A BIOGRAFIA E A PROSOPOGRAFIA NA ANTIGUIDADE … · problematizar a ideia de legado e de...

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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1 A BIOGRAFIA E A PROSOPOGRAFIA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA: ABRANGÊNCIAS E LIMITAÇÕES DE SEU USO Marcos Luís Ehrhardt 1 “a história é um romance; mas um romance de verdade” [...] e os historiadores contam eventos verdadeiros que têm o homem por ator”. Paul Veyne Há alguns anos, a historiografia tem demonstrando que o estudo pautado em determinados indivíduos, sejam eles destacados, sejam eles comuns, permite o estudo de determinados contextos. Seres dotados de complexidade, relacionados ao seu meio tornam-se objeto de estudo e de análise. Trajetórias, tanto individuais quanto coletivas, fornecem precioso material para se entender diferentes contextos e diferentes épocas históricas. Para Wilton Carlos L. Siva, a reconstrução de uma trajetória individual (quer de outro ou própria) significa também a percepção de uma rede de relações a partir da ideia de individualidade, com diferentes temporalidades (o ontem e o hoje), vínculos e pertencimentos que dizem respeito tanto sobre quem se escreve, quem escreve e para quem se escreve 2 A biografia, depois de um período de ostracismo e esquecimento voltou a tona no final dos anos 80. Convém salientar que a biografia aqui não é mais entendida num sentido tradicional, oficial, mas problematizada a partir de novos elementos, tanto da história social quanto da história cultural. 3 Não mais o estudo de um indivíduo isolado, sua vida num sentido cronológicos (nascimento, vida e morte) mas ver neste indivíduo ou conjunto de indivíduos 1 Professor Adjunto do Curso de História Graduação e Pós-Graduação da Unioeste – campus de Marechal Cândido Rondon/Pr. 2 XV Congresso Brasileiro de Sociologia GT Memória e Sociedade Biografia: espaço de memória 3 Para Luzia Gabriele Maia Silva, “A biografia, recursivamente, provoca incômodo entre historiadores mais céticos, que a criticam apontando seus problemas para o discurso historiográfico. As críticas recorrentes à biografia histórica englobam, principalmente, três aspectos desse estilo narrativo, classificados como negativos. Um primeiro seria a proximidade da biografia com a literatura que a afastaria de um compromisso com a verdade. Em segundo lugar, a associação da biografia – em decorrência de sua aplicabilidade à exaltação de heróis – à história política tradicional, focada na figura do grande homem. O terceiro aspecto remonta à crença de que as biografias levariam à valorização de análises individuais em detrimento de análises coletivas”. In: A biografia e a busca por uma dimensão individual da história. História da Historiografia. Ouro Preto: n. 12, agosto de 2014, p. 266.

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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1

A BIOGRAFIA E A PROSOPOGRAFIA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA: ABRANGÊNCIAS E LIMITAÇÕES DE SEU USO

Marcos Luís Ehrhardt1

“a história é um romance; mas um romance de verdade” [...] e os historiadores contam eventos verdadeiros que têm o homem por ator”.

Paul Veyne

Há alguns anos, a historiografia tem demonstrando que o estudo pautado em

determinados indivíduos, sejam eles destacados, sejam eles comuns, permite o estudo de

determinados contextos. Seres dotados de complexidade, relacionados ao seu meio tornam-se

objeto de estudo e de análise. Trajetórias, tanto individuais quanto coletivas, fornecem

precioso material para se entender diferentes contextos e diferentes épocas históricas.

Para Wilton Carlos L. Siva,

a reconstrução de uma trajetória individual (quer de outro ou própria) significa também a percepção de uma rede de relações a partir da ideia de individualidade, com diferentes temporalidades (o ontem e o hoje), vínculos e pertencimentos que dizem respeito tanto sobre quem se escreve, quem escreve e para quem se escreve2

A biografia, depois de um período de ostracismo e esquecimento voltou a tona no final

dos anos 80. Convém salientar que a biografia aqui não é mais entendida num sentido

tradicional, oficial, mas problematizada a partir de novos elementos, tanto da história social

quanto da história cultural.3 Não mais o estudo de um indivíduo isolado, sua vida num sentido

cronológicos (nascimento, vida e morte) mas ver neste indivíduo ou conjunto de indivíduos

1 Professor Adjunto do Curso de História Graduação e Pós-Graduação da Unioeste – campus de Marechal Cândido Rondon/Pr. 2XV Congresso Brasileiro de Sociologia GT Memória e Sociedade Biografia: espaço de memória 3 Para Luzia Gabriele Maia Silva, “A biografia, recursivamente, provoca incômodo entre historiadores mais céticos, que a criticam apontando seus problemas para o discurso historiográfico. As críticas recorrentes à biografia histórica englobam, principalmente, três aspectos desse estilo narrativo, classificados como negativos. Um primeiro seria a proximidade da biografia com a literatura que a afastaria de um compromisso com a verdade. Em segundo lugar, a associação da biografia – em decorrência de sua aplicabilidade à exaltação de heróis – à história política tradicional, focada na figura do grande homem. O terceiro aspecto remonta à crença de que as biografias levariam à valorização de análises individuais em detrimento de análises coletivas”. In: A biografia e a busca por uma dimensão individual da história. História da Historiografia. Ouro Preto: n. 12, agosto de 2014, p. 266.

