A bioética e sua relação com os direitos humanos pdf

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1 A BIOÉTICA E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS HUMANOS BIOETHICS AND ITS RELATION TO HUMAN RIGHTS Prof. Ms. Ricardo George de Araujo Silva 1 Resumo: O presente texto pretende ser uma reflexão sobre a relação entre bioética e direitos humanos. Nossa hipótese sustenta que não temos como fundamentar um, sem tocar nas premissas do outro, para tanto nos utilizamos de elementos históricos, no que concerne, a ocupação do espaço público e as ações do totalitarismo. Apoiamos-nos teoricamente no pensamento de Hannah Arendt, para dar suporte a nossa análise. Assim, queremos ser mais uma provocação ao tema, sem pretensões de esgotar a questão em debate. Palavras chaves: Bioética, Direitos humanos, Espaço Público, Totalitarismo. Abstract: This text is a reflection on the relationship between bioethics and human rights. Our hypothesis maintains that we can not substantiate one, without touching the premises of another, for both the use of historical elements, as regards the occupation of public space and the actions of totalitarianism. Theoretically support us at the thought of Hannah Arendt, to support our analysis. Thus, we want to be more a provocation to the theme, without trying to exhaust the issue under discussion. Key words: Bioethics, Human Rights, Public Space, Totalitarianism. Introdução O objetivo desse texto é trazer à baila uma discussão que, no mundo contemporâneo, não pode ser entendida como secundária, pois diz respeito à grande parcela do meio intelectual desde as ciências humanas as ciências biomédicas, de modo que não considerar os aspectos éticos, políticos e jurídicos da tocante questão passa a ser no mínimo uma grave omissão. Não temos a pretensão de esgotar o problema da bioética e dos direitos humanos, ao contrário, queremos ser uma positiva provocação ao problema e, na medida do possível, iluminar alguns caminhos para a discussão do mesmo. Assim, assumiremos o pensamento de Hannah Arendt como fio condutor de nossa exposição. Hannah Arendt nasceu em Hanover, no ano de 1906, e morreu nos Estados Unidos em 1975. Na Alemanha, país de origem, o qual teve de deixar em 1933 devido ao exílio, estudou nas Universidades de Marburgo, Friburgo e Heidelberg. Hannah Arendt, no percurso intelectual, conviveu com grandes expressões do meio acadêmico. Foi aluna de Heidegger e 1 Profº. Ms. da Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE. ( [email protected] )

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A BIOÉTICA E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS HUMANOS BIOETHICS AND ITS RELATION TO HUMAN RIGHTS

Prof. Ms. Ricardo George de Araujo Silva1

Resumo: O presente texto pretende ser uma reflexão sobre a relação entre bioética e direitos humanos. Nossa hipótese sustenta que não temos como fundamentar um, sem tocar nas premissas do outro, para tanto nos utilizamos de elementos históricos, no que concerne, a ocupação do espaço público e as ações do totalitarismo. Apoiamos-nos teoricamente no pensamento de Hannah Arendt, para dar suporte a nossa análise. Assim, queremos ser mais uma provocação ao tema, sem pretensões de esgotar a questão em debate. Palavras chaves: Bioética, Direitos humanos, Espaço Público, Totalitarismo.

Abstract: This text is a reflection on the relationship between bioethics and human rights. Our hypothesis maintains that we can not substantiate one, without touching the premises of another, for both the use of historical elements, as regards the occupation of public space and the actions of totalitarianism. Theoretically support us at the thought of Hannah Arendt, to support our analysis. Thus, we want to be more a provocation to the theme, without trying to exhaust the issue under discussion. Key words: Bioethics, Human Rights, Public Space, Totalitarianism.

Introdução

O objetivo desse texto é trazer à baila uma discussão que, no mundo contemporâneo,

não pode ser entendida como secundária, pois diz respeito à grande parcela do meio

intelectual desde as ciências humanas as ciências biomédicas, de modo que não considerar os

aspectos éticos, políticos e jurídicos da tocante questão passa a ser no mínimo uma grave

omissão. Não temos a pretensão de esgotar o problema da bioética e dos direitos humanos, ao

contrário, queremos ser uma positiva provocação ao problema e, na medida do possível,

iluminar alguns caminhos para a discussão do mesmo. Assim, assumiremos o pensamento de

Hannah Arendt como fio condutor de nossa exposição.

