A Ascensão Do Dinheiro Aos Céus

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    Robert Kurz

    A ASCENSO DO DINHEIRO AOS CUS

    Os lim ites es tru tur ais da valo rizao do c apital, o capitalism o decasino e a crise financeira global

    1. Capital real e capital que rende juros

    A relao contraditria entre trabalho e dinheiro uma das muitas estruturas esquizides domundo moderno. O trabalho, como dispndio abstracto de energia humana no processo daracionalidade empresarial, e o dinheiro, como forma fenomnica do "valor" econmico assimproduzido (ou seja, duma fantasmagoria fetichista da conscincia social objectivada) so asduas faces da mesma moeda. O dinheiro representa ou "" nada mais que "trabalho morto",

    tornado realmente abstracto na forma duma coisa, no fim-em-si-mesmo capitalista, queconsiste numa acumulao sempre acrescida de tal meio fetichista. O humano "processo demetabolismo com a natureza" (Marx) tornou-se um abstracto e em si insensato dispndio defora de trabalho, justamente porque o dinheiro se autonomizou do agente humano, na formafetichista potenciada do capital: no a necessidade humana que guia o dispndio de energia;pelo contrrio, a forma "morta" dessa energia, autonomizada como coisa, subordinou a si asatisfao das necessidades humanas. A relao com a natureza, tal como as relaes sociais,tornaram-se meros processos de passagem para a "valorizao do dinheiro".

    Porm, este processo de valorizao, em que o meio fetichista se tornou fim-em-si-mesmo, nose desenvolve sem atritos. Como o trabalho e o dinheiro constituem fases diferentes dodesenvolvimento da valorizao como fim-em-si-mesmo, estes dois momentos tambm podemseparar-se em situaes de crise, deixando assim de coincidir. Tal falta de coincidnciamanifesta-se como uma desvinculao entre o dinheiro e a substncia abstracta do trabalho: amultiplicao do dinheiro ocorre ento mais rapidamente que a acumulao de "trabalho morto"abstractizado, destacando-se assim da sua prpria base. Mas como os dois fenmenos dotrabalho e do dinheiro se formaram num processo histrico cego, nas costas dos sujeitoshumanos, o seu nexo intrnseco escapa conscincia, tanto no "bom senso" comum, como nopensamento cientfico. Trabalho e dinheiro podem surgir opostos um ao outro nas diversasideologias, assim como na concepo do processo econmico.

    verdade que a sociedade moderna considerada em geral uma "sociedade do trabalho" ouuma "sociedade do ganho", e incontestvel que trabalho e receita monetria so, afinal decontas, idnticos. Mas este nexo lgico s compreendido numa acepo sociolgica banal ouapresentado como uma espcie de postulado moral - por exemplo, nas ideologias do "trabalho

    honesto" - , ao passo que a necessidade econmica duma coincidncia destas duas formasfenomnicas do processo de valorizao no considerada plausvel. Atravs das formas demediao entre trabalho e dinheiro, nada fceis de reconhecer e sempre mais complexas nodecurso da modernizao, nasce a iluso de que o dinheiro pode desenvolver-seindependentemente da sua substncia abstracta, constituda pelo trabalho.

    Como se sabe, a teoria econmica burguesa ignora a equivalncia entre trabalho abstracto edinheiro, necessria segundo a lgica do capitalismo: de facto, a economia poltica burguesa,aps a teoria marginalista, abandonou totalmente o conceito de valor, diferentemente dosclssicos (Adam Smith e David Ricardo), ou identificou-o superficialmente com os preosrealizveis, subjectivando-o, enquanto se considerava refutada a existncia duma substnciaobjectiva do valor, e a teoria do valor-trabalho era tida como um simples fssil. Neste pontoconcordam no plano terico ambas as doutrinas econmicas opostas do ps-guerra, o

    keynesianismo e o monetarismo, mas nenhuma delas pode ignorar completamente overdadeiro nexo entre trabalho e dinheiro. O keynesianismo no deixa de ter em conta, ao

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    menos superficialmente, a lgica do trabalho abstracto - embora negando-a em principio -,quando estabelece o nexo entre "emprego" e "receita monetria". Tambm no monetarismo deMilton Friedman o problema se apresenta, intuitiva mas no conceptualmente, quando seidentifica como mal fundamental a desvinculao entre massa monetria e massa de produo(para o mercado). Mas nem o conceito keynesiano de "emprego" (factor procura), nem oconceito monetarista de produo (factor oferta) implicam qualquer relao intrnseca,

    substancial, entre massa de trabalho e massa monetria, de modo a superar a iluso de que odinheiro possui um movimento autnomo. O problema s se manifesta indirectamente.

    Na prtica do processo capitalista, esta iluso nasce da natureza particular do capitalmonetrio concentrado no sistema bancrio. A bem dizer, o dinheiro transforma-se em capitalquando gasto directamente para a valorizao do trabalho abstracto, tornando-se assim "deum valor dado, um valor que valoriza, que se aumenta a si mesmo" (Das Kapital, t. 3, p. 350):os meios de produo adquiridos inclusive a fora de trabalho humana transformam-se,segundo a lgica da racionalidade empresarial em mercadorias para venda no mercado, com orespectivo excedente na forma abstracta do "dinheiro". Esta lgica, resumida por Marx nafrmula D-M-D, s pode ser mediada pelo trabalho abstracto encarnado nas mercadorias. Aempresa produtora de mercadorias, se o prprio capital monetrio no basta, pode tomar deemprstimo (total ou parcialmente) a massa inicial "D" de dinheiro, que actua como capital.

    Para este fim servem as poupanas da sociedade, concentradas no sistema bancrio: dinheiroque seus proprietrios no utilizam, nem para o consumo nem para investimentosempresariais, sendo antes depositado como o osso que um cachorro enterra para roer maistarde.

    Entretanto, mesmo esse dinheiro capital - capital na forma de crdito: temporariamente, osistema bancrio empresta capital empresarial "actuante". O dinheiro no serve aqui para amediao de mercadorias, nem directamente capital monetrio empresarial, que empregatrabalho abstracto no seu processo de valorizao mas torna-se paradoxalmente umamercadoria com cotao em mercados especiais (os mercados financeiros) e cujo preo so osjuros (1). O dinheiro como mercadoria nos mercados financeiros portanto capital que rendejuros, diferentemente do capital empresarial "real, que organiza a efectiva valorizaosubstancial. Do ponto de vista deste capital que rende juros, a frmula da valorizao reduz-sea D-D; ou seja, o dinheiro, aparentemente sem interveno da produo real de "M", ganhaimediatamente, como mercadoria, a "qualidade oculta" (Marx) de gerar - pretensamente de simesmo"mais dinheiro": "O movimento caracterstico do capital em geral [...] o retorno docapital ao seu ponto de partida, assume, no capital que rende juros, uma figura totalmenteseparada, distinta do movimento real de que ela forma [...] Dar, emprestar dinheiro por umcerto tempo e receber de volta o mesmo com juros (valor acrescentado) a forma completa domovimento que cabe ao capital que rende juros como tal. O movimento efectivo do dinheiroemprestado como capital uma operao que se situa alm da transaco entre quem d equem recebe emprstimos. Nestas mesmas operaes, essa mediao cancelada, tornadainvisvel, no directamente compreendida [...] Aqui, o retorno no se exprime, portanto, comoconsequncia e resultado duma srie determinada de processos econmicos, mas comoconsequncia duma estipulao jurdica particular entre compradores e vendedores." (DasKapital. t. 3, p. 360 s.).

    Por um lado, no se pode obviamente negar com seriedade que o dinheiro sem mercadoria (ouo dinheiro por si s como mercadoria) um absurdo social; por outro, segundo o preconceitocomum que v no dinheiro o capital, a "verdadeira" forma de capital no tanto o capitalempresarial produtor de mercadorias, mas antes o capital que rende juros. A nica fonteefectiva de "dinheiro que gera dinheiro" (Marx), o consumo de trabalho abstracto na produoreal de mercadorias, desaparece assim na "forma sem contedo" (Marx) do prprio movimento.No capital que rende juros, a produo de "mais dinheiro" no aparece, de facto,como expresso social (fetichista) da produo capitalista de mercadorias, mas antes comouma produo de mercadorias entre outras, assim como a produo de meias, velas ouviagens de aventura. Sem mais, o prprio trabalho abstracto do sistema bancrio equiparado(inclusive no conceito de "criao de valor", tpico da teoria econmica burguesa) ao trabalho

    desenvolvido nas empresas produtivas e tercirias - fala-se mesmo duma "indstria financeira"(2). A duplicao espectral dos produtos, no sistema de produo de mercadorias, em

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    mercadorias e dinheiro escamoteada atravs duma tosca identificao do dinheiro com amercadoria.

    primeira vista, poderia parecer que se trata aqui apenas duma iluso subjectiva, isto , dasimples ideologia do capital monetrio que rende juros, cujos agentes no tm conscincia doefectivo movimento substancial. Enquanto o processo real de valorizao funciona sobre as

    suas prprias bases, as coisas podem ocorrer de facto assim. Com efeito, para o proprietriodo dinheiro emprestado pode ser indiferente donde provm os juros, que frutificam o seumiraculoso "dinheiro que gera dinheiro". Porm, o caso torna-se problemtico quando odinheiro emprestado no realmente empregue para o efectivo consumo empresarial detrabalho abstracto. Este emprego malogrado, se ocorre em grande escala, faz com que ocapital que rende juros se destaque cada vez mais do processo real de valorizao e se torne"capital fictcio" (Marx) (3).

    O caso mais simples naturalmente aquele em que o real capital empresarial, que tomara deemprstimo o dinheiro, no tem xito com as suas mercadorias no mercado e abre falncia. Ano-coincidncia entre trabalho e dinheiro (o trabalho da empresa produtora de mercadorias foideclarado invlido pelo mercado) tem ento uma repercusso imediata sobre o capital querende juros: os crditos concedidos tornam-se "no recuperveis" (4). O mesmo efeito se

    produz quando o dinheiro emprestado partida no se destina real produo demercadorias, mas ao luxo e ao prestgio por exemplo; foi este o caso de inmeros crditos, apartir dos anos 70, concedidos pelo sistema financeiro internacional a diversos potentados eregimes assassinos do Terceiro Mundo considerados amigos.

    O aparente movimento directo D-D s se torna "fictcio" em sentido estrito quando o malogrodo processo substancial de valorizao maquilhado, pagando-se crditos que se tornarammalparados com novos crditos. o que acontece hoje em grande escala, no s com crditosdo Terceiro Mundo, mas tambm com uma grande massa de crditos s empresas e aoconsumo. Desse modo o sistema financeiro empurra uma montanha sempre crescente dedinheiro creditcio "sem substncia", tratado "como se" passasse por um processo real devalorizao, embora seja apenas simulado por metacrditos. Desta forma, o nexo entre

    trabalho abstracto e dinheiro prolonga-se, de sorte que a no-coincidncia das duas formasfenomnicas no se torna de imediato operativa, mas de algum modo "adiada". Contudo, acadeia fictcia de prolongamentos acabar por romper-se, pois alcanar os seus limites ameta-remunerao de juros do movimento D-D, crescido para alm de seu contedosubstancial (5).