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um veículo para se entender determinada época. Entende-los como forantos da sociedade, de

movimentos intelectuais, literários, sociais, entre outros.

a biografia individual ou coletiva (no caso de estudos de família ou prosopografias) oferece uma solução metodológica a esta pergunta, pois ela implica o estudo de um indivíduo ou de grupo de indivíduos que representam uma classe social, uma profissão, uma fé ou crença, desde que se defina, previamente, a estrutura social a que pertencem4

No que tange a renovação da biografia para a história, citamos um texto de Mary Del Priore,

quando nos diz que, a biografia desfez também a falsa oposição entre indivíduo e sociedade. O indivíduo não existe só. Ele só existe “numa rede de relações sociais diversificadas”. Na vida de um indivíduo, convergem fatos e forças sociais, assim como o indivíduo, suas ideias, representações e imaginário convergem para o contexto social ao qual ele pertence5

O que desejamos demonstrar aqui é o estudo biográfico de um homem considerado

especial, destacado em sua época, seja pelas posições que ocupou, seja pela reconhecimento a

partir do que escreveu e defendeu, quer seja, teve o reconhecimento de seus pares, condição

ímpar para ser um veículo de determinada época como já dissemos anteriormente. Assim, a

biografia neste caso não é a de uma “pessoa singular”, mas um homem que concentraria,

como nos aponta Giovani Levi, todas as características de um grupo.

A prosopografia como objeto de análise6

A prosopografia também conhecida como biografia coletiva foi criada e realizada, em

suas origens, para os estudos vinculados à história antiga e medieval. Nos últimos anos, ou

anos mais recentes desenvolveu-se também estudos de prosopografia em história moderna e

história contemporânea.

Para Fátima Regina Fernandes,

a prosopografia foi inicialmente utilizada para apresentar e destacar indivíduos ilustres formadores de uma consciência moral, com a tarefa de orientar os

4 PRIORY, Mary Del. Biografia: quando o indivíduo encontra a História. Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009, p. 11. 5 PRIORY, Mary Del. Biografia: quando o indivíduo encontra a História. Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009, p. 10. 6 Compartilhamos da perspectiva dos trabalhos de Christophe Charle que situam o método prosopográfico no estudos das elites econômicas, políticas e intelectuais.Uma boa síntese dos princípios norteadores dessa metodologia foi feita por Christophe Charle:[...] definir uma população a partir de um ou vários critérios e estabelecer, a partir dela, um questionário biográfico cujos diferentes critérios e variáveis servirão à descrição de sua dinâmica social, privada, pública, ou mesmo cultural, ideológica ou política,segundo a população e o questionário em análise (CHARLE 2006, p. 41).

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jovens em relação aos valores autorizados e reconhecidos em sua época, ou seja, como uma proposta de formação edificante que aparece nas obras onde o termo é aplicado7

Para Alzira Alves de Abreu:

a pesquisa prosopográfica não serve só para demonstrar, mas também para descobrir. Ela não ilustra, ela coloca em relação. Ela se destina ao aprofundamento de biografias, jamais de uma só biografia. Ela não simplifica, ela complexifica para ultrapassar as pistas observadas a olho nu; depois ela reconstrói utilizando a tipologia. Os tipos fazem a biografia individual se transformar em modelos. Ela não é nem corte no tempo, nem estudo sem cronologia: como bom método histórico, ela periodiza8

Os estudos prosopográficos a que faremos referência estão intimamente ligados, entre

outras, a uma história do poder. A partir deles, constrói-se uma memória coletiva, portanto de

um grupo. Tais construções são realizadas em sua maioria, em conflitos cotidianos, na

reciprocidade das influências e nas constantes negociações. Assim, são os diversos grupos em

tensão e a partir de suas relações de força, que definem aquilo que deve ser registrado e aquilo

que deve ser esquecido. Tal aspecto é evidenciado pela relação entre passado e presente,

presente e passado de uma determinada sociedade, época e lugar.

O tema da relação entre pensadores/autores com o poder sempre me interessou. A

necessidade de atrelar tema/corpus documental e teoria me aproximou da HI. Gostaria de

propor uma leitura que se inspira no conceito de geração. O conceito de geração nos permite

problematizar a ideia de legado e de transmissão. Também comporta as noções de mudança e

de ruptura, e a possibilidade de perceber as continuidades e descontinuidades de pensamento.

Porém só se torna válido quando estabelece um sistema de referências aceitas por um grupo

(identificação coletiva).

No que tange aos intelectuais ou pensadores, a ideia de herança é basilar. Os processos

de transmissões culturais são fundamentais. Quer haja ruptura, quer não haja, o período

7 FERNANDES, Fátima Regina. A metodologia prosopográfica aplicada às fontes medievais: reflexões estruturais. In: História da historiografia. Ouro Preto, n. 8, abril de 2012, p 12. Ainda para Fernandes, Trata-se de um método que parte da elaboração de séries neutras de indivíduos e famílias,contemplando uma ampla coleta de dados biográficos e a posterior reconstituição de trajetórias individuais no lapso cronológico definido. 8 ABREU, Alzira Alves de. A Renovação do método biográfico”. In: XXIII Encontro Anual da ANPOCS. Grupo de Trabalho Biografia e Memória Social, p. 16.

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anterior é quase sempre referência direta ou indiretamente. Pensamos aqui na ideia de

Tradição: Processos de transmissão – disciplina que mantém nossa memória cultural e nossas

tradições intelectuais. Porém, não confundir com conservação ou continuidade de valores

imutáveis. Buscar os atos de ressignificação do texto. É preciso desconstruir a ideia e/ou

prática que considera a palavra anunciada ou o texto como uma posição de verdade.

