................................................16
CAPÍTULO II – A EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA ............... 18
2.1 O Racionalismo e Sua Influência Na Educação .................................... 18
2.2 Buscando Um Novo Lugar: A Educação Numa Sociedade Criativa ... 19
2.3 A Arte Como Resgate Da Identidade ...................................................... 22
CAPÍTULO III – A ARTETERAPIA COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA:
UM CAMINHO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL ........................................ 26
3.1 Conceitos e Objetivos da Arteterapia ................................................... 26
3.2 A Arteterapia como Prática Pedagógica ............................................... 29
3.2.1 A Teoria .................................................................................................. 29
3.2.2 A Prática ................................................................................................ 31
3.3 Uma Vivência Enriquecedora ................................................................. 36
CONCLUSÃO .................................................................................................. 39
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 41
ANEXOS .......................................................................................................... 44
Anexo 1: Matérias do Jornal "O Globo" ...................................................... 46
Anexo 2: Trabalhos dos alunos da Escola Municipal Camilo Castelo
Branco (2002) ................................................................................................. 49
INTRODUÇÃO
Como professor crítico, sou um aventureiro responsável, predisposto à mudança, à aceitação do diferente. Nada do que experimentei em minha atividade docente deve necessariamente repetir-se. Repito, porém, como inevitável, a franquia de mim mesmo, radical, diante dos outros e do mundo. Minha franquia [...] é a maneira radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento. (FREIRE, 1999, p. 55).
O interesse pelo ser humano, suas ações e motivações, leva as
pessoas a estudarem História. Esse estudo dá a consciência de que se vive
numa sociedade injusta e desigual, fazendo com que se considerasse durante
vários anos de que as lutas sociais revolucionárias são o caminho necessário
para a transformação social.
O profissional do Magistério ao iniciar suas primeiras experiências
profissionais, passa a se interessar mais pela Psicologia no intuito de
compreender melhor o que se passa com seus alunos, pois essa profissão tem
se deparado com inúmeros problemas sociais e individuais.
Compreende-se que a Escola muitas vezes representa uma barreira
que impede a livre expressão, pois lida com regras arcaicas e é despreparada
para a aceitação do universo heterogêneo e plural de seus alunos, detentores
de culturas e saberes diversos.
A convivência com adolescentes e jovens, normalmente
espontâneos e criativos, foi mudando a maneira que esses profissionais
pensam sobre as mudanças sociais.
8
Um caminho de interiorização cresceu dentro deles, ao mesmo
tempo em que iam explorando novas didáticas e percebendo as sutilezas do
educar. Buscando compreender o Todo além das partes, integraram-se numa
visão holística, que engloba Natureza, sociedade e indivíduos. Porém, este não
foi um caminho absolutamente linear. Em meio a discussões e acordos, foram
se formando as linhas mestras de atuação, sustentadas pelo diálogo constante
e a busca do entendimento do Outro, da adolescente que um dia se foi.
Compreender os interesses desses rapazes e moças, seus sonhos, suas
certezas e incertezas, aceitar e valorizar seus saberes, tão mais vastos do que
supõe a Escola..., tudo levou-os à convicção de que só uma prática
pedagógica humanista poderia realizar seus objetivos e o sonho de
transformação social, que se poderia realizar através deles.
O instrumento usado no estabelecimento do contato com os alunos
tem sido a Arte. Através dela, os profissionais da educação se comunicam com
eles, porque, seduzidos pelo prazer de criar e recriar, apreendem os conceitos
e conteúdos que se tornam necessários para o conhecimento da História e
para a formação de um espírito crítico e reflexivo que os instrumentaliza para
viver em sociedade.
Justifica-se este trabalho por considerar absolutamente necessária
uma transformação profunda na estrutura pedagógica da Escola, no sentido de
acompanhar as modificações sócio-culturais por que passa a sociedade
brasileira, procurando formar jovens com uma visão mais crítica da sociedade e
que tenham consciência de sua identidade e de sua capacidade de
transformação, tanto individual quanto coletiva.
No capítulo 1 será analisado o atual modelo da Escola, tradicional e
impotente para atender às demandas culturais e existenciais dos alunos e da
sociedade em que se vive. Os autores consultados são os educadores Paulo
Freire, Maria Tereza Nidelcoff e Gilberto Dimenstein; o historiador Marc Bloch,
9
os sociólogos Tzvetan Todorov e Domenico de Masi e os psicomotricistas
Audir Bastos Filho e Cláudia Sá.
No capítulo 2 serão propostas mudanças no paradigma da Escola,
para que se adapte a uma nova sociedade que emerge, pós-moderna, onde a
previsão e a criatividade serão as premissas básicas, e para qual deve-se
preparar os jovens. Para esse assunto, teve-se o suporte teórico do físico
Fritjof Capra, do psicoterapeuta Luiz Paulo Grinberg, do psicólogo Howard
Gardner, do filósofo Leonardo Boff, novamente do sociólogo Domenico de
Masi, do educador Cláudio Saiani, do psiquiatra Jung, do educador Gilberto
Dimenstein, das professoras e artistas Vânia Osório e Vânia Granja, da
arteterapeuta Ângela Philippini e dos filósofos Adorno e Horkheimer.
No capítulo 3 destacar-se-á a importância da Arteterapia para o
desenvolvimento integral desses jovens e as possibilidades de sua utilização
dentro das escolas, ajudando a criar espaços democráticos de construção de
uma cidadania verdadeira, que não exista somente "no papel". Para esse
capítulo consultou-se os textos dos psiquiatras Pedro Rocha Lima, Winnicot,
Murray Stein; dos professores de Desenho e Pintura Eduardo Luppi e Vânia
Granja; do musicoterapeuta e arteterapeuta Marco Antonio Carvalho Santos;
do artista plástico e pedagogo Umberto França; do historiador C. Byington; da
arteterapeuta Ângela Philippini; e do escritor R. Garaudy.
Sabe-se que a Arte é uma atividade espontânea do Homem e está
presente em seu cotidiano de diversas maneiras. Ela tem sido usada desde a
Antigüidade com fins terapêuticos, e desde essa época era considerada como
colaboradora na construção de seres mais criativos e saudáveis. Por isso,
buscou-se integrá-la às "disciplinas" escolares, contestando sua utilização
como atividade estanque, restrita a uma ou duas aulas semanais. Dessa
maneira buscou-se dar um sentido mais amplo à educação escolar e, através
dela, formar indivíduos que possam utilizar seu potencial para criar mais
felicidade.
10
CAPÍTULO I
A EDUCAÇÃO TRADICIONAL: UM MODELO DESGASTADO
1.1 A História no Currículo do Ensino Fundamental
O ensino da História baseou-se, em décadas passadas, na ênfase
em fatos, datas e grandes personagens, caracterizando-se como uma história
narrativa. Como é dito por Maria Teresa Nidelcoff:
[...] Muitas maneiras erradas de dar (ensinar) a História não se tornam apenas uma sucessão angustiante e inútil de nomes e datas, mas chegam a se tornar inibitórias para um enfoque posterior, mais inteligente dos fatos. [...] Os alunos que se prendem desde crianças a uma certa maneira de ver os acontecimentos ficam sem entusiasmo e interesse para uma reflexão posterior, mais profunda, sobre os fatos, quando estão em condição de faze-lo [...] (NIDELCOFF, 1984, p. 70).
O objetivo desse ensino era formar bons repetidores, hábeis na
capacidade de decorar páginas inteiras de livros. Valorizava-se
demasiadamente o conteúdo dos livros, sem abrir possibilidades para
questionamentos ou outros saberes.
Nessa História os heróis foram sempre os vencedores, líderes
militares ou nobres, e os movimentos populares, ignorados ou relegados a
fatos de menor importância. Não se valorizava a história do cotidiano, dos
anônimos ou de grupos populares menos favorecidos, assim como de suas
culturas. Porém, a partir da década de sessenta, com a corrente historiográfica
conhecida como "Nova História", a ciência histórica renovou-se. Isso porque:
[...] hoje se vê claramente que, entre os diversos aspectos da vida de uma sociedade existe uma tal interligação, que constituem um todo... [...] não é possível que os alunos compreendam a vida dos povos do passado sem ver as sociedades das diferentes épocas de uma maneira integral: como viviam
11
os homens, como trabalhavam, como se alimentavam; conhecer as bases de sua economia, as classes sociais, a mentalidade (refletida no testemunho da arte e dos costumes), a religião, a arte, a ciência. (NILDECOFF, 1984, p. 72).
