A biografia feminina e a história das relações amorosas
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Fazendo Gênero 8 Fazendo Gênero 8 Fazendo Gênero 8 Fazendo Gênero 8 ---- Corpo, Violência e Poder Corpo, Violência e Poder Corpo, Violência e Poder Corpo, Violência e Poder
Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008
A biografia feminina e a história das relações amorosas
Flavia Arantes Hime (PUC-SP) Palavras-chave: Feminilidade, gênero, amor ST 34: Vínculos familiares em questão: representações e práticas sociais de gênero e suas implicações.
Nas últimas décadas o mundo ocidental tem se transformado rapidamente, surgindo novas
possibilidades de expressão do masculino e do feminino: ocorreram mudanças demográficas como
o aumento da longevidade devido aos avanços médicos, possibilidade de controle da fecundidade
com a dissociação entre sexualidade e maternidade, entrada das mulheres no mercado de trabalho
com conseqüentes mudanças nas relações familiares, escalada do divórcio e surgimento de
múltiplos arranjos familiares. As transformações na família estão relacionadas a um conjunto
complexo de forças sociais e econômicas como a passagem de uma economia de produção para
uma de serviços, o que favorece a mão de obra feminina. Verifica-se o surgimento de uma “nova
mulher” que busca a autonomia, independência, aspira estruturar sua identidade não só nas relações
amorosas e familiares, mas também na ocupação; tem como metas a realização amorosa,
profissional, familiar e social e o reconhecimento de seu valor. Se por um lado aumentaram suas
oportunidades de desenvolvimento nessas várias áreas, também se ampliaram as dificuldades para
conciliar todos os papéis resultantes.
Esse processo não parece fácil nem está sendo realizado de maneira harmônica. Nota-se,
principalmente nos grandes centros urbanos, um esvaziamento das relações, que se tornam fugazes,
superficiais, contingentes, gerando sentimentos de solidão e falta de pertinência a um entorno social
afetivamente significativo (Gergen, 1992).
Em trabalho que visou compreender as intersecções entre as vivências amorosas e a
construção do si-mesmo em mulheres urbanas das camadas médias da população por meio da
narrativa biográfica (Hime, 2004), constatamos que este instrumento de pesquisa favorece tanto o
olhar retrospectivo quanto o prospectivo: é fruto de uma série de outras narrativas, construídas
durante todo o ciclo vital, de onde foram surgindo si-mesmos que se transformaram, se compuseram
e se concretizaram naquele que surgiu na biografia.
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Giddens (1993) afirma que “hoje em dia, o eu é para todos um projeto reflexivo – uma
interrogação mais ou menos contínua do passado, do presente e do futuro” (p. 41). Na
contemporaneidade esse processo é aberto, numa reconstrução contínua que pode acarretar a
resignificação do passado e novas projeções de futuro, a partir de um presente que oferece muitas
possibilidades de escolha: à ampliação do leque de opções se soma a instabilidade trazida pelas
mudanças que caracterizam este momento histórico. A construção do si-mesmo revela estabilidade
e mudança, continuidade e descontinuidade, progressões, bloqueios e retrocessos. Tem uma
dimensão individual, pois é experienciada e definida pela própria pessoa e uma relacional, pois se
expressa na interação e se inscreve num momento histórico e em determinada cultura.
A perspectiva da construção social do gênero é central para nossas reflexões acerca dessas
questões, já que as várias formas de manifestação do Feminino se definem por sua relação com o
Masculino, também em suas muitas possibilidades. A partir da década de 80 os estudos de "gênero"
permitiram uma releitura crítica das teorias e pesquisas sobre mulheres, desvinculando-se dos
estereótipos sexuais e ultrapassando o reducionismo biológico. A feminilidade e a masculinidade
passaram a ser compreendidas como culturalmente construídas e situadas no espaço e no tempo: os
discursos criam as diferenças entre homens e mulheres.
Segundo Kimmel (2000) as questões relativas ao poder estão na base desse processo. O
gênero não se refere apenas à identidade pessoal, mas é também um fenômeno institucional
presente nas nossas interações diárias. Um olhar a partir do gênero relativiza as atribuições sociais
tradicionais, que mutilavam homens e mulheres, aprisionando-os em papéis opostos e
complementares.
A sociedade se estrutura com base nas diferenças anatômicas; gênero não é a diferença em
si, mas a maneira como é representada em termos de masculinidade e feminilidade. Como revela De
Barbieri (1991) a sexualidade é carregada de significados, de historicidade. A construção de seu
sentido (em termos de valores, símbolos e representação do eu) vai muito além do prazer e da
reprodução, sendo que desigualdade entre homens e mulheres, que as inferioriza e submete,
articula-se com outras, como raça, etnia, momento do ciclo vital, etc. Assim, o conceito de gênero
impõe uma forma plural de pensar.