É imperioso constatar ainda o cuidado ao se utilizar de epistemologias modernas para

o mundo antigo. Penso que o conceito de geração Intelectual cabe, porém podemos utilizá-lo

desde que, não o tratamos como um conceito fechado, classificador, pois como todo conceito

classificador é falso porque nenhum acontecimento se parece com outro e que a História não é

a constante repetição dos mesmos fatos.

Lidamos com os chamados “textos clássicos”, mas que não se amarram em um

repertório fixo, aprovado para sempre. Assim, o surgimento de novos esquemas de

pensamento incide diretamente sobre a maneira dos pensadores questionarem algo. Para nossa

perspectiva de análise consideramos também dois aspectos: a perspectiva sincrônica que nos

permite entender o contexto intelectual (relação do sujeito biografado e seus engajamentos,

escolhas, silêncios, entre outros) e a leitura diacrônica, quer seja, leituras em diversas épocas

para entender as influências, permanências, contradições, enfim a fortuna crítica de um

determinado nome.

Assim, nosso objetivo, a partir dos nomes selecionados para a discussão, é:

- os trabalhos especialmente ligados à história do poder; - relação entre o princeps e o poder;

- a necessária aplicação e o diálogo das trajetórias com o contexto específico – grandes

autores que direta ou indiretamente estiveram vinculados ao poder imperial, mais

especificamente ao principado de Nero, no 1º século da era cristã;

- uma instituição – diálogo desses autores com o Senado e o próprio princeps.

Todos os autores por nós analisados são estóicos ou influenciados por esta filosofia

helenística. (Participação de pensadores no poder, colocando seus conhecimentos a serviço da

res publica). São homens de letras e ocupantes de cargos públicos. Não são homens como os

outros: tudo que diz é público e merece crédito; eles julgam os atos públicos e privados de

seus pares. E essa autoridade recaía sobre a moral privada como sobre a vida pública. Sendo

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historiador, dirá o que se deve pensar do passado romano, para ilustrar as verdades políticas,

morais e patrióticas de que o Senado era o conservatório ou a academia. Sendo filósofo, terá

o direito de dizer como se aplica a filosofia à política, para encontrar nos livros de sabedoria

os velhos princípios de Roma, dos quais são guardiões.

Uma questão importante se impõe: O que os autores almejam transmitir à posteridade

a partir dos seus escritos. Entendemos que pode ser tanto as formas de pensamento em vigor

quanto às informações sobre um mundo em constante transformação. Uma pergunta vem a

tona: os autores do primeiro século da era cristã não percebem ou não aceitam a ideia de

transformação da sociedade romana? Penso que percebem, mas não aceitam, condenam e

apresentam outros caminhos.

O romano deste período se sofistica. Propositadamente cria uma “cultura de

ostentação” com banquetes e grandes festas. Alguns autores chamam isso de “luxo asiático”

(novos produtos, novos hábitos, novas necessidades). Convém lembrar de Juvenal no livro I,

sátira 16 quando aponta a sofisticação do paladar como uma característica do Império

Romano. Quanto mais cresce, mais complexa e mais sofisticada se torna a sociedade romana.

Há uma diversificação dos gostos. A simplicidade está em segundo plano e se reflete na vida

cotidiana. Mas também devemos sempre considerar que o “discurso decadentista” é

tradicional da literatura romana, uma tônica constante tanto dos autores republicanos quanto

dos autores imperiais. Todos os autores dialogam com esta tradição.

Para Carlos Galvão,

(...) qualquer interpretação do Principado que o defina como um sistema de imposições que se abatem sobre uma aristocracia submissa não se sustenta a partir da leitura das fontes. Para fins de análise, portanto, é preferível ver o regime político inaugurado por Augusto e perpetuado pelos seus sucessores não como um sistema fixo e engessado, mas como uma situação social, resultado, ao mesmo tempo, de um rearranjo das forças políticas em um determinado contexto histórico e da organização de um conjunto instável e dinâmico de restrições dos espaços de atuação tanto dos súditos mais privilegiados do regime como do príncipe.9

9 GALVÃO, Carlos. Autocracia, engajamento e ressentimento político no principado romano. In: Stella Bresciani e Márcia Naxara (org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas. Editora da Unicamp, 2001, p. 320.

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Constatamos que autores do pensamento político, ou a ele vinculados, tencionam a

intervenção. Mesmo o pensador que opta pelo otium escolhe, muitas vezes, um leitor ideal,

parceiro que dará vida as suas páginas. É fundamental pensar: a quem os autores se dirigem,

para evitar um enquadramento do texto e talvez realizar apenas uma contextualização de boa

qualidade.

Para o contexto do Principado, e por uma clara influência da filosofia estóica, há uma

estreita aliança entre o pensamento filosófico e o pensamento político. Aqui considerar a vida

pública e a vida privada como interdependentes. Se a última é má e corrupta, a primeira não

pode alcançar o seu fim. Por isso, visualizamos nas fontes esta dupla preocupação. Para os

estóicos não existia quebra de continuidade entre a esfera individual e política. A realidade,

tomada como um conjunto, era uma grande res publica.