Também a Escola Pública, lentamente, buscou adaptar-se a essa
nova visão, mais política e humanizada. A Secretaria Municipal de Educação,
responsável pelo Ensino Fundamental no Rio de Janeiro, apresentou uma nova
proposta de trabalho pedagógico no projeto MULTIEDUCAÇÃO, a partir de
1996. Desde então ele passou a determinar as diretrizes pedagógicas para
todo o 1º grau da Rede Municipal.
O objetivo maior do projeto Multieducação é o de:
[...] formar cidadãos através de uma escola democrática, que construa conhecimentos e valores numa perspectiva crítica e transformadora [...] e levar professores e demais agentes educacionais a ampliar as discussões pedagógicas visando a integração de múltiplas linguagens que educam e sintonizam todos com o tempo em que vivemos e que precisamos transformar (SME/RJ, 1996).
De acordo com os Princípios Educativos (Meio Ambiente, Trabalho,
Cultura e Linguagem) integrados aos núcleos conceituais (Identidade, Espaço,
Tempo e Transformação), elaborados pelo projeto, e citando o historiador Marc
Bloch, para quem "o espetáculo das atividades humanas que forma o objeto
particular da História", o projeto procura ampliar o objeto de estudo da História,
aproximando temas tradicionais e os atuais, que influem diretamente na vida
das pessoas.
Essa nova visão busca valorizar a história dos grupos sociais aos
quais pertencem os alunos e diminuir a distância entre a Escola elitista e o
aluno carente, procurando inseri-lo socialmente e ajudando a frear os índices
de repetência e evasão.
Particularmente sempre se defende uma visão crítica da História,
objetivando despertar reflexões acerca da realidade social e individual dos
alunos. O conhecimento dos fatos deve necessariamente estar acompanhado
12
de uma análise crítica, para não se correr o risco de formarmos alienados da
própria condição social. Procuramos relacionar os fatos ocorridos na vida do
aluno, de sua família, da comunidade onde mora, com a conjuntura maior da
cidade, do país e do mundo e integrar as "múltiplas linguagens" no sentido da
interdisciplinaridade. Essa história procura estar integrada à vida diária, para
que o aluno se perceba como agente de sua historicidade, consciente de seus
direitos e capacidades e não como um ser passivo. Dessa forma ele estará
caminhando em direção à sua individuação. Pois como bem resume o escritor
Tzvetan Todorov:
É preciso começar por dominar sua própria tradição: não existem caminhos que conduzam ao universal a não ser os que passam por um particular. O objetivo da educação humanista é, no entanto, mais ambicioso: formar espíritos abertos, tolerantes e críticos ao mesmo tempo. Para proceder ao necessário desenraizamento ou renúncia às ilusões egocêntricas e etnocêntricas devemos aprender [...] a confrontar nossas normas com as dos outros e descobrir a legitimidade destas últimas também [...]. É nisso que o estudo da história é precioso, assim como o de outras culturas, [...] para nos mostrar que existe mais de uma forma de ser humano. [...] nos interessamos por outros tempos e lugares não para julgá-los pelos nossos critérios de hoje, mas [...] para esclarecer o presente através do passado, o aqui pelo lá. (TODOROV, 1999, p. 63).
1.2 O Perfil Atual da Escola Pública
Os paradigmas da Educação brasileira estiveram por séculos
relacionados aos padrões europeus, como herança do nosso período colonial.
Desde o ensino jesuítico a Escola destinou-se ao ensino de uma elite, formada
pelos filhos dos grandes latifundiários.
Com o advento da sociedade de massas a Educação Popular se
expandiu, e passou a ser utilizada pelas classes dirigentes como formadora de
mão-de-obra industrial e de outros setores da economia. Devido ao seu modelo
tradicional e autoritário, calcava-se na reprodução das diferenças sociais,
através dos currículos e das relações de poder existentes dentro e fora da
Escola.
13
Nesse mesmo período, o educador Paulo Freire (1999) propôs um
método de educação a partir de uma nova visão: educar para a autonomia e
para a transformação social, respeitando o universo de conhecimento das
classes populares. Assim como ele, outros educadores brasileiros vão buscar
soluções para a desigualdade e as injustiças sociais através de uma educação
humanista. A ideologia da Escola Pública vem se modificando de acordo com
as necessidades do poder dominante, sendo, porém, influenciada por esses
educadores comprometidos com as causas sociais.
Gilberto Dimenstein, no livro "O Cidadão de Papel" (1994), se refere
à educação não somente como uma questão de cidadania, mas também tendo
relação direta com a produtividade e com a riqueza material de um país. Para
ele, a educação dos trabalhadores proporcionaria ao país menos desperdício,
aumento de produtividade e diminuição no custo de vida, e principalmente,
romperia o círculo vicioso da pobreza. E cita o exemplo de países que o
fizeram:
São muitos os países que progrediram porque investiram nas suas crianças. Quando as crianças cresceram, viraram trabalhadores qualificados e cientistas, por exemplo. Para começar, esses países investiram no ensino fundamental. Isso explica, em grande parte, o rápido desenvolvimento do Japão e de outras nações do leste da Ásia (DIMENSTEIN, 1994, p. 78).
Atualmente, a inserção das classes trabalhadoras num mundo
globalizado e pós-industrial * se constitui num desafio para as elites dirigentes,
especialmente dos países emergentes. No entanto, os recursos destinados
pelos governos brasileiros, até o presente momento, à Educação, são muito
poucos para que ocorra uma mudança profunda nesse sentido (ver Anexos).
Num quadro sócio-econômico marcado por extremos, tendo de um
lado o desemprego, baixos salários, alto custo de vida, falta de moradias, falta
* O termo é usado aqui como o redefiniu Domenico de Masi, sobre Alan Touraine: é a sociedade que tem necessidade e capacidade de projetar o próprio futuro, e é uma sociedade criativa, que tem um número grande de pessoas com cargos criativos, em laboratórios científicos e artísticos, etc. (MASI, 2000).
14
de melhores perspectivas de vida, etc., e do outro, uma pequena percentagem
da população detentora da maior parte da renda per capita do país,
caracterizando o subdesenvolvimento, a educação passa a ter por missão,
além das outras, abrir espaços sociais e neutralizar o poder paralelo da
criminalidade sobre os jovens.
Dentro desse contexto, pode-se dizer que a Escola Pública registra
as incoerências de um sistema excludente.
Ela reflete os problemas da sociedade, como a violência, a miséria e
a desestruturação familiar. Como resultado, apresenta altos índices de evasão
escolar, repetência e delinqüência (ver Anexos). E, como se sabe, ao
abandonar a escola a criança vai engrossar o contingente de mão-de-obra
despreparada e/ou criminosa (DIMENSTEIN,1994).
Para combater esses índices, as autoridades educacionais lançaram
o projeto Multieducação, baseado em pensadores como Paulo Freire, Vigotsky,
Freinet e Piaget. Embora com objetivos nobres, como "fazer uma escola
democrática", "construir a cidadania do aluno", "misturar linguagens", as
condições de trabalho são insuficientes para que o professor e demais agentes
educacionais possam atuar dentro da proposta sugerida. O número de alunos
dentro de sala de aula, em torno de quarenta, torna o trabalho extenuante,
dificultando o acompanhamento das atividades escolares e do desenvolvimento
de cada um.
Os livros escolares não mudaram em sua essência, salvo
modificações esparsas, e continuaram, em sua maioria, inadequados à faixa
etária e às condições sociais dos alunos.
Os textos de jornais, revistas ou livros paradidáticos, para serem
utilizados, precisam ser reproduzidos, mas as máquinas escolares estão
sempre estragadas, ou não existem.