    Um grau ainda mais alto de desvinculao entre trabalho e dinheiro atingido quando odinheiro creditcio serve como ponto de partida dum movimento especulativo, no qual j no hsequer a aparncia duma produo real de mercadorias. O comrcio com os simples ttulos depropriedade de aces e imveis produz assim aumentos fictcios de valor, que no tm maisnada a ver nem formalmente com os ganhos reais provenientes do consumo empresarial dotrabalho abstracto. Um tal movimento especulativo pe-se em marcha sempre que a realacumulao empresarial do capital atinge os seus limites e os ganhos dos perodos passados

    de produo no podem ser investidos, em medida suficiente, num aumento da produo realde mercadorias, mas tm de ser aplicados exclusivamente no sistema financeiro. Assim, apresso para um movimento imediato D-D cresce to fortemente que perante o aumentoespeculativo do valor das aces os dividendos reais so "peanuts"; a relao entre cotaes elucros ultrapassa todas as medidas. Essas bolhas especulativas, fruto do aumento fictcio devalor dos ttulos de propriedade, verificadas inmeras vezes na histria capitalista, sempreterminaram inevitavelmente com uma grande quebra financeira.

    2. A dependncia crescente do capital real em relao ao crdito

    A "condio de possibilidade" de o dinheiro se desligar da sua real substncia de trabalho tanto mais forte, quanto maior se torna na reproduo geral a parte que se refere ao capital querende juros. Quanto a isso, pode de facto constatar-se a longo prazo um desequilbrio a favordo crdito. A extenso gradual da racionalidade empresarial a toda produo, a suacientificizao e o consequente aumento, em escala secular, da intensidade do capital (ou seja,

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    custos prvios sempre mais altos para uma produo competitiva de mercadorias), alm daextenso concomitante do capital accionista annimo, exigem massas sempre maiores dedinheiro creditcio, para poder manter em curso a produo capitalista.

    Para o capital privado do sculo XIX, arcaico do ponto de vista de hoje, com os seusproprietrios pessoais patriarcais e respectivos cls familiares (6), vigoravam ainda os

    princpios da respeitabilidade e da "solvncia", luz dos quais o recurso crescente ao crditoparecia quase obsceno, quase o "princpio do fim"; a literatura ligeira da poca est cheia dehistrias em que "grandes casas" caem por terra devido sua dependncia do crdito, eThomas Mann, nalgumas passagens do seu Os Buddenbrook, fez desse um tema laureadocom o prmio Nobel. Naturalmente, o capital que rende juros era desde o princpioindispensvel como tal ao sistema que se formava, mas no detinha ainda uma parceladecisiva no conjunto da reproduo capitalista; e sobretudo os negcios de "capital fictcio"eram considerados, por assim dizer, tpicos do ambiente de charlatanice de vigaristas e "gentedesonesta ", margem do capitalismo autntico (mas a que j ento se juntava a honorvelburguesia em tempos de ondas especulativas). At Henry Ford se recusou por muito tempo arecorrer ao crdito bancrio para a sua empresa, pretendendo financiar os seus investimentosapenas com capital prprio.

    O conceito patriarcal de solvncia dissipou-se completamente ao longo do sculo XX,simplesmente porque j no era possvel mant-lo em vigor, nem sequer na vida econmicacapitalista normal. As teorias marxistas sobre o novo poder do "capital financeiro" (Hilferding,Lenine e outros) no incio do sculo j eram o reflexo dum processo que via o capitalempresarial real comear a destacar-se estruturalmente da sua prpria base, isto , do trabalhoabstracto; contudo, os marxistas do antigo movimento operrio no deram grande importnciaao autntico contedo econmico (isto , ao aparecimento dos limites da prpria economiabaseada no valor), mas apenas s mudanas na superfcie do capitalismo e nas relaessociolgicas de poder.

    Esse destaque do sistema creditcio pode ser descrito como uma crescente desproporoestrutural, entre o capital fixo cientificizado e a massa de trabalho que ainda possvel utilizar

    rentavelmente; o aumento escala secular da intensidade do capital (que, em Marx, figuracomo "incremento da composio orgnica" do capital) exige um emprego cada vez maior decapital monetrio, que todavia pode mobilizar cada vez menos trabalho por cada unidade decapital. Este facto exprime-se tambm no plano monetrio: trata-se da crescente importncia jdescrita do capital que rende juros. Por outras palavras: o real capital empresarial "actuante",que utiliza trabalho abstracto na efectiva produo de mercadorias, deve recorrer cada vezmais ao capital monetrio, tomado de emprstimo ao sistema bancrio, para poder continuar avalorizar o valor. Dessa forma, a chamada quota do capital social caiu drasticamente a longoprazo; hoje, com algumas excepes, ela sempre inferior a 50% (7). Isso significasimplesmente que o real capital empresarial, para poder continuar a produzir na situaoactual, tem de hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores de trabalho a utilizarno futuro (ou seja, futuros ganhos).

    O capital realmente produtor de mercadorias suga por assim dizer o seu prprio futuro (fictcio),prolongando assim num metanvel a sua vida, para l do limite interno j visvel. Estemecanismo s funciona enquanto o modo de produo continua a expandir-se (como foi o casoat ao ltimo tero do sculo XX) e apenas na medida em que a massa de valor futuroficticiamente antecipada se realizar efectivamente, ao menos em escala suficiente para pagaros juros dos crditos. O facto de os investimentos de capital, em contnuo aumento, j nopoderem ser financiados integralmente com os prprios meios, isto , atravs da massa real delucrospelo menos como norma e na maior parte dos casos - um claro indcio do carctercada vez mais precrio de todo o processo. Este adiamento estrutural em beneficio do capitalque rende juros no ainda a mesma coisa que pagar directamente os juros com outroscrditos; mas o movimento real de acumulao acaba por depender indirectamente daspoupanas concentradas da sociedade.

    A fim de atrair esses dinheiros para o financiamento antecipado do processo de acumulao, preciso oferecer um incentivo aos seus proprietrios, ou seja, a taxa de juros tem que subir,

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    no s aguda e ciclicamente no caso de escassez passageira de capital monetrio (comoconsequncia da dissimulao, atravs de crditos, duma crise na produo real demercadorias), mas tambm estruturalmente e a nvel secular, o que, ao menos depois daSegunda Guerra Mundial, possvel efectivamente observar como tendncia de longo prazo,para alm das fortes oscilaes cclicas. Este aumento secular s contrabalanado por meioduma desenfreada criao de liquidez por parte dos bancos centrais, o que acelera, por sua

    vez, o processo de desvinculao do dinheiro face base produtiva de capital, enquanto onvel dos juros baixa apenas temporariamente. Nesse plano j se torna evidente, portanto, queo processo cclico pouco a pouco estrangulado por um esgotamento estrutural (8). O limiteestrutural do processo de valorizao no seu todo foi protelado, mas cedo ou tarde h-demanifestar-se novamente no plano do capital monetrio, travando a produo real atravs doencarecimento (e, por fim, da crise) do dinheiro. Ao mesmo tempo, os capitais da produo realde mercadorias ressentem-se grandemente das flutuaes dos mercados monetrios; graas crescente importncia social do capital que rende juros, melhoram as condies para osmovimentos especulativos que superam todos os antecedentes histricos. Numa palavra:devido ao seu crescimento interno, o capitalismo industrial torna-se cada vez mais "poucosrio" segundo os seus prprios critrios.

    3. A revoluo terciria

    A argumentao desenvolvida at agora refere-se exclusivamente ao desenvolvimento docapital industrial ou relao entre real produo industrial de mercadorias e capital monetrioque rende juros. Porm, sobre essa estrutura bsica ergueu-se no sculo XX (e comvelocidade maior aps a Segunda Guerra Mundial) o "sector tercirio" dos chamados serviosem contnua expanso. Alguns economistas e socilogos deduziram da a formao gradual deum capitalismo "ps-industrial" dos servios (Jean Fourasti, Daniel Bell e outros). Do mesmomodo que o sector primrio da agricultura perdeu a sua importncia em beneficio do "sectorsecundrio" da indstria, assim tambm a indstria passaria agora o testemunho dos sectoresreprodutivos ao "sector tercirio" dos servios.

    No entanto, esta considerao superficial ignora completamente o facto de que a primeira

    dessas mudanas na estrutura reprodutiva no constituiu, de forma alguma, umdesenvolvimento interno do capitalismo, mas antes coincidiu com a prpria histria daformao e ascenso do capitalismo. No s a tcnica e o contedo material da produo semodificaram nesse processo, mas tambm as formas elementares das relaes sociais foramsacudidas por uma transformao longa, dolorosa e turbulenta. A sociedade agrria pr-industrial, verdade, conhecia como forma marginal o capital comercial e o que rende juros,mas no a valorizao produtiva de capital; havia mercados, mas no a economia de mercado;existia o dinheiro, mas no a economia monetria. O nexo entre mercadorias e dinheiro, comosistema fechado de reproduo, s nasceu com a transformao dos meios de produo e dafora de trabalho humana em capital industrial.

    Se agora estiver iminente uma transio histrica semelhante, da sociedade industrial para ados servios, ser de crer que ela no se limitar a um mero reagrupamento sectorial interno

    das formas existentes de relaes sociais, legadas pela economia de mercado e pelo dinheiro.Por outras palavras: a perda de importncia social dos "sectores" industriais poder ser idnticaa uma crise e a uma perda de importncia do mercado e do dinheiro, na forma capitalistaenquanto forma geral de reproduo; do mesmo modo que no seu tempo a reduo do "sector"agrrio foi idntica a uma crise e a uma atrofia da economia de subsistncia no-capitalista edas relaes feudais. Deste ponto de vista, que vai ao cerne da mudana estrutural, o modo deproduo capitalista aparece como idntico ascenso do sistema industrial; e a "revoluoterciria " aparece em consequncia como a derrocada e o fim do prprio capitalismo, que to pouco eterno quanto o era a velha sociedade agrria.

    Semelhante tese s pode ser i lustrada atravs do carcter histrico diverso das actividades emquesto nos diferentes sectores. O decisivo para a reproduo capitalista o conceito de"trabalho produtivo", que implica logicamente o seu contrrio, ou seja o "trabalho improdutivo".