Os autores que analisaremos, amparados na perspectiva da biografia intelectual e da

prosopografia, podem ser lidos como idealizadores de uma espécie de projeto, talvez o maior

deles: como as pessoas viviam e como as pessoas deveriam viver. Diríamos que uma das mais

originais contribuições destes autores foi o de unir dois aspectos, ou seja: a meditação

filosófica e a arte e a vontade de intervir, interferir na sociedade do seu tempo.10 Ainda, são

autores que sentem os ecos do ambiente de transição da república para o principado, pois a

força do senado se fazia sentir na relação que este estabelecia com o príncipe, ao mesmo

tempo em que sente este ambiente carregado e por vezes hostil que cercou grande parte dos

autores que escreveram durante a existência da dinastia Júlio-Cláudia. A história, nesse

contexto, é retratada para recuperar um passado, que, de acordo com a tradição, era mais

glorioso que o presente. Se faz uma espécie de monumentalização de um passado romano

considerado melhor a partir da constatação de um forte declínio da sociedade romana,

iniciado principalmente, depois da morte de Otávio Augusto. Defendia-se uma espécie de

“retorno às posturas antigas”, ou seja, uma valorização de tradições republicanas anteriores ao

seu momento histórico. A verdadeira ética, a melhor postura se encontrava num passado nem

tão distante. A visão que ele tem do seu período, constatamos, estava moralmente desgastado.

Partimos para os autores

10 Ver GRIMAL, Pierre. La littérature latine. Paris: Presses Universitaires de France, 1965.

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Lúcio Moderado Columela – 10- 70 d.C.

Agrônomo e agricultor romano nascido em Cadiz, então região Bética, foi amigo de

Sêneca e seguidor das idéias sanitárias de Vitrúvio e Marco Terêncio. Contemporâneo de

Nero e dos Flávios, poucos dados de sua vida são conhecidos. Esteve no exército romano e foi

tribuno na Síria (35) e depois mudou-se para Roma, onde se dedicou a agricultura e tornou-se

um grande produtor rural, pesquisando e pondo em prática seus conhecimentos sobre as terras

agrícolas. Embora um fazendeiro, na capital do império fez parte dos mais altos círculos

sociais pelo seu gosto pela intelectualidade e de sua atividade como dono de terras e produtor

escreveu obras sobre agronomia e agricultura, como De Re Rustica, ou Das coisas do Campo,

uma obra admirável em quatro volumes e doze livros, a mais completa sobre agricultura, da

Antigüidade, inspirada em obras anteriores de Catão o Velho, Varrão e outros autores latinos,

gregos. A obra de Columela, De Re Rustica, foi concebida no início do principado de Nero.

Concomitantemente à concentração de poder nas mãos do imperador e ao conseqüente

declínio do poder e do prestígio da aristocracia no campo político, assiste-se a uma tentativa

de parte dessa mesma aristocracia de restaurá-los no campo doméstico11. Tais transformações

referem-se ao próprio processo de transição da República para o Principado, quando ocorreu

uma redistribuição de poder e autoridade no seio da aristocracia. Enquanto no período

republicano os aristocratas detinham e competiam entre si por posições de poder no governo,

por meio de um sistema oligárquico de magistraturas anuais, com o advento do Principado o

poder concentrou-se no imperador e em pessoas próximas a ele, muitas vezes senadores e

cavaleiros, mas também libertos da casa imperial. Por seu turno, a distribuição de cargos

políticos e militares passava agora por redes de clientela que tinham no topo o imperador. Daí

a preocupação da literatura da época em formular uma nova ética de participação política e

apresentar ao imperador modelos de conduta que tinham como parâmetros figuras de

autoridade como pater e dominus.

Marco Anneu Lucano – nasce em 39 e morre em 65 d.C.

11 Columela dedica-se longamente em descrever as relações pessoais entre o proprietário da terra e seus escravos. Esse posicionamento não é apenas de ordem econômica — alto custo dos escravos devido ao fim das guerras de conquista a partir do século I d.C. —, mas também de ordem política, uma vez que remete a transformações na composição e função da aristocracia romana, o que não deixou de ter seus reflexos na organização do espaço e do poder na uilla.

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Natural de Córdoba (sobrinho de Sêneca –.). Vive sob o principado neroniano. Sua

principal obra é a Pharsalia. Qual é o momento da escrita de Lucano? No que tange a divisão

da literatura latina, Lucano estaria na fase conhecida como “Idade de Prata”; nasce 100 anos

depois de Virgílio. Enquanto o poeta de Mantua canta os mitos de heróis e semi-deuses, o

poeta cordobês canta a guerra entre mortais, pois não fala mais de deuses mas de homens.

A epopéia é uma narrativa de heróis que se perdem no tempo. Lucano faz uma epopéia

que foge a essa estrutura. Assim, muda a perspectiva da epopéia e isso é uma representação

histórica bastante importante. Lucano é muito exagerado “Agita a natureza inteira”. 12 A

Farsália é um poderoso sermão político, a favor de uma causa já vencida, abandonada pelos

deuses, mas por isso mesmo mantida pelo espírito do novo Catão. Nos três primeiros livros

mostra-se um imperialista, nos sete últimos defende ardorosamente o velho espírito

republicano, personificado em Catão. Ao romper com Nero, e não podendo atacá-lo

diretamente, descarrega todo seu ódio sobre a pessoa de César, que ele descreve como

ambicioso, egoísta, hipócrita e cruel. Lucano chamará a atenção para as atrocidades da guerra

civil. Seus questionamentos filosóficos aparecem no verso 140 do livro I quando defende a

liberdade de um povo oprimido pela tirania. Referência semelhante também aparece no Livro