15
Os baixos salários dos professores obrigam-nos a dar aulas entre
três até cinco colégios, perfazendo em torno de vinte turmas, algo como
setecentos e cinqüenta alunos. A qualidade de suas aulas tende a diminuir. É
claro que o cansaço e o stress de ensinar a alunos adolescentes com os mais
diversos problemas emocionais e sociais, como o alcoolismo da mãe, o irmão
na cadeia, a fome crônica, que apenas se ameniza com a merenda escolar,
têm levado os mestres a licenças médicas devido a vários problemas de saúde.
Trabalhando como educador, ocupa o lugar de pai ou mãe, e de psicólogo,
sem o ser. Como dizem Audir Bastos Filho e Cláudia M. F. de Sá:
[...] a escola está cada vez mais sendo transformada em lar. Escola é escola, lar é lar. Pai é pai. Mãe é mãe. [...] Professor é professor. Bem, este último é tudo e tem de tudo. Achamos até que é a única profissão que todos têm o título de: corte, costura, croché, etc. [...] Uma lástima (BASTOS FILHO, 2001, p. 14).
O professor se vê, ainda, na contingência de aceitar o sistema de
avaliação escolhido pelo projeto da Multieducação, que é o de conceituar os
alunos de maneira a que, praticamente, a simples presença em aula, muitas
vezes para se alimentar, lhe renda uma aprovação.
Magicamente, a repetência se resolve; os alunos seguem para a
próxima série sem saber regras elementares da língua portuguesa, por
exemplo. É claro que a teoria que propõe a não retenção do aluno na mesma
série não prevê tais condições de trabalho.
Essa prática de aprovação quase que sistemática desrespeita a lei
9.394/96, ou Lei de Diretrizes e Bases, que diz na seção III:
O Ensino Fundamental (...) terá por objetivo a formação básica do cidadão mediante: I – O desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. (BASTOS FILHO, 2001, p. 32).
A maquiagem no aproveitamento escolar possivelmente renda bons
dividendos quanto aos índices apresentados aos investidores estrangeiros;
16
mas apenas camufla a realidade. E esta inclui o preconceito contra os saberes
dos alunos, a rigidez de horários, a inflexibilidade de diretores quanto à
ocupação de espaços escolares que não a sala de aula, e a ausência quase
que total de interdisciplinaridade.
Como explicar, então, que alguns projetos funcionem?
A única resposta é: devido ao engajamento dos alunos, que quando
devidamente sensibilizados conseguem realizar atividades artísticas ou
científicas com recursos e tempo mínimos. É devido ao alto potencial criativo
desses alunos que alguns professores conseguem, solitariamente, realizar de
maneira satisfatória os seus objetivos educacionais.
1.3 O Que Isso Tem A Ver Comigo ?
[...] a construção do pensamento [...] é inerente ao ser que aprende [...], não se compara um ser com outro em aprendizagem, pois cada indivíduo é singular na medida em que dialoga com o mundo à sua volta, tornando-se, assim, plural (BASTOS FILHO, 2001, p. 25).
O reconhecimento, pelo professor, da singularidade de cada aluno e
da permanente troca com o meio social em que vive, assim como das variadas
informações que recebe, deve ser um elemento fundamental de sua prática
pedagógica.
Admitir que os alunos têm um saber poderá estabelecer uma relação
de troca com eles, e valorizar a troca do grupo entre si. Caso isso não
aconteça, o professor recorrerá à maneira tradicional de ensinar, em que ele
detém todo o saber, que se transfere para a "cabeça oca" do aluno.
Tal atitude irá se refletir no comportamento desinteressado, disperso
ou agressivo dos alunos, que se perguntam, diante do conhecimento que lhes
é apresentado de forma autoritária: "O que isso tem a ver comigo"?
17
A importância dos conteúdos não reside apenas neles, mas principalmente na
maneira como são compreendidos e incorporados à prática dos educandos
(BASTOS, Audir; SÁ, Cláudia, 2001). Caso isso não aconteça, frustra-se o
objetivo do ensino-aprendizagem. Portanto, é preciso agir com clareza e
despir-se dos preconceitos sócio-culturais e da onipotência, para que a
comunicação entre professor e aluno possa acontecer. Como dizia o mestre
Paulo Freire, "Você só trabalha realmente em favor das classes populares se
você trabalha com elas, discutindo com respeito seus sonhos, seus desejos,
suas frustrações, seus medos, suas alegrias" (BASTOS FILHO, 2001, p. 25).
18
CAPÍTULO II
A EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA
2.1 – O Racionalismo e sua influência na Educação
A cultura ocidental é herdeira de um sistema de valores e de uma
visão de mundo formuladas entre os séculos XVI e XVII, que tem conceituado o
universo como uma máquina, devido às teorias de Copérnico, Galileu, Newton,
Francis Bacon e Descartes.
Esses gênios revolucionaram a visão humana de mundo,
transformando o pensamento em analítico e científico, em contraste com o
medieval, que via o universo como "orgânico, vivo e espiritual" (CAPRA, 1995).
Como conseqüência instaurou-se o progresso tecnológico, possibilitando ao
homem realizações como a ida à Lua e a modernização da sociedade. No
entanto, a ênfase dada ao pensamento cartesiano, " levou à fragmentação
característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas
acadêmicas [...] e levou-nos a atribuir ao trabalho mental um valor superior ao
do trabalho manual." (CAPRA, 1995, p. 55).
No final do século XIX alguns médicos e psiquiatras europeus como
Freud, Mesmer, Charcot e C. G. Jung iniciaram estudos sobre os fenômenos
irracionais, instaurando um novo paradigma em direção ao lado subjetivo da
realidade, buscando integrar as visões mecânica e intuitiva. As publicações de
Freud (A Interpretação dos Sonhos) e de Jung (tese de doutoramento) no início
do século XX, afirmaram a impossibilidade de limitar o mundo subjetivo num
conjunto de leis gerais e absolutas (GRINSBERG, 1997). No entanto, somente
19
bem mais tarde os novos conceitos da física moderna iriam reforçar o mundo
subjetivo, com o cientista Albert Einstein.
A visão de mundo adotada pela Escola tem sido a que privilegia o
primeiro conceito, calcado no pensamento mecânico e no predomínio da
filosofia positivista (que pregava a reorganização racional da sociedade pela
aplicação do conhecimento científico), colocando em um plano secundário as
outras formas de expressão do aluno. O autor da Teoria das Inteligências
Múltiplas, o norte-americano Howard Gardner, faz o seguinte comentário a
esse respeito: "Colocar a lógica e a linguagem num pedestal reflete os valores
de nossa cultura ocidental [...]. Uma visão mais holística [**] considera todas as
inteligências como igualmente válidas" (GARDNER, 1992, p. 57).
A necessidade de se construir um novo paradigma para a
sociedade nesse século XXI, uma nova visão de mundo que ajude a resolver
os imensos problemas sócio-econômicos e ecológicos atuais, engloba a
mudança no paradigma da Escola, que tem refletido sempre os interesses das
classes dominantes e funcionado com essa lógica.
2.2 Buscando Um Novo Lugar: A Educação Numa Sociedade Criativa
"É a hora e a vez da águia. Despertemo-la. Ela está se agitando nas
mentes e nos corações de muitos. Não só. Ela anima a história e penetra na
realidade íntima de cada ser humano" (BOFF, 1999, p. 107).
Em que bases se deve construir um novo paradigma para a Escola?
Para o sociólogo italiano Domenico de Masi, vive-se hoje um período histórico
de transição de um mundo industrial para um mundo pós-industrial, o que
implicará uma nova maneira de se viver. Nasce uma sociedade essencialmente
de serviços, onde novos valores emergirão, como:
** Holístico vem do grego holos, que significa totalidade, e se refere a "uma compreensão da realidade em função de totalidades integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas a unidades menores" (Capra,1995)
20
[...] intelectualização, emotividade, estética, subjetividade, confiança, hospitalidade, feminilização, qualidade de vida, desestruturação do tempo e do espaço e virtualidade. Uma menor atenção ao dinheiro, à posse de bens materiais e ao poder. Uma maior atenção ao saber, ao convívio social, ao jogo, ao amor, à amizade e à introspecção (MASI, 2000, p. 284).