Kimmel (2000) mostra como a separação de esferas - pública para o homem e privada para a
mulher - significou mais que separação espacial, pois dividiu o mundo social e o domínio psíquico
em metades complementares. Os homens expressavam traços e emoções associados ao trabalho,
como competitividade, realização pessoal e racionalidade instrumental, enquanto as mulheres
cultivaram as qualidades domésticas como o amor, cuidado e compaixão. Para ele estas diferenças
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resultam das mudanças sociais e econômicas, e não o contrário: a desigualdade de gênero produziu
as diferenças que legitimaram as desigualdades.
Ao focalizar as interseções entre as biografias e as relações amorosas, percebemos que estas
tiveram um papel fundamental na história de vida das participantes, facilitando ou dificultando seu
crescimento. Costa (1999) nos mostra que o amor é um fenômeno histórico, em contínua
construção, desde seus primórdios. As diversas transformações por que passou mostram que novas
regras podem ser inventadas, dependendo de nossas escolhas. O crescente individualismo e falta de
suporte social de nossa cultura levam à busca de relações amorosas que nos proporcionem a
continência, o reconhecimento e a validação que outrora eram obtidos nas instituições. Elas podem
nos ajudar a perceber quem somos, o que desejamos e para onde nos encaminhamos, num
movimento de construção e reconstrução de significados que atravessa o ciclo vital.
Tradicionalmente, o amor tem sido vivido de diferentes maneiras por homens e mulheres.
Diz-se que amor é “coisa de mulher”. Na realidade, houve uma feminização do amor e os
comportamentos amorosos masculinos passaram a ser avaliados a partir de critérios femininos. A
forma masculina inclui paixão sexual, aspectos práticos de proteção e cuidado, garantia de
sobrevivência material e ajuda mútua. A feminina, mais valorizada, se refere a compartilhar
sentimentos, à dependência emocional mútua, ao cuidado expresso pelo diálogo.
Há evidências de que nas últimas décadas as diferenças vêm se estreitando: os homens
começaram a expressar seus sentimentos. Por outro lado, a feminização do amor como emoção,
cuidado e intimidade, obscurece a competência para suas formas mais ativas e instrumentais. À
medida que mulheres entram do domínio público, reivindicando igualdade de oportunidade e
remuneração, e que homens começaram a aspirar a relações de intimidade, pode-se abrir um
caminho para a democratização , emergindo várias possibilidades de “Masculino” e “Feminino”, em
relações idealmente flexíveis e plurais.
É importante considerarmos que na atualidade a possibilidade do divórcio dá uma nova
qualidade àsvinculações. Concordamos com Moraes (1994) quando diz que a falta de perspectivas a
longo prazo permite um número maior de relacionamentos, na busca de que sejam gratificantes. As
mulheres contemporâneas desmistificam as concepções de que existe um “homem certo” que as
acompanhará pela vida toda ou que são “mulheres de um homem só”, valorizadas no passado.
Como diz Moraes (1994), o namoro deixou de ser uma tarefa exclusiva da juventude, sendo uma
vivência possível em qualquer idade.
Um tema presente em todos os relatos biográficos foi a vivência da sexualidade, que revelou
a coexistência de padrões arcaicos e modernos, característica de uma sociedade em transformação
(Figueira,1987). A desvinculação entre sexo e amor e a validação da sexualidade como busca do
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prazer, com intimidade e afeto, mas não compromisso, é uma conquista recente para a mulher e
muitas vezes carregada de moralismo, resquício dos padrões anteriores ainda vigentes.
Uma reflexão sobre essas relações mostra que elas apresentam, por um lado, uma dimensão
pessoal: refere-se à dinâmica dos indivíduos e suas relações. Por outro lado, a dimensão social
revela a persistência de um padrão tradicional, a dupla moral, que as transformações sociais vêm
paulatinamente modificando: o homem que tem relações extraconjugais freqüentemente se refere à
esposa e à namorada, relações vividas simultaneamente. Porém, as soluções atuais trazem conflitos
e culpa pela vivência de uma situação aceita socialmente só em parte para o homem, mas
condenada para a mulher. Revelam-se aí as questões de gênero, pois se considera que o homem
desvincula sexo e amor, e sua infidelidade é “só uma puladinha de cerca”, não ameaçando a relação
conjugal. A mulher casada não faria essa dissociação, traindo a confiança do marido com maior
gravidade. A mulher solteira que não coloca restrições ao estado civil do homem, amplia suas
possibilidades de escolha, mas arca com o peso das contradições pessoais e sociais.
Constatamos (Hime, 2004) várias formas de expressão da sexualidade feminina, que se torna
mais flexível, ativa e completa ao se desvincular, gradativamente, dos valores, normas e práticas do
sistema patriarcal. Passa a ser uma questão de exercício da autonomia, resultado da reflexividade.