VI, verso 790, citando Catão, o antigo, inimigo de Cartago e seu neto, Catão, que não está

disposto a ser escravo. (Exemplifica com um diálogo com Brutus)13

No que tange as suas vinculações ao poder, vemos um autor, no canto I entre os versos

33 e 66 de sua Pharsalia, a exaltação e o elogia pelo advento do governo neroniano. Dada as

circunstâncias, podemos entender e levar o elogio a sério. Lucano pode, na generosidade do

seu idealismo de jovem, antes do rompimento com o imperador, ter visto em Nero

12 Usa máximas e frases de efeito o tempo todo ao longo do texto. Há pelo menos duas vertentes de análise da obra lucaniana: de um lado, o autor aparece como um participante de uma espécie de cruzada política-literária, o que Paratore chamou de “o maior representante da literatura de combate”; de outro: um autor com graves falhas de construção, resultado de suas paixões políticas. se levantou contra César (...) o seu herói é o suicida Catão, o seu partido é o republicano. 13 No Canto II ou Livro Segundo. v. 240 faz uma forte exortação de Catão. Homem virtuoso e defensor das virtudes republicanas, afirma: “Da virtude, que todos, faz tempo, deixaram, só tu és garantia, e isso nem os giros da Sorte furtar-te-ão, minha alma vai sem rumo, conduz-me e fortalece com tuas certezas”. Ao trazer a resposta de Catão a Brutus no v. 290 Lucano apresenta Catão como o estóico por excelência, além da justificação do suicídio de Catão como algo grandioso e até necessário. No v. 375 do segundo livro, Lucano aponta as atitudes castas de Catão durante suas núpcias com Márcia, e diz: “O severo Catão, resoluto, assim vivia e agia, esta é a sua moral: Guardar o meio termo, sempre impor limites, seguir a natureza, à pátria dar a vida, e crer que existe não para si, mas para o mundo. A Catão um banquete era matar a fome; grandioso lar, um teto pra fugir do frio, roupa estupenda, a toga Quirinal, única utilidade do venério enlace, procriação; à Urbe era um pai e um marido, defensor da justiça e da honra inflexível, afeito ao bem comum. Em ato algum Catão falhou, avesso a toda espécie de egoísmo”.

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características extraordinárias, capazes de motivarem o elogio.14 Suetônio registra a

declaração de Nero, ao assumir o poder, de que reinaria de acordo com os princípios de

Augusto. E comenta que o jovem imperador não perdeu nenhuma oportunidade de demonstrar

sua liberalidade, sua clemência e até sua amabilidade. Comprova a efetividade do

compromisso de Nero, enumerando uma série de medidas administrativas a bem do povo, dos

soldados e até da aristocracia. O elogio, então, seria um componente compreensível no

contexto dos três primeiros cantos da Farsália.

Tão inspirador para Lucano que, ao tempo que ele simula entrar na fórmula do modelo

épico para o elogio cortesão, usa a figura do amigo para sugerir o ideal filosófico que perfilha

com Sêneca, àquela altura o ideólogo do império, negando às divindades tradicionais a força

da inspiração. Vale lembrar, a propósito, os versos I, 63-6, já antes citados para corroborar

que Lucano quisera ver em Nero um outro Augusto, ainda mais inspirador que o primeiro fora

para Virgílio, a tal ponto de o poeta entender - fica mais claro agora - que pode dispensar o

recurso dos deuses tradicionais; recordem-se os versos: “Mas para mim já és um deus; e se,

como um poeta te aceito no meu peito, não desejo invocar o deus que revela os segredos: tu

és o bastante para dar vida a um poema romano.” E o tom da sua invocação revela o espírito

empenhado da literatura deste escritor cordovês, que repudia a imitação dos modelos gregos.

É assim que neste poema épico, a Parsalia, se encontram ausentes os deuses e o homem

romano luta simplesmente pela sua liberdade. Um espírito assim, que impressionava pelo seu

gênio, só havia de aspirar a uma recompensa neste principado despótico de Nero: o suicídio.

A ordem para tal ato chegou as suas mãos em abril de 65.

Aulo Persius Flaco - nascido em 4 de dezembro de 34 em Volterna, antiga cidade etrusca.

Morre em 24 de novembro de 62.

Cavaleiro romano, vítima de uma doença do estômago. Pérsio, em suas sátiras, ataca o

mau gosto dos homens, inclusive os das letras, a sordidez da população, o orgulho dos nobres

e para muitos, a postura despótica do princeps. Suas sátiras aparecem como verdadeiros

sermões, contém anedotas, referências mitológicas, máximas e em muitos momentos, cartas

14 Isso não será estranhável se lembrarmos que, de fato, os historiadores referem um período - o quinquennium Neronis - em que o imperador foi capaz de colocar a ambição a serviço do bem público, sendo possível à história destacar, nesse período, medidas de grande senso administrativo.

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dirigidas a pessoas conhecidas; recurso amplamente utilizado inclusive por Sêneca como uma

maneira de dialogar com o leitor ou com um interlocutor imaginário. A literatura chama isso

de suasoriae. Consiste em o autor imaginar que alguma das suas afirmações é objetada por

alguém; objeção essa que lhe dará oportunidade para retomar a sua ideia inicial, comprová-la

com novos argumentos ou ilustrá-la com nova exemplificação.15 Pérsio se relacionou com

eminentes membros daquele grupo de estóicos que enfrentaram no final da vida o despotismo

de Nero e conservaram viva a chama da doutrina de Crisipo e Creantes. Na mesma escola de

Cornuto, Pérsio teve como colega Lucano, cinco anos mais jovem que Pérsio. Um admirava o

trabalho do outro.