Na nova sociedade que se anuncia em meio ao caos e transforma o
mundo em outro com valores diferentes, a Escola deverá mudar os seus
métodos. No lugar de ensinar a lutar por dinheiro e poder, estimulando o
egoísmo e a agressividade, deverá despertar valores como o diálogo, a
solidariedade, a escuta e a criatividade.(MASI, 2000).
Ao se pensar a Escola como o lugar onde os indivíduos interagem
com outros, vê-se que ela exerce um papel muito importante para o início do
processo de independência da criança de sua família.
Nela, a criança e o adolescente aprendem regras, princípios e
métodos que os levam a socializar-se. Mas, como observa Jung (apud SAIANI,
2001):
Existe o risco de incorrermos em uma excessiva uniformização, de modo que o indivíduo seja capaz de responder perfeitamente às normas e aos processos coletivos segundo foi educado, esteja perfeitamente adaptado a situações e problemas já conhecidos, mas demonstre insegurança quando se trata de tomar uma decisão individual, uma vez que lhe faltem regras conhecidas (SAIANI, 2002, p. 15).
Além das regras e princípios coletivos que nortearão, mais tarde, a
vida social, e do instrumental necessário para o desenvolvimento da
capacidade cognitiva, é fundamental que a escola proporcione o estímulo à
capacidade criativa dos alunos, possibilitando-lhes a autoconfiança necessária
à autonomia para tomar iniciativas e resolver problemas inesperados,
aprendendo a adaptarem-se a novas situações.
É através da mistura entre aprendizado, jogo e atividade criativa,
que praticamente não se distinguem (MASI, 2000), que a prática pedagógica
estará voltada para o desenvolvimento integral do aluno.
21
Nesse sentido, a Arteterapia traz subsídios importantes para a
superação das dificuldades de aprendizagem dos alunos. Sejam elas
originadas pela inadequação da didática, por traumas ou outros problemas
emocionais e psíquicos, possibilita ao professor adotar, de acordo com o
comportamento do aluno (agressivo, desinteressado, solitário, etc.), uma
determinada metodologia (colagem, desenho, pintura, escultura, dança, teatro,
etc.) que possibilite a canalização das emoções através da Arte. O professor,
através de sua sensibilidade, deve aliar ao conteúdo de sua matéria às
técnicas utilizadas na Arteterapia, realizando um trabalho de maior alcance,
iniciando o aluno num caminho de auto-conhecimento, em seu processo de
individuação.
Se si deseja formar cidadãos no sentido pleno da palavra, é preciso
conquistar a cidadania, que não é somente um direito escrito no papel. Muitas
pessoas pensam que ela se resume em alcançar "um lugar ao sol" e ter
sucesso na vida. Mas ela se refere, na nessa visão, ao direito de realizar-se
plenamente numa perspectiva humana.
As dificuldades nesse processo em busca da criatividade estão
intimamente relacionadas ao hábito enraizado de exercer funções repetitivas,
mesmo quando não as percebem. Esse hábito deverá ser transformado, pois
num futuro próximo:
[...] A tendência é que as empresas deixem de empregar um trabalhador que não pense. Não querem mais alguém apertando botões, numa produção em série. Com o avanço tecnológico, exige-se um operário que raciocine, tome decisões e avalie a qualidade do produto. Ele precisa manejar sofisticadas máquinas computadorizadas (DIMENSTEIN, 1994, p. 145).
O jornal carioca "O Globo" de 9 de março de 2003, em seu caderno
dominical "Boa Chance", na página 1, publicou matéria que é reproduzido
neste trabalho (ver anexos), enfocando a valorização de um novo profissional
no mercado: o "gerente de idéias". Ele é o profissional que "cria produtos e
serviços que podem impulsionar os negócios" e pode ter uma formação outra
22
que não administrador ou economista, desde que tenha feito o curso de
Gerenciamento de Projetos (MBA). O básico é que ele utilize sua criatividade e
iniciativa e seja um profissional versátil.
A atualidade dessa notícia comprova o pensamento de Domenico de
Masi e de Gilberto Dimenstein: a sociedade está mudando, novos valores estão
surgindo, a criatividade e a autonomia serão profundamente necessárias e é
preciso que a Escola e a sociedade eduquem seus jovens nessa direção.
Tem-se, dessa maneira, importantes motivos para que a educação
se apoie na criatividade, os mais importantes sendo:
1. Ajudar a combater os problemas de evasão e repetência escolar
através de uma didática envolvente;
2. Desenvolver a interdisciplinaridade;
3. Formar indivíduos autônomos e flexíveis, com capacidade de
criar novas soluções para os problemas individuais e sociais ;
4. Preparar para uma sociedade com valores diferentes, baseados
na cooperação e solidariedade;
5. Formar cidadãos no sentido pleno do termo.
2.3 A Arte Como Resgate da Identidade
A Arte se define pela diversidade, por propor algo que é pessoal e único. O que ela oferece ao indivíduo é que entre em contato consigo mesmo, que se conheça e se aceite como um sujeito único que pode e deve exercer essa singularidade. Ao se conhecer e se acolher pode também aceitar os outros com suas características próprias, e a partir daí travar com eles relações de complementaridade, e não de dominação ou rivalidade. É a partir destas relações que a troca se estabelece, que se encontram os meios de fazer valer os direitos e deveres dos que vivem em sociedade (OSÓRIO, 1998, p. 39).
23
A Arte tem como característica colocar o indivíduo frente ao seu
mundo interno. Nesse processo ela o transforma, tanto para si quanto para os
que estão a sua volta. Mas será, como muitos acreditam, que a criatividade só
é possível para os que têm um "dom" para a Arte, seres privilegiados e
diferentes dos outros?
A Teoria das Inteligências Múltiplas diz que nenhuma inteligência
pode ser classificada como artística ou não-artística, e que a possibilidade de
uma inteligência ser utilizada dessa maneira é uma decisão tomada pelo
indivíduo ou pela cultura. As culturas podem favorecer ou impedir a
possibilidade de usos artísticos da inteligência; se for uma cultura que estimula
os jovens a utilizar sua criatividade e favorece o despertar de seus "dons"
artísticos, ela terá um papel determinante "no grau em que o potencial de um
indivíduo é realizado" (GARDNER,1996).
Então cabe a pergunta: a cultura ocidental vem estimulando os
indivíduos para as atividades criativas?
Desde o início da história humana há registros de que os ancestrais
do ser humano faziam arte, uma arte que representou psiquicamente
coletividades e, ao mesmo tempo, a singularidade dos indivíduos. (PHILIPPINI,
1996). A tradição ocidental, no entanto, tem reservado a Arte para uma minoria
privilegiada e somente com o desenvolvimento da democracia e a Declaração
dos Direitos do Homem, a partir do século XVIII, esboça-se a afirmação da Arte
como direito de todos. (SANTOS, 1997).
Esse direito, embora afirmado constitucionalmente, não se confirma
na vida diária. É necessário que se lute por ele, pois a expressão artística está
relacionada ao "resgate da identidade na sociedade massificada" (OSÓRIO,
1980).
24
Ao pensar a Arte no contexto em que se vive, vê-se que a sociedade
capitalista criou a "Indústria Cultural", termo cunhado pelos filósofos Adorno e
Horkeimer da Escola de Frankfurt na década de 50, para definir a reificação de
valores e produtos culturais (ADORNO, 1982).
Dentro dessa sociedade a Arte é produzida, como todo o resto, para
ser consumida de maneira descartável. Ela deixa de ter o sentido ancestral de
expressão humana, passando a ser quantificada e qualificada. Dessa forma,
por exemplo, grandes gravadoras multinacionais determinam o tipo de música
a ser divulgada pela mídia, o que se tornará a "moda" do momento; o mercado
de Artes Plásticas determina o que deve ser pintado, que nomes serão
valorizados, e o quanto.
O resultado dessa uniformização artística e destruidora da
diversidade cultural será acarretar, nas estruturas psíquicas mais vulneráveis,
uma pressão que pode favorecer sentimentos de menos valia e baixa auto-
estima, pois poderão pensar que não há mais nada a ser inventado e não vale
a pena expor suas produções. (PHILIPPINI, 1997). O que a sociedade atual
verdadeiramente estimula é que se consuma a Arte pronta, dentro dos padrões
estéticos por ela determinados.