Hannah Arendt nasceu em Hanover, no ano de 1906, e morreu nos Estados Unidos em

1975. Na Alemanha, país de origem, o qual teve de deixar em 1933 devido ao exílio, estudou

nas Universidades de Marburgo, Friburgo e Heidelberg. Hannah Arendt, no percurso

intelectual, conviveu com grandes expressões do meio acadêmico. Foi aluna de Heidegger e 1 Profº. Ms. da Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE. ( [email protected])

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Jaspers. Doutorou-se em 1928, com uma tese sobre o Conceito de Amor em Santo Agostinho,

orientada por Jaspers. Nesse contexto, Hannah Arendt se define como uma pensadora política,

justamente porque teve que enfrentar com a perseguição nazista e, com o exílio, a negação de

seus direitos mais elementares e, assim, entendeu que deveria tratar de questões relevantes da

política. O desencanto de Hannah Arendt com as questões de ordem intelectual ocorre quando

grande parte dos intelectuais assume a adesão ao partido nazista, no início da década de 30, do

século 20.

É relevante ressaltar que Hannah Arendt nunca se deteve diretamente sobre a

problemática dos direitos humanos ou propôs em seus escritos uma ética seja intencionalista

ou consequêncialista. Para ser claro, não propôs diretamente ética nenhuma. Contudo, é

possível discutir em sua obra uma postura nesse seguimento, já que tematizou a ação humana

e a vida em sociedade. Sendo assim, encontramos na autora uma centelha que nos autoriza a

identificar um lugar de origem para o tema dos direitos humanos e da bioética no contexto da

sua obra, qual seja: suas observações brotam da sua experiência como judia perseguida e

presa pelo regime nazista. Além da sua condição de apátrida, posteriormente, o que

significou, de forma prática, e, não só para ela, uma desproteção total. Assim, em Hannah

Arendt

A experiência dos displaced people levou-a a concluir que a “cidadania é o direito a ter direitos”, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso publico comum. Em resumo, é este acesso ao espaço púbico – “o direito de pertencer a uma comunidade política” – que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos” (LAFER, 2003, p. 114)

A Questão do Totalitarismo: Negação dos Direitos Humanos

Em Hannah Arendt, a questão totalitária ou, mais precisamente, o horror totalitário,

ocorrido nos campos de concentração instigou-a a investigação de tal fato, levando-a a

concluir que acontecia, naquele momento histórico, algo desnecessário e desprovido de

significado político.

Hannah Arendt identifica, então, o problema central do totalitarismo como a

necessidade de afrontar a dignidade humana pelo sistema estratégico da descartabilidade dos

homens. Aqui encontramos toda e qualquer forma de direito do homem negada na medida em

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que o campo de concentração se transforma na “fábrica de morte”, capaz de produzir

cadáveres em série e estabelecer-se na atualização do mal radical, entendido por ela como o

progressivo assassinato jurídico, moral e físico, realizado contra as pessoas nos governos

totalitários. O ato da descartabilidade humana nos coloca na rota dos direitos humanos, na

medida em que estes representam os direitos fundamentais do homem que, ao longo da

história, foram assumindo a forma de direito positivo como uma tentativa de singularmente

garantir a todo e qualquer indivíduo proteção. Assim, segundo Celso Lafer, “o “valor” da

pessoa humana como “valor fonte” da vida em sociedade encontra sua expressão jurídica nos

direitos humanos”(LAFER, 2003, p.112), de modo que pensar a defesa da vida, não no

sentido abstrato, mas localizado, historicamente determinado no horizonte de sentido de uma

comunidade torna-se a tarefa fundante dos direitos reivindicados na teoria de Hannah Arendt,

o que autoriza legitimar uma discussão pertinente dos direitos do homem e do cidadão a partir

de seu arcabouço teórico.