Suas sátiras, inspiradas em uma longa tradição, foi no fundo, uma sátira pessoal contra

Nero. A verdadeira encarnação do estado da cultura romana na época neroniana. Seus

biógrafos confirmam um conhecido episódio, segundo qual no verso 121 a sátira dizia: “o rei

tem orelhas de asno”. Cornuto, temendo que o imperador interpretasse a frase como uma

alusão direta a ele, convenceu o satírico a mudar a frase para: “quem não tem orelhas de asno?

Apesar do esforço de Cornuto, a interpretação corrente era a de que todos sabiam que os

versos eram direcionados a Nero. Em 65, ordenado por Nero, Cornuto era mandado para um

forçado exílio, juntamente com seu colega, o também estóico Musonio Rufo.

A obra persiana é considerada filosófica e didática; bastante convencional para um

período que não cansou de detectar os excessos de parte do período do governo neroniano.

Ainda não esqueçamos que juntamente com Lucano e Sêneca, a filosofia estóica foi uma das

armas de oposição aos césares que se utilizavam de atitudes despóticas. A presença de Pérsio

aqui se deve ao fato de ser um autor que engrossará, com o passar do tempo, o grupo de

estóicos que além de professar um sistema filosófico, transformar-se-a em uma bandeira de

combate.

Como exemplo trazemos algumas referências da Sátira III (de um total de seis) que o

poeta dirige contra todos aqueles que se descuidaram dos estudos da filosofia e cederam seu

tempo e suas forças ao ócio, a indolência, principalmente os jovens. O poeta descreve os ardis

de que se valia, desde a sua infância para se dedicar aos estudos. “da mesma maneira que

15 Abunda, nesse tipo de textos, expressões como dicunt (dizem alguns), dicis ou dices (dizes ou dirás tu). Também se constata a intenção de atingir um tu mais direto e objetivo nesse tipo de recurso de escrita. Graças a Cornuto.

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devemos atacar o mal pela raiz com remédios adequados, assim devemos o quanto antes

assimilar os estudos filosóficos para a nossa vida”. Viver segundo regras de conduta ética,

que nos colocará ao abrigo da ignorância. “Quando criança, recordo, ficava a fazer exercícios

a partir dos exemplos de Catão, e principalmente pelo seu suicídio”. (era prática comum fazer

exercícios de eloqüência. Os pais assistiam aos exercícios, quando não convidavam os amigos

para assistir).

Lucius Anneus Seneca- de Córdoba - nasce em 1 d.C. e morre em 65 d.C.

Escreveu muito e sobre muitos assuntos. Grande parte de suas obras pode ser vistas

com uma função instrumental de educar a todos, elencando direitos e deveres, ou seja, o que

era recomendável e o que não era recomendável fazer para governar e para viver em

sociedade. De sua biografia e trajetória elencamos apenas os principais aspectos: a primeira

fase é a mocidade do autor, seus primeiros anos em Roma e sua rápida viagem ao Egito para

tratar um problema de saúde; a segunda fase significativa é seu exílio na Córsega por ordens

do imperador Cláudio e que marcará profundamente seus escritos; a terceira, o período em foi

preceptor e conselheiro de Nero, quando escreve textos importantes; a quarta e última, a sua

velhice, já afastado do poder, momento em que aparece um dos textos mais significativos: as

Epístolas Morais. A defesa, nos textos redigidos na velhice, de uma vida dedicada aos

estudos, explica sua posição e suas escolhas. Apesar de seu reconhecimento, Sêneca colheu

muitas frustrações ao longo de sua trajetória política e pessoal. Foi exilado no ápice da sua

vida e quando despontava como político e escritor em Roma. Toma praticamente as rédeas do

poder e vê suas pretensões de um governo de feição estóica desandar ao longo da

administração de Nero. Mas, é preciso considerar que acreditamos que Sêneca estava ciente

daquilo que o governo de Nero alcançou no período em que ele orientou o príncipe no poder.

As atitudes de clemência, bondade e retidão tomadas por Nero, seguramente se deram por

influência e orientação de Sêneca, além do sucesso obtido pelo príncipe nos discursos

proferidos no e para o Senado, todos da lavra do pensador estóico.

Convém lembrar das reflexões de Pedro Paulo Funarai para aquilo que a historiografia

acerca da antiguidade do alto império romano chamou de círculo dos estóicos. Procurou-se

entender as relações entre estoicismo e política, em enfatizar o caráter marcadamente pessoal

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e individualizante da ética estóica, sobretudo a partir do, assim chamado, médio estoicismo e

das obras de Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio. Uma ética centrada no autocontrole de si e para

a qual a questão da liberdade se resolve individualmente, pelo controle das paixões e pelo

contentamento com o que se possui, baseando-se, simultaneamente, numa confiança absoluta

na providência divina e no reconhecimento da inelutabilidade do destino. Essa imagem,

verdadeira em linhas gerais, não deve, contudo, fazer-nos esquecer que o estoicismo romano,

possuía também uma forte dimensão política, estreitamente vinculada à sua adoção por parte

significativa da elite política romana desde o final da República. No seio desta elite, o

estoicismo atuava como fonte de uma ética ao mesmo tempo pessoal e coletiva, que dava

sentido à sua participação na vida pública e permitia unificar, no universo de suas relações,

sua vida privada com sua existência pública.