Ao fazê-lo, despreza-se a própria criação. O indivíduo não reserva
tempo para criar ou para entrar em contato consigo mesmo. Impelidos
continuamente a consumir, todos colaboram, inconscientemente, para a
manutenção de uma ordem social que se apropria da Arte, roubando a
oportunidade de todos resgatarem suas identidades perante a sociedade. Por
isso é comum encontrarem-se, tantas vezes, com a sensação de estarem
perdidos.
Nem todos são artistas ou optam por seguir profissionalmente uma
carreira artística. Toda obra é uma criação estética, embora seja uma questão
polêmica se ela é ou não uma obra de Arte (GRANJA, 1995). Mas todos tem,
25
como condição humana, sentimentos, sonhos, emoções, enfim, um mundo
inconsciente que necessita ser conhecido para ser trabalhado, pois, como
afirma Vânia Osório:
[...] Um indivíduo saudável precisa conhecer-se de um modo amplo e desenvolver várias habilidades, expressarseus sentimentos e lutar por algum ideal. Somas ao mesmo tempo seres biológicos, sexuais, políticos, espirituais, artísticos, etc. É fundamental, portanto, que acolhamos essa multiplicidade e a deixemos falar. Somas parte integrante de um todo maior e somos responsáveis pelo mundo em que vivemos (OSÓRIO, 1998, p. 39).
26
CAPÍTULO III
A ARTETERAPIA COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA:
UM CAMINHO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
3.1 Conceitos e Objetivos da Arteterapia
A existência humana, nos termos históricos convencionais que conhecemos, flui e processa-se a partir do estado de consciência que a ciência clássica designa de normal. Isto é, nossa biografia constrói-se a nível macrofísico, macroscópico, rígida e estruturada pelo espaço e tempo absolutos, newtonianos [...] No entanto existe, de forma não manifesta, outro nível de realidade, uma realidade microfísica, subatômica, quântica, [...] tão real quanto a macrofísica, porém mais sutil, à qual o estado de consciência dito normal acessa mal, ou não acessa [...] O eixo metafórico da linguagem expressa, entre outras coisas, a tentativa de acesso ao mundo caótico e subatômico. Para melhor acessá-los precisamos "criar intuição", no dizer de Mitchell Feigenbaum, e, quando o fazemos ou isto nos acontece, nos vemos despojados das certezas que o nível newtoniano nos propicia; a partir daí, incerteza, probabilidade e ignorância tornam-se nossas companheiras íntimas; tornamo-nos beduínos ante a natureza (LIMA, 1997, p. 56).
As novas descobertas da Física Quântica do caos, do cosmos e dos
fractais tem uma correlação com a psique humana. Esses conceitos estão
relacionados à descoberta da não linearidade dos fenômenos, tanto físicos
quanto energéticos e psicológicos. O chamado "caos determinístico" aponta
para um pensamento científico diretamente relacionado à intuição e às
incertezas.
Pode-se transpor essa conceituação para o universo da Arteterapia
afirmando sua tendência holística, que abrange todas as diferenças, inclusive
as caóticas.
27
A criação artística surge através do caos (palheta, pincéis, tintas e
emoções) e anula, por instantes, os dois sistemas, a obra e o artista, num
princípio da termodinâmica, onde a entropia atinge o seu máximo estágio.
Metaforicamente, "o impacto da obra de arte é tal que possibilita-nos morrer e
renascer, ou caminhar entre o cosmos e o caos" (LIMA, 1997).
O reconhecimento, pelo arteterapeuta, dessa força que possui a
criação artística o leva a utilizá-la para a promoção da "harmonia dinâmica e
instável entre caos e cosmos, ou entre ego e inconsciente", do indivíduo, sendo
o ego "um fator com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam, [...]
que constitui o centro do campo da consciência [...] e é o sujeito de todos os
atos conscientes da pessoa" (MURRAY, 1998, p. 60).
O inconsciente é definido como um espaço ao redor do ego, não-
consciente, povoado por emoções, imagens, paixões e medos, e também
formador da psique. A interação harmoniosa entre ego e inconsciente
proporcionaria o equilíbrio psíquico; do contrário, as manifestações de
desequilíbrio trariam perturbações à consciência.
O conceito de Arteterapia utilizado é aquele que o considera como
um processo terapêutico onde se usam modalidades expressivas diversas que
materializam símbolos. Esses símbolos, provindos de camadas profundas da
psique, permitem um confronto dessas informações com o nível da
consciência, proporcionando uma transformação da estrutura psíquica através
de insights.
A abordagem é feita do ponto de vista do processo do fazer artístico,
e não do produto final, e o elemento fundamental nesse processo é o
surgimento das imagens produzidas. Pois como analisa Eduardo Luppi:
[...] Não apenas os conceitos conscientes são aspectos parciais da totalidade psíquica, mas o consciente, baseado no funcionamento mental
28
conceitualizado, é uma forma relativamente tardia, secundária, de desenvolvimento mental. A unidade básica original do funcionamento mental é a imagem. Os conceitos são criados a partir de imagens através da atividade de abstração, que é um processo de pensamento. Um indivíduo abstrai, ou afasta, sua consciência da reação psíquica original que é emocionalmente carregada, em direção aos conceitos destituídos de emoção. A unidade de operatividade psíquica básica é a imagem emocionalmente carregada (LUPPI, 1994, p. 47).
As imagens expressam qualidades emocionais, reconstituindo a
conexão entre o consciente e o inconsciente.
Numa abordagem junguiana os indivíduos são orientados por
símbolos, em seus processos de auto-conhecimento e transformação, que
emanam do Self, um centro de saúde e harmonia que representa a totalidade
da psique e a essência de cada um.
O objetivo da Arteterapia é a compreensão dos significados
emocionais contidos no símbolo para proporcionar sentimentos de plenitude.
Para que isso aconteça, o arteterapeuta exerce a função de facilitador,
proporcionando a cada indivíduo o contato com múltiplos materiais que
possibilitem o fazer artístico. Tais materiais podem ser naturais, como folhas,
flores, sementes, cascas de árvores, areia e água (proporcionando contato com
o mundo natural) ou artificiais, como tinta, cola, fios, papéis, madeira, etc. Além
destas atividades plásticas, o arteterapeuta pode também utilizar a expressão
corporal, canto, o que mais sua criatividade permitir.
O material, como assinala Ângela Philippini, é o que concretiza a
Linguagem e sobre o qual se manifesta o diálogo entre consciente e
inconsciente e entre conhecido e desconhecido.
29
3.2 - A Arteterapia Como Prática Pedagógica
Agora, será exposta a articulação entre a teoria e a prática.
3.2.1 A Teoria
Os condicionamentos culturais no mundo ocidental decorreram, em
grande parte, da dissociação entre a subjetividade e a objetividade. Tal fato
conferiu um vazio à sociedade, onde ficaram aprisionados a emoção, o
sentimento, o sagrado e a compreensão abstrata do Universo. C. Byington
mostra que, devido ao padrão moralista patológico da Inquisição, herdou-se um
cotidiano asfixiado e pobre, onde a importante função estruturadora da
imaginação foi comprometida a tal ponto que, nas escolas, não é uma questão
a ser considerada.
Uma atitude castrada, puritana e racionalista com relação à vida
engendrou , por isso, uma sombra cultural, produzindo um saber "em blocos
estruturados de falso conhecimento" (BYINGTON, 1988), que impede o
desenvolvimento natural da criança e do adolescente na Escola, e do adulto
nas Universidades. Segundo Vânia Granja:
A falta de liberdade de expressão nas atividades que incluem os sentidos, os sentimentos, a construção do pensamento e a intuição estão fora dos programas e das questões da Educação sistemática. O professor é despreparado, em sua formação, para tratar da Criação, da Consciência, do Inconsciente e da ligação da Ética com a Estética. A imaginação e a percepção, duas categorias dialéticas básicas para o desenvolvimento de qualquer Linguagem, seja na Arte ou na Ciência, não estão no foco do ensino em geral, o que indica uma falha básica na cultura (GRANJA, 1996, p. 82).