É preciso tornar evidente o conceito de cidadania em Hannah Arendt para não

incorrermos no equívoco de entendê-lo como simples defesa ideológica, pois o mesmo deve

ser entendido como “o direito a ter direito”. Nessa perspectiva, entramos na esfera do direito

não como algo dado ou metafisicamente posto, e sim, como uma construção histórica

determinada; em outras palavras, como uma criação da convivência coletiva, que requer uma

convivência em um espaço público comum. Assim, a postura ética vislumbrada por Hannah

Arendt nada tem a ver com as tentativas do jusnaturalismo centrada na perspectiva abstrata do

bem e do dever. Na visão jusnaturalista o homem aparece como uma idéia universal, eterna e

imutável que em última instância, não está em lugar nenhum. Em contraponto a essa idéia,

Hannah Arendt resgata a categoria da ação, na qual vai pensar a dimensão ética. Nesse

contexto, as dimensões da comunidade e da liberdade emergem como fundantes no horizonte

do homem como ser de ação, isto é, como agente constituidor do espaço público. Nesse

sentido, tomando por base a questão totalitária, cabe agora um maior detalhamento dessa ação

principalmente no tocante ao uso da violência que aparece nesse contexto como negadora dos

direitos humanos.

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A Violência Totalitária – O Braço do Terror

A descrição abaixo mostra todo o horror vivido pelos judeus nos campos de

concentração, os quais trouxeram à tona toda a capacidade de destruição sistemática do

regime totalitário, tanto quanto apresentou seu principal método de atuação, a violência:

Nas fábricas da morte [...]. Todos eles morreram juntos, os jovens e velhos, os fracos e fortes, os doentes e os saudáveis; não como povo, não como homens e mulheres, crianças e adultos, meninos e meninas, não como bons e maus, belos e feios, mas reduzidos ao denominador comum do mais baixo nível da vida orgânica em si mesma, mergulhados no abismo mais escuro e profundo da igualdade primitiva, como gado, como matéria, como coisa sem corpo nem alma, sem nem mesmo uma fisionomia sobre a qual a morte pudesse imprimir seu selo. É nessa igualdade monstruosa, sem fraternidade ou humanidade [...], que nós vemos, como que refletida, a imagem do inferno. A maldade grotesca daqueles que estabelecem tal igualdade está para além da capacidade de compreensão humana. Mas igualmente grotesca e para além do alcance da justiça humana está a inocência daqueles que morreram nesta ingenuidade. A câmara de gás foi mais do que qualquer um poderia ter merecido, e, frente a ela, o pior criminoso era tão inocente quanto um recém-nascido. (ARENDT, 2005, p. 198).

O extermínio silencioso produzido pelas fábricas da morte reduz o significado da

existência humana a um nada, em que ser ou não ser2 não tem significado. Para a crueldade

nazista, a descartabilidade do outro era algo certo e necessário de tal forma que o extermínio

em massa não reflete sobre o significado da existência do outro e, atropelando todos os

princípios, cria uma fábrica de cadáveres, para pôr em frente seu objetivo de domínio total,

este que é concebido como meta fundamental, tão fundamental que a vida humana passa a ser

secundária em nome do objetivo a ser alcançado. Nessa perspectiva, a violência totalitária

atua resguardada pelo Estado, ou seja, o Estado aparece aí como fachada, que possibilita ao

monstro3 liberar seus tentáculos. Usando sua política secreta e agindo sob suas próprias

insígnia e vontade,

[...]este [o líder] decide sobre quais categorias sociais incidirão os conceitos de inimigo objetivo ou de sociedade indesejável,

2 Aqui chamamos a atenção para a questão da dignidade humana, isto é, para o indivíduo que se coloca no mundo como gente que é capaz de transformação. Contudo, essa violência produzida nos campos de concentração impede esse homem de ser e, o anulam, de forma covarde e brutal, reduzindo-o a um nada. 3 É preciso ter claro o papel primordial do partido que aqui é central, na medida em que é nele que se encontra todo o processo de doutrinação e enquadramento do idealismo absurdo, acalentado pela ideologia do terror.

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tipologias que designam aqueles cuja existência implica discordância para com a ideologia totalitária, merecendo ser exterminados independentemente do que pensem. (DUARTE, 2000, p.65).