    Olhando o passado, no mundo feudal e na economia de subsistncia, todo o trabalho "improdutivo" do ponto de vista capitalista, pois (ainda) no serve para a valorizao do capital;

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    em rigor, no se trata de "trabalho", j que essa abstraco da actividade reprodutiva nasceuapenas com o moderno sistema produtor de mercadorias (9). Ora, no interior deste sistema,toda a actividade realizada em troca de dinheiro ou que esteja num contexto de valorizao dodinheiro formalmente um trabalho abstracto. Mas isso no significa que o seja tambm numsentido substancial. Num sentido substancial, trabalho abstracto, isto , trabalho cujo dispndiode energia impulsiona realmente a reproduo capitalista, apenas aquele trabalho "produtivo"

    (produtivo de capital), que cria efectivamente mais-valia (10).

    primeira vista, parece difcil imaginar como esta distino possa ser mantida de modoanaliticamente claro, sem cair em suposies arbitrrias. A este respeito, a teoria de Marx notem disposio instrumentos capazes duma afirmao unvoca; de maneira que o debatemarxista sobre o "trabalho produtivo e improdutivo", escasso no seu conjunto, tambm nochegou a uma concluso ( 11). preciso, pois, indicar os critrios que tornem possveldistinguir entre o dispndio de fora de trabalho humana formal e substancial, no sistemaprodutor de mercadorias. Convm primeiro distinguir entre trabalho produtivo e improdutivonum sentido absoluto e num sentido relativo.

    Improdutivo em sentido absoluto o trabalho no sistema produtor de mercadorias quando,embora realizado em troca de remunerao monetria e no contexto da reproduo centrada

    no dinheiro, no produz por si prprio mercadorias (ou seja, no entra, como tal, na produode mercadorias), ou quando os quase-produtos criados por ele assumem um carcter demercadoria apenas formal e no substancial. Seria uma pseudo-soluo, com apegoexagerado ao empirismo, querer individuar o carcter substancial da mercadoria natangibilidade "material" do produto, declarando "produtivo" por exemplo o trabalho para aproduo de mquinas de lavar ou automveis e "improdutivo" o trabalho do cabeleireiro, dofuncionrio dos correios ou do polcia, porque os "produtos" "corte de cabelo", "expedio decartas" ou "segurana" no so materiais em sentido estrito. Semelhante definio terica -cujo pano de fundo ainda , de forma bastante clara, o materialismo vulgar produtivista doantigo movimento operrio (industrial), com o seu falso orgulho pelo produto industrial -constitui quando muito uma primeira e vaga aproximao ao problema.

    De facto, impossvel esclarecer a questo com uma definio positivista do caso singular eimediato. Pelo contrrio, o carcter do trabalho "em si" improdutivo s pode ser deduzido doprocesso de reproduo do capital, em que o trabalho abstracto passa por diversas formas detransformao e de representao. No preciso que o carcter improdutivo de certostrabalhos seja determinado externamente por definies arbitrrias; antes, ele deve aparecerno prprio clculo como "custo". As massas de trabalho improdutivo e o seu pagamentoaparecem na perspectiva capitalista como "faux-frais" (Marx), como custos falsos. Porm, devedistinguir-se o nvel de capital singular e o decapital conjunto. No plano do capital singular, isto, da empresa, o trabalho improdutivo mas necessrio pode facilmente ser indicado na formade "despesas gerais", por exemplo, despesas com a gesto do pessoal, a contabilidade, alimpeza etc. Estas actividades so indispensveis, num sentido tcnico-organizativo, para ofuncionamento geral da empresa; mas no entram na sua efectiva produo de mercadorias (aproduo de automveis ou de piaabas, por exemplo), ainda que devam naturalmente ser

    remuneradas, tal como o trabalho da prpria produo empresarial das mercadorias.

    No plano do capital singular, o carcter improdutivo destes trabalhos no se manifestaabsolutamente ("em si"), mas apenas relativamente, na medida que as "despesas gerais" dumaempresa podem aparecer como produo substancial de mercadorias ou servios da parteduma segunda empresa, que se especializou em fornec-los a outras (por exemplo, uma firmaque emprega pessoal de limpeza e oferece este "produto limpeza" a outras firmas). Do pontode vista da economia empresarial, o trabalho de limpeza, improdutivo numa empresaautomobilstica, constitui por sua vez o trabalho produtivo da empresa de servios, e ingressaportanto na sua produo substancial de mercadorias; ao passo que o trabalho doscontabilistas da empresa de limpeza faz parte de suas "despesas gerais" improdutivas. possvel, porm, que uma terceira firma efectue a contabilidade para cada tipo de empresa,tornando esta a sua especial mercadoria-servio para oferta: nesse caso, para os fornecedores

    destes servios especiais, at a prpria contabilidade se torna um trabalho produtivo emsentido empresarial. Pode-se imaginar toda uma cadeia desse gnero e, com efeito, aexternalizao de trabalhos considerados como "despesas gerais" para empresas de servios

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    constitui uma das grandes tendncias da terceirizao: graas sua especializao, osfornecedores de servios podem racionalizar os procedimentos operativos e, assim, fazerofertas tais que a organizao destes trabalhos no interior da empresa se torna antieconmica(12).

    A terceirizao no sentido referido at aqui transforma, portanto, ao que parece, trabalho

    improdutivo em trabalho produtivo, atravs da simples autonomizao formal em empresaprpria ( 13). Mas as coisas so diferentes no plano do capital conjunto, que como bvio noaparece imediatamente no clculo dos chamados sujeitos econmicos, mas que pode todaviaser reconstrudo terica e analiticamente. Em primeiro lugar, preciso dizer que as "despesasgerais" improdutivas reaparecem no plano do capital conjunto, ou seja, as externalizaesoperadas pelas empresas singulares e os reagrupamentos no interior da reproduo conjuntareaparecem nos clculos. As "despesas gerais" improdutivas podem ser reduzidas, pelosmotivos indicados, externalizando-as em empresas autnomas, mas, no plano do conjunto dasociedade, elas so sempre uma subtraco da mais-valia conjunta. A representao dos"custos" (da empresa que cria mais-valia) como "ganhos" (da empresa que fornece servios)desaparece no plano do capital conjunto. Marx demonstrou isso exemplarmente para os custosdas transaes puramente comerciais (compra e venda, intermediao monetria etc.): umagrande parte do trabalho no comrcio a retalho e todo o trabalho no sistema dos bancos, dos

    crditos e dos seguros, assim como o da "superestrutura" jurdica, "em si" improdutivo,porque no faz mais que "mediar" as relaes mercadoria-dinheiro, sem ser ele mesmo umaproduo substancial de mercadorias. verdade que os assalariados destes sectores criamum ganho empresarial, mas a sua actividade, efectivamente, limita-se a mediar a redistribuioentre os capitais singulares da mais-valia gerada exclusivamente nos sectores produtivos: pormeio desse trabalho improdutivo de mediao, o capital comercial apropria-se duma parte damais-valia conjunta (explicao detalhada nos volumes 2 e 3 de OCapital)

    Qual ento o critrio econmico decisivo que permite determinar conceptualmente no planodo capital conjunto (isto , depois de eliminar a distoro tpica do capital singular), se umtrabalho produtivo ou no? A distino entre a "verdadeira" criao de valor e a actividade de"simples mediao" (no sentido comercial, monetrio ou jurdico) no suficiente, pois ainda seapega definio imediata de cada dispndio de trabalho. Esta definio s pode indicar omotivo exterior pelo qual uma actividade considerada um trabalho improdutivo, mas nochega a esclarecer o conceito econmico subjacente. Uma definio do trabalho produtivo,referida ao processo de mediao da reproduo capitalista no seu todo, s pode ser avanadaem ltima instnciaem termos de teoria da circulao. Quer dizer: em termos da teoria dacirculao, s produtivo de capital aquele trabalho cujos produtos (e tambm cujos custos dereproduo) refluem no processo de acumulao do capital; ou seja, aquele cujo consumo recuperado de novo na reproduo ampliada. S este consumo um "consumo produtivo", noapenas imediatamente, mas tambm em referncia reproduo (14). Isso ocorre quando osbens de consumo so consumidos por trabalhadores que so por sua vez produtores decapital, cujo consumo no se esgota em si, mas retorna na forma de energia produtiva decapital, num novo ciclo de produo de mais-valia. Inversamente, todos os bens de consumoque so consumidos por trabalhadores improdutivos ou por no-trabalhadores (crianas,reformados, doentes etc.,) no retornam, como energia renovada, na criao de mais-valia: noplano do conjunto da sociedade, trata-se apenas de um consumo que desaparece sem deixarrastos e sem impulsionar a reproduo capitalista. O mesmo vale tambm para a produo debens de investimento: em termos de teoria da circulao, este trabalho s produtivo se oconsumo de seus produtos se d no contexto da criao de mais-valia, isto , se retorna aociclo de produo da mais-valia. Pelo contrrio, todos os bens de investimento cujo consumoocorre fora da produo de mais-valia, integram, no plano do conjunto da sociedade, o meroconsumo que "cai fora" da reproduo do capital global e do seu movimento de acumulao.

    Conceber o trabalho produtivo em termos de teoria da circulao pode parecer estranho aopensamento definidor, infestado de positivismo, mas uma abordagem que permite resolver oproblema para l da tosca "materialidade" da mercadoria produzida. Nesta perspectiva, otrabalho do funcionrio pblico ou do polcia rigorosamente improdutivo, pois o consumo dos

    seus "produtos" (no importa se organizados pelo Estado ou comercialmente) desde o inciono entra, de modo algum, no "consumo produtivo". Mas tambm a produo de carros decombate improdutiva, embora se trate duma mercadoria mais que tangvel; de facto, o

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    consumo de carros de combate (da energia de "nervo, msculo, crebro" gasta para tanto) nopode, nem com a melhor boa vontade do mundo, reaparecer no ciclo da criao de mais-valia,mas "cai fora" dele. Improdutiva ainda construo de estradas, pois o consumo de estradasno "consumo produtivo" na criao de mais-valia e em regra igualmente "cai fora" dela.Produtivo seria o trabalho do barbeiro, no caso de cortar o cabelo a trabalhadores produtivos (oque entra nos custos para renovar sua energia produtiva de capital); o mesmo servio seria

    ento improdutivo se prestado a trabalhadores improdutivos. Mesmo a produo deautomveis, frigorficos e mquinas de lavar improdutiva em todos os casos em que taisprodutos so consumidos por trabalhadores improdutivos; a energia gasta para tantonovamente "cai fora" do processo reprodutivo do capital conjunto.