De grande importância no desenvolvimento físico, emocional e
cognitivo da criança, o brincar é um dos primeiros instrumentos de exploração
do mundo que a criança constrói, e proporciona ricas experiências de como
relacionar-se consigo mesmo e com os outros.
30
Na fase adulta o indivíduo constrói novas possibilidades de ação,
como arte e trabalho, por intermédio do "brincar", que não desaparece e passa
a coexistir com outras atividades. A arte, como disse Winnicot, sempre guarda
um lado lúdico, proporcionando à criança, ou à criança interior do adolescente
e do adulto, o fluir de sua liberdade de criação.
Na Escola, quando o pensamento e a palavra estão em desordem
ou falham, a aplicação ampla da expressão plástica, corporal ou sonora tem
uma função no processo terapêutico e pedagógico, como afirma Umbert
França. A essência da Arte será a maneira original de se expressar. Caso se
use o processo adequado, instinto e raciocínio fluirão como conseqüência um
do outro, não permitindo que a idéia conflitue com a realidade.
Diversas formas de sensibilização poderão ser propostas pelos
professores com o objetivo de despertar a emoção, a imaginação, o lúdico, os
afetos e talentos represados. Nas Artes Plásticas, temos a função libertadora
da pintura, ordenadora do desenho, estruturadora da escultura e multiplicadora
da gravura. Na área da Consciência Corporal e na criação de ambientes
sonoros, podem-se aplicar exercícios de relaxamento das tensões e da
colocação da respiração em estágios mais lentos e profundos para facilitar
desbloqueios, permitindo mais fluência do processo criativo (PHILIPPINI,
1998).
Essa ação volta os olhos espirituais para a dimensão interna e
expande a consciência pelo exercício de uma pedagogia da auto-observação,
tornando os indivíduos mais aptos à convivência e à sobrevivência no mundo.
O exercício de uma linguagem artística cria condições para o indivíduo
expressar-se nas formas por ele elaboradas e que representam seu limite de
consciência. Para Eduardo Luppi, "[...] um aprofundamento em nós mesmos
significa trabalhar nossa imaginação, viver o mágico, o onírico, o estranho, o
inexplicável, articulando-os com o mundo" (LUPPI, 1994, p. 39).
31
Para que o professor trabalhe em sala de aula com a Arteterapia é
necessário que proceda como propõe, ou seja, deixe fluir afetos e emoções,
dispa-se de preconceitos e julgamentos quanto às "obras de arte" de seus
alunos, possibilite um ambiente de liberdade para a expressão criativa, aceite a
troca e as contribuições ao saber constituído.
Acredita-se que, com imaginação criadora e interdisciplinaridade,
todas as matérias do currículo básico do Ensino Fundamental poderão usufruir
das imensas vantagens que a aplicação da Arteterapia nas práticas
pedagógicas tem a oferecer. Ela nos proporciona tanto utilizar, de maneira
ampla, atividades criativas concomitantes aos conteúdos ensinados, quanto
observar o desenvolvimento global dos alunos, interferindo positivamente em
suas dificuldades de relacionamento e aprendizagem.
Como os professores, os arteterapeutas:
[...] trabalham na interseção de vários saberes, como a Educação, a Saúde, a Arte e a Ciência, buscando resgatar a dimensão integral do homem, [...] fazendo o nosso trabalho de formiga. [...] A base do trabalho reside na certeza que todos, em condições normais, somos criativos e capazes, que há uma força criadora em nós, uma chama que nos irmana a todos – integrantes de um vasto sistema, o Cosmos.(OSÓRIO, 1998, p. 95).
Parafraseando R. Garaudy não existe Educação mais revolucionária
do que aquela que ensina a considerar o mundo não uma realidade já feita,
mas uma obra a ser criada.
3.2.2 A Prática
Vivemos a morte de uma época. A nova era ainda não nasceu. É preciso coragem para viver nesse limbo. [...] Temos uma escolha: acovardar-nos com a perda dos portos conhecidos ou lançar mão de toda coragem necessária para preservar nossos sentimentos, nossa consciência e responsabilidade ante a mudança radical. Somos chamados a realizar algo novo, a enfrentar a terra de ninguém, a penetrar na floresta onde não há trilhas feitas pelo homem e da qual ninguém jamais voltou que possa nos servir de guia [...] (MAY, 1975, p. 41).
32
A autora ao iniciar este trabalho como professora de História na
Escola Municipal Camilo Castelo Branco no Horto (Zona Sul do Rio de
Janeiro), em fevereiro de 2002, percebeu rapidamente que seria necessária
uma abordagem muito particular e especial com os alunos que encontrou.
Lecionando para duas turmas de 5ª série, 501 e 502, e duas turmas
de 6ª série, 601 e 602, os encontros com cada turma aconteciam duas vezes
por semana, durante três horas-aula. A idade dos alunos variava entre 10 e 16
anos de idade. Grande parte era de moradores das comunidades da Rocinha,
do Vidigal, do Horto e do Morro Santa Marta, em Botafogo.
Num primeiro momento verificou-se a heterogeneidade de cada
turma, especialmente das que reuniam os alunos mais velhos: 502 e 602.Os
alunos vinham de experiências diferentes, tanto sob os aspectos de vida
escolar (alguns vinham de bairros distantes, como Vila Kennedy) quanto da
vida pessoal e familiar. Mas um "fio condutor" os unia: eram atrasados na idade
para as séries em que estavam, sendo considerados alunos "fracos" pelos
professores, com baixo rendimento e extremamente dispersos. Além disso,
alguns eram muito agressivos. Outros eram exibicionistas, falavam alto e
procuravam de todas as maneiras chamar a atenção sobre si.
Do ponto de vista familiar a grande maioria provinha de um lar
diferente do padrão: muitos moravam com tias, avós, madrinhas, só com a mãe
ou só com o pai. Já tinham se mudado de casa muitas vezes, como o fizeram
durante o ano letivo, devido a problemas de instabilidade social, como
desemprego, brigas, doenças e abandono de parentes.
A recepção à nova professora não foi o que se pode chamar de
calorosa: sequer prestaram atenção à sua presença. Na turma 602, por
exemplo, eles mantinham suas conversas, corriam pela sala de aula, agrediam-
se física e verbalmente, extravasando sua energia.
33
Nesses primeiros encontros e durante os próximos três meses,
aproximadamente, tudo o que se fez foi buscar algum tipo de contato,
acenando com a possibilidade de aliança entre a autora e os alunos em alguma
instância. Algo como emprestar a caneta, elogiar um detalhe da roupa ou do
cabelo, ou uma letra e caderno mais bem cuidados. Todo e qualquer tipo de
elogio ou aceitação encontrava alguma receptividade.
Entretanto, no que dizia respeito à matéria de História, era
virtualmente impossível discutir algo a respeito. Caso tentasse, as costas
voltavam-se e os principais lances do último jogo de futebol, da novela da noite
anterior ou do baile funk de domingo eram comentados com grande
intensidade emocional e vocal. Bem, isto era pensado, afinal, tudo é História.
Após um tempo de dúvidas, a autora resolveu se descondicionar das
obrigações acerca dos conteúdos da matéria. Não seria possível começar pelo
assunto do livro: O Feudalismo na Europa Medieval. Abandonou-se
momentaneamente o livro, e buscou-se enfrentar os desafios.
A tática foi começar por perguntar, incessantemente. Tudo o que era
pessoal a respeito dos alunos, ou então de sua realidade mais próxima, foi
abordado com o máximo de respeito e seriedade. Eles, aos poucos,
começaram a responder, atropelando-se e gritando, mas dialogando com a
professora. Foi através da escuta de suas histórias que foi possível estabelecer
os primeiros contatos. A autora, que tinha vindo com a intenção primeira de
ensinar a História, trocou de lugar para compreender o que realmente
acontecia entre aqueles adolescentes, e o que eles esperava dela.