Esse proceder nos leva à compreensão de como o sistema totalitário é capaz de

destruir o “humano construído nos indivíduos”4, a tal ponto de vítima e carrasco serem

atingidos, pois, na medida em que o campo de concentração anula a liberdade de alguns e

produz uma matança sistemática de outros, não apenas as vítimas são desumanizadas, mas

executores perdem também o sentido da dignidade humana, fato esse que nos revela a forte

característica de novidade do totalitarismo, tanto quanto nos esclarece o seu poder de

destruição. Nesse sentido, os campos de concentração se apresentam como a principal

instituição dos regimes totalitários, não apenas porque eles condensam e potencializam todos

os absurdos implementados na tessitura do social, por essa forma de dominação sem

precedentes, mas, também, porque justamente aí se manifesta o objetivo crucial do

totalitarismo: a destruição da infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos.

A violência produzida nos campos de concentração ganhou dimensões inimagináveis.

É possível afirmar que até os mais competentes roteiristas de filmes de guerra ou literatos do

gênero não tenham, até então, colocado em suas obras tamanho requinte de crueldade e horror

como fez o totalitarismo nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Essa violência

manifesta, sobretudo um novo desafio para a compreensão da política, na medida em que as

categorias da modernidade se mostram inadequadas ou insuficientes para dar conta de

tamanha ruptura que se apresenta na história da humanidade. O terror entra no cenário político

para fincar marcas indeléveis na história dos homens, mas, sobretudo, para provocar um

desafio de compreensão, respostas e ressignificação do agir humano, ainda que essa não fosse

sua intenção, mas veio à tona em vista de tamanha violência aplicada.

A violência totalitária é apolítica, na medida em que não permite ao outro o direito de

manifestar-se. Até as antigas tiranias eram capazes de se encantar com o discurso contrário as

suas práticas5 e até aderir a posições daqueles que em algum momento se apresentaram como

4 Quando falo de humano construído nos indivíduos, refiro-me à compreensão de Hannah Arendt acerca da natureza mutável, onde o que temos de humano não é algo inerente e eterno, mas uma construção de artifícios, produzidos pela liberdade, pelo discurso e pela ação, de tal modo que a experiência dos campos de concentração aniquila esses artifícios. Sendo assim, a legalidade, o respeito à pluralidade e à cidadania deixam de imprimir sentido à dignidade humana de modo que o homem se reduz a um ser natural desumanizado. 5 Basta lembrarmos do despotismo esclarecido, segundo o qual tiranos foram capazes de abolir torturas e julgamentos sumários, por terem ouvido o outro. Nesse sentido, percebemos a novidade totalitária que entende o outro como algo a ser descartado, caso não comungue de seus ideais. O totalitarismo aparece para a história da humanidade como um regime negador do discurso e da ação, categorias centrais para a colocação do outro no

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inimigo político. No totalitarismo, tal fato é inviável já que o outro não tem direito a compor o

tecido social, sendo enviado a confinamentos que destroem sua humanidade ou são

diretamente exterminados em câmaras de gás ou com outros recursos, contanto que sejam

silenciados. O lugar que ocupa o silêncio no modo de agir do totalitarismo tem significado

ímpar, tendo em vista que a capacidade do discurso é sempre uma ameaça. O silêncio ganha

importância, o mesmo só deve ser quebrado para exaltar os objetivos do movimento

totalitário, o líder e seus símbolos. Portanto, o discurso no totalitarismo tanto é mudo, na

medida em que é controlado e direcionado, quanto carente de significado e de poder de

denúncia. O único discurso que sobrevive é o do regime totalitário. Fora esse, todos os outros

ou se enquadram ou experimentam um último diálogo nos campos de concentração ou

câmaras de gás.

Os campos de concentração trouxeram como novidade uma total falta de finalidade,

isto é, apresentavam um caráter despropositado em seu agir, tinham que se financiar a si

mesmos e eram praticamente destituídos de qualquer produtividade econômica ou de qualquer

finalidade política clara e imediata. Por certo, criminosos e opositores ao regime também

foram neles encarcerados, mas a verdadeira natureza dos campos não pode ser compreendida

recorrendo-se a esse fato, já que eles só se tornaram abundantes tanto na Alemanha, quanto na

União soviética, uma vez sufocada toda oposição. Do mesmo modo, os seus internos, em

ambos os países, foram várias vezes obrigados a cumprir trabalhos forçados em regime de

escravidão, o que ainda poderia ser humanamente compreensível, pois apresentava precedente

histórico. Entretanto, a própria falta de planejamento e de organização dessas tarefas forçadas,

somada ao fato de que o trabalho jamais constituiu a regra geral no sistema

‘concentracionário’, denuncia a verdadeira destinação dos campos de concentração: a de não

servirem para coisa alguma, senão para destruição da liberdade.