    Por outras palavras: o capitalismo s substancialmente possvel se parte suficientementecrescente (e que aumenta com a acumulao de capital) do "emprego" capaz de produzir, nocontexto das relaes mercadoria-dinheiro, uma identidade em si mediata de "consumoprodutivo", na qual a produo e o consumo do "valor" interagem, de modo a fazer coincidir emamplitude suficiente forma-fetiche e substncia-fetiche. Rosa Luxemburgo aflorou estaproblemtica, mas no pde desenvolv-la, pois a sua argumentao restringia-se ao planosuperficial da "realizao" (circulativa) da mais-valia, em vez de analisar o problema a partir dociclo interno de reproduo do prprio capital (que no plano do mercado s "aparece"

    indirectamente), ou seja, a partir das categorias de trabalho produtivo e improdutivo. Noentanto, a sua tese duma dependncia crescente da acumulao do capital em relao rendamonetria de "terceiros" (que se acham fora da verdadeira reproduo produtiva do capital)aproxima-se do n do problema. Certamente Rosa Luxemburgo, filha do seu tempo, ainda viaestes "terceiros" no contexto duma produo de mercadorias pr-capitalista ou no-capitalista(camponeses, artesos, colnias), cujo poder de compra devia alimentar o mercado capitalistaque se tornara demasiado reduzido, devido ao "subconsumo" estrutural do proletariadoindustrial. Assim, o capitalismo parece depender, no plano da realizao do mercado, dossectores no-capitalistas da produo e das zonas no-capitalistas da Terra; em consequncia,ele deveria atingir o seu limite absoluto medida que absorvesse e assimilasse estas zonas esectores. verdade que Rosa Luxemburgo menciona de passagem, entre os "terceiros", osprprios funcionrios pblicos; mas ainda no lhe passa pela cabea que, exactamente aocontrrio da sua argumentao, o limite estrutural do capital poderia consistir no prprio facto

    de que a sua dinmica cria um nmero crescente de sectores improdutivos e de "terceiros",cujos rditos e cujo consumo se tornam um nus crescente, por fim insuportvel para areproduo do capital (15).

    Com efeito, o problema que Rosa Luxemburgo reconheceu, embora por assim dizer savessas, apresenta-se justamente desta forma: a parcela de dispndio de fora de trabalhoque no retorna mais circulao ampliada do capital cresce estruturalmente, at por fimsuperar o limiar crtico. Ironicamente, poder-se-ia dizer que os "custos empresariais" ou as"despesas gerais" da maravilhosa economia de mercado crescem to desproporcionadamente,que por fim ela prpria se torna no rentvel, segundo os seus prprios critrios. A maior partedo trabalho tercirio, estruturalmente em contnuo crescimento, no pode retornar produode mais-valia como "consumo produtivo", e isso por diversos motivos; em parte esto nanatureza ou no carcter destes mesmos trabalhos, em parte trata-se de limitaes externas.

    No caso dos trabalhos de transao puramente comercial, jurdica ou monetria, o que osimpede de entrar ou retornar produo substancial de mais-valia o carcter de simplesmediao lembrado por Marx (embora os "produtos" que eles fornecem apaream nomercado); outros produtos no podem sequer assumir partida a forma de mercadoria, umavez que o seu consumo no privatizvel (por exemplo, medidas necessrias para amanuteno da qualidade do ar); contudo, numa economia total do dinheiro, tambm estestrabalhos devem ser pagos e aparecer no mercado de trabalho. Com outros produtos(estradas, canalizaes, escolas, hospitais etc.) possvel, em princpio, uma privatizao doconsumo (de modo mais ou menos penoso); mas seria preciso reservar este consumo a umaminoria capaz de pagar, o que entraria em contradio com o carcter ubquo duma infra-estrutura social.A maior parte da infra-estrutura no pode ser, portanto, organizada como

    produo empresarial para o mercado (nesse caso, o volume das rendas de massa deveria sero dobro ou o triplo do alcanvel na economia de mercado). Diferente ainda o caso desectores comerciais como o turismo: poder-se-ia discutir se se trata de um improdutivo

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    consumo de luxo de poucos pases ricos, mediado apenas pela singular potncia naapropriao e na redistribuio da mais-valia mundial (trs quartos da humanidade no fazemturismo), ou se este consumo entra parcialmente (na medida que desfrutado portrabalhadores produtivos) nas despesas produtivas de reproduo, regressando novamente produo de mais-valia (16).

    O problema que surge aqui porm muito mais complicado do que parece nos diversosdiscursos sobre a "Justia", os quais muitas vezes supem que aos pases pobres sejasubtrada uma parte da "sua" produo de valor, atravs talvez de presses polticas, etc. Naverdade, a prpria "igualdade" do parmetro de valor que faz com que os pases capitalistascom pouco capital possam apropriar-se duma massa relativamente menor de valor em relaoa pases com muito capital. O sistema de coordenadas no constitudo por processosautnomos "nacionais" de criao de valor, mas pela criao de valor por parte do capitalconjunto global, cujo parmetro o nvel de produtividade vlido no mercado mundial. Domesmo modo que um capital singular empresarial obtm no mercado, no um valor "individual"de acordo com a medida do seu tempo de trabalho efectivamente gasto, mas, atravs do preorealizvel no mercado, apenas uma parte da criao conjunta do valor, de acordo com o nvelde produtividade socialmente vlido, assim tambm uma economia nacional no pode obter nomercado mundial uma massa de valor correspondente ao seu dispndio nacional de trabalho,

    mas sempre apenas a parte da produo global de valor que corresponde sua produtividade;e esta , de facto, relativamente mais baixa nos pases com pouco capital. Tanto na relaoentre capital singular e capital conjunto, como na relao entre economia nacional e mercadomundial, o paradoxo est no facto de que aquelas empresas e aqueles pases que, graas sua produtividade relativamente mais alta, criam menos valor (ou seja, menos "trabalhocoagulado" fictcio) - sendo suficiente menos trabalho por cada produto, ou seja, por cadaemprego de capital - podem apropriar-se, na concorrncia do mercado, da maior parcela devalor real (vlido) produzido pelo capital conjunto mundial. Porm no seu estgio terminal,duma globalizao imediata do capital, esta concorrncia demonstra o absurdo da produo devalor e de mais-valia como tal, como se ver a seguir.

    Seja como for, certo que a "indstria " do turismo, pelo menos a do turismo de massas,constitui no contexto da apropriao global da mais-valia uma zona cinzenta na distino entretrabalho produtivo e improdutivo. Embora seguramente ainda existam outros casos-limite,outras zonas cinzentas e formas "mistas" de actividade, o certo que, no conjunto, aumentaincessantemente a parcela dos trabalhadores improdutivos que (do ponto de vista da produode mais-valia) nada mais representam que consumo social, ou seja, "despesas gerais". Ascausas ltimas so, por um lado, o processo de cientificizao promovido pela concorrncia e,por outro, os crescentes "custos de reparao" do homem e da natureza, provocados por"danos sistmicos". Por meio da externalizao empresarial e da conexa racionalizao das"despesas gerais" empresariais, pode-se lograr diminuir os custos do trabalho improdutivo, masesta diminuio sobrecompesada pela expanso estrutural destes sectores, que so"tecnicamente" necessrios, embora no criem em substncia a mais-valia. Os custos dastransaces comerciais, monetrias ou jurdicas, os custos secundrios do consumoimprodutivo de luxo, os custos administrativos, os custos das infra-estruturas e dos danosscio-ecolgicos, os custos das condies gerais e da logstica da produo real de mais-valiacrescem de tal maneira que esta ltima comea a sufocar.

    4. Terceirizao, capital que rende juros e crdito estatal

    Para evitar este sufoco necessria nova interveno do crdito, ou seja do capital que rendejuros, cuja parcela na reproduo aumenta mais uma vez de forma vertiginosa. Aos custos docrdito para a produo industrial de mais-valia, que aumentam em escala secular por causada crescente parcela de capital constante, somam-se agora os custos do crdito, tambm emaumento secular, para as condies gerais e de infra-estrutura do mercado total. Desse modo,porm, o problema agrava-se enormemente. De facto, se no primeiro caso os crditos semprecrescentes ainda so pelo menos utilizados na efectiva produo da mais-valia (embora poucoa pouco surja o risco duma desproporo entre os custos do crdito e a mais-valia dele

    resultante), no segundo caso o crdito tem de ser completamente pulverizado num consumoimprodutivo. Enquanto se trata de sectores comerciais improdutivos, estes pressionamindirectamente a taxa de juros do conjunto social; quando se trata de sectores da infra-

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    estrutura mediados pelo Estado, pelos custos scioecolgicos etc., o resultado uma pressotributria directa sobre os salrios e lucros, ou ento o prprio Estado tem de recorrer aocrdito, no lhe bastando mais as suas receitas reais ( 17). A parcela crescente de trabalhoimprodutivo verifica-se ainda numa forma modificada no clculo dos sujeitos econmicos, comocustos crescentes (da parte das "despesas gerais" sociais mediadas pelo Estado, por exemplosob a forma de "encargos salariais"), que no s so pretexto para jeremiadas segundo o lema

    empresarial "aprenda a gemer sem sofrer", mas tambm se tornaram, de facto, um problemapara a reproduo social.

    Alm disso, preciso considerar um outro fenmeno, pouco observado pela teoria. Na mesmamedida em que aumenta a parcela dos sectores improdutivos na reproduo conjunta, outraparte crescente da mesma produo industrial torna-se estruturalmente improdutiva. Essesimples facto j resulta - como demonstrmos - duma considerao em termos de teoria dacirculao. A massa de trabalhadores improdutivos - que aumenta inexoravelmente e que paga apenas com o dinheiro creditcio, renovado com crditos sempre novos - tem,naturalmente, de comer, beber e habitar, alm de guiar carros, consumir televisores, frigorficosetc. Como porm este consumo, no seu caso, no produtivo e no retorna, portanto, produo de mais-valia, isso significa apenas que, de forma indirecta, uma parte crescente daproduo industrial depende, paradoxalmente, dos sectores improdutivos financiados com

    crditos.

    O paradoxo est no facto de que, por um lado os sectores improdutivos devem ser alimentadosem ltima instncia (no importa quais sejam as mediaes) pela produo real de mais-valia,ao passo que, por outro lado, a produo industrial, como agente principal da criao de mais-valia, torna-se ela mesma, devido ao crescente consumo de trabalhadores improdutivos, cadavez menos (ou, hoje em dia, apenas aparentemente) uma produo real de mais-valia, sendoalimentada pelas rendas improdutivas. A base efectiva, assim, muito mais restrita do queparece. A distino decisiva entre trabalho produtivo e improdutivo no coincide com asrelaes absolutas de grandeza entre a produo industrial nominal e o "sector tercirio", mas -considerada em termos de teoria da circulao - transversal a elas. Na verdade, a produoindustrial de base depende do crdito no s primeira potncia, isto , devido aofinanciamento do prprio capital fixo, mas tambm segunda potncia, porque depende demercados de bens de consumo financiados com crditos (18). Se o consumo estatal e o crditoestatal, avolumados como numa avalanche, desempenham aqui um papel central, isto tambmdepende, est claro, do facto de que o Estado (diversamente duma entidade privada que tomacrditos) tido como um "devedor infalvel": o que significa, porm, que, no caso duma grandecrise monetria e creditcia, o Estado no abrir falncia, mas simplesmente expropriar osseus cidados-credores (19).