O matrimônio é uma importante aspiração feminina, mas deve acolher as necessidades de
autonomia, afirmação de si e também de construir uma relação satisfatória, que integre amor e sexo.
Não é mais, como ocorria no passado, um fim em si mesmo, nem etapa final ou meta para a mulher
que tinha a definição de si na conjugalidade e na maternidade. A satisfação no casamento é
valorizada por ambos os cônjuges, que precisam comprometer-se com suas escolhas, investir
energia e ser flexíveis para que a qualidade da relação seja aprimorada. Embora esta seja uma tarefa
que cabe aos dois, a responsabilidade pelo cuidado da relação ainda recai sobre a mulher
(Norgren,2002). Os casamentos atuais estão sobrecarregados por muitas expectativas, como a
realização amorosa e sexual, projetos de futuro e de educação dos filhos compartilhados, etc. O
amor é fundamental para ligar as pessoas, mas talvez seja frágil para suportar tantas aspirações,
principalmente se houver uma projeção de longa duração.
Amar e se apaixonar são duas necessidades humanas que nem sempre se integram no mesmo
relacionamento. A paixão é subversiva, no sentido de que tira o indivíduo de suas obrigações
cotidianas, arrebatando-o. A sensação de ser um só com o amado, muitas vezes concretizada numa
intensa vivência sexual, remete simbolicamente à completude experimentada na relação primordial
com a mãe. Entretanto, leva à confrontação com a necessidade de separar-se do outro,
reconhecendo-o como diferente. A desidealização pode levar ao término da relação ou à sua
transformação em amor. A discriminação do outro possibilita a afirmação de si como alguém que
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não depende do ser amado para sobreviver, mas que estabelece com ele uma relação que acolhe as
necessidades de ser separado e de estar acompanhado e acolhido no processo de desenvolvimento.
As desigualdades de gênero começam a ser revistas: homens e mulheres desenvolvem a
autonomia e o cuidado das relações, ambos ocupam os domínios público e privado, as mulheres
deixam de ser divididas em puras e impuras por assumir uma sexualidade livre e completa. O novo
Masculino compartilha desse Feminino, que se atualiza e se apropria de vivências e espaços que
lhes eram vetados. Questiona-se a feminização do amor, ocorrida a partir do século XVIII, quando
anteriormente esse sentimento era prerrogativa das relações masculinas; a masculinização do sexo,
ativo, conquistador, dominador, também é posta em cheque. Homens e mulheres podem ter
experiências amorosas e sexuais dentro de um raio amplo de escolhas possíveis.
É necessário considerarmos os conflitos resultantes dessas novas possibilidades, já que há
mudanças na vivência pessoal e também no âmbito social. O amor é um sentimento e uma narrativa
social, tendo sido reinventado inúmeras vezes no decorrer da história: assim como pode perpetuar
as desigualdades de gênero, pode também ser transformador.
A autobiografia revela como as mulheres são influenciadas pela época histórica em que se
situam, mas também como dão forma a ela (Levinson, 1996). Se há poucas décadas se observava
uma inércia na subjetividade ao passo que as transformações sociais eram muito aceleradas
(Figueira, 1987), hoje as mulheres revelam uma revolução silenciosa, que emerge das narrativas
autobiográficas, mostrando que o indivíduo é capaz de mudar sua própria história. Esse movimento
poderá se configurar como um caminho para transformações sociais mais amplas.
As desigualdades de gênero permeiam nossa vivência pessoal e profissional e, portanto,
também as relações que estabelecemos no seu exercício: a perspectiva de gênero as denuncia e pode
ser uma importante contribuição às teorias e à prática psicológica.
Bibliografia
BRUNER, J. (2002). Atos de significação. São Paulo: Artmed.
COSTA, J.F. (1999). Sem fraude nem favor – estudos sobre o amor romântico. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Rocco.
DE BARBIERI, T. (1991). Sobre la categoría género: una introducción teórico-metodológica.
Seminários Prodir/Fundação Carlos Chagas. São Paulo, pp.25-45.
FIGUEIRA, S. A. (1987). O “moderno” e o “arcaico” na nova família brasileira. Em S. A. Figueira
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GERGEN, K.J. (1992). El yo saturado. Barcelona: Ediciones Paidos.
GIDDENS, A. (1993). A transformação da intimidade. São Paulo: Unesp.
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HIME, F.A. (2004). A biografia feminina e a história das relações amorosas: o vôo da fênix.
Tese de doutorado. PUC, São Paulo.
LEVINSON, D. J. (1996). The seasons of a woman´s life. New York: Ballantine Books.
MACIEL Jr, P. A. (2000). E agora José? Uma contribuição para o entendimento da concepção
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MORAES, N.M. (1994). “Sapos não viram príncipes”: uma abordagem das perspectivas
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NORGREN, M.B.P. (2002) “Para o que der e vier”?: Estudo sobre casamentos de longa
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