A negação e anulação da liberdade humana promovida pelos campos de concentração

criaram um clima de destruição do homem, isto é, daquilo que faz o homem ser homem.

Artifícios como a liberdade, a pluralidade e a existência de um espaço de convivência política

garantem humanidade, enquanto a ausência desses nos leva em direção contrária6, mutilando

a dignidade humana ou até destruindo-a por inteira.

A violência dos campos de concentração traz no seu interior tamanha força destrutiva,

que é capaz de aniquilar o último resíduo humano presente no homem, transformando-o em

espaço público. A cada prisão, expurgo ou assassinato, o regime totalitário traz à tona o princípio da descartabilidade que torna a produção sistemática de cadáveres uma prática constante. 6 O trabalho desenvolvido pelo Nazifascismo vislumbrava o desmantelamento da esfera pública por meio da destruição de elementos-chave como a liberdade.

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mero “feixe de reações”7 que, por sua vez, pode ser aniquilado sem oferecer qualquer

resistência. Tudo isso torna claro que a violência encontra morada nos campos de

concentração. Sendo ela “senhora-mor” dessa casa de horrores, conduz forçadamente cada um

de seus habitantes, que aí se encontram, a uma certeza: sua dignidade como pessoa está

marcada para sempre8, pelo menos a dos que sobrevivem.

Cabe agora, exposto os malefícios da violência do terror que nega os direitos humanos,

discutir como apareceu no contexto contemporâneo à questão específica da bioética, e como

ocorreu seu desenvolvimento histórico e sua ligação com as questões de respeito a vida.

A Bioética e Sua Implicação Histórico-Filosófica Com os Direitos Humanos

O termo bioética tem formulação estabelecida nos anos 70 do século 20, por ocasião

da publicação de um artigo e posteriormente de um livro do prof. Van Rensellaer Potter.

Lançava-se aqui a idéia de uma “ponte” entre as ciências da vida e os estudos dos valores.

Contudo, é preciso considerar uma evolução histórica do conceito de bioética nas duas

décadas seguintes a sua formulação inicial. Vejamos: O professor Potter tinha uma grande

preocupação com a interação do problema ambiental e das questões de saúde. Suas idéias

baseavam-se nas propostas do Prof. Aldo Leopold, especialmente na sua Ética da Terra.

Atualmente, esta primeira proposta é classificada por ele próprio como Bioética Ponte,

especialmente pela característica interdisciplinar que foi utilizada como base de suas idéias.

Esta primeira reflexão incluía um grande questionamento sobre a repercussão da visão de

progresso existente na década de 1960. A Partir dos anos 70 o termo bioética ganha um

especificidade, tendo em vista os avanços da biomedicina e suas implicações diretas para com 7 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. 8. ed. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1998, 492. 8 Auschwitz é a grande representação disso, o campo de concentração polonês, que enquadrou centenas de judeus como se confina gado, submetendo-os às maiores atrocidades. Auschwitz aparece para o mundo como a maior expressão do requinte da crueldade do regime totalitário. Para Arendt, foi o momento de despertar para o problema: “[...] é como se um abismo se abrisse”. As primeiras notícias sobre os campos de extermínio nazistas, diz um dos sobreviventes de Auschwitz, primo Levi, no seu prefácio a I sommersi e i salvati (1986): ”começaram a difundir-se no ano crucial de 1942. Eram notícias vagas, mas convergentes entre si: delineavam um massacre de proporções tão amplas, de uma crueldade tão extrema, de motivação tão intricada que o público tendia a rejeitá-las em razão do seu próprio absurdo. É significativo como essa rejeição tenha sido prevista com muita antecipação pelos próprios culpados; muitos sobreviventes [...] recordam que os SS se divertiam avisando cinicamente os prisioneiros: ‘Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas mesmo que alguém escape o mundo não dará crédito. Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager’ (A tradução francesa desse texto, realizada por Sylvie Courtine-Denamy, foi publicada, em 1980, no nº 06 da revista Esprit [p. 19-40] e disposta no artigo “A natureza do Totalitarismo: o que é compreender o totalitarismo” de Theresa C. Magalhães, publicado, por sua vez, na obra AGUIAR et al., 2001, p. 58. [As nossas referências são desse artigo]).