    5. Globalizao e indstrias fantasmas

    At agora, tratou-se apenas do conceito de trabalho improdutivo em sentido absoluto ("em si"),no plano do capital conjunto, da maneira como ele pode ser analisado, no seu aspectomultifacetado, nos termos da teoria da circulao. Mas no menos relevante a ascenso

    dentro do sistema industrial da parcela de trabalho que s improdutivo num sentido relativo.Como se sabe, uma actividade produtora de mercadorias improdutiva em sentido relativo,independentemente de suas demais caractersticas, quando a sua produtividade (a relaoentre trabalho gasto e resultado da produo) cai abaixo do nvel social dado, isto , abaixo daprodutividade mdia social. Obviamente, decisivo o campo de aco desse nvel, isto , aquesto se este campo a regio, a economia nacional ou o mercado mundial. Habitualmete,uma produo de mercadorias limitada regionalmente ainda no se organiza de todo segundoa racionalidade empresarial e s se vincula indirectamente valorizao do capital (a chamadapequena produo de mercadorias, artesanato, oficinas de reparao etc.). Neste plano, apresso de um standard social sempre mais elevado ainda no actua, ou s o faz em pequenamedida. S no plano das economias nacionais tornadas coesas no decurso da histria, seafirma tambm, a par da "taxa mdia de lucro", uma produtividade social mdia nos diversossectores, que se torna um ditame para as empresas.

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    Diverso por sua vez o caso do mercado mundial. Aqui no h algo como uma mdia mundial,mas prevalece o nvel de produtividade dos pases mais desenvolvidos. A causa simples:uma mdia social s pode desenvolver-se na base duma contemporaneidade histrica, ou seja,no mbito de economias nacionais historicamente maduras, cujos sectores produtivos seoriginaram num nvel comum e podem, assim, no processo constante de cientificizao,aumento de intensidade de capital etc. elaborar um parmetro comum de produtividade. A

    situao diversa quando sistemas industriais com diversos nveis histricos dedesenvolvimento entram em contacto sem filtros. Em vez da formao de um novo nvel mdio(como supe erradamente Paul Mattick), o que abaixaria rapidamente o nvel das economiasnacionais mais desenvolvidas (mais desenvolvidas porque primeiras a "ingressar" naindustrializao e na capitalizao), o que ocorre a aniquilao e a liquidao da produono-contempornea e pouco produtiva (20).

    De novo o Estado que deve intervir, tanto para boa parte das "despesas gerais" internas dosistema produtor de mercadorias, quanto no que se refere s presses externas daconcorrncia. O meio mais simples com que se filtra a desigualdade - ou no-contemporaneidade - um meio puramente administrativo: erguer barreiras alfandegrias.Porm tal meio s funciona quando a integrao no mercado mundial relativamente baixa,com o consequente isolamento em relao aos progressos tecnolgicos alcanados no mundo

    e com a rpida queda da produtividade. Logo que a mediao com o mercado mundial atingeum grau mais elevado, torna-se subitamente claro que o isolamento alfandegrio comportacustos notveis, j que tudo o que no se pode deixar de importar deve ser adquirido aospreos de mercado mundial, e para tanto necessrio primeiro obter divisas com as prpriasexportaes. Com as barreiras alfandegrias, pode-se proteger a prpria indstria subprodutivada concorrncia estrangeira mais competitiva, mas quando preciso exportar os prpriosprodutos para obter divisas estes s podem ser vendidos a preos do mercado mundial, ouseja de acordo com o nvel de produtividade dos pases mais desenvolvidos que dominam omercado mundial. Em consequncia, delineia-se rapidamente uma dicotomia nos terms oftrade, isto , quantidades sempre maiores do prprio trabalho devem ser trocadas porquantidades sempre menores de trabalho alheio (21). Tal circunstncia suscitou a temticailusria da troca "justa" ou "injusta".

    A situao agrava-se pelo facto de os impostos elevados sobre a importao provocarem comocontrapartida impostos igualmente altos para as prprias mercadorias exportadas para outrospases, tornando o problema das divisas ainda mais grave. No fim das contas, nada mais restaao Estado seno subvencionar as prprias indstrias, seja para salv-las no mercado interno,mesmo no caso duma reduo das tarifas aduaneiras, seja para torn-las artificialmentecompetitivas nos mercados de exportao (subvenes s exportaes). Ora, essassubvenes devoram tanto mais crditos, quanto maiores so as partes da indstria atrasadasquanto ao nvel global de produtividade, definido pelos primeiros na classificao. No caso deindstrias isoladas (minerao, siderurgia, indstria naval, txtil e calado, mveis etc.), issotambm se aplica aos prprios lderes do mercado mundial.

    A to evocada globalizao dos mercados financeiros e de produtos, a decomposio

    internacional dos processos produtivos e a concorrncia global para oferecer os maisconvenientes locais de produo comeam hoje a desintegrar a prpria coeso das economiasnacionais. No fundo, uns poucos centros de produo altamente produtivos, distribudos peloglobo segundo o critrio dos custos mais baixos (o "factor oferta" dos monetaristas), poderiaminundar de mercadorias o mundo inteiro, aniquilando a maior parte das indstrias existentes. Oresultado seria naturalmente o colapso do j precrio poder de compra global; o sistemaprodutor de mercadorias demonstraria com isso o prprio absurdo, no somente em termosestruturais e de economia interna, mas tambm no plano do mercado mundial. Mais uma vez,portanto, o crdito estatal tem de ser dilatado at ao infinito, e as despesas com as subvenesultrapassam todos os limites conhecidos at agora. Para muitos pases, este factor j constituia parte mais importante de todo o crdito. A alternativa seria o franco colapso destaseconomias nacionais; a reproduo capitalista tornar-se-ia ento extremamente minoritria,restrita a poucas "ilhas de produtividade" para o mercado mundial, mercado este que,

    generalizando-se este estado de coisas deixaria de existir. Actualmente, apesar dasdeclaraes ideolgicas em sentido contrrio, os custos do crdito para as subvenescontinuam necessariamente a crescer escala mundial. Na verdade, cresce a parte do sistema

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    industrial global que j depende directamente ( ou seja, no s atravs do consumo doscrescentes sectores improdutivos) da simulao creditcia; do ponto de vista da lgica dosistema, trata-se de meras indstrias-fantasmas, geradas e mantidas em vida artificialmente(22). Depois dos crescentes custos creditcios para a produo verdadeira e prpria de mais-valia, e da crescente parcela de trabalho estruturalmente improdutivo e financiado atravs decrditos, vemo-nos aqui perante a terceira figura da dependncia do conjunto da sociedade em

    relao ao crdito.

    6. Dessubstancializao do dinheiro e inflao estrutural

    Somando as trs figuras da dependncia estrutural do crdito, fica claro que a distnciainexoravelmente crescente entre dinheiro creditcio e substncia abstracta do trabalho dosistema deve conduzir ao colapso. Isso significa que, durante um perodo de incubao, quedurou vrias dcadas, as cadeias creditcias se prolongaram cada vez mais, antecipando umfuturo sempre mais distante. As instituies financeiras cresceram ento em escala secular(23), acompanhadas pela exploso do crdito estatal. O novo estgio de desenvolvimento docapitalismo, que anuncia no s o seu apogeu, mas tambm o seu limite absoluto, foialcanado com a Primeira Guerra Mundial. Tericos do movimento operrio to diversos comoLenine e Rosa Luxemburgo (como vimos, esta ltima chegou a aflorar o problema, e num nvel

    de reflexo muito mais alto que o "politicista" Lenine) adivinharam algo de verdadeiro quandofalavam do "estgio derradeiro e supremo" (Lenine) e at mesmo do "colapso" (Luxemburgo);s que este "estgio" no terminaria o seu curso seno ao fim deste sculo, e o limite histricoefectivo j no pode ser apreendido adequadamente com os conceitos de ento, pois issoultrapassa o prprio horizonte terico do antigo movimento operrio como tal.

    Antes da Primeira Guerra Mundial, o capitalismo era apenas um segmento (ainda que emcontnua expanso) da reproduo social, e ainda no havia invadido todos os sectoresprodutivos; o Estado no havia ainda assumido uma funo determinante no processo dereproduo e financiava-se principalmente por meio de impostos (um Oramento prximo doequilbrio entre despesas e receitas era considerado o pressuposto fundamental para umapoltica sria); dinheiro em sentido prprio era o metal precioso (sobretudo o ouro), o que

    equivale a dizer que os papis-moeda em circulao eram sempre convertveis em ouro. Estestrs elementos dissolveram-se com a Primeira Guerra Mundial que, como a Segunda apenasduas dcada mais tarde, se revelaria um gigantesco acelerador do desenvolvimento capitalista.A guerra industrializada no s escancarou a porta para a sucessiva vitria das indstriasfordistas e para uma penetrao capilar do capital na sociedade como um todo, mas tambmobrigou o Estado a assumir o papel (obviamente h muito j preparado) de responsabilidadepela logstica e pelas "despesas gerais" deste processo.

    Os contemporneos no se deram conta disso; de incio a maior parte via no novo cursoapenas uma interrupo da suposta normalidade pela guerra. Mas logo se tornou evidente queno podia haver um retorno s estruturas do pr-guerra. A "crise financeira do Estadotributrio" torna-se o grande tema que, at depois de meados do sculo, deu causa a inmerasdiscusses acesas (Rudolf Goldscheid e Joseph Schumpeter em 1917/18, James O Connor

    em 1973, Klaus-Martin Groth em 1978 etc.). De 1914/15 at hoje, isto , ao longo de 80 anos,foram revolvidas todas as bases da economia estatal, da teoria monetria, da polticaeconmica e financeira. Durante todo este tempo, o crdito estatal cresceu quaseininterruptamente, e a teoria no fez seno reagir a este processo desconcertante; primeiroassombrada, depois cada vez mais destemida e vontade. Se a perigosa expanso dasfinanas estatais para alm de todas as receitas reais ainda era considerada, no fim daPrimeira Guerra Mundial, como um fenmeno passageiro, uma crise a ser superada, Keynes eo keynesianismo tiveram de elevar pressa os novos fenmenos ao status dumanovanormalidade que, como Schumpeter havia precocemente observado, no implicava um colapsoglobal imediato. A pouco e pouco, concluu-se que jamais aconteceria o colapso estrutural,induzido pela expanso do sistema creditcio.

    Quase os mesmos temores e quase o mesmo alvio pelo fim do alarme se repetiram no final

    dos anos 70, quando novamente se impuseram ateno os limites do endividamento no sdos Estados Unidos com o seu consumo de potncia mundial, mas do "Estado tributrio " em

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    geral (na Alemanha, o apogeu da crise foi marcado pelo conturbado fim da coligao entreliberais e social-democratas). No se verificando nem ento o big bang, todos se tranquilizaramde novo e desenvolveu-se um estado de esprito de desenvoltura sem igual desde o incio dadesproporo estrutural entre trabalho (produtor de capital) e dinheiro. Quanto mais o sistemade crdito se autonomizava, mais as notcias temveis e as crises de outrora se transformavamem "contradies secundrias" incuas e em princpio fceis de resolver (24). Um argumento

    interessado e historicamente cego, que aparece muitas vezes nesse contexto, a afirmao deque o problema no seria propriamente novo; em todos os sculos a partir do Renascimento, eat mesmo na famosa Roma antiga, teria existido uma alto endividamento estatal sem conduzirao colapso.