Foi percebido o quanto fundamental foi essa escuta ao tornarem-se
(professora e alunos) confidentes de histórias tristes de mortes de familiares,
de abandono, de ameaças e de esperanças num futuro melhor. O desejo de
todos ampliou-se, e, mais do que lhes ensinar a História dos livros, desejou-se
orientá-los para que se apropriassem de suas próprias histórias, para que se
34
percebessem eles próprios condutores delas, aprendendo a interagir com uma
sociedade injusta para os que vêm de sua classe social.
Vencida a fase inicial, retornou-se delicadamente aos conteúdos
programáticos. Recebidos com maior interesse, tiveram de ser adaptados à
real capacidade de compreensão e abstração da turma. Frases como "o modo
de produção feudal se estruturava sobre o trabalho servil, que se baseava na
talha, na corvéia e nas banalidades" (um exemplo), escritas nos livros
escolares para a 6ª série do 1º grau, foram definitivamente banidas e
substituídas por algo como "num outro tempo (Idade Média) e num outro lugar
(Europa) os trabalhadores (servos) tinham que trabalhar muito para sustentar
seus patrões (senhores feudais)".
Alunos e professora Reinterpretaram muitas partes do livro, e a cada
assunto lido e explicado passou-se a trabalhar o que estava sendo estudado
através das expressões plásticas, utilizando desenhos, colagens, pinturas e
sucata para a construção de castelos feudais, igrejas e casas de camponeses;
cênicas, dramatizando diálogos entre fictícios personagens da Idade Média;
musicais, com a audição de temas gregorianos medievais; e literárias,
reescrevendo finais para contos de fadas contados por eles.
Nem sempre as atividades foram envolventes para todos. A audição,
por exemplo, dos cantos gregorianos, após falar sobre a Igreja Medieval, não
despertou entusiasmo senão para poucos alunos, que manifestaram prazer ao
ouvi-los. Considerou-se, no entanto, muito significativo o fato de todos se
disporem a ouvi-los, fazendo o silêncio necessário.
Outras atividades, especialmente as plásticas, despertaram tamanho
interesse que passaram-se semanas envolvidos com elas, transformando
sucatas, madeiras e isopores em casas e castelos. Em atividade febril moças e
rapazes, especialmente os mais agressivos, concentravam-se em dar novas
formas a velhos materiais. O mesmo aconteceu com a construção de objetos
35
com madeira, serrada e pregada com vigor na confecção de prédios, navios,
paióis e moinhos.
Observando atentamente a transformação de comportamento por
que foram passando alguns alunos descobriu-se sinais de um apaziguamento
interior que lhes permitia concentrarem-se por mais tempo nas leituras e nos
exercícios propostos, e um melhor relacionamento com os colegas.
Essas transformações ocorreram mais ou menos lentamente para
alguns, um pouco mais rápida para outros. Alguns se motivavam com a pintura,
outros com a contação e a criação de histórias. Mas todos se envolviam com
as atividades artísticas, e nesses momentos circulavam livremente pela sala,
sem nenhum tipo de repressão, auto-direcionados e produtivos.
As outras turmas vivenciaram as mesmas experiências, tendo as 5as
séries trabalhado mais com esculturas de argila, rasgação de papéis para
colagens e contação e recriação de histórias. A turma 601, tendo a mesma
matéria da 602, utilizou recursos semelhantes mas não idênticos. Essa turma
identificou-se mais com a dança, o canto e a representação teatral.
Alguns professores notaram diferenças no comportamento dos
alunos das turmas que trabalhavam os conteúdos dessa forma. Numa
perspectiva experimental, toda e qualquer modificação positiva, no sentido de
harmonização do aluno consigo mesmo, com a turma e os professores e
melhor concentração nas aulas, foi recebida como uma confirmação de que o
caminho para o desenvolvimento integral do ser humano passa pelo resgate
consigo próprio, que pode ser proporcionado pela Arte.
Certamente os efeitos negativos da Escola autoritária sobre o aluno,
vítima maior da segregação social e da opressão autoritária, não podem ser
sanados imediatamente.
36
O que foi desejado enfatizar, porém, é que ainda assim, em tal
sociedade e com tal escola, o recurso da utilização da Arteterapia na prática
pedagógica exerce um poderoso efeito transformador, na medida em que
coloca o indivíduo em contato com a sua força criativa, e portanto, consigo
mesmo.
Cada material empregado em trabalhos foi cuidadosamente
escolhido, de acordo com o estado psicológico dos alunos. Não podendo
atendê-los individualmente em sala de aula, procurou-se sentir o tipo de
energia da turma em cada encontro, para então escolher a atividade e os
materiais a serem trabalhados.
Paralelamente, foi inaugurado um ateliê de Arteterapia para o
atendimento de pequenos grupos de alunos, com o consentimento da direção
da Escola. Essa experiência está em curso, e desenvolve-se satisfatoriamente.
3.3 Uma Vivência Enriquecedora
Por volta do mês de outubro de 2002 a turma 601 estudava o
"Descobrimento" do Brasil. Como de costume o estudo foi iniciado pela leitura.
Em seguida passou-se às atividades artísticas. Alguém sugeriu que dessa vez
utilizasse a dança para representar essa história. Foram lembrados discos
relativamente novos que poderiam auxiliar na atividade: foram eles "Madeira
Que Cupim Não Rói", do artista popular pernambucano Antonio Nóbrega, e
"Tudo Azul", da Velha Guarda da Portela. As letras relacionavam-se ao que se
queria contar, e as danças ficariam por conta da criatividade dos alunos. Estes
sugeriram a música "Que País É Esse", do grupo Legião Urbana. Escolhidas as
músicas, foi feito um roteiro, que seria lido por uma aluna.
O processo de ensaios iniciou-se. A cada aula, um certo tempo ficou
reservado para isso. Inicialmente desorganizados, aos poucos foram sendo
conduzidos por líderes naturais em seus próprios grupos de dança,
37
coordenados pela professora. À medida que conseguiam se entrosar melhor a
participação da professora diminuía, de modo que um tempo antes da
apresentação estavam totalmente auto-dirigidos.
Sua capacidade de coordenação a esse ponto era desconhecida
pelos professores. Alunos que, regra geral, não se organizavam para os
estudos, mostraram-se disciplinados e respeitosos uns para com os outros.
Dirigiam-se, ouviam-se, dançavam. Tudo dentro de aparente confusão: do caos
surgia, naturalmente, a ordem, sem a necessidade de repressões ou punições.
Quando alguém infringia regras o grupo tratava de repreendê-lo, e esse alguém
logo as aceitava, por desejar participar das danças.
As músicas escolhidas para o "espetáculo" foram: "Olodumaré", de
Antonio Nóbrega e Wilson Freire, que conta a história da chegada do negro
africano ao Brasil e seu sofrimento. "Maracatu Misterioso", que celebra a festa
do Boi (nordestino) Maravilhoso. "Sabiá Cantador", de Alvarenga, samba de
roda que conta a história de um amor que foi pra longe, e "Que País É Esse",
do grupo Legião Urbana, que questiona as injustiças e corrupções no país.
O vestuário das danças era simples: as saias do Maracatu vieram de
panos pintados nas aulas de Artes pelas turmas da manhã, transformados em
saias pelas mães das dançarinas. “Olodumaré” foi dançada como capoeira, e
alguns meninos arrumaram calças brancas, que fizeram um bom efeito. “Sabiá
Cantador” e “Que País É Esse” foram dançadas com roupas comuns pelas
meninas, que combinaram entre si seu figurino e se maquiaram umas às
outras.
O “Boi Misterioso” foi feito por crianças de uma outra escola, cuja
professora solidária o emprestou. Não havia cenários, e as danças
aconteceram no auditório, com a presença de alunos de várias séries,
convidados dos próprios participantes, e de professores, coordenadora e
diretora.
38
Tudo transcorreu como o previsto. Até os tímidos esqueceram da
timidez, cantando e dançando. A alegria foi enorme, com as palmas da platéia.
As fotos do evento estão no Anexos.
Na semana seguinte todas as séries fizeram exames finais. O
aproveitamento foi muito bom.
Algumas opiniões sobre a atividade foram recolhidas posteriormente
a fim de concluir sobre sua importância. Segue abaixo alguma delas:
"A dança pra mim foi ótima, me ajudou muito na matéria. Bom, você
consegue se sentir mais leve, você esquece dos seus problemas, você fica um
pouco nervosa mas depois passa. [...] A dança me fez perder a vergonha, o
nervosismo, tudo, eu me senti muito bem" (Thainá de Souza Barcelos, 13 anos,
aluna atual da turma 701).