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os profissionais de saúde, assim, pesquisadores como os professores Warren Reich e LeRoy

Walters, ambos vinculados ao Instituto Kennedy de Ética, da Universidade

Georgetown/Washington DC, e do professor David Roy, do Canadá, restringiram esta

reflexão apenas às questões de assistência e pesquisa em saúde. Em resposta a essa

especificidade surgem novas abordagens para a bioética, como a posição do Prof. Warren

Reich que reiterou, em 1995, sua perspectiva para o termo, incorporando à sua proposta de

Bioética as perspectivas interdisciplinar, pluralista e sistemática. Nessa mesma linha, anos

antes, precisamente em 1988, o Prof. Potter reiterou as suas idéias iniciais criando a Bioética

Global. O Prof. Potter entendia o termo global como sendo uma proposta abrangente, que

englobasse todos os aspectos relativos ao viver, isto é, envolvia a saúde e a questão ecológica.

E, por fim, para fechar o leque de amplitude da ação do termo bioética, o Prof. Potter propôs,

em 1998, a nova definição de Bioética Profunda, termo que passou a ser cooptado por

importantes organizações, como ocorreu em 2001 com o Programa Regional de Bioética,

vinculado a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) que definiu bioética igualmente

de forma ampla, incluindo a vida, a saúde e o ambiente como área de reflexão. Essa visão

Profunda da bioética recai diretamente no respeito à vida, tanto no tocante à saúde como à

fundação de mundo comum, ou seja, do espaço que teremos que perpetua até as próximas

gerações. Sendo assim, há na bioética uma dimensão política muito forte a considerar, desde o

direito a vida estendendo-se ao direito a ter direitos. Neste sentido, entendemos que a bioética

guarda uma discussão ético-política pautada na ação como proposta de parâmetro para seu

ethos, isto é, para sua reflexão.

Pelo exposto anteriormente, destacamos a visão de Hannah Arendt no tocante ao

direito, como algo que se encontra alicerçado na relação entre os homens, e, na participação

dos mesmos na vida da comunidade. É, portanto, a relação entre homens, o chão na qual se

ergue à idéia de direito em Hannah Arendt. Isto é, a categoria própria para se pensar o direito

em Hannah Arendt é a Ação. Sendo assim, cabe agora destacarmos, partindo desses

princípios, a questão da bioética que podemos tranquilamente fundamentar na declaração de

Nurembergue, que busca promover a vida através da liberdade do livre agir e do princípio de

dignidade presentes nos seres humanos como seres singulares portadores de direitos. A

declaração de Nurembergue de 1947 destaca pontos centrais para o tratamento dispensado à

prática médica ou similar que envolva seres humanos de modo que não temos como pensar a

bioética sem considerar esses fatos. Entendemos ainda, que a visão de Hannah Arendt acerca

do direito vem alicerçar as orientações desta declaração. Vejamos os 10 pontos centrais do

texto de Nurembergue:

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• O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa

que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de

dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem

qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra

forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo

para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às

pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os

quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a

saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à

sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade

do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento

ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser

delegados a outrem impunemente.

• O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que

não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de

maneira casuística ou desnecessariamente.

• O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no

conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira,

os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento.

• O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos

desnecessários, quer físicos, quer materiais.

• Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar

que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio

médico pesquisador se submeter ao experimento.

• O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o

pesquisador se propõe a resolver.

• Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de

qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota.

• O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. 9.

O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do

experimento.

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• O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais

em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação

do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes.

O que se pode observar a partir da declaração de Nurembergue é que toda prática

realizada em Auschwitz se contrapõe a essas orientações, haja vista que os campos de

concentração serviram de “base experimental” para médicos e outros cientistas que usaram

seres humanos sem considerar esses como portadores de dignidade e de direitos, apenas

afirmavam serem as mortes frutos da eutanásia. Isto, quando davam alguma explicação, já que

na maioria dos casos a prática era ocultada, as informações que vazaram cumpriram o papel

de agentes de denúncia. Assim, podemos observar o hiato que se criou entre os direitos

humanos e a prática científica com seres humanos, de modo, que nosso mundo

contemporâneo, a partir de tal fato histórico, não pôde mais conviver com essas posturas sem

considerar um ethos que iluminasse tais práticas e promovesse a reflexão acerca dos direitos

do ser humano enquanto um ser portador de direitos, considerando como foco sua ação, isto é,

como estabelecemos relações e como fundamos mundo. Em outras palavras, como criamos

um espaço público de respeito ao outro. É nesse contexto que emerge a discussão em torno da

bioética.

Cabe então, dado o exposto até o momento uma definição de bioética que

compreendemos ser, segundo Hottois “uma disciplina ética que se formou em torno de

pesquisas, práticas e teorias que visam interpretar os problemas levantados pela

biotecnociência e pela biomedicina. Por isso, a bioética é necessariamente interdisciplinar e

de identidade instável”. Assim, concluímos que a bioética não é uma filosofia sistemática,

nem uma ética geral e menos ainda uma ciência, tendo a mesma um trânsito no saber

tecnocientífico, de modo especial o biológico, percorrendo ainda o campo das ciências

humanas, como a sociologia, a política, a ética e a teologia. O que marca seu caráter

interdisciplinar.

Embora interdisciplinar a bioética não pode se furtar da sua matriz filosófica. É,

portanto, fundamental que a bioética mantenha sua identidade filosófica quando discute

pressupostos éticos, esclarece conceitos e valores, e toma decisões sobre situações concretas,

como pronunciar-se pró ou contra o congelamento de embriões excedentes. Caso a bioética se

afaste dessa posição, poderá tornar-se casuística, pragmática, sem raízes éticas, guiando-se

apenas por espécie de jurisprudência, que toma decisões semelhantes em casos semelhantes.

Isto não significa que a bioética deva distanciar-se das situações cotidianas. Mas, se ela

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abandonar o juízo ético-prático sobre casos concretos, suscitados pela biotecnociência, perde-

se em abstrações e concepções universais, sem força para decidir eticamente sobre os

problemas da biomedicina.9

Conclusão

Ao nos propormos relacionar bioética e direitos humanos estamos nos propondo

investigar situações fundamentais da existência humana contemporânea. O século 20 ficou

marcado pelo totalitarismo e suas práticas desastrosas de afronta a dignidade humana e, aos

direitos fundamentais do ser humano, como a vida.

O totalitarismo, muitas vezes, usou do expediente científico para legitimar suas

práticas de horror colocando em xeque a dimensão ética da ciência sua utilização pelo poder

político. Entendemos pois, que passado os horrores do Nazifascismo, não estamos isentos de

cairmos novamente no égide de governos totalitários, além do que todo avanço tecnológico

sempre implica pesquisas de todas as ordens com vegetais, animais irracionais e , seres

humanos. Esta situação deve nos por em alerta no tocante, a uma reflexão contínua sobre

essas dimensões.

Assim, entendemos que as abordagens da bioética e dos direitos humanos estabelecem

uma estrita relação conceitual e teleológica, haja vista suas implicações em defesa da vida, da

promoção do bem e do espaço, seja físico ou natural, no qual a vida deva perpetuar-se.

Trazemos, pois, a reflexão Arendtiana para o centro da problemática, por compreendermos

que suas categorias de liberdade, ação, mundo comum e espaço público fundamentam essa

defesa da vida proposta pela bioética de modo contemporâneo, sem perder de vista a ação dos

homens na história.

Por fim, concluímos que a reflexão a respeito da promoção da vida é que cada vez

mais pertinente, e entendemos que a bioética e os direitos humanos cumprem um papel

central nessa reflexão, haja vista o enfoque que ambas as abordagens destinam aos princípios

da autonomia, da beneficência e da promoção da justiça. Sendo assim, entendemos que

discutir os temas atuais de pertinência social e cientifica, como uso de células tronco,

eutanásia, aborto, além de temas como aquecimento global, a fome e a violência, integram o

escopo teórico da defesa da vida e do direito a ter direitos.

9 PEGORATO. Olinto. Ética e Bioética, da subsistência a existência.Rio de Janeiro: Vozes. 2002, p. 76.

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Referências Bibliográficas

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