    Quem argumenta assim no sabe do que fala. No possvel, de facto, nem em sentidoabsoluto nem relativo, comparar os exemplos do passado com o desenvolvimento havido apsa Primeira Guerra Mundial. O endividamento excessivo dos Estados ou dinastias no eraestrutural no sentido do sculo XX; ele era ou vinculado ao financiamento (temporrio) deguerras ou (caso fosse mais duradouro) s despesas da Corte etc., mas nunca se estendeu reproduo social como tal, tornando-se a sua alma. A "lei da quota crescente do Estado"(sobre o produto interno), j enunciada em 1863 por Adolph Wagner, economista e "socialistade ctedra" alemo, e cabalmente confirmada em pleno desenvolvimento real, aponta para a

    nova qualidade do endividamento estatal, sob as condies da reproduo totalmentecapitalista e cientificizada (25). Criou-se, assim, uma situao completamente nova: o problemadas finanas estatais e portanto do "capital fictcio" na forma do crdito estatal, j no dizrespeito s ao aparelho estatal, mas dele depende a prpria vida social organizada segundo aforma-mercadoria.

    Num nvel elevado de cientificizao e de intensificao do capital, as despesas gerais e ascondies infra-estruturais do processo de criao do valor comeam a sufocar a prpriacriao do valor, o que se torna evidente numa paradoxal inverso da relao entre Estado esociedade: j no a sociedade que nutre o Estado, para que este cuide dos "assuntosgerais", mas pelo contrrio o Estado que deve alimentar a sociedade com o "capital fictcio",para que esta possa manter-se na sua forma tornada obsoleta de sistema produtor demercadorias. O processo em que massas cada vez maiores de trabalho futuro so hipotecadase "capitalizadas", o nutrir-se vampirescamente do futuro, abarca agora tanto a reproduo docapital quanto a reproduo do Estado e as duas formas de dependncia do crdito interligam-se. Mas assim a procura monetria de crdito estatal entra em concorrncia com a procuramonetria de crdito empresarial, elevando definitivamente s alturas a taxa de juros,independentemente dos movimentos cclicos. Assim o Estado, logo aps t-lo assumido, perdeo controle da poltica econmica e financeira, uma vez que a sua prpria procura insacivel nosmercados do crdito impede uma poltica coerente, no sentido da diminuio da taxa de juros(26).

    Naturalmente, a necessidade desenfreada de crdito no podia permitir que o dinheiroconservasse a forma que mantivera at ento. Teria de cair por terra a convertibilidade emouro e, portanto, a real substncia-valor dos sistema monetrios. J a fase inicial do conflito

    mundial havia demonstrado que no era mais possvel financiar uma guerra industrializadacom dinheiro baseado em ouro; o desenvolvimento ulterior mostrou que a mobilizao e acapitalizao totais fordistas, desencadeadas pela guerra mundial, tornaram irreversvelmesmo nos sectores civis o incremento do consumo estatal financiado com crditos. EmboraKeynes ainda visse o consumo estatal como uma medida temporria de emergncia para "prem movimento" a conjuntura, e portanto como uma interveno sobretudo externa, tratava-sena verdade - como se tornou evidente aps a Segunda Guerra Mundial - duma mudanaestrutural duradoura, fruto das necessidades internas do sistema. O programa keynesianosuposto para fazer frente s crises (deficit Spending) transformou-se num forno sempre aceso,para queimar o futuro hipotecado. Naturalmente assim se tornou de todo impossvel umregresso ao gold standard, pois as massas de dinheiro creditcio agora necessrias nopodiam de forma alguma ser relacionadas com uma autntica substncia-valor do dinheiro(27).

    Por outras palavras: a dessubstancializao do prprio dinheiro tornou-se uma realidade. Parao ponto de vista superficial da teoria econmica burguesa - que nunca conseguiu compreender

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    as supostas implicaes "filosficas" do conceito econmico de valor e que h muito se limitou,no plano prtico, a produzir manipulaes de tcnica financeira ou a formular, no plano terico,platnicos modelos matematizados - isso naturalmente no era uma catstrofe. Assim, a partirde Keynes as pessoas esforaram-se por assegurar que o ouro era somente um "metalbrbaro", sem mais nenhum significado monetrio. claro que ningum se perguntou se amediao social monetria e o automovimento fetichista do "valor" no seriam eles prprios um

    primitivismo brbaro, que no fim de contas no fica atrs do "brbaro metal". Adessubstancializao do dinheiro significa nada menos que a sua desvalorizao efectiva, eportanto a perda duma funo monetria essencial: a de meio de conservao do valor.

    Por outras palavras: a conservao do valor atravs do dinheiro repousa, aps a perda daconvertibilidade em ouro, apenas sobre a conveno e a aceitao subjectiva, mas no maissobre um fundamento objectivo. Isso significa que a conservao do valor por parte do dinheirose acha indissoluvelmente ligada aos tempos de bonana econmica, mas que ela nosuperaria uma crise mais profunda da reproduo. Assim, o sistema desactivou o seu prpriodispositivo interno de segurana. J se vislumbra aqui a quarta figura da desvinculao entre"trabalho" e dinheiro, sem a qual na verdade as outras no teriam podido desenvolver-se: estasitua-se no plano e na forma do prprio dinheiro. A consequncia lgica destadesssubstancializao estrutural do dinheiro necessariamente a inflao estrutural.

    Ainda nesta perspectiva, so muito precipitadas as declaraes tranquilizadoras doseconomistas keynesianos (e tambm de grande parte dos marxistas). No constitui nem meiaverdade a afirmao segundo a qual a rpida e alta inflao dos preos, por ocasio dadiminuio explcita ou velada do contedo de metais preciosos atravs do cerceamento damoeda na Baixa Idade Mdia, ou por ocasio da supresso da convertibilidade dos papis-moeda em ouro ou prata (por exemplo, o famigerado papel-moeda de Law na poca doabsolutismo na Frana, as ordens de pagamentodo governo revolucionrio francs ou o dlar-papel na guerra civil americana) seriam apenas uma consequncia da falta de hbito e detcnica financeira. De facto a desvalorizao temporria da moeda no passado no foisuperada atravs do uso habitual do dinheiro dessubstancializado, mas pelo contrrio atravsda imposio generalizada do gold standard.Alm disso, as economias de guerra de ambosconflitos mundiais foram seguidas por uma drstica desvalorizao monetria, a comearobviamente pela Alemanha vencida: em 1923 como hiperinflaco e em 1945-48 como choquedeflaccionrio (invalidao dos depsitos e papis-moeda).

    tambm na poca da expanso keynesiana do crdito (sobretudo do crdito estatal), depoisda Segunda Guerra Mundial, que a inflao se tornou omnipresente; justamente nesseperodo que ela passou de oscilao temporria a condio estrutural estvel. Nesta inflaoestrutural estvel - que pde ser ocasionalmente reduzida com intervenes de polticamonetria dos bancos emissores e dos legisladores, mas nunca inteiramente eliminada - amassa oculta do trabalho improdutivo surge superfcie monetria e no clculo dos sujeitoseconmicos, tal como no crescente aumento dos custos salariais e do pagamento de jurossobre crditos das empresas, do Estado e dos consumidores. Se esta inflao estrutural semove num plano relativamente baixo, pelo menos nos pases da OCDE, isto deve-se por um

    lado conjuntura que ainda "avana" (embora j se percebam profundos fenmenosrecessivos), e por outro tambm parcial externalizao do problema para as regiesperdedoras do mercado mundial (28).

    Graas sua vantagem na produtividade e na intensidade de capital, as metrpoles industriaispuderam durante muito tempo sugar a maior parte da mais-valia global e manter acesso aocrdito internacional, para alm dos mercados financeiros nacionais; ao passo que a periferia eos retardatrios histricos, para manter um mnimo de reproduo, tiveram de recorrer cadavez mais criao estatal de dinheiro sem substncia, ou seja inflao do papel-moeda.Contudo, em virtude do processo de globalizao a partir dos anos 80, tambm os velhoscentros capitalistas se acham cada vez mais prximos desta situao. O financiamentotemporrio atravs de emisses de papel-moeda, tpico da economia de guerra durante osconflitos mundiais, no s se repete hoje em grande parte do mundo, mas tornou-se j a

    condio duradoura da reproduo social como tal. Este fenmeno deveria ser consideradocomo a quinta figura da desvinculao entre "trabalho" e dinheiro, pois, aqui, o dinheirodessubstancializado no passa mais nem pelos mercados financeiros regulares; antes, a

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    reproduo social sob a forma-mercadoria alimentada directamente com volumes de moedacriados do nada, com base na simples deciso estatal.

    Na Amrica Latina, na frica, em muitas reas da sia e no prprio leste Europeu, estamosperante o fenmeno totalmente novo dos ciclos hiperinflaccionrios, isto , de um movimentoda economia que no segue mais o ciclo "regular" da acumulao do capital, mas sim o ritmo

    da emisso de papel-moeda, numa cadeia ininterrupta de desvalorizao e recomposio damoeda. De facto, no exagero falar hoje do colapso global da economia monetria (eportanto da moderna "sociedade do trabalho" e do respectivo sistema de mercado). S o velhoeurocentrismo - que a este respeito curiosamente bem pouco criticado - impede umaavaliao adequada da real evoluo mundial. Enquanto o Ocidente por ora ainda se acha nafase da inflao estrutural a baixos ndices do ps-guerra, a maioria esmagadora dahumanidade j tem de conviver com uma inflao de dois ou trs dgitos ou com ahiperinflaco a taxas entre mil e um milho por cento. A taxa global de inflao por cabea jdeve ter entretanto atingido os trs dgitos. Esse facto demonstra que o trabalho improdutivoglobal superou um limiar histrico crtico, tanto no sentido absoluto quanto no sentido relativo, eque a sociedade mundial centificizada est agora demasiado crescida para caber nas formasdo sistema produtor de mercadorias.

    7. Da expanso fordista revoluo microeletrnica

    No perodo que vai do fim da Primeira Guerra Mundial a finais dos anos 70, a crise estruturaldas "despesas gerais" sistmicas atravs do trabalho improdutivo, das finanas estatais e dainflao apresentava-se somente como um problema colateral, ou seja, limitava-se a crisestemporrias ou de nveis estruturalmente baixos. A causa desta aparente superao doproblema, que faz dessa poca apenas o perodo de incubao do verdadeiro e absolutodesastre sistmico, deve ser buscada nas caractersticas da expanso fordista. A expansodas novas indstrias, com a produo automobilstica em posio de destaque - ela prpria umresultado da Primeira Guerra Mundial - encobriu por mais de meio sculo a crise estruturalnascida da expanso contempornea do trabalho improdutivo.