"Fazer a dança com a professora Dominique foi super legal, pois
como eu adoro dançar me inspirei muito na dança. Eu amei dançar o samba
pois me ajudou a melhorar na matéria de História, porque eu só tirava nota
baixa, através das pesquisas, maquetes e a dança eu me recuperei [...]”
(Fernanda de Paula, 12 anos, aluna atual da turma 701).
"O trabalho ajudou muito na matéria. Eu fiquei um pouco nervosa,
deu um frio na barriga, mas no final deu tudo bem. Eu gostei, me diverti muito,
agora estou feliz, passei pra 7ª série. Adorei o tema da dança sobre o boi
bumbá. Gostei de dançar também o samba. Eu e as garotas cantamos Que
País É Esse. Saindo um pouquinho da dança vamos falar um pouco da
maquete que fiz com as minhas amigas. A maquete foi sobre as caravelas,
ficou uma maravilha, e a outra maquete foi sobre o Feudalismo [...]" (Mabrize
Santos, 12 anos, aluna atual da turma 701).
39
CONCLUSÃO
Educar exige permanente atenção ao desenvolvimento do aluno e
disposição para modificar e renovar, tanto o saber, quanto as práticas
pedagógicas do educador.
As modificações velozes em nossa sociedade e seu impacto sobre
os educandos devem ser considerados na medida em que interferem em sua
leitura de mundo e os influencia de diversas maneiras. Um educador
consciente estará sempre "antenado" com seu tempo, se possível com o futuro,
visando aproximar ao máximo sua visão e a do aluno da realidade que os
cerca, com seus problemas e possíveis soluções.
Os esforços das autoridades educacionais do Rio de Janeiro, como
o Projeto Multieducação, da Secretaria Municipal de Educação, em
acompanhar as transformações da sociedade, só têm a possibilidade de se
concretizar procurando na Criatividade a chave para uma nova condição. Para
que isso aconteça torna-se necessária a valorização efetiva do professor, para
que ele tenha tempo de aprimorar-se, tempo livre para o estudo e a reflexão,
criando novas possibilidades em sua prática que viabilizem uma outra
Educação.
Somente assim acredita-se ser possível qualquer mudança concreta,
pois o mestre é a peça fundamental de uma engrenagem que necessita se
renovar.
A escuta do Outro, praticada no diálogo a que se propõe o educador,
deverá fazer eco no interior de seu educando, predispondo-o a seguir em sua
vida o caminho do entendimento e da compreensão .
40
Desenvolver uma postura crítica e reflexiva no aluno é possível com
competência e coerência, e o instrumento mais revolucionário para esse fim
nas mãos do educador é a Arte, não em seu sentido de busca da perfeição
estética, mas no de legítima expressão do ser humano em seu aspecto
psíquico.
As mudanças concretizadas pela Arte, no sentido de resgatar a
integração consciente/inconsciente dos indivíduos, promovem não só um
desenvolvimento mais humano como uma possibilidade futura de
transformação social através de cada indivíduo.
Dessa maneira, uma sociedade mais rica em emoção e significado
encontrará lugar num mundo onde a Paz não precisará ser clamada, pois fará
parte da estrutura das coisas e das pessoas.
Bem e Mal, Riso e Choro, Racional e Emocional, Consciente e
Inconsciente: as energias complementares do Ser Humano poderão finalmente
integrar-se, ao invés de duelarem indefinidamente. É para isso que cada
indivíduo deve se preparar e aos outros seres humanos, conscientes de que a
verdadeira revolução que todos anseiam e necessitam começa pelo encontro
de cada indivíduo consigo mesmo.
41
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodoro e Horkheimer, Max. Os pensadores. São Paulo: Abril,
1982.
BASTOS FILHO, Audir; SÁ, Cláudia M. F. Psicomovimentar. Campinas:
Papirus, 2001.
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha. Petrópolis: Vozes, 1999.
BYINGTON, C. Dimensões simbólicas da personalidade. São Paulo: Ática,
1988.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. 10 ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
DIMENSTEIN, Gilbert. O cidadão de papel. 4 ed. São Paulo: Ática, 1994.
FRANÇA, Umberto. A arte na terapia. Revista Imagens da Transformação. Rio
de Janeiro, v. 5, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
GARDNER, Howard. O guru das inteligências múltiplas. Revista Nova Escola,
Rio de Janeiro, set. 1997.
GERAUDY, R. Ainda é tempo de viver. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
42
GRANJA, Vânia. O pensamento de Jung para o estudo do processo de criação
na arte. Revista Imagens da Transformação. Rio de Janeiro, v. 3, 1996.
GRINSBERG, Luiz Paulo. Jung, o homem criativo. São Paulo: FTD, 1997.
LIMA, Pedro Rocha. Fractais: unidades arquetípicas do caos?. Revista
Imagens da Transformação. Rio de Janeiro, v. 4, 1997.
LUPPI, Eduardo. Imagética: Especulações sobre a imagem. Revista Imagens
da Transformação. Rio de Janeiro, v. 1, 1994.
MASI, Domenico de. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
MAY, Rollo. A coragem de criar. 14 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
NIDELCOFF, Maria Teresa. A escola e a compreensão da realidade. 10 ed.
São Paulo: Brasiliense, 1984.
OSÓRIO, Vânia. Arte, identidade e cidadania. Revista Imagens da
Transformação. Rio de Janeiro, v. 5, 1998.
PHILIPPINI, Ângela. A construção de espaços criativos através do processo
arteterapêutico. Revista Imagens da Transformação. Rio de Janeiro, v. 4, 1997.
__________. Mas o que é mesmo arte terapia? Revista Imagens da
Transformação. Rio de Janeiro, v. 5, 1998.
__________. Universo junguiano e arteterapia. Revista Imagens da
Transformação. Rio de Janeiro, v. 2, 1995.
SAIANI, Cláudio. Jung e a educação. 2 ed. São Paulo: Escrituras, 2002.
43
SANTOS, Marco Antônio C. Arte, trabalho e terapia. Revista Imagens da
Transformação. Rio de janeiro, v. 4, 1997.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO.
Multieducação, vários, 1996.
STEIN, Murray. Jung, o mapa da alma: uma introdução. 10 ed. São Paulo:
Cultrix, 1998.
TODOROV, Tzvetan. O homem Desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999.
44
ANEXOS
Anexo 1: Matérias do Jornal "O Globo"
NO BRASIL, 60% DOS ALUNOS NÃO CHEGAM A CONCLUIR O
ENSINO MÉDIO. O Globo. Rio de Janeiro. 12 mar. 2003. 1º
caderno, p. ?
EM ALTA, O GERENTE DE IDÉIAS. O Globo. Rio de Janeiro. 9 mar.
2003. Caderno Boa Chance, p. ?
Anexo 2: Trabalhos dos alunos da Escola Municipal Camilo Castelo
Branco (2002)
Figura 1: Desenho sobre o tema "O Mundo Como Eu Vejo", turma
501.
Figura 2: Desenho sobre o tema "O Mundo Como Eu Vejo", turma 501
Figura 3: Desenho sobre o tema "O Mundo Como Eu Vejo", turma 501
Figuras 4 e 5: Maquetes sobre o tema "O Descobrimento do Brasil",
turma 601
Figura 6 e 7: Maquetes sobre o tema "O Descobrimento do Brasil",
turma 601
45
Figura 8: Cartazes sobre o mesmo tema; Figura 9: Apresentação de
Dança. Música: Maracatu Misterioso
Figuras 10 e 11: Apresentação de Dança. Maracatu Misterioso.
Figuras 12, 13 e 14: Apresentação de Capoeira. Música: Olodumaré.
Figura 15: Apresentação de Dança. Música: Sabiá Cantador; Figura
16: Turma e Professora.
46
Anexo 1: Matérias do Jornal O Globo
49
Anexo 2:
Trabalhos dos alunos da Escola Municipal Camilo Castelo Branco (2002)