A historiografia recente, no entanto, tende a considerar a presença e a participação

política desta nobreza estóica sob uma luz diferente e a posição do estoicismo romano frente

ao Principado parece, com efeito, ter sido mais complexa e matizada. A participação dos

estóicos na vida do estado manifestou-se, com particular força, sob o principado de Nero, o

último dos imperadores Júlio-Cláudios. A ascensão de Nero foi vista, pelo menos nos

primeiros anos, como uma oportunidade de concretizar a presença de um homem preparado

para a administração imperial.

Aplicado no campo político o estoicismo torna-se uma concepção de caráter cívico,

pois objetiva a fidelidade do homem para com o outro homem. Os nossos autores almejavam,

e nos propósitos deste texto, a partir das atitudes e do exemplo dos dois Catões, dirigir-se à

consciência moral de cada habitante do império, pois reconhecia a existência das redes

clientelares e suas vicissitudes e estava ciente de algumas desigualdades presentes na Roma

de seu tempo.

A constatação de que a condição moral das pessoas se mostra quase sempre

extremamente complexa e bastante ambígua, essa filosofia, que poderia ser considerada como

“guardiã” de valores ideais e nobres, carregava a possibilidade de ser um depositário de

virtudes para se aplicar, quando houvesse necessidade, ao universo político romano. A

filosofia do estoicismo defende claramente a participação dos seus iniciados na vida pública e,

portanto, política da cidade.

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Essa participação ativa e positiva, contudo, aparece ocultada pelas fortes distorções

operadas, a partir da morte de Nero, na memória sobre os eventos de seu breve governo. Para

os historiadores posteriores, Nero passou a representar o exemplo, por excelência, do tirano,

do mau príncipe, lascivo, cruel, ambicioso, escravo do medo e da paixão. A memória sobre

seu reinado e mesmo nosso acesso à realidade, eventos e expectativas deste período são

determinados, em larga medida, pelo relato contido nos textos produzidos a posteriori. Houve,

sim, um projeto que envolveu um grupo de estóicos, em particular o ativo grupo de senadores

liderados por Thrasea Paetus.

Os autores que aqui são trabalhados, p.e. insistem ao longo dos seus textos na res

publica e não na ideia de regnum. Compromisso com o Senatus e o Populus. Pensar o

ordenamento social do Império Romano e a boa relação entre o princeps e o Senado.16 Se

grande parte dos autores que nos interessam mostram-se com uma perspectiva moralizantes

não parece novidade, o que chama a atenção é o fato de que os mesmos se referem à história e

as personagens com uma ênfase moral ao mesmo tempo em que suas reflexões podem ser

lidas com uma clara intenção e função pedagógica. Esta função pedagógica também está

grandemente atrelada a um recurso retórico e estilístico presente na literatura clássica: os

exempla e a historia magistra vitae.17 Há, nas reflexões dos autores, inúmeros exemplos de

ações, de acontecimentos e de personagens de épocas anteriores que podem e, para o autor,

devem ser aprendidos e praticados (ou rejeitados) na vida pública e privada. Objetivava

mostrar às pessoas que homens considerados especiais poderiam ter condições de instruir

outros homens e outras épocas através do exemplo dos seus pensamentos e das suas ações.18

16 Ao utilizar-se de Catão, os autores atendem a um grande objetivo de uma literatura voltada as questões da educação romana: a construção do modelo almejado de homem romano ideal: um Catão exemplificado nas suas ações públicas e um Catão como exemplo a ser seguido nas escolhas da vida privada. 17 Ao longo dos textos, vemos desfilar inúmeros personagens, uns mais, outros menos conhecidos, mas a quase totalidade deles cumpre um papel, qual seja o de ser um exemplo ou um contra-exemplo para aquilo os autores desejam demonstrar aos seus potenciais leitores. Tais exemplos fixam-se na memória através da repetição de eventos ou pela (re) memoração destes eventos e das personagens (novamente lembramos de Catão) trazidas à memória da sociedade do período em que os referidos pensadores se encontravam inserido. 18 Citamos o próprio Sêneca na Epístola 25: “quando já tiveres progredido a ponto de um grande respeito por ti mesmo, só então terás condições de dispensar um pedagogo. Até que isso aconteça, refugia-te na proteção de uma dessas autoridades: Catão, Cipião, Lélio”.

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Os estóicos defendiam o ideal de um principado escrupuloso das liberdades públicas:

No final da vida principalmente, Lucano, Sêneca e Pérsio, formam o círculo do estoicismo

anti-neroniano. A própria poesia volta a ser instrumento de luta e, muitas vezes, os seus

criadores mergulham na ação e desejam ardentemente a bela morte, no clima inflamado pelas

suas paixões e pelo gosto teatral e barroco da época.

No início buscou-se fortalecer a relação entre príncipe e os outros. Talvez perseguir o

ideal ciceroniano do “afeto dos súditos”. Para tanto, o exemplo em Catão, mostrava-se

bastante adequado. O principado nasceu como uma resposta aos problemas decorrentes das

crises e das guerras civis deflagradas no final do primeiro século antes de Cristo, no qual se

assistiu a uma degradação das instituições republicanas. Augusto quis criar um regime com

legitimidade jurídica e administrativa, e conseguiu, pois o seu governo lançou as bases para

dar sustentação aos seus sucessores. Há, porém, campos em que esta legitimidade não mostra

o efeito desejado. Há domínios em que as competências jurídicas não são determinadas de

forma clara. Esses domínios, que não são todos de um estatuto jurídico e não são apenas de

caráter político, passam pela esfera da ética, da moral, tanto no campo público quanto no

campo privado. Neste sentido, o nome de Catão atendeu aos objetivos do círculo dos estóicos.