    Melhor dizendo, estamos aqui diante duma encruzilhada paradoxal, j que houve a expansosimultnea do trabalho produtivo e improdutivo. Por um lado, o fordismo mobilizou novasmassas de trabalho produtivo em dimenses at ento inconcebveis; por outro, este mesmodesenvolvimento s foi possvel com a repentina extenso da logstica social, das condiesinfra-estruturais e assim por diante; ou seja, com o incremento do trabalho improdutivo. Adesproporo na expanso dos dois factores opostos ps vrias vezes na ordem do dia oproblema da crise estrutural (sobretudo no plano das finanas estatais); mas no fim de contas aexpanso do trabalho improdutivo ainda podia ser "alimentada" a longo prazo com a expansosimultnea do trabalho produtivo nas indstrias fordistas, ou seja, o crescimento absoluto dasubstncia real de valor compensava o aumento absoluto e relativo dos sectores improdutivos.

    Em termos fenomenolgicos, a expanso fordista do trabalho produtivo e da substncia real dovalor pode ser descrita em diversos planos que se sobrepem. A extenso interna e externa da

    valorizao do capital, e portanto da racionalidade empresarial, abriu novos campos daproduo real de mais-valia. Quanto ao exterior, tal extenso traduz-se na contnua insero naforma capitalista de reproduo - j referida no Manifesto Comunista - de regies da Terra atento no-capitalistas, bem como na conexa exportao de capitais (um elemento importantena teoria de Lenine, embora concebido de forma redutora); internamente, o mesmo efeito foiobtido com a transformao das formas de reproduo at ento no-capitalistas(camponeses, artesos e economia de subsistncia) em sectores de valorizao do capital,tornada possvel pelos novos mtodos fordistas. Ao contrrio do que julgava RosaLuxemburgo, a transformao de ex-"terceiras pessoas" em assalariados capitalistas aumentouinicialmente a criao de mais-valia no plano da produo, em vez de representar um limite noplano do mercado e portanto da realizao. De facto, junto com a expanso da criao real devalor, eram geradas mais rendas monetrias capitalistas reais.

    Mas a verdadeira expanso devia-se combinao de novas indstrias e de novasnecessidades de massas. A mera expanso em sectores produtivos j existentes jamais

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    possibilitaria o secular boom fordista, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Na baseenergtica, nos combustveis fsseis, a passagem das mquinas a vapor alimentadas a carvopara os motores de combusto alimentados a petrleo tornou possvel, em conjunto com aracionalizao fordista ("organizao cientifica do trabalho", linha de montagem), um salto nodesenvolvimento social, que fez entrar no grande consumo de massas produtos at a PrimeiraGuerra Mundial reservados s camadas superiores da sociedade. Nasceram novos produtos

    como o rdio e a televiso, que desde o princpio existiram sob a forma de produo em massapara o consumo das massas. Os produtos de massa fordistas, todos criados directa ouindirectamente com base no petrleo, levaram ao capitalismo fordista, com o seu consumoenergtico monstruoso e expandido at o desvario, e mais tarde aps a Segunda GuerraMundial, democracia baseada no consumo energtico, que, no obstante o seu carcterhistoricamente efmero, ainda hoje vista como a normalidade nos pases centrais da OCDE(e entre as classes mdias de todo o mundo).

    Decisiva para a reproduo sob a forma-mercadoria , porm, a expanso da substncia realde valor e das suas formas sociais de mediao, ocultas atrs da fenomenologia do fordismo.Aqui obviamente possui a sua importncia o problema da famosa "queda tendencial das taxasde lucro" que o debate marxista, hoje j quase esquecido, sempre ruminou em vo. A"composio orgnica do capital" (Marx), que historicamente aumenta com a crescente

    cientificizao e que, no clculo capitalista, aparece como aumento da intensidade de capital,isto , como aumento dos capitais necessrios para cada emprego, aponta para um movimentoem sentido contrrio no interior do processo de criao de valor (e, portanto, de produo damais-valia).

    O rpido aumento da cientificizao, tecnicizao e racionalizao tornara-se necessrioapenas aps a expanso da "mais-valia absoluta" atravs da ampliao ilimitada da jornada detrabalho e do ilimitado desgaste da fora de trabalho ter encontrado no curso do sculo XIXlimites naturais e sociais (movimento operrio, intervenes estatais). Em vez da "mais-valiaabsoluta" como principal meio de acumulao surgiu a "mais-valia relativa", ou seja, a reduodos custos de reproduo da fora de trabalho - reduo esta que tornava mais econmicos osmeios de subsistncia, o que, por sua vez, era possibilitado pelas cincias naturais aplicadas;s o fordismo acelerou e generalizou esta tendncia (29).

    Porm, a produo da mais-valia relativa conduz a uma contradio lgica. Ela aumenta aparcela de mais-valia por cada fora de trabalho, mas ao mesmo tempo por causa dos efeitosda racionalizao produzidos pelo mesmo desenvolvimento, pode-se empregar cada vezmenos fora de trabalho para cada soma de capital (o que faz aumentar, como vimos, oscustos preliminares para cada emprego, ou seja, a intensidade de capital ou a parcela decapital fixo na "composio orgnica"). Este segundo efeito de tendncia contrria, compensa oprimeiro efeito a longo prazo. Isto significa que o aumento da taxa conjunta de mais-valiarelativa para cada fora de trabalho obtido ao preo duma queda concomitante da taxa delucro para cada soma de capital investido. Tal efeito s pode ser compensado se crescer amassa absoluta de fora de trabalho (produtiva!) utilizada, e portanto se juntamente com amassa absoluta de mais-valia crescer a massa absoluta de lucro; mas isto s possvel com

    uma extenso permanente do modo de produo como tal. Tal extenso foi efectivamenteconseguida em certa medida no modo de expanso fordista.

    Mas j na dinmica da expanso fordista da massa absoluta de mais-valia/lucro (30) h umsrio problema: tal expanso s era possvel atravs da concomitante expanso das condiesinfra-estruturais improdutivas em termos capitalistas. Uma parte cada vez maior dos produtosindustriais fordistas suplementares era consumida por trabalhadores improdutivos, o quepressupunha uma alterao fundamental do regime de acumulao. Justamente por essemotivo, desde o incio o deficit spending keynesiano no foi uma simples medida depreparao ou de transio, mas antes a condio estrutural de existncia e o instrumentopoltico de regulao da expanso fordista, que s comeou escala global depois daSegunda Guerra Mundial. Ora isso significa que a expanso fordista, com o seu "milagreeconmico", j no era em princpio um grande avano secular da acumulao autnoma de

    capital, antes j devia ser alimentada com a hipoteca de massas futuras de valor. Overdadeiramente "autnomo" na era fordista e no seu "modelo de acumulao" era apenas opagamento regular dos juros da massa creditcia cada vez maior, atravs duma efectiva

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    ampliao da massa absoluta de lucro. Porm, tal extenso da massa absoluta de lucro j eramenor que a concomitante e inevitvel ampliao das "despesas gerais" improdutivas dosistema de mercado em vias de totalizao.

    Segue-se que a expanso fordista nada mais podia ser desde o incio do que um processohistrico circunscrito. Mais: como o capitalismo e a sua racionalidade empresarial constituam

    no fim da Primeira Guerra Mundial apenas um segmento da reproduo social, h-deconsiderar-se a era da acumulao fordista um estgio irrepetvel de transio na histriainterna do capitalismo, em vez de apresent-la como uma "condio estrutural" abstracta. Ocapitalismo um processo histrico de generalizao dos prprios critrios, que deveprosseguir em nveis cada vez mais elevados, sem jamais poder voltar atrs. Por isso erradoconceber a sua histria como uma simples sucesso de estruturas, sem levar em conta adinmica autodestrutiva do processo no seu conjunto. Poder-se-ia dizer tambm: na medidaque o capitalismo "triunfa", tornando-se a forma omnipresente de reproduo social (e por fimda sociedade mundial) - fenmeno este inaugurado apenas pelo fordismo -, demonstra tambma sua prpria impossibilidade lgica. A sua vitria absoluta deve portanto coincidirhistoricamente com o seu limite absoluto, ainda que a prpria esquerda marxista no queiraouvir falar disso, pois ela jamais analisou a fundo o problema dos sectores da reproduo (nemportanto o problema da "revoluo terciria"), auto-convencendo-se cada vez mais da

    capacidade imanente de o modo de produo capitalista se perpertuar (31).

    A expanso do modo de produo capitalista, como pressuposto da expanso fordista damassa de lucro e portanto da compensao da diminuio da taxa de lucro, implica anecessidade de ampliar permanentemente a produo e consequentemente os mercados. Masisso s funcionou enquanto os investimentos para o desenvolvimento de novos produtos e paraa ampliao superaram em medida suficiente os investimentos destinados ao desenvolvimentode novos procedimentos e racionalizao: de facto, s desse modo se empregou uma massaem termos absolutos crescente de fora de trabalho industrial, e foram criadas crescentesrendas monetrias "baseadas na produo", apesar da racionalizao. S enquanto estarelao foi mantida pelo menos at certo ponto, foi possvel manter viva a expanso fordista"em bola de neve", apesar da presena duma parcela desproporcional de sectoresimprodutivos, e pagar com uma massa real de valor os juros da montanha de crditos quecrescia em simultneo.

    Essa decisiva distino est ausente da maioria dos discursos, tanto burgueses comomarxistas, relativos "teoria do crescimento": quase sempre, o "aumento da produtividade" ouo crescimento da produtividade so identificados directamente com o crescimento dosmercados, com a criao de valor e logo com a acumulao de capital (32). No entanto isso s vlido em condies bem determinadas e bastante precrias, a saber: que o aumento daprodutividade seja menor do que a ampliao dos mercados internos e externos por elepossibilitado. O salto de produtividade na indstria automobilstica organizado por Henry Fordfez com que para cada automvel se empregasse muito menos fora de trabalho; mas aconsequente transformao do automvel num produto de consumo de massas desenvolveu aproduo automobilstica de tal forma que, no conjunto, apesar da racionalizao e do aumento

    de produtividade, muito mais fora de trabalho pudesse ser empregada produtivamente naindstria automobilstica, aumentando assim a prpria produo real de valor. evidente,porm, que esta condio no existe automaticamente, e que no pode perdurar ad infinitum. inevitvel chegar a um ponto em que a relao se inverte: perante mercados relativamentesaturados, novos saltos no crescimento da produtividade tm o efeito inverso, isto , superam aampliao dos mercados de trabalho e das mercadorias por eles proporcionada.

    Todo este mecanismo de compensao iria ento parar medida que a fora da expansofordista decrescia. No que toca expanso externa, esse ponto critico fora j atingido poucodepois da Segunda Guerra Mundial; a balana das exportaes de capitais indicava um saldono mais positivo, quando no negativo; tratava-se sempre menos do aumento da produo esempre mais do simples deslocamento da produo por motivos de custos. Hoje, graas globalizao da produo, este processo entra na sua fase madura (o que j seria possvel

    compreender h tempo, pelo facto de o comrcio mundial crescer mais rapidamente do que aproduo mundial). Neste sentido, a teoria da crise de Rosa Luxemburgo demonstrava (edemonstra) um acerto substancial, j que a qualidade compensatria da expanso externa

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    diminui e torna mais uma vez visvel a sua imediata qualidade de crise como limite do modo deproduo.

    Essencial foi no entanto o colapso do mecanismo de compensao no plano da expansointerna, que atingiu a fase crtica com a revoluo microeletrnica. No final dos anos 60, aexpanso fordista exaurira-se no prprio interior dos pases mais desenvolvidos. A agricultura,

    a pequena distribuio e produo de mercadorias etc., agora estavam completamenteintegradas na racionalidade empresarial e industrializadas fordisticamente; alm disso, asinovaes fordistas de produtos, assim como os mercados de consumo de massa, j no tonovos assim, estavam beira da saturao. Dali em diante, as inovaes (a substituio dodisco de vinil pelo CD e novos produtos semelhantes, por exemplo) no podiam mais suscitaravanos significativos no plano da criao real de valor; para os antigos produtos fordistas(automveis, eletrodomsticos, aparelhos audiovisuais etc.) havia apenas as substituies(aceleradas quando muito pela "usura artificial", isto , pelo rpido desgaste do materialconscientemente planeado e portanto pela degradao da qualidade), e no mais novos evastos mercados de consumidores.

    A estagnao do fordismo plenamente evoludo ainda podia ser prolongada por um certotempo mediante a expanso da indstria de bens de investimento. Internamente contudo estes

    investimentos j eram cada vez mais simples investimentos de racionalizao, que comeavama solapar o potencial real conjunto da criao de valor. Externamente, eram os retardatriosfordistas na periferia capitalista e no Terceiro Mundo a oferecer um certo potencial suplementar exportao. Mas logo se constatou que a expanso fordista no era universalizvel, antesficaria circunscrita a poucos pases. Tanto os custos preliminares de capital quanto os custosda infra-estrutura social necessria subiram a partir da Segunda Guerra Mundial a nveis toastronmicos que se tornaram proibitivos para a esmagadora maioria dos pases j no inciodos anos 70. Portanto, em muitos casos a expanso fordista interrompeu-se no incio ou ameio caminho. As importaes de bens de investimento empresariais ou infra-estruturaisdeviam ser antecipadamente financiadas por crditos e os processos produtivos desenvolvidosno conseguiam sequer pagar os juros destes crditos. O resultado foi a famigerada crise dasdvidas do Terceiro Mundo, que persiste at hoje e que atinge agora um volume de 1,8 biliesde dlares. Em muitos casos tratava-se de projectos partida totalmente insensatos(barragens, centrais nucleares etc.), fruto exclusivo da colaborao entre polticos corruptos eempresas internacionais (como por exemplo a Siemens) para obter ganhos fceis (33).

    A estagnao, em geral catastrfica, da expanso fordista na periferia capitalista anunciou acrise final tambm nos pases centrais. J a crise petrolfera, em meados dos anos 70,demonstrou que a estagnante criao real de valor das indstrias fordistas suportava agora malos custos adicionais. Comeou ento um movimento em sentido contrrio, cujo fenmeno maisvisvel o desemprego estrutural de massas em todos os sectores fordistas; um desempregoque cresce de ciclo para ciclo. A partir do incio dos anos 80, o motor central deste processo foia revoluo microeletrnica, que fez derreter como neve ao sol o ncleo de empregos naindstria. O emprego industrial diminuiu em vrios milhes s na Alemanha Ocidental, emvagas sucessivas de 1980 a 1995. O mesmo vale para os demais pases industrializados. Essa

    diminuio no foi compensada, e muito menos sobrecompensada, pela expanso fordista nasia e noutros pases, como acredita um certo discurso de provenincia marxista, totalmenteingnuo no campo da teoria da acumulao (34). O elenco das cifras, primeira vistaimpressionantes, sobre a expanso industrial na ndia, na China ou nos "pequenos tigres" dosudeste asitico ignora porm duas coisas. Em primeiro lugar, no caso dos grandes Estadoscomo a China, trata-se ainda em grande parte do antigo modelo de indstrias-fantasmas (doponto de vista do mercado mundial) subvencionadas pelo Estado, um modelo que se tornamais precrio de ano para ano e que no ser possvel preservar em caso duma aberturacrescente ao mercado mundial, imposta pela nova industrializao voltada para a exportao.Feitas as contas, nos sectores industriais orientais voltados para a exportao so criadosmuito menos empregos adicionais do que se perdem a mdio prazo nesse mesmo processonas velhas indstrias estatais.

    Em segundo lugar, mais empregos industriais em alguns (relativamente poucos) pasesfordisticamente retardatrios no significa de maneira nenhuma maior criao real de valor,cujo standard, com a crescente globalizao, ditado pelo nvel produtivo do mercado mundial,

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    isto , pelos sistemas industriais mais desenvolvidos. Como tais standards empresariais e infra-estruturais so inacessveis em larga escala at para os newcomersasiticos, estes ltimosprocuram compensar a prpria desvantagem sobretudo com salrios baixos, pssimascondies de trabalho e destruio desenfreada do meio ambiente. A longo prazo, isto insustentvel mesmo no plano empresarial, ainda que a curto prazo possa compensarparcialmente a superioridade que tm os pases industriais no plano da disponibilidade de

    capital. Nas condies da globalizao, so sempre as mesmas empresas ocidentais quelucram com o desnvel nos salrios e nas leis, atravs de investimentos flexibilizados por todo omundo. Mas tudo isto ocorre somente no mbito empresarial e na superfcie do mercado. Areal criao de valor por parte do capital mundial no de modo algum ampliada. Medido combase nostandard global de produtividade, bem possvel que 100 ou 1.000 operrios desalrios baixos e com relativamente pouco capital fixo produzam menos valor do que um nicooperrio dotado de alta tecnologia e elevado capital fixo no mesmo sector. O que se apresentacomo vantajoso para o clculo particular do capital singular - que pela sua prpria naturezadeve ser cego em relao ao processo conjunto da valorizao - no tem nada a ver com acriao substancial de valor no plano da sociedade (hoje da sociedade mundial) (35).Obviamente, o problema da substncia real do valor acabar por fazer-se notar na superfciedo mercado, com limitaes aparentemente externas (e inesperadas) para o clculoempresarial.

    Em suma, pode dizer-se que com a revoluo microeletrnica, cujo potencial est longe doesgotamento, a partir de incios dos anos 80, juntamente com a expanso fordista estagnoutambm a ampliao do trabalho produtivo e, portanto, da criao real de valor; assim, a partirde agora o trabalho produtivo retrocede escala global. Isto significa que hoje j no existe omecanismo histrico de compensao, que sustentou a expanso simultnea do trabalhoimprodutivo em termos capitalistas. Na verdade, a base da reproduo capitalista j alcanou oseu limite absoluto, ainda que o seu colapso (no sentido substancial) no se tenha realizado noplano fenomnico formal. Mas tal realizao j no se apresenta apenas como diminuioacentuada da taxa de lucro. Esta expresso indica, de facto, somente o modo como aparece olimite relativo da reproduo capitalista nas condies duma massa absoluta de lucro ainda emcrescimento (ampliao do modo de produo) (36). Quanto a isso, mais uma vez tem razoRosa Luxemburgo na suaAnticrtica, ainda que essa limitao relativa no se estenda "at ao

    dia em que o sol se apagar". O limite absoluto no aparecer sob a forma duma simplesacelerao linear da "queda tendencial", de modo que o capitalismo seja abandonado comresignao pelo management, por falta de rentabilidade. Antes, atingido o limite absoluto, findatambm a acumulao absoluta de "valor" em geral. Em termos substanciais: a taxa de lucrosno "diminui", mas deixa totalmente de existir, com o desaparecimento de massassuplementares de valor. O conceito torna-se sem sentido (37). Ao mesmo tempo, o processode acumulao continua ainda formalmente por um certo perodo ( e assim so auferidoslucros em termos formais), mas j sem nenhum vnculo com a substncia real do valor (emqueda), guiado apenas pela agora incontrolada criao de "capital fictcio" e de dinheiro semsubstncia, nas suas diversas formas fenomnicas.

    Nos anos 80, as instituies capitalistas no deixaram de reagir a esta evoluo. Por um ladona esteira da onda ideolgica neoliberal triunfante em todo mundo, os mercados financeirosforam "desregulamentados" de forma nunca vista (ou seja, "libertados" de todos os dispositivosde segurana ainda existentes), a fim de criar suficiente liquidez global para a acumulao-fantasma sem base real. Por outro lado, lanou-se uma ofensiva contra o consumo estatal(sobretudo contra o Estado social), a fim de baixar a parcela estatal e repristinar condiessupostamente "regulares"; nisto o monetarismo deve ser considerado, por assim dizer, umaespcie de sombrio pressentimento e reaco instintiva por parte das instituies capitalistas. Aesperana de um regresso acumulao "regular" do capital porm v, uma vez que no lugardo consumo estatal no surge um segmento de capitalismo privado com a mesma dimenso,mas vem luz somente o vazio substancial da reproduo, ou seja, o facto de que uma grandeparte da reproduo capitalista depende h tempos do "capital fictcio" do consumo estatal eno poderia sobreviver a um Estado realmente "enxuto". Eis por que a ofensiva "reaganmica"ou "thatcheriana" contra o consumo estatal fracassou mesmo nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha. O n da grande crise, que tambm empiricamente se torna mais presente do quenunca, manifesta-se inevitavelmente no plano dos mercados financeiros desregulamentados.

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    8. As estruturas globais do dficit e o curto Vero do capitalismo de casino

    Para a memria notoriamente breve dos homens socializados pelo mercado (onde se incluemh muito tempo os prprios tericos da esquerda e ex-esquerda), tudo isso pode soarfantasioso, j que eles s ho-de "crer" na crise absoluta quando tiverem que procurar acomida no lixo ou quando estiverem sob o fogo da artilharia; e como so especialistas do

    recalque, talvez nem assim. Onde est o colapso por estes lados? - perguntam eles com umsorriso mais ou menos acentuado. Ora, verdade que se trata de processos histricos; mas,no sentido histrico so processos bastante breves, se bem que possam parecer longos para aconscincia formada pelo mercado e pela poltica. Se o Vero siberiano do boom fordista nops-guerra j foi curto, a poca seguinte do "capitalismo de casino" ser ainda mais breve.Aps meados dos anos 80, a acumulao fictcia converteu-se num boom puramenteespeculativo, que nos anos 90 mantm um nvel elevado, embora o "estouro da bolha" j setenha feito anunciar diversas vezes.

    Quais sero as consequncias, se estourar a bolha global? Os espritos ingnuos crem quemnimas ou nenhumas e alguns citam at mesmo Marx, que escreveu, de facto: "Uma vez quea diminuio ou