Valorizam os aspectos republicanos no que tem de mais importante. Depositário do mos

maiorum, do apego à terra e de uma época “que se vivia e se contentava com pouco”. Os

exemplos fornecidos pelos autores do que é correto e do que é errado, daquilo que denota uma

vida virtuosa e de uma vida entregue aos vícios, demonstram suas inclinações para outra

época.

Os autores reafirmam uma época de excessos, um certo mal-estar e, a partir dos textos,

tencionaram ou impedir o desmoronamento moral da sociedade romana. Para entender melhor

esse aspecto, é preciso ter em mente que os primeiros séculos de desenvolvimento da

civilização romana se mostram de forma mais ou menos independente, pois inicialmente a

influência grega é pouco sentida. Em comparação com os gregos, voltados a uma educação

citadina e aristocrática, percebe-se no mundo romano uma educação mais rudimentar, voltada

ao âmbito rural. Jean-Noel Robert nos diz: “Em sua origem, o romano é um soldado e um

camponês. Trabalho obstinado, frugalidade e austeridade constituíam as três principais regras

de vida desses homens”. Tal referência não é meramente gratuita, pois a terra assumirá um

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lugar capital na exploração econômica de Roma e da Itália como um todo. As conseqüências

dessa escolha irão intervir em diversos aspectos da sua história; questões políticas, já nos

primórdios da República, são questões vinculadas à terra. Para Maria Helena da Rocha

Pereira, “[...] estas tradições rústicas que, como notou Claude Nicolet, tão bem se

coadunavam com a doutrina estóica, vão perseverar e, sobretudo ganhar novo alento na época

de Augusto”.

Foi no principado de Nero que se manifestou, o sonho de realização concreta de uma

utopia política, de origem filosófica, no governo dos homens. As ironias da História fizeram

com que os estóicos, que perderam a luta pelo poder, ganhassem a batalha da memória, a

ponto de apagar dela sua participação decisiva num reinado que se tornaria símbolo de mau-

governo, crueldade, loucura, tirania. A criação do “mito de Nero”, que domina as apreciações

de seu reinado até hoje, fez desaparecer da memória essa interessante, mesmo que fracassada,

tentativa de um governo regido pela filosofia.19

A historiografia greco-romana alimentou o pensamento sobre a ideia de decadência.

Pensamos mais numa perspectiva de renovações que ocorrem em vários períodos do

pensamento antigo. A insistência de falar de um novo período a partir da retomada de um

passado exemplar aparece como reabilitador (exemplos virtuosos dos antepassados

personificados por exemplo em Catão). Suas obras: objetivam também valorizar a memória

do grupo ao qual o autor pertencia, pois não esqueçamos que o imperador indica nomes de

novos membros para as ordens romanas. Buscar construir uma identidade a partir inclusive da

imitação de modelos precedentes (autoridade do autor antigo), demonstrando seus interesses,

simpatias e alianças. A possibilidade de ver em seus textos, a afirmação da autoridade de suas

obras como fontes de conhecimento do passado romano. Além de outro aspecto que

entendemos como fundamental: esses autores não desejavam serem vistos como homens

19 No contexto Greco-romano, o termo “político” tem um significado mais amplo, pois significa desempenhar, além das questões políticas, todas as obrigações de um cidadão como casar e ter filhos, participar da vida pública, ser virtuoso (pietas, fides, mos maiorum).

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provinciais, mas como conhecedores da tradição romana e respeitadores da Ordem Senatorial. 20

Dirigindo-se a Augusto na Epístola I do livro II, ensina Horácio: “ainda que sem vigor

e sem coragem no trato com as armas, o poeta é útil à cidade, se tu concorda que as pequenas

coisas podem ajudar as grandes. O poeta modela a boca tenra e gaguejante das crianças, ele

afasta desde então suas orelhas de propósitos desonestos; mais tarde ele forma também o seu

coração por preceitos amigos, o curando da indocilidade, da inveja e da cólera. Ele narra as

belas canções, supre de exemplos ilustres as gerações que chegam, consola a pobreza do

pesar”. (v. 125 – 131).

E por fim, estes homens encarnam o modelo de homens sábios que colocam seus

conhecimentos a serviço da res publica. O estoicismo aparece como uma possibilidade ética

pessoal e coletiva. Tenciona unificar as relações da vida privada com a existência pública,

como vimos. Um grupo de pensadores que de apoiadores de um regime, passaram a oposição.

Permaneceram ligados aos ideais republicanos, movidos pela bandeira da libertas e

principalmente pela referência do homem considerado como o último dos republicanos, Catão

de Útica, personificação de homem sábio e político dos estóicos.

20 Lembrar de homens que encarnavam os valores republicanos e portanto a força do Senado era ir de encontro ao povo romano que não tolerava a ideia monárquica porque lembrava o Oriente e o perigo da divinização do regente, abominado não apenas por Catão, mas por Cícero, Cipião, Ênio entre outros. Nenhum regime político é capaz de sustentar-se por um longo período se não existir um consenso mínimo entre os segmentos que compõem a sociedade. Lembramos novamente da relação entre a aristocracia senatorial e o